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FABIÁN RODRIGO MAGIOLI NÚÑEZ

HUMBERTO MAURO: UM OLHAR BRASILEIRO


A construção de um pensamento nacionalista cinematográfico no
Brasil

Dissertação apresentada ao Curso de


Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau
de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. ROBERTO MARCHON LEMOS DE MOURA

Niterói

2003
2

Em um país de analfabetos, tive a oportunidade de ter acesso a uma sólida


formação escolar e cultural. Sem o incondicional apoio e a dedicação de minha
família, jamais conheceria os percalços da atividade intelectual.

Aos meus pais, com gratidão e carinho.


3

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, o Prof. Roberto Moura, cuja ajuda e diálogo tornaram possível a
execução desse trabalho.

Ao Corpo Docente da Pós-Graduação e, em especial, a três professores: ao Prof. João


Luiz Vieira, por seus questionamentos ao meu trabalho; ao Prof. Tunico Amâncio, por ter me
dado a oportunidade acadêmica de trabalhar com a minha identidade hispana; e ao Prof. Júlio
César Tavares, que foi sumamente solícito em me ajudar a abrir novas portas em minha
atividade intelectual, auxiliando-me a resgatar as minhas dívidas com o continente africano.

Aos meus colegas, transformando a nossa turma num rico cenário de trocas, dividindo
conquistas e incertezas. Sempre guardarei lembranças de nosso grupo de estudos
cinematográficos constituído por Pedro Plaza Pinto, Lécio Augusto Ramos, Mariana Baltar
Freire e Fernando Morais e do trabalho conjunto no Cinesul com Maurício de Bragança.

A dois amigos, a quem devo muito: o Prof. Fernando Ribeiro e o Prof. Hernani
Heffner.

À minha família, por todo o apoio e compreensão.


4

«Rien ne va de soi. Rien n’est donné. Tout est construit.»


Gaston Bachelard

“Uma geração passa, e outra geração lhe sucede: mas a terra permanece sempre firme.”
Eclesiastes 1; 4

“(...) confiança no futuro, que não pode ser pior do que o passado.”
Paulo Prado
5

RESUMO

O cineasta Humberto Duarte Mauro (1897-1983) foi alçado à categoria de


“pai” da linguagem cinematográfica brasileira pelos idealizadores do Cinema
Novo. Oriundo do chamado “Ciclo de Cataguases” nos anos 20, os
cinemanovistas o resgatam e o interpretam como um fundador que inspira uma
concepção de cinema. O nosso objeto de pesquisa é a concepção nacionalista
que estrutura o pensamento cinematográfico, através da figura de Mauro
trabalhada na fundamentação do discurso cinemanovista, visando compreender
esse processo e as bases teóricas que o alicerçam. Faremos uma análise
conceitual de três pontos em articulação (ideologia/estética/economia), visando
caracterizar um tipo de “Cinema”, segundo sua fundamentação ideológica, sua
proposta estética e seu modo de produção.

Palavras-chave: Cinema – Brasil - História


6

RÉSUMÉ

Le cinéaste M. Humberto Duarte Mauro (1897-1983) a été nommé au


rang de «Père» du language cinématographique brésilien par ceux qui ont
idéalisé le Cinema Novo. Il était originaire du mouvement connu comme «Ciclo
de Cataguases» des années 20. Les «cinemanovistas» l’arranchent et
l’interprétent comme un fondateur qui inspire une conception du cinéma. Notre
but de recherche est la conception nationaliste qui structure la pensée
cinématographique à travers de l’image de Mauro travaillé dans la
fondamentation du discours «cinemanovista» visant à comprendre ce processus
et aussi les fondaments théoriques que la soutiennent. Nous ferons une analyse
conceptuelle de trois points mis en rapport (idéologie-esthétique-economie)
visant à caracteriser un genre de cinéma selon son fondément idéologique, sa
proposition esthétique et sa manière de production.

Mot-clés: Cinéma – Brésil - Histoire


7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8

CAPÍTULO 1 – RE-PENSAR O CINEMA BRASILEIRO .................................................. 17

CAPÍTULO 2 – O QUE É “CINEMA NOVO”?................................................................... 32

CAPÍTULO 3 – PENSAR O CINEMA BRASILEIRO ........................................................ 56

CAPÍTULO 4 – GLAUBER ROCHA RESPONDE: “O “CINEMA NOVO” É...”................ 77

CONCLUSÃO................................................................................................................... 111

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 115

FILMOGRAFIA CITADA................................................................................................. 120

ANEXO............................................................................................................................. 127

O PROCESSO CINEMA................................................................................................... 127

ESTÉTICA DA FOME ...................................................................................................... 132


8

INTRODUÇÃO

Glauber Rocha (1939-1981), no final do capítulo dedicado a Mauro, escreve:


“Esquecer Humberto Mauro hoje – e antes não se voltar certamente sobre sua obra como
única e poderosa expressão do “cinema novo” no Brasil – é tentativa suicida de partir do zero
para um futuro de experiências estéreis e desligadas das fontes vivas de nosso povo, triste e
faminto, numa paisagem exuberante”.1 Podemos testemunhar uma preocupação de
fundamentar um recente movimento em nosso cinema (o Cinema Novo) através de uma
tradição que deve ser afirmada. Glauber utiliza o método da “política dos autores”, egressa da
crítica francesa, mas numa interpretação própria, unindo “Autor” (uma concepção burguesa) e
“cinema revolucionário” (no sentido marxista). E, em sua historiografia, Humberto Mauro é
considerado o nosso primeiro autor, ao lado de uma “plêiade” internacional (Eisenstein,
Vertov, Vigo, Flaherty, Ford e outros).

É significativo constatarmos que no final da década de vinte, Mauro é um dos poucos


homens a viver somente de cinema no Brasil, tornando-se um “cineasta profissional” num
país sem uma produção cinematográfica sistematizada. O mineiro desenvolve um estreito
relacionamento com Adhemar Gonzaga (1901-1978), jornalista e criador da primeira
produtora em moldes hollywoodianos, a Cinédia, fundada em 1930, e pioneiro em propor um
projeto de cinema em nosso país, projeto no qual o exemplo do cinema regional de Mauro
teria grande influência. Uma amizade que, posteriormente, se converte numa relação “patrão-
empregado”. Mauro se aproxima das idéias de Gonzaga, o que não duraria muito tempo. Após
o fracasso de público e de crítica de Ganga bruta (1933), Mauro é despedido da Cinédia, o
que gera o término de uma intensa e profícua relação, movida por uma admiração mútua.
Diante do estreito relacionamento com Gonzaga e do resgate de sua figura realizado por
Glauber, indagamos: como pode Humberto Mauro, desta forma, se vincular a projetos tão
diversos? Como o mesmo homem pode influir no ideário de duas pessoas de épocas distintas
e idéias opostas? O que torna possível transformar Mauro num elemento tão plástico?

Assim, o nosso trabalho parte da intrigante questão. Primeiramente, notamos que,


apesar de suas diferenças ideológicas, Gonzaga e Glauber necessariamente apresentam um
aspecto em comum. Gonzaga encontra em seu contemporâneo um talento técnico e uma
vocação artística com quem pode compartilhar as suas idéias de “cinema brasileiro”,
encarnadas na proposta de industrialização do nosso cinema, em contraposição à
marginalização da prática cinematográfica nacional em seu tempo (pejorativamente chamada
de “cavação”). Glauber, futuramente, verá no esgarçamento da relação de Mauro com
Gonzaga, o germe da luta revolucionária contra a fetichização do cinema industrial. O
fracasso da Vera Cruz e a saturação da chanchada são usados pelo cinemanovista como uma
prova ideológica do que seria o “legítimo” cinema brasileiro. Desse modo, Mauro é
transformado na pedra angular de sua proposta. Ora, tanto Glauber quanto Gonzaga possuem,
de forma objetiva, uma definição distinta do que seja cinema. Porém, há algo mais
importante: possuem uma orientação para o cinema brasileiro, ao partirem de uma revolta
contra o quadro cinematográfico vigente em suas épocas (a “cavação” para Gonzaga e a
chanchada e o cinema industrial para Glauber). Ambos estão preocupados em pensar a
produção de cinema no Brasil, um mercado cinematográfico dominado pelo cinema
estrangeiro, sobretudo o norte-americano. Esse caráter orientado ao âmbito nacional faz suas

1
ROCHA, G. Revisão crítica do cinema brasileiro.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 31
9

idéias se revestirem de um forte tom nacionalista. Contudo, a questão levantada permanece de


pé: por que necessariamente essas propostas devem partir da figura de Mauro? Por que não
outros importantes cineastas como, por exemplo, Mário Peixoto ou Luiz de Barros? Essa
pergunta percorrerá o nosso trabalho.

A partir da correlação Gonzaga/Glauber – Mauro, introduzimos o nosso problema num


quadro geral dos eventos históricos sofridos pela sociedade brasileira o associando a duas
importantes “viradas” ocorridas no século XX na História do Brasil: a passagem dos anos
1920/30 e dos anos 1950/60. Assim, a representação de Mauro possui diferentes funções em
cada uma dessas conjunturas frente a Gonzaga e, depois, a Glauber, dentro de transformações
ocorridas em nosso país.

O nosso trabalho, assim, não está preocupado em estudar quem foi “realmente”
Humberto Mauro e, a partir daí, emitir algum juízo sobre Glauber ou seja sobre Gonzaga. Nós
rejeitamos categoricamente uma interpretação substancialista, como se algo fosse per se,
como se a essência fosse um dado que se impõe por evidência e fora do tempo. Para nós, caso
fizéssemos uma interpretação ontológica, o ser desse ente chamado Humberto Mauro é
inextricavelmente definido pela função que ocupa numa determinada relação. Seria falso
tentar saber o que é Humberto Mauro nele mesmo, como se fosse possível isolá-lo da rede de
relações que o engendra. O que nos interessa é que ele ocupa uma determinada função em
dois discursos enunciados de modos distintos: Humberto Mauro é um ponto (i)lógico que
articula duas redes discursivas. Dito de outro modo, Humberto Mauro é enunciado em duas
redes extremamente diferentes. Eis o ponto instigante que nos salta aos olhos, exigindo uma
reflexão. Portanto, entendemos o Cinema como um produtor e catalisador de discursos e
utilizamos Humberto Mauro como um elemento catalisador desses discursos sobre o cinema
nacional. A partir desse estranho nó (Humberto Mauro), esses discursos, por sua vez, se
estruturam diante de nós quando privilegiamos dois períodos de ruptura. Esses dois momentos
serão abordados por intermédio de duas figuras essenciais no meio cinematográfico: Adhemar
Gonzaga e Glauber Rocha. Pinçamos esses dois homens como fatores de condensação de um
projeto abrangente de como realizar um cinema brasileiro. Eis o laço comum: um discurso
nacionalista.

Como entender esse nacionalismo? Definimos nacionalismo como uma corrente


ideológica de origem burguesa, nascida nas revoluções liberais do século XIX. Tal
pensamento é típico de uma burguesia não totalmente desenvolvida que, após a desagregação
do Antigo Regime privilegia não o “indivíduo” (como no liberalismo) mas a “nação” como
um organismo harmônico. Posteriormente, o nacionalismo também assumiria um papel
relevante na fase monopolista do capitalismo. Essa ideologia sofre transformações próprias no
cenário brasileiro diante de um país com um Estado recente e de uma sociedade com
determinadas particularidades étnico-culturais. Tanto Gonzaga como Glauber possuem uma
definição do que seja “ser brasileiro”, explícita ou implícita. Contudo, o fundamental para
ambos é a necessidade de se produzir filmes no Brasil, e a dificuldade que isso acarreta num
mercado invadido pelo filme estrangeiro. Esse é o principal aspecto nacionalista: é preciso
fazer filmes no Brasil. Entretanto, é um grave engano entender essa sentença como uma mera
volição. Muito pelo contrário, a necessidade de produzir filmes no Brasil e consumir essa
produção se deve a um constrangimento lógico. Em suma, realizar filmes no Brasil não é um
capricho pessoal, mas uma necessidade impelida por um discurso, que visa definir (e por
conseguinte, constituir) uma concepção de Brasil e que, por sua vez, acarreta uma definição
de “cinema brasileiro”. É isso que há de comum em Gonzaga e Glauber: é logicamente
10

interna aos seus respectivos discursos, a necessidade de se produzirem filmes no Brasil e de


que esses filmes, por sua vez, sejam distribuídos e exibidos no mercado.

Para entendermos a estrutura lógica desses discursos, partimos de uma hipótese,


vinculada à definição do que seja Cinema. Lembremos que o cinema, distinto das demais
artes, nasce na sociedade industrial. Portanto, o cinema está inserido em tal sociedade,
conforme a ordem burguesa e a episteme científica, sendo impossível isolá-lo de tal rede (o
que nos faria cair num pensamento substancialista).

Consideramos Cinema como sucessão de imagens. O conceito de movimento é a


estrutura constitutiva do discurso cinematográfico. Quando Immanuel Kant (1724-1808)
vetou o acesso cognitivo à Coisa em si, o conhecimento foi posto à medida humana (finitude),
e surge em cena o homem e a sua relação com o tempo, tendo perdido a solidez de uma ordem
supra-sensível. Com a epistemologia contemporânea, esse processo se radicaliza, minando as
bases de uma teoria do Conhecimento. Não existe um Sujeito Transcendental, que assegura as
condições de possibilidade do conhecimento através de uma tábua (eterna) de categorias.
Segundo Bachelard, a ciência trabalha por retificação, ao remover os “obstáculos
epistemológicos”, e toda verdade científica é provisória.2 O que não significa um cepticismo,
muito pelo contrário. O pensamento céptico postula uma essência pré-existente nas coisas que
é inacessível à razão humana. Em suma, encontramos a clássica e realista definição de
Verdade como adequação do intelecto com a coisa. O esforço do pensamento contemporâneo
(incluindo a epistemologia bachelardiana) é pensar um novo conceito de Verdade. Kant
esvaziou o conteúdo dos conceitos, interpretando o conhecimento como uma “construção” (os
“juízos sintéticos”). Porém, Kant, por ser filósofo, busca um princípio fundamental na
estrutura da Razão, ou seja, algum fator que não mude. Há uma unidade na Razão, expressa
no Sujeito Transcendental, que amarra as categorias (que forjam o conhecimento), a partir de
uma lógica única. A epistemologia, ao reconhecer a multiplicidade das lógicas, destrói uma
suposta unidade totalitária. O próprio conhecimento, à medida que se vai constituindo, através
dos cortes, postula as suas condições. Em suma, é possível afirmar que a epistemologia
bachelardiana é um kantismo levado ao extremo, no sentido de que as próprias condições de
conhecimento também são construídas. Queremos afirmar que, com o advento da ciência, a
História aparece, destruindo qualquer forma de ontologia; no mundo científico, onde há
produção de verdade provisória, a questão principal já não é mais com o Ser (como era para
os Antigos) mas com o Tempo.3 Portanto, o conceito de movimento tornou-se importante com
a irrupção da historicidade no pensamento. Portanto, a criação de uma sensibilidade (tanto
epistemológica quanto estética) ao movimento surge na época moderna. Assim, os estudos
fotoquímicos e físico-fisiológicos que estão na gênese do cinema se realizam num período em
que estudar o movimento é algo importante. Até então, não existia essa sensibilidade. Portanto,
cinema e ciência compartilham esse liame: a historicidade. É relevante ressaltar que os
primeiros teóricos do cinema partem do conceito de movimento, seja de ordem lírica (Delluc),
metafísica (Dulac), onírica (Epstein) ou materialista (Moussinac e os soviéticos).

Com essa mudança no pensamento, a definição do que seja Arte é radicalmente posta
em questão. Com o processo de laicização, que marca a modernidade, a Arte já não é mais

2
BACHELARD, G. La formation de l’esprit scientifique. 8 ed. Paris: J. Vrin, 1972.
3
É relevante notar o desprestígio que o historiador gozava na sociedade grega, frente ao filósofo e ao poeta.
Somente com a modernidade, ou seja, no mundo científico, a História adquiriu um papel relevante. Em um
determinado momento (o século XIX), a Filosofia buscou tomar a História para si (buscando domesticá-la).
Contudo, com a passagem do século XIX para o XX, a qual Bachelard reconhece como a maturidade do
“espírito científico”, a idéia de Tempo passa a adquirir um valor incontestável.
11

encarada como a representação sensível e humana de uma harmonia exterior à obra de arte (o
cosmos dos Antigos ou a Criação divina cristã). A Arte passa a ser um mundo propriamente
humano e subjetivo. As vanguardas do início do século XX radicalizam esse processo, e
criam um mundo exclusivo à Arte, sendo rompido o seu compromisso com uma ordem
exterior.4 Não é por acaso que, quando ocorre a maturidade do “espírito científico”, também
há uma mudança na Arte. A concepção de uma lógica única também possui os seus corolários
no campo artístico. Postulando a existência de uma ordem unitária nas coisas, cabe ao artista
concretizar essa harmonia, a partir de cânones incontestáveis, por serem os mais apropriados
para se dirigirem à essa harmonia – a idéia de adequação. As vanguardas modernistas, por sua
vez, quebram definitivamente a regência de regras imutáveis e globais. O artista gera as
condições de criação artística à medida que processa sua obra, em um procedimento
semelhante ao do cientista. É por isso que o reconhecimento artístico do Cinema (deixando de
ser encarado como uma mera técnica) ocorre sobretudo nos anos 20, quando as artes plásticas
destróem os seus últimos resquícios de uma concepção cosmológica ou teológica. Até então, o
cinema era encarado como um simples suporte de reprodução, isto é, apenas um meio de
manifestação de algo que não lhe era próprio. Era apenas registro do cotidiano ou da
encenação de um espetáculo. Quando o cinema passou a se exprimir de um modo totalmente
peculiar (o deslocamento da câmera, o posicionamento dos atores, ou partes de seus corpos,
em relação ao enquadramento) lhe foi conferido o estatuto de arte. Ou seja, o filme não é mais
a simples reprodução de uma ordem alheia (de algo que está no mundo) mas a criação de algo
totalmente novo (inexistente até então no mundo). Vemos aqui o conceito de arte como a
criação de um objeto, acrescentado ao mundo, que tece uma ordem totalmente singular.
Assim, foi possível surgirem teóricos que passaram a elaborar um conceito de “cinema puro”
ou discutir o “específico fílmico” à medida que foi atribuída ao cinema a categoria de arte,
nos termos acima.

Por outro lado, o filme é concebido como uma mercadoria, instaurando uma indústria.
O cinema absorve duas faces: a estética e a mercantil. Exercendo a função de espetáculo
numa sociedade de massa, o cinema é definido segundo uma concepção laica e consumista de
diversão. A sociedade industrial se baseia na produção em larga escala de uma determinada
mercadoria, o que significa, em relação ao cinema, a reprodução de cópias de um mesmo
filme. O cinema, portanto, nunca possuiu o que Walter Benjamin (1892-1940) chama de
“aura”, marcando-o como um fruto específico da modernidade.5 Assim, podemos resumir o
Cinema como um fator da modernidade por três aspectos. Por sua estrutura, o movimento.
Pela manifestação dessa estrutura, uma obra (o filme) criada segundo leis e normas próprias -
a Arte como a instauração de uma ordem singular. E, por último, pela apreensão dessa
estrutura, o conceito de espetáculo a ser gozado por uma ampla platéia, com uma vasta rede
técnica e comercial, conforme a ordem capitalista, isto é, segundo relações mercantis.

