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Humberto Mauro: Um Olhar Brasileiro. A Construção de Um Pensamento Nacionalista Cinematográfico No Brasil
Humberto Mauro: Um Olhar Brasileiro. A Construção de Um Pensamento Nacionalista Cinematográfico No Brasil
Niterói
2003
2
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, o Prof. Roberto Moura, cuja ajuda e diálogo tornaram possível a
execução desse trabalho.
Aos meus colegas, transformando a nossa turma num rico cenário de trocas, dividindo
conquistas e incertezas. Sempre guardarei lembranças de nosso grupo de estudos
cinematográficos constituído por Pedro Plaza Pinto, Lécio Augusto Ramos, Mariana Baltar
Freire e Fernando Morais e do trabalho conjunto no Cinesul com Maurício de Bragança.
A dois amigos, a quem devo muito: o Prof. Fernando Ribeiro e o Prof. Hernani
Heffner.
“Uma geração passa, e outra geração lhe sucede: mas a terra permanece sempre firme.”
Eclesiastes 1; 4
“(...) confiança no futuro, que não pode ser pior do que o passado.”
Paulo Prado
5
RESUMO
RÉSUMÉ
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8
CONCLUSÃO................................................................................................................... 111
ANEXO............................................................................................................................. 127
INTRODUÇÃO
1
ROCHA, G. Revisão crítica do cinema brasileiro.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 31
9
O nosso trabalho, assim, não está preocupado em estudar quem foi “realmente”
Humberto Mauro e, a partir daí, emitir algum juízo sobre Glauber ou seja sobre Gonzaga. Nós
rejeitamos categoricamente uma interpretação substancialista, como se algo fosse per se,
como se a essência fosse um dado que se impõe por evidência e fora do tempo. Para nós, caso
fizéssemos uma interpretação ontológica, o ser desse ente chamado Humberto Mauro é
inextricavelmente definido pela função que ocupa numa determinada relação. Seria falso
tentar saber o que é Humberto Mauro nele mesmo, como se fosse possível isolá-lo da rede de
relações que o engendra. O que nos interessa é que ele ocupa uma determinada função em
dois discursos enunciados de modos distintos: Humberto Mauro é um ponto (i)lógico que
articula duas redes discursivas. Dito de outro modo, Humberto Mauro é enunciado em duas
redes extremamente diferentes. Eis o ponto instigante que nos salta aos olhos, exigindo uma
reflexão. Portanto, entendemos o Cinema como um produtor e catalisador de discursos e
utilizamos Humberto Mauro como um elemento catalisador desses discursos sobre o cinema
nacional. A partir desse estranho nó (Humberto Mauro), esses discursos, por sua vez, se
estruturam diante de nós quando privilegiamos dois períodos de ruptura. Esses dois momentos
serão abordados por intermédio de duas figuras essenciais no meio cinematográfico: Adhemar
Gonzaga e Glauber Rocha. Pinçamos esses dois homens como fatores de condensação de um
projeto abrangente de como realizar um cinema brasileiro. Eis o laço comum: um discurso
nacionalista.
Com essa mudança no pensamento, a definição do que seja Arte é radicalmente posta
em questão. Com o processo de laicização, que marca a modernidade, a Arte já não é mais
2
BACHELARD, G. La formation de l’esprit scientifique. 8 ed. Paris: J. Vrin, 1972.
3
É relevante notar o desprestígio que o historiador gozava na sociedade grega, frente ao filósofo e ao poeta.
Somente com a modernidade, ou seja, no mundo científico, a História adquiriu um papel relevante. Em um
determinado momento (o século XIX), a Filosofia buscou tomar a História para si (buscando domesticá-la).
Contudo, com a passagem do século XIX para o XX, a qual Bachelard reconhece como a maturidade do
“espírito científico”, a idéia de Tempo passa a adquirir um valor incontestável.
11
encarada como a representação sensível e humana de uma harmonia exterior à obra de arte (o
cosmos dos Antigos ou a Criação divina cristã). A Arte passa a ser um mundo propriamente
humano e subjetivo. As vanguardas do início do século XX radicalizam esse processo, e
criam um mundo exclusivo à Arte, sendo rompido o seu compromisso com uma ordem
exterior.4 Não é por acaso que, quando ocorre a maturidade do “espírito científico”, também
há uma mudança na Arte. A concepção de uma lógica única também possui os seus corolários
no campo artístico. Postulando a existência de uma ordem unitária nas coisas, cabe ao artista
concretizar essa harmonia, a partir de cânones incontestáveis, por serem os mais apropriados
para se dirigirem à essa harmonia – a idéia de adequação. As vanguardas modernistas, por sua
vez, quebram definitivamente a regência de regras imutáveis e globais. O artista gera as
condições de criação artística à medida que processa sua obra, em um procedimento
semelhante ao do cientista. É por isso que o reconhecimento artístico do Cinema (deixando de
ser encarado como uma mera técnica) ocorre sobretudo nos anos 20, quando as artes plásticas
destróem os seus últimos resquícios de uma concepção cosmológica ou teológica. Até então, o
cinema era encarado como um simples suporte de reprodução, isto é, apenas um meio de
manifestação de algo que não lhe era próprio. Era apenas registro do cotidiano ou da
encenação de um espetáculo. Quando o cinema passou a se exprimir de um modo totalmente
peculiar (o deslocamento da câmera, o posicionamento dos atores, ou partes de seus corpos,
em relação ao enquadramento) lhe foi conferido o estatuto de arte. Ou seja, o filme não é mais
a simples reprodução de uma ordem alheia (de algo que está no mundo) mas a criação de algo
totalmente novo (inexistente até então no mundo). Vemos aqui o conceito de arte como a
criação de um objeto, acrescentado ao mundo, que tece uma ordem totalmente singular.
Assim, foi possível surgirem teóricos que passaram a elaborar um conceito de “cinema puro”
ou discutir o “específico fílmico” à medida que foi atribuída ao cinema a categoria de arte,
nos termos acima.
Por outro lado, o filme é concebido como uma mercadoria, instaurando uma indústria.
O cinema absorve duas faces: a estética e a mercantil. Exercendo a função de espetáculo
numa sociedade de massa, o cinema é definido segundo uma concepção laica e consumista de
diversão. A sociedade industrial se baseia na produção em larga escala de uma determinada
mercadoria, o que significa, em relação ao cinema, a reprodução de cópias de um mesmo
filme. O cinema, portanto, nunca possuiu o que Walter Benjamin (1892-1940) chama de
“aura”, marcando-o como um fruto específico da modernidade.5 Assim, podemos resumir o
Cinema como um fator da modernidade por três aspectos. Por sua estrutura, o movimento.
Pela manifestação dessa estrutura, uma obra (o filme) criada segundo leis e normas próprias -
a Arte como a instauração de uma ordem singular. E, por último, pela apreensão dessa
estrutura, o conceito de espetáculo a ser gozado por uma ampla platéia, com uma vasta rede
técnica e comercial, conforme a ordem capitalista, isto é, segundo relações mercantis.
4
FERRY, L. Le sens du beau. Paris: Librairie Générale Française, 2001
5
O que não significa que o cinema seja uma arte menor, mas, que o conceito de Arte mudou.
6
TELES, G. M. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 9 ed. Petrópolis: Vozes, 1986. pp 25-35
12
Posto isto, a nossa hipótese é que a questão fundamental abordada por Glauber e
Gonzaga, ao exigirem uma produção cinematográfica no Brasil, é pensar a modernidade e os
seus efeitos na nossa sociedade. Desse modo, Humberto Mauro será, simultaneamente, o
elemento de ligação e de diferenciação entre os dois. Ambos constatam uma necessidade de
modernizar o país, mas a questão vai mais além: que modernidade nos interessaria? O que
significa a modernidade para nós, um país na periferia do capitalismo? Para Gonzaga, Mauro
está articulado com um projeto de modernidade a ser instaurado em nosso país coerente com
as transformações ocorridas nos países centrais. Por sua vez, para Glauber Rocha, a figura de
Mauro é fundamental para sintetizar os paradoxos dessa modernidade na sociedade brasileira
(e no final de sua obra, o cineasta baiano pensa em termos do Terceiro Mundo). Portanto, os
dois projetos de nação presentes em seus discursos passam por Mauro como um ponto de
discussão sobre a modernidade. Essa questão está visceralmente unida à busca de uma
definição do “ser brasileiro”. Assim, discutir a modernidade por intermédio do cinema é,
também, discutir o que é cinema brasileiro, o que, por conseguinte, significa definir as suas
peculiaridades como a expressão de uma nação e seu povo.
O nosso trabalho se concentra em Glauber Rocha, pois acreditamos que o seu livro de
1963 é uma pedra basilar na construção de, posto nos termos de Bernardet7, uma
“historiografia clássica do cinema brasileiro”. Duas outras figuras são também fundamentais
na escrita dessa historiografia: Alex Viany (1918-1992) e Paulo Emílio Salles Gomes (1916-
1977). Ao dialogar com esses dois pensadores, o livro de Glauber marca uma “virada”
conceitual, colocando todo o cinema brasileiro em outros termos, o que enriquecerá a
discussão teórica sobre o tema, sistematizando-a nesse pensamento, agora clássico. Vemos,
por parte de Glauber, uma necessidade de pensar os rumos do cinema brasileiro diante de uma
nova safra de filmes que resulta da falência do projeto do cinema paulista e do esgotamento
da chanchada. Esse é o propósito inicial de Glauber Rocha: definir o que é Cinema Novo.
Diante dessa tarefa, Glauber se volta para a história do nosso cinema (melhor dito, uma
“revisão crítica”), buscando saber as suas características.
Se é “novo”, é lícito supor que se contrapõe a algo que podemos rotular de “antigo” ou
“tradicional”. Partindo de uma dicotomia (velho x novo), que é bem sintomática de um
questionamento moderno, Glauber o coloca em outros termos: cinema de autor x cinema
comercial. Entretanto, Glauber, paradoxalmente, atrela a sua metodologia (“a política dos
autores”) ao fiasco de um projeto de cinema, voltando os seus olhos para o passado. O seu
livro está dentro de uma orientação historicista que remete aos Congressos de Cinema do
início dos anos 50. Ou seja, a necessidade de escrever uma história para entender os atuais
problemas do cinema em sua contemporaneidade. Essa dimensão histórica é um elemento
essencial, não somente de conhecimento, mas como fundamentação para uma ação na área
cinematográfica. Encontramos uma semelhança com o já então “velho Gonzaga”, detentor de
um dos mais ricos arquivos pessoais de cinema (ao lado de Pedro Lima) para quem a
aquisição de uma memória tornara-se um elemento de seu projeto de cinema.
7
BERNARDET, J. –C. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo: Annablume, 1995.
13
Advertimos o leitor de que nosso trabalho possui um caráter ensaístico, ou seja, vamos
levantar questões e hipóteses a respeito das definições do conceito de cinema brasileiro,
visando seu desvendamento histórico, e não recuperar os acontecimentos históricos que as
suscitaram ou a atuação desses protagonistas (Mauro, Gonzaga, Glauber) frente a seu tempo.
Outro item relevante para o autor é o emprego do termo Cinema Novo que, usado sem aspas,
se refere ao movimento cinematográfico brasileiro, formado por filmes e cineastas, num
determinado período histórico, enquanto que, o uso de “Cinema Novo” (entre aspas) se aplica
ao termo em si, à expressão, e não ao objeto concreto. Em termos aristotélicos, “Cinema
Novo” se refere à definição, à essência, enquanto que Cinema Novo se refere ao ente, à
substância.
necessidade sentida a partir dos Congressos. Motivado por uma compreensão histórica da
nossa cinematografia, ao buscar entender as origens dos problemas do setor, Viany descreve
as várias tentativas de se implantar uma indústria cinematográfica nacional, realizando uma
analogia com o crescimento de uma pessoa. Assim, o nosso cinema é apenas um “rapazinho”,
com muito potencial, mas que ainda não alcançou a maturidade. Interessa-nos estudar não
somente essa analogia mas como Viany apresenta Humberto Mauro (que possui um sub-
capítulo próprio), ressaltando uma importância fundamental em sua pessoa. O último texto,
Uma situação colonial? de Paulo Emílio Salles Gomes, é um artigo de 1960, ampliado de
uma tese apresentada à Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica do ano
anterior, que propõe esboçar o quadro geral do Cinema no Brasil (frisamos, não se restringe
ao “cinema brasileiro”) não poupando críticas a nenhuma categoria: produtores, distribuidores,
exibidores, público e à crítica são todos vítimas de uma “alienação” que assola não somente o
setor, mas o país. O autor busca compreender o motivo da mediocridade reinante em nossa
cinematografia (por que filme brasileiro é sinônimo de filme ruim ?), dando um nome à
imaturidade do “rapazinho” apresentado por Viany: subdesenvolvimento.
Analisadas as idéias presentes nesses textos, voltamos a nossa atenção a Glauber, para
acompanhar a composição de seu livro, e como Mauro é nele trabalhado. Inicialmente,
devemos compreender o que é a politique des auteurs (utilizamos a expressão no original,
para frisar de que se trata de um conceito específico, ligado a determinadas pessoas num
determinado período, evitando confundir com o difundido e vago termo “cinema de autor”),
que Glauber cita ser a sua metodologia. Assim, necessitamos defini-la, buscando a sua origem
e o seu uso sistemático pela crítica francesa. O nosso objetivo é desencavar as fontes teóricas
que possuem influência no pensamento e na obra de Glauber. Após compreender a
metodologia em seu sentido original, veremos como o autor a utiliza em seu livro. Assim,
estudaremos como Humberto Mauro é abordado segundo essa leitura glauberiana. Cabe
recordar a importância da realização do Festival Humberto Mauro em Cataguases, em 1961,
que causou forte impacto em Glauber, motivando-o a escrever o artigo “Humberto Mauro e a
situação histórica”, que dá origem ao capítulo de mesmo nome. O próprio título nos instiga,
abordando Mauro num viés histórico. No capítulo do livro, Glauber é categórico: de Ganga
bruta (1933) aos filmes nacionais contemporâneos ocorreu uma “involução na linguagem
cinematográfica brasileira”; ocorreu algo que prejudicou o desenvolvimento de nossa
linguagem. É necessário compreender o que o autor deseja afirmar com esse juízo tão
veemente. Como ressaltamos que o livro é uma “revisão histórica”, a sua meta maior é fazer
um saldo de nossa experiência cinematográfica, identificando justamente Mauro como o
primeiro ponto em que aflora uma divergência de forças contraditórias.
Procurando identificar os termos utilizados pelo autor, num quadro beligerante (há um
conflito entre dois tipos de cinema), devemos saber quais são essas forças. Assim,
estudaremos as raízes do chamado “cinema comercial”, sendo relevante mirar para o passado,
e identificar os seus agentes e propostas. Aqui, encontraremos a figura de Gonzaga e a sua
relação com Mauro. A criação da revista Cinearte e a sua campanha pelo cinema brasileiro é a
primeira sistematização de um pensamento nacional no campo cinematográfico. Assim, como
Glauber defende um certo tipo de cinema, definindo-o em contraposição a outro (cinema de
autor x cinema comercial), vemos algo semelhante em Gonzaga, que contrapõe o seu modelo
de cinema ao de uma prática amadora e descentralizada, pejorativamente chamada de
“cavação”. Assim, especularemos várias facetas do pensamento gonzaguiano, partindo do seu
questionamento sobre o que é o cinema brasileiro e o seu papel em nosso país.
16
Portanto, o presente trabalho propõe demonstrar que a figura de Humberto Mauro não
somente foi um argumento utilizado para fundamentar o Cinema Novo, mas um nó conceitual
que amarra vários elementos para re-pensar o significado do que seja cinema brasileiro. A
nossa hipótese é que a necessidade de se produzir filmes no país é um constrangimento lógico
deduzido de um discurso acerca da modernidade. O nosso estudo é movido por uma carência
bibliográfica sobre o tema, buscando uma sistematização dessas idéias. Assim, faremos uma
especulação acerca dos dois pensamentos cinematográficos (Glauber e Gonzaga), definindo a
partir de uma negação de algo (o “cinema comercial” para Glauber e a “cavação” para
Gonzaga), da valorização de modelos estéticos (o “cinema de autor” para Glauber e
Hollywood para Gonzaga), e de modelos econômicos (um sistema de pequena produção para
Glauber e uma indústria de grande porte para Gonzaga). A nossa linha de costura, isto é, o
estranho “ponto cego de onde tudo se vê” é a figura de Humberto Mauro, que paradoxalmente
aparece nesses dois pensamentos. Assim, o nosso problema central é compreender por que
essa função é ocupada por Mauro e não por outros cineastas como Luiz de Barros, Mário
Peixoto ou José Medina. Os nossos limites são o livro Revisão crítica do cinema brasileiro
(1963) e o manifesto Estética da fome (1965) de Glauber Rocha, que marcam dois pontos de
reflexão sobre o Cinema Novo, e esboçam um modelo de como pensar o cinema brasileiro. A
nossa metodologia é acompanhar a formação desse pensamento (o projeto “cinemanovista”
enunciado por Glauber), seguindo o nosso objeto de estudo (o nacionalismo no pensamento
cinematográfico brasileiro), a partir de um sintoma (a presença de Humberto Mauro em dois
discursos tão distintos) e da análise de sua contraposição teórica (o projeto de Gonzaga).
17
1
Informação retirada de PELLIZZARI, L. e VALENTINETTI, C. M. Alberto Cavalcanti. São Paulo: Instituto
Lina Bo e P. M. Bardi, 1995. p. 273. Entretanto, a nossa segunda edição é datada de 1957, o que cremos ser uma
reimpressão. Utilizamos a última edição, por ser a mais completa, cf. CAVALCANTI, A. Filme e realidade. 3
ed. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1977
18
do que réu, pois possui uma péssima cultura cinematográfica devido aos elementos
supracitados. Cavalcanti, no fim de seu prefácio, deposita sua esperança no público, que
necessita ser educado, e assim, passará a exigir melhores filmes. Desse modo, já podemos
resumir o quadro que traça do cinema brasileiro: uma produção de má qualidade, salvo
algumas raras exceções (apesar da precariedade da formação técnica), movida pelos piores
interesses que se aproveitam da ignorância do público.
“Eram estes os vencedores da batalha, uma batalha de aspecto triste, quase medíocre, com um
mínimo de heroísmo.” (CAVALCANTI, 1977, p. 48)
Lembremos que o autor constantemente frisa que está oferecendo uma opinião
particular e não um elaborado estudo com fins sociológicos ou históricos. Assumindo ser um
sujeito que volta ao país após muitos anos, a sua descrição adquire um ar quase antropológico,
como uma visão de conjunto de um observador vindo de fora. Assim, Cavalcanti enumera
oito problemas fundamentais:
19
1º) Fator étnico – O autor define o “caráter” do brasileiro, que prejudica o cinema.
Como os latinos, de um modo geral, nós sofremos do mal de “aprender depressa demais”,
desprezando o planejamento e a paciência que uma obra bem-acabada requer.
6º) Distribuição – “Aqui, o quadro é ainda mais desolador”. As nossas leis são
inteligentes, mas notoriamente desrespeitadas, causando sérios prejuízos ao produtor.
2
Em sua entrevista, Lúcia Pereira de Almeida, esposa de Abílio Pereira de Almeida, diz: “Tinha gente de todas
as nacionalidades. Vinte e sete nacionalidades, pra ser precisa, uma vez nós contamos. Um ambiente
variadíssimo. Tudo gente que Cavalcanti trouxe da Europa.” GALVÃO, M. R. Burguesia e cinema: o caso Vera
Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Embrafilme, 1981. p 96
20
Portanto, o autor conclui que é necessário para reverter tal quadro, uma reformulação
geral de todo o setor. Esse é o seu objetivo na proposta do I.N.C., a convite do Presidente da
República. Após enumerar os oitos problemas, o autor não esmorece num pessimismo,
conclamando a sociedade brasileira, mais especificamente os profissionais sérios do nosso
cinema, ao embate: “a luta continua, e algumas vitórias já foram obtidas”. A proliferação dos
cineclubes é vista como um bom sinal, expondo uma fórmula do que seja um filme de
qualidade: “(...) estamos certos de que a única salvação está na realização de filmes
internacionais na sua feitura e nacionais na sua concepção”. E, novamente, deposita a sua
confiança no público:
Em suma, a análise de Cavalcanti possui um caráter clínico: existe um mal que impede
o cinema de “evoluir” em nosso país, identificando oito causas e esboçando um tratamento - o
I.N.C. e a educação do público. Essa última proposta demonstra o viés pedagógico do autor,
que é bem característico da proposta varguista, ou seja, os males do brasileiro não se devem a
um biologismo, à miscigenação das raças, mas à falta de educação. O consumidor médio de
filmes sofre desse problema, que pode ser solucionado pela aquisição de cultura (o que os
cineclubes e a urgência de se criar uma filmoteca é um dos remédios). Apesar de a fórmula do
autor para um bom filme brasileiro (uma forma de padrão internacional junto com uma
“concepção” nacional) conseguir superar o simplista pensamento dicotômico forma-conteúdo,
que era bem característico dos anos 50 (veremos posteriormente esse formato teórico no
pensamento cinematográfico de esquerda), Cavalcanti postula um modelo de fabricação em
molde internacional. Uma outra característica da época identificada é o nacionalismo que
insere o cinema num plano industrial de caráter geral. O “cinema nacional”, que tanto nos
envergonha, não é uma manifestação autêntica de nosso povo, pelo contrário, ele ainda não
existe, sendo apenas um movimento desorganizado, que apenas satisfaz alguns poucos
indivíduos de má índole. É importante ressaltar que o autor não subestima as capacidades do
povo brasileiro, tanto que nas demais artes não temos do que reclamar, pelo contrário. A
mediocridade da arte cinematográfica nacional é praticamente uma exceção em relação às
suas “irmãs”, pois o Brasil é fértil na qualidade de seus artistas. A razão dessa particularidade
se deve ao caráter industrial dessa arte, e portanto, somente agora, com uma política séria de
“substituição de importações”, movido pelo protecionismo e incentivo de uma legislação
nacionalista, é possível lançar as bases do cinema brasileiro. O país passava por um momento
de grandes transformações, se industrializando sob a proteção do Estado. A criação do I.N.C.
seria o primeiro passo para o surgimento do cinema brasileiro, seguindo a trilha aberta pela
Companhia Vera Cruz. Por outro lado, ao lermos detalhadamente, o autor afirma que “a luta
apenas está começando”, e ao aplicar a fórmula de filme brasileiro supracitada (apesar de seu
conceito de “concepção” ser extremamente vago), Cavalcanti demonstra que o “cinema
nacional” ainda não existe; está para ser criado como o resultado de uma batalha. Em resumo,
o passado do cinema brasileiro não tem nada a nos dizer, pois é necessário um corte com ele,
para que surja o “cinema nacional”. Cavalcanti aplica um pensamento descontinuísta que, de
certa forma, é partilhado com o projeto Vera Cruz. Segundo os idealizadores da companhia
21
paulista, o cinema brasileiro somente passa a existir a partir da sua fundação, sendo
considerando a produção de antes apenas um mero esboço de algo.
O subcapítulo acerca do “cinema oficial” nos interessa, pois aqui podemos identificar
Mauro, apesar de ele não ser mencionado. Cavalcanti desempenhou um importante papel no
chamado “documentarismo britânico”, integrando os quadros do G.P.O. (General Post Office)
Film Unit, que posteriormente, durante a guerra, se chamará Crown Film Unit. Portanto, trata-
se de uma unidade fílmica pertencente ao Reino Unido, que criou o que entendemos, hoje, por
modelo clássico de documentário. Aliás, em seu livro, Cavalcanti cita a origem do termo
“documentário” que foi criado pelo escocês John Grierson (1898-1972), retirando da palavra
“documento”, dando um tom solene, mais ao gosto do governo conservador vigente na época.
Cavalcanti, por sua vez, nunca gostou do termo “documentário”, tendo proposto a expressão
“filme neo-realista” (o movimento italiano ainda não existia). Pois bem, ao retornar da sua
experiência cinematográfica no funcionalismo público britânico, o autor está plenamente
autorizado a opinar sobre os filmes produzidos pelo Estado brasileiro. O que caracteriza a
produção governamental – afirma - é a sua pulverização numa variedade de departamentos,
sendo este o seu principal problema. Devido à falta de comunicação entre tais departamentos,
vários filmes sobre o mesmo tema são produzidos, acarretando um desperdício de material e
de fator humano. Como é reduzido o número de técnicos, o profissional é obrigado a
desempenhar várias funções, e não consegue a sua especialização. Assim, a qualidade do
filme fica prejudicada. Se o autor já havia reclamado da má formação técnica dos brasileiros,
imagina o quanto sofre o servidor público, que utiliza como material de trabalho um
equipamento, em grande parte, obsoleto e em péssimo estado de conservação.
Em suma, para o autor, o panorama do filme oficial brasileiro é mais dantesco que o
do comercial. Ou seja, tais filmes, com raríssimas exceções, são péssimos. A sua concepção já
possui inúmeros defeitos básicos, além de não abordar temas de suma importância:
estrutura, sendo lesados em uma de suas partes (se não é a fotografia, é a revelação, e assim,
por diante). Ou seja, o filme oficial não consegue percorrer as diversas etapas de sua
realização de forma idônea, ficando sempre comprometido em alguma parte. A precariedade
de material acaba por forçar os técnicos a buscarem as soluções as mais esdrúxulas em
detrimento da boa linguagem cinematográfica, o que é alvo de crítica por parte do autor. O
que dificulta mais ainda é o fator humano. Os burocratas são severamente criticados:
Não encontramos esse raciocínio em Alex Viany. Em seu livro Introdução ao cinema
brasileiro, 3 a sua metodologia segue os moldes de Georges Sadoul (1904-1968), cotejada por
uma superficial absorção do materialismo histórico por parte do autor brasileiro. Segundo
Michèle Lagny 4 , essa historiografia possui um raciocínio teleológico, partindo de um
“nascimento” até uma “maturidade”, quando o cinema está definitivamente consolidado, tanto
estético quanto industrialmente. Viany recorre a esse modelo, porém a “maturidade”, no caso
brasileiro, ainda não chegou, apesar de o autor possuir a convicta esperança de sua realização.
Assim, o seu livro narra uma ação progressiva que tende a um fim ainda não plenamente
efetivado, sendo uma coletânea de ações que auxiliaram nesse projeto comum. Dessa maneira,
seu livro relata “lições da história”, das quais não devemos esquecer para o estabelecimento
de uma política industrial e de uma proposta estética autenticamente nacional. Portanto,
vemos uma analogia entre o cinema e o desenvolvimento de uma pessoa, que nasce, passa
pela infância até chegar à vida adulta. Porém, esse “rapazinho”, que é o cinema brasileiro, não
consegue chegar a se tornar um “homem”. Anteriormente, vimos Cavalcanti afirmar a
“desesperadora infantilidade” que sofre o nosso cinema, porém, em Viany, existe um rumo
para onde vai o cinema brasileiro, ou seja, há um desenvolvimento, mesmo que extremamente
árduo, que o rege. Portanto, já podemos notar que o cinema brasileiro existe, porém ainda não
em sua forma plena. Não há um corte com um passado, muito pelo contrário, é necessário
voltar os olhos para ele, visando retirar daí algumas “lições”.
O primeiro capítulo de Viany, “A infância não foi risonha e franca”, descreve a fase
muda, da qual o primeiro subcapítulo dá um plano geral, indo dos primórdios até as duas
obras que marcam o ápice Limite e Barro humano. Posteriormente, há mais quatro
subcapítulos que estudam temas específicos. Com o mercado já nas mãos de estrangeiros, o
objeto de tais subcapítulos são as mais importantes tentativas de produção, divididas em
“esforços individuais” (Almeida Fleming e Humberto Mauro) e “surtos regionais” (Campinas
e Recife). Viany não define, conceitualmente, qual é a diferença entre um e outro, mas é lícito
supor que um “surto regional” é uma ação coletiva e local, enquanto que um “esforço
individual” está centrado nas ações de uma única pessoa, que transcendem a um local
específico. É notório que esses subcapítulos “individuais” ultrapassam o corte cronológico do
capítulo geral do qual fazem parte (a fase muda). Porém, tal critério de “individualidade”
pode ser contestado, pois a enigmática figura de E. C. Kerrigan (1878-1956) poderia gerar um
estudo específico, já que ele participou de vários “surtos regionais”, sob nomes distintos.
Pode-se objetar que o grau dos estudos históricos na época não capacitaria a escrita de tal
estudo particular, mas podemos notar que Viany sublinha, por ocasião do ciclo campineiro, a
participação de Kerrigan em várias outras produções em diversas localidades (São Paulo,
Guaranésia e Porto Alegre)5.
3
VIANY, A. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959
4
LAGNY, M. Cine e historia. Trad. J. Luís Fecé. Barcelona: Bosch, 1997
5
VIANY, A. Op. cit. p. 69; “(...) E. C. Kerrigan, possivelmente um ianque exilado (...)”
24
e o regresso à Volta Grande. Porém, assim como todo o seu livro, Viany sofre de uma
carência de fontes, tendo retirado grande parte das informações para esse subcapítulo do
artigo de Carlos Ortiz6 e do capítulo do próprio Mauro acerca do ciclo cataguasense7 . As
epígrafes, uma de Ortiz e outra de Mauro, serão re-transcritas, na versão integral, no corpo do
texto.
Após citar os filmes que compõem a experiência de Cataguases, Mauro é citado como
uma resposta ao motivo do fim de tal ciclo, apesar de ter produzido filmes tão importantes:
A carência de meios técnicos não é motivo de lamento ou desprezo, mas algo a ser
dignificado por Viany. Cita um artigo de Octavio de Faria (1908-1980) que louva Brasa
dormida, justamente por sua engenhosidade com os parcos recursos utilizados (nos termos de
Viany, a “caçada com gato”) 8. Podemos notar que o autor lança mão de um argumento de
autoridade ao utilizar uma figura do porte de Octavio de Faria. Tentando suprir a falta de
fontes (“a caçada com gato”), Viany conduz o leitor a um favorável quadro geral do cinema
maureano. Após citar a sua passagem nas companhias de Gonzaga e Carmem Santos (1904-
1952), relata com um certo tom de lamento os seus dias no INCE (o que condiz com o seu
procedimento metodológico que privilegia o gênero ficcional, relegando solenemente o
documentário). O seu retorno à Volta Grande é exultado, pois O canto da saudade (1952) é
tido como uma retomada do seu estilo bem característico, i. e., um cinema que manifesta, com
toda profundidade, a “brasilidade”:
Essa tardia volta à casa paterna não teve somente motivos sentimentais:
Mauro sempre quis fazer filmes nitidamente brasileiros, quase com cheiro
de terra – coisas que, nos tempos mudos, seriam acompanhadas ao piano
por canções tão caboclas como “Luar do Sertão” ou “Casinha Pequenina”.