Os primeiros teóricos exaltavam o cinema, num culto ao seu movimento estrutural


relacionando-o à vida moderna. Ser moderno, para as vanguardas, significa romper com as
tradições e as normas consolidadas na sociedade, experimentar novas regras e viver segundo
um fluir, constitutivo da transitoriedade da ciência. Porém, os vanguardistas se manifestam ou
por um otimismo exaltado, tendo como modelo a ciência e o culto à máquina; ou pela
expressão do aspecto bárbaro inerente à civilização, manifestando, para usarmos um termo
freudiano, o seu “mal-estar”.6 Se o cinema é um filho legítimo da modernidade (e talvez a sua
maior evidência), ele pode ser encarado sob esses dois aspectos citados acima.

4
FERRY, L. Le sens du beau. Paris: Librairie Générale Française, 2001
5
O que não significa que o cinema seja uma arte menor, mas, que o conceito de Arte mudou.
6
TELES, G. M. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 9 ed. Petrópolis: Vozes, 1986. pp 25-35
12

Posto isto, a nossa hipótese é que a questão fundamental abordada por Glauber e
Gonzaga, ao exigirem uma produção cinematográfica no Brasil, é pensar a modernidade e os
seus efeitos na nossa sociedade. Desse modo, Humberto Mauro será, simultaneamente, o
elemento de ligação e de diferenciação entre os dois. Ambos constatam uma necessidade de
modernizar o país, mas a questão vai mais além: que modernidade nos interessaria? O que
significa a modernidade para nós, um país na periferia do capitalismo? Para Gonzaga, Mauro
está articulado com um projeto de modernidade a ser instaurado em nosso país coerente com
as transformações ocorridas nos países centrais. Por sua vez, para Glauber Rocha, a figura de
Mauro é fundamental para sintetizar os paradoxos dessa modernidade na sociedade brasileira
(e no final de sua obra, o cineasta baiano pensa em termos do Terceiro Mundo). Portanto, os
dois projetos de nação presentes em seus discursos passam por Mauro como um ponto de
discussão sobre a modernidade. Essa questão está visceralmente unida à busca de uma
definição do “ser brasileiro”. Assim, discutir a modernidade por intermédio do cinema é,
também, discutir o que é cinema brasileiro, o que, por conseguinte, significa definir as suas
peculiaridades como a expressão de uma nação e seu povo.

O nosso trabalho se concentra em Glauber Rocha, pois acreditamos que o seu livro de
1963 é uma pedra basilar na construção de, posto nos termos de Bernardet7, uma
“historiografia clássica do cinema brasileiro”. Duas outras figuras são também fundamentais
na escrita dessa historiografia: Alex Viany (1918-1992) e Paulo Emílio Salles Gomes (1916-
1977). Ao dialogar com esses dois pensadores, o livro de Glauber marca uma “virada”
conceitual, colocando todo o cinema brasileiro em outros termos, o que enriquecerá a
discussão teórica sobre o tema, sistematizando-a nesse pensamento, agora clássico. Vemos,
por parte de Glauber, uma necessidade de pensar os rumos do cinema brasileiro diante de uma
nova safra de filmes que resulta da falência do projeto do cinema paulista e do esgotamento
da chanchada. Esse é o propósito inicial de Glauber Rocha: definir o que é Cinema Novo.
Diante dessa tarefa, Glauber se volta para a história do nosso cinema (melhor dito, uma
“revisão crítica”), buscando saber as suas características.

Se é “novo”, é lícito supor que se contrapõe a algo que podemos rotular de “antigo” ou
“tradicional”. Partindo de uma dicotomia (velho x novo), que é bem sintomática de um
questionamento moderno, Glauber o coloca em outros termos: cinema de autor x cinema
comercial. Entretanto, Glauber, paradoxalmente, atrela a sua metodologia (“a política dos
autores”) ao fiasco de um projeto de cinema, voltando os seus olhos para o passado. O seu
livro está dentro de uma orientação historicista que remete aos Congressos de Cinema do
início dos anos 50. Ou seja, a necessidade de escrever uma história para entender os atuais
problemas do cinema em sua contemporaneidade. Essa dimensão histórica é um elemento
essencial, não somente de conhecimento, mas como fundamentação para uma ação na área
cinematográfica. Encontramos uma semelhança com o já então “velho Gonzaga”, detentor de
um dos mais ricos arquivos pessoais de cinema (ao lado de Pedro Lima) para quem a
aquisição de uma memória tornara-se um elemento de seu projeto de cinema.

O nosso trabalho, portanto, é permeado pela História. O objetivo de nossa pesquisa


não é relatar as condições sócio-históricas que engendram essas propostas de cinema, mas o
inverso; utilizamos o Cinema para pensar a História. Estamos preocupados em esquadrinhar
uma idéia do que seja o cinema; mais especificamente, o cinema brasileiro. Por outro lado,
reconhecemos que o processo da formação do conceito de “cinema brasileiro” aponta para as

7
BERNARDET, J. –C. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo: Annablume, 1995.
13

mudanças ocorridas na sociedade brasileira. Porém, ao interpretarmos o Cinema como Arte, e


portanto, como um campo que constrói regras e relações próprias, o nosso estudo se volta à
essa autonomia, embora reconheçamos que essas construções autônomas possuem uma feição
temporal, o que evoca a autoridade da História. A formulação de conceitos, mais
especificamente, de um conceito de identidade (o que é ser “brasileiro”?) se vincula a uma
concepção de tempo, pois não podemos ignorar a dimensão histórica dos discursos tratados, e
portanto, identificar não somente de onde são enunciados como o seu conteúdo em relação ao
tempo. As figuras de Glauber, Gonzaga e Mauro se articulam no tempo, e devemos preservar
esse aspecto temporal. Queremos dizer que seus discursos não só são enunciados num
determinado momento, mas que as suas respectivas noções de “cinema” e de “brasileiro”, por
sua vez, se definem em relação a aspectos conjunturais, uma vez que seus projetos de cinema
estão inseridos em momentos de “virada” da sociedade nacional, e propõem conceitos de
“cinema brasileiro” frente ao declínio de modelos político-institucionais (o oligarquismo e o
populismo), que culminam em rupturas institucionais do Estado brasileiro (a Revolução de 30
e o Golpe de 64). Voltamos a repetir, o nosso objetivo não é estudar Glauber e Gonzaga como
a manifestação de um desmoronamento de uma estrutura sociopolítica, mas compreender
como os seus discursos próprios se relacionam com aspectos abrangentes
extracinematográficos, mas embora percebidos do interior da área cinematográfica. Em suma,
analisar o que seria o oligarquismo e o populismo em sua relação com o cinema. O nosso
trabalho é uma análise conceitual de como foi proposto e representado o que seria o cinema
brasileiro, e não um tratado de História do Cinema Brasileiro, no sentido de um estudo dos
acontecimentos no universo cinematográfico no Brasil, i. e., a análise da origem e da
formulação de um conceito específico (“cinema brasileiro”) na construção de um pensamento
sobre o fenômeno cinematográfico no país.

Como realizaremos uma análise retroativa, partindo de um pensamento ainda hoje


hegemônico, i.e., de uma “historiografia clássica”, o nosso início é a formação dos conceitos
“cinemanovistas”. Assim, o nosso ponto de partida é o livro de Glauber que, preocupado em
pensar um tema no calor da hora, realiza um saldo sobre a experiência cinematográfica no
país.Desse modo, partindo daquela conjuntura do início dos anos 1960 para o passado, a
questão de Glauber percorre décadas, criando recortes a partir de elementos-chave (cineastas e
filmes). Como já afirmamos, o propósito de Glauber é dar um sentido a um movimento que se
propõe como uma ruptura mas que, por sua vez, possui um laço com o passado. A
originalidade do livro é vincular uma proposta de transformação com uma tradição subjacente
ao longo de toda a nossa cinematografia. Desse modo, esboçado o raciocínio do autor,
devemos entender com o que é necessário romper e, simultaneamente, com o que é necessário
se vincular. Essas duas atitudes, que podem parecer contraditórias (uma ação de ruptura e a
busca de uma tradição) são os trilhos do nosso trabalho e é partindo deles que veremos como
Mauro é instrumentalizado tanto por Glauber quanto por Gonzaga.

Sendo coerentes com o nosso argumento, exposto anteriormente, de que o Cinema é


um fator da modernidade (seja em sua estrutura, o movimento; na manifestação dessa
estrutura, o conceito de Arte como criação de uma ordem nova; e na apreensão dessa estrutura,
enquanto um espetáculo laico e comercial) ao pensarmos o cinema brasileiro, devemos
relacioná-lo não somente a aspectos filosóficos, mas também a aspectos estéticos, políticos e
econômicos. Lembrando que tais dados são atravessados pelo tempo, o nosso projeto articula
um viés ideológico (a discussão acerca da modernidade que sustenta os discursos de Glauber
e Gonzaga) com uma história estética (um modelo de filme) e econômica (um modo de
produção). Tanto na busca de uma definição para Cinema Novo, empreendido por Glauber,
quanto na proposta da criação de uma indústria cinematográfica brasileira, por Gonzaga,
14

podemos identificar esses três aspectos acima apresentados (ideologia/estética/economia).


Como o nosso estudo é uma análise conceitual, o ponto central é o aspecto ideológico
considerando seu diálogo com os outros dois. Por sua vez, esse ponto se define pelo conceito
de nacionalismo, que é o denominador comum de dois projetos tão distintos quanto o de
Glauber e o de Gonzaga.

Advertimos o leitor de que nosso trabalho possui um caráter ensaístico, ou seja, vamos
levantar questões e hipóteses a respeito das definições do conceito de cinema brasileiro,
visando seu desvendamento histórico, e não recuperar os acontecimentos históricos que as
suscitaram ou a atuação desses protagonistas (Mauro, Gonzaga, Glauber) frente a seu tempo.
Outro item relevante para o autor é o emprego do termo Cinema Novo que, usado sem aspas,
se refere ao movimento cinematográfico brasileiro, formado por filmes e cineastas, num
determinado período histórico, enquanto que, o uso de “Cinema Novo” (entre aspas) se aplica
ao termo em si, à expressão, e não ao objeto concreto. Em termos aristotélicos, “Cinema
Novo” se refere à definição, à essência, enquanto que Cinema Novo se refere ao ente, à
substância.

O primeiro item a ser estudado é contemplar o quadro cinematográfico pós-Vera Cruz,


pois diante do fracasso do projeto do cinema paulista, surge uma ampla rede de ações e
questionamentos. Logo após os Congressos, um pensamento da classe cinematográfica é
gerido diante de um quadro de frustrações e dúvidas. Assim, torna-se urgente re-pensar o
“cinema brasileiro”, delineando um claro jogo de forças entre vários setores, sobretudo junto
ao Estado. A figura de Humberto Mauro aparece nessa situação e será utilizada nessa querela.
Ressaltemos que a “descoberta” de Mauro se dá no início dos anos 1950 através da crítica
paulista que, por sua vez, vai se opor (mas nem todos os seus componentes) ao futuro Cinema
Novo. Assim, quando Glauber afirma ser Mauro o nosso primeiro autor, mobilizando-o para
suas fileiras, vemos uma deliberada apropriação de sua figura pelo Cinema Novo. O nosso
objetivo não é julgar essa ação (pois não estamos realizando uma revisão histórica, com a
intenção de saber se foi pertinente ou não tal atitude) mas estudar como se realizou esse
procedimento, a sua motivação e o seu processo. Assim, até chegarmos à ação de Glauber,
necessitamos buscar uma linha na qual ela está inserida; precisamos entender a sua atitude
como o coroamento de um processo que representa um ponto de “virada”(como já foi dito).
Assim, essa apropriação da figura de Mauro é, nesse texto, o nervo principal que nos permite
perceber a remodelação de um projeto de cinema brasileiro na querela que se desenrolava na
época.

Para chegar até a atitude de Glauber e à sua originalidade, é necessário colocá-lo em


diálogo com as idéias que o precederam e das quais é herdeiro. Assim, estudaremos três textos
fundamentais para compreender o projeto glauberiano. Como Glauber contrapõe “cinema de
autor” ao “cinema comercial”, é preciso compreender a definição de “indústria
cinematográfica” e a dificuldade de implantá-la em nosso país. Partindo dessa questão,
analisaremos os seguintes textos: Filme e realidade de Alberto Cavalcanti (1897-1982),
Introdução ao cinema brasileiro de Alex Viany e Uma situação colonial? de Paulo Emílio
Salles Gomes. O primeiro deles é uma coletânea de textos sobre os mais variados assuntos
que compõem o cinema, expressando, por vezes, opiniões bem particulares de Cavalcanti. Um
livro publicado em 1951, em plena efervescência do cinema paulista, e respaldado pela
autoridade do autor. A importância desse texto para nós é a sua análise do cinema brasileiro,
identificando problemas e, sobretudo, criticando a incompetência e a imoralidade de certos
elementos que grassam a classe cinematográfica nacional. O livro de Viany, publicado em
1959, é a primeira tentativa séria de se escrever uma história do cinema brasileiro,
15

necessidade sentida a partir dos Congressos. Motivado por uma compreensão histórica da
nossa cinematografia, ao buscar entender as origens dos problemas do setor, Viany descreve
as várias tentativas de se implantar uma indústria cinematográfica nacional, realizando uma
analogia com o crescimento de uma pessoa. Assim, o nosso cinema é apenas um “rapazinho”,
com muito potencial, mas que ainda não alcançou a maturidade. Interessa-nos estudar não
somente essa analogia mas como Viany apresenta Humberto Mauro (que possui um sub-
capítulo próprio), ressaltando uma importância fundamental em sua pessoa. O último texto,
Uma situação colonial? de Paulo Emílio Salles Gomes, é um artigo de 1960, ampliado de
uma tese apresentada à Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica do ano
anterior, que propõe esboçar o quadro geral do Cinema no Brasil (frisamos, não se restringe
ao “cinema brasileiro”) não poupando críticas a nenhuma categoria: produtores, distribuidores,
exibidores, público e à crítica são todos vítimas de uma “alienação” que assola não somente o
setor, mas o país. O autor busca compreender o motivo da mediocridade reinante em nossa
cinematografia (por que filme brasileiro é sinônimo de filme ruim ?), dando um nome à
imaturidade do “rapazinho” apresentado por Viany: subdesenvolvimento.

Analisadas as idéias presentes nesses textos, voltamos a nossa atenção a Glauber, para
acompanhar a composição de seu livro, e como Mauro é nele trabalhado. Inicialmente,
devemos compreender o que é a politique des auteurs (utilizamos a expressão no original,
para frisar de que se trata de um conceito específico, ligado a determinadas pessoas num
determinado período, evitando confundir com o difundido e vago termo “cinema de autor”),
que Glauber cita ser a sua metodologia. Assim, necessitamos defini-la, buscando a sua origem
e o seu uso sistemático pela crítica francesa. O nosso objetivo é desencavar as fontes teóricas
que possuem influência no pensamento e na obra de Glauber. Após compreender a
metodologia em seu sentido original, veremos como o autor a utiliza em seu livro. Assim,
estudaremos como Humberto Mauro é abordado segundo essa leitura glauberiana. Cabe
recordar a importância da realização do Festival Humberto Mauro em Cataguases, em 1961,
que causou forte impacto em Glauber, motivando-o a escrever o artigo “Humberto Mauro e a
situação histórica”, que dá origem ao capítulo de mesmo nome. O próprio título nos instiga,
abordando Mauro num viés histórico. No capítulo do livro, Glauber é categórico: de Ganga
bruta (1933) aos filmes nacionais contemporâneos ocorreu uma “involução na linguagem
cinematográfica brasileira”; ocorreu algo que prejudicou o desenvolvimento de nossa
linguagem. É necessário compreender o que o autor deseja afirmar com esse juízo tão
veemente. Como ressaltamos que o livro é uma “revisão histórica”, a sua meta maior é fazer
um saldo de nossa experiência cinematográfica, identificando justamente Mauro como o
primeiro ponto em que aflora uma divergência de forças contraditórias.

Procurando identificar os termos utilizados pelo autor, num quadro beligerante (há um
conflito entre dois tipos de cinema), devemos saber quais são essas forças. Assim,
estudaremos as raízes do chamado “cinema comercial”, sendo relevante mirar para o passado,
e identificar os seus agentes e propostas. Aqui, encontraremos a figura de Gonzaga e a sua
relação com Mauro. A criação da revista Cinearte e a sua campanha pelo cinema brasileiro é a
primeira sistematização de um pensamento nacional no campo cinematográfico. Assim, como
Glauber defende um certo tipo de cinema, definindo-o em contraposição a outro (cinema de
autor x cinema comercial), vemos algo semelhante em Gonzaga, que contrapõe o seu modelo
de cinema ao de uma prática amadora e descentralizada, pejorativamente chamada de
“cavação”. Assim, especularemos várias facetas do pensamento gonzaguiano, partindo do seu
questionamento sobre o que é o cinema brasileiro e o seu papel em nosso país.
16

Passado o estudo das raízes do cinema comercial, voltaremos a Glauber. O nosso


recorte não é cronológico linear, pois o nosso objeto parte da apropriação da figura de Mauro
pelo Cinema Novo. O projeto de Gonzaga nos interessa como um primeiro discurso
nacionalista em cuja contraposição se constrói o projeto de Glauber. Assim, o capítulo
referente ao Gonzaga (a sua campanha pelo cinema brasileiro, o quadro sociopolítico da
época, a movimentação do setor diante do novo governo revolucionário e, por fim, a
frustração do projeto gonzaguiano) é um intermezzo na apresentação do projeto glauberiano,
necessário para melhor compreendê-lo, seguindo um viés comparativo. O nosso corte é o ano
de 1965, pelo fato de ser um momento de remodelação de todo o Cinema Novo diante de uma
conjuntura política adversa à sua proposta. Ocorre uma frustração do projeto glauberiano,
devido à queda de Jango e à desmobilização das esquerdas. Concordamos em que o manifesto
Estética da fome de Glauber, embora seja de janeiro de 1965, se detém à uma análise do
cenário cinematográfico nacional pré-Golpe. Contudo, a partir dessa “revisão histórica” é
proposta uma ação a ser realizada, conforme um procedimento semelhante ao seu livro de
1963. Porém, em seu manifesto de 1965, essa orientação perspectiva, fundamentada em um
estudo retroativo, não é tão articulada quanto em seu livro de 1963.

Portanto, o presente trabalho propõe demonstrar que a figura de Humberto Mauro não
somente foi um argumento utilizado para fundamentar o Cinema Novo, mas um nó conceitual
que amarra vários elementos para re-pensar o significado do que seja cinema brasileiro. A
nossa hipótese é que a necessidade de se produzir filmes no país é um constrangimento lógico
deduzido de um discurso acerca da modernidade. O nosso estudo é movido por uma carência
bibliográfica sobre o tema, buscando uma sistematização dessas idéias. Assim, faremos uma
especulação acerca dos dois pensamentos cinematográficos (Glauber e Gonzaga), definindo a
partir de uma negação de algo (o “cinema comercial” para Glauber e a “cavação” para
Gonzaga), da valorização de modelos estéticos (o “cinema de autor” para Glauber e
Hollywood para Gonzaga), e de modelos econômicos (um sistema de pequena produção para
Glauber e uma indústria de grande porte para Gonzaga). A nossa linha de costura, isto é, o
estranho “ponto cego de onde tudo se vê” é a figura de Humberto Mauro, que paradoxalmente
aparece nesses dois pensamentos. Assim, o nosso problema central é compreender por que
essa função é ocupada por Mauro e não por outros cineastas como Luiz de Barros, Mário
Peixoto ou José Medina. Os nossos limites são o livro Revisão crítica do cinema brasileiro
(1963) e o manifesto Estética da fome (1965) de Glauber Rocha, que marcam dois pontos de
reflexão sobre o Cinema Novo, e esboçam um modelo de como pensar o cinema brasileiro. A
nossa metodologia é acompanhar a formação desse pensamento (o projeto “cinemanovista”
enunciado por Glauber), seguindo o nosso objeto de estudo (o nacionalismo no pensamento
cinematográfico brasileiro), a partir de um sintoma (a presença de Humberto Mauro em dois
discursos tão distintos) e da análise de sua contraposição teórica (o projeto de Gonzaga).
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CAPÍTULO 1 – RE-PENSAR O CINEMA BRASILEIRO

No começo dos anos 1950, a proposta do cinema paulista canalizou as discussões do


setor. Indicamos três textos importantes que se relacionam, de um modo ou de outro com essa
proposta, buscando sintetizar o quadro cinematográfico nacional. São textos que possuem
uma forte influência não somente no livro de Glauber, mas no pensamento do setor. Também
analisaremos como a figura de Mauro, quando aparece, é trabalhada em tais textos.

O primeiro é o livro de Alberto Cavalcanti, intitulado Filme e realidade, que chegou a


ter duas edições na década de 1950 (1951 e 1952)1. Em seu prefácio, o autor afirma que esse
livro, que aborda vários aspectos do cinema, não é um compêndio, mas “uma série de
considerações baseadas na minha experiência pessoal.” Portanto, trata-se de um texto que é
uma suma de opiniões, respaldada pela autoridade do autor (considerado o brasileiro que mais
entendia de cinema, devido à sua participação em importantes movimentos cinematográficos
no exterior). Assim, Cavalcanti apesar de sua efêmera passagem pela Companhia Vera Cruz,
adquiriu consciência das condições do setor cinematográfico brasileiro e se autoriza como um
analista do “fenômeno Vera Cruz”. Lembremos que nessa ocasião, Cavalcanti elabora, a
pedido do presidente Getúlio Vargas (1883-1954), o anteprojeto do I.N.C. (Instituto Nacional
de Cinema), que sofre inúmeras críticas. Assim, o livro Filme e realidade lhe dá um direito de
resposta, e demonstra o seu amplo conhecimento sobre a arte e a indústria cinematográfica, de
um modo geral. Ainda no prefácio, levanta alguns problemas nacionais do setor, dos quais o
seu anteprojeto visa erradicar: a falta de planejamento (que é um mal que “tem atrasado de
muito a evolução do nosso país”, e que não é exclusivo do nosso cinema), a falta de
comunicação e o desperdício. Porém, a seu ver, , alguns profissionais, apesar de todas as
dificuldades, conseguiram salvar o nosso cinema do completo desastre:

Graças aos elementos que conseguiram, malgrado todos os empecilhos,


realizar o pouco que se realizou; graças igualmente à facilidade com que o
técnico brasileiro aprende seu “metier”, evitou-se, por um triz, até agora, uma
catástrofe total. Esta ameaça, porém, continua aumentando cada dia mais –
com a cumplicidade de certos dirigentes cinematográficos, com a evidente
irresponsabilidade de muitos dos nossos exibidores pela educação de nosso
público, sobretudo no interior. (CAVALCANTI, 1977, p. 34)

Primeiramente, podemos identificar um elogio aos técnicos brasileiros que, apesar de


sua deficiente formação, conseguiram, com todos os problemas, realizar o pouco de bom da
nossa cinematografia. Contudo, o autor afirma uma transformação na situação vigente, em
que tais esforços individuais (veremos como Viany vai utilizar tais termos e raciocínio) não
são mais capazes de “salvar” o nosso cinema. É necessário, na conjuntura histórica de então,
uma centralização de forças, que se concentrariam no futuro Instituto, para conduzir o cinema
brasileiro. Por outro lado, são identificados os elementos de obstáculo a esse processo: alguns
produtores cúmplices com a “irresponsabilidade” dos distribuidores e o “desprezo” dos
exibidores para com o público. Em suma, a má qualidade de muitos filmes nacionais é fruto
de produtores aliados aos interesses dos distribuidores e exibidores. O público é mais vítima

1
Informação retirada de PELLIZZARI, L. e VALENTINETTI, C. M. Alberto Cavalcanti. São Paulo: Instituto
Lina Bo e P. M. Bardi, 1995. p. 273. Entretanto, a nossa segunda edição é datada de 1957, o que cremos ser uma
reimpressão. Utilizamos a última edição, por ser a mais completa, cf. CAVALCANTI, A. Filme e realidade. 3
ed. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1977
18

do que réu, pois possui uma péssima cultura cinematográfica devido aos elementos
supracitados. Cavalcanti, no fim de seu prefácio, deposita sua esperança no público, que
necessita ser educado, e assim, passará a exigir melhores filmes. Desse modo, já podemos
resumir o quadro que traça do cinema brasileiro: uma produção de má qualidade, salvo
algumas raras exceções (apesar da precariedade da formação técnica), movida pelos piores
interesses que se aproveitam da ignorância do público.

O capítulo de Cavalcanti específico sobre o cinema nacional se intitula “Panorama do


cinema brasileiro”, subdividido em “O cinema comercial” e “O cinema oficial”. É relevante
notar que não se trata de uma “História”, como ocorre no capítulo sobre o cinema de um
modo geral. A preocupação do autor é sintetizar a vigente situação do nosso cinema. Os dois
primeiros parágrafos é uma elucubração do significado de “panorama”. É interessante notar a
capacidade de o autor apresentar uma informação visualmente (o que o capacita como um
“homem de cinema”, apesar de sua vasta erudição literária). O termo é remetido ao sentido
pictórico, retratando uma visão de conjunto, seja uma cidade, uma paisagem ou, até, uma
batalha. O autor se detém, inclusive, na descrição de uma batalha com as figuras do vencedor
e do vencido, o sangue, o sofrimento, os canhões e as bandeiras esfarrapadas. Parece-nos
desconcertante iniciar tal capítulo desse modo, considerando o que pode causar ao leitor
desavisado um rompante de má literatura. Porém, o autor busca elucidar o objetivo desse
capítulo, que trata de uma visão pessoal do conjunto do setor cinematográfico nacional. Assim,
ele regressa no tempo, a 1949, quando retorna ao país, depois de décadas de ausência. Afirma
ter encontrado dois mitos: um no plano estético e outro no plano industrial. Trata-se de Limite
(a lenda e o nome: Mario Peixoto) e a Atlântida. Em relação aos sucessos comerciais dessa
companhia, resume:

“Eram estes os vencedores da batalha, uma batalha de aspecto triste, quase medíocre, com um
mínimo de heroísmo.” (CAVALCANTI, 1977, p. 48)

Podemos ver que o panorama do cinema brasileiro é o panorama de uma batalha


(assim, entendemos o motivo de sua descrição anterior). Portanto, há um raciocínio
beligerante que sustenta as opiniões pessoais do autor. Para ele, fazer filmes no Brasil era
“quase um milagre”, e o cinema brasileiro se resume aos frutos de poucos sinceros e
esforçados indivíduos, cercados por muitos “aventureiros”, preocupados apenas em arranjar
“uns cobres”. Por outro lado, o autor certifica que as demais artes (o autor cita a arquitetura, a
pintura, a escultura, a música e a literatura) evoluíram no país, e geraram uma plêiade de
grandes criadores e obras da qual temos muito do que nos orgulhar. Assim, o autor se enfrenta
com um problema: como entender que o nosso cinema se manteve numa “desesperadora
infantilidade”. Ora, se as demais artes gozam de um feliz estado, podemos concluir que o
problema do cinema em nosso país é exclusivo desta arte. Se nosso povo foi capaz de gerar
homens como Niemeyer, Portinari ou Villa-Lobos, a dificuldade está no cinema, isto é, há
algo inerente a essa arte que não a deixa evoluir em nossa terra. Ao se questionar sobre isso, o
autor busca algumas respostas a essa “mediocridade tão desoladora” que assola o cinema
nacional.

Lembremos que o autor constantemente frisa que está oferecendo uma opinião
particular e não um elaborado estudo com fins sociológicos ou históricos. Assumindo ser um
sujeito que volta ao país após muitos anos, a sua descrição adquire um ar quase antropológico,
como uma visão de conjunto de um observador vindo de fora. Assim, Cavalcanti enumera
oito problemas fundamentais:
19

1º) Fator étnico – O autor define o “caráter” do brasileiro, que prejudica o cinema.
Como os latinos, de um modo geral, nós sofremos do mal de “aprender depressa demais”,
desprezando o planejamento e a paciência que uma obra bem-acabada requer.

2º) Fator ético – Prossegue a caracterização do brasileiro: “Sofremos em geral, da falta


de equilíbrio e da falta de confiança em nós mesmos. O brasileiro é o homem dos extremos:
às vezes julga poder fazer tudo, e outras vezes, acha que não pode fazer nada, que aqui no
Brasil tudo é péssimo.” Podemos notar que, segundo o autor, o brasileiro não possui um ponto
de equilíbrio segundo o “senso de realidade”. Frisa que sofremos da carência de dois aspectos
fundamentais: falta de coragem em mostrar nossas fraquezas e falta de respeito à hierarquia,
comprometendo o funcionamento de uma indústria complexa como a cinematográfica.

3º) Fator industrial – Quando chegou ao país, a atividade cinematográfica se resumia


numa palavra: caos. A desorganização generalizada é causada, sobretudo, pela falta de
comunicação (“que prejudica também todas as demais atividades brasileiras”). Há uma falta
de maquinaria somada com o desperdício e o desleixo.

4º) Fator econômico – Os capitalistas brasileiros não compreendem que um filme


somente produz lucros depois de dois anos de distribuição.

5º) Fator profissional ou técnico – Inexistência de um quadro técnico. O autor cita,


com ceticismo, a proliferação de produtores. A falta de argumentistas é outro sério problema,
que pode ser identificada pela baixa qualidade das adaptações da literatura brasileira para o
cinema. O autor se defende das duras críticas que sofreu devido à importação de técnicos
estrangeiros, porque “desnacionalizaria as produções”. Cavalcanti afirma ser cônscio desse
“perigo”, porém, diante da má qualidade de nossa mão-de-obra técnica, se viu forçado a
buscar técnicos de outros países, que, pela troca de experiências, iria favorecer os nossos
técnicos. Declara ter buscado profissionais que tivessem capacidade de se adaptar ao nosso
país e concorda que cada cinematografia possui o seu estilo. A ameaça de
“desnacionalização”, de que as produções da Vera Cruz foram acusadas, foi contornada pela
pluralidade de nacionalidades2, que impede que um “estilo” típico de alguma cinematografia
se imponha e gere, com o passar do tempo, o surgimento de um “estilo” próprio - o
surgimento de um “estilo” brasileiro de cinema.

6º) Distribuição – “Aqui, o quadro é ainda mais desolador”. As nossas leis são
inteligentes, mas notoriamente desrespeitadas, causando sérios prejuízos ao produtor.

7º) Exibição – O ingresso de cinema, que é extremamente barato em nosso país,


retarda o retorno financeiro ao produtor. Por outro lado, as nossas salas de exibição são de
péssima qualidade.

8º) Crítica – Em relação à produção, a nossa crítica cinematográfica é abundante. Já


em seu prefácio, o autor se declara não ser contrário à publicação de livros teóricos, mas
afirma existir uma evidente desproporção entre os teóricos e os práticos em nosso meio
cinematográfico. Além do mais, a crítica é, geralmente, mal formada (tendo como base,
catálogos e livros, e não o acesso aos filmes), devido à ausência de uma filmoteca.

2
Em sua entrevista, Lúcia Pereira de Almeida, esposa de Abílio Pereira de Almeida, diz: “Tinha gente de todas
as nacionalidades. Vinte e sete nacionalidades, pra ser precisa, uma vez nós contamos. Um ambiente
variadíssimo. Tudo gente que Cavalcanti trouxe da Europa.” GALVÃO, M. R. Burguesia e cinema: o caso Vera
Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Embrafilme, 1981. p 96
20

Portanto, o autor conclui que é necessário para reverter tal quadro, uma reformulação
geral de todo o setor. Esse é o seu objetivo na proposta do I.N.C., a convite do Presidente da
República. Após enumerar os oitos problemas, o autor não esmorece num pessimismo,
conclamando a sociedade brasileira, mais especificamente os profissionais sérios do nosso
cinema, ao embate: “a luta continua, e algumas vitórias já foram obtidas”. A proliferação dos
cineclubes é vista como um bom sinal, expondo uma fórmula do que seja um filme de
qualidade: “(...) estamos certos de que a única salvação está na realização de filmes
internacionais na sua feitura e nacionais na sua concepção”. E, novamente, deposita a sua
confiança no público:

A educação do público é uma necessidade fundamental para que o


bom cinema brasileiro se torne realidade. A esta realidade chegaremos, mas
é preciso não ignorar que existem em luta contra nós outros poderosos
interesses, dos quais nunca deveremos ser instrumentos. Não esqueçamos
que em Cingapura perdemos a nossa borracha; não esqueçamos da luta que
tivemos para poder plantar algodão e da que temos tido para utilizar o nosso
petróleo. E tenhamos sempre em mente que a luta pela criação do cinema
nacional está apenas começando. (CAVALCANTI, 1977, p. 53)

Em suma, a análise de Cavalcanti possui um caráter clínico: existe um mal que impede
o cinema de “evoluir” em nosso país, identificando oito causas e esboçando um tratamento - o
I.N.C. e a educação do público. Essa última proposta demonstra o viés pedagógico do autor,
que é bem característico da proposta varguista, ou seja, os males do brasileiro não se devem a
um biologismo, à miscigenação das raças, mas à falta de educação. O consumidor médio de
filmes sofre desse problema, que pode ser solucionado pela aquisição de cultura (o que os
cineclubes e a urgência de se criar uma filmoteca é um dos remédios). Apesar de a fórmula do
autor para um bom filme brasileiro (uma forma de padrão internacional junto com uma
“concepção” nacional) conseguir superar o simplista pensamento dicotômico forma-conteúdo,
que era bem característico dos anos 50 (veremos posteriormente esse formato teórico no
pensamento cinematográfico de esquerda), Cavalcanti postula um modelo de fabricação em
molde internacional. Uma outra característica da época identificada é o nacionalismo que
insere o cinema num plano industrial de caráter geral. O “cinema nacional”, que tanto nos
envergonha, não é uma manifestação autêntica de nosso povo, pelo contrário, ele ainda não
existe, sendo apenas um movimento desorganizado, que apenas satisfaz alguns poucos
indivíduos de má índole. É importante ressaltar que o autor não subestima as capacidades do
povo brasileiro, tanto que nas demais artes não temos do que reclamar, pelo contrário. A
mediocridade da arte cinematográfica nacional é praticamente uma exceção em relação às
suas “irmãs”, pois o Brasil é fértil na qualidade de seus artistas. A razão dessa particularidade
se deve ao caráter industrial dessa arte, e portanto, somente agora, com uma política séria de
“substituição de importações”, movido pelo protecionismo e incentivo de uma legislação
nacionalista, é possível lançar as bases do cinema brasileiro. O país passava por um momento
de grandes transformações, se industrializando sob a proteção do Estado. A criação do I.N.C.
seria o primeiro passo para o surgimento do cinema brasileiro, seguindo a trilha aberta pela
Companhia Vera Cruz. Por outro lado, ao lermos detalhadamente, o autor afirma que “a luta
apenas está começando”, e ao aplicar a fórmula de filme brasileiro supracitada (apesar de seu
conceito de “concepção” ser extremamente vago), Cavalcanti demonstra que o “cinema
nacional” ainda não existe; está para ser criado como o resultado de uma batalha. Em resumo,
o passado do cinema brasileiro não tem nada a nos dizer, pois é necessário um corte com ele,
para que surja o “cinema nacional”. Cavalcanti aplica um pensamento descontinuísta que, de
certa forma, é partilhado com o projeto Vera Cruz. Segundo os idealizadores da companhia
21

paulista, o cinema brasileiro somente passa a existir a partir da sua fundação, sendo
considerando a produção de antes apenas um mero esboço de algo.

O subcapítulo acerca do “cinema oficial” nos interessa, pois aqui podemos identificar
Mauro, apesar de ele não ser mencionado. Cavalcanti desempenhou um importante papel no
chamado “documentarismo britânico”, integrando os quadros do G.P.O. (General Post Office)
Film Unit, que posteriormente, durante a guerra, se chamará Crown Film Unit. Portanto, trata-
se de uma unidade fílmica pertencente ao Reino Unido, que criou o que entendemos, hoje, por
modelo clássico de documentário. Aliás, em seu livro, Cavalcanti cita a origem do termo
“documentário” que foi criado pelo escocês John Grierson (1898-1972), retirando da palavra
“documento”, dando um tom solene, mais ao gosto do governo conservador vigente na época.
Cavalcanti, por sua vez, nunca gostou do termo “documentário”, tendo proposto a expressão
“filme neo-realista” (o movimento italiano ainda não existia). Pois bem, ao retornar da sua
experiência cinematográfica no funcionalismo público britânico, o autor está plenamente
autorizado a opinar sobre os filmes produzidos pelo Estado brasileiro. O que caracteriza a
produção governamental – afirma - é a sua pulverização numa variedade de departamentos,
sendo este o seu principal problema. Devido à falta de comunicação entre tais departamentos,
vários filmes sobre o mesmo tema são produzidos, acarretando um desperdício de material e
de fator humano. Como é reduzido o número de técnicos, o profissional é obrigado a
desempenhar várias funções, e não consegue a sua especialização. Assim, a qualidade do
filme fica prejudicada. Se o autor já havia reclamado da má formação técnica dos brasileiros,
imagina o quanto sofre o servidor público, que utiliza como material de trabalho um
equipamento, em grande parte, obsoleto e em péssimo estado de conservação.