6
ORTIZ, C. “I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro”. Fundamentos, São Paulo, abril de 1953
7
MAURO, H. “O ciclo de Cataguases”. In catálogo I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro.
8
FARIA, O. “’De Sally de meus sonhos” a “Braza dormida””. O Fan, Rio de Janeiro: abril 1929
25
A obra de Mauro, e particularmente tal filme em questão, merece tanto apreço por
duas razões fundamentais: expressar autenticamente a “brasilidade” (“quase com cheiro de
terra”) e ser uma produção de baixo orçamento. Relembrando que o livro é posterior ao
fracasso da Vera Cruz, o último longa de Mauro é quase um prenúncio do declínio do cinema
paulista, e se direciona a um rumo desprezado, então, na época (uma produção artesanal). O
principal mérito da obra de Mauro, de Cataguases à Volta Grande, passando pelo Rio de
Janeiro, é ser “um exemplo de tentativa consciente de fazer um cinema legitimamente
nacional” (o grifo é nosso). Como já foi citado anteriormente, o cineasta conhece os
“adversários” do filme nacional, mas não esmorece o seu entusiasmo e esforço.
Como entender essa “brasilidade” tão louvada pelo autor? Aqui, encontramos o pomo
da discórdia que fremia a crítica cinematográfica dos anos 1950, que pode ser dividida entre
“esteticistas” e “crítico-históricos”. 9 O grupo batizado de “crítico-históricos” são pessoas
associadas a segmentos de esquerda, que não possuíam tanto prestígio quanto os “esteticistas”,
que escreviam para os jornais de maior circulação e eram convidados para comissões
governamentais. Assim, os “crítico-históricos” investem, como meio de respaldo, numa ativa
participação nos congressos e na escrita de uma história do cinema brasileiro.10 Viany encarna
esse ramo e, após o seu regresso de Hollywood e uma fracassada experiência na Companhia
Cinematográfica Maristela, passa a ser uma das principais vozes desse grupo. Segundo Autran,
podemos identificar uma mudança em seu pensamento (e não um corte) nesse período.11 No
início dos anos 1950, quando Viany se filia ao P.C.B. (Partido Comunista Brasileiro), o seu
modelo estético era extremamente dogmático, pois utilizava os conceitos do “realismo
socialista”, em sua vertente “zdhanovista”. Com o processo de desestalinização do partido, e
absorvidas leituras voltadas ao neo-realismo italiano, o crítico passa a cotejar com as idéias de
Guido Aristarco, influenciadas por Antonio Gramsci e György Luckács. Em relação a Mauro,
podemos notar essa distensão ideológica, ao citar que o cineasta mineiro afirmava a existência
de um “ritmo” brasileiro, distinto das correrias dos faroestes, amplamente consumidos pelo
público. Viany já se desligara dos conceitos zdhanovistas, quando pregava, conforme o
sectarismo do partido, uma forma já absorvida pelas massas, mas “abrasileirada” pelo tema.
Aqui, a condição para que um filme seja considerado legitimamente “brasileiro” não é
somente um tema, mas a busca de uma forma. Isso é retomado quando Viany analisa O
cangaceiro (1953) de Lima Barreto: “Timidamente fugindo aos aspectos sociológicos e
mesmo históricos do problema do cangaço, Lima Barreto fez, de fato, um filme de aventuras.
Mas, atendendo ou não à teoria de Humberto Mauro,(o grifo é nosso) segundo o qual não
podemos e não devemos imitar o ritmo cinematográfico de escolas estrangeiras, deu a sua
narrativa um tempo (grifo do autor) que Salviano (sic) Cavalcanti de Paiva classificou de justo
(...)”.
9
LUCAS, Fábio. “Sobre a crítica de cinema”. Revista de Cinema, Belo Horizonte, ano II, v. III, nº 18. setembro
1955, pp. 29-32
10
Porém, os “esteticistas” também estavam preocupados em elaborar uma história do cinema brasileiro. É o caso
de Benedito J. Duarte (1910-1995), um dos “descobridores” de Humberto Mauro no início da década de 50 (o
que estudaremos no capítulo seguinte).
11
AUTRAN, A. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em Ciências –
Cinema) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, p 200
26
Portanto, a figura de Mauro é relevante por sua proposta, “consciente” segundo Viany,
de uma cinematografia legitimamente brasileira, enquanto conteúdo e como forma. A
precariedade de recursos que Mauro aborda não é vista com desânimo, mas como algo a ser
superado via criatividade. Desse modo, a carência não é um obstáculo inexpugnável. Não
encontramos o raciocínio tautológico segundo o qual a carência de recursos compromete a
qualidade dos filmes que, por sua vez, prejudica a formação dos técnicos, cuja ignorância,
então, compromete a qualidade dos filmes. Assim, a principal crítica de Viany ao livro de
Cavalcanti é o desprezo que confere aos técnicos brasileiros ao congratular os estrangeiros
“importados” ao país:
Podemos ver que Viany consegue superar a dubiedade de Cavalcanti em relação aos
nossos técnicos, afirmando que “a improvisação e o palpite” são, apesar de tudo, as nossas
principais armas de luta. A fonte dos erros do ex-produtor-geral da Vera Cruz foi a sua
ignorância do meio cinematográfico nacional, quando culpa somente os agentes locais sem
considerar os fatores externos que são os principais responsáveis pela situação nacional.
Apesar de ainda estar preso a um dicotômico modelo estético “forma-conteúdo”, Viany rompe
com a idéia de que a linguagem cinematográfica é una. Mauro, com sua chamada “teoria”,
provou que a “brasilidade” não se restringe aos temas, mas a uma certa forma de filmar.
Existe um tempo brasileiro próprio, que deve estar na tela assim como na vida. Em suma, o
27
Cinema possui a função de expressar uma experiência que está no cotidiano, traduzindo-a em
sua linguagem específica.
Viany não chega a formular a idéia de uma cinematografia estatal, como nos países
socialistas. Não podemos esquecer das teses do P.C.B. daquele momento preconizavam que
seria necessária antes uma etapa democrática-burguesa para que o Brasil atingisse a fase
socialista (como uma república democrática-popular). O cinema brasileiro, enquanto indústria,
se afirmaria nos moldes nacionalistas do desenvolvimentismo (ou seja, num molde burguês)
para, posteriormente, cristalizar-se enquanto um autêntico cinema, isto é, um cinema
nacional-popular, que alcançaria sua plena maturidade no socialismo. Assim, podemos
interpretar o elogio a O canto da saudade, não somente por seu tom popular, tanto no tema
quanto na forma, mas pelo seu esforço limitado, por ser individual e não coletivo, de
produção. Podemos identificar uma certa contradição no elogio desse filme, pois Viany não
abre mão de uma indústria apesar do citado filme ser uma produção artesanal. A crítica do
autor à Vera Cruz não se deve ao seu projeto industrial, mas pela sua ação cega, sem um
maduro conhecimento das condições nacionais do cinema. O seu fracasso se deve, para
utilizarmos um vocabulário partidário caro ao autor, à sua prática voluntarista: “A Vera Cruz,
assim, não errou por aparecer quando apareceu [o que seria “diletantismo” nos termos do
autor], nem errou por desejar muito [excesso de “idealismo” burguês]. Errou, principalmente,
por querer muito sem saber como e porquê”. Em suma, não havia nos projetos da Vera Cruz,
uma prática sistemática aliada a uma consciência cinematográfica madura.
O valor de Mauro, segundo o autor, é o fato de ele ser uma avis rara nesse cenário, ou
seja, ele é um cineasta consciente de sua prática artística. Talvez não totalmente consciente
em termos políticos, o que Glauber irá sublinhar, mas uma pessoa “madura” enquanto homem
de cinema. Portanto, o elogio de O canto da saudade não se deve ao seu aspecto artesanal,
mas ao seu artesanato encarado como uma estratégia, intuída no momento, por uma
necessidade pessoal de criação artística do cineasta de se afastar do modelo industrial paulista.
Assim, voltamos a frisar que Viany não abandona o modelo industrial, tanto que o filme
carioca mais elogiado de Mauro pelo autor não é Ganga bruta, o que já era um consenso
estético no final dos anos 50, mas Favella dos meus amores, por sua proposta comercial
atrelado a uma temática popular, que sem comprometer a qualidade estética, abre caminho
28
Em 1960, Paulo Emílio Salles Gomes redige um artigo, que gerou grandes discussões,
cujo título é Uma situação colonial?. 12 Galvão e Bernardet 13 ressaltam a interrogação do
título, que é inteiramente ignorada nas discussões acerca do artigo suscitadas nos anos 60,
dando um caráter indiscutível ao tema. A preocupação do autor é dar uma visão ampla do
meio cinematográfico no país (podemos dizer, nos termos de Cavalcanti, um “panorama”).
Identificadas a necessidade e a importância de se fazer uma análise geral do setor, o autor
busca um “denominador comum” que possa unir tão diversos aspectos (do estudo de mercado
às especulações estéticas): a mediocridade. Todos os elementos que se relacionam com o
cinema no Brasil trazem consigo “a marca cruel do subdesenvolvimento”. Realizando uma
analogia com as regiões mais pobres do país, nas quais a miséria (seja pela população ou pela
paisagem) salta aos olhos de qualquer observador, os que se ocupam com cinema no Brasil,
possuem impressas tais características, não necessariamente físicas, mas as de “um processo
de definhamento intelectual”. Portanto, a miséria, não somente material mas espiritual, é o
que define o setor cinematográfico. Aqui é relevante notar que o autor realiza uma “reflexão
acerca da situação do cinema no Brasil em todos os seus aspectos culturais, industriais e
comerciais” (o grifo é nosso). Assim, não se trata do “cinema brasileiro”, mas, nos termos do
autor, do cinema no Brasil; o que significa que sua análise também inclui os filmes
estrangeiros.
A primeira vítima da mediocridade que o autor aborda são os que parecem ser os mais
“fortes”, i. e., retomando a sua analogia com as regiões mais pobres, os que possuem o
aspecto mais saudável em comparação aos demais setores do cinema. Trata-se dos
importadores e exibidores, ou seja, os setores intimamente associados ao cinema estrangeiro.
Eles também sofrem da mediocridade reinante por agirem de acordo com uma regra da qual
não possuem controle, ou seja, são incapazes de violarem as leis de um mercado viciado,
assentado em fatores alheios. Prosperam em detrimento da “emancipação e enriquecimento da
comunidade”, definindo-se como um grupo local atrelado a interesses externos:
12
GOMES, P. E. S. “Uma situação colonial?”. In Crítica de cinema no suplemento literário. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1981. v. II. pp. 286-291
13
GALVÃO, M. R. e BERNARDET, J. – C. O nacional e o popular na cultura brasileira - Cinema:
repercussões em caixa de eco ideológica. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme, 1983. pp. 164 - 168
29
Assim, todas as categorias são analisadas, buscando ver quais são as suas respectivas
“marcas” da miséria. A do produtor se deve a um estranho obstáculo: o público. Sem citar o
termo “chanchada”, podemos claramente notar a sua presença:
Se o filme brasileiro é visto como uma outra coisa radicalmente distinta do estrangeiro,
quando há alguma intenção artística nele, o público se retrai. Aqui, o autor se volta aos
homens da cinematografia nacional (produtores, diretores, técnicos ou artistas) “que nutrem
ambições desenvolvimentistas no terreno artístico e industrial”. Essas pessoas, bem
intencionadas, sofrem as mais árduas adversidades, sendo vítimas de um terrível desgaste, que
termina em lamentação e frustração. Assim, a sua grande maioria desiste de empreender uma
luta sem sentido e sem perspectivas de melhora. O mesmo problema acomete as pessoas de
atividades culturais, como a cinemateca, que buscam arejar o quadro estético e intelectual do
cinema no país, e passam por várias adversidades na relação com os setores governamentais.
Barrados pela morosidade do Estado e ignorância de burocratas, tais pessoas são obrigadas a
30
Portanto, Cavalcanti, em 1951, definia a realização de filmes no país como uma luta e
identificava oito problemas fundamentais que impediam a consolidação de uma indústria
cinematográfica nacional. A sua relação dúbia com os técnicos brasileiros é a melhor
manifestação de seu pensamento, constatando o “estado infantil” no qual o cinema brasileiro
se encontrava antes da criação da Vera Cruz. Para se criar uma indústria cinematográfica é
necessário, antes de tudo, profissionalismo, isto é, rigor técnico e disciplina, praticamente o
antônimo do então quadro do cinema brasileiro, formado pelo improviso e conduzido por
muitos “aproveitadores”. Por outro lado, Viany compõe uma história que descreve o cinema
brasileiro como uma luta de longa data, associando-a a diversos momentos, que
circunscrevem os seus limites. O improviso passa a ser visto como uma estratégia, ainda não
consciente, de luta. A autêntica consciência da categoria cinematográfica se cristalizaria por
intermédio dos congressos, que verdade seja dita, foi uma contribuição da Vera Cruz. Assim,
como as demais indústrias surgidas no país, a cinematográfica seria criada, segundo o mesmo
processo nacionalista, conforme a atual conjuntura histórica. Salles Gomes, por sua vez, busca
uma definição geral da atual situação do cinema no país, sintetizando-a numa única
conjuntura. Tal quadro descrito pode ser classificado como “colonial”; apesar de esse tema ser
futuramente analisado, de forma mais matizada, em 1973, em outros termos
(ocupante/ocupado). Utilizando conceitos fundamentais (alienação e colonialismo), vemos
que sempre há um elemento exterior que define o específico. O cinema brasileiro é definido e
analisado a partir de elementos externos. Há um dilaceramento estrutural em sua própria
conceituação. Cinema brasileiro é, por definição, um deslocamento.
32
No início dos anos 1960, Glauber Rocha tinha um sério problema para resolver:
definir o termo “Cinema Novo”. Tradicionalmente atribuído ao crítico Ely Azeredo (1930- ),
a criação desse termo surge na ocasião de uma mudança no cinema, no sentido geral. Apesar
de ser um ferrenho crítico do movimento que batizara, Azeredo acabou por cunhar um termo
que se difundiu rapidamente, seja entre os detratores quanto entre os simpatizantes. Portanto,
é relevante sublinhar que tal expressão não foi criada pelo próprio grupo, mas foi rotulada por
setores externos e, o que é mais importante, contrários ao movimento. Como não havia uma
identidade única nesses filmes, o termo se tornava propício a uma indefinição constante.1
Por outro lado, podemos constatar que a busca de uma definição pelos próprios
membros do grupo estava presente desde as suas primeiras discussões, nas quais se postulava
a necessidade de transformar o cinema brasileiro. Foi escrito por Miguel Borges (1937- ) um
manifesto, que ficou jocosamente conhecido por Manifesto Bola-Bola. Em suas memórias,
Paulo César Saraceni (1933- ) narra o fato:
Somos poucos agora, mas, lançado o manifesto, muita gente vai estar dentro
do movimento (...) o pessoal de São Paulo, sei lá, o Brasil inteiro – eu
pensava.
1
Aliás, num artigo de 1962, Salles Gomes afirma que a força do Cinema Novo emana de sua indefinição, ver
GOMES, P. E. S. “Primavera em Florianópolis”. In Crítica de cinema no suplemento literário. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981. V II. p 406
33
Saraceni taxa o manifesto de ridículo por parecer uma mera demanda histérica
(“Queremos cinema-cinema”), o que comprometeria aos seus olhos a seriedade do movimento.
Portanto, podemos notar um tom racional atribuído à produção artística, já que o tal
manifesto tinha a pretensão de ser um marco na história da nossa cinematografia (“achava que
o cinema brasileiro precisava dele”). Contudo, não podemos esquecer que, em se tratando de
um texto teórico, o manifesto seria a reflexão e, portanto, um procedimento racional daquele
grupo sobre o cinema brasileiro. Se a década de 1950 foi um período rico no fomento de um
pensamento cinematográfico nacional, momento da formação desses jovens, o manifesto
deles, por sua vez, daria um novo tom a essa discussão e voz àquela geração de cineastas
debutantes. O Cinema estava mudando, e o tipo de discussão que sacudia a crítica dos anos 50
deveria também mudar. O que queremos frisar é que o cinema era visto por esses jovens como
uma arte extremamente elaborada (daí, o ódio à chanchada, encarada como algo mal feito) e
vinculada a um viés político (não é gratuito o nome de Eisenstein ser usado por Saraceni3).
Por outro lado, a censura de Saraceni ao caráter “cinema mudo” do manifesto espelha a
vontade de se coadunar com as inovações estéticas do cinema mundial. Por exemplo, a
influência do movimento concretista em Pátio e as citações cinematográficas, acusando uma
erudição cinéfila em Caminhos, demonstram o quanto o cinema era visto como uma
manifestação artística que necessitava ser alçada ao mesmo nível que as demais artes no
Brasil. Muita tinta foi vertida na discussão do que é próprio do Cinema, seja na busca de um
“cinema puro”, dos teóricos franceses, como na definição do “específico fílmico”, dos
teóricos italianos. Mas, a discussão da relação do Cinema com as outras artes estava mudando
graças às teorias realistas, como as de Aristarco e de André Bazin (1918-1958). Portanto, se o
manifesto, tão desejado por Saraceni, deveria promover uma originalidade nas discussões
sobre o cinema nacional, a sua eficácia, através do texto de Borges, é nula, devido à sua
inconsistência de diretrizes estéticas, em termos recentes.
2
Num texto de 1962, Glauber relata o fiasco do manifesto: “Mas o que queríamos? Tudo era confuso” in
ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981. p. 16
3
Aliás, o próprio Saraceni era um tanto mal visto por não ser um “eisensteiniano” ferrenho – “É um babaca que
gosta de Fellini” Idem p 409
34
Em 1963, Glauber Rocha decide empreender uma reflexão, que pode ser comparada,
em importância, à do fracassado manifesto. Contudo, trata-se de uma reflexão a posteriori, ou
seja, partindo dos filmes para o conceito, e não o inverso. É óbvio que o grupo já não é mais o
mesmo das reuniões do Alcazar, pois, passados quatro anos, vários outros adeptos já haviam
se juntado. Alguns filmes já tinham alcançado uma maior maturidade, como Arraial do cabo
(1959) e Couro de gato (1960), além de alguns membros já terem se enveredado para o longa-
metragem: Barravento (1961), Os cafajestes (1961) e Porto das caixas (1962). Porém,
Glauber Rocha empreende uma análise de vastas proporções, presente já no título: Revisão
crítica do cinema brasileiro.4
Cada crítico é uma ilha: não existe pensamento cinematográfico brasileiro (o grifo é nosso) e
justamente por isto não se definem os cineastas, fontes isoladas em intenções e confusões, algumas
autênticas, outras desonestas. Teoricamente, o clima é de “vale tudo”: a partir de 1962, o que não era
chanchada virou “cinema novo. (ROCHA, 1963, pp. 11-2)
4
ROCHA, G. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963
35
reflexão da produção local. Como já vimos em Salles Gomes, o filme brasileiro é visto como
algo estranho, pois não há diálogo entre críticos e produtores. Glauber vai além: nem entre os
críticos existe algum diálogo. Como não há um arsenal teórico comum, pois o que vemos é
uma má assimilação do que vem de fora, os termos são vítimas da indefinição e da
banalização. Posto isto, como é possível chegar a uma definição de “Cinema Novo”? Ora, se
estamos rumando num campo virgem, pois já que “não existe pensamento cinematográfico
brasileiro”, devemos assumir a responsabilidade de uma leitura inaugural do tema. Para tal,
Glauber vai utilizar a História como um Saber auxiliador na resolução de seu problema. E por
que a História? Pois bem, uma primeira resposta seria o uso de um artifício, já consolidado,
em buscar as soluções de problemas atuais realizando um estudo histórico dos problemas de
nossa cinematografia. Por outro lado, se a sua questão central é entender a originalidade de
um recente movimento, é lícito supor que se o compararmos às propostas estéticas anteriores,
seremos capazes de chegar a um princípio diferenciador. Porém, Glauber utilizará um
procedimento extremamente mais rico: além das diferenças, o autor encontrará semelhanças.
Tal procedimento será possível quando Glauber se apropria de uma metodologia, por
ele assumida, que é a politique des auteurs. Utilizamos a expressão no original, para frisar que
se trata de um conceito específico, ligado a determinadas pessoas num determinado período,
evitando confundir com o atualmente difundido e vago termo “cinema de autor”. Portanto,
cabe-nos defini-la. Tal conceito foi cunhado, nos anos 1950, pelo então crítico François
Truffaut (1932-1984), e não, como amiúde é citado, pelo teórico André Bazin (que aliás,
possuía certas ressalvas em relação a tal conceito).5 O próprio Glauber comete esse erro
comum.6 De caráter polemista, Truffaut forjou tal conceito, usando-o contra uma determinada
crítica e um certo tipo de cinema produzido na França. Divulgou-se amplamente entre seus
companheiros da revista, fundada por Bazin, Cahiers du Cinéma (que passou a ter o seu nome
associado ao conceito) se convertendo na ferramenta-chave nas querelas promovidas no
campo da crítica cinematográfica francesa da época. Devido ao seu forte tom polêmico e
radical, esses críticos receberam a alcunha de “Jovens Turcos”.
5
Michel Marie frisa esse equívoco comum, ver MARIE, M. La Nouvelle Vague: une école artistique. Paris:
Nathan, 2001. p. 38
6
ROCHA, G. Op. cit. p.13
7
Informação retirada da “Présentation” de Antoine de Baecque in ASSAYAS, O et al. La politique des auteurs:
les textes. Antoine de Baecque e Gabrielle Lucantonio (Org). Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. p. 6
36
Assim, podemos certificar que Bazin possui um forte viés histórico, pois, se ele
constata que não há mais espaço para “grandes obras” no cinema sonoro como na fase muda,
isto se deve à constante evolução da linguagem cinematográfica (movida por um princípio
realista, chamado por ele, de “mito do realismo total”).11 Por isso, Bazin reconhece um tom
8
Num de seus artigos mais polêmicos (e o mais famoso), Truffaut é categórico: “Eh bien je ne puis croire à la
co-existence pacifique de la Tradition de la Qualité et d’un cinéma d’auteurs.» TRUFFAUT. F. «Une certaine
tendance du cinéma français» Cahiers du Cinéma nº 31, jan 1954
9
BAZIN. «De la politique des auteurs». In ASSAYAS, O. et al. Op. cit. pp. 99-117
10
BAZIN, A “De la politique des auteurs” Cahiers du Cinéma. Paris: n. 70, abril. 1957.
11
O pensamento de Bazin sofreu uma forte influência do existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e
do personalismo cristão de Emmanuel Mounier (1905-1950). É relevante frisar que Bazin é cristão e, portanto, a
análise das idéias de Mounier é de primeira ordem para compreender a teoria baziniana. O pensamento
mounieriano parte do princípio de que o conceito de História somente é possível numa visão judaico-cristã do
mundo, definindo o cristianismo como a Religião da “Existência Incorporada”, ou seja, não é nem uma
transcendência (um espiritualismo puro) nem uma imanência (um panteísmo), mas um elo irracional (e, portanto,
uma fé) entre ambas, sintetizada na figura de Cristo (o que diferencia o cristianismo de todas as outras religiões),
i. e., Deus se fez Homem. O paradoxal do cristianismo é o fato de ser uma Verdade atemporal, pois é divina (a
Revelação Cristã), que somente pode ser expressa no Tempo (o Verbo Encarnado). Interessante notar a posição
37
trágico no Cinema, pois é uma arte impiedosa que enterra os seus grandes mestres vivos,
devido à sua acelerada transformação estética. O que numa outra arte pode durar uma geração,
no Cinema, equivale a vinte ou trinta anos. Portanto, o principal problema e perigo da
politique des auteurs, para Bazin, é o seu culto a uma estética personalista, sem considerar a
situação histórica na qual está inserido o cineasta. Polemizando com Truffaut, que utiliza
como lema a frase de Giraudoux - “Il n’y a pas d’oeuvres, il n’y a que des auteurs” - , o
redator-chefe da Cahiers du Cinéma afirma que até os grandes artistas realizam obras
medíocres.
produção de filmes, além de contar com uma freqüência assídua do público. Porém, se o
cinema francês gozava de uma excelente saúde financeira, por outro lado, a sua situação
artística era preocupante. Os produtores não preferiam “correr riscos” e utilizavam temas
relativamente fáceis e já experimentados nas bilheterias, atores consagrados e adaptações de
autores conhecidos.
On a toujours cru que la Nouvelle Vague, c’était le film bon marché contre
le film cher. Pas de tout. C’était simplement le bon film, quel qu’il soit,
contre le mauvais film. Seulement, le bon marché s’est trouvé être la seule
façon de faire le film. Il est vrai que certains films sont meilleurs quand ils
sont bon marché, mais il faut penser aussi aux films qui sont meilleurs
quand ils sont chers. (GODARD15, 1962 apud CHABROL et al., 1999, p.
223)
O nosso objetivo aqui não é chegar a uma conclusão do que seja a Nouvelle Vague e
quais são os critérios para que um filme possa ser incorporado ao movimento. Porém,
podemos reconhecer um problema semelhante ao de Glauber em relação ao termo “Cinema
Novo”. A expressão Nouvelle Vague também fora atribuído por agentes externos ao
movimento, e pior, a sua origem é extracinematográfica. Marie narra o surgimento da
expressão e comenta o caráter um tanto polêmico que sempre rondou o termo, pois até que
ponto é possível reconhecer num determinado conjunto de filmes a expressão de um
movimento. A tese de seu livro é provar a coerência presente em tal movimento, sendo
possível atribuir a ele a categoria de “escola artística”. O problema de nosso trabalho é
distinto. Não estamos preocupados em discutir a existência de uma proposta estética que une
os vários filmes do chamado Cinema Novo, mas analisar o procedimento conceitual que
Glauber Rocha empreende ao tomar para si o termo “Cinema Novo”. Aliás, podemos afirmar
que a discussão da permanência e da coerência do Cinema Novo, enquanto um grupo
articulado de cineastas, sempre foi a obsessão de Glauber. Não é por acaso que a coletânea de
14
Idem. p 51
15
Cahiers du Cinéma, Paris, n 138, dezembro, 1962
39
seus textos, por ele reunidos no fim da vida, se intitula Revolução do Cinema Novo.16 Trata-se,
para ele, de um processo sistematizado, apesar dos transtornos causados no cenário nacional,
e, o que é mais importante, irreversível. Em nenhum momento, Glauber questiona, como
Marie, a possibilidade de ser ilusória a atribuição de uma unidade a este grupo de cineastas e
filmes. Como veremos, já em Revisão crítica do cinema brasileiro, Glauber amarra sob o
termo “Cinema Novo” um leque bem amplo de filmes, buscando a qualquer custo um critério
de unidade.
Antes de mais nada, devemos saber quem figura em seu panteão. São diversos nomes,
porém, segundo Daney19, podemos resumi-los a quatro principais, possuindo duas letras como
emblema: os dois R, Jean Renoir (1894-1979) e Roberto Rossellini (1906-1977) e os dois H,
Alfred Hitchcock (1899-1980) e Howard Hawks (1896-1977). Os dois primeiros sempre
possuíram um prestígio artístico reconhecido, mas o polêmico dos “Jovens Turcos” é
manterem essa “aura” na fase norte-americana do cineasta francês e nos filmes com a atriz
Ingrid Bergman (1915-1982) do cineasta italiano. Essas fases eram vistas como algo menor na
obra de ambos pela crítica. Contudo, o mais polêmico é o elogio aos cineastas norte-
16
ROCHA, G. Op. cit. Por ocasião de sua publicação, Carlos Diegues (1940- ) escreve: “Já se passaram mais
de vinte anos e ninguém ainda conseguiu dizer direito o que foi (ou é) o Cinema Novo. (...) Mas, por baixo de
todas as teorias, resistia sempre uma desconfiança minha, comprovada agora com a publicação do livro de
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo (...) É que o Cinema Novo não passa de uma invenção dele, uma
trama de Glauber para nos manter juntos e unidos, o delírio de um grande artista visionário que não se
conformou com o estado do país que lhe deram para viver. Assim é que ele vem há anos inventando poetas e
heróis que possam figurar no panteão de uma história cultural inexistente, exasperando-se no ódio jurado à
miséria intelectual do subdesenvolvimento.” DIEGUES, C. Cinema brasileiro: idéias e imagens. Porto Alegre:
Ed Universidade, 1999. p. 52
17
Tornou-se célebre o artigo de Jacques Rivette (1928- ), intitulado “De l’abjection”, onde analisa o filme
Kapo (1959) de Gillo Pontecorvo (1919- ): “Voyez cepedant, dans Kapo, le plan où Riva se suicide, en se
jetant sur les barbelés électrifiés; l’homme qui decide, à ce moment, de faire un travelling avant pour recadrer
le cadavre en contre-plongée, en prenant soin d’inscrire exactement la main levée dans un angle de son cadrage
final, cet homme n’a droit qu’au plus profond mépris». Cahiers du Cinéma. nº 120, jun, 1961, p. 54
18
BAZIN, A. “Comment peut-on être hitchcoko-hawksien ?» Cahiers du Cinéma nº 44, fev, 1955. pp. 17-8
19
BAZIN, A. et al. La politique des auteurs. Jean Narboni e Alain Bergala (Org.). 2 ed Paris: Cahiers du
Cinéma/Etoile. 1984. pp 5-9
40
20
«Le cinéma ne peut exister sans un minimum (et ce minimum est immense) d’audience immédiate. Même
quand le cinéaste affronte le goût du public, son audience n’est valable qu’autant qu’il est posible d’admettre
que c’est le spectateur qui se méprend sur ce qu’il devrait aimer et qu’il aimera un jour. La seule comparaison
contemporaine possible serait avec l’archicteture, parce qu’une maison n’a de sens qu’habitable. Le cinéma, lui
aussi, est un art fonctionnel. Selon un autre système de référence, il faudrait dire du cinéma que son existence
précède son essence. C’est de cette existence que la critique doit partir, même dans ses extrapolations les plus
aventureuses.» BAZIN, A. Qu’est –ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1959, V. II. p 28
41
Se cabe ao cineasta mudar a sua relação com o espectador, por sua vez, o espectador
deve mudar a sua relação com o filme. Aqui está o segundo princípio e nele nos deteremos
com atenção, pois esbarramos com um ponto fulcral da passagem do “Cinema Clássico” para
o “Cinema Moderno”. Para compreendermos esta mudança, utilizaremos uma distinção
conceitual de E. Gilson.22 Segundo esse autor, há um extremo embaraço quando os filósofos
abordam a Arte. Ao adotar uma leitura escolástica, o papel da filosofia é definir a essência das
coisas e, por conseguinte, a contribuição da filosofia ao estudar a Arte é definir o que lhe é
própria. Portanto, ao estar diante de uma obra de arte, o filósofo deve se interrogar o que lhe
distingue das demais coisas enquanto obra de arte, apesar de conter vários atributos, como
qualquer ente. Assim, há uma confusão entre “Filosofia da Arte” e “Estética”. A “Filosofia da
Arte” trata da produção e natureza das obras enquanto a “Estética”, de sua apreensão. Em
resumo, ao adotar uma visão realista (aristotélica), Gilson encara a “Filosofia da Arte” como
um conhecimento acerca do objeto artístico; enquanto a “Estética” se encontra do lado do
sujeito consumidor de tais objetos, preocupando-se com o seu acesso cognitivo. Essa
confusão, segundo Gilson, se encontra nas interpretações da Crítica da faculdade de julgar de
Kant. A teoria do “belo” e do “sublime” do filósofo alemão é corolário do questionamento
acerca da apreensão da obra de arte e não pode ser deslocado do edifício teórico das demais
Críticas, ou seja, de uma filosofia do conhecimento, o problema central da filosofia moderna.