Em suma, para o autor, o panorama do filme oficial brasileiro é mais dantesco que o
do comercial. Ou seja, tais filmes, com raríssimas exceções, são péssimos. A sua concepção já
possui inúmeros defeitos básicos, além de não abordar temas de suma importância:

Não há filmes básicos sobre a educação artístico-visual assim como


não há filmes básicos sobre a vida rural. Não se tocou ainda, nem de longe,
na educação social de nosso povo, nem na divulgação das características
das diferentes regiões do Brasil, que permitam aos brasileiros o
conhecimento de si próprios. Nosso folclore, nossas tradições, nossa
indústria, nosso progresso têm sido tratados, nesses filmes, e também nos
particulares, com um amadorismo vergonhoso. Ainda não mostramos no
estrangeiro nenhum documentário que faça justiça ao nosso país. Se
algumas vezes a fotografia tem um mérito relativo, o trabalho de laboratório,
elementar e descuidado, diminui sensivelmente o seu valor. A grafia dos
títulos peca pelo mau gosto. As fusões quase não existem, porque não há
máquina óptica, e um papelão preto é usado sistematicamente, o que
constitui um grande absurdo, porquanto fusões, “fade-ins”, “fade-outs”,
fazem parte da pontuação cinematográfica adotada desde a primeira década
do século. (CAVALCANTI, 1977, pp. 57-8)

O cinema educativo foi a principal meta do Estado brasileiro pós-30, porém,


Cavalcanti o descreve como de péssima qualidade. É relevante lembrar o seu empenho na
realização dos dois primeiros documentários da Vera Cruz, Painel (1950) e Santuário (1951),
que iniciaram a carreira de prêmios no exterior para a companhia. Ambos foram realizados
por Lima Barreto (1906-1982), que fora convidado pessoalmente por Cavalcanti a ingressar
na empresa, após uma brilhante carreira de documentarista, sobretudo, no serviço público
(Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda - DEIP-SP). Porém, o que prejudica os
filmes oficiais brasileiros, segundo Cavalcanti, é que eles não possuem um equilíbrio em sua
22

estrutura, sendo lesados em uma de suas partes (se não é a fotografia, é a revelação, e assim,
por diante). Ou seja, o filme oficial não consegue percorrer as diversas etapas de sua
realização de forma idônea, ficando sempre comprometido em alguma parte. A precariedade
de material acaba por forçar os técnicos a buscarem as soluções as mais esdrúxulas em
detrimento da boa linguagem cinematográfica, o que é alvo de crítica por parte do autor. O
que dificulta mais ainda é o fator humano. Os burocratas são severamente criticados:

Quase todos os responsáveis por seus serviços julgam-se não só mais


capazes que os colegas de outros departamentos do mesmo gênero, como
também se consideram superiores a todos os técnicos de departamentos
governamentais semelhantes existentes no resto do mundo. A triste verdade,
porém, é que são de uma incompetência crassa, agravada ainda mais pelo
total desconhecimento do que se tem feito, neste terreno, fora do Brasil, e
do que venha a ser o verdadeiro documentário ou filme educativo.
(CAVALCANTI, 1977, pp. 58-9)

Contudo, se por um lado, os burocratas são incompetentes e soberbos, os técnicos


merecem o mais profundo louvor:

O que há sobretudo de impressionante são o devotamento e a boa vontade


da maioria dos técnicos, que justamente por isso merecem todo o respeito e
admiração. O desperdício de maquinaria no cinema oficial é, como no
cinema comercial, coisa desculpável se compararmos ao desperdício do
elemento humano. Além do mais posso afirmar que os salários desses
técnicos sacrificados pelo cinema oficial brasileiro são os mais baixos de
todo o mundo, em flagrante contraste com sua potencial engenhosidade,
talvez a mais acentuada de que se tem conhecimento. (CAVALCANTI,
1977, p. 59)

Aqui, mesmo que nenhum técnico seja nominalmente mencionado, podemos


vislumbrar a figura de Mauro. Cavalcanti lamenta o quanto perdemos de nossos técnicos (não
somente no cinema oficial, mas também no comercial), ao testemunhar um enorme potencial
que não tem condições propícias de ser trabalhado. Na verdade, ignoramos se Cavalcanti, de
fato, conheceu os documentários de Mauro, mas, o que nos interessa aqui, é a estranha relação
que ele mantém com os nossos técnicos. Se por um lado, Cavalcanti foi, de uma certa forma,
o “protetor” de Lima Barreto na Vera Cruz, ele possui certas ressalvas com os técnicos
nacionais. O que notamos em seu discurso é um certo lamento pela perda de oportunidades
que o cinema brasileiro concede aos seus homens, o que o motiva a dar as melhores condições
para Lima Barreto realizar os seus documentários. Ora, se tal homem conseguiu realizar
filmes tão bons em situações precárias, o que ele é capaz de realizar numa empresa como a
Vera Cruz. Portanto, podemos ver uma certa dubiedade na opinião de Cavalcanti, pois os
técnicos brasileiros são simultaneamente louvados por sua capacidade de criação, e criticados,
por sua formação precária, enquanto ignorantes de princípios básicos da linguagem
cinematográfica. Assim, podemos sintetizar o pensamento de Cavalcanti no seguinte
raciocínio: o cinema nacional existe em potência, sendo urgente reformular toda a situação
atual para que ele passe a existir em ato. Lembremos que existe uma forma padrão de cinema
(que é universal), sendo o característico de uma cinematografia, aquilo que o autor chama de
“estilo”. Assim, o cinema nacional é um cinema de forma universal sob uma “concepção”
singular. Ou seja, o Cinema é uma só substância, sendo um atributo acidental o seu “estilo”.
Portanto, o “cinema nacional” nada mais é que uma virtualidade que o Cinema possui,
enquanto espera uma conjuntura propícia (ganhar a tal batalha) para que ocorra tal movimento,
i. e., para que o atualize, passando de potência a ato.
23

Não encontramos esse raciocínio em Alex Viany. Em seu livro Introdução ao cinema
brasileiro, 3 a sua metodologia segue os moldes de Georges Sadoul (1904-1968), cotejada por
uma superficial absorção do materialismo histórico por parte do autor brasileiro. Segundo
Michèle Lagny 4 , essa historiografia possui um raciocínio teleológico, partindo de um
“nascimento” até uma “maturidade”, quando o cinema está definitivamente consolidado, tanto
estético quanto industrialmente. Viany recorre a esse modelo, porém a “maturidade”, no caso
brasileiro, ainda não chegou, apesar de o autor possuir a convicta esperança de sua realização.
Assim, o seu livro narra uma ação progressiva que tende a um fim ainda não plenamente
efetivado, sendo uma coletânea de ações que auxiliaram nesse projeto comum. Dessa maneira,
seu livro relata “lições da história”, das quais não devemos esquecer para o estabelecimento
de uma política industrial e de uma proposta estética autenticamente nacional. Portanto,
vemos uma analogia entre o cinema e o desenvolvimento de uma pessoa, que nasce, passa
pela infância até chegar à vida adulta. Porém, esse “rapazinho”, que é o cinema brasileiro, não
consegue chegar a se tornar um “homem”. Anteriormente, vimos Cavalcanti afirmar a
“desesperadora infantilidade” que sofre o nosso cinema, porém, em Viany, existe um rumo
para onde vai o cinema brasileiro, ou seja, há um desenvolvimento, mesmo que extremamente
árduo, que o rege. Portanto, já podemos notar que o cinema brasileiro existe, porém ainda não
em sua forma plena. Não há um corte com um passado, muito pelo contrário, é necessário
voltar os olhos para ele, visando retirar daí algumas “lições”.

O primeiro capítulo de Viany, “A infância não foi risonha e franca”, descreve a fase
muda, da qual o primeiro subcapítulo dá um plano geral, indo dos primórdios até as duas
obras que marcam o ápice Limite e Barro humano. Posteriormente, há mais quatro
subcapítulos que estudam temas específicos. Com o mercado já nas mãos de estrangeiros, o
objeto de tais subcapítulos são as mais importantes tentativas de produção, divididas em
“esforços individuais” (Almeida Fleming e Humberto Mauro) e “surtos regionais” (Campinas
e Recife). Viany não define, conceitualmente, qual é a diferença entre um e outro, mas é lícito
supor que um “surto regional” é uma ação coletiva e local, enquanto que um “esforço
individual” está centrado nas ações de uma única pessoa, que transcendem a um local
específico. É notório que esses subcapítulos “individuais” ultrapassam o corte cronológico do
capítulo geral do qual fazem parte (a fase muda). Porém, tal critério de “individualidade”
pode ser contestado, pois a enigmática figura de E. C. Kerrigan (1878-1956) poderia gerar um
estudo específico, já que ele participou de vários “surtos regionais”, sob nomes distintos.
Pode-se objetar que o grau dos estudos históricos na época não capacitaria a escrita de tal
estudo particular, mas podemos notar que Viany sublinha, por ocasião do ciclo campineiro, a
participação de Kerrigan em várias outras produções em diversas localidades (São Paulo,
Guaranésia e Porto Alegre)5.

Assim, o subcapítulo “Outro esforço individual: Humberto Mauro” aborda, como já


diz o título, a figura de Mauro, e não o chamado “ciclo de Cataguases”. Isso é tão evidente
que Pedro Comello só é citado por ocasião da co-direção em Valadião, o cratera (1925),
sendo o seu longa Senhorita agora mesmo (1927) citado somente numa nota de rodapé, e
mesmo assim, sem se referir ao nome do diretor, preocupando-se em destacar a
protagonização de Eva Nil. Portanto, o objeto de estudo é Humberto Mauro, não apenas de
seus filmes mudos, chegando a esboçar a sua fase carioca (que será analisada posteriormente)

3
VIANY, A. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959
4
LAGNY, M. Cine e historia. Trad. J. Luís Fecé. Barcelona: Bosch, 1997
5
VIANY, A. Op. cit. p. 69; “(...) E. C. Kerrigan, possivelmente um ianque exilado (...)”
24

e o regresso à Volta Grande. Porém, assim como todo o seu livro, Viany sofre de uma
carência de fontes, tendo retirado grande parte das informações para esse subcapítulo do
artigo de Carlos Ortiz6 e do capítulo do próprio Mauro acerca do ciclo cataguasense7 . As
epígrafes, uma de Ortiz e outra de Mauro, serão re-transcritas, na versão integral, no corpo do
texto.

Após citar os filmes que compõem a experiência de Cataguases, Mauro é citado como
uma resposta ao motivo do fim de tal ciclo, apesar de ter produzido filmes tão importantes:

E aí parou o surto que viria a ser conhecido como o “Ciclo de


Cataguases”.(...) Confiávamos no nacionalismo e na tolerância das platéias,
o que até hoje não me desiludiu. Em breve, porém, comerciantes e técnico,
verificamos o ledo engano: o filme nacional, sob todos os pretextos,
encontrava uma resistência compacta e invencível entre os distribuidores,
amarrados que estavam ao monopólio estrangeiro, que avassalava com os
seus produtos o mercado brasileiro, de ponta a ponta. (VIANY, 1959, pp.
86-7)

Podemos identificar os problemas de produção visceralmente associados ao mercado


invadido pelo filme estrangeiro, apesar da confiança na “brasilidade” das platéias. Mauro
prossegue o seu saldo do ciclo de Cataguases:

Encerrou-se depois de me haver proporcionado um cabedal de


experiência extremamente útil. À míngua de recursos e conforto, meu
entusiasmo havia adotado desde logo o imperativo nacional: quem não tem
cão, caça com gato. Sem atores, montagens, maquilagem, etc., toda a família
representava, e se filmava o homem da cidade e do campo em seus misteres
habituais. A natureza era surpreendida, e dava-se tratos à bola para suprir com
expedientes os meios mecânicos: confeccionei relâmpagos e tempestades
usando a luz solar, um pano preto e um regador. (VIANY, 1959, p. 87)

A carência de meios técnicos não é motivo de lamento ou desprezo, mas algo a ser
dignificado por Viany. Cita um artigo de Octavio de Faria (1908-1980) que louva Brasa
dormida, justamente por sua engenhosidade com os parcos recursos utilizados (nos termos de
Viany, a “caçada com gato”) 8. Podemos notar que o autor lança mão de um argumento de
autoridade ao utilizar uma figura do porte de Octavio de Faria. Tentando suprir a falta de
fontes (“a caçada com gato”), Viany conduz o leitor a um favorável quadro geral do cinema
maureano. Após citar a sua passagem nas companhias de Gonzaga e Carmem Santos (1904-
1952), relata com um certo tom de lamento os seus dias no INCE (o que condiz com o seu
procedimento metodológico que privilegia o gênero ficcional, relegando solenemente o
documentário). O seu retorno à Volta Grande é exultado, pois O canto da saudade (1952) é
tido como uma retomada do seu estilo bem característico, i. e., um cinema que manifesta, com
toda profundidade, a “brasilidade”:

Essa tardia volta à casa paterna não teve somente motivos sentimentais:
Mauro sempre quis fazer filmes nitidamente brasileiros, quase com cheiro
de terra – coisas que, nos tempos mudos, seriam acompanhadas ao piano
por canções tão caboclas como “Luar do Sertão” ou “Casinha Pequenina”.

6
ORTIZ, C. “I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro”. Fundamentos, São Paulo, abril de 1953
7
MAURO, H. “O ciclo de Cataguases”. In catálogo I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro.
8
FARIA, O. “’De Sally de meus sonhos” a “Braza dormida””. O Fan, Rio de Janeiro: abril 1929
25

O canto da saudade custou cerca de 500 contos, foi pessimamente lançado,


nem sempre compreendido pelo público viciado em correrias no far-west
(Mauro acredita que o ritmo brasileiro é muito diferente, e trata seus filmes
de acordo com esse princípio) – e só mais tarde é que encontrou seus
primeiros campeões. Na Mostra Retrospectiva de São Paulo, alguns críticos
ficaram surpresos com a obra (VIANY, 1959, pp. 89-0)

A obra de Mauro, e particularmente tal filme em questão, merece tanto apreço por
duas razões fundamentais: expressar autenticamente a “brasilidade” (“quase com cheiro de
terra”) e ser uma produção de baixo orçamento. Relembrando que o livro é posterior ao
fracasso da Vera Cruz, o último longa de Mauro é quase um prenúncio do declínio do cinema
paulista, e se direciona a um rumo desprezado, então, na época (uma produção artesanal). O
principal mérito da obra de Mauro, de Cataguases à Volta Grande, passando pelo Rio de
Janeiro, é ser “um exemplo de tentativa consciente de fazer um cinema legitimamente
nacional” (o grifo é nosso). Como já foi citado anteriormente, o cineasta conhece os
“adversários” do filme nacional, mas não esmorece o seu entusiasmo e esforço.

Como entender essa “brasilidade” tão louvada pelo autor? Aqui, encontramos o pomo
da discórdia que fremia a crítica cinematográfica dos anos 1950, que pode ser dividida entre
“esteticistas” e “crítico-históricos”. 9 O grupo batizado de “crítico-históricos” são pessoas
associadas a segmentos de esquerda, que não possuíam tanto prestígio quanto os “esteticistas”,
que escreviam para os jornais de maior circulação e eram convidados para comissões
governamentais. Assim, os “crítico-históricos” investem, como meio de respaldo, numa ativa
participação nos congressos e na escrita de uma história do cinema brasileiro.10 Viany encarna
esse ramo e, após o seu regresso de Hollywood e uma fracassada experiência na Companhia
Cinematográfica Maristela, passa a ser uma das principais vozes desse grupo. Segundo Autran,
podemos identificar uma mudança em seu pensamento (e não um corte) nesse período.11 No
início dos anos 1950, quando Viany se filia ao P.C.B. (Partido Comunista Brasileiro), o seu
modelo estético era extremamente dogmático, pois utilizava os conceitos do “realismo
socialista”, em sua vertente “zdhanovista”. Com o processo de desestalinização do partido, e
absorvidas leituras voltadas ao neo-realismo italiano, o crítico passa a cotejar com as idéias de
Guido Aristarco, influenciadas por Antonio Gramsci e György Luckács. Em relação a Mauro,
podemos notar essa distensão ideológica, ao citar que o cineasta mineiro afirmava a existência
de um “ritmo” brasileiro, distinto das correrias dos faroestes, amplamente consumidos pelo
público. Viany já se desligara dos conceitos zdhanovistas, quando pregava, conforme o
sectarismo do partido, uma forma já absorvida pelas massas, mas “abrasileirada” pelo tema.
Aqui, a condição para que um filme seja considerado legitimamente “brasileiro” não é
somente um tema, mas a busca de uma forma. Isso é retomado quando Viany analisa O
cangaceiro (1953) de Lima Barreto: “Timidamente fugindo aos aspectos sociológicos e
mesmo históricos do problema do cangaço, Lima Barreto fez, de fato, um filme de aventuras.
Mas, atendendo ou não à teoria de Humberto Mauro,(o grifo é nosso) segundo o qual não
podemos e não devemos imitar o ritmo cinematográfico de escolas estrangeiras, deu a sua
narrativa um tempo (grifo do autor) que Salviano (sic) Cavalcanti de Paiva classificou de justo
(...)”.

9
LUCAS, Fábio. “Sobre a crítica de cinema”. Revista de Cinema, Belo Horizonte, ano II, v. III, nº 18. setembro
1955, pp. 29-32
10
Porém, os “esteticistas” também estavam preocupados em elaborar uma história do cinema brasileiro. É o caso
de Benedito J. Duarte (1910-1995), um dos “descobridores” de Humberto Mauro no início da década de 50 (o
que estudaremos no capítulo seguinte).
11
AUTRAN, A. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em Ciências –
Cinema) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, p 200
26

A fase carioca de Mauro é estudada superficialmente no subcapítulo “Dois diletantes


na indústria: Gonzaga & Santos”. Ganga bruta (1933) é descrito como “um dos filmes mais
famosos na história do nosso cinema” mas não é analisado com muita atenção, distinto de
Favella dos meus amores (1934), que recebe extensos elogios. O seu valor se deve por
apontar “um rumo verdadeiro a nossos homens de cinema”. O prestígio do filme, sublinhado
pelo autor, está associado a uma feliz abordagem de um tema carioca de suma importância: o
morro. Vemos que o valor é assinalado pelo caráter temático do filme, e não por uma “forma”.
Esse filme abre um promissor caminho para o cinema brasileiro.

Portanto, a figura de Mauro é relevante por sua proposta, “consciente” segundo Viany,
de uma cinematografia legitimamente brasileira, enquanto conteúdo e como forma. A
precariedade de recursos que Mauro aborda não é vista com desânimo, mas como algo a ser
superado via criatividade. Desse modo, a carência não é um obstáculo inexpugnável. Não
encontramos o raciocínio tautológico segundo o qual a carência de recursos compromete a
qualidade dos filmes que, por sua vez, prejudica a formação dos técnicos, cuja ignorância,
então, compromete a qualidade dos filmes. Assim, a principal crítica de Viany ao livro de
Cavalcanti é o desprezo que confere aos técnicos brasileiros ao congratular os estrangeiros
“importados” ao país:

É evidente que o realizador foi, de início, prejudicado pelo


desconhecimento não só do ambiente, mas principalmente do jeitão brasileiro.
Assim, denuncia no livro nosso gosto pelo palpite e pela improvisação, sem
ter percebido que muito menos seríamos, no cinema como em outros setores,
sem o palpite e a improvisação. Só podemos concordar parcialmente com ele
quando atribui ao “caráter nacional” grande parte da culpa pela estagnação de
nossa cinematografia (...) (VIANY, 1959, p. 136)

Entretanto, ao concluir o saldo do “caso Vera Cruz”, o autor redime Cavalcanti:

Quanto a Alberto Cavalcanti, só em vésperas de deixar o Brasil novamente é


que denunciou muitos dos erros por ele próprio cometidos: começou a
valorizar o elemento nacional (o falecido Edgar Brasil foi o diretor de
cinematografia de Mulher de verdade), abriu os olhos para os perigos da
desnacionalização de nossos filmes, e identificou definitivamente os inimigos
do cinema brasileiro, declarando: “O cinema nacional sofre da moléstia do
cosmopolitismo. Enquanto essa fase não for superada, nada irá adiante entre
nós, em favor do desenvolvimento da sétima arte. Atores não nos faltam. O
que nos falta é capital e trabalho de equipe”. E, em 1958, na (...) entrevista
parisiense, dava nome aos bois, dizendo que o cinema brasileiro não vai para
frente “por causa dos americanos, em primeiro lugar (VIANY, 1959, pp. 138-
9).

Podemos ver que Viany consegue superar a dubiedade de Cavalcanti em relação aos
nossos técnicos, afirmando que “a improvisação e o palpite” são, apesar de tudo, as nossas
principais armas de luta. A fonte dos erros do ex-produtor-geral da Vera Cruz foi a sua
ignorância do meio cinematográfico nacional, quando culpa somente os agentes locais sem
considerar os fatores externos que são os principais responsáveis pela situação nacional.
Apesar de ainda estar preso a um dicotômico modelo estético “forma-conteúdo”, Viany rompe
com a idéia de que a linguagem cinematográfica é una. Mauro, com sua chamada “teoria”,
provou que a “brasilidade” não se restringe aos temas, mas a uma certa forma de filmar.
Existe um tempo brasileiro próprio, que deve estar na tela assim como na vida. Em suma, o
27

Cinema possui a função de expressar uma experiência que está no cotidiano, traduzindo-a em
sua linguagem específica.

Assim, podemos sintetizar o pensamento de Viany do seguinte modo: o cinema


brasileiro existe, e está trilhando um caminho para a sua definitiva industrialização. Essa meta
não está dissociada do contexto nacional; muito pelo contrário, a atual conjuntura histórica do
país torna possível a consolidação da nossa indústria cinematográfica. As experiências
anteriores cometeram erros, mas muitas de suas faltas se devem à sua situação conjuntural (é
por esse raciocínio que Gonzaga e Santos são chamados de “diletantes”). Viany valoriza a
chanchada, sobretudo a da proposta original da Atlântida, que aliava as preocupações
comerciais a uma estética de veleidades populares. É necessária a produção do maior número
possível de filmes nacionais, obrigando o mercado a absorvê-los, pois é “da quantidade que
virá a qualidade, como em qualquer indústria”. Desse modo, voltamos a repetir que, para
Viany, a história do cinema brasileiro está inserida num contexto mais amplo, e portanto, o
autor ao constatar o então processo de industrialização que o país sofria, desde o início dos
anos 50, conclui que era uma mera questão de tempo para a implementação da indústria
cinematográfica. E assim como acontecera com as demais indústrias, tais como a siderúrgica
ou a automobilística, a indústria do cinema também necessita do respaldo do Estado para a
sua criação.

Viany não chega a formular a idéia de uma cinematografia estatal, como nos países
socialistas. Não podemos esquecer das teses do P.C.B. daquele momento preconizavam que
seria necessária antes uma etapa democrática-burguesa para que o Brasil atingisse a fase
socialista (como uma república democrática-popular). O cinema brasileiro, enquanto indústria,
se afirmaria nos moldes nacionalistas do desenvolvimentismo (ou seja, num molde burguês)
para, posteriormente, cristalizar-se enquanto um autêntico cinema, isto é, um cinema
nacional-popular, que alcançaria sua plena maturidade no socialismo. Assim, podemos
interpretar o elogio a O canto da saudade, não somente por seu tom popular, tanto no tema
quanto na forma, mas pelo seu esforço limitado, por ser individual e não coletivo, de
produção. Podemos identificar uma certa contradição no elogio desse filme, pois Viany não
abre mão de uma indústria apesar do citado filme ser uma produção artesanal. A crítica do
autor à Vera Cruz não se deve ao seu projeto industrial, mas pela sua ação cega, sem um
maduro conhecimento das condições nacionais do cinema. O seu fracasso se deve, para
utilizarmos um vocabulário partidário caro ao autor, à sua prática voluntarista: “A Vera Cruz,
assim, não errou por aparecer quando apareceu [o que seria “diletantismo” nos termos do
autor], nem errou por desejar muito [excesso de “idealismo” burguês]. Errou, principalmente,
por querer muito sem saber como e porquê”. Em suma, não havia nos projetos da Vera Cruz,
uma prática sistemática aliada a uma consciência cinematográfica madura.

O valor de Mauro, segundo o autor, é o fato de ele ser uma avis rara nesse cenário, ou
seja, ele é um cineasta consciente de sua prática artística. Talvez não totalmente consciente
em termos políticos, o que Glauber irá sublinhar, mas uma pessoa “madura” enquanto homem
de cinema. Portanto, o elogio de O canto da saudade não se deve ao seu aspecto artesanal,
mas ao seu artesanato encarado como uma estratégia, intuída no momento, por uma
necessidade pessoal de criação artística do cineasta de se afastar do modelo industrial paulista.
Assim, voltamos a frisar que Viany não abandona o modelo industrial, tanto que o filme
carioca mais elogiado de Mauro pelo autor não é Ganga bruta, o que já era um consenso
estético no final dos anos 50, mas Favella dos meus amores, por sua proposta comercial
atrelado a uma temática popular, que sem comprometer a qualidade estética, abre caminho
28

para as chanchadas da Atlântida (e de um autêntico “cinema brasileiro”, tanto estético quanto


industrialmente).

Portanto, a teleologia que subsiste no cinema brasileiro está se consolidando numa


ação coletiva e consciente, expressa nos congressos e nos filmes, deflagrada pelo fracasso da
Vera Cruz. Contudo, o autor frisa que o cinema brasileiro está trilhando dois caminhos
diferentes (assinalados por obras tão díspares mas concordantes na proposta): um, que seria o
mais autêntico, reúne filmes como O cangaceiro, Sinhá moça, Rebelião em Vila Rica, O
grande momento, e que foi aberto por Favella dos meus amores; e o outro é o cosmopolitismo
renitente de alguns herdeiros do cinema paulista: Walter Hugo Khouri (1929-2003) e Rubem
Biáfora (1922-1996). O futuro de um legítimo cinema brasileiro, tanto estético quanto
industrialmente, depende do caminho que os cineastas vão trilhar. Assim, ao mesmo tempo
em que há um progresso histórico, circunscrevendo conjunturas, há um espaço para as ações
humanas, condensadas no elemento privilegiado dessa história: os filmes (que, é necessário
ressaltar, apenas os longas-metragens de ficção são abordados pelo autor).

Em 1960, Paulo Emílio Salles Gomes redige um artigo, que gerou grandes discussões,
cujo título é Uma situação colonial?. 12 Galvão e Bernardet 13 ressaltam a interrogação do
título, que é inteiramente ignorada nas discussões acerca do artigo suscitadas nos anos 60,
dando um caráter indiscutível ao tema. A preocupação do autor é dar uma visão ampla do
meio cinematográfico no país (podemos dizer, nos termos de Cavalcanti, um “panorama”).
Identificadas a necessidade e a importância de se fazer uma análise geral do setor, o autor
busca um “denominador comum” que possa unir tão diversos aspectos (do estudo de mercado
às especulações estéticas): a mediocridade. Todos os elementos que se relacionam com o
cinema no Brasil trazem consigo “a marca cruel do subdesenvolvimento”. Realizando uma
analogia com as regiões mais pobres do país, nas quais a miséria (seja pela população ou pela
paisagem) salta aos olhos de qualquer observador, os que se ocupam com cinema no Brasil,
possuem impressas tais características, não necessariamente físicas, mas as de “um processo
de definhamento intelectual”. Portanto, a miséria, não somente material mas espiritual, é o
que define o setor cinematográfico. Aqui é relevante notar que o autor realiza uma “reflexão
acerca da situação do cinema no Brasil em todos os seus aspectos culturais, industriais e
comerciais” (o grifo é nosso). Assim, não se trata do “cinema brasileiro”, mas, nos termos do
autor, do cinema no Brasil; o que significa que sua análise também inclui os filmes
estrangeiros.

A primeira vítima da mediocridade que o autor aborda são os que parecem ser os mais
“fortes”, i. e., retomando a sua analogia com as regiões mais pobres, os que possuem o
aspecto mais saudável em comparação aos demais setores do cinema. Trata-se dos
importadores e exibidores, ou seja, os setores intimamente associados ao cinema estrangeiro.
Eles também sofrem da mediocridade reinante por agirem de acordo com uma regra da qual
não possuem controle, ou seja, são incapazes de violarem as leis de um mercado viciado,
assentado em fatores alheios. Prosperam em detrimento da “emancipação e enriquecimento da
comunidade”, definindo-se como um grupo local atrelado a interesses externos:

12
GOMES, P. E. S. “Uma situação colonial?”. In Crítica de cinema no suplemento literário. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1981. v. II. pp. 286-291
13
GALVÃO, M. R. e BERNARDET, J. – C. O nacional e o popular na cultura brasileira - Cinema:
repercussões em caixa de eco ideológica. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme, 1983. pp. 164 - 168
29

A situação de coloniais implica em crescente alienação e na depauperação do estímulo para


empreendimentos criadores. Esses homens práticos não estão na realidade capacitados para nenhuma
ação de conseqüência no quadro geográfico e humano brasileiro. Podem ter idéias e projetos, mas
sempre dentro dos limites estreitos diante da qual se sentem desarmados. (GOMES, 1981, pp. 286-7)

Aqui, o relevante para nós, é encontrarmos dois conceitos-chave do pensamento da


esquerda na época: alienação e colonialismo. Em capítulo posterior, analisaremos tais
conceitos, mas podemos afirmar que a definição geral de “colonialismo” (aqui entendido o
seu sentido genérico e não um conceito filosófico-político singular) é um sistema sócio-
econômico dividido em dois pólos: Metrópole e Colônia. O chamado “pacto colonial” se
define numa relação comercial entre produtos manufaturados produzidos pela Metrópole e
matérias-primas pela Colônia. Portanto, está presente no texto a idéia de que o realizado no
nosso país segue regras que não são ditadas pelos interesses locais, mas, seguem os de alguma
“Metrópole”. Portanto, todas as categorias que compõem a atividade cinematográfica no
nosso país se caracterizam por uma bi-polaridade, na qual um elemento externo condiciona o
elemento local. Voltamos a lembrar que o título é uma pergunta e, por conseguinte, o autor
ainda não respondeu se estamos, de fato, diante de uma “situação colonial” ou não.

Assim, todas as categorias são analisadas, buscando ver quais são as suas respectivas
“marcas” da miséria. A do produtor se deve a um estranho obstáculo: o público. Sem citar o
termo “chanchada”, podemos claramente notar a sua presença:

Produzem determinado gênero de filmes que eles próprios desprezam,


alegando ser o único tipo de cinema brasileiro que o público aceita. No
fundo, esses homens (...) estão convencidos de que o público brasileiro é
infenso ao cinema nacional. As fitas que fabricam, aliás, não são
propriamente cinema para o público, mas o prolongamento de espetáculos
que este admira no rádio, televisão ou teatro ligeiro. (GOMES, 1981, pp.
287)

Portanto, voltamos a identificar um elemento externo que condiciona uma ação, no


caso, o gosto do público que obriga a produção de um tipo de cinema que, por sua vez, é
condicionada por elementos alheios (rádio e etc). O problema do público é o mesmo do
produtor, numa “harmoniosa combinação”. Para ambos, o Cinema, ou seja, o verdadeiro
cinema, é o produzido no estrangeiro, sendo os filmes nacionais encarados como uma outra
coisa. O que vem de fora é o modelo, é o “autêntico”, enquanto que a produção local é vista,
pelo público e produtor, como um elemento que possui uma diferença de natureza em relação
ao estrangeiro. Como sublinha o autor, o produtor encara paternalmente as suas obras, e busca
um amparo da legislação, “mas não passa por sua cabeça que o objetivo final possa ser o de
colocar os filmes brasileiros em pé de igualdade com os estrangeiros”.

Se o filme brasileiro é visto como uma outra coisa radicalmente distinta do estrangeiro,
quando há alguma intenção artística nele, o público se retrai. Aqui, o autor se volta aos
homens da cinematografia nacional (produtores, diretores, técnicos ou artistas) “que nutrem
ambições desenvolvimentistas no terreno artístico e industrial”. Essas pessoas, bem
intencionadas, sofrem as mais árduas adversidades, sendo vítimas de um terrível desgaste, que
termina em lamentação e frustração. Assim, a sua grande maioria desiste de empreender uma
luta sem sentido e sem perspectivas de melhora. O mesmo problema acomete as pessoas de
atividades culturais, como a cinemateca, que buscam arejar o quadro estético e intelectual do
cinema no país, e passam por várias adversidades na relação com os setores governamentais.
Barrados pela morosidade do Estado e ignorância de burocratas, tais pessoas são obrigadas a
30

transformarem a paciência e teimosia em virtude, submetendo-se, a longo prazo, a uma


“secura capaz de alterar profundamente uma personalidade”. Por outro lado, a cinemateca
realiza uma tarefa sobre-humana na tentativa de sanar a deficiência do cenário
cinematográfico no país, exibindo filmes que realizem uma verdadeira formação e elevem o
gosto cinematográfico.

Se o público sofre de uma profunda ignorância em termos fílmicos, a crítica tampouco


escapa desse problema. Assolado pelo mesmo mal que acomete o público e o produtor, o
crítico crê que o verdadeiro cinema é o estrangeiro, possuindo uma estranha relação com os
filmes locais. A sua precária formação se restringe à cinematografia estrangeira; desconhece
solenemente o que aqui foi produzido e, portanto, não consegue compreender o objetivo de
seu próprio ofício. Se, por um lado, a sua atividade não repercute nas produções estrangeiras,
por outro, ele não logra construir um diálogo com o produtor local. A crítica volta-se para si
mesma, criando debates internos, que são enfadonhos para o leitor habitual e inúteis ao
produtor local. O filme nacional é algo que escapa de seus conceitos, pois se compõe de uma
outra natureza que a de um “legítimo” filme:

Assim como a prosperidade do importador está condicionada a realidades


econômicas estrangeiras, o enriquecimento cultural do crítico gira
progressivamente na órbita de um mundo cultural distante. Como o
primeiro, acaba marcado pelos sistemas da alienação. Esse fenômeno lança
alguma luz sobre a ambigüidade das posições do crítico brasileiro frente à
produção de seu País. O filme nacional é um elemento perturbador para o
mundo, artificial mas coerente, de idéias e sensações cinematográficas que
o crítico criou para si próprio. Como para o público ingênuo, o cinema
brasileiro também é outra coisa para o intelectual especializado. Atacando
com irritação, defendendo para encorajar ou norteado pela consciência de
um dever patriótico, o crítico deixa transparecer sempre o mal-estar que o
impregna. Todas essas posições, e particularmente o sarcasmo demolidor,
são véus utilizados para esconder o sentimento mais profundo que o cinema
nacional suscita no brasileiro bem formado – a humilhação. (GOMES, 1981,
pp. 290-1)

Em suma, o cinema brasileiro é visto, paradoxalmente, como um corpo estranho, com


o qual não sabemos lidar. Visto como algo postiço, por sua precariedade ou como um mero
prolongamento de uma outra coisa, a mediocridade do filme nacional é uma expressão do
subdesenvolvimento do país. Portanto, o meio cinematográfico, em todas as suas categorias,
está cerceado por fatores externos. O “panorama” desenhado por Paulo Emílio Salles Gomes
partiu de uma definição que buscasse abarcar a totalidade do setor, caracterizando-o pela
mediocridade. Assim, esmiuçou cada categoria, para deslumbrar o seu respectivo
funcionamento, e concluiu que “a mediocridade reinante não emana das pessoas empenhadas
nas diferentes tarefas, mas é o resultado direto de uma conjuntura muito precisa”. Semelhante
a Viany, os problemas do cinema no Brasil, para Salles Gomes, não podem ser encarados
isoladamente, mas unidos por uma única estrutura. Ao desenhar tal conjuntura, Salles Gomes
ainda aborda as co-produções, que eram vistas como uma grave ameaça pelos “crítico-
históricos”. Orfeu do carnaval (1959) de Marcel Camus (1912-1982) é visto, por esses setores,
como um falso filme brasileiro. Seria o olhar estrangeiro lançado em nosso povo e seus
costumes, podendo abrir um caminho perigoso para o nosso cinema. Assim, a interrogação do
título é respondida afirmativamente, sendo, justamente, as co-produções a sua expressão mais
clara:
31

Se introduzirmos, cedendo ao gosto da imagem, um comentário a


respeito das chamadas co-produções, isto é, a utilização por cineastas
estrangeiros de nossas histórias, paisagens e humanidade, caímos
plenamente na fórmula clássica sobre a exportação de matéria-prima e
importação de objetos manufaturados. (GOMES, 1981, p. 291)

Portanto, Cavalcanti, em 1951, definia a realização de filmes no país como uma luta e
identificava oito problemas fundamentais que impediam a consolidação de uma indústria
cinematográfica nacional. A sua relação dúbia com os técnicos brasileiros é a melhor
manifestação de seu pensamento, constatando o “estado infantil” no qual o cinema brasileiro
se encontrava antes da criação da Vera Cruz. Para se criar uma indústria cinematográfica é
necessário, antes de tudo, profissionalismo, isto é, rigor técnico e disciplina, praticamente o
antônimo do então quadro do cinema brasileiro, formado pelo improviso e conduzido por
muitos “aproveitadores”. Por outro lado, Viany compõe uma história que descreve o cinema
brasileiro como uma luta de longa data, associando-a a diversos momentos, que
circunscrevem os seus limites. O improviso passa a ser visto como uma estratégia, ainda não
consciente, de luta. A autêntica consciência da categoria cinematográfica se cristalizaria por
intermédio dos congressos, que verdade seja dita, foi uma contribuição da Vera Cruz. Assim,
como as demais indústrias surgidas no país, a cinematográfica seria criada, segundo o mesmo
processo nacionalista, conforme a atual conjuntura histórica. Salles Gomes, por sua vez, busca
uma definição geral da atual situação do cinema no país, sintetizando-a numa única
conjuntura. Tal quadro descrito pode ser classificado como “colonial”; apesar de esse tema ser
futuramente analisado, de forma mais matizada, em 1973, em outros termos
(ocupante/ocupado). Utilizando conceitos fundamentais (alienação e colonialismo), vemos
que sempre há um elemento exterior que define o específico. O cinema brasileiro é definido e
analisado a partir de elementos externos. Há um dilaceramento estrutural em sua própria
conceituação. Cinema brasileiro é, por definição, um deslocamento.
32

CAPÍTULO 2 – O QUE É “CINEMA NOVO”?

No início dos anos 1960, Glauber Rocha tinha um sério problema para resolver:
definir o termo “Cinema Novo”. Tradicionalmente atribuído ao crítico Ely Azeredo (1930- ),
a criação desse termo surge na ocasião de uma mudança no cinema, no sentido geral. Apesar
de ser um ferrenho crítico do movimento que batizara, Azeredo acabou por cunhar um termo
que se difundiu rapidamente, seja entre os detratores quanto entre os simpatizantes. Portanto,
é relevante sublinhar que tal expressão não foi criada pelo próprio grupo, mas foi rotulada por
setores externos e, o que é mais importante, contrários ao movimento. Como não havia uma
identidade única nesses filmes, o termo se tornava propício a uma indefinição constante.1

Por outro lado, podemos constatar que a busca de uma definição pelos próprios
membros do grupo estava presente desde as suas primeiras discussões, nas quais se postulava
a necessidade de transformar o cinema brasileiro. Foi escrito por Miguel Borges (1937- ) um
manifesto, que ficou jocosamente conhecido por Manifesto Bola-Bola. Em suas memórias,
Paulo César Saraceni (1933- ) narra o fato:

Eu estava preocupado, queríamos fazer um manifesto que rompesse


com tudo que estava acontecendo no Brasil em matéria de cinema. Queríamos
um manifesto comum a todos, mas achava que não estávamos preparados para
isso. Mas eu queria esse manifesto, achava que o cinema brasileiro precisava
dele. (...) Tínhamos uma página prometida no suplemento cultural de maior
sucesso no Brasil. Não dava para esperar mais, íamos tentar.

Somos poucos agora, mas, lançado o manifesto, muita gente vai estar dentro
do movimento (...) o pessoal de São Paulo, sei lá, o Brasil inteiro – eu
pensava.