Portanto, não se aprende nada sobre Arte ao ler Kant, mas sim, acerca do sujeito que a
consome. Em suma, Kant não está do lado do artista, do produtor de arte, mas de seu mero
consumidor.23
21
CHABROL, C. et al. La Nouvelle Vague. Antoine de Baecque e Charles Tesson (Org.) Paris: Cahiers du
Cinéma, 1999. p. 10
22
GILSON, E. Introduction aux arts du beau. Paris: J. Vrin, 1963
23
Após demonstrar que o seu caminho é distinto de Kant, Gilson desbarata uma outra confusão, que permaneceu
(e segundo ele permanece) no pensamento ocidental: a arte não é uma forma de conhecimento. Isto é, não é a
expressão de uma realidade, seja exterior ou interior ao artista. Isto se deve pelo fato de a Arte pertencer a uma
ordem distinta daquela do conhecimento. Conforme o pensamento escolástico, Gilson define o homem como um
ente capaz de exercer quatro tipos de ato: ele é, ele conhece, ele age e ele faz. Portanto, o homem se resume a
três operações principais: o conhecimento, a atividade e a factividade, correspondendo a elas as três principais
disciplinas – a ciência, a moral e a arte – todas tributárias da ontologia, que estuda o ser, e não o homem, que
apenas participa dele. Assim, a “Filosofia da Arte” se encontra na ordem do fazer (póesis), que agrupa as várias
atividades de produção do homem. A finalidade da Arte é fazer objetos belos, apesar de o Belo poder ser um
atributo de outros objetos que não tenham tal fim específico (como uma paisagem natural, um corpo humano ou
uma máquina). O relevante para Gilson é que, apesar da “Filosofia da Arte” ser um conhecimento, a Arte não se
encontra na mesma ordem. Ao ensinar que técnicas foram utilizadas para se criar um objeto artístico (um campo
42
Após nos apropriarmos de tais conceitos, voltemos aos “Jovens Turcos”. A nossa
interrogação é a seguinte: a politique des auteurs é uma “Filosofia da Arte” ou uma
“Estética”? Se formos coerentes com a linguagem clássica de Gilson, a crítica de arte, por
definição, está próxima da “Estética”, pois a sua finalidade é emitir um juízo de valor (se
houve sucesso ou não na fabricação da obra), e não um juízo de realidade (conhecimento).24 O
ponto de vista do crítico não é aquele do artista. Ele é apenas um consumidor de arte, e
portanto, a sua perspectiva é a da apreensão. Porém, o tipo de crítica realizada pelos “Jovens
Turcos” mina essa distinção delimitada. Ver filmes, criticar filmes e fazer filmes estão na
mesma ordem. No início da citada entrevista, Godard afirma:
Aux Cahiers, j’ai très vite senti que l’on parlait du cinéma comme si chacun
avait fait des films. On parlait de «travelling», de «plan-séquence», de
«profondeur de champ», alors que dans la critique traditionelle on n’en
parlait jamais. On parlait uniquement de l’impression produite sur l’écran,
et non de la manière dont elle était obtenue. Aux Cahiers, je trouvais que
l’on remontait des effets aux causes. Petit à petit, on a fait l’éloge de
certaines figures de styles au détriment d’autres. C’est ce qui m’interéssait.
do conhecimento chamado “Poética”), a “Filosofia da Arte” não é capaz de tornar alguém artista. O filósofo
estuda o objeto já pronto, e não o que está por fazer. O fascinante da tese de Gilson é que apesar de ele ser um
realista, ao abordar o conhecimento, ele é extremamente contemporâneo ao estudar a Arte, pois a obra de arte é
produção de algo totalmente singular. Apesar de estar alinhado à filosofia aristotélica, Gilson é radicalmente
contra o conceito de Arte como “imitação” (mimeses). Segundo ele, o fundamental é notar que Aristóteles (384
a.C.-322 a.C.) não distingue o que hoje chamamos por “arte” das demais “técnicas”. Assim, ao realizar uma
“Poética”, um conhecimento de como se fazem objetos (partindo da concepção de ciência como “representação”),
o Estagirita, como a maioria dos espíritos especulativos, acaba confundindo os prazeres do conhecimento (o
gozo de se encontrar com a Verdade) com o prazer estético. De fato, há uma ligação entre o fazer e o conhecer.
Tanto para construir uma cadeira como para pintar um quadro, devem-se dominar os meios necessários para a
sua realização, porém, do conhecimento, como “representação”, não sai nada de original, pois é apenas a
adequação do intelecto com o ser. Assim, o conhecer é da alçada da razão, enquanto que o fazer é regido pela
imaginação, que propõe vários meios, distinto da razão, que apenas se adequa ao ser, que é uno. Por outro lado,
ao estudarmos o que atualmente entendemos por obra de arte, não podemos esquecer que não há “intuição
inteligível” para Aristóteles, somente “sensível”, e portanto, o Belo, assim como o Bem, não são objetos, como
na teoria platônica das Idéias, mas relações com o ser. Portanto, há algo de enigmático no processo de criação
artística, que inclusive nem o próprio artista consegue explicar, pois não é da alçada do conhecimento. A teoria
kantiana do “gênio” é um modo de pensar este embaraço teórico, atribuindo ao artista um dom dado pela
Natureza, e portanto não-consciente. Esta teoria foi apropriada, interpretada e difundida pelo Romantismo.
Porém, lembremos que Kant está preocupado com o acesso cognitivo à Coisa em si, e por conseguinte, a sua
terceira Crítica, empenhada em pensar um laço entre o inteligível e o sensível (o que é, para Kant, a função do
Belo), aborda tanto a Arte como a Natureza, o que pode parecer estranho para alguém, emaranhado na confusão
citada por Gilson, se deparar com um livro que estuda simultaneamente a arte e a biologia.
24
O próprio autor frisa isso. GILSON, E. Op. cit. pp. 19-29
43
A cisão clássica, como em Gilson, entre quem faz o filme e quem o consome é
rompida, e esse é talvez o aspecto central do “Cinema Moderno”. É o que já vimos na moral
do espetáculo, segundo a qual o espectador também faz parte do filme. Assim, quando Bazin
defende os “Jovens Turcos” ao escrever que o cinema não se reduz a si mesmo, mas é
remetido a uma metafísica, ele está afirmando que o Cinema possui um pensamento próprio e
sólido, sem pedir empréstimos a outras áreas (o que Godard acusa os outros críticos de
fazerem), e podendo transitar nele por várias perspectivas: ver, escrever e realizar. Na verdade,
o que queremos dizer é algo muito mais ambicioso: o Cinema ganha o estatuto ontológico de
uma realidade própria, e se o Ser pode ser dito de vários sentidos, o Cinema também. Portanto,
o fundamental num filme não é o que está diante da câmera, mas a própria câmera, i. e., a sua
posição, seu movimento, a disposição dos elementos dentro e fora do quadro. Bazin sublinha
que a imagem cinematográfica, distinta da pictórica, é centrífuga, ou seja, o filme não se basta
ao que está na tela (o que a crítica tradicional fazia) mas há algo muito maior. O filme não é
uma simples superfície, uma imagem projetada numa parede, pois ele possui uma realidade
interna. Apesar de Bazin ainda assegurar um “lastro ontológico” para o filme, calcando-o a
uma realidade exterior via fotografia, o fato de ele atribuir ao cinema o caráter de linguagem
abre o caminho para o reconhecimento de uma lógica interna e exclusiva.26
Portanto, se o Cinema possui uma ordem própria, o que os “Jovens Turcos” fazem é
reconhecer a existência de várias ordens particulares, deslocando tal raciocínio dos filmes
para um conjunto de filmes, isto é, para os cineastas. Desse modo, a politique des auteurs
ignora as suas particularidades, buscando uma estrutura mais ampla que receberá o nome de
“Autor”. Se Truffaut afirma que não é possível a “co-existência pacífica” entre um Cinema de
“Autor” e o “Cinema de Tradição de Qualidade” isto se deve por se tratarem de dois modos
excludentes de se encarar o cinema. Na “Tradição de Qualidade”, o cinema é apenas um
suporte pelo qual se narra uma história (daí a superestimação do roteiro), enquanto que para
um “Autor” não importa o que se narra, mas como se narra. O Cinema é visto como um modo
de pensamento, pelo qual é possível articular diversos enunciados (vários procedimentos
técnicos, os gêneros, e etc). O Autor é aquele capaz de dispor esses vários enunciados
segundo uma ordem, por ele, construída. Assim, o Autor, por definição, não encara as
diferenças de gêneros ou de procedimentos técnicos (filme mudo, sonoro, colorido, etc) como
algo estanque, mas, pelo contrário, são apenas diferentes categorias de enunciados que podem
estar sob a amarra de uma ordem maior, que é a construída por ele. Portanto, o fundamental é
essa ordem que permeia o conjunto de seus filmes, encarando-os apenas como peças de uma
estrutura. O perigo apontado por Bazin é justamente essa superioridade atribuída ao todo em
relação às partes, ignorando a possibilidade de filmes medíocres, ou seja, mal acabados em
sua ordem interna.
25
CHABROL, C. et al. Op. cit.. p. 7
26
Podemos afirmar que Bazin coloca o mesmo problema, ainda que de um modo não tão explícito, que os dos
semiólogos das décadas seguintes: em que medida, o cinema pode ser pensado como uma linguagem? É óbvio
que as respostas encontradas serão distintas, pois partem de concepções diferentes de linguagem.
44
sob as mais diversas circunstâncias e, portanto, ao se afirmar que eles são “maiores” que seus
filmes, atesta-se o princípio citado acima. Já que escrever e filmar estão na mesma ordem, ao
analisarem as “obras menores”, os “Jovens Turcos” acabam por buscar uma lógica que supre
suas fraquezas, mas pensando já como diretores.27 O fato dos “dois R” serem cineastas
reconhecidos e possuírem uma “fase menor” aponta os caminhos tortuosos que integra o
cinema, e a estima dos “Jovens Turcos” por eles demonstra uma preocupação já como
cineastas, e não como meros críticos. Por outro lado, a valorização de Hitchcock e Hawks está
associada ao primeiro princípio aqui afirmado, a existência de uma moral do espetáculo na
Cahiers du Cinéma. Essa moral mina na base a “Tradição de Qualidade”, que se alça na
posição tradicional do narrador onisciente, espelhado em seu pedantismo literário, pela
sofisticação dos diálogos e na nobreza dos temas. O fato dos “dois H” realizarem um cinema
de puro entretenimento, sem a preocupação de ornamentos de superioridade, coloca o
espectador numa posição de semelhante, que possui uma contribuição a dar ao filme,
apreciando o requinte não num suposto tema de que os filmes tratam, mas nos próprios filmes.
Contudo, não podemos esquecer que ambos os princípios estão emaranhados entre si, e que
um pressupõe o outro. Assim, podemos certificar que há uma unidade no panteão.
27
É relevante notar que a Cahiers du Cinéma inaugura um procedimento comum hoje: entrevistar os diretores.
28
“Je suis convaincu qu’il n’est pas des grands cinéastes qui ne sacrifient quelque chose: Renoir sacrifera tout
(scénario-dialogue-technique) au profit d’un meilleur jeu de l’acteur, Hitchcock sacrifie la vraisemblance
policière au profit d’une situation par avance choisie, Rossellini sacrifie les raccords de mouvements et de
lumière pour une plus grande fraîcheur – ou chaleur, c’est la même chose – des interprètes, Murnau, Hawks
Lang, sacrifient le réalisme du cadre et de l’ambiance, Nicholas Ray et Griffith la sobriété (...) Or, le film réussi
selon l’ancestrale équipe, est celui où tous les éléments participent également d’un tout qui mérite alors
l’adjectif parfait. Or la perfection, la réussite, je les décrete abjectes, indécentes, immorales et obscènes. (...)
Tous les grands films de l’histoire du cinéma sont films «ratés».» TRUFFAUT «Abel Gance, désordre et génie».
In ASSAYAS, O. et al. Op. cit. pp. 38-9
29
Num texto de 1969, Truffaut faz uma analogia entre o cinema e a família, tentando ser mais “democrático”:
“Quand on est cinglé de cinema, on aime en bloc tous ceux qui constituent cette famille dont on aimerait
tellement faire partie, sans se douter un seul instant qu’il s’agit de la famille d’Oreste et d’Agamemnnon ! (...) si
nous avons la chance de pratiquer un art et d’en vivre, ne nous regardons pas comme des concurrents ni des
rivaux mais comme d’autres artistes tout simplement. Acceptons les différences entre nous. Chacun de nous ne
réalise qu’une partie de son rêve, mais son rêve était plus ou moins beau, plus ou moins accesible. (...) Vous me
demandez, cher Monsieur Esquire: «Quels conseils donneriez-vous à des futurs cinéastes ?» Je ne crois pas que
l’on puisse donner des conseils à quiconque s’apprête à pratiquer un métier artistique, mais je puis essayer de
dégager quelques règles qui ont de la valeur pour moi et pour moi seul.» TRUFFAUT, F. Op. cit. pp. 373/5
45
nela mesma. Na verdade, os “Jovens Turcos” não arrancam um filme, mas vários, tornando
esse conjunto numa realidade. Se afirmamos que a politique des auteurs aborda o Cinema
com o estatuto ontológico de realidade (o que é semelhante a Bazin), essa realidade, por sua
vez, não é una: existem tantas realidades quanto Autores.
Só é possível falar numa literatura, após a crítica criar um sentido para esse conjunto
de obras. Portanto, constrói-se uma rede de relações que as distribuem de acordo a uma
lógica.30 Tanto Glauber quanto os “Jovens Turcos” são críticos, no sentido em que criam uma
ordem em seus textos, mas as redes construídas por eles seguem procedimentos distintos, para
não dizer contrários. O significativo é que, se o campo em que Glauber trabalha é virgem,
como ele próprio afirma, é um tanto irônico e paradoxal intitular sua obra de “revisão”, pois,
segundo o raciocínio de Paz, não há um cinema brasileiro. Assim, já podemos notar que a
politique des auteurs é inútil como método para Glauber, pois a sua existência somente foi
possível dentro de uma luta travada na crítica cinematográfica francesa.31 Se o pensamento
“jovemturquiano” remete o cinema a uma metafísica, sendo assim herdeiro de Bazin, não
podemos esquecer, portanto, que o teórico francês articula seu pensamento a partir da crítica
de um outro pensamento, o dos teóricos da avant-garde. Em suma, tanto Bazin quanto os
“Jovens Turcos” não estão em campo virgem, muito pelo contrário, eles somente existem
graças a uma tradição teórica já consolidada na França.
30
É mais do que significativo notar que Paz possui uma leitura radicalmente distinta da de Gilson. A crítica não
avalia a aplicação de regras formais nas obras, mas cria certas regras pelas quais distribui as mesmas. Partindo
da filosofia escolástica, Gilson é categórico: “Il est vrai qu’on ajoute au mot intuition l’épithète de «créatrice»,
mais il n’y a pas d’intuition créatrice, car la connaissance ne crée rien.». GILSON, E. Op. cit. p. 107.
31
Marie enumera que um dos critérios para a existência de uma “escola artística” é um grupo de adversários. Ora,
em relação à Nouvelle Vague, a lista é enorme. Em termos de revistas de cinema, a principal rivalidade da
Cahiers du Cinéma foi com a Positif e a Premier Plan. MARIE, M. Op. cit. p. 43
46
largamente citada, mas com a função de legitimar certos aspectos no cinema brasileiro.32 Se
podemos encontrar, nos “Jovens Turcos”, um elogio ao cinema norte-americano ou uma
denúncia à esclerose do cinema francês, tais atos eram realizados em nome do cinema em
geral. O significativo não é o fato dos “dois H” serem anglo-saxões ou de Claude Autant-Lara
(1903-2000) e os roteiristas Jean Aurenche (1904-1992) e Pierre Bost (1901-1975) serem
franceses, mas a postura deles em relação ao Cinema, que é encarado como um campo próprio
e universal, professado na “moral do espetáculo”.
Antes de mais nada, Glauber se apropria da politique des auteurs para escrever uma
História. A contribuição deste método, segundo ele, foi a criação de um novo critério que
derruba o antigo, que pensava a história do cinema em “cinema mudo” e “cinema sonoro”.
Esse critério, puramente técnico, é descartado, pois o relevante é que a “realidade que, tanto
através das lentes de Tissé, como das lentes modernas de Raoul Coutard, foi apreendida e
plasmada em visão de mundo.” O fundamental já não é mais o caráter das imagens (mudas ou
sonoras) mas o que elas são em sua relação com o contexto da obra do cineasta, que possui
um vínculo com a realidade.33 O termo “autor”, entendido como “substantivo do ser criador
de filmes” inaugura, nos termos de Glauber, um novo artista ao lado dos já reconhecidos
poeta, pintor e ficcionista. Podemos notar uma preocupação em dar um valor artístico ao
Cinema nos mesmos termos que das demais artes, o que já é um passo para dar um prestígio
ao cinema brasileiro. Se for possível reconhecer a existência de Autores em nossa
cinematografia, ela será “salva”.
O importante aqui para Glauber não é a politique des auteurs nela mesma, mas a
criação, a partir dela, de um novo termo, o “cinema de autor”, pelo qual se articula toda a
história do cinema. Esse termo, por sua vez, é pensado em contraposição ao “cinema
comercial”, que denigre o cinema enquanto Arte, rebaixando o cineasta à mera função de
artesão, e não artista. Portanto, a dicotomia anterior também pode ser dita nos seguintes
termos: Arte x Artesanato. O que vemos aqui é: primeiro, um par conceitual “cinema
comercial-cinema de autor” e, segundo, uma concepção implícita de Arte. É o que
estudaremos a seguir.
32
É possível sublinhar a mesma problemática em Paz: “No niego la utilidad e inclusive la necesidad de la crítica
extranjera: para mí las literaturas modernas son una literatura. (...) En lugar de repetir como mirlos persas o
loros americanos lo que dicen anónimos revisteros de Chicago o Milán, los críticos deberían leer a nuestros
autores como Caillois ha leído Borges; desde la tradición moderna y como parte de esa tradición. Dos tareas
complementarias: mostrar que las obras hispanoamericanos son una literatura, un campo de relaciones
antagónicas; describir las relaciones de esa literatura con las otras. (os grifos são do autor)” PAZ, O Corriente
alterna. 3 ed. México: Siglo Veintiuno, 1969. pp. 42-3. Em seu livro, Glauber realiza com o cinema exatamente
o citado procedimento.
33
Podemos notar uma diferença significativa com os “Jovens Turcos”: a referência a Serguei M. Eisenstein
(1898-1948), que não pertencia ao panteão francês.
47
O autor é o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua “mise-en-scène” é
uma política. Como pode então, um autor, olhar o mundo enfeitado com “maquillage”, iludido com
refletores gongorizantes, falsificado em cenografia de papelão, disciplinado por movimentos
automáticos, sistematizado em convenções dramáticas que informam uma moral burguesa e
conservadora? Como pode um autor forjar uma organização do caos em que vive o mundo capitalista,
negando a dialética e sistematizando seu processo com os mesmos elementos formativos dos clichês
mentirosos e entorpecedores? A política de um autor é uma visão livre, anticonformista, rebelde,
violenta, insolente. (...) Godard, apreendendo o cinema, apreende a realidade; o cinema é um corpo-
vivo, objeto e perspectiva. O cinema não é um instrumento, o cinema é uma ontologia. (ROCHA,
1963, pp. 14-5)
Como o autor é um criador, a tradição é a sua maior inimiga. Neste sentido, tanto o
“cinema comercial” como o cinema de “Tradição de Qualidade” são sinônimos. Porém,
Glauber amplia o “tradicionalismo” do campo cinematográfico para a sociedade que o possui
como característica (“a moral burguesa e conservadora”). Não somente um cinema
convencional deve ser combatido, como o tipo de sociedade que necessita dele, encarando-o,
portanto, como “instrumento”. Esta sociedade, por definição “conservadora”, possui um
nome: capitalista. Assim, a própria idéia de “criação” é transformada. Afirmamos acima que
os “Jovens Turcos” possuem o “classicismo” como marca; isso pode confundir o leitor, pois
eles também são, paradoxalmente, “antitradicionalistas”. Ora, como entender isso? Na
verdade, se a Arte, na concepção moderna, é pensada como “originalidade”, toda ruptura
necessita do diálogo com uma tradição. Só é possível “romper” com algo prévio. Assim,
48
como afirma Paz, a modernidade continua a tradição via crítica (ruptura).34 O que queremos
dizer é que o “Cinema Moderno”, sendo a crítica do “Cinema Clássico”, o continua de um
certo modo. A diferença de Glauber para os “Jovens Turcos” é que o cineasta baiano duplica
essa questão, colocando-a em mais um outro nível, que poderíamos chamar de “social”.
Assim, o Cinema e, por extensão a Arte, é visto como um diálogo, via crítica, com uma
tradição, entendida não somente em termos estéticos, mas também sociais.Dessa forma, tal
ruptura (a “criação artística”) não somente se dá com o que lhe é específico (o estético) mas
com outro nível (o social). Portanto, a Arte é revolucionária, estética e socialmente. Assim,
como a sociedade socialista é uma crítica à capitalista, o “cinema de autor” critica o “cinema
comercial”. Isso é tão significativo que Glauber chega a afirmar, em um termo sugerido por
Bernardet35, o seguinte oxímoro: uma “indústria do autor”; a “síntese dialética” que será
operada pelo Cinema Novo.
Para chegar a essa proposta e arriscar uma definição para “Cinema Novo”, Glauber é
obrigado a voltar seus olhos para a sociedade brasileira. Se o “cinema comercial” é a tradição,
como uma manifestação da sociedade burguesa (“o cinema é uma cultura da super-estrutura
capitalista”), devemos pensar o cinema brasileiro atrelado ao capitalismo local. Somente
assim saberemos o que é o cinema nacional e, por conseguinte, compreender o aparecimento
do Cinema Novo. Podemos notar que para Glauber está ocorrendo uma mudança na nossa
sociedade e, conseqüentemente no cinema, pois as “classes produtoras”, que se resumiam até
então a uma pequena burguesia provinciana ou a grupos financeiros com ares de mecenas, já
estão criando uma “consciência”, transformando amadores em artesãos e expulsando os
autores para as produções independentes. Em suma, Glauber está vislumbrando a
industrialização do cinema no país. A morte da chanchada que é vista, portanto, como um
cinema pré-industrial, é a expressão dessa metamorfose. Estamos diante de um novo
momento histórico, mas que também possui os seus perigos (“Os mitos de Zé Trindade e
Oscarito foram substituídos pelos mitos do escândalo da mulher nua e do regionalismo
pitoresco de macumba e chapéu de couro”). O que motivou Glauber a escrever seu livro é
justamente denunciar tal ameaça, para salvaguardar o movimento do Cinema Novo (“O
desenvolvimento industrial do cinema brasileiro, atrasado de meio século, contará com uma
estagnação cultural de trinta anos.”).
34
“Lo que distingue a la modernidad es la crítica: lo nuevo se opone a lo antiguo y esa oposición es la
continuidad de la tradición. La continuidad se manifestaba antes como prolongación o persistencia de ciertos
rasgos o formas arquetípicas en las obras; ahora se manifesta como negación u oposición. En el arte clásico la
novedad era una variación del modelo; en el barroco, una exageración; en el moderno, una ruptura. En los tres
casos la tradición vivía como una relación, polémica o no, entre lo antiguo y lo moderno; el diálogo de las
generaciones no se rompía.” Assim, Paz faz uma reflexão muito sintomática e interessante, para não dizer bem
“latino-americana”: “Muchos pueblos y civilizaciones se llamaron a sí mismos con el nombre de un dios, una
virtud, un destino, una fraternidad: Islam, judíos, nipones, tenochcas, arios, etc. Cada uno de esos nombres es
una suerte de piedra de fundación, un pacto con la permanencia. Nuestro tiempo es el único que ha escogido
como nombre un adjectivo vacío: moderno. Como los tiempos modernos están condenados a dejar de serlo,
llamarse así equivale a no tener nombre propio”. PAZ, O. Op. cit. pp. 20/22
35
BERNARDET, J. – C. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994. p.143
49
para o cenário nacional, mas, de um modo paradoxal, pois ainda não existe uma indústria
nacional de filmes. O papel do autor no Brasil “é lutar contra a indústria, antes que ela se
consolide.” Mero importador de filmes estrangeiros, o Brasil somente alcançará a sua
autonomia cinematográfica ao somar a produção a uma estética comprometida com as classes
progressistas do país, criando assim uma “indústria de autor”. O fato de existir um termo
perturbador (“Cinema Novo”) já é uma evidência, porém este está, segundo Glauber, sendo
manipulado facilmente. Assim, urge acirrar as fileiras do Cinema Novo, para que ele se torne
uma articulação coerente enquanto um movimento à altura da importância de seu papel.36
Somente assim, o cinema brasileiro deixará de ser um “apêndice” do cinema mundial,
adquirindo um caráter próprio. Para isso, o primeiro passo é mudar a leitura de sua história.
A melhor fase do nosso cinema é a muda que, apesar de não ter constituído uma
indústria, alcançou um elevado grau artístico. Reconhece-se a seriedade e o compromisso de
36
A modéstia não está nos planos de Glauber: “Quando André Bazin disse que o western era o “cinema
americano por excelência”, forneceu um dado para que hoje se possa pensar na possibilidade de o cinema ser “a
cultura brasileira por excelência”” Idem, p 17. Interessante notar que Glauber, inconscientemente, se afasta da
politique des auteurs, ao se identificar com o teórico francês. Por outro lado, vemos a suma contribuição do
cinema a dar ao país, sendo encarada como a arte principal para a sua expressão. Glauber inverte um “senso
comum” de desvalorizar o cinema brasileiro, atribuindo-o o viés de síntese da cultura nacional. Porém, para
outorgar ao cinema brasileiro tamanho grau de nobreza, Glauber criará um panteão específico deste cinema, a
partir de nomes já consagrados em outras artes nacionais.
37
O primeiro resgate público de Mauro foi na 1ª Mostra do Cinema Brasileiro, realizada em São Paulo, em
novembro e dezembro de 1952. Do cineasta mineiro, foram exibidos, além de Ganga bruta, O descobrimento do
Brasil (1936), Lábios sem beijos (1930), O canto da saudade (1952), Argila (1940) e Thesouro perdido (1927)
in Catálogo da “1ª Mostra do Cinema Brasileiro”. Um relato da “descoberta” de Mauro se encontra em
DUARTE. “Roteiro de Humberto Mauro”. In VIANY, A. (Org) Humberto Mauro: sua vida, sua arte, sua
trajetória no cinema. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1978. pp. 48-58. Aqui, o crítico paulista aproveita
para ajustar as suas contas com o Cinema Novo: “De Humberto Mauro, não vi nada de fato nos filmes do
cinema novo, ali, abundando, atabalhoadamente e de modo canhestro, tudo quanto fizeram os rapazes da
nouvelle vague, de cambulhada com as idéias do cinema-verité e com os modos de alguns autores italianos, do
neo-realismo aos filmes de Antonioni. E ao ler-se o que escrevem os incensadores do grupo (...), até parece que
foram esses desmazelados cineastas que inventaram o cinema e descobriram... Humberto Mauro! – Ora, nem
Humberto Mauro, na sua simplicidade de homem emotivo e original, nem nós da crítica acadêmica, que
desenterramos Humberto Mauro do túmulo do esquecimento e da incompreensão em que se achava sepulto,
trazendo-o à luz dos projetores e da análise escrita de seus principais filmes, nunca nos vangloriamos de termos
feito algo de novo, ou de sermos os donos de um artista e de exegese de sua obra. Porque o novo, neste mundo
de dependências mútuas e de turbulências permanentes, se faz com o resíduo subjacente de idéias velhas; um
processo novo é sempre apoiado ou estruturado em critérios e fragmentos do passado, na experiência e na
maturidade dos antigos...” Idem, p. 53
50
E foi a época áurea das fitas sem planejamentos, das películas feitas ao
Deus-dará, dos “alôs, alôs!”, apelativo vindo no rastro de uma série
horrorosa de fitas carnavalescas (...) as de pura “cavação”, melodramas
medonhos cujos títulos, até agora, nos recusamos a escrever. Não os
citaremos como não mencionaremos os nomes dos autores desses crimes
cometidos friamente contra o nosso cinema. O que se tinha, então, por
“cinema brasileiro” era bem o reflexo de uma indústria, que se arrastava
precariamente no País, dotada de aparelhamento obsoleto, quase sempre
improvisado e, em geral, manejado por técnicos de formação feita à última
hora, ou em hora nenhuma.
(...)
À maioria dos que faziam cinema no Brasil, não interessava um
conteúdo brasileiro no fazer cinema, já que a forma, toda ela adstrita a uma
técnica paupérrima, não era passível de melhoria imediata. Quase tudo o
quanto saía dos estúdios, mal e mal aparelhados, era uma caricatura
grotesca do mau cinema norte-americano, revestida de um
convencionalismo ridículo, daquele aspecto melodramático do mau teatro,
que há muito já havia sido superado na técnica e na estética do cinema
contemporâneo. (...) O que interessava, realmente, era o lucro imediato,
mesmo que para tal, se destruísse a dignidade do verdadeiro cinema
brasileiro ou a honra dos homens que lutavam por ele.
Tal era o panorama desanimador do cinema no Brasil, até bem
pouco tempo. Não; não desejamos sequer nos lembrar dessa época.
Preferimos saltar para uma data ainda recente: 3 de novembro de 1949.
Nesse dia, fundava-se em S. Paulo a Cia. Cinematográfica Vera Cruz. Para
nós, o Cinema Brasileiro renasceu, em sua fase sonora, no dia 3 de
novembro de 1949.39
Aqui podemos constatar, além de seu raciocínio histórico, um critério de juízo estético.