Onze horas da noite estávamos no Alcazar, esperando o texto de Miguel


Borges. Havia um ar de coisa histórica. Miguel Borges começou:

- Não queremos mais cinema-literatura. Não queremos mais cinema-


escultura. Não queremos mais cinema-música. Não queremos mais cinema-
dança. Não queremos mais cinema-teatro. Queremos cinema-cinema.

Aí, eu pulei – todos estávamos espantados com um começo de manifesto


que pretendia reinaugurar o cinema brasileiro. Aquilo era ridículo.

- Vamos ouvir o fim do Manifesto – gritavam

- Não quero ouvir mais nada – eu disse. – Isto é


manifesto dos anos 20, do cinema mudo. Pretensioso, nem Eisenstein
assinaria. Ridículo. Parece o filho pedindo para o pai: Quero uma bola. Não
uma bola de futebol, não uma bola de basquetebol, não uma bola de vôlei,
não uma bola de pólo aquático, não uma bola de tênis, não uma bola de
bilhar, não uma bola de pingue-pongue. Quero uma bola-bola!

1
Aliás, num artigo de 1962, Salles Gomes afirma que a força do Cinema Novo emana de sua indefinição, ver
GOMES, P. E. S. “Primavera em Florianópolis”. In Crítica de cinema no suplemento literário. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981. V II. p 406
33

Aí, o pau comeu, todo mundo falava ao mesmo tempo. Gritávamos.


Miguel não quis mais ler o manifesto. Virou piada. Ficou conhecido como o
Manifesto Bola-Bola. O movimento nasceu em 1959 com um manifesto
frustrado. (SARACENI, 1993, pp. 47-8)

Se fomos exaustivos na citação, isto se deve ao grau de expectativa gerada pelo


manifesto.2 A necessidade primordial era unir forças, e esse manifesto, como uma declaração
de princípios estéticos e políticos, seria a ferramenta catalisadora de tal processo. Assim,
podemos ver a vontade de se romper com o cenário cinematográfico da época, mas, por outro
lado, detectamos uma ausência de objetivos bem definidos para uma ação coletiva a ser
sistematizada (talvez, em termos individuais, certos cineastas já tivessem perspectivas
delimitadas). Também é interessante notar o uso de um manifesto como estratégia, algo
incomum no cinema brasileiro (e no cinema, de uma forma em geral, se compararmos com
outras artes). Devido a uma produção incipiente - somente alguns curtas tinham sido
realizados, A cruz na praça (1958), Pátio (1959) e Caminhos (1957) – um texto daria maior
visibilidade ao grupo. Porém, o motivo do fracasso de tal manifesto, que pretendia conceituar
o tipo de cinema almejado por aqueles jovens, nos faz interrogar sobre o papel dessa arte por
eles atribuído.

Saraceni taxa o manifesto de ridículo por parecer uma mera demanda histérica
(“Queremos cinema-cinema”), o que comprometeria aos seus olhos a seriedade do movimento.
Portanto, podemos notar um tom racional atribuído à produção artística, já que o tal
manifesto tinha a pretensão de ser um marco na história da nossa cinematografia (“achava que
o cinema brasileiro precisava dele”). Contudo, não podemos esquecer que, em se tratando de
um texto teórico, o manifesto seria a reflexão e, portanto, um procedimento racional daquele
grupo sobre o cinema brasileiro. Se a década de 1950 foi um período rico no fomento de um
pensamento cinematográfico nacional, momento da formação desses jovens, o manifesto
deles, por sua vez, daria um novo tom a essa discussão e voz àquela geração de cineastas
debutantes. O Cinema estava mudando, e o tipo de discussão que sacudia a crítica dos anos 50
deveria também mudar. O que queremos frisar é que o cinema era visto por esses jovens como
uma arte extremamente elaborada (daí, o ódio à chanchada, encarada como algo mal feito) e
vinculada a um viés político (não é gratuito o nome de Eisenstein ser usado por Saraceni3).
Por outro lado, a censura de Saraceni ao caráter “cinema mudo” do manifesto espelha a
vontade de se coadunar com as inovações estéticas do cinema mundial. Por exemplo, a
influência do movimento concretista em Pátio e as citações cinematográficas, acusando uma
erudição cinéfila em Caminhos, demonstram o quanto o cinema era visto como uma
manifestação artística que necessitava ser alçada ao mesmo nível que as demais artes no
Brasil. Muita tinta foi vertida na discussão do que é próprio do Cinema, seja na busca de um
“cinema puro”, dos teóricos franceses, como na definição do “específico fílmico”, dos
teóricos italianos. Mas, a discussão da relação do Cinema com as outras artes estava mudando
graças às teorias realistas, como as de Aristarco e de André Bazin (1918-1958). Portanto, se o
manifesto, tão desejado por Saraceni, deveria promover uma originalidade nas discussões
sobre o cinema nacional, a sua eficácia, através do texto de Borges, é nula, devido à sua
inconsistência de diretrizes estéticas, em termos recentes.

2
Num texto de 1962, Glauber relata o fiasco do manifesto: “Mas o que queríamos? Tudo era confuso” in
ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981. p. 16
3
Aliás, o próprio Saraceni era um tanto mal visto por não ser um “eisensteiniano” ferrenho – “É um babaca que
gosta de Fellini” Idem p 409
34

Malgrado a experiência do manifesto, o movimento se impôs por intermédio dos


próprios filmes, sobretudo quando Aruanda (1960) de Linduarte Noronha (1930- ) é exibido
no eixo Rio-São Paulo. O que deixou de ser dito pelo manifesto, o documentário paraibano o
expressou em termos fílmicos, tanto pelo tema (o sertão) como pelo uso precário dos meios de
expressão. Uma estética diferenciada, aliada a uma proposta política, causou uma forte
repercussão nos meios cinematográficos, principalmente entre os jovens cineastas ávidos por
tal inovação. Assim, não foi um referencial teórico, elaborado explicitamente, que moveu a
produção de vários filmes nessa virada dos anos 50/60. A crítica, buscando uma coerência
diante desse fenômeno, agarra o termo “Cinema Novo” e passa a divulgá-lo.

Em 1963, Glauber Rocha decide empreender uma reflexão, que pode ser comparada,
em importância, à do fracassado manifesto. Contudo, trata-se de uma reflexão a posteriori, ou
seja, partindo dos filmes para o conceito, e não o inverso. É óbvio que o grupo já não é mais o
mesmo das reuniões do Alcazar, pois, passados quatro anos, vários outros adeptos já haviam
se juntado. Alguns filmes já tinham alcançado uma maior maturidade, como Arraial do cabo
(1959) e Couro de gato (1960), além de alguns membros já terem se enveredado para o longa-
metragem: Barravento (1961), Os cafajestes (1961) e Porto das caixas (1962). Porém,
Glauber Rocha empreende uma análise de vastas proporções, presente já no título: Revisão
crítica do cinema brasileiro.4

O autor não está preocupado em empreender uma historiografia, ou seja, classificar e


enumerar filmes e cineastas. Trata-se de uma análise, retroativa, da produção cinematográfica
no país, com o objetivo de traçar um panorama amplo do seu aspecto e de suas características.
Não sendo uma pesquisa histórica detalhada, como o citado livro de Viany, Glauber é
impelido pelo esplendor do recente movimento cinematográfico, rotulado de “Cinema Novo”.
Ou seja, Glauber se volta para o passado, visando compreender o que é tal fenômeno, e,
fundamentalmente, como foi possível o seu surgimento. Em suma, se a cultura brasileira
jamais possuiu uma tradição cinematográfica, o autor empreende um estudo das condições de
possibilidade da manifestação de tais filmes. Se filme brasileiro, comumente, é sinônimo de
filme ruim, como explicar o aparecimento de uma proposta estética tão vigorosa. Semelhante
a Viany, o cineasta baiano olha o passado movido por uma questão atual, tomando uma nítida
posição em zelar pelo sentido de tal movimento.

Em sua “Introdução”, Glauber critica a escassez de publicações


sobre cinema em nosso país, o que compromete a crítica e os
realizadores. O perfil do crítico cinematográfico brasileiro se resume
a um apaixonado, que acaba por receber a incumbência de escrever
sobre filmes no jornal, sem possuir uma condição financeira
necessária à especialização no ramo, i. e., acesso aos filmes e a
informações em publicações estrangeiras:

Cada crítico é uma ilha: não existe pensamento cinematográfico brasileiro (o grifo é nosso) e
justamente por isto não se definem os cineastas, fontes isoladas em intenções e confusões, algumas
autênticas, outras desonestas. Teoricamente, o clima é de “vale tudo”: a partir de 1962, o que não era
chanchada virou “cinema novo. (ROCHA, 1963, pp. 11-2)

A repreensão à má qualidade dos profissionais da crítica não é um mero lamento. O


mais significativo é a ausência de um “pensamento” na área de Cinema em nosso país, pois
além da desatualização das teorias utilizadas, não há condições propícias para formar uma

4
ROCHA, G. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963
35

reflexão da produção local. Como já vimos em Salles Gomes, o filme brasileiro é visto como
algo estranho, pois não há diálogo entre críticos e produtores. Glauber vai além: nem entre os
críticos existe algum diálogo. Como não há um arsenal teórico comum, pois o que vemos é
uma má assimilação do que vem de fora, os termos são vítimas da indefinição e da
banalização. Posto isto, como é possível chegar a uma definição de “Cinema Novo”? Ora, se
estamos rumando num campo virgem, pois já que “não existe pensamento cinematográfico
brasileiro”, devemos assumir a responsabilidade de uma leitura inaugural do tema. Para tal,
Glauber vai utilizar a História como um Saber auxiliador na resolução de seu problema. E por
que a História? Pois bem, uma primeira resposta seria o uso de um artifício, já consolidado,
em buscar as soluções de problemas atuais realizando um estudo histórico dos problemas de
nossa cinematografia. Por outro lado, se a sua questão central é entender a originalidade de
um recente movimento, é lícito supor que se o compararmos às propostas estéticas anteriores,
seremos capazes de chegar a um princípio diferenciador. Porém, Glauber utilizará um
procedimento extremamente mais rico: além das diferenças, o autor encontrará semelhanças.

Tal procedimento será possível quando Glauber se apropria de uma metodologia, por
ele assumida, que é a politique des auteurs. Utilizamos a expressão no original, para frisar que
se trata de um conceito específico, ligado a determinadas pessoas num determinado período,
evitando confundir com o atualmente difundido e vago termo “cinema de autor”. Portanto,
cabe-nos defini-la. Tal conceito foi cunhado, nos anos 1950, pelo então crítico François
Truffaut (1932-1984), e não, como amiúde é citado, pelo teórico André Bazin (que aliás,
possuía certas ressalvas em relação a tal conceito).5 O próprio Glauber comete esse erro
comum.6 De caráter polemista, Truffaut forjou tal conceito, usando-o contra uma determinada
crítica e um certo tipo de cinema produzido na França. Divulgou-se amplamente entre seus
companheiros da revista, fundada por Bazin, Cahiers du Cinéma (que passou a ter o seu nome
associado ao conceito) se convertendo na ferramenta-chave nas querelas promovidas no
campo da crítica cinematográfica francesa da época. Devido ao seu forte tom polêmico e
radical, esses críticos receberam a alcunha de “Jovens Turcos”.

O problemático é que não há nenhum manifesto ou texto teórico que defina


detalhadamente o conceito de politique des auteurs. A primeira vez que ela aparece na pena
de Truffaut é no dia 1º de setembro de 1954, na revista semanal Arts, no artigo intitulado “Sir
Abel Gance”.7 Segundo o crítico, trata-se de um paradoxo admirar a fase muda do cineasta
francês e, simultaneamente, desprezar a sua fase sonora. Para Truffaut, deve-se apreciar um
cineasta na completude de sua obra, não havendo distinção entre técnicas ou temas, pois são
criações do mesmo gênio artístico. Um autor se define pela manifestação de um universo
próprio em toda a sua obra. O critério de reconhecimento para um autor se encontra neste
universo pessoal, coerente em todos os seus filmes, indicando uma “visão de mundo”. Essa
visão, por sua vez, se manifesta por intermédio de uma concepção formal, e torna indistinta a
cisão entre argumento e direção. O nome desse procedimento, que o define como uma criação
artística, se chama mise-en-scène. Para Truffaut, o rival do cinema dos “Autores” é um tipo de
cinema que evidenciava a senilidade do então cenário cinematográfico francês, intitulado por

5
Michel Marie frisa esse equívoco comum, ver MARIE, M. La Nouvelle Vague: une école artistique. Paris:
Nathan, 2001. p. 38
6
ROCHA, G. Op. cit. p.13
7
Informação retirada da “Présentation” de Antoine de Baecque in ASSAYAS, O et al. La politique des auteurs:
les textes. Antoine de Baecque e Gabrielle Lucantonio (Org). Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. p. 6
36

ele de “Cinema de Tradição de Qualidade”, e cuja concepção estava assentada no primor


estético do roteiro. Ou seja, há uma delimitação bem clara entre o roteiro e a sua realização.8

Em suma, como o filme de um Autor é a expressão de algo totalmente singular, que


encontramos em todos os seus filmes, existe uma integridade em todos os elementos que o
compõem. A politique des auteurs julga um cineasta pela capacidade de expressão de sua
moral por intermédio da concepção formal de seus filmes (enquadramentos, movimentos de
câmera, montagem, etc). Assim, a “política” ou a “moral” está presente somente na
construção do filme, conforme o aforismo de Luc Moullet (1937 - ) - “La morale est affaire
de travellings” - retomado pela célebre frase de Jean-Luc Godard (1930 - ) - “Les travellings
sont affaire de morale”. Portanto, não existem temas privilegiados (um filme político pode
estar no mesmo nível que um musical); não há hierarquia entre os gêneros e o juízo da crítica
se apega somente à sua expressividade presente no filme, sem considerar as condições sócio-
históricas, políticas e econômicas de sua realização. Aliás, uma das principais críticas de
Bazin à politique des auteurs é justamente o seu desprezo ao contexto social do cinema, pois,
segundo o teórico, o cinema é uma arte popular e industrial e portanto, intimamente ligado às
demandas e crenças de uma determinada sociedade9 – como é o caso do western, considerado
por ele como o “cinema americano por excelência”. O “americanismo” baziniano se deve a
isso, pois Hollywood é a expressão mais autêntica de um cinema atrelado às crenças e mitos
de um determinado meio social:

Ce qui fait la supériorité mondiale de Hollywood, c’est bien entendu la


valeur de quelques hommes mais c’est aussi la vitalité et, dans une certaine
mesure, l’excellence d’une tradition. La supériorité de Hollywood n’est
qu’acessoirement d’ordre technique, elle réside bien plus dans ce qu’on
pourrait appeler d’un mot le génie cinématographique américain, mais
qu’il faudrait analyser puis définir par une sociologie de la production. Le
cinéma américain a su traduire d’une façon prodigieusement adéquate
l’image que la société américaine voulait d’elle-même. Non point
passivement, comme une simple activité de satisfaction et d’évasion, mais
dynamiquement, c’est-`a-dire en participant avec ses moyens propres à la
constitution de cette société. L’admirable du cinéma américain c’est
justement sa nécessité dans la spontanéité.(BAZIN10, 1957 apud
ASSAYAS et al., 2001, p. 105)

Assim, podemos certificar que Bazin possui um forte viés histórico, pois, se ele
constata que não há mais espaço para “grandes obras” no cinema sonoro como na fase muda,
isto se deve à constante evolução da linguagem cinematográfica (movida por um princípio
realista, chamado por ele, de “mito do realismo total”).11 Por isso, Bazin reconhece um tom

8
Num de seus artigos mais polêmicos (e o mais famoso), Truffaut é categórico: “Eh bien je ne puis croire à la
co-existence pacifique de la Tradition de la Qualité et d’un cinéma d’auteurs.» TRUFFAUT. F. «Une certaine
tendance du cinéma français» Cahiers du Cinéma nº 31, jan 1954
9
BAZIN. «De la politique des auteurs». In ASSAYAS, O. et al. Op. cit. pp. 99-117
10
BAZIN, A “De la politique des auteurs” Cahiers du Cinéma. Paris: n. 70, abril. 1957.
11
O pensamento de Bazin sofreu uma forte influência do existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e
do personalismo cristão de Emmanuel Mounier (1905-1950). É relevante frisar que Bazin é cristão e, portanto, a
análise das idéias de Mounier é de primeira ordem para compreender a teoria baziniana. O pensamento
mounieriano parte do princípio de que o conceito de História somente é possível numa visão judaico-cristã do
mundo, definindo o cristianismo como a Religião da “Existência Incorporada”, ou seja, não é nem uma
transcendência (um espiritualismo puro) nem uma imanência (um panteísmo), mas um elo irracional (e, portanto,
uma fé) entre ambas, sintetizada na figura de Cristo (o que diferencia o cristianismo de todas as outras religiões),
i. e., Deus se fez Homem. O paradoxal do cristianismo é o fato de ser uma Verdade atemporal, pois é divina (a
Revelação Cristã), que somente pode ser expressa no Tempo (o Verbo Encarnado). Interessante notar a posição
37

trágico no Cinema, pois é uma arte impiedosa que enterra os seus grandes mestres vivos,
devido à sua acelerada transformação estética. O que numa outra arte pode durar uma geração,
no Cinema, equivale a vinte ou trinta anos. Portanto, o principal problema e perigo da
politique des auteurs, para Bazin, é o seu culto a uma estética personalista, sem considerar a
situação histórica na qual está inserido o cineasta. Polemizando com Truffaut, que utiliza
como lema a frase de Giraudoux - “Il n’y a pas d’oeuvres, il n’y a que des auteurs” - , o
redator-chefe da Cahiers du Cinéma afirma que até os grandes artistas realizam obras
medíocres.

Se mencionamos o “americanismo” de Bazin, isto se deve ao fato de que a politique


des auteurs também possui a mesma característica, porém, sob uma outra forma. O culto ao
cinema norte-americano é uma tradição na crítica francesa. A novidade dos “Jovens Turcos” é
a dimensão provocadora e pessoal que as suas críticas possuem em relação aos seus cineastas
preferidos. Primeiramente, o aspecto paradoxal de reconhecer que mesmo num cinema de
indústria, onde o diretor classicamente não possui um controle sobre o filme durante todo o
seu processo (do roteiro à exibição), é possível existir autores. A grande originalidade da
politique des auteurs não é o fato de atribuir ao cineasta um elevado prestígio artístico (algo
que a crítica e os teóricos dos anos 1920 já haviam feito), mas de radicalizá-lo, reconhecendo-
o inclusive num cinema de escala industrial. Afirmamos acima que o “americanismo” de
Bazin está ligado à sua interpretação, digamos, sociológica do cinema. O que torna a politique
des auteurs tão escandalizadora é o fato de ela romper com uma visão comum de que existem
vários modos de se produzir um filme, e que o filme de “status artístico” deve
necessariamente se realizar fora dos grandes estúdios. Por outro lado, o que não podemos
esquecer é a diferença que há entre as análises de Bazin e as dos “Jovens Turcos”. Enquanto o
primeiro se apega aos filmes, os outros lançam olhos somente para os cineastas. Truffaut
chega a afirmar que, se é necessário julgar, devem-se julgar não filmes, mas cineastas.12
Atualmente pode nos parecer um exagero o tom dessas palavras, mas é relevante notar o que
estava em jogo para aqueles críticos.

A pedra de toque do escândalo dos “Jovens Turcos”, ao reconhecer que há autores no


cinema norte-americano de entretenimento, é movido por um profundo descontentamento
com o então cenário estético do cinema francês. Em suma, para esses críticos, produções de
grande orçamento com claro tom comercial, não significam necessariamente filmes medíocres.
Lembremos que, para um “Autor” não importa o orçamento de seus filmes, a sua “moral” será
expressa independente deles. M. Marie discute a associação comum entre produções baratas e
os primeiros filmes dos “Jovens Turcos” – a Nouvelle Vague.15 O cinema francês dos anos
1950 era favorecido por uma legislação protecionista, que tornava possível uma constante

de Mounier em relação à querela no pensamento católico francês entre os neo-tomistas e os historicistas,


representados sobretudo pelos jesuítas. Apesar de tentar fugir dessa discussão, o relevante para Mounier é
reconhecer que o conceito de História (ou seja, que há um sentido no transcorrer do Tempo) surgiu no judaísmo
e amadureceu no cristianismo. Partindo disto, Mounier busca um diálogo com os marxistas, reconhecendo como
legítimos certos princípios desta filosofia atéia, que surgiu como reação a uma interpretação equivocada,
segundo Mounier, da religião cristã, por ocasião do Romantismo. O relevante para nós é que, o tom historicista
presente em Bazin, manifesto na “evolução dialética da linguagem cinematográfica”, intimamente atrelado a um
princípio ontológico (o “realismo total”) está muito próximo do conceito de “Existência Incorporada” de
Mounier.
12
“Je ne crois pas aux bons et aux mauvais films, je crois aux bons et aux mauvais metteurs en scène. (...)
L’essentiel est qu’un cinéaste intelligent et doué demeure intelligent et doué quel que soit le film qu’il tourne. Je
suis donc partisan de juger, lorsqu’il s’agit de juger, non des films mais des cinéastes.» TRUFFAUT, F. Le
plaisir des yeux: écrits sur le cinéma. Jean Narboni e Serge Toubiana (Org). Paris: Cahiers du Cinéma, 2000. p.
336
15
MARIE, M. Op. cit. pp. 44-62
38

produção de filmes, além de contar com uma freqüência assídua do público. Porém, se o
cinema francês gozava de uma excelente saúde financeira, por outro lado, a sua situação
artística era preocupante. Os produtores não preferiam “correr riscos” e utilizavam temas
relativamente fáceis e já experimentados nas bilheterias, atores consagrados e adaptações de
autores conhecidos.

A Cahiers du Cinéma se converte num centro de denúncia a esta pasmaceira estética


reinante. Desse modo, as grandes produções francesas se tornam em “bodes expiatórios”, no
termo de Marie, sendo acusados os produtores de se preocuparem somente com o dinheiro e
os cineastas como seus cúmplices. Assim, os filmes de baixo orçamento, que formam a
Nouvelle Vague, se devem antes a uma escolha estética do que a critérios puramente
financeiros. Marie descreve que a Nouvelle Vague, enquanto movimento, deve ser pensado
como um vigor estético que impulsiona esses jovens, egressos da crítica e da cinefilia,
somado à vontade de rejuvenescimento e inovação por parte de certos produtores. Inclusive,
essa busca de renovação era oficialmente incentivada pelo C.N.C. (Centre National de
Cinématographie). Por sua vez, quando tais filmes obtêm um êxito comercial inesperado,
surge a fórmula do “filme bom e barato” como uma opção comercial. Assim, a Nouvelle
Vague converteu o filme de baixo orçamento num mito, tornando tal aspecto o critério
fundamental para definir se um filme pode ser ou não do movimento. Marie afirma que os
próprios membros do movimento contribuíram para tal silogismo, pois sempre tentaram
associar aos seus filmes o rótulo de produção de baixo orçamento.14 O fundamental para nós é,
voltamos a repetir, que o orçamento baixo se deve a uma opção estética, e não a um
constrangimento financeiro. Polemizando um pouco, citaremos uma entrevista de Godard:

On a toujours cru que la Nouvelle Vague, c’était le film bon marché contre
le film cher. Pas de tout. C’était simplement le bon film, quel qu’il soit,
contre le mauvais film. Seulement, le bon marché s’est trouvé être la seule
façon de faire le film. Il est vrai que certains films sont meilleurs quand ils
sont bon marché, mais il faut penser aussi aux films qui sont meilleurs
quand ils sont chers. (GODARD15, 1962 apud CHABROL et al., 1999, p.
223)

O nosso objetivo aqui não é chegar a uma conclusão do que seja a Nouvelle Vague e
quais são os critérios para que um filme possa ser incorporado ao movimento. Porém,
podemos reconhecer um problema semelhante ao de Glauber em relação ao termo “Cinema
Novo”. A expressão Nouvelle Vague também fora atribuído por agentes externos ao
movimento, e pior, a sua origem é extracinematográfica. Marie narra o surgimento da
expressão e comenta o caráter um tanto polêmico que sempre rondou o termo, pois até que
ponto é possível reconhecer num determinado conjunto de filmes a expressão de um
movimento. A tese de seu livro é provar a coerência presente em tal movimento, sendo
possível atribuir a ele a categoria de “escola artística”. O problema de nosso trabalho é
distinto. Não estamos preocupados em discutir a existência de uma proposta estética que une
os vários filmes do chamado Cinema Novo, mas analisar o procedimento conceitual que
Glauber Rocha empreende ao tomar para si o termo “Cinema Novo”. Aliás, podemos afirmar
que a discussão da permanência e da coerência do Cinema Novo, enquanto um grupo
articulado de cineastas, sempre foi a obsessão de Glauber. Não é por acaso que a coletânea de

14
Idem. p 51
15
Cahiers du Cinéma, Paris, n 138, dezembro, 1962
39

seus textos, por ele reunidos no fim da vida, se intitula Revolução do Cinema Novo.16 Trata-se,
para ele, de um processo sistematizado, apesar dos transtornos causados no cenário nacional,
e, o que é mais importante, irreversível. Em nenhum momento, Glauber questiona, como
Marie, a possibilidade de ser ilusória a atribuição de uma unidade a este grupo de cineastas e
filmes. Como veremos, já em Revisão crítica do cinema brasileiro, Glauber amarra sob o
termo “Cinema Novo” um leque bem amplo de filmes, buscando a qualquer custo um critério
de unidade.

Aliás, se fomos exaustivos ao relatar o “americanismo” dos “Jovens Turcos”, isto se


deve ao consagrado panteão que eles criam. Não podemos crer que o discurso encomiástico
aos cineastas norte-americanos se deve a um mero instrumento retórico. A maior riqueza da
politique des auteurs é o grau de seriedade e compromisso entranhado na sua análise dos
filmes. Ora, se o travelling é uma questão de moral, nenhum plano ou movimento de câmera é
ingênuo.17 Apesar de suas divergências, Bazin reconhece o valor da politique des auteurs
devido ao profissionalismo de seus críticos, dotados de uma profunda erudição cinéfila, e se
reconhece tributário de um mesmo princípio por eles compartilhado: “le refus vigilant de ne
jamais réduire (o grifo é dele) le cinéma à ce qu’il exprime.”18 Ou seja, o que Bazin admira
neste instrumental teórico é o fato de encarar o cinema como uma arte amadurecida, muito
diferente, por exemplo, dos teóricos dos anos 1920, que o encaravam como uma arte nova e
grávida de possibilidades. Parafraseando Sartre, Bazin afirma que toda técnica remete a uma
metafísica, assumindo o papel de advogado dos “Jovens Turcos”, acusados de “formalistas”.
A matéria do filme é a mise-en-scène, que nada mais é que uma organização que possui, em si
mesma, um sentido, pelo fato de ser simultaneamente uma construção estética e um projeto
moral. Assim, quais são os critérios de escolha para que um cineasta seja alçado ao panteão?
Critérios estéticos ou morais? Ou diferenciá-los é um falso problema? Em suma, qual é o
critério de unidade presente no panteão dos “Jovens Turcos”?

Antes de mais nada, devemos saber quem figura em seu panteão. São diversos nomes,
porém, segundo Daney19, podemos resumi-los a quatro principais, possuindo duas letras como
emblema: os dois R, Jean Renoir (1894-1979) e Roberto Rossellini (1906-1977) e os dois H,
Alfred Hitchcock (1899-1980) e Howard Hawks (1896-1977). Os dois primeiros sempre
possuíram um prestígio artístico reconhecido, mas o polêmico dos “Jovens Turcos” é
manterem essa “aura” na fase norte-americana do cineasta francês e nos filmes com a atriz
Ingrid Bergman (1915-1982) do cineasta italiano. Essas fases eram vistas como algo menor na
obra de ambos pela crítica. Contudo, o mais polêmico é o elogio aos cineastas norte-

16
ROCHA, G. Op. cit. Por ocasião de sua publicação, Carlos Diegues (1940- ) escreve: “Já se passaram mais
de vinte anos e ninguém ainda conseguiu dizer direito o que foi (ou é) o Cinema Novo. (...) Mas, por baixo de
todas as teorias, resistia sempre uma desconfiança minha, comprovada agora com a publicação do livro de
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo (...) É que o Cinema Novo não passa de uma invenção dele, uma
trama de Glauber para nos manter juntos e unidos, o delírio de um grande artista visionário que não se
conformou com o estado do país que lhe deram para viver. Assim é que ele vem há anos inventando poetas e
heróis que possam figurar no panteão de uma história cultural inexistente, exasperando-se no ódio jurado à
miséria intelectual do subdesenvolvimento.” DIEGUES, C. Cinema brasileiro: idéias e imagens. Porto Alegre:
Ed Universidade, 1999. p. 52
17
Tornou-se célebre o artigo de Jacques Rivette (1928- ), intitulado “De l’abjection”, onde analisa o filme
Kapo (1959) de Gillo Pontecorvo (1919- ): “Voyez cepedant, dans Kapo, le plan où Riva se suicide, en se
jetant sur les barbelés électrifiés; l’homme qui decide, à ce moment, de faire un travelling avant pour recadrer
le cadavre en contre-plongée, en prenant soin d’inscrire exactement la main levée dans un angle de son cadrage
final, cet homme n’a droit qu’au plus profond mépris». Cahiers du Cinéma. nº 120, jun, 1961, p. 54
18
BAZIN, A. “Comment peut-on être hitchcoko-hawksien ?» Cahiers du Cinéma nº 44, fev, 1955. pp. 17-8
19
BAZIN, A. et al. La politique des auteurs. Jean Narboni e Alain Bergala (Org.). 2 ed Paris: Cahiers du
Cinéma/Etoile. 1984. pp 5-9
40

americanos citados. A crítica louvava no cinema norte-americano apenas os “gênios” que se


impuseram de algum modo ou foram sumariamente marginalizados pela indústria de
Hollywood, de D. W. Griffith (1875-1948) a Orson Welles (1915-1985), passando por Eric
von Stroheim (1885-1957), Charles Chaplin (1889-1977) e Josef von Sternberg (1894-1969).
Os nomes de Hitchcock e Hawks eram associados a um cinema de entretenimento, sem
maiores veleidades artísticas. Para a crítica tradicional, talvez um ou outro filme seja exceção,
como “Janela indiscreta” (Rear window; 1954) ou “Scarface, a vergonha de uma nação”
(Scarface, shame of the nation; 1932) mas são “pérolas” que não podem ser postas no mesmo
nível que “Quando fala o coração” (Spellbound; 1945) ou “Os homens preferem as loiras”
(Gentlemen prefer blondes; 1953). Assim, diante de uma disparidade tão grande entre
cineastas tão distintos, voltamos a perguntar, qual é a coerência existente no panteão dos
“Jovens Turcos”? Por que esses cineastas e não outros?

Para respondermos a essa questão, desmembraremos sua resposta partindo de dois


princípios, pois somente após compreendermos a lógica que rege o raciocínio
“jovemturquiano”, poderemos entender o passo que Glauber faz ao se apropriar da politique
des auteurs. O primeiro princípio é o “classicismo” vigente na Cahiers du Cinéma. Os
teóricos da avant-garde francesa dos anos 1920 viam o “cinema narrativo” como algo alheio,
e mesmo nocivo, ao verdadeiro cinema, i. e., o cinema enquanto uma expressão artística. Um
dos grandes méritos de Bazin é reabilitar o “cinema narrativo”, em oposição aos teóricos
precedentes, acusando-os de “essencialistas”, pelo fato de possuírem um conceito idealista de
Arte. Partindo de um princípio existencialista, segundo o qual “a existência precede a
essência”, Bazin não busca um conceito de Cinema em Si para, a partir dele, julgar os filmes.
Ao contrário, Bazin considera que é analisando os filmes, numa crítica militante, que se
vislumbra uma concepção de cinema, em processo. Não entraremos nas bases filosóficas que
sustentam o pensamento baziniano, mas o que podemos afirmar é que Bazin considera o
Cinema como uma linguagem – o que era extremamente problemático para os teóricos da
avant-garde, sobretudo Germaine Dulac (1882-1942). Esse aspecto do pensamento baziniano
é exaustivamente sublinhado por seus comentadores, que amiúde subestimam a questão de
que, entrelaçado a essa concepção “lingüística” encontramos um pensamento histórico. Ou
seja, o Cinema, que é uma linguagem, está inserido no Tempo, e portanto, há um
procedimento constante em sua construção, intimamente associado às transformações da
Humanidade (que remete, em última instância, a uma relação com Deus). Em suma, podemos
sintetizar toda a teoria de Bazin como uma filosofia da linguagem vinculada a uma filosofia
da História. Porém, como ocorre esse vínculo é um tema a se pensar... O que nos interessa
aqui é a conclusão que Bazin tira dessa estrutura conceitual. O Cinema é uma “arte
funcional”20, e portanto “impura”; é de sua natureza sofrer influências de elementos externos,
sejam de outras artes como das demandas de uma determinada sociedade numa conjuntura
histórica (como o erotismo da pin-up girl ou os mitos de Gabin no cinema francês e de Stalin
no cinema soviético). Portanto, os filmes são destinados a um público que possui um código
comum. Assim, a Cahiers du Cinéma sempre evitou cair no sectarismo de um “cinema
maldito”. O que se abordava era o cinema produzido para ser consumido em larga escala.
Numa entrevista de 1998, Labarthe afirma essa ética presente na revista:

20
«Le cinéma ne peut exister sans un minimum (et ce minimum est immense) d’audience immédiate. Même
quand le cinéaste affronte le goût du public, son audience n’est valable qu’autant qu’il est posible d’admettre
que c’est le spectateur qui se méprend sur ce qu’il devrait aimer et qu’il aimera un jour. La seule comparaison
contemporaine possible serait avec l’archicteture, parce qu’une maison n’a de sens qu’habitable. Le cinéma, lui
aussi, est un art fonctionnel. Selon un autre système de référence, il faudrait dire du cinéma que son existence
précède son essence. C’est de cette existence que la critique doit partir, même dans ses extrapolations les plus
aventureuses.» BAZIN, A. Qu’est –ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1959, V. II. p 28
41

Le cinéma expérimental a été mal vu: il n’y a rien sur le cinéma


underground américain dans les Cahiers tout au long des années
cinquante... Les Cahiers qui prônaient un cinéma du classicisme, ont été
très marqués par cette idée de faire un cinéma qui, par principe, s’adresse
à tout le monde... Bazin disait que les films naissent égaux...21

Portanto, o «classicismo» professado pelos “Jovens Turcos”, como herdeiros de Bazin,


se deve ao reconhecimento do cinema como um meio de expressão de caráter amplo. É da
essência do filme a sua relação com algum público: o sentido de um filme se constrói somente
no diálogo com o público. O espectador é retirado de sua posição passiva para se integrar na
construção da obra de arte. Cabe ao cineasta reconhecer a liberdade do espectador, e convidá-
lo para a fabricação do sentido do filme. Aliás, o elogio de Bazin à profundidade de campo e
ao plano-seqüência se deve a esse princípio. Portanto, há uma moral do espetáculo subjacente
ao “classicismo” da Cahiers du Cinéma.

Se cabe ao cineasta mudar a sua relação com o espectador, por sua vez, o espectador
deve mudar a sua relação com o filme. Aqui está o segundo princípio e nele nos deteremos
com atenção, pois esbarramos com um ponto fulcral da passagem do “Cinema Clássico” para
o “Cinema Moderno”. Para compreendermos esta mudança, utilizaremos uma distinção
conceitual de E. Gilson.22 Segundo esse autor, há um extremo embaraço quando os filósofos
abordam a Arte. Ao adotar uma leitura escolástica, o papel da filosofia é definir a essência das
coisas e, por conseguinte, a contribuição da filosofia ao estudar a Arte é definir o que lhe é
própria. Portanto, ao estar diante de uma obra de arte, o filósofo deve se interrogar o que lhe
distingue das demais coisas enquanto obra de arte, apesar de conter vários atributos, como
qualquer ente. Assim, há uma confusão entre “Filosofia da Arte” e “Estética”. A “Filosofia da
Arte” trata da produção e natureza das obras enquanto a “Estética”, de sua apreensão. Em
resumo, ao adotar uma visão realista (aristotélica), Gilson encara a “Filosofia da Arte” como
um conhecimento acerca do objeto artístico; enquanto a “Estética” se encontra do lado do
sujeito consumidor de tais objetos, preocupando-se com o seu acesso cognitivo. Essa
confusão, segundo Gilson, se encontra nas interpretações da Crítica da faculdade de julgar de
Kant. A teoria do “belo” e do “sublime” do filósofo alemão é corolário do questionamento
acerca da apreensão da obra de arte e não pode ser deslocado do edifício teórico das demais
Críticas, ou seja, de uma filosofia do conhecimento, o problema central da filosofia moderna.
Portanto, não se aprende nada sobre Arte ao ler Kant, mas sim, acerca do sujeito que a
consome. Em suma, Kant não está do lado do artista, do produtor de arte, mas de seu mero
consumidor.23

21
CHABROL, C. et al. La Nouvelle Vague. Antoine de Baecque e Charles Tesson (Org.) Paris: Cahiers du
Cinéma, 1999. p. 10
22
GILSON, E. Introduction aux arts du beau. Paris: J. Vrin, 1963
23
Após demonstrar que o seu caminho é distinto de Kant, Gilson desbarata uma outra confusão, que permaneceu
(e segundo ele permanece) no pensamento ocidental: a arte não é uma forma de conhecimento. Isto é, não é a
expressão de uma realidade, seja exterior ou interior ao artista. Isto se deve pelo fato de a Arte pertencer a uma
ordem distinta daquela do conhecimento. Conforme o pensamento escolástico, Gilson define o homem como um
ente capaz de exercer quatro tipos de ato: ele é, ele conhece, ele age e ele faz. Portanto, o homem se resume a
três operações principais: o conhecimento, a atividade e a factividade, correspondendo a elas as três principais
disciplinas – a ciência, a moral e a arte – todas tributárias da ontologia, que estuda o ser, e não o homem, que
apenas participa dele. Assim, a “Filosofia da Arte” se encontra na ordem do fazer (póesis), que agrupa as várias
atividades de produção do homem. A finalidade da Arte é fazer objetos belos, apesar de o Belo poder ser um
atributo de outros objetos que não tenham tal fim específico (como uma paisagem natural, um corpo humano ou
uma máquina). O relevante para Gilson é que, apesar da “Filosofia da Arte” ser um conhecimento, a Arte não se
encontra na mesma ordem. Ao ensinar que técnicas foram utilizadas para se criar um objeto artístico (um campo
42