Um verdadeiro cinema, com valor artístico, somente é possível com técnicas atualizadas. O
valor da fase muda está, apesar de sua pequena produção, na “ânsia de qualidade artística e
técnica”. Os homens de valor daquela fase tinham a consciência que qualidade estética anda
colada com a técnica, e portanto, um verdadeiro cinema somente pode existir numa indústria.
É por isso que, na fase sonora, encontramos o termo cinema brasileiro entre aspas, pois não
havia a vontade de se investir numa indústria, mas apenas adquirir um lucro imediato.
Portanto, não poderia existir um cinema. O pensamento, digamos, “estético-industrialista”
seria retomado no cinema paulista, superando a decadência do sonoro (que deve ser, por
enquanto, sumariamente esquecida). Duarte advoga, portanto, que para haver um conteúdo
brasileiro num filme, é necessário um vigor na forma. Somente assim, surgirá um autêntico
38
“O que contribuiu para o nosso cinema não ser tomado a sério, são os filmes de “cavação” (...)” DUARTE.
“As idades do cinema brasileiro”. In Catálogo “Retrospectiva do cinema brasileiro”. Infelizmente, a brochura
não possui as páginas numeradas, o que nos impede de citá-las.
39
Idem
51
Em Glauber, ocorre uma mudança radical no viés da obra de Mauro, e por conseguinte,
até o modo de se interpretar a sua relação com Peixoto. O pensamento cíclico de Duarte é
abandonado, apesar de prosseguir a crítica à chanchada. O crítico paulista ainda utiliza o
critério “cinema mudo/cinema sonoro” o que já o caracteriza como um raciocínio
ultrapassado. Glauber pensa a história do cinema mundial como uma luta entre o “cinema
comercial” e o “cinema de autor”. Assim, o pensamento cíclico é substituído por um
raciocínio linear, formado por duas linhas paralelas e antagônicas, sendo que uma é a
dominante (a tradição) e a outra é a marginal, que luta por sua sobrevivência. É justamente
esse raciocínio que será aplicado ao cinema nacional. O seu capítulo sobre Mauro já possui
um título sintomático: “Humberto Mauro e situação histórica”43. Toda a história do cinema
40
DUARTE. “Humberto Mauro e ‘Ganga bruta’”. In Idem
41
Cuja maior expressão foi o L’assassinat du duc de Guise (1908) de Charles Le Bargy (1858-1936) e André
Calmettes (1861-1942). Uma rigorosa reconstituição histórica, esse filme foi realizado para ser uma expressão
artística inegável. A maioria de seus profissionais pertenciam à Comédie Française, o roteiro escrito por Henri
Lavedan (1869-1940) da Academia Francesa e a música composta por Camille Saint-Saëns (1835-1921).
42
Os dois únicos cineastas citados são importantes nomes do cinema francês dos anos 20: Germaine Dulac e
Dimitri Kirsanov, ou na versão galicizada, Kirsanoff (1899-1957).
43
ROCHA, G. Op. cit. pp. 19-31
52
44
BERNARDET, J. – C. Op. cit. pp. 144-7
53
O primeiro aspecto já foi abordado: o uso de parcos recursos como fonte criadora na
expressão artística. Ou seja, fazer da precariedade, uma estética. Assim, ao assumir esse
princípio, tal estética possui um compromisso com a verdade, o que é a definição de “cinema
de autor” (já visto na “Introdução”). Mauro é um Autor pelo fato de criar uma mise-en-scène,
i. e., é impossível separar o argumento da direção, sendo o filme uma unidade indivisível. Se
Glauber assimila corretamente o conceito de mise-en-scène, ele, por sua vez, não o utiliza
como os “Jovens Turcos”, que analisam sistematicamente toda a obra de um cineasta,
chegando a uma definição geral. Glauber elogia explicitamente dois filmes: Ganga bruta e
Favella dos meus amores.45 Não estamos afirmando que ele despreza os demais, porém, estes
dois filmes, outrora já citados por Viany, condensam, aos seus olhos, o que é relevante para o
Cinema Novo. Se Viany se volta para o segundo filme, Glauber analisa o mais conceituado
dos filmes maureanos. Ora, se o raciocínio “estético-industrialista” dos “esteticistas” deve ser
categoricamente rejeitado, o elogio deles deve ser visto com suspeita e, portanto, atirado ao
fogo. É, acima de tudo, uma ameaça, e urge, portanto, refletir um verdadeiro elogio a Ganga
bruta. O filme, como sublinha Bernardet, é enobrecido com várias referências ao cinema
mundial, sem respeitar limites de gêneros (o que o põe na alçada do “Cinema Moderno”),
porém, consegue, mesmo assim, possuir uma coerência e uma unidade.46 Assim, ele chega a
uma conclusão retumbante ao comparar com o cenário cinematográfico posterior: “é possível
traçar a involução da linguagem cinematográfica brasileira”. Houve um desvio de um
caminho estético rico, transformando o cinema brasileiro num marasmo.47 Qual é, então, o
princípio da mise-en-scène maureana? Glauber, numa leitura, digamos “baziniana”, o calca na
fotografia. Mauro extrai um lirismo do enquadramento, sendo uma contemplação autêntica da
paisagem brasileira. Diferente de Lima Barreto e, por suposição, também a chanchada, que
encaram a paisagem brasileira com exotismo (apesar de Glauber, em nenhuma passagem do
livro, teorizar o porquê de sua recusa à chanchada). O cangaceiro (1952) é visto como um
filme perigoso, pois seu exotismo e ufanismo da terra brasileira o torna um discurso proto-
fascista.48 Em suma, não é esse o caminho que o cinema brasileiro deve tomar. O lirismo
maureano não é a exaltação de nossa terra, mas uma compreensão da mesma, alcançando a
contradição presente em nossa realidade: um povo pobre, subdesenvolvido, numa terra rica e
fértil. Essa relação do homem brasileiro com a natureza acaba por também expor uma
denúncia, mesmo que o cineasta mineiro não tenha nenhuma consciência disso:
45
ROCHA, G. Op. cit. p. 25
46
Vejamos o quanto Glauber enobrece Mauro ao relacioná-lo com um cineasta incontestável: “Se a discutida
seqüência freudiana da fábrica é o único momento historicamente superado do filme, vale a pena lembrar que
Eisenstein tinha Marx e Freud como os autores básicos em sua teoria. A Mauro faltava uma cultura marxista e,
quanto a Freud, não creio que as metáforas da fábrica fossem um experimento consciente.” Idem. p. 29
47
A idéia de desvio permeia o capítulo. Numa outra passagem, Glauber chega a afirmar que o cinema brasileiro
dos anos 30 tinha grandes possibilidades, se unisse conscientemente os talentos dos cineastas Mauro, Peixoto e
Cavalcanti e o empenho entusiasta de Gonzaga e Carmem Santos. Perdeu-se, assim, um momento histórico para
a constituição de um autêntico cinema brasileiro, perigo que também ronda o Cinema Novo. Idem. p 25
48
Idem. p. 71
54
Portanto, o vínculo do Cinema Novo com Mauro não é político. Trata-se de uma
opção estética, da qual é possível extrair uma política. Desse modo, podemos resumir os
pontos de contato entre o Cinema Novo e Humberto Mauro em: um princípio de produção
(negar os grandes estúdios) e um princípio estético, expresso pelo rompimento da cisão entre
argumento e direção (a mise-en-scène) e o uso da fotografia como um método de
conhecimento. Desses princípios é possível chegar a uma política, ainda não processada e
articulada no cineasta mineiro. Assim, e somente assim, os jovens do Cinema Novo, que
pregavam um marxismo, podem, paradoxalmente, ver num cineasta cristão e de formação
conservadora o seu patrono. Glauber tem plena consciência desse paradoxo, e por isso, frisa o
vínculo estético com o velho Mauro. Isso é possível por sua leitura ser histórica, diferente da
dos “Jovens Turcos”, interpretando o cinema de Mauro como uma etapa, relacionando o
cineasta mineiro a uma “situação” (como diz o título), pela qual passou o cinema brasileiro.49
Portanto, Glauber consegue, simultaneamente, criar uma origem nobre para o seu movimento
(arrancando Mauro das mãos dos “esteticistas”) e se posicionar em relação aos problemas
vigentes do cinema brasileiro. É o que torna possível a sua crítica a Walter Hugo Khouri.
Apesar de reconhecê-lo como autor, pelo fato de ele criar uma mise-en-scène, e por isso, estar
à margem da indústria, Glauber o diferencia do Cinema Novo. O seu cinema é puramente
subjetivista, preocupado com questões de foro íntimo, e não social. Tal visão pode ser autoral,
no sentido de também manifestar as contradições da sociedade burguesa para além do puro
entretenimento (“cinema comercial”). Aliás, Glauber, na “Introdução”, interpreta
Michelangelo Antonioni (1912- ) nestes termos. Porém, e aqui podemos reconhecer uma
distinção de ordem nacional, o autor do nosso cinema deve estar comprometido com o
“homem brasileiro”, uma herança maurena. Mas, distinto do momento de Mauro, o cinema de
então adquiriu uma maior “consciência”, o que significa que compreender esse homem é
conhecer e transformar a nossa realidade. Não há mais espaço, nessa conjuntura, para
cineastas “ideologicamente difusos”, como no tempo de Mauro. Portanto, Khouri é visto
como uma “possibilidade” como frisa Bernardet50, necessitando abandonar as suas veleidades
“pequeno-burguesas”. Aqui podemos constatar uma diferença radical com os “Jovens
Turcos”: existe uma subdivisão entre os Autores. Isso ocorre pelo fato de Glauber atrelar à
sua singular interpretação da politique des auteurs, um olhar histórico. E como a História,
para ele, possui um sentido, a Arte (o Cinema) possui laços e responsabilidades em relação a
ela. O Cinema é pensado em articulação a algo exterior a ele. Assim, Glauber, de modo
semelhante a Viany, descreve dois caminhos dentro do cinema brasileiro: um, social e
autenticamente brasileiro, o Cinema Novo; e outro formalista e universalista; os herdeiros
renitentes do cinema paulista, com Khouri à frente.51 Esses dois caminhos podem ser
encontrados desde longa data. Assim como o Cinema Novo prolonga Mauro, Khouri prolonga
Mario Peixoto. Se Duarte dignifica Ganga bruta via Limite, Glauber corta tal laço,
constituindo-os em duas fontes nas quais bebem duas linhagens distintas do cinema brasileiro.
Portanto, o que é “Cinema Novo” para Glauber? Inicialmente, ele o pensa dentro de
uma conjuntura internacional, o que já significa que não se trata de mero voluntarismo por
parte desses jovens cineastas. Eles estão coadunados com as transformações estéticas que
ocorrem no resto do mundo. Assim, esse é o primeiro passo de legitimação do movimento
nacional, vinculando-o a uma plêiade incontestável de cineastas estrangeiros. O segundo
passo é realizar um procedimento semelhante dentro da cultura nacional. É o que ocorre com
Humberto Mauro, que é dignificado por intermédio de nomes de outras artes nacionais. Aqui
49
Esse tema é abordado mais explicitamente no artigo que deu origem ao capítulo do livro, ver ROCHA.
“Humberto Mauro e situação histórica”. In Viany, A. (Org). Op. cit. pp. 77-84
50
BERNARDET, J. – C. Op. cit. p. 148
51
ROCHA, G. Op. cit .p. 79
55
52
Foi justamente pelo caminho aberto por Glauber que Salles Gomes rumou: GOMES, P. E. S. Humberto Mauro,
Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1971. Este livro, que se converteu num pilar da nossa
historiografia clássica, aborda exaustivamente o surgimento e amadurecimento do cineasta Mauro. Porém, não
estamos preocupados com Mauro, mas como ele foi articulado a uma noção de cinema brasileiro, cujo livro de
Salles Gomes exerce um papel fundamental. A nossa abordagem é via Glauber, que extrai uma definição de
cinema brasileiro a partir do conceito “Cinema Novo”. Portanto, o que estamos estudando é a resolução do
problema posto no início deste capítulo: o que é “Cinema Novo”? Mauro foi uma ferramenta para essa resposta,
relacionando-o a algo muito maior. Coube a Salles Gomes entrar pela porta aberta por Glauber. Porém, veremos,
posteriormente, como o próprio Glauber consegue encontrar uma outra resposta mais coerente, porém,
colocando a sua questão em outros termos.
56
1
Ver os artigos “Um mundo de ficções”, “A agonia da ficção”, “O gosto da realidade” e “O dono do mercado”
In: GOMES, P. E. S. Op. cit. pp 296-313.
2
A revista Cinearte foi criada em 1926, por Gonzaga e Mário Behring e circulou até 1942. Não foi a primeira
revista de cinema no Brasil, porém a mais importante da década de 20. Gonzaga e Lima foram colegas no
Colégio Pio Americano, construindo uma sólida amizade pelo amor ao cinema, junto com outros condiscípulos,
que também terão um papel importante na formação desse pensamento. Porém, foram Gonzaga e Lima os seus
principais formadores. Após os seus estudos secundários, ambos ingressam no jornalismo: Gonzaga trabalha em
Para Todos..., na qual cria, em 1923, uma coluna específica para o cinema brasileiro (“Filmagem Brasileira); e
Lima trabalha em Selecta, onde realiza o mesmo em 1924 (“O Cinema no Brasil”). Com a criação de Cinearte,
Gonzaga convida Lima, tornando-o responsável pela coluna “Filmagem Brasileira”, posteriormente intitulada
“Cinema Brasileiro”. É por essa revista que ambos promovem a chamada “Campanha pelo Cinema Brasileiro”,
exercendo uma função de pólo centralizador de informações e difusor de idéias estéticas e organizacionais. Tal
ideário será posto à prática na realização de Barro humano (1930), dirigido por Gonzaga e cujo sucesso de
público e crítica, amadurece a idéia da fundação da produtora Cinédia, em 1930. Devido às divergências
ideológicas e pessoais, a amizade é rompida, provocando o desligamento de Lima da revista no mesmo ano,
marcando, assim, o término da campanha. RAMOS, F. e MIRANDA, L. F (Org). Enciclopédia do cinema
brasileiro. São Paulo: SENAC, 2000. pp. 126-7; 130-2; 278-1; 326
3
GOMES, P. E. S. Op. cit. pp 295-366
4
Mário Marinho de Carvalho Behring se dedicou aos estudos históricos desde jovem, contudo ingressou no
jornalismo, trabalhando para a Sociedade Anônima O Malho. Em 1924, é nomeado diretor da Biblioteca
Nacional, mas, por razões financeiras, nunca deixou de escrever artigos. Foi Grão-Mestre Geral do Grande
Oriente do Brasil (GOB) de 1922 a 1925, quando a maçonaria ainda possuía um papel ativo na sociedade
brasileira. Em 1927, por motivos eleitorais ao Grão-Mestrado, rompe com o GOB e promove a fundação de
Grandes Lojas Independentes no país. Sobre a relação de Behring com o cinema no Brasil, ver especialmente
Idem. pp. 295-303
57
O fim do cinema mudo coincidia com o fim da mocidade de Adhemar Gonzaga e de seus
amigos. A idade de ouro – instante incomparável mesmo quando impregnado de penúria – de Selecta,
Para Todos... e do começo de Cinearte e Barro Humano, já pertencia ao passado, embora eles ainda
não tivessem se apercebido disso. Chegava para os sonhadores, que Behring acolhera e ironizava, com
simpatia, a hora da chamada vida prática com todas as suas capitulações. (GOMES, 1971, p. 352)
5
“Chegado a este ponto do exame (...) pode parecer que Adhemar Gonzaga e Pedro Lima gastaram anos com
preocupações supérfluas, sem qualquer inserção nos problemas econômicos reais do cinema brasileiro. A
falsidade dessa impressão é denunciada pela espantosa pertinácia – a pertinácia tem menos vigor – com que
procuraram enfocar naquela conjuntura a problemática concreta da cinematografia brasileira. Ao acompanhá-los
nesse percurso é preciso não esquecer a impossibilidade de encontrar alguém no Brasil de Epitácio ou Bernardes,
capaz de ensinar: eles foram obrigados a tudo descobrir por conta própria.” Idem. pp. 315-6
6
O uso, pelo autor, da correspondência de Gonzaga a Mauro demonstra que o “mestre” do cineasta mineiro
buscava em sua amizade, apoio e compreensão. Em suma, o ideário gonzaguiano ainda não era algo maduro.
58
O que se entende por “cavação” é algo muito genérico. São filmes documentais,
realizados de modo praticamente pessoal (não há uma equipe técnica); que adquirem um
sentido pejorativo inclusive no aspecto moral: certos realizadores ofereciam seus serviços a
particulares (as possibilidades do cinema eram desconhecidas) que, por sua vez, davam
dinheiro para a sua realização. Com o dinheiro na mão, o realizador desaparecia. Portanto,
como o meio cinematográfico estava povoado de pessoas de má índole, isso acabava por
denegri-lo. A mesma imagem era associada às chamadas “escolas de cinema”, onde os donos
se aproveitavam do dinheiro de seus alunos. Salles Gomes enfatiza o moralismo presente nas
acusações da Cinearte, sobretudo de Lima, ignorando o papel que tais procedimentos
possuíram como forma de sobrevivência após a desarticulação da produção nacional com a
invasão do filme estrangeiro. Além do mais, pessoas não-idôneas existem em qualquer área de
atuação. Ou seja, a “cavação” não pode ser mecanicamente associada a inclinações morais de
indivíduos, mas a fatores materiais de produção. O que nos interessa são as conseqüências
disso: para a revista, seria necessária uma “limpeza moral” no setor, para que o cinema fosse
visto com bons olhos, atraindo o cuidado do Estado e o financiamento dos capitalistas. Uma
das funções da revista, portanto, seria julgar quem seriam as pessoas confiáveis, zelando pela
honra do cinema brasileiro. Aos profissionais honestos, cabia incentivá-los, a partir de dois
princípios básicos, estudados por Salles Gomes: o “scenario” (o que hoje entendemos por
roteiro) e a publicidade. Em suma, criar um star system, publicando entrevistas e fotos de
atores e atrizes, e conselhos sobre a construção da narrativa. Esses dois pilares, que sustentam
esse pensamento cinematográfico, persistirão até o declínio do cinema paulista. Surgem daí,
duas idéias que perdurarão durante décadas em nosso cinema (que já foram aludidas no
primeiro capítulo). Uma é o problema crônico da “incompetência de nossos roteiristas”
(lembremos do 5º fator de Cavalcanti). A outra, de caráter mais amplo, é o próprio
questionamento da existência de um cinema brasileiro. Se Cinema, por definição, é indústria,
o fato de essa ainda não existir em nosso país, põe em dúvida a própria existência de cinema
brasileiro. Essas duas idéias foram dinamitadas pelo Cinema Novo.8
7
Autran interpreta as idéias de Lima a partir do “pensamento autoritário brasileiro”, teorizado por Lamounier,
pelo fato do crítico pregar a necessidade de um centro dirigente que “modele” a massa amorfa do cinema
brasileiro. AUTRAN, A. “Pedro Lima em Selecta” Cinemais nº 7 set/out 1997. pp. 53-65
8
Por outro lado, surge a seguinte dúvida: existe um star system no Cinema Novo? Podemos afirmar que sim,
com a condição desse conceito sofrer algumas mudanças. Um certo padrão estético foi criado, atrelado a um
princípio político, voltando-se, portanto, à um público específico. Vale a pena lembrar a valorização do corpo do
negro, expressos, principalmente, em Luiza Maranhão (1940- ) e Antônio Pitanga (1939- ).
9
XAVIER, I. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978
59
Salles Gomes sublinha que o star system não pode ser pensado como uma pura
manipulação, como se fossem as “estrelas” que garantissem a produção (o que ocorre em
Gonzaga), mas como um fenômeno bem particular da sociedade norte-americana.11 Do
mesmo modo, podemos desvincular o “scenario” da sociedade norte-americana. Segundo
Sadoul, deve-se a Thomas Ince (1882-1924), que para Louis Delluc (1890-1924) prolonga e
supera Griffith, a criação do que hoje entendemos por “decupagem”.12 Especializado em
western, Ince, a partir de 1912, supervisionava vários diretores, sendo seguidas as suas
anotações feitas antes da filmagem, passando, posteriormente, o material para a montagem
sob a sua estrita orientação. Não é por acaso o seu tipo de gênero, pois esse o forçou a pensar
em como suavizar ao máximo os cortes (as passagens de um plano para outro) sem quebrar o
ritmo da narrativa. Assim, na década de 20, tais métodos de realização já estavam bem
consolidados no cinema norte-americano, chegando a ser exportados. São esses métodos,
popularizados, em todo o mundo, por intermédio de cursos de correspondência, que Gonzaga
utiliza e aconselha. O nosso ponto é: apesar de ser evidente a entrada, cada vez mais
sistemática, da cultura norte-americana em nossa sociedade (como tanto enfatizam Salles
Gomes e Xavier), não podemos, por outro lado, subestimar o valor da originalidade do cinema
norte-americano, como se fosse um mero epifenômeno de fatores empíricos. O nosso
objetivo é alcançar a sua dimensão lógica. O impacto mundial de sua estética forçou homens
de todo o mundo a re-pensar o que é o Cinema, os seus atributos e as suas potencialidades.
Por exemplo, a forte tradição de um determinado conceito de Arte, tornava o cinema europeu,
mais especificamente o francês, demasiado preso ao teatro e à literatura. O que queremos
sublinhar é como se transformou, em tão pouco tempo, o modo de se encarar o Cinema, que
de aparelho técnico para fins científicos à categoria de arte, passando por mera curiosidade
circense e entretenimento popular, adquiriu uma importância cada vez maior na sociedade
(que estava sofrendo graves transformações). Assim, podemos notar um leque de diferenças,
quando homens, de cultura e formação distintas, se deparam com as inovações dos mesmos
filmes norte-americanos. É fundamental notar que, tanto na França quanto na Rússia, foram a
partir dos estudos desses filmes que surgiram várias teorias. Enquanto que os primeiros
enfatizam mais a fotografia; os segundos, a montagem. Ou seja, podemos perceber leituras
distintas devido às singularidades de cada pensamento, que possuem os seus respectivos
princípios e tradição.
10
Esta preocupação também está presente numa outra publicação do mesmo período:______. O discurso
cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. O que escapa à leitura de
Xavier, nestes livros, é o aspecto da própria “linguagem clássica narrativa” ser assimilacionista, se apropriando
de outros modelos estéticos.
11
“A confiança que o grupo de Cinearte depositava no papel da publicidade era ilimitada (...). Para Adhemar, o
sucesso do estrelismo norte-americano era atribuído quase que exclusivamente à técnica da propaganda, não
compreendendo ele – como até hoje muita gente não compreende – a espontaneidade psicossocial do fenômeno
em suas origens. A grande ficção mitológica de Hollywood fora construída a partir da realidade, ao passo que
para Adhemar Gonzaga e seus amigos tudo ocorre como se coubesse à publicidade criar de toutes pièces uma
ficção que em seguida deitaria raízes no mundo real: as “estrelas” e “astros” perderiam as aspas.” GOMES, P. E.
S. Op. cit. p. 337
12
SADOUL, G. Dictionaire des cinéastes. Paris: Microcosme/Seuil, 1984. pp. 138-0. Por sua vez, Tariol afirma
ser um tanto exagerada a importância que Delluc consagrava a Ince, pois lhe atribuía a direção de vários filmes
que tinham sidos apenas supervisionados por ele, mas o que não chega a invalidar a existência de um “estilo
Ince”: TARIOL, M. Louis Delluc. Paris: Seghers, 1965. pp. 23; 105-7.
60
Se nos referimos a um “pensamento brasileiro”, não devemos esquecer que, nos anos
20, podemos notar algo relevante: mudança. Havia um processo de transformação que
identificamos na cabeça dos homens e mulheres daqueles tempos, através de uma vontade de
mudar o país, de eliminar os resquícios do escravismo e do patriarcalismo. Porém, essa
vontade somente foi definida e articulada, na década seguinte. Portanto, a “Campanha pelo
14
A Cinédia, para manter as suas portas abertas, foi obrigada a fazer “cavação”; realizando “filmusicais”, que
culminam nas chanchadas, e filmes institucionais para o Estado. Apesar de ser num outro contexto distinto do
livro, Salles Gomes não poderia deixar de frisar tal dado: “Para Adhemar Gonzaga e Pedro Lima o cinema
natural era sinônimo de “cavação” e no entanto se o presente trabalho não se interrompesse em 1930 nós
encontraríamos o primeiro produzindo jornais cinematográficos [e aqui há a seguinte nota: “E também a mais
brilhante forma que a “cavação” posada viria a atingir: a chanchada.”] para equilibrar a produtora que fundara e
o segundo filmando para o Ministério da Agricultura, para não falar do aluno mais brilhante da escola, sem aspas,
de Cinearte – Humberto Mauro – que será tão ilustre no documental quanto o foi no posado.” GOMES, P. E. S.
Op. cit. p. 309
61
Cinema Brasileiro” da Cinearte deve ser lida necessariamente nestes termos. Seguiremos tais
termos, muito bem sublinhados por Schvarzman:
(...) a aversão de Gonzaga ao cinema europeu, tem haver também com o seu
lado ainda teatral de encenação, claro na persistência de dramas de
inspiração literária e reconstituições históricas. Gonzaga quer para o Brasil
a nova arte, a arte que fala por seus próprios meios, e não aquela que ainda
decalca o teatro e a literatura numa sensibilidade ultrapassada. Nesse
sentido ele é efetivamente moderno. (SCHVARZMAN, 2000, p. 29)
Eis o nosso ponto de partida: como definir a modernidade de Gonzaga? O que nos
conduz a uma questão mais abrangente: o que é a Modernidade?
Responder a tal questão, que pode ser sob os mais diversos modos, demandaria uma
vasta biblioteca. Iremos empreender um esforço de síntese, visando sempre o aspecto
cinematográfico. O nosso método de análise parte da epistemologia francesa de Gaston
Bachelard (1884-1962), cuja linha é seguida por Michel Foucault (1926-1984) ao estudar as
ciências humanas, que erguem a pretensão de verdade para abordar esse estranho objeto: o
homem.15 Essa nossa metodologia não é fortuita: como já aludimos, o cinema era inicialmente
encarado como um artefato tecnológico para servir à ciência, porém, se transformou em arte.
Essa passagem nos intriga, colocando em cena duas faces bem distintas: o conhecimento e a
fruição estética. A passagem do século XIX para o XX é apontada por Bachelard como o
advento da autêntica episteme científica. A física mecanicista ainda estava apegada a uma
visão do Todo, um vício da filosofia. Com a queda da lógica proposicional de Aristóteles,
surge uma pluralidade de lógicas. É o que torna possível o surgimento de uma “Filosofia do
Não”, nos termos bachelardianos: não existe a Física, mas Físicas; as físicas não-newtonianas;
assim como as geometrias não-euclidianas e as químicas não-lavoisierianas. E todas erguem
pretensão de verdade, ou seja, não há mais uma Verdade única, como tanto desejava a
Filosofia, ao estudar o Ser.
O discurso cinematográfico, dentro das relações que compõem uma fruição estética
contemporânea, está calcado, como já vimos, no movimento, evidenciado pela historicidade
que nos remete, em última instância, à reflexão acerca da finitude da existência humana.
Estamos nos referindo à estrutura do discurso cinematográfico (o movimento), o que significa
não se tratar de conteúdo. Portanto, isso ocorre independente do gênero (documentário,
comédia, drama, etc) pois a atividade artística, não somente o cinema, já não possui um laço
15
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Trad. Salma Muchail. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000
62
com uma ordem metafísica – a instrumentalização do Belo, como referência sensível a uma
ordem transcendente.16
Pois bem, como se enuncia tal finitude em Gonzaga? Antes de tudo, pelo seu “culto”
ao movimento que se manifesta, sobretudo em seus critérios de “scenario”. Tal aspecto foi
bem ressaltado por Schvarzman: Gonzaga anseia por essa nova arte, devendo expurgar dela, e
daí o “policiamento” de Cinearte, toda e qualquer “impureza” causada por outras artes.
Portanto, o amor de Gonzaga ao Cinema está intrinsecamente vinculado por uma vontade de
ser “moderno”. O Cinema, mais especificamente o “posado”, seria a melhor via por onde o
movimento se processaria. Não se trata somente do aspecto industrial, mas da estrutura do
discurso cinematográfico. Salles Gomes termina seu trabalho justo no período da passagem do
mudo para o sonoro, quando ocorre uma desestruturação da economia cinematográfica, mas
também de sua linguagem. Por isso, tal momento marca o fim da juventude de Gonzaga. O
ano de 1930 sintetiza esse processo de mudança, em vários níveis: não somente o Brasil como
o próprio Cinema. Portanto, depois da construção dos valores estéticos da Cinearte, Gonzaga
é forçado a contestá-los. Se ele possui uma vontade de mudança, ela, por sua vez, sempre é
acompanhada pela perda de referenciais. Salles Gomes frisa o aparecimento de um
“saudosismo” e um “pessimismo” que surgem neste momento, que serão, futuramente,
substituídos pelo dito “pragmatismo” do velho Gonzaga. Ao reconhecer que é preciso realizar
filmes sonoros, Gonzaga se prostra diante de uma exigência não-previsível para ele. Por outro
lado, é interessante notar que Salles Gomes, que confessa ter iniciado seu interesse pelo
cinema a partir de uma discussão ultrapassada da querela “mudo x sonoro”, afirma que essa
transformação na linguagem, era uma demanda interna a ela, pois a própria estética dos
últimos filmes mudos já exigiam o som: interpretação idêntica à de Bazin. Gonzaga, como a
maioria das pessoas na época, não chegou a perceber isso. O que queremos frisar é o tipo de
crítica de Salles Gomes: ela não é estética, mas, antes de mais nada, econômica. Em suma, ele
quer costurar duas camadas que a Cinearte mantinha separadas. Gonzaga não notou que a
estética do cinema norte-americano está atrelada à economia daquele país, que, por
conseguinte, não pode ser importada para cá. O próprio Gonzaga, ao se deparar com a
“realidade” do sonoro, acabou praticando isso, inconscientemente, como é o caso dos
“filmusicais”, que surgiram como uma opção comercial. O erro de Gonzaga, portanto, é partir
de uma estética para criar um contexto econômico. Para Salles Gomes, o Cinema Novo é
autenticamente nacional no sentido de sistematizar uma estética partindo das singularidades
econômicas, visando sua transformação.
16
Sendo coerentes com esse raciocínio, podemos radicalmente afirmar que somente num mundo sem Deus pode
haver cinema. Isso problematiza como pensar as cinematografias não-ocidentais. Um dos modos de refletir isso é
diferenciar Cinema de Cinematografia. Como há uma pluralidade de lógicas, o Cinema pode ser enunciado sob
vários modos (as Cinematografias), e como ele é, acima de tudo, uma Arte, é de sua definição ser paradoxal, pois,
para usarmos termos lacanianos, o que não é científico (o campo da Letra) é da ordem do Significante; e esta
sempre possui uma defasagem entre o enunciado e a enunciação, pois a linguagem não é fechada.
63
17
DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. 5 ed Rio de Janeiro: Guanabara, 1990
18
Contudo, esse quadro não era tão dicotômico, pois havia uma parcela da sociedade que escapava dessa ordem
que, na sociedade brasileira aumentava cada vez mais, a partir do século XVIII: era o homem livre pobre. Não
podendo viver do trabalho, reservado ao escravo, era forçado a buscar proteção de algum poderoso para se
encaixar na ordem social. Em nossa literatura é a figura do “agregado”.
64
identidade nacional que, na prova a priori, é deduzida das etnias, dos costumes, da língua, da cultura
em sentido antropológico, e, na prova a posteriori, é deduzida do Estado. Freqüentemente, as duas
provas se combinam e seu fruto (pouco bendito) costuma ser batizado com o nome de política cultural.
(CHAUÍ, 1984, p. 43)
Para nós, tanto Gonzaga quanto Glauber constróem um modelo único de pensamento
pelo fato de destruírem um Todo, lançando as bases de um outro. Como se perdeu uma
referência supra-sensível e supra-humana, o homem entra em cena, socialmente pela idéia de
contrato (que passa a legitimar o poder) e artisticamente pela criação de algo original. O
Cinema muda de aparato científico para se tornar uma manifestação artística quando deixa de
ser articulado a um critério de descontinuidade (corte epistemológico) para ser um princípio
de continuidade (lembremos de Paz, na arte moderna, a ruptura prolonga a tradição), visando
uma ordem a ser construída (os valores estéticos criados pelo artista), ou seja, passa a exercer
uma função diametralmente oposta. Assim, quando o cinema passa a possuir essa função de
continuidade, é possível lhe ser associada uma idéia de Nação, que é algo moderno, no
sentido de buscar a coerência de um Todo que foi perdido com a queda do pensamento
teológico-metafísico. Assim, Gonzaga e Glauber, cada um à sua maneira, atrelam ao conceito
de Cinema (movimento) um critério constitutivo deste Todo perdido. E ambos, por
conseguinte, possuem provas para a existência dessa substância que é o Cinema, do qual
aponta para a Nação. Em Gonzaga, a prova a priori é o postulado da racionalidade do
mercado, de onde se deduz a necessidade do Cinema ser uma indústria. A prova a posteriori é
o sucesso de público de um determinado modelo estético, do qual se deduz a necessidade da
referida indústria. Já em Glauber, a prova a priori é o postulado da racionalidade da História,
de onde se deduz a necessidade do Cinema ser um “cinema de autor”. A prova a posteriori é a
dificuldade de produção, distribuição e exibição dos filmes brasileiros, de onde se deduz a
necessidade de um cinema militante.
français. Entretanto, devemos sublinhar que esse diálogo com o continente americano faz
parte do pensamento francês, e, portanto, não é algo recente que veio com o cinema. Basta
nos lembrarmos de Michel de Montaigne (1533-1592), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e
Alexis de Tocqueville (1805-1859). Portanto, o «americanismo» da avant-garde e da Cahiers
du Cinéma pertence a uma longa tradição. Por outro lado, nós, latino-americanos (termo aliás
criado pelos franceses, visando a nossa tutela via identidade latina), possuímos uma outra
relação com os norte-americanos. Usando uma metáfora já desgastada, o sol, que faz germinar
idéias no solo europeu, queima aqueles que lhe estão muito próximos... Assim, como pensar
essa outra relação?
No final de seu clássico livro, O’Gorman, após estudar detalhadamente como se criou
o ser da “América”, tece uma reflexão sobre o seu sentido histórico.19 Quando se atribuiu
àquele achado geográfico o conceito de “quarta parte do mundo”, outorgando-lhe, portanto, o
título de “continente”, houve uma revolução radical na concepção cosmológica do Ocidente.
Uma transformação no próprio conceito “cósmico” de Mundo: de acordo com o pensamento
greco-latino, retomado pelo cristão, Mundo é o lugar próprio ao homem, condizente à sua
natureza (estrutura ontológica). Sendo um animal terrestre, segundo o lugar que lhe foi
delegado no universo (um todo harmônico, que os gregos chamavam de Cosmos), somente
pode ser chamado de Mundo, as partes de terra do globo (crença reforçada no cristianismo
pela gênese humana oriunda do barro). Portanto, O’Gorman enfatiza que as chamadas
“Grandes Navegações” possuíam um sentido diferente para nós na cabeça daqueles homens:
eram empreendimentos cósmicos, pois eles se lançavam a um lugar hostil à sua natureza (o
Oceano).20 Quando a América foi pensada como um continente, adquirindo uma igualdade
com os outros três (Europa, Ásia e África), o próprio Oceano, que o separa dos demais,
passou a ser encarado como algo próprio à natureza humana, criando, assim, o nosso conceito
moderno de Mundo: a totalidade do globo terrestre. Deduz-se daí que, sendo todos os
continentes iguais, eles compartilham uma mesma substância, formando uma unidade.
Contudo, há uma hierarquia e se a Europa é a região mais propícia para o florescimento do ser
humano, a América é uma Europa em potência. Portanto, o Mundo possui uma única
substância, distribuída hierarquicamente em suas diferentes partes e uma única história que
une todos os povos. A colonização do continente americano é o projeto de passar esse ente de
potencialmente europeu para ato, ou seja, atualizar a sua virtualidade européia. Contudo,
O’Gorman afirma que tal projeto não foi unívoco, pois o modelo europeu foi aplicado
segundo dois procedimentos: moldar o continente segundo este modelo, encarando-o como
um mero prolongamento da Europa (a América ibérica); ou moldar tal projeto segundo as
singularidades do continente, o que acarretou, sub-repticiamente, na afirmação de uma
originalidade em relação à Europa (a América anglo-saxã). Eis a questão que podemos
encontrar, de distintos modos, na totalidade dos pensadores latino-americanos, seja, por
exemplo, nos termos de “civilização x barbárie” de Domingo Sarmiento (1811-1888) ou de
“colonizações assimilacionista x segregacionista” de Darcy Ribeiro (1922-1997).
Dito isso, a nossa questão é refletir sobre a relação entre o Cinema (o movimento) e o
pensamento norte-americano (o seu liberalismo), pois ainda não temos uma tese
consolidada.21 O importante para nós é: partindo do raciocínio de que o cinema está, por
definição, atrelado à modernidade; isso significa que a originalidade dos norte-americanos ao
19
O’GORMAN, E. La invención de américa. 2ª ed. México: FCE, 2001
20
Devido a esse aspecto “cósmico”, o autor afirma que as Grandes Navegações estão para aqueles homens o que
as explorações espaciais estão para nós.
21
Questão que nos remete a como pensar as cinematografias não-ocidentais. Vale a pena frisar a importância nos
anos 90 dos cinemas iraniano, chinês e japonês. Isso é um sintoma de algo?
66
criarem essa “nova arte” prova que se deve entrar na Modernidade, necessariamente, pelo
estilo norte-americano? Em suma, modernidade é sinônimo ou é algo logicamente tributário
do American way of life?
Em seu livro seguinte23, Said busca uma resposta, frisando que, se o Ocidente pensou
e moldou os não-ocidentais, eles, por sua vez, não foram elementos passivos; houve uma
resistência. Assim, o seu livro transita da formação desse pensamento (segundo a sua
metodologia de crítica literária) à sua contestação, aflorando nos movimentos de
“descolonização”. Ao analisar os romances do século XIX que descrevem terras distantes,
podemos ver o funcionamento do pensamento imperial. O romance exerceu um papel
fundamental na constituição de um mundo pós-teológico, e não é por acaso que exercem uma
função de suma importância na cultura das duas maiores potências imperiais: Inglaterra e
França. Concordamos com o autor ao afirmar que tais artistas não foram mecanicamente
determinados pela ideologia, pela classe ou pela história econômica. O imperialismo é, acima
de tudo, um modo de se pensar o mundo e o romance contribuiu para esse pensamento, a seu
modo. Mas, voltando às questões postas acima, todos os povos não representam, ao seu modo,
o mundo, alocando em algum lugar os demais povos?
22
SAID, E. Orientalismo. Trad. Tomás Bueno. São Paulo: Cia das Letras, 2001
23
_____. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 1999
67
os territórios distantes: eles os elaboram ou lhes dão vida utilizando técnicas narrativas, vieses
históricos e inquisitivos, idéias positivistas do gênero oferecido por pensadores como Max Müller,
Renan, Charles Temple, Darwin, Benjamin Kidd, Emerich de Vattel. Todos estes desenvolveram e
acentuaram as posições essencialistas na cultura européia, proclamando que os europeus deviam
dominar, e os não-europeus ser dominados. E os europeus de fato dominaram. (SAID, 1999, p. 143)
24
BONITZER, P. Le champ aveugle: essais sur le réalisme au cinéma. Cahiers du Cinéma: Paris, 1999
25
MANENT, P. Historie intellectuelle du libéralisme. Paris: Hachette, 1995. pp. 221-241
68
atomizados?26 Ou um poder central que zela pela integridade dessa igualdade ou os próprios
indivíduos que, para zelar pelos seus interesses, se associam entre eles. O individualismo
radical é o momento negativo da democracia que é superado por um constrangimento (é esse
o termo) que obriga os indivíduos a saírem de seu mundo fechado. Assim, Tocqueville frisa
que o “homem democrático,” por ser só, é extremamente frágil, sendo constrangido a se
associar com seus semelhantes ou delegando os afazeres públicos a um Estado centralizador
(o grande perigo das sociedades democráticas). Portanto, a “liberdade de associação” é vista
por Tocqueville como o principal remédio para esse mal, tornando o “homem democrático”
sensível aos afazeres públicos ao reconhecer o Estado, não como uma entidade superior e
estranha, mas como algo derivado de seus interesses. Em suma, o povo se reconhece e,
simultaneamente, vigia o Estado. Portanto, a democracia é ao mesmo tempo um “estado
social”, o reconhecimento da igualdade e, portanto, as diferenças são acidentais e um “dogma
político”, a soberania do povo, que é zelado pelas instituições do Estado e seus representantes,
a quem, portanto, devo respeitar a autoridade. Manent frisa a originalidade tocquevilliana ao
ver que o “estado de natureza” do homem, tão estudado pelos liberais pré-Revolução Francesa,
somente pode, paradoxalmente, existir como fruto de um constrangimento, como uma
construção. Em suma, com Tocqueville, o “homem” é simultaneamente o seu mestre e sua
matéria, criando a si mesmo. A “democracia” é um dos nomes desse processo, pois ele é um
princípio e um fim. Porém, um dos perigos da democracia, apontado pelo pensador francês, é
a ameaça que paira sobre uma das mais caras liberdades: a de pensamento. Se eu tenho o meu
próprio sistema de valores, porque devo escutar o outro? Por outro lado, passo a questionar os
meus próprios valores pois, se o outro é igual a mim, os seus valores são tão verdadeiros
quanto os meus. Esse dilema é resolvido com a criação de um critério transcendente, mas sem
deixar de ser humano: um “terceiro homem”, que é a massa. Portanto, a medida dos valores é
citada pela opinião pública, o que pode ser extremamente perigoso, como adverte o liberal
francês. A genialidade de Tocqueville o fez vislumbrar, antes do advento das chamadas mass
media, o “paradoxo democrático”: o indivíduo mais isolado se torna o mais massificado.
Portanto, o grau de periculosidade do cinema norte-americano foi constatado por Tocqueville
quase meio século antes de sua invenção. Assim, Griffith é “tocquevilliano” na medida em
que pensa a sua narrativa dirigida para um determinado olhar: o do “terceiro homem”, a
massa; que fecha a “tríade humanista” do cinema norte-americano: a câmera-homem e o
personagem principal.27 Não entraremos na questão se é possível tirar o cinema desse
“paradoxo democrático”, pois nem o próprio Tocqueville encontra tal solução, ele apenas
constata o problema. Os franceses e os soviéticos tentaram buscar uma solução própria, e para
tal, tiveram que definir o que é o cinema de um modo distinto dos norte-americanos (a tríade
estudada acima). Assim, voltando ao raciocínio de Said, tal conceito de cinema pode ser
concatenado a um imperialismo ao definir que homem é esse, que amarra os três vértices do
cinema. São notórios o machismo e o racismo presentes nos filmes de Griffith, pelo fato de
esse Homem, que costura o seu cinema, ser definido segundo o critério ocidental, branco e
masculino.
26
Segundo Tocqueville, a expressão máxima da democracia (a igualdade entre os homens) se encontra nos
Estados do Oeste. Quando Bazin afirma que o western é o cinema americano por excelência, pelo fato de ser o
mais atrelado ao mito de origem daquela sociedade, é tributário desta constatação, pois como diz Tocqueville, a
diferença dos norte-americanos para os franceses, é que aqueles “já nasceram livres”, enquanto que os segundos
se “tornaram livres”, por intermédio de uma sangrenta revolução e uma sucessão de revoltas e golpes de Estado.
27
Esse conceito de “tríade humanista”, que resume a totalidade do cinema norte-americano, ainda não é uma tese
consolidada. Porém, afirmamos ao leitor que um modo extremamente rico para se pensar Griffith é via
Tocqueville, o que infelizmente ainda não foi feito (ou pelo menos, não conhecemos ninguém que tenha seguido
tal caminho).
69
Por outro lado, não podemos esquecer que o “americanizado” Tocqueville, assim
como Gonzaga, é nacionalista. Ele frisa que o seu estudo sobre a sociedade norte-americana
não visa criar um modelo único, pois, apesar de partir de uma observação empírica, a sua
intenção é definir o que é a democracia em geral. Ou seja, sociedade democrática não é
sinônimo de sociedade norte-americana. Assim, para o autor, todas as sociedades chegarão à
democracia, mas não pelo mesmo caminho. Partilhando de uma leitura “biologista”, bem
comum no século XIX, o pensador francês vê cada sociedade como um organismo próprio,
que possui características bem singulares. Portanto, apesar da democracia (a igualização entre
os homens) ser um processo irreversível e universal, segundo Tocqueville, conforme a
Providência, cada nação, como um organismo particular, trilhará uma via conforme a sua
singularidade. Em suma, Tocqueville analisa os norte-americanos, mas pensa na França.
Se o Cinema Novo é “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, a Cinédia só tinha
a câmera, a idéia ainda não estava pronta. É um equívoco pensar que o projeto da Cinédia já
estava amadurecido, quando Gonzaga abre as suas portas. Num arroubo que podemos chamar
28
Vamos levantar um problema: o cinema norte-americano, o “democrático por excelência” - diria Tocqueville -
, possui como “pai” Griffith, uma pessoa, justamente, de formação sulista e, portanto, de fortes características
estamentais. Esse paradoxo pode ser suavizado pelo fato de lembrarmos que o próprio Tocqueville era
aristocrata e, como ele próprio afirma, possuía um privilégio histórico: pertencer a uma geração posterior à
Revolução Francesa e portanto, com um distanciamento crítico necessário para avaliá-la, fugindo das acaloradas
discussões entre liberais e aristocratas do momento revolucionário. Portanto, isso o tornou capaz de identificar os
aspectos positivos e negativos da democracia, sem cair nas interpretações parciais. Assim, talvez somente um
Griffith, um “aristocrata” com a distância necessária para avaliar a democracia, poderia criar o cinema norte-
americano.
70
de arrivista, Gonzaga viu a hora certa para o golpe. Mas são poucos os que conseguem o seu
18 Brumário. Para Salles Gomes, a Cinédia teve um 9 Termidor avant-la-lettre, quando o
comandante Gonzaga, antes de ir à ativa, é assaltado pelo pessimismo e saudosismo (justo
numa correspondência ao fiel Mauro). Em suma, a Cinédia surgiu mais como uma aposta do
que como uma estratégia bem planejada e articulada. Portanto, o projeto da Cinédia foi uma
marcha árdua e dolorosa, que foi sendo pensada no calor da batalha, além de ir se agravando
com as preciosas baixas; primeiro, de Lima, e depois, de Mauro.
Possuímos uma hipótese. O caminho encontrado por Gonzaga foi o que Foucault
chama de histerização da mulher dentro do seu conceito de “bio-poder”.30 Na época da
soberania, o poder estava assentado no confisco dos corpos e das coisas. Segundo o direito
romano, o soberano (o proprietário da vila romana) era considerado o gerador da vida de seus
subordinados (mulher, filhos e escravos) e, portanto, tinha o direito de retomar essas vidas
para si. Esse direito “de vida e de morte” é definida como o direito de causar a morte e deixar
viver. Com a constituição da sociedade disciplinar, esse “confisco” tende a diminuir, surgindo
funções de controle, vigilância, majoração e organização. Surge um poder de gerar a vida,
que a aloca em uma potencialização de suas funções. De um poder de causar a morte e deixar
viver, há uma substituição para um poder de causar a vida ou devolver a morte.
Esse poder se constitui interligando dois pólos. O primeiro, surgido no século XVII,
centrou-se no corpo como máquina; formando um adestramento com a ampliação de aptidões
e extorsão de forças, visando uma docilidade e utilidade. O segundo pólo, que surge no século
XVIII, centrou-se no corpo-espécie, constituindo numa mecânica biológica da população:
taxas de nascimentos e mortalidade, nível de saúde, duração da vida. Assim, esse novo poder
sobre a vida está montado nesses dois pólos: as disciplinas do corpo e as regulações da
população. A vida, tanto no nível corporal quanto populacional, é gerida, controlada, medida,
maximizada, surgindo um corolário de instituições que se proliferam no século XIX. Eis o
“bio-poder”, isto é, um poder sobre o organismo vivo, que será um elemento indispensável ao
desenvolvimento do capitalismo, controlando e inserindo corpos e populações em processos
de produção.
29
BONITZER, P. Op. cit. pp. 35-52. O conceito de “mancha” (tache) é oriunda da psicanálise lacaniana.
30
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Mª Tereza C. Albuquerque e J. A. G.
Albuquerque. 12 ed: Rio de Janeiro: Graal, 1997. pp.125-152.
71
Portanto, vemos surgir várias instituições e novos saberes que se voltam para o corpo e
a população. Batalhões de médicos, sanitaristas, bacteriologistas, criando seus discursos
higienistas e eugênicos, passam a colher para as redes de poder os corpos, que devem ser
“retirados” das garras da doença e do vício. Novas condutas de alimentação, postura,
vestimenta, moradia, limpeza e sexualidade formam essa “vida”, guiada pelos parâmetros da
“tecnociência”, substituindo “antigos preconceitos e hábitos ignorantes”. Como já afirmamos
acima, o bio-poder é vital para o capitalismo e, desse modo, essa vida saudável e eugênica é
uma definição de “vida moderna”.
31
COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 3 ed, Rio de Janeiro: Graal, 1989
32
Idem. pp. 208-274
72
Nos anos 1920, surge um outro discurso: o brasileiro não é inferior por sua origem
racial, mas por sua falta de instrução. O povo brasileiro não necessita ser “purificado”, mas
educado. A educação passa a ser a principal bandeira de luta, liderada pela chamada “Escola
Nova”. De origem norte-americana, o escolanovismo está enfocado sobre o aluno,
evidenciando-o como indivíduo e não como uma peça receptora do saber.33
próximos filmes a “temática feminina” (os supracitados Lábios sem beijos, Mulher e Ganga
bruta, além dos projetos interrompidos de Saudade e Marta). As mulheres estudadas aqui são
de raça branca, mesmo que não sejam economicamente abastadas. Portanto, o outro pólo
estudado por Foucault, o “corpo-espécie” é subestimado, enquanto que o “corpo-máquina” do
indivíduo, a regulamentação do uso dos prazeres, é estrategicamente privilegiado, tanto no
erotismo presente nos filmes quanto no discurso ao sexo saudável (realizado no matrimônio).
Assim, a “histerização da mulher” é um libelo contra o poder patriarcal. De fato, a questão
racial será um tabu durante anos no cinema brasileiro, o que pode explicar a ênfase do
“discurso gonzaguiano” à mulher. O corpo do negro e do mulato encontrará na chanchada um
melhor modo de ser enunciado para, posteriormente, ser utilizado numa articulação política
no Cinema Novo.
Qual foi o papel desempenhado por Humberto Mauro nesse “método”? Como já
vislumbramos acima, o Mauro-funcionário público do INCE (Instituto Nacional de Cinema
Educativo) apenas prolonga, de um certo modo, a sua função modernizante na Cinédia. Como
estudamos anteriormente, Glauber exalta no cineasta mineiro o seu enquadramento para fugir
do paradoxo ideológico ao consagrar como patrono um cristão, “ideologicamente difuso”. O
interesse do Cinema Novo em Mauro se deve por sua mise-en-scène e, sobretudo, pelo
processo de produção empregado, possuindo um aspecto “anti-industrial”. O improviso e a
curiosidade são elementos fundamentais no processo criativo, sendo absorvidos no discurso
fílmico. Se o Cinema Novo revela esse aspecto escancaradamente, por uma intenção política,
Mauro não o promove propositadamente. Se, por vezes, seus filmes abordam temas ambíguos
ou paradoxais, como é o caso do cultuado Ganga bruta, deve-se mais ao que está diante da
câmera do que o seu uso premeditado, acusando uma posição auto-declarada por parte do
cineasta. Possuindo um olhar poético sobre as coisas, o tom lírico se manifesta justamente por
intermédio da ambigüidade ou do misterioso, o que talvez esteja relacionado com a
religiosidade presente no pensamento de Mauro. Se as paisagens e o erotismo a serviço de
Gonzaga, em Lábios sem beijos, devem forçar a modernidade, o Mauro maduro do INCE
aponta certas contradições na própria modernidade.
vida. Existe um esforço, um constrangimento (de novo esse termo) por parte dos homens em
compreender e analisar a natureza. A “cosmologia maureana”, se podemos assim afirmar, não
subestima o homem, pelo contrário, confere-lhe um papel ativo e importante. Podemos ver a
sua preocupação com o patrimônio popular, sobretudo com a música.
Assim, o homem não está no mundo como um hóspede num lugar que não lhe
pertence. O pensamento grego via o homem mergulhado numa ordem transcendente, chamado
de cosmos, que o define como uma peça simples e sem muita importância na totalidade da
Natureza. O pensamento judaico-cristão rompe com este modelo, pois o homem está
destinado a trabalhar a terra, desde que foi expulso do Éden. Portanto, vemos surgir a idéia de
um homo faber, inexistente nos pagãos, pois esse novo conceito remete à própria concepção
de um deus novo, um deus criador. Criado à Sua imagem e semelhança, o homo faber remete
a um deo faber. Inicialmente, o cristianismo, sobretudo pela influência da herança pagã, vai
valorizar o tom cosmológico. Com o advento da modernidade, a concepção de um homem
criador é resgatado, rearticulando todo o pensamento ocidental, que, posteriormente, se laiciza
por completo, dispensando a idéia de deus.35 Portanto, é possível afirmar que o “saudosismo”
de Mauro não se opõe à modernidade, pelo contrário, é um resgate da própria modernidade,
que se desviou do seu verdadeiro caminho, o cristão. Assim, se Gonzaga é “tocquevilliano”,
ao por o homem como demiurgo de si mesmo, Mauro, por sua vez, é um “pascaliano” que
encontra na fé e na arte, que foram traumaticamente desvinculadas da razão, o caminho ético
mais seguro diante da angústia que suscita a modernidade.36 Porém, ressaltamos que é
possível afirmar que a modernidade não é originalmente um rompimento radical com o
cristianismo, mas a radicalização de um conceito que lhe é próprio. Cabem aos homens
assumirem o seu papel, que é trabalhar sobre a terra, mas respeitando-a, pois o homem não é o
seu dono, nem um mero hóspede, mas um elemento que a constitui. Assim, cabe à Arte, em
última instância, resgatar esse aspecto, lembrar ao homem que ele não está sozinho. Como
Mauro afirmava, “o progresso é antifotogênico”, ou seja, o cinema deve estar, por definição,
atrelado à memória, para buscar no passado, ou nos seus traços ainda existentes, essa ordem,
não por uma intenção meramente contemplativa, mas como uma função pedagógica.
É o que ocorre nos documentários do INCE, que exploram a harmonia entre o homem
e a natureza. A natureza ensina os homens a viver por intermédio de seus ciclos e regras.
Porém, os homens não são meros joguetes, pois cabe a eles desvelarem os segredos que estão
nos encantos da natureza. A esse respeito, ressaltemos o projeto não-realizado de Mauro de
filmar o “Eclesiastes”.37 Em relação ao texto bíblico, o cineasta ressaltava a descrição em
imagens, ou seja, esse livro é uma pedagogia calcada na informação visual. Lembremos que
Mauro é um homem da técnica e do meio rural mas, fundamentalmente, uma pessoa que não
pensava “livrescamente”, mas por imagens. O seu autodidatismo não é uma singularidade,
35
A passagem da cosmologia pagã para a cristã e o vínculo dessa última com a modernidade é estudada em
O’GORMAN, E. Op. cit. pp. 55-76. A “invenção da América” desempenhou uma função capital na releitura
ocidental do universo, pela transformação da concepção cosmológica de Mundo (já abordada anteriormente).
36
Não podemos esquecer que existe uma religiosidade em Tocqueville. A História, para ele, possui um sentido:
o processo de igualização entre os homens - Verdade revelada pelo Evangelho e concretizada na democracia.
37
“Tem uma riqueza de imagens maravilhosa: Todas as águas correm para o mar... (...) O Eclesiastes é a palavra
de Deus ensinando a gente a viver. Você não deve procurar na vida mais doçura do que ela pode lhe dar. Sim,
mas dentro do que ela pode dar, existem coisas formidáveis. Tudo tem sua hora e sua oportunidade e é muita
aflição do homem. Andamos aflitos. Não sei que diabo de aflição é essa! Tudo tem o seu tempo determinado”.
Isso também se relaciona com o seu célebre procedimento de como filmar a natureza: “Quando vejo uma
cachoeira, não vou de cara em cima dela. Escondo-me atrás de uma bananeira, esperando a hora certa. Há
momentos na natureza que não se repetem nunca mais. (...) Natureza a gente não deve filmar quando a gente
quer, mas na hora que a natureza escolhe.” In VIANNY, A (Org) Op. cit.. pp. 178-9, 181
75
pois a própria intelectualidade brasileira o praticava, mas o seu aprendizado era oriundo do
improviso e da curiosidade, o que provoca a simpatia dos “cinemanovistas”. Aliás, o cineasta
mineiro sempre afirmava: “nunca abri um livro de cinema. Curso de brasileiro é olhar: olhou,
viu, fez”. Eis o termo – olhar. É o que testemunhamos na ética e na cosmologia de que trata o
texto bíblico, que são obtidas pela simples descrição da natureza:
“Todos os rios entram no mar, e o mar nem por isso transborda; os rios voltam ao mesmo
lugar donde saíram, para tornarem a correr. Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode
explicar com palavras. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir”.38
38
Eclesiastes 1; 7-8
39
Existem vários “marxismos”, principalmente, pelo tipo de interpretação dada à sua polarização entre um
“conhecimento científico” da sociedade e uma aplicação desse conhecimento para a sua transformação. Assim, é
possível lê-lo como uma “profecia”. O que queremos evitar é uma leitura simplista do filósofo alemão, perdendo
a profundidade e a riqueza de seu pensamento. Assim, a sociedade comunista não é o paraíso na terra, pois como
toda sociedade humana também terá os seus problemas. Porém, são problemas que nem podemos imaginar por
estarmos tão mergulhados na sociedade burguesa.
40
Gomes frisa a importância da rigorosa formação presbiteriana de Glauber, presente na leitura bíblica e nos
hinos de louvor, mas posta em cheque com o impacto da morte de sua irmã mais velha. Todos esses elementos
fizeram surgir no cineasta uma vontade de justiça social atrelada a uma “raiva bíblica” (não ódio), que encontrou
num “humanismo marxista”, termo do biógrafo, a sua forma de expressão. Por tal motivo, o autor escreve, com
uma certa ironia, a recusa da mãe, D. Lúcia Rocha, de ver qualquer indício de ateísmo em seu filho. GOMES, J.
C. T. Glauber Rocha: esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997
76
Num artigo intitulado O cinema novo de 1962, e portanto, anterior ao seu livro,
Glauber Rocha já buscava uma definição para o termo cunhado por Ely Azeredo.1 Assim,
podemos notar que se trata de uma questão que o perseguia obsessivamente, e ao estudarmos
a busca dessa resposta, conheceremos as mudanças no pensamento e na obra do cineasta
baiano. Nesse artigo, Glauber conclui que não é a sua aparição recente o que torna tal cinema
ser novo, mas a sua posição em relação à problemática brasileira. O “homem brasileiro” é
novo, os problemas do Brasil são novos e, portanto os filmes que se vinculam a essa
“problemática” são irremediavelmente distintos dos produzidos na Europa. É relevante
ressaltar que esse artigo possui como epígrafe a célebre frase de Paulo César Saraceni: “O
cinema novo não é uma questão de idade; é uma questão de verdade”. Esse pensamento
autoriza Glauber a empreender o projeto que se realiza em seu livro, pois “o cinema novo”
não é apenas um movimento cinematográfico recente, mas uma instrumentalização do cinema
voltada para, nos termos de Glauber, a abordagem da “problemática brasileira”. Assim, é
possível identificar, no passado, filmes que compartilham a mesma ou uma semelhante
intenção. Em suma, existe uma tradição, subterrânea, em nossa cinematografia que irá
desembocar nos filmes desses novos cineastas. É o que Glauber já faz no próprio artigo:
“(...) Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso
cinema é novo não por causa da sua idade. O nosso cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o
de Humberto Mauro que nos deu em Ganga Bruta nossa raiz mais forte.” (ROCHA, 1981, p. 83)
Por outro lado, é importante frisar a seguinte frase: “Não existe na América Latina um
movimento como o nosso”. Apesar de o jovem crítico de cinema Glauber exaltar o filme
mexicano Raíces (1953) de Benito Alazraki (1921- ), por conseguir conciliar duas estéticas
até então diametralmente opostas para os europeus, - o construtivismo soviético e o neo-
realismo italiano - abrindo, assim, portas para um modelo estético latino-americano, percebe
tratar-se, na verdade, de um caso ímpar.2 Os cinemas mexicano e argentino ainda não
possuíam um grupo de cineastas “novos” como no caso brasileiro.
O que podemos entender por “problemática brasileira”? Por que esse epíteto de
“novo”, e o que significa “velho”? No livro, através do uso bem particular da politique des
auteurs, Glauber o atrela a um viés histórico, certificando um sintoma, o florescimento dos
“cinemas de autor”, e apontando para os perigos dos supostos estertores do “cinema
comercial”, ao se apropriar dos “autores” como vedetes. Isso é bem evidente no seu artigo O
processo cinema, de 1961, em que ele escreve como e por que se tornou cineasta, assumindo
uma produção problemática, Barravento (1961), o seu primeiro longa-metragem.3 Nesse texto,
Glauber caminha sobre o fio da navalha da atividade cinematográfica: as suas faces artística e
comercial. Distinto do artesão do passado, que realizava o seu trabalho anonimamente, o
artista, nos dias de hoje, é alçado à categoria de “atração pública”, de exceção. O cineasta é o
que mais sofre, pois carrega em seus ombros o investimento de um enorme capital.
Ironicamente, Glauber, nesse artigo, critica a politique des auteurs e a Cahiers du Cinéma, ao
«divinizarem» cineastas norte-americanos substituindo-os na função de “vedetes” até então
1
ROCHA, G. Revolução do cinema novo. pp 15-7
2
Ver “Rayzes mexicanas de Benito Alazraki” In Ibid. pp. 1-7. É significativo notar que se trata do texto
escolhido por Glauber para abrir o seu livro sobre o Cinema Novo.
3
Ibid, pp 8-15
78
reservada aos atores e atrizes. O cineasta baiano chega a afirmar que o “fenômeno da nouvelle
vague foi apenas um golpe de produção muito bem lançado”. Apesar de um certo niilismo que
pode engendrar o problema posto por Glauber (o artista como “atração pública”), ele o resolve
ao separar alguns nomes, que mesmo diante desse dilema moral, conseguiram enfrentá-lo com
dignidade:
Portanto, o cinema pode ser salvo não por uma mudança no produtor, pois para ele
somente lhe interessa do cineasta a compra de sua força de trabalho intelectual, mas pelo
público. O público é o único meio de se salvar o cinema. Aliás, é instigante notar que todos
aqui estudados (Cavalcanti, Viany, Salles Gomes e Gonzaga) jamais condenam o público
brasileiro; ele é sempre visto mais como vítima do que como réu. Desse princípio se
desenrolam duas questões: quem é esse público e o aparecimento de uma outra figura: o
crítico. É desse ponto que o problema começa a ser formulado em termos nacionais. O
caminho no artigo de Glauber é justamente esse:
com o “cinema francês” mas, sim, com o Cinema. Glauber, em seu livro, ainda não explicita
conceitualmente essa distinção, mas ele dará esse passo...
Voltando ao artigo, Glauber questiona o que leva uma pessoa a ingressar num meio
artístico tão ingrato e corrupto quanto o cinema. Claro que há os que se “vendem” sem
problema, seduzidos por uma indústria poderosa e rica, visando se integrar em seus quadros.
Porém, os criadores honestos, como o citado Antonioni, são levados por uma “ambição”
própria de qualquer artista, que é aumentar a visibilidade de sua obra. Essa inclinação também
traz um problema, estando muito próxima a “venda de sua alma”. Portanto, o cinema,
indústria e arte, agarra para si aqueles que abandonam as suas outras tendências (crítico, poeta,
escritor, pintor) com a condição de deixarem a humildade na porta de entrada. A lucidez de
Glauber o faz diferenciar a “arte” do “artista”, o que em geral não ocorre. Podemos afirmar
que a arte possui uma dimensão trágica no sentido de que sua potência e valor é feita às custas
dos artistas. Dito de outro modo, a arte é algo fantástico e deslumbrante, apesar dos artistas,
que podem ser pessoas medíocres e vaidosas. Em suma, o mistério da criação artística, que já
vimos em Gilson, é a sua inversão lógica de um princípio cartesiano: como o “menos”, no
caso o artista, pode engendrar o “mais”, a arte?4 Como um ser medíocre e desprezível pode
criar algo tão soberbo e magnânimo? É óbvio que nem todos os artistas podem ser julgados
assim, e o esforço de Glauber é encontrar alguma saída moral para esse paradoxo.
4
René Descartes (1596-1650), na terceira de suas Meditações, prova a existência de Deus aplicando o princípio
de causalidade, pelo qual, um ser finito e imperfeito, como o eu pensante, somente pode possuir em si a idéia de
infinito e perfeição, pelo fato de essa idéia ter sido posta por um ser infinito e perfeito e que, por conseguinte, tal
ser, o res infinita, racionalmente existe e é causa do outro ser, o res cogitans. A concepção moderna de Arte
subverte o princípio de causalidade, oriunda da física aristotélica, ao afirmar a criação de uma realidade singular,
partindo de um suporte empírico que é o artista. Voltamos a repetir, não podemos confundir o empírico com o
lógico, pois cairíamos numa explicação fisiológica, psicológica ou sociológica para a criação artística,
encarando-a como um simples epifenômeno de alguma suposta natureza humana ou apelaríamos para uma
transcendência, como a teoria kantiana do “gênio”, considerando a criação artística como um mero laço com
alguma substância superior, seja a Natureza ou Deus.
80
Se fomos tão exaustivos nas citações desse artigo é pelo fato de ele ser, na nossa
interpretação, a pedra fundamental do pensamento glauberiano. O cinema é dilacerado, pois
está dividido entre ser esta linguagem escondida e misteriosa ou um simples condutor de
idéias. Glauber não encontra resposta e cai num beco sem saída. Relevante notar que ele se
refere ao futuro, supondo a existência de um verdadeiro cinema, que esteja além dessa
contradição. Uma resposta que algum dia virá, quando o cinema retomar a sua essência, que
foi esquecida, tornando o cineasta um homem pleno. Podemos vislumbrar um viés metafísico
e histórico. Uma essência foi oculta, desenrolando-se por intermédio de uma contradição, e
apontando, no futuro, para uma superação. Por outro lado, toda a preocupação é posta em
termos nacionais. Essa contradição, que é inerente à condição do cinema, possui um outro teor
entre nós. A nossa contradição é maior, pois o ingresso da sociedade brasileira na
modernidade não foi efetivado. Se o cinema é próprio da modernidade, por sua definição ser
oriunda da finitude, o “cinema brasileiro”, logicamente, não existe. Como Glauber sublinha,
vivemos num “pseudodesenvolvimento”, definindo- nos como “índios de gravata e paletó”.
Portanto, os cineastas brasileiros se defrontam com essa questão, e não suportam encará-la.
Entendemos o seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro como uma resposta ao
dilema posto nesse artigo de 1961. Ao buscar uma definição para “Cinema Novo”, Glauber
visa abordar a contradição presente na definição de cinema (linguagem oculta x condutor de
idéias). Ironicamente, ele se utiliza da politique des auteurs para tentar solucionar essa
contradição. O “Autor” cria uma visão de mundo, com a qual está comprometido, mantendo a
82
sua integridade diante das garras da indústria cinematográfica. Porém, como já estudamos,
Glauber interpreta a metodologia “jovemturquiana” de um modo bem singular, ao atrelá-la a
uma leitura histórica. Pensa-se o cinema, remetendo-o a algo exterior, o que no citado artigo
era intitulado de “idéias universais”. O filme de um Autor é a captação e leitura da realidade,
sendo entendida como um compromisso com a “verdade”. Portanto, o cinema não é isolado,
não sendo visto como um puro “experimentalismo” e nem um mero entretenimento, pois é
algo de muito grave, sendo alçado à categoria de “conhecimento” (a relação com a Verdade).
Essa leitura é muito comum e denunciada por Gilson, ao se interpretar a Arte como uma
forma de conhecimento. Glauber, de um certo modo, compartilha essa tradição, que segundo
o neo-tomista francês é algo de muito nocivo. Porém, Glauber vincula o conhecimento com
uma realidade movente, sendo diametralmente oposto a uma interpretação aristotélica. Como
já ressaltamos várias vezes, o cineasta baiano possui um viés histórico.
Interessante notar como Glauber realizou a sua passagem da crítica para a realização.
Se os “Jovens Turcos” rompem com a distinção clássica entre “Poética” e “Estética”, Glauber
o faz motivado por uma outra razão. Os franceses encaram o filme como uma realidade
própria, melhor dito, um conjunto de filmes (o “Autor”), ingressando nela para estudá-la
internamente, julgando, portanto, o cineasta e não o filme. É a simultaneidade do juízo de
valor e de realidade. Por isso, a existência de uma “moral” nos filmes, que é relevante. Assim,
a passagem dos “Jovens Turcos” da crítica para a realização é natural, já que escrever sobre e
realizar filmes estão na mesma ordem. Por outro lado, como Glauber associa o cinema com
algo exterior, o que deve ser estudado, melhor dito, o que é conhecido, é a realidade exterior
ao filme, mas, paradoxalmente, através do filme. O filme, sendo uma “visão de mundo”,
possui uma face dupla, pois ele é o que é dentro de uma outra coisa que é o que é. Na verdade,
este “é” deve ser lido como “sendo”, pois tal realidade, e por conseguinte também o filme,
está em movimento (História). Portanto, é coerente que Glauber, após olhar para o futuro, em
seu artigo de 1961, volte-se para o passado, em seu livro de 1963. E, sendo assim, é possível
afirmar que Ganga bruta seja um filme “cinemanovista”, mesmo que tenha sido realizado em
1933. Como Glauber afirma em seu artigo, o que o motivou a ingressar no cinema foi a
consciência das condições em que vive o nosso povo, pois o que deve ser conhecido é a
realidade exterior ao cinema, mas, por uma articulação realizada no filme (a mise-en-scène).
Todo o problema do pensamento de Glauber é como se dá essa “articulação” entre o filme e a
realidade do povo brasileiro. O caminho para o didatismo é muito próximo, mas deve ser
radicalmente rejeitado por minar a própria definição de Autor. O filme tem que ser uma visão
pessoal dessa realidade, e não uma mera apresentação didática. Aqui, podemos notar a
importância de Mauro para esses jovens, pois os seus documentários são um exemplo a ser
seguido. Interessante notar que Glauber analisa Mauro atravessando as fronteiras de gênero,
estudando, após Ganga bruta, o curta documental Engenhos e usinas (1955). Portanto, é
coerente intitulá-lo de Autor, já que ele impõe a sua visão pessoal independente dos
procedimentos técnicos e das condições de realização. Por outro lado, Glauber afirma uma
“situação histórica” à qual está circunscrita Mauro e, portanto, o seu cinema, de um certo
modo, já está superado. O dilema posto no artigo de 1961 está justamente certificando a
necessidade histórica de uma transformação na arte cinematográfica. Em seu livro, Glauber
esboça uma resposta ao tomar para si o termo de “cinema de autor”. Apesar de anteriormente
ter se referido à Nouvelle Vague como “um golpe de produção”, que é justamente a grande
controvérsia desse movimento (que Marie busca desbaratar), o compromisso do autor é com o
público e é, justamente, esse compromisso que o alça à categoria de artista. É somente por
intermédio desse compromisso que o cinema pode ser “salvo”. Por outro lado, a preocupação
de Glauber se restringe ao nosso país (isolando-o, por exemplo, da América Latina). Ele
constata uma mudança no cenário cinematográfico brasileiro, que é o início de sua
83
5
ROCHA, G. Op. cit. p. 106
84
Eu achava que a gente tinha que se comunicar e não expressar. Isso foi uma
fonte de atrito que perdura até hoje. Os caras não me perdoam até hoje por
causa disso. O Cacá, o Jabor, eles não me perdoam, porque acham que eu
fui um cara que massacrou a vocação artística deles. É verdade que eu botei
a arte a serviço de outras coisas. Mas a proposta não era essa? Se eles
estavam ali, estavam ali para isso. Eles ficavam divididos: queriam
participar daquilo e, ao mesmo tempo, ser grandes artistas.
Na verdade, o CPC aglutinou, naquele momento, o pessoal que começava a
esboçar o Cinema Novo, a moçada que esboçava a Bossa Nova, enfim: ele
foi uma espécie de aglutinador de todas essas idéias, não é?
Sim, embora quanto mais o sujeito tivesse ambições individuais, como
artistas, menos condições ele tinha de entrar para o CPC. Veja um exemplo:
o Glauber Rocha. Ele não entrou por quê? Porque era o que tinha mais esse
“fogo sagrado” das coisas que ele ia fazer. Ele o criador, ele o autor. Tanto
que a mulher dele entrou, mas ele não. Na verdade, quem entrou para o
CPC foi quem não tinha produção nenhuma e que, de uma forma ou de
outra, via ali um espaço para começar a produzir. O próprio Vianinha vivia
esse dilema: ser artista ou fazer o CPC. Porque, na realidade, eram dois
caminhos totalmente diferentes. (BARCELLOS, 1994, p. 90)
Por enquanto, ele não nos esclarece muita coisa. Não retornaremos à distinção entre
Glauber e os “Jovens Turcos”. Mas, por outro lado, reconhecemos que o historicismo de
Glauber não é o mesmo de Bazin. Não é somente o aspecto cristão que aparecerá numa
interpretação extremamente singular em A idade da terra (1980), mas pela relação com o
“classicismo”. O diálogo da Cahiers du Cinéma e da Nouvelle Vague com o cinema
hollywoodiano é visto com muita suspeita pelos “cinemanovistas”. Para esclarecermos o que
Glauber entende por Autor devemos voltar a frisar a passagem do “Cinema Clássico” para o
“Cinema Moderno” e como essa passagem é interpretada para o cinema brasileiro.
Num texto de 1962, Viany reconhece o teor qualitativo dos nossos filmes, manifestado
pela representação do Brasil, pela primeira vez, em todos os festivais internacionais de cinema,
não nos envergonhando.6 O crítico carioca vê nessa nova geração a manifestação de um novo
6
VIANY, A. “Cinema Novo, ano 1” In O processo do Cinema Novo. José Carlos Avellar (Org.). Rio de Janeiro:
Aeroplano, 1999. pp. 21-39
85
tipo de cinema, e deposita nela a esperança da arte cinematográfica em nosso país. O seu
esforço é caracterizá-la, saber quem são esses jovens e o que eles entendem por Cinema.
Relevante notar o seguinte trecho: “chamá-los de Nouvelle Vague é ofensa, se bem que os
autores de Os cafajestes, Rui (sic) Guerra e Miguel Torres, não escondam (sic) seu fascínio
pelo movimento francês”. Há um questionário, respondido por vários cineastas do movimento,
que levanta a importância que eles atribuem a vários cineastas e filmes. Como somente nos
interessa Glauber, selecionamos as suas respostas:
Podemos notar que o Neo-realismo possui uma ressalva de cunho nacional e que o
único cineasta realmente elogiado é Visconti. O filme em questão sempre exerceu um fascínio
em Glauber pois, segundo ele, o cineasta italiano conseguiu conciliar a crítica social com o
aspecto subjetivo dos personagens, expressando uma visão pessoal do autor (a mise-en-scène).
Ou seja, ele demonstra a riqueza que um filme pode alcançar, e daí provém o elogio tão
solene, o fato de abrir um caminho, aos olhos de Glauber, para a resolução do dilema que
7
No ano seguinte, no livro Revisão crítica do cinema brasileiro, a opinião sobre O pagador de promessas já não
é tão positiva; Glauber reconhece alguns problemas, apesar de grandes méritos, preferindo, pessoalmente, “o
diretor simples, espontâneo e pessoal de ‘Absolutamente certo’ ”. ROCHA, G. Op. cit. pp. 132-5
86
vimos acima.8 Portanto, é lícito supor que, da mesma forma que no elogio ao Neo-realismo, é
necessária uma transposição do “modelo viscontiano” para o cenário brasileiro. Por outro lado,
é relevante assinalar que os outros cineastas citados não são necessariamente desqualificados
(o exemplo de Bergman é significativo), mas não possuem nenhuma relevância estética para
nós, sendo a Nouvelle Vague, o mais evidente, pois é um “perigo” para “os jovens dos países
subdesenvolvidos”. Aqui está o termo fundamental que impulsiona o pensamento de Glauber,
que o faz buscar uma solução para o dilema explicitado por Martins. Na verdade, há uma
ligeira diferença entre o que Martins explicita, e o que Glauber afirma em sua citada carta. O
dilema, presente no CPC, pode ser visto como inerente a qualquer manifestação cultural que
se proponha militante, como por exemplo, o cinema soviético dos anos 1920. Já nos referimos,
brevemente, o quanto Eisenstein é uma figura forte para os “cinemanovistas”, mas a sua
estética não pode ser aplicada maquinalmente. Eis a diferença com Glauber. O cineasta baiano
sempre está pensando tal dilema numa singularidade brasileira, buscando construir um tipo
de estética que possa se adequar à “problemática brasileira”.
8
No debate sobre Deus e o diabo na terra do sol (1964), realizado em 24 de março de 1964, Glauber afirma: “O
filme que mais me impressionou e que mais atuou dentro de Deus e o diabo na terra do sol foi Rocco e i suoi
Fratelli, para mim, o maior filme do cinema moderno. Adoro o filme, acho-o perfeito, porque talvez seja o
primeiro filme do cinema moderno que tira o roteiro da categoria de narrativa e lhe dá a categoria mais profunda
de um romance. A estrutura de Rocco que é uma estrutura tradicional, clássica, acadêmica, também me parece
muito boa, e o tom de tragédia de Visconti sempre me impressionou muito. Não é propriamente a forma de
Visconti, mas uma demonstração que ele dá do que é possível levar o cinema às últimas conseqüências, em
termos de extroversão dramática.” ROCHA, G. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1965. p 135. Esse debate também está transcrito em VIANY, A. Op. cit. pp. 51-84
87
inexistente, nos filmes de crítica social. E talvez o mais sedutor para Glauber seja o fato de
Visconti abordar a “problemática italiana” segundo uma estética italiana (a tradição da Ópera).
Assim, podemos sintetizar esse “novo historicismo”, dando voz ao próprio Glauber, numa
carta a Saraceni de 1962:
9
“Apesar dos argumentos imbecis da propaganda imperialista, não é verdade que a revolução cubana seja
comunista. Se o fosse – digo-o tranqüilamente -, eu não veria nisso mal algum: não é da conta de ninguém. Não
podemos negar a evidência; nada justifica essa “acusação”: nem a situação da ilha, nem o povo cubano, nem a
prática da revolução, nem a ideologia, nem os dirigentes do país, nem a atitude do Partido Comunista Cubano.
Este último, é verdade, considera necessária a revolução e justificadas as medidas adotadas: por isso, apóia o
governo. Mas, de forma alguma, não se deve confundir esta transformação social com aquela que levou Lenine
ao poder, nem mesmo com a que forjou a China de Mao Tse-Tung.” SARTRE, J. – P. Furacão sobre Cuba. Trad.
s.n. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964. pp. 7-8. Podemos também adiantar a relação de Sartre com um
outro evento capital, justo nesta ocasião: a Guerra da Argélia (1954-1962).
10
Numa carta enviada a Saraceni, entre março e maio de 1961, Glauber escreve: “Escrevi um artigo negando o
cinema [com certeza, se refere ao artigo aqui estudado]. Não acredito no cinema, mas não posso viver sem o
cinema. Acho que devemos fazer a revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem
dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Não se esqueça de seu país, veja se politiza o Gustavo [Dahl]. Cuba é o
máximo, eles estão construindo uma civilização nova no coração do capitalismo. São machos, raçudos, jovens
geniais.
Estão fazendo um novo cinema, possuem uma grande revista, vários filmes longos e curtos. Estou
articulando com eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo
política. Agora, neste momento, não credito nada à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar
tudo.
Do contrário eu me suicido.
Estou em processo para isto. Jamais serei um reacionário, um alienado, comprometido com a corrupção,
o capitalismo, a escravidão. Creia-me, com sinceridade.” ROCHA, G. Op. cit. p. 151
88
cinema cubano se devem, justamente, por esse fator. Portanto, apesar de o cineasta baiano
sempre se referir ao povo brasileiro, o fascínio pelos cubanos alarga essa singularidade para
uma extensão continental: a América Latina. Entretanto, como já vimos nas críticas aos
cinemas mexicano e argentino, esse sentimento latino-americano ainda não estava
amadurecido. Talvez, para os olhos de Glauber, caberia ao cinema brasileiro ser o próximo a
tomar o rumo aberto pelo cubano. Ou seja, inculcar nos cineastas brasileiros e, por
conseguinte em seu público, uma urgência para esse processo (“o nosso tempo é pouco”).
Contudo, o grande problema diante da relação “cineasta-público”, que constantemente se
esbarra no dilema de Martins, se deve a uma ausência de conceitos para pensar todo esse
processo. Cuba é o sintoma de que algo está mudando, mas como pensar isso? É o que Sartre
constatou e se esforça em responder... Em sua viagem ao Brasil, ele instigou os intelectuais
locais a pensarem isso. É por tal motivo que Glauber afirma que o filósofo francês viu o nosso
país melhor que nós.11
Vimos que Gonzaga articula o cinema para destruir o pensamento estamental, visando
lançar as bases de um pensamento democrático liberal, a partir do modelo norte-americano.
Assim, nós relacionamos a “problemática gonzaguiana” com a de Tocqueville, aproximando
certos elementos conceituais de seu pensamento. Por outro lado, agora que estamos estudando
Glauber, esbarramos em uma “ausência de conceitos”. Ele se refere a Sartre, porém, o próprio
filósofo francês, por sua vez, reconhece que a sua posição é diametralmente distinta da nossa.
Portanto, para desbaratar esse problema devemos, inicialmente, tentar compreender o que é
essa mudança.
Gomes sintetiza:
11
“Agora, ao apresentar este livro ao público brasileiro, percebo as deficiências de meu trabalho: muitos meses
se passaram e, por outro lado, mudou a perspectiva deste continente. Vista de Paris, Cuba não passa de uma ilha
longínqua. Pode atrair-nos, mas somente a energia de seu povo é capaz de nos empolgar; nossos problemas
diferem completamente dos seus – a França é uma antiga nação colonialista, ao passo que Cuba é uma colônia
que se libertou. Em toda parte, no Brasil – na Bahia, no Rio, em São Paulo, em Araraquara – encontrei uma
juventude arrebatada, cuja primeira pergunta era sempre: “E Cuba ?” E, apesar de todas as características que
distinguem um país do outro, acabei compreendendo que falar aos brasileiros sobre a ilha rebelde cubana era
falar deles próprios.” (os grifos são nossos). SARTRE, J. – P. Op. cit. p 7
89
12
Numa entrevista a Cahiers du Cinéma, Glauber reconhece: “Je pense qu’il faut faire les choses. C’est ce que
pensait Kubistscheck quand il disait: «Il faut faire Brasília». Les économistes disaient que Brasília serait l’échec
économique du Brésil. De fait, la dévaluation a été telle que ça a provoqué une crise économique. Mais Brasília a
été la révolution culturelle du Brésil; aprés cela, le Brésil a pu se débarasser de son complexe du colonialisme.
L’éveil politique et la conscience du sous-développement datent de Brasília. Ce qui est assez contradictoire car
Brasília c’était une sorte d’Eldorado, la possibilité pour les Brésiliens de créer eux-mêmes quelque chose. Si je
parle de ça, c’est aussi parce que le cinéma brésilien est né avec Brasília alors que personne n’y croyait».
Cahiers du Cinéma nº 214, jul 1969, p. 22
90
13
WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. 3 ed Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
14
DIAS, R. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1993
15
IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971
16
LACLAU, E. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo.Trad. João Maia e
Lúcia Klein. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978
91
discussão puramente conceitual sobre o “populismo”, que é um termo vago e difundido (um
problema semelhante ao de Glauber em relação ao “Cinema Novo”), criticando as
interpretações de Ianni e Weffort por as atrelarem necessariamente a um fenômeno social e
histórico específico, a chamada “industrialização por substituição de importações”. Não
estamos preocupados em buscar um conceito apropriado de “populismo” e o seu uso no caso
particular brasileiro, mas em pensar a relação de Glauber com a chanchada.
Lembremos que Glauber não está mais preocupado em pensar a chanchada, usurpando
o leitor de uma definição da mesma e do motivo da rivalidade do Cinema Novo com ela.
Porém, supomos através de seu livro que, ao afirmar que está ocorrendo um processo de
industrialização do cinema brasileiro, a chanchada, encarada como uma etapa histórica
superada, é um cinema pré-industrial. Assim, podemos concluir que: o Cinema Novo está
comprometido com a modernização do país e, portanto, a sua rivalidade inicial com a
chanchada se deve a um “princípio histórico”, ou seja, o compromisso do Cinema Novo é
com uma missão histórica atribuída, de um modo ou de outro, ao cinema em relação ao nosso
país. Portanto, se os “cinemanovistas” são progressistas, a luta inicial com a chanchada se
deve ao fato de ela ser encarada como um obstáculo a ser superado para que o país se
modernize de fato (lembremos do artigo, no qual Glauber frisa o nosso
pseudodesenvolvimento). Por outro lado, concordamos que era comum na época a
interpretação do populismo como uma mera “manipulação de massas”, o que dá espaço à
citada vinculação, criticada por Dias, da chanchada com essa leitura. Contudo, discordamos
de que a leitura de Glauber seja tão simplista assim.17 O que queremos frisar é a passagem do
“Cinema Clássico” para o “Moderno”, que entendemos como fundamental para Glauber,
senão o cineasta baiano não formularia a sua conceitualização de “Cinema Novo” através do
uso do termo “cinema de autor”. Portanto, a mencionada missão histórica do Cinema Novo
também se processa em termos estéticos, apontando para o problemático dilema de Martins (a
relação do artista engajado com o público). O beco sem saída em que cai Glauber se deve ao
fato de ele formular a “problemática brasileira” ainda em moldes políticos clássicos. Como já
afirmamos, estamos diante de uma “ausência de conceitos”. Portanto, seguindo a trilha aberta
por Gomes, como pensar essa “singularidade” presente nos anos JK?
populismo) é a miséria. Ela não somente deve como pode ser erradicada, sendo o
desenvolvimentismo uma “mudança da ordem dentro da ordem”, conforme Limoeiro Cardoso,
enfatizando os perigos das rupturas no quadro político institucional, como era visto o
comunismo. O Brasil estará ao lado das grandes nações ao conseguir superar esse problema,
utilizando-se das atuais técnicas e da associação com o capital estrangeiro, em áreas em que
sejam convenientes ao país. Segundo esse pensamento, o nacionalismo possui um papel
preponderante pelo fato de aliar os segmentos sociais, ao promover, sem rupturas políticas (“a
mudança da ordem dentro da ordem”), o processo de industrialização do país, retirando-o de
seu estado atrasado. Os chamados “segmentos sociais ativos” podem ser resumidos em: a
“burguesia nacional”, a “pequena burguesia” e a “massa proletária”. Seriam esses os
segmentos convocados pelo Estado de JK a realizarem a missão de superar a condição
primitiva que assolava o país, colocando-o no patamar historicamente reservado ao nosso
povo, democrático e trabalhador, manifesto em sua miscigenação e fraternidade. Essa
“ideologia do desenvolvimentismo” foi forjada num determinado espaço institucional, o
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) que, apesar de ter sido oficialmente criado
antes da chegada de Kubitschek à Presidência da República, pode ser entendido como o
criador e difusor das idéias de seu governo, assumindo uma função semelhante, embora de
outro modo, na conturbada gestão de 1961 a 1964 de João Goulart (1919-1976).
Por sua vez, Karl Marx (1818-1883) utiliza esse conceito, mas o interpreta de outro
modo. Hegel não a dotava de um sentido negativo, pois a alienação era uma etapa, um
momento do devir total. Marx adotara um sentido mais ético, pois a alienação é vivida, dando
ao seu pensamento o compromisso de buscar uma destruição da alienação. As suas idéias são
impregnadas de um sentido de luta. Para Hegel, esse processo é efetivado pelo Saber
Absoluto, que é o resultado e, ao mesmo tempo, a supressão das alienações. Ele visa a um
sentido mais otimista, pois a exteriorização da consciência é um momento indispensável de
uma marcha progressiva. Assim, ocorre a totalidade humana, quando a essência se reúne,
porém enriquecida. Em Marx não existe esse acúmulo positivo mas, a intenção de reduzir a
alienação, que é uma experiência concreta dos homens. Não existe um otimismo progressista,
pois não há esse desenrolar da essência humana na História, já que o homem não possui
essência, ele é histórico. Na verdade, a leitura de Marx ao conceito de Hegel é algo um tanto
problemático, pois depende da interpretação dos comentadores e do uso nas fases da obra de
Marx. Por exemplo, somente no século XX, descobriu-se um texto de juventude, que foi
intitulado de Manuscritos de 1844, desconhecido inclusive por Lênin (1870-1924). Esse texto
exerceu um importante papel numa re-leitura do pensamento marxista, revelando uma face
filosófica até então desconhecida do pensador alemão, apenas conhecido por suas secas
18
TOLEDO, C. N. ISEB: fábrica de ideologias. 2 ed. Campinas: Unicamp, 1997
93
análises econômicas das suas obras de maturidade. O hegelianismo é bem acentuado nesses
escritos de juventude.
Assim, o uso do conceito de “Alienação” pelo ISEB pode ser lido como tributário
desse momento de re-leitura do pensamento marxista, mas com um aspecto bem singular: é
colocado em termos nacionais. Nem Hegel nem Marx o utilizavam desse modo. Portanto, um
“povo-nação” pode ser “alienado”, pois o seu ser não é conhecido, sua essência está cindida
pelo fato de utilizar um modelo exterior, o de uma nação estrangeira. Culturalmente, o
subdesenvolvimento também é interpretado nesses moldes já que o “ser brasileiro” está
deslocado, pois o seu referencial são as nações centrais que o condicionam do exterior:
Assim, esse paradigma “colonial” será utilizado para pensar a Revolução Cubana. A
ilha caribenha alcança a sua autonomia enquanto “nação” e “povo” por intermédio dessa
transformação social, e inaugura um novo regime político. Contudo, como já vimos, trata-se
de um procedimento extremamente singular. Diante do mundo bipolarizado da Guerra Fria
(1946-1989), o surgimento de uma mudança sociopolítica fora dos moldes dicotômicos do
cenário internacional é algo que intriga a todos, de ambos os lados. É nesse contexto que as
ex-colônias, no sentido rigoroso do termo jurídico-político, travam a luta por suas
independências, e rompem com uma visão de mundo criada e sistematizada a partir das Luzes,
colocando em cena outros modos de se pensar conforme culturas e povos não-ocidentais. Em
suma, o mundo já não é mais pensando como um Todo, que é disputado por dois pólos
contraditórios e excludentes (capitalismo x socialismo). A Modernidade, até então pensada
nos moldes iluministas, começa a ser questionada... A ausência de conceitos, à qual nos
referimos, é um sintoma dessa transformação que Glauber irá tomar pela mão, sendo coerente
com a sua visão de “missão histórica”.
19
Conforme o célebre livro póstumo A ideologia alemã de Marx e Friedrich Engels (1820-1895) divergindo da
leitura materialista de Ludwig Feuerbach (1804-1872). Assim, não podemos esquecer que a ideologia é
extremamente útil para a manutenção de uma ordem social, historicamente construída, já que tal situação é
“naturalizada”, ao se descaracterizar a sua verdade histórica. Portanto, para Toledo, o ISEB realiza o sentido
inverso, pois a “ideologia do desenvolvimentismo” é proclamada como uma ferramenta para se criar uma
situação que ainda não se realizou. Desse modo, o nacionalismo isebiano é lido, pelo autor, como um equívoco
conceitual, pois a ideologia precede as condições concretas e históricas.
94
20
FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: Gallimard, 1991. Há uma edição brasileira: FANON, F. Os
condenados da terra. Trad. José Laurêncio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
21
SAID, E. Cultura e imperialismo. p. 334. A obra de Fanon é pouca numerosa, mas extremamente densa.
Compõe-se de quatro livros. O primeiro, publicado em 1952, ou seja, antes de ele ir à Argélia, é Peau noire,
masques blancs, onde denuncia o racismo, elemento constitutivo do colonialismo, estudando a relação
Branco/Negro, especificamente nas Antilhas. Dentro do esforço de guerra, publica em 1959, L’an V de la
révolution algérienne que é re-publicado sob o título Sociologie d’une révolution, possuindo, portanto, dois
títulos. Aqui, Fanon analisa as transformações na sociedade argelina devido à guerra, mudando os hábitos da
juventude e das mulheres, o papel revolucionário da Rádio “La Voix de la Algérie combattante” e discute a
relação do médico francês com o paciente árabe e o futuro dos colonos brancos na Argélia independente. Em
1961, poucos meses antes de morrer, vem à luz a sua obra-prima Les damnés de la terre, que descreve o
funcionamento do sistema colonial e o processo de sua destruição, abrindo as portas para uma nova humanidade.
O sucesso do livro é imediato. Transforma-se numa obra cultuada, ao sintetizar as idéias fervilhantes na época
acerca do processo revolucionário da descolonização, preparando um solo fértil para as chamadas teorias do
“terceiro-mundismo”. Diante da consagração póstuma de Fanon, em escala mundial, os editores decidem
publicar uma coletânea de seus textos políticos em 1964, intitulada Pour la révolution africaine. São artigos que
cobrem o seu período intelectual mais rico, da publicação de seu primeiro ao último livro, dando ao leitor a visão
do amadurecimento de suas idéias políticas.
95
A obra de Fanon pode ser lida sob vários modos, pois possui uma extrema riqueza e
uma profunda perspicácia. Porém, como estamos preocupados em analisar as querelas teóricas
de Glauber, vamos analisar conceitos do pensador caribenho para dialogá-los com o cineasta
baiano. Portanto, para articular com o pensamento glauberiano, vamos retirar de Les damnés
de la terre três pontos: a violência, o nacionalismo e o papel da cultura no processo de
libertação.
A idéia que abre a obra-prima de Fanon está sintetizada na seguinte frase: “la
décolonization est toujours un phénomène violent”. Daremos voz ao autor:
La décolonisation ne passe jamais inaperçue car elle porte sur l’être, elle
modifie fondamentalement l’être, elle transforme des spectateurs écrasés
d’inessentialité en acteurs privilégiés, saisis de façon quasi grandiose par
le faisceau de l’Histoire. Elle introduit dans l’être un rythme propre,
apporté par les nouveaux hommes, un nouveau langage, une nouvelle
humanité. La décolonisation est véritablement création d’hommes nouveaux.
Mais cette création ne reçoit sa légitimé d’aucune puissance surnaturelle:
la «chose» colonisée devient homme dans le processus même par lequel elle
se libère. (o grifo é nosso) (FANON, 1991, pp. 66-7)
22
Em dois artigos, L’Algérie se dévoile e La famille algérienne, Fanon estuda as mudanças ocorridas nos hábitos
e nas relações familiares e maritais devido à luta de independência. FANON, F. Sociologie d’une révolution:
L’an V de la révolution algérienne. Paris: Maspero, 1968. pp. 16-50; 83-106
96
«(...) le colonialisme n’est pas une machine à penser, n’est pas un corps doué de raison. Il est
la violence à l’état de nature et ne peut s’incliner que devant une plus grande violence.» (FANON,
1991, p. 92)
Importa frisar que o aspecto fisiológico utilizado pelo autor é mais que uma metáfora.
O homem colonizado é um “subhomem”, pois os efeitos do colonialismo não são apenas
psíquicos, mas somáticos. O corpo do colonizado é um organismo embrutecido, quase
anulando a sua “humanidade”. Aliás, o autor afirma ser essa a meta do colonizador: a
transmutação dos povos autóctenes em seres animalizados. Assim, Fanon enfatiza
clinicamente o alto grau de tensão muscular que existe nesses homens. Animalizados pelas
condições em que vivem, o seu estado psicofísico passa a ser utilizado abundantemente pelas
teorias racistas do colonialismo. Desse modo, seguindo o raciocínio da citação acima, o
colonialismo é uma máquina, cuja essência é a violência que move esse aparato, produzindo
monstros. A perspicácia de Fanon o faz apontar que a violência pode adquirir vários modos.
Portanto, o grande perigo do colonialismo se deve ao fato de ser uma máquina cambiante. As
formas de resistência do colonizado, pois o grande mito do colonizador é crer que não há uma
resposta por parte do colonizado, vão aos poucos modificando o aspecto do colonialismo.
Porém, trata-se da mesma máquina - a violência em seu estado bruto. Assim, o autor chama a
atenção para os perigos ardilosos criados pelo colonizador. Ele adverte que o colonialismo
não cede nada de boa vontade, pois o esforço do colonizador é prosseguir com o seu
monopólio da violência. Portanto, todo o direito que o colonizado recebe do colonizador se
deve a uma árdua conquista por parte da resistência e, em muitos casos, de uma estratégia por
parte do colonizador. Assim, podemos entender o grau de violência que é a descolonização,
pois o seu objetivo é substituir uma atitude global, por outra radicalmente nova, sem passar
por uma fase de transição. Ou seja, trata-se de transformar o mais rápido possível uma
estrutura ontológica antes que o colonizador reaja.
23
Esse texto também se encontra em SARTRE, J. – P. Situations, V: colonialisme et néo-colonialisme. Paris:
Gallimard, 1964. pp. 167-193
97
Portanto, o referencial branco ocidental cristão é rompido, como foi resumido por Said,
criando laços de solidariedade entre os colonizados. Pois bem, como pensar a destruição do
colonialismo? O que pessoas de culturas e povos tão distintos como um árabe do Maghreb,
um libanês, um senegalês, um malgaxe, um vietnamita, um polinésio e um caribenho possuem
em comum? A resposta é o fato de estarem sob a bandeira tricolor francesa. O primeiro ponto
importante é constatar que o colonialismo é uma máquina que funciona do mesmo modo em
qualquer lugar. Assim, podemos compreender como Fanon, sendo um negro antilhano, é
capaz de se engajar na luta de independência de um país árabe norte-africano. O mecanismo
da violência, movido pelo racismo que ele conheceu na Martinica, é exatamente o mesmo na
Argélia. Em suma, o colonizador busca anular ao máximo todas as singularidades dos povos
espalhados pelos continentes, para transformá-los em seres inferiores. Inicialmente, a primeira
forma de definição do colonizado é em referência ao colonizador. As primeiras análises do
colonialismo partem da dialética do Senhor e do Escravo de Hegel. Para o filósofo alemão, há
um confronto entre duas consciências que lutam até a morte por seu reconhecimento até que
uma cede à outra. Surge o senhor que se define como negação do escravo. Contudo, tal
conflito é superado pela afirmação da igualdade pelo escravo, ocorrendo a negação da
negação. Esse processo é uma realização do Espírito Absoluto que, segundo Hegel, sua
síntese ocorre na Revolução Francesa. A crítica do colonialismo utiliza esse arsenal teórico
mas, em vez de se referir a princípios filosóficos desenrolados pela Idéia, trata-se de relações
sociais, políticas e econômicas.24
É relevante notar que Fanon já em sua primeira obra, critica essa interpretação.25
Enquanto o senhor hegeliano busca reconhecimento, o colonizador europeu busca
simplesmente sugar as riquezas do colonizado. Para existir reconhecimento, é necessário uma
relação prévia entre iguais, o que não ocorre na expansão colonial. Assim, o negro se vê
diante da seguinte proposição: ser homem é “ser branco”, e portanto, o negro “não existe”, é
apenas um ser “falhado” e condenado ontologicamente a essa carência. O mesmo
procedimento ocorre com todos os povos subjugados pelo colonialismo. É por isso que, em
seu último livro, Fanon utiliza o linguajar ontológico, para dar a dimensão necessária do
processo de descolonização. O colonizado, de um ente sem essência, se coloca na posição de
demiurgo de si mesmo.
24
A melhor interpretação seguindo esse pensamento hegeliano se encontra em MEMMI, A. Retrato do
colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Trad. Roland Corbisier e Mariza Coelho. 2 ed, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977. É importante lembrar o contexto intelectual do pensamento francês dos anos 40, com
as interpretações da obra de Hegel por Jean Hyppolite e Alexander Kojève. Nesse mesmo período
ocorre a tradução francesa dos já referidos Manuscritos de 1844, do jovem Marx.
25
FANON, F. Peau noire, masques blancs. Paris: Seuil, 1974. pp. 175-0
98
aos novos países africanos e asiáticos.26 Portanto, o conceito de “nacionalismo” não pode ser
lido em sua definição clássica, já que “a fase burguesa” nos países sub-desenvolvidos é
impossível. Contudo, isso não significa cair no outro extremo, os tribalismos que perturbam a
África. O conceito de nação deve vincular-se ao trabalho coletivo de modernização da
economia e da melhoria das condições de vida do povo. Portanto, o país recém-independente
deve rapidamente abandonar a “consciência nacional”, que teve uma função importante no
processo de emancipação, por uma “consciência política e social”.27 É graças a esse raciocínio
que Fanon prega a necessidade de uma unidade entre os países subdesenvolvidos sublinhando,
no caso, a importância de um pensamento pan-africanista. Apesar de cada novo país africano
possuir as suas particularidades, a união desses povos tornam o continente mais sólido e
combativo às armadilhas neo-coloniais. As experiências de cada país no combate à fome, ao
analfabetismo e às doenças infecciosas devem ser compartilhadas, consolidando uma
experiência de fraternidade entre os povos e uma compacta frente política desses países
pobres no contexto internacional. Somente assim é possível evitar os conluios com o ex-
colonizador, pois o colonialismo (ou a sua nova versão) é sistemático. Se ele retornar à África
nem que seja em um único país, todo o continente corre perigo... Assim, o “esforço nacional”
está atrelado a uma “consciência política e social” e, portanto, o conceito de Nação deve ser
interpretado como uma construção (o “esforço nacional”), realizada por pessoas de todas as
camadas sociais, visando criar “homens novos”. Ou seja, uma construção vinculada às
perspectivas de uma nova humanidade em uma distinta etapa da História.
26
“Comment on le voit, la bourgeoise nationale de certains pays sous-développés n’a rien appris dans les livres.
Si elle avait mieux regardé vers les pays d’Amérique Latine, elle aurait sans nul doute identifié les dangers qui
la guettent. On arrive donc à la conclusion que cette micro-bourgeoise qui fait tant bruit est condamnée à
piétinier. Dans les payses sous-développés, la phase bourgeoise est impossible. Il y aura certes une dictature
policière, une caste de profiteurs mais l’élaboration d’une société bourgeoise se révèle vouée à l’échec. Le
collège des profiteurs chamarrés, qui s’arranchent les billets de banque sur le fonds d’un pays miserable, sera
tôt ou tard un fétu de paille entre les mains de l’armée habilment manouevrée par des experts étrangers. Ainsi,
l’ancienne métropole pratique le gourvenement indirect, à la fois par les bougeois qu’elle nourrit et par une
armée nationale, encadrée par ses experts et qui fixe le peuple, l’immobilise et le terrorise.» FANON, F. Op. cit.
p. 216
27
“Le nationalisme n’est pas une doctrine politique, n’est pas un programme. Si l’on veut vraimnet éviter à son
pays ces retours en arrière, ces arrêts ces failles il faut rapidement passer de la conscience nationale à la
conscience politique et sociale. La nation n’existe nulle part si ce n’est dans un programme élaboré par un
direction révolutionnaire et repris lucidement et avec enthousiame par les masses. Il faut situer constamment
l’effort national dans le cadre général des pays sous-développés.» (o grifo é nosso) Idem. pp. 245-6
28
Ibid. pp. 268-0
99
Antes da chegada do homem branco, o continente africano vivia numa “densa noite”, povoado
por bárbaros fetichistas e antropófagos. Homogeneização de culturas e da História; para o
colonizador existem apenas negros que foram resgatados de sua condição bruta do período
pré-colonial.
Para Fanon, a cultura nacional não é uma essência ou uma coletânea de costumes e
hábitos. É a partir da libertação que o intelectual deve criar e engendrar a cultura. O problema
da segunda fase é o seu passadismo, se caracterizando em uma visão fechada, sistemática e
reacionária. O motivo principal disso é a cisão que ainda há entre o intelectual e o seu povo. A
conclusão de Fanon é que, sendo a descolonização um processo contínuo e aberto, a
libertação possui várias etapas. O autor afirma que o povo, diante das novas realidades criadas
pelo movimento libertário, se transforma mais rápido que o próprio intelectual, que é receoso
em abrir mão de conceitos já consolidados.29 Portanto, cabe ao intelectual se transformar para
mudar a sua relação com o seu povo. Assim, a própria definição de “cultura” deve ser distinta
pois a descolonização, como já vimos, é uma mudança de ordem global:
(...) Quels sont les rapports qui existent entre la lutte, le conflit – politique ou
armé – et la culture? Durant le conflit, y a-t-il suspension de la culture? La
lutte nationale est-elle une manifestation culturelle? Faut-il enfin dire que le
combat libérateur quoique fécond a posteriori pour la culture, est en lui-même
une négation de la culture? La lutte de libération est-elle, oui ou non, un
phénomène culturel?
Nous pensons que la lutte organisée et consciente entreprise par un peuple
colonisé pour rétablir la souveraineté de la nation constitue la manifestation
la plus pleinement culturelle qui soit. Ce n’est pas uniquement le succès de la
lutte qui donne par la suite validité et viguer à la culture, il n’y pas mise en
hibernation de la culture pendant le combat. La lutte elle-même, dans son
déroulement, dans son processus interne développe les différentes directions
de la culture et en esquisse de nouvelles. La lutte de libération ne restitue pas
à la culture nationale sa valeur et ses contours anciens. Cette lutte qui vise à
29
Uma interessante análise é o citado artigo L’Algérie se dévoile, onde o sentido do tradicional uso do véu se
transforma no transcorrer da guerra de independência (ver nota 36).
100
(...) La revendication nationale, dit-on ça et là, est une phase que l’humanité
a dépassé. L’heure est aux grands ensembles et les attardés du nationalisme
doivent en conséquence corriger leurs erreurs. Nous pensons au contraire
que l’erreur, lourde de conséquences, consisterait à vouloir sauter l’étape
nationale. Si la culture est la manifestation de la conscience nationale, je
n’hésiterai pas à dire, dans le cas qui nous occupe, que la conscience
nationale est la forme la plus élaborée de la culture.
La conscience de soi n’est pas fermeture à la communication. La réflexion
philosophique nous enseigne au contraire qu’elle en est la garantie. La
conscience nationale, qui n’est pas le nationalisme, est la seule à nous donner
dimension internationale. (FANON, 1991, pp. 295-6)
30
A admiração intelectual de Said por Fanon se deve a esse aspecto muito importante e perspicaz: “Fanon foi o
primeiro grande teórico do antiimperialismo a perceber que o nacionalismo ortodoxo seguia a mesma linha
aberta pelo imperialismo, que, parecendo conceder autoridade à burguesia nacionalista, estava na verdade
estendendo a sua hegemonia. Portanto, narrar uma história nacional simples é repetir, estender e também gerar
novas formas de imperialismo. Entregue a si mesmo, o nacionalismo após a independência irá “se esmigalhar em
regionalismos dentro da casca vazia do nacionalismo”. Os velhos conflitos regionais se repetem, um povo
monopoliza privilégios contra outro povo, reinstauram-se as hierarquias e divisões constituídas pelo
imperialismo, só que agora presididas por argelinos, senegaleses, indianos e assim por diante.” SAID, E. Op. cit.
p. 337-8
101
enquanto que a resposta correta é voltar-se para o presente do povo combatente, que se lança
furiosamente em direção ao futuro...
Afirmamos que Glauber, no início dos anos 60, estava diante de um grande problema:
definir o que é “Cinema Novo”. Podemos encontrar, definitivamente, a sua resposta num dos
seus mais célebres textos: Estética da Fome.31 Glauber o escreveu para o seminário “Terzo
Mondo e Comunnità Mondiale”, organizado pela Columbianum, durante a V Rassegna del
Cinema Latino-Americano, realizada em Gênova em janeiro de 1965. O tema, proposto pelo
secretário Aldo Viganó, era “Cinema Novo e Cinema Mundial”. Já vimos que em seu livro de
1963, Glauber esboça uma relação entre o cinema internacional e o brasileiro, lendo-a
segundo o termo de “cinema de autor”. Esse termo busca enfrentar o dilema exposto por
Martins, que pressiona a cabeça de Glauber, mas não consegue resolvê-lo totalmente. Por
outro lado, o conceito de mise-en-scène faz com que Glauber ponha o problema de Martins
em outros termos, conseguindo fugir da velha dicotomia “forma-conteúdo”, que ainda se
encontra presente em Cavalcanti e Viany. Isso é um grande mérito de Glauber, mas ele cai
num embaraço ao pensar o que seria tal mise-en-scène em “termos brasileiros”. O problema,
como mencionamos, é antigo e vasto pois o que se está discutindo é o conceito de
“brasilidade”. Mauro é apanhado como um modelo, frisando o uso do enquadramento e da
fotografia pelo cineasta mineiro. Contudo, o próprio Glauber amarra Mauro a uma situação
histórica. O fascinante, e ao mesmo tempo o embaraçoso, da problemática glauberiana é a sua
consciência do momentâneo; dito de outro modo, a sua percepção de que é urgente pensar o
significado de cinema brasileiro naquele determinado período histórico, no início dos anos
1960, após a exaustão da chanchada e da queda do cinema paulista. Glauber vê, como um
integrante ativo daquela “juventude arrebatada”, que as coisas já não eram mais as mesmas ao
seu redor. Portanto, os conceitos de Fanon são absorvidos e processados pela cabeça ávida do
cineasta baiano pelo fato de serem o que ele necessitava para articular a sua questão, re-
colocando-a em outros termos e apontando um caminho, escapando do beco sem saída em que
se encontrava. É comum encontrar nos estudos sobre Glauber a referência a Fanon, sobretudo
nesse célebre texto, porém não conhecemos nenhum estudo aprofundado dos conceitos
fanonianos na obra de Glauber. O que queremos dizer é que o teórico antilhano é bastante
citado mas é muitíssimo pouco estudado nos meios acadêmicos brasileiros, resumindo-se sua
importância no pensamento de Glauber, praticamente, a uma mera referência.32
Em sua primeira frase, Glauber afirma que dispensa uma “introdução informativa”
acerca da América Latina. O autor argumenta que tais “introduções” são ineficazes, pois não é
possível construir um diálogo entre o europeu e o latino-americano pelo fato de não existir um
campo comum de conceitos e de condições (uma coisa está atrelada a outra):
31
ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. pp. 28-33
32
O único estudo mais alentado do tema, que conhecemos, é o realizado por Avellar, mas, no qual Glauber é
inserido na teoria cinematográfica latino-americana. Assim, Fanon acaba sendo mais analisado em sua influência
no conceito de tercer cine dos cineastas Fernando Solanas (1936- ) e Octavio Getino (1935- ) do que no
próprio Glauber. AVELLAR, J. C. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa,
Sanjinés, Alea – Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed 34/Edusp, 1995
102
Glauber não somente se defronta com o colonizador “de fato”, mas com colonizados
presos ao pensamento colonialista. Portanto, o autor, ao assumir a sua posição de colonizado,
não apenas se preocupa com o “observador europeu”, que nos olha como seres exóticos, mas
também com o colonizado acuado pelas ameaças que o rondam, sobretudo, as armadilhas
articuladas pelos colonizados comprometidos com o colonizador (podemos nos lembrar da
dura crítica de Fanon às burguesias nacionais). Não podemos esquecer que esse texto é escrito
após o Golpe de 64 e, portanto, bem distinto das efusivas esperanças que vimos nas cartas de
Glauber. Assim, esse texto é uma reflexão a posteriori, visando criar um conceito para o
termo “Cinema Novo” como o seu livro de 1963, mas o clima é o mais sombrio possível.
Enquanto no livro, Glauber está receoso com a banalização do termo, no texto de 1965, diante
dos militares no poder, as previsões são piores. Glauber ainda utiliza uma entonação
perspectiva (“daqueles que também armam futuros botes”), o que podemos supor um certo
perigo que ronda a América Latina (o golpe no Brasil pode ser o indício de um processo a ser
debelado em proporções continentais, embora cremos que em janeiro de 1965 essa “ameaça
golpista” ainda não era totalmente clara) e, fundamentalmente, as ameaças que pairam sobre o
cinema brasileiro com os “universalistas”, descendentes do cinema paulista, à frente dos
órgãos governamentais. Cabe afirmar que o I.N.C., que vimos ao estudar Cavalcanti, é
definitivamente criado em novembro de 1966 pelos militares através de um Decreto-lei, sendo
Flávio Tambellini (1927-1976) um dos seus principais idealizadores. Por outro lado, o mais
importante é que, em 1965, não se trata mais de afirmar a existência e coerência de algum
movimento, pois o Cinema Novo já estava consolidado, possuindo inclusive uma ampla
visibilidade internacional. Portanto, o relevante não era legitimar um grupo de filmes ou de
cineastas mas extrair dessa filmografia um conceito comum. Assim, a posse desse conceito,
em 1965, é um instrumento de resistência (e não de legitimidade, como em 1963) pois o
futuro do cinema brasileiro está nas mãos dos adversários do Cinema Novo.
Reconhecendo que a América Latina ainda é uma colônia, apesar de sua condição
jurídico-política de Estados soberanos, os efeitos do colonialismo podem ser identificados na
esterilidade e na histeria. Aqui, é possível estabelecer uma analogia com o quadro fanoniano
da cultura colonial. O que Glauber intitula de “esterilidade” seria a primeira fase de Fanon, a
de “assimilacionismo integral”. O artista colonizado é movido por juízos universais,
aplicando regras forjadas na metrópole. Assim, as obras são apenas homólogas, sem possuir
nenhum vigor e caindo na frustração (o caso Vera Cruz é evocado) ou num teatro de sombras:
Trata-se de uma cultura postiça, pois é apenas o puro esmero de veleidades formais.
Em suma, não possui nenhum vínculo autêntico com as relações entre os homens do povo do
qual o intelectual faz parte. O segundo item é a “histeria”, no qual Glauber aborda,
implicitamente, vários elementos:
104
Nesse tópico, o artista colonizado abre os olhos para a situação colonial em que vive.
Podemos notar uma referência ao CPC e ao chamado “folclorismo” de Fanon. Estamos diante
da sua segunda fase, quando o intelectual se volta para o seu povo, mas possui uma relação de
exterioridade com ele. Glauber vê que o intelectual colonizado se esfalfa na impotência
enquanto que o colonizador o encara como um ser exótico e carente de assistencialismo. Esse
algo que o latino-americano sofre é chamado por Glauber de fome. Eis o nervo dessa
sociedade, sendo ela a originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial.
Encontramos o primeiro critério teórico na definição do termo “Cinema Novo”. Porém, essa
fome é sentida e não compreendida, ou seja, não há um uso racional dela e, portanto, se
manifesta de um modo praticamente orgânico. Lembremos que o homem colonizado é um ser
monstruoso, embrutecido.
Para combater o Cinema Novo, que expõe a fome, Glauber se refere a um “cinema
digestivo”, apegado a um formalismo visando esconder o que se chama de “miserabilismo”
dos filmes cinemanovistas. Assim, Glauber denuncia a política oficial do novo governo
brasileiro, que está nas mãos dos adversários do Cinema Novo. O chamado “cinema
digestivo” é uma ardilosa e a mais recente estratégia do colonialismo, para conservar esse
mundo violento e maniqueísta. Assim nos encontramos com um outro critério teórico, a que já
nos referimos, na definição de “Cinema Novo”: a relação com a Verdade:
movimento: o Cinema Novo não possui conceitos estéticos fechados e consolidados, mas
conceitos em movimento, conforme o panorama que Glauber traça (que é composto tanto por
sucessos como por frustrações, o que o torna num autocrítico do próprio movimento
cinemanovista). Essa transitoriedade presente nos filmes do Cinema Novo é articulada com o
período histórico que Glauber sublinha não ser “por acaso” os anos Jânio-Jango. Assim, o
“Golpe de Abril” é encarado como um refluxo nessa marcha histórica, que podemos constatar
na firme esperança presente em seu livro de 1963, sobretudo em seu último capítulo. Por isso,
é possível identificar as três fases fanonianas em Estética da Fome, dando um vasto leque de
toda a cultura brasileira, situado o Cinema Novo na fase de combate. Assim, o cineasta baiano
se aproxima do teórico antilhano ao definir essa última fase como um movimento contínuo e,
portanto, podemos deduzir que a sua definição de “Cinema Novo” não será uma fórmula
pronta.
“Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.” (ROCHA, 1981, p. 31)
33
“L’homme colonisé se libère dans et par la violence. Cette praxis illumine l’agent parce qu’elle lui indique les
moyens et la fin» FANON, F. Op. cit. p 118. As críticas de Glauber às autoridades governamentais, elogiando,
por outro lado, o Cinema Novo por seu ato de imposição, evoca o reconhecimento de Fanon da “má fama” de
falta de polidez dos dirigentes e diplomatas dos países recém-independentes que tanto chocavam os
“civilizados”: “Les hommes au pouvoir [destes novos países] passent les deux tiers de leur temps à surveiller les
alentours, à prévenir le danger qui les menace, et l’autre tiers à travailler pour le pays. (...) L’atmosphère de
violence, après avoir imprégné la phase coloniale, continue de dominer la vie nationale. Car, nous l’avons dit,
le Tiers-Monde n’est pas exclu. Bien au contraire il est au centre de la tourmente. C’est pourquoi, dans leurs
discours, les hommes d’Etat des pays sous-développés maintiennent indéfiniment le ton d’agressivité et
d’exaspération qui aurait dû normalement disparaître. L’on comprend également l’impolitesse si souvent
signalée des nouveaux dirigeants. Mais ce que l’on voit moins, c’est l’extrême courtoisie de ces mêmes
dirigeants dans leurs contacts avex les frères ou les camarades. L’impolitesse est d’abord une conduite aves les
autres, avec les anciens colonialistes qui viennent voir et enquêter. (...) L’enquête se propose de vérifier l
évidence: tout va mal là-bas depuis que nous n’y sommes plus. (...) Le radicalisme des porte-paroles africains
[na Assembléia Geral da O.N.U. em 1960] a provoqué le mûrissement de l’abcès et a permis de mieux voir le
caractère inadmissible des veto, du dialogue des Grands, et surtout le rôle infime réservé au Tiers-Monde.»
Idem pp 108-9. É possível reconhecer esse tom de descortesia no próprio texto de Glauber, ao dispensar a
“introdução informativa” para marcar, logo de início, o princípio de incomunicabilidade com a sua platéia.
106
pega em armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o
francês percebesse um argelino.”). Portanto, podemos identificar que o Cinema Novo possui
um princípio ontológico: ele constrói uma definição para o colonizado a partir da estrutura
conceitual na qual está articulado o mundo colonial - a violência. Outro aspecto é que dessa
ontologia Glauber deduz uma moral: o amor, mas “não um amor de complacência ou de
contemplação, mas um amor de ação e transformação.” A violência do colonizado visa
destruir o colonialismo e pensar o mundo de outro modo (ação e transformação).
Portanto, Glauber reconhece que o Cinema Novo está diante de uma nova etapa.
Voltamos a repetir, a definição buscada pelo autor não é lida segundo um molde estático:
Assim, o que é “Cinema Novo” para Glauber? O primeiro aspecto fundamental, que já
assinalamos, é notar que se trata de uma ação coletiva e em movimento (um “projeto”, como
chama o autor). Desse modo, em janeiro de 1965, por causa da situação política brasileira, o
Cinema Novo se encontra diante de uma nova realidade. Aliás, o próprio seminário realizado
em Gênova demonstra a visibilidade do movimento. Portanto, muito distinto de seu livro,
Glauber não necessita mais legitimar o Cinema Novo, o que fez através de Mauro, mas refletir
o Cinema Novo para o próprio Cinema Novo, realizando uma auto-análise e uma autocrítica.
O embate com o colonizador se encontra num outro nível, realizando uma passagem
qualitativa no movimento. Portanto, o primeiro ato é dar visibilidade, pela contra-violência,
do colonizado para o colonizador, pois lembremos que o colonizador cria o mito de que o
colonizado não oferece resistência. A realização desse seminário na Europa sobre os cinemas
do Terceiro Mundo é uma evidência dessa visibilidade. Glauber amplia o projeto
“cinemanovista” em proporções continentais, não se restringindo mais à “problemática
brasileira”, como vimos anteriormente. É “um fenômeno dos povos colonizados”, integrando
o caso brasileiro num ato de libertação de toda a América Latina. Portanto, o Cinema Novo
brasileiro não pode ser isolado de uma ação política e econômica para o continente latino-
americano, embora Glauber continue sobretudo preocupado com os rumos do cinema
brasileiro. O “cinema digestivo” ameaça o futuro do cenário cinematográfico nacional,
tratando-se de uma reação aos cinemanovistas. Vimos na correspondência de Glauber a sua
107
admiração ao povo cubano e uma inquietude, o que demonstra uma esperança depositada num
futuro recente do cinema brasileiro (que foi frustrada com o golpe). Por outro lado, também
vimos que Glauber se choca com o dilema de Martins, e prega aos seus companheiros abrirem
mão de veleidades estéticas, pois o que move o nosso cinema é uma questão ética. Assim, o
que queremos dizer é que podemos reconhecer os mesmos aspectos (estética e ética) em
Estética da fome, mas a originalidade desse texto é o princípio ontológico que estava faltando
ao Glauber. Desse modo, com os conceitos de Fanon, Glauber re-estrutura o seu problema em
outros termos (colonizador x colonizado), dando um outro rumo ao seu raciocínio.
34
XAVIER, I. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome.São Paulo: Brasiliense, 1983
35
Também podemos notar um monismo em Tocqueville (aqui no caso, entendido como um ocidentalismo). São
significativas as notas de Said sobre o pensador francês, demonstrando que não é paradoxal o fato de ele ser,
simultaneamente, democrata e imperialista: “A destruição que os franceses praticaram contra a Argélia foi, de
um lado, sistemática e, de outro, constitutiva de uma nova ordem social francesa. Ninguém, nenhuma
testemunha das décadas de 1840 a 1870, tinha dúvidas a esse respeito. Alguns, como Tocqueville, que criticou
severamente a política americana em relação aos negros e aos índios autóctenes, acreditava que o avanço da
civilização européia exigia que se infligissem crueldades aos indigènes muçulmanos: a seu ver, a conquista total
era equivalente à grandeza da França. Ele considerava o islamismo sinônimo de “poligamia, o isolamento das
mulheres, a ausência de qualquer vida política, um governo tirânico e onipresente que obriga os homens a se
esconder e a buscar todas as suas satisfações na vida familiar”. E como achava que os nativos eram nômades, ele
acreditava “que deveriam ser empregados todos os meios de devastar essas tribos. Faço uma exceção apenas para
os casos interditados pelo direito internacional e da humanidade”. Mas, como diz Melvin Richter, Tocqueville
não se pronunciou “em 1846, quando se revelou que centenas de árabes haviam sidos asfixiados por fumaça
durante as razzias que ele aprovara por seu humanitarismo”. “Uma infeliz necessidade”, pensava Tocqueville,
mas de forma alguma tão importante quanto o “bom governo” que os franceses deviam exercer para os
muçulmanos “semicivilizados”. SAID, E. Op. cit. p. 236
109
cinematográfica, rompendo com uma visão rígida de conceitos construídos e bem definidos. É
o que vemos nos “Jovens Turcos”, porém os franceses não acentuam um tom político, isto é,
não estão preocupados com as singularidades nacionais, pois eles isolam o cinema de seu
contexto sócio-histórico pelo fato de ainda estarem presos a uma concepção extremamente
européia de Nação (e por conseguinte, de nacionalidade), dito de outro modo, não há a
distinção fanoniana entre “nacionalismo” e “consciência nacional”, que é o caminho para a
“consciência social e política” dentro do que ele chama de “esforço nacional”.
Fanon se volta para o contexto colonial, e percebe que deve criar todo um arsenal
teórico original para dar conta dele. O mesmo podemos falar de Glauber. Ele se tornou
célebre como um intelectual que, apesar de transitar por várias teorias e articular diversos
conceitos, sempre se voltou para as singularidades do povo brasileiro (e também, para os
chamados “povos colonizados”). Em Estética da fome, o cineasta baiano afirma que o Cinema
Novo não é um grupo de cineastas (que inicialmente se reunia no Alcazar) mas um ato global
que articula ontologia, estética, ética e política, visando dar, primeiramente, consistência e
visibilidade ao colonizado para si e para o colonizador. A próxima etapa é a efetivação da
libertação, na qual ocorrerá o fim tanto do colonizador como do colonizado (o que Glauber
busca explicitamente em seus filmes no exílio). Portanto, a nossa conclusão é que o
instrumental teórico de Fanon ofereceu elementos para a resolução da questão primordial que
atormentava o jovem Glauber Rocha: criar uma rica e ampla definição de “Cinema Novo”,
retirando-a das mãos de seu forjador, um adversário e resolvendo, inicialmente, um problema
de legitimidade. Assim, Glauber abre portas para um novo modo de se pensar o cinema
110
36
Na verdade, esse novo pensamento segue uma tendência de conjuntura mundial (o Nuevo cine
latinoamericano, o Junge Deutsche Film, o Free Cinema inglês, os cinemas árabe e africano) mas é evidente que
existem as devidas particularidades. Sobre o cinema na América Latina: “A confluência desses três fenômenos –
assimilação do neo-realismo, condensação de uma cultura cinematográfica, explosão do nacionalismo
desenvolvimentista – desemboca na constituição de um novo conceito de modernidade. Para os cineastas das
novas gerações, a modernidade deve estar inscrita na própria linguagem do filme, no corpo da obra. Assim, o
cinema passa a estar mais entrosado com as tendências contemporâneas da literatura, teatro e música. Coexistem,
é bem verdade, projetos diferentes.” PARANAGUÁ, P. Cinema na América Latina: longe de Deus e perto de
Hollywood. Porto Alegre: L & PM, 1984. p. 73
111
CONCLUSÃO
Em seu texto Ciclos ou crises, de outubro de 1987, Carlos Diegues discute a escrita de
uma história do cinema brasileiro, na ocasião da reedição de Introdução ao cinema brasileiro
de Alex Viany.1 Inicialmente, afirma a importância desse livro que marcou a sua geração. Foi
por seu intermédio que os futuros realizadores do Cinema Novo encontraram uma “certa
tradição à qual nunca nos haviam remetido, por ignorância e também por preconceito”.
Adquirido tal raciocínio de continuidade (há uma história do cinema brasileiro), Diegues
afirma que sempre se escreveu a história do cinema brasileiro comprometido com dois
conceitos-chave: brasilidade e progresso.
E acrescenta:
Porque, muito além da questão de uma arte nacionalista, o filme talvez seja
o único produto da indústria cultural brasileira a se desenvolver (com
raríssimos, escassos e desimportantes momentos de exceção), tanto nos
meios de produção quanto nos de difusão, fiel a uma política de economia
nacional, em franca oposição e conflito com a produção estrangeira
consumida no País.
Ilusão? Necessidade? Equívoco? Não sei. Mas é preciso que, um dia,
alguém nos esclareça isso. (os grifos são do autor) (DIEGUES, 1999, pp.
94-5)
A questão fica suspensa. O significativo dessa pergunta é a quem ela visa. Bernardet,
em Historiografia clássica do cinema brasileiro, constata, como o próprio Diegues, que
sempre se privilegiou o ponto de vista da produção na historiografia do cinema brasileiro.2
Também questiona o primado de Rio de Janeiro e São Paulo, nem sempre coincidentes quanto
a seus exponenciais de produção (como no que ele chama de mito da “Bela Época”) sobre
uma proclamada história do cinema brasileiro. Concordamos que essa atenção ao eixo Rio-
São Paulo se constata em outras historiografias, mas o que nos interessa aqui é a aceitação por
Diegues da metodologia utilizada por Viany ao escrever uma história do lado da produção.
Contudo, Diegues faz ressalvas ao uso do termo “ciclo” por Viany, que descreve o
cinema brasileiro como “aparentes “ciclos” que se abrem retumbantes e se fecham
melancólicos”. Criterioso, Diegues esboça outros prováveis recortes dessa História:
Ele [o leitor atento] pode descobrir, por exemplo, que não eram tão “cíclicos”
esses sistemas de produção. Ou seja, que a história do cinema brasileiro não
tem sido, como se supõe, uma sucessão de esperanças e fracassos fechados
em si mesmas, a história de uma improbabilidade violentada pela energia de
uns poucos, durante algum tempo.
Não, isso não é verdade. Podemos, pelo contrário, traçar linhas de coerência
que vão, por exemplo, da fundação da Cinédia no final dos anos 20 até a nova
Vera Cruz dos irmãos Khoury (sic) nos anos 60, passando pela velha empresa
de Zampari, pela Maristela Sonofilmes, etc.; ou uma outra que vai do projeto
original da Atlântida (o de Moacir Fenelon) em 1941 até a fundação da Difilm
em 1965 ou da Cooperativa Brasileira de Cineastas no final dos anos 70; ou
1
DIEGUES, C. Op. cit. pp. 93-97
2
BERNARDET, J. - C. Op. cit
112
mais uma, que sai do projeto trazido por Alberto Cavalcanti depois da guerra,
passa pelo Instituto Nacional de Cinema e termina na Embrafilme de hoje em
dia. (DIEGUES, 1999, p. 95)
Assim, estudamos que Mauro se vincula a uma exigência lógica nos discursos de
Glauber e Gonzaga segundo a qual, a necessidade de uma produção cinematográfica nacional
é um modo de se pensar a modernidade no Brasil. Privilegiamos o aspecto funcional exercido
através da figura de Mauro nesses pensamentos. Poderíamos haver analisado o prolongamento
dessa exigência de Glauber nos estudos sobre Mauro realizados por Viany e Salles Gomes,
nos quais encontramos a sistematização do princípio glauberiano posto em seu livro de 1963.
Também poderíamos ter estudado a relação desse novo pensamento cinematográfico
brasileiro em seu viés de produção, sobretudo na relação com a Embrafilme dos militares. Por
outro lado, poderíamos ter estudado a relação de Mauro com Gonzaga, delimitando o seu
desenrolar e as respectivas singularidades de cada um dos interlocutores.
Vimos que Glauber segue um movimento teórico que visa re-definir o nosso cinema,
como o livro de Viany e o artigo de Salles Gomes.Assim, Glauber vincula Mauro a uma outra
questão: definir o que é “Cinema Novo”. Assim, o “cinema de autor” é o conceito utilizado, e
114
pelo qual Mauro é interpretado, para a discussão da modernidade, alcançando um novo teor
através dos conceitos de Fanon. Entretanto, Gonzaga ao defender a produção de “posados”,
esboçando um critério estético-temático ao privilegiar o campo feminino, articula Mauro em
sua luta contra o pensamento estamental. As críticas de Gonzaga à “cavação” e as de Glauber
à chanchada devem ser analisadas segundo as lógicas de seus discursos. É possível aproximar
ambos, Glauber e Gonzaga, por entenderem os seus respectivos objetos de rejeição como
“filme ruim e mal-feito”, porém há uma distinção. A “cavação” é um desvio no conceito de
Cinema, enquanto a chanchada é um fenômeno de uma determinada situação histórica, que foi
superada pelo Cinema Novo. Assim, o pensamento historicista do discurso “cinemanovista”
derruba o monismo, que passa a ser interpretado como algo nocivo e politicamente perigoso.
Assim, Humberto Mauro, em sua carreira de cinqüenta anos, torna-se uma figura que passou
por várias fases do cinema brasileiro, do mudo à Embrafilme, sendo consagrado como um
ícone de toda essa trajetória. É evidente que vários outros cineastas também passaram por tais
fases mas, como certos itens são privilegiados, a própria obra maureana foi remanejada
segundo uma lógica. Desse modo, ele passa a ser visto como um inaugurador, um homem
cuja vida, por intermédio de seus percalços, se confunde com a própria definição de cinema
brasileiro. Porém, é significativa a desatenção aos seus filmes da primeira fase do I.N.C.E.,
assim como de seus filmes produzidos por Carmem Santos (que é até compreensível pelo fato
de os filmes terem sido perdidos). Mas será que, pelo fato de tais filmes serem proto-
chanchadas, não foi determinante para o seu obscurantismo? A idéia de ver Mauro realizando
tal gênero de filme não é um tanto incômodo? Vimos que Viany exalta um deles por um
aspecto puramente temático, sendo uma postura bem distinta da de Glauber, cuja ferramenta
conceitual é a mise-en-scène.
Portanto, ver (e se apaixonar por) Humberto Mauro, cuja obra é tão multifacetada
como a nossa cinematografia, é interrogar sobre nós mesmos e sobre os vários modos de nos
pensarmos cinematograficamente...
115
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120
FILMOGRAFIA CITADA
ABSOLUTAMENTE CERTO
Longa-metragem Brasil 1959
Direção: Anselmo Duarte
Roteiro: Anselmo Duarte e Talma de Oliveira
Fotografia: Chick Fowle
Montagem: José Cañizares
Produtora: Cinedistri
Elenco: Anselmo Duarte, Maria Dilnah, Dercy Gonçalves, Odete Lara, Aurélio Teixeira
AGULHA NO PALHEIRO
Longa-metragem Brasil 1953
Argumento, Roteiro e Direção: Alex Viany
Fotografia: Mário Pagés
Montagem: Rafael Justo Valverde, Mario del Rio e Alex Viany
Produtora: Flama Filmes
Elenco: Fada Santoro, Roberto Batalin, Dóris Monteiro, Hélio Souto
ARUANDA
Curta-metragem Brasil 1960
Argumento, Roteiro e Direção: Linduarte Noronha
Fotografia e Montagem: Ruelker Vieira
Produtora: INCE, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Associação de Críticos
Cinematográficos da Paraíba e Secretaria de Estado de Educação e Cultura (Paraíba)
ARRAIAL DO CABO
Curta-metragem Brasil 1959
Direção e Roteiro: Paulo César Saraceni
Fotografia: Mario Carneiro
Produtora: Saga Filmes
BARRAVENTO
Longa-metragem Brasil 1961
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Glauber Rocha, José Telles de Magalhães e Luiz Paulino dos Santos
Fotografia: Tony Rabatoni
Montagem: Nelson Pereira dos Santos
Produtora: Iglu Filmes
Elenco: Antonio Sampaio (Pitanga), Luiza Maranhão, Lucy Carvalho, Aldo Teixeira
BARRO HUMANO
Longa-metragem Brasil 1929
Direção e Argumento: Adhemar Gonzaga
Roteiro: Paulo Wanderley
Fotografia: Paulo Benedetti
Elenco: Gracia Moreno, Lelita Rosa, Eva Schnoor, Eva Nil, Carlos Modesto, Raul Schnoor.
Produtora: Cinearte e Benedetti Filmes
121
BRAZA DORMIDA
Longa-metragem Brasil 1928
Direção, Argumento e Roteiro: Humberto Mauro
Fotografia: Edgar Brasil
Produtora: Phebo Brasil Film
Elenco: Nita Ney, Luiz Soroa, Máximo Serrano, Pedro Fantel
OS CAFAJESTES
Longa-metragem Brasil 1962
Direção: Ruy Guerra
Roteiro: Ruy Guerra e Miguel Torres
Fotografia: Tony Rabatoni
Montagem: Nello Melli
Produtora: Jece Valadão e Magnus Filmes
Elenco: Jece Valadão, Daniel Filho, Norma Bengell, Luci Carvalho
CAMINHOS
Curta-metragem Brasil 1957
Direção e Roteiro: Paulo César Saraceni
Fotografia: Haroldo Martins e Luís Lima
Elenco: Lisete Fernandez, Paulo César Saraceni, Adele Araújo, Virgínia Beltrão
O CANGACEIRO
Longa-metragem Brasil 1953
Direção e Argumento: Lima Barreto
Roteiro: Lima Barreto e Raquel de Queiroz
Fotografia: Chick Fowle
Montagem: Oswald Haffenrichter
Produtora: Cia Cinematográfica Vera Cruz
Elenco: Alberto Ruschel, Marisa Prado, Milton Ribeiro, Vanja Orico
CANTO DA SAUDADE
Longa-metragem Brasil 1952
Direção, Argumento e Roteiro: Humberto Mauro
Fotografia: José de Almeida Mauro
Montagem: Luiz Mauro
Produtora: Estúdio Rancho Alegre
Elenco: Cláudia Montenegro, Mário Mascarenhas, Humberto Mauro, Alfredo de Almeida
COURO DE GATO
Curta-metragem, posteriormente incluído como o 4º episódio do longa Cinco vezes favela
Brasil 1960
Direção e Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade
Fotografia: Mário Carneiro
Montagem: Jacqueline Aubrey
Produtora: Saga Filmes
Elenco: Cláudio Correia e Castro, Riva Nimitz, Henrique César, Napoleão Muniz Freire
CRUZ NA PRAÇA
122
EXEMPLO REGENERADOR
Curta-metragem Brasil 1919
Direção e Argumento: José Medina
Fotografia: Gilberto Rossi
Produtora: Rossi Filme
Elenco: Lucia Laes, Waldemar Moreno, José Guedes de Castro, Carlos Ferreira
GANGA BRUTA
Longa-metragem Brasil 1933
Direção e Roteiro: Humberto Mauro
Argumento: Octávio Gabus Mendes
Fotografia: Afrodísio P. de Castro
Produtora: Cinédia
Elenco: Durval Bellini, Déa Selva, Lu Marival, Décio Murillo, Andréa Duarte
A GRANDE FEIRA
Longa-metragem Brasil 1961
Direção, Roteiro e Montagem: Roberto Pires
Argumento: Rex Schindler
Fotografia: Hélio Silva
Produtora: Iglu Filmes
Elenco: Luiza Maranhão, Geraldo del Rey, Helena Ignez, Antonio Sampaio (Pitanga)
O GRANDE MOMENTO
Longa-metragem Brasil 1958
Direção e Argumento: Roberto Santos
Roteiro: Roberto Santos e Norberto Nath
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: João de Alencar
Produtora: Nelson Pereira dos Santos
Elenco: Gianfrancesco Guarnieri, Miriam Pérsia, Paulo Goulart, Vera Gertel
123
JANELA INDISCRETA
(Rear window)
Longa-metragem E.U.A. 1954
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: John Michael Hayes
Argumento: Cornell Woolrich
Fotografia: Robert Burks
Montagem: George Tomasini
Produtora: Paramount e Patron Inc.
Elenco: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter
LIMITE
Longa-metragem Brasil 1931
Direção, Argumento, Roteiro e Montagem: Mário Peixoto
Fotografia: Edgar Brasil
Produtora: Mário Peixoto
Elenco: Olga Breno, Taciana Rei, Raul Schnoor, Mário Peixoto, Brutus Pedreira
MANDACARU VERMELHO
Longa-metragem Brasil 1960
Direção, Argumento e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Nello Melli
Produtora: Nelson Pereira dos Santos
Elenco: Nelson Pereira dos Santos, Sônia Pereira, Ivan de Souza, Miguel Torres
MULHER
Longa-metragem Brasil 1931
Direção: Octávio Gabus Mendes
Argumento: Adhemar Gonzaga e Octávio Gabus Mendes
Fotografia: Humberto Mauro
Produtora: Cinédia
Elenco: Carmem Violeta, Celso Montenegro, Ruth Gentil, Alda Rios, Luiz Soroa
124
MULHER DE VERDADE
Longa-metragem Brasil 1954
Direção e Argumento: Alberto Cavalcanti
Roteiro: Miroel Silveira e Oswaldo Moles
Fotografia: Edgar Brasil
Montagem: José Cañizares
Produtora: Kino Filmes
Elenco: Inesita Barroso, Colé Santana, Raquel Martins, Adoniran Barbosa
ORFEU DO CARNAVAL
(Orphée noir)
Longa-metragem França/Brasil 1959
Direção: Marcel Camus
Roteiro: Jacques Viot e Marcel Camus, adaptação da peça de Vinícius de Moraes
Fotografia: Jean Bourgoin
Montagem: Andrée Feix e Geneviève Winding
Produtora: Dispatfilm eTupan Filmes
Elenco: Breno Higino Mello, Morpesa Dawn, Lourdes de Oliveira, Lea Garcia
O PAGADOR DE PROMESSAS
Longa-metragem Brasil 1962
Direção: Anselmo Duarte
Roteiro: Anselmo Duarte e Dias Gomes, adaptação da peça homônima de Dias Gomes
Fotografia: Chick Fowle
Montagem: Carlos Coimbra
Produtora: Cinedistri
Elenco: Leonardo Vilar, Glória Menezes, Dionísio Azevedo, Norma Bengell
PAINEL
Curta-metragem Brasil 1950
Direção: Lima Barreto
Produtora: Cia Cinematográfica Vera Cruz
PÁTIO
Curta-metragem Brasil 1959
Direção, Argumento e Roteiro: Glauber Rocha
Fotografia: José Ribamar de Almeida e Luiz Paulino dos Santos
Montagem: Souza Jr.
Elenco: Sólon Barreto e Helena Ignez
RAÍCES
Longa-metragem México 1953
Direção: Benito Alazraki
Roteiro: Carlos Velo, Benito Alazraki, Manuel Barbachano Ponce, María Elena Lazo, Juan de
La Cabada, Fernando Espejo, José Miguel García Ascot, Francisco Rojas González e Carlos
Velo.
Fotografia: Hans Beimler e Walter Reuter
Montagem: Miguel Campos e Luis Sobreyra
Produtora: Teleproducciones
Elenco: Beatriz Flores, Juan Hernández, Miguel Ángel Negrón, Alicia del Lago, Olimpia
Alazraki, Juan de la Cruz, Carlos Robles Gil.
RIO, 40 GRAUS
Longa-metragem Brasil 1955
Direção, Argumento e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Rafael Justo Valverde
Produtora: Equipe Moacyr Fenelon
Elenco: Jece Valadão, Glauce Rocha, Roberto Batalin, Cláudia Moreno, Zé Kéti
SANTUÁRIO
Curta-metragem Brasil 1951
126
SINHÁ MOÇA
Longa-metragem Brasil 1953
Direção: Tom Payne e Osvaldo Sampaio
Roteiro: Osvaldo Sampaio, baseado no romance homônimo de Maria Dezzone Pacheco
Fernandes
Fotografia: Ray Sturgess
Montagem: Oswald Haffenrichter
Produtora: Cia Cinematográfica Vera Cruz
Elenco: Anselmo Duarte, Eliane Lage, Ruth de Souza, Ricardo Campos
VALADIÃO, O CRATERA
Curta-metragem Brasil 1925
Direção: Humberto Mauro
Argumento, Roteiro e Fotografia: Humberto Mauro e Pedro Comello
Elenco: Sthephanio George Younasse, José Augusto Monteiro Barbosa, Eva Comello
127
ANEXO
O PROCESSO CINEMA
Glauber Rocha
Todos nós sabemos, portanto, que o fenômeno da nouvelle vague foi apenas um golpe
de produção muito bem lançado. O que os produtores franceses fizeram quebrou também a
linha garantida dos americanos: eles deram aos jovens maior liberdade e mesmo incentivaram
a inteligência como novo ingrediente do filme. Uma inteligência, no caso francesa, mais hábil
do que aquela escandalosa que de há muito já estava industrializada por Elia Kazan e logo
depois pelas transposições de Chayefsky, isto para não falar dos novos westerns, injeção de
psicologia padronizada no gênero de maior repercussão popular do mundo.
Então a crítica apareceu como a grande vítima (consciente ou não) do assalto à cultura
e a todos os valores considerados dignos pelos altos espíritos humanos. No caso francês,
abrimos uma Bíblia como Cahiers du Cinéma e encontramos alinhados em alta consideração
nomes como os de Hitchcock, Samuel Fuller, Richard Brooks, Nicholas Ray, Martin Ritt,
Richard Quine e de quase todos os diretores americanos da moda, diretores que, à exceção de
Hitchcock, não possuem o menor sentido criativo (ou não podem demonstrá-lo). São apenas
artesãos contratados, sem idéias más, lucrativamente, portadores de certas características
pessoais capazes de servir para melhor faturar novos padrões. Este mínimo de dignidade
permitido significa muito dentro do complexo industrial. Qual o autor moderno americano
livre de pecado, se mesmo a esperança Stanley Kubrick mergulhou numa superprodução
como Spartacus?
II
Vemos, não raro, depoimentos de cineastas que contam ao público seus atrozes
sofrimentos. O produtor é um inimigo. O filme perante a lei é uma mercadoria, o autor
intelectual não tem direitos sobre a sua obra, que é mutilada segundo as necessidades da
distribuição. E o cineasta, sem outro caminho, é obrigado a ceder na esperança de criar o
mínimo. Orson Welles costuma dar entrevistas deste tipo. Mas não tem o autor de Cidadão
Kane completa consciência do quanto vale em dinheiro seu nome?
A idéia tem seu preço. Por isto, parece-me que a crítica ou se engana ou procura
sobreviver. Sem dúvida, os críticos são mais inteligentes e cultos que os cineastas e são ao
mesmo tempo artistas íntegros ou demasiadamente tímidos, incapazes de aderir à corrupção.
Um crítico sincero teria coragem de negar o cinema, se o cinema é para ele a motivação
intelectual e também profissão? No caso brasileiro, o único homem de cinema que ainda pode
viver do ofício é o crítico. Alguns recebem bons salários pelas colunas e mais algumas
comissões de publicidade e promoção. São honestos, com as exceções de praxe, e precisam
justificar suas respectivas existências.
III
No mesmo artigo publicado neste SDJB, Bergman pergunta por que escolheu o cinema.
Esta questão é a primeira angústia. Poderíamos responder que o problema (ou a tendência) é
orgânico. Respondo, com profunda sinceridade (aproveitando uma deixa de Bergman), que o
cinema é escolhido porque é uma forma de profanação à integridade humana e porque é o
caminho mais fácil de salvar o artesão. Esta é uma resposta perigosa que dou sem a menor
sombra de medo e aqui me refiro aos artesãos e aos autores. No caso do artesão (do metteur-
en-scène) é mais lucrativo, menos possível, mais promocional do que o teatro e televisão.
Afirmo mesmo que o teatro acabaria em noventa por cento se fossem dadas as devidas
chances a seus diretores. No Brasil, então, não é preciso muito interesse para ver que cada
homem de teatro é um ambicioso do cinema. Mas como o cinema aqui inexiste a
sobrevivência mais fácil já está garantida. Não que o teatro seja uma forma menor de
expressão. Pelo contrário. Mas seria indispensável a segurança de Brecht para negar e recusar
tão violentamente como fez o autor em seu processo contra Pabst e produtores, a propósito da
filmagem de A Ópera dos Três Tostões (ou Vinténs...).
Embora fazer um filme seja uma via-crucis no Brasil (o termo é de Paulo Emílio Sales
Gomes) e em outros países subdesenvolvidos, é também tarefa árdua dirigir em Hollywood ou
na França. Os problemas são outros. Existem contudo em grande escala, e mesmo em estúdios
organizados o diretor se vê sempre envolvido por problemas primários, fúteis, graves,
vulgares e profundos. O processo é, inclusive, inverso. No Brasil, um close é feito sem muita
ciência. Um close em Hollywood, que pode derrotar uma grande estrela, pode ser problema de
um dia. Pode ser causa de neuroses. Portanto, as tão comentadas condições não me parecem
causas justas. Sem dúvida, existem alguns filmes realizados. E foram rodados dentro da
mesma complicação.
Espero que não consideremos bons filmes as boas faturas comerciais do cinema: o
melhor Hitchcock ou grandes peças literárias ilustradas na imagem, como é o caso de Fellini e
Bergman (cuja própria literatura, pelo caráter híbrido, é duvidosa) e, até certo ponto,
Hiroshima Mon Amour. Quando digo bons, não estou negando estes filmes, mas apenas
perguntando se são realmente filmes. A pergunta não é velha que é o filme? Aqui, seria o caso
de mais outra revisão crítica.
Quando aceitei a profissão de fazer filmes e para isto fiz a penitência de 90 dias numa
praia deserta, sem muito dinheiro e com uma equipe humanamente heterogênea, só admiti
aquele trabalho contrário às minhas idéias originais sobre o cinema porque tive a consciência
exata do País, dos problemas primários de fome e escravidão regionais, e pude decidir entre
minha ambição e uma função lateral do cinema: ser veículo de idéias necessárias. Idéias que
não fossem minhas frustrações e complexos pessoais, mas que fossem universais, mesmo se
consideradas no plano mais simples dos valores: mostrar ao mundo que, sob a forma de
exotismo e de beleza decorativa das formas místicas afro-brasileiras, habita uma raça doente,
faminta, analfabeta, nostálgica e escrava.
Retomando outro ponto abordado aqui inicialmente, posso quase afirmar que a
demagogia do cineasta nasce desta frustração. No caso brasileiro, onde ainda não estamos em
condições de filmar como qualquer ser humano trabalha, isto é, filmar com o mínimo de boa
técnica e profissionalismo, as ladainhas ainda devem encontrar eco. O pior é que o cineasta
aqui vive no deserto da compreensão, o que agrava mais o seu drama. Ser cineasta no Brasil é
permanecer no vestíbulo da grande experiência e, por isto, não podemos nem atingir o clímax
que possibilita a frustração como resultado orgânico. A nossa frustração é primária,
superficial. Ela está mais em conseqüência da anterior ambição econômica e social. Não é
mentira se dissermos que o cineasta nacional é um homem sempre a caminho da inutilidade.
A sua luta diária com os subsistemas de produção toma o tempo todo. Ele abandona o
emprego pela loteria. Não resta um minuto para ler este livro ou mesmo ver aquele filme. Vai
se estiolando culturalmente. Descamba na maioria das vezes para uma posição de esquerda ou
então se converte num antinacionalista extremamente reacionário, acusando, inclusive, até a
paisagem de ser responsável por seus fracassos. Estes não possuem a coragem de dar uma
olhada no espelho e ver que o asfalto das metrópoles é um pseudodesenvolvimento e que, no
fundo, somos o que mais ou menos o europeu pensa: índios de gravata e paletó. É agora,
então, que humildemente pergunto: não poderíamos nós, pobres cineastas brasileiros,
expurgar os pecados de nossas ambições? Não poderíamos voltar àquela antiga condição de
artesão obscuro e procurar, com nossas miseráveis câmaras e os poucos metros de filme de
que dispomos, aquela escritura misteriosa e fascinante do verdadeiro cinema que permanece
esquecido? Não saberia mesmo dizer que cinema é este, que verdade é esta. Esta proposta,
que não tem intenções de ser manifesto, e talvez seja mesmo uma pública interrogação
pessoal, poderá parecer romântica e até mesmo imbecil. Creio, no entanto, que o cinema só
será quando o cineasta se reduzir à condição de poeta e, purificado, exercer o seu ofício com a
seriedade e o sacrifício. Mas, por outro lado, o cinema se eleva como o maior instrumento de
idéias do universo. Seria justo a deserção dos cineastas se eles, mesmo escravos, falam por
vezes tão alto?
Sem dúvida, estamos num círculo vicioso. O cinema é uma arte profana. Somente o
futuro, com a destruição ou o enraizamento desta fase inicial, poderá responder. Até lá, entre
produção & angústia, os cineastas concedem ou negam.
132
ESTÉTICA DA FOME
Glauber Rocha
Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje,
somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas
sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de
equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral
do político.
pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de
sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular.
Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico,
mas de um titânico e autodevastador esforço no sentido de superar a impotência: e, no
resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do
colonizador: e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo
humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de
compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento.
A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria
sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sentida, não é
compreendida.
Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende.
Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional.
Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome.
Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados
onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos
de gabinete e que os remendos de tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores Assim,
134
somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.
De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também
não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência
encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de
contemplação mas um amor de ação e transformação.
O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre
foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com
fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba
foge de guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os
filhos; Rosa vai ao crime salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre
precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o
amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a
segurança do amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema
medíocre.
Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema
Novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais
discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O
Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao
processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o
Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do
Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões
hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver
um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo,
aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de
qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas
importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta
definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema
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Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.
O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto
mesmo, todas as fraquezas conseqüentes de sua existência.