Após nos apropriarmos de tais conceitos, voltemos aos “Jovens Turcos”. A nossa
interrogação é a seguinte: a politique des auteurs é uma “Filosofia da Arte” ou uma
“Estética”? Se formos coerentes com a linguagem clássica de Gilson, a crítica de arte, por
definição, está próxima da “Estética”, pois a sua finalidade é emitir um juízo de valor (se
houve sucesso ou não na fabricação da obra), e não um juízo de realidade (conhecimento).24 O
ponto de vista do crítico não é aquele do artista. Ele é apenas um consumidor de arte, e
portanto, a sua perspectiva é a da apreensão. Porém, o tipo de crítica realizada pelos “Jovens
Turcos” mina essa distinção delimitada. Ver filmes, criticar filmes e fazer filmes estão na
mesma ordem. No início da citada entrevista, Godard afirma:

Nous nous considérions tous, aux Cahiers, comme de futurs metteurs en


scène. Fréquenter les ciné-clubs et la Cinémathèque, c’était déjà penser
cinéma et penser au cinéma. Écrire, c’était déjà faire du cinéma, car, entre
écrire et tourner, il y a une différence quantitative, non qualitative. (o grifo
é nosso) Le seul critique qui l’ait été complètement, c’est André Bazin. Les
autres, Sadoul, Balazs ou Pasinetti, sont des historiens ou des sociologues,
pas des critiques. (GODARD, 1962 apud CHABROL et al., 1999, p. 193)

Na verdade, podemos transpor a afirmação de Godard sobre Bazin em outros termos:


ele não foi o “único crítico completo”, mas o “primeiro crítico moderno”. Labarthe também
sublinha esta transformação na crítica cinematográfica, realizada pela Cahiers du Cinéma:

Aux Cahiers, j’ai très vite senti que l’on parlait du cinéma comme si chacun
avait fait des films. On parlait de «travelling», de «plan-séquence», de
«profondeur de champ», alors que dans la critique traditionelle on n’en
parlait jamais. On parlait uniquement de l’impression produite sur l’écran,
et non de la manière dont elle était obtenue. Aux Cahiers, je trouvais que
l’on remontait des effets aux causes. Petit à petit, on a fait l’éloge de
certaines figures de styles au détriment d’autres. C’est ce qui m’interéssait.

do conhecimento chamado “Poética”), a “Filosofia da Arte” não é capaz de tornar alguém artista. O filósofo
estuda o objeto já pronto, e não o que está por fazer. O fascinante da tese de Gilson é que apesar de ele ser um
realista, ao abordar o conhecimento, ele é extremamente contemporâneo ao estudar a Arte, pois a obra de arte é
produção de algo totalmente singular. Apesar de estar alinhado à filosofia aristotélica, Gilson é radicalmente
contra o conceito de Arte como “imitação” (mimeses). Segundo ele, o fundamental é notar que Aristóteles (384
a.C.-322 a.C.) não distingue o que hoje chamamos por “arte” das demais “técnicas”. Assim, ao realizar uma
“Poética”, um conhecimento de como se fazem objetos (partindo da concepção de ciência como “representação”),
o Estagirita, como a maioria dos espíritos especulativos, acaba confundindo os prazeres do conhecimento (o
gozo de se encontrar com a Verdade) com o prazer estético. De fato, há uma ligação entre o fazer e o conhecer.
Tanto para construir uma cadeira como para pintar um quadro, devem-se dominar os meios necessários para a
sua realização, porém, do conhecimento, como “representação”, não sai nada de original, pois é apenas a
adequação do intelecto com o ser. Assim, o conhecer é da alçada da razão, enquanto que o fazer é regido pela
imaginação, que propõe vários meios, distinto da razão, que apenas se adequa ao ser, que é uno. Por outro lado,
ao estudarmos o que atualmente entendemos por obra de arte, não podemos esquecer que não há “intuição
inteligível” para Aristóteles, somente “sensível”, e portanto, o Belo, assim como o Bem, não são objetos, como
na teoria platônica das Idéias, mas relações com o ser. Portanto, há algo de enigmático no processo de criação
artística, que inclusive nem o próprio artista consegue explicar, pois não é da alçada do conhecimento. A teoria
kantiana do “gênio” é um modo de pensar este embaraço teórico, atribuindo ao artista um dom dado pela
Natureza, e portanto não-consciente. Esta teoria foi apropriada, interpretada e difundida pelo Romantismo.
Porém, lembremos que Kant está preocupado com o acesso cognitivo à Coisa em si, e por conseguinte, a sua
terceira Crítica, empenhada em pensar um laço entre o inteligível e o sensível (o que é, para Kant, a função do
Belo), aborda tanto a Arte como a Natureza, o que pode parecer estranho para alguém, emaranhado na confusão
citada por Gilson, se deparar com um livro que estuda simultaneamente a arte e a biologia.
24
O próprio autor frisa isso. GILSON, E. Op. cit. pp. 19-29
43

Il y avait déjà ça chez Bazin, qui était le premier non-cinéaste à parler


comme un cinéaste. Les cinéastes le comprenaient d’ailleurs parfaitement.25

A cisão clássica, como em Gilson, entre quem faz o filme e quem o consome é
rompida, e esse é talvez o aspecto central do “Cinema Moderno”. É o que já vimos na moral
do espetáculo, segundo a qual o espectador também faz parte do filme. Assim, quando Bazin
defende os “Jovens Turcos” ao escrever que o cinema não se reduz a si mesmo, mas é
remetido a uma metafísica, ele está afirmando que o Cinema possui um pensamento próprio e
sólido, sem pedir empréstimos a outras áreas (o que Godard acusa os outros críticos de
fazerem), e podendo transitar nele por várias perspectivas: ver, escrever e realizar. Na verdade,
o que queremos dizer é algo muito mais ambicioso: o Cinema ganha o estatuto ontológico de
uma realidade própria, e se o Ser pode ser dito de vários sentidos, o Cinema também. Portanto,
o fundamental num filme não é o que está diante da câmera, mas a própria câmera, i. e., a sua
posição, seu movimento, a disposição dos elementos dentro e fora do quadro. Bazin sublinha
que a imagem cinematográfica, distinta da pictórica, é centrífuga, ou seja, o filme não se basta
ao que está na tela (o que a crítica tradicional fazia) mas há algo muito maior. O filme não é
uma simples superfície, uma imagem projetada numa parede, pois ele possui uma realidade
interna. Apesar de Bazin ainda assegurar um “lastro ontológico” para o filme, calcando-o a
uma realidade exterior via fotografia, o fato de ele atribuir ao cinema o caráter de linguagem
abre o caminho para o reconhecimento de uma lógica interna e exclusiva.26

Portanto, se o Cinema possui uma ordem própria, o que os “Jovens Turcos” fazem é
reconhecer a existência de várias ordens particulares, deslocando tal raciocínio dos filmes
para um conjunto de filmes, isto é, para os cineastas. Desse modo, a politique des auteurs
ignora as suas particularidades, buscando uma estrutura mais ampla que receberá o nome de
“Autor”. Se Truffaut afirma que não é possível a “co-existência pacífica” entre um Cinema de
“Autor” e o “Cinema de Tradição de Qualidade” isto se deve por se tratarem de dois modos
excludentes de se encarar o cinema. Na “Tradição de Qualidade”, o cinema é apenas um
suporte pelo qual se narra uma história (daí a superestimação do roteiro), enquanto que para
um “Autor” não importa o que se narra, mas como se narra. O Cinema é visto como um modo
de pensamento, pelo qual é possível articular diversos enunciados (vários procedimentos
técnicos, os gêneros, e etc). O Autor é aquele capaz de dispor esses vários enunciados
segundo uma ordem, por ele, construída. Assim, o Autor, por definição, não encara as
diferenças de gêneros ou de procedimentos técnicos (filme mudo, sonoro, colorido, etc) como
algo estanque, mas, pelo contrário, são apenas diferentes categorias de enunciados que podem
estar sob a amarra de uma ordem maior, que é a construída por ele. Portanto, o fundamental é
essa ordem que permeia o conjunto de seus filmes, encarando-os apenas como peças de uma
estrutura. O perigo apontado por Bazin é justamente essa superioridade atribuída ao todo em
relação às partes, ignorando a possibilidade de filmes medíocres, ou seja, mal acabados em
sua ordem interna.

O panteão formado pelos “Jovens Turcos” se deve principalmente ao afrontamento


com o seu arquiinimigo, o “Cinema de Tradição de Qualidade”. Não é possível pensar um
sem relacionar com o outro. Ao se valorizarem as fases subestimadas de Renoir e Rossellini,
proclama-se o segundo princípio aqui afirmado, de que o Cinema é um modo de pensamento,
por possuir uma ordem inerente. Tais diretores passaram por vários tipos de filmes, realizados

25
CHABROL, C. et al. Op. cit.. p. 7
26
Podemos afirmar que Bazin coloca o mesmo problema, ainda que de um modo não tão explícito, que os dos
semiólogos das décadas seguintes: em que medida, o cinema pode ser pensado como uma linguagem? É óbvio
que as respostas encontradas serão distintas, pois partem de concepções diferentes de linguagem.
44

sob as mais diversas circunstâncias e, portanto, ao se afirmar que eles são “maiores” que seus
filmes, atesta-se o princípio citado acima. Já que escrever e filmar estão na mesma ordem, ao
analisarem as “obras menores”, os “Jovens Turcos” acabam por buscar uma lógica que supre
suas fraquezas, mas pensando já como diretores.27 O fato dos “dois R” serem cineastas
reconhecidos e possuírem uma “fase menor” aponta os caminhos tortuosos que integra o
cinema, e a estima dos “Jovens Turcos” por eles demonstra uma preocupação já como
cineastas, e não como meros críticos. Por outro lado, a valorização de Hitchcock e Hawks está
associada ao primeiro princípio aqui afirmado, a existência de uma moral do espetáculo na
Cahiers du Cinéma. Essa moral mina na base a “Tradição de Qualidade”, que se alça na
posição tradicional do narrador onisciente, espelhado em seu pedantismo literário, pela
sofisticação dos diálogos e na nobreza dos temas. O fato dos “dois H” realizarem um cinema
de puro entretenimento, sem a preocupação de ornamentos de superioridade, coloca o
espectador numa posição de semelhante, que possui uma contribuição a dar ao filme,
apreciando o requinte não num suposto tema de que os filmes tratam, mas nos próprios filmes.
Contudo, não podemos esquecer que ambos os princípios estão emaranhados entre si, e que
um pressupõe o outro. Assim, podemos certificar que há uma unidade no panteão.

Portanto, o aspecto fundamental é o fato dos “Jovens Turcos” romperem a fronteira,


descrita por Gilson, entre a “Poética” (o fazer) e a “Estética” (o apreender), o que provoca
conseqüências filosóficas de suma importância. Como não há diferença de natureza, mas de
grau, entre escrever sobre filmes e realizar filmes, a crítica se converte simultaneamente num
juízo de valor e de realidade. O crítico está na mesma perspectiva que a do artista; o que
significa que perde o sentido avaliar se um filme teve ou não êxito em sua fabricação. Um
filme é o que ele é, por uma escolha do Autor, e cabe ao espectador, que também possui a sua
escolha, dialogar com ele por dentro do filme, ou seja, compreender o que move o Autor a
executar de tal forma e não de outra.28 Assim, julga-se não o filme, mas o cineasta, que cria
um real particular, por onde o espectador é convidado a entrar, mesmo que possa dele
discordar.29 Daí, as fortes críticas aos “Jovens Turcos” de seus textos serem excessivamente
pessoais. Ora, a obra de um cineasta não é avaliada por uma análise puramente estética (se ele
segue corretamente ou não as regras formais), mas pela sua “intenção” que articula a obra.
Para isso, o ônus pago pela politique des auteurs é a impossibilidade de abordar a articulação
do universo fílmico com o extracinematográfico. Como já foi assinalado por Bazin, há um
arrancamento do filme de seu contexto histórico, para encará-lo como uma realidade fechada

27
É relevante notar que a Cahiers du Cinéma inaugura um procedimento comum hoje: entrevistar os diretores.
28
“Je suis convaincu qu’il n’est pas des grands cinéastes qui ne sacrifient quelque chose: Renoir sacrifera tout
(scénario-dialogue-technique) au profit d’un meilleur jeu de l’acteur, Hitchcock sacrifie la vraisemblance
policière au profit d’une situation par avance choisie, Rossellini sacrifie les raccords de mouvements et de
lumière pour une plus grande fraîcheur – ou chaleur, c’est la même chose – des interprètes, Murnau, Hawks
Lang, sacrifient le réalisme du cadre et de l’ambiance, Nicholas Ray et Griffith la sobriété (...) Or, le film réussi
selon l’ancestrale équipe, est celui où tous les éléments participent également d’un tout qui mérite alors
l’adjectif parfait. Or la perfection, la réussite, je les décrete abjectes, indécentes, immorales et obscènes. (...)
Tous les grands films de l’histoire du cinéma sont films «ratés».» TRUFFAUT «Abel Gance, désordre et génie».
In ASSAYAS, O. et al. Op. cit. pp. 38-9
29
Num texto de 1969, Truffaut faz uma analogia entre o cinema e a família, tentando ser mais “democrático”:
“Quand on est cinglé de cinema, on aime en bloc tous ceux qui constituent cette famille dont on aimerait
tellement faire partie, sans se douter un seul instant qu’il s’agit de la famille d’Oreste et d’Agamemnnon ! (...) si
nous avons la chance de pratiquer un art et d’en vivre, ne nous regardons pas comme des concurrents ni des
rivaux mais comme d’autres artistes tout simplement. Acceptons les différences entre nous. Chacun de nous ne
réalise qu’une partie de son rêve, mais son rêve était plus ou moins beau, plus ou moins accesible. (...) Vous me
demandez, cher Monsieur Esquire: «Quels conseils donneriez-vous à des futurs cinéastes ?» Je ne crois pas que
l’on puisse donner des conseils à quiconque s’apprête à pratiquer un métier artistique, mais je puis essayer de
dégager quelques règles qui ont de la valeur pour moi et pour moi seul.» TRUFFAUT, F. Op. cit. pp. 373/5
45

nela mesma. Na verdade, os “Jovens Turcos” não arrancam um filme, mas vários, tornando
esse conjunto numa realidade. Se afirmamos que a politique des auteurs aborda o Cinema
com o estatuto ontológico de realidade (o que é semelhante a Bazin), essa realidade, por sua
vez, não é una: existem tantas realidades quanto Autores.

Se Glauber afirma que “não existe pensamento cinematográfico brasileiro”, podemos


encontrar um problema semelhante em Octávio Paz: não existe uma crítica da literatura
hispano-americana:

La misión de la crítica, claro está, no es inventar obras sino ponerlas en


relación: disponerlas, descubrir su posición dentro del conjunto y de
acuerdo con las predisposiciones y tendencias de cada una. En este sentido,
la crítica tiene una función creadora: inventa una literatura (una perspectiva,
un orden) a partir de las obras. Esto es lo que no ha hecho nuestra crítica.
Por tal razón no hay una literatura hispanoamericana (o grifo é nosso)
aunque exista ya un conjunto de obras importantes. (PAZ, 1969, p. 41)

Só é possível falar numa literatura, após a crítica criar um sentido para esse conjunto
de obras. Portanto, constrói-se uma rede de relações que as distribuem de acordo a uma
lógica.30 Tanto Glauber quanto os “Jovens Turcos” são críticos, no sentido em que criam uma
ordem em seus textos, mas as redes construídas por eles seguem procedimentos distintos, para
não dizer contrários. O significativo é que, se o campo em que Glauber trabalha é virgem,
como ele próprio afirma, é um tanto irônico e paradoxal intitular sua obra de “revisão”, pois,
segundo o raciocínio de Paz, não há um cinema brasileiro. Assim, já podemos notar que a
politique des auteurs é inútil como método para Glauber, pois a sua existência somente foi
possível dentro de uma luta travada na crítica cinematográfica francesa.31 Se o pensamento
“jovemturquiano” remete o cinema a uma metafísica, sendo assim herdeiro de Bazin, não
podemos esquecer, portanto, que o teórico francês articula seu pensamento a partir da crítica
de um outro pensamento, o dos teóricos da avant-garde. Em suma, tanto Bazin quanto os
“Jovens Turcos” não estão em campo virgem, muito pelo contrário, eles somente existem
graças a uma tradição teórica já consolidada na França.

Podemos resumir as diferenças de Glauber com os “Jovens Turcos” em duas. A


principal é a preocupação de Glauber em escrever uma história, o que o coloca em oposição
aos franceses. Os “Jovens Turcos” criam a sua ordem retirando de um conjunto de filmes do
mesmo cineasta as suas características comuns. Ou seja, eles estão preocupados em
reconhecer e manter algo que não muda em todos os filmes, apesar das diferenças de gêneros
ou de circunstâncias de realização. A politique des auteurs é, por definição, sincrônica. A
segunda diferença é a preocupação de Glauber em pensar uma cinematografia específica, a
brasileira. Para os “Jovens Turcos”, o cinema de Autor está acima da nacionalidade, seja a dos
cineastas quanto a dos filmes. Entretanto, Glauber não isola xenofobicamente o cinema
brasileiro dos demais; pelo contrário, veremos o quanto a cinematografia mundial é

30
É mais do que significativo notar que Paz possui uma leitura radicalmente distinta da de Gilson. A crítica não
avalia a aplicação de regras formais nas obras, mas cria certas regras pelas quais distribui as mesmas. Partindo
da filosofia escolástica, Gilson é categórico: “Il est vrai qu’on ajoute au mot intuition l’épithète de «créatrice»,
mais il n’y a pas d’intuition créatrice, car la connaissance ne crée rien.». GILSON, E. Op. cit. p. 107.
31
Marie enumera que um dos critérios para a existência de uma “escola artística” é um grupo de adversários. Ora,
em relação à Nouvelle Vague, a lista é enorme. Em termos de revistas de cinema, a principal rivalidade da
Cahiers du Cinéma foi com a Positif e a Premier Plan. MARIE, M. Op. cit. p. 43
46

largamente citada, mas com a função de legitimar certos aspectos no cinema brasileiro.32 Se
podemos encontrar, nos “Jovens Turcos”, um elogio ao cinema norte-americano ou uma
denúncia à esclerose do cinema francês, tais atos eram realizados em nome do cinema em
geral. O significativo não é o fato dos “dois H” serem anglo-saxões ou de Claude Autant-Lara
(1903-2000) e os roteiristas Jean Aurenche (1904-1992) e Pierre Bost (1901-1975) serem
franceses, mas a postura deles em relação ao Cinema, que é encarado como um campo próprio
e universal, professado na “moral do espetáculo”.

Antes de mais nada, Glauber se apropria da politique des auteurs para escrever uma
História. A contribuição deste método, segundo ele, foi a criação de um novo critério que
derruba o antigo, que pensava a história do cinema em “cinema mudo” e “cinema sonoro”.
Esse critério, puramente técnico, é descartado, pois o relevante é que a “realidade que, tanto
através das lentes de Tissé, como das lentes modernas de Raoul Coutard, foi apreendida e
plasmada em visão de mundo.” O fundamental já não é mais o caráter das imagens (mudas ou
sonoras) mas o que elas são em sua relação com o contexto da obra do cineasta, que possui
um vínculo com a realidade.33 O termo “autor”, entendido como “substantivo do ser criador
de filmes” inaugura, nos termos de Glauber, um novo artista ao lado dos já reconhecidos
poeta, pintor e ficcionista. Podemos notar uma preocupação em dar um valor artístico ao
Cinema nos mesmos termos que das demais artes, o que já é um passo para dar um prestígio
ao cinema brasileiro. Se for possível reconhecer a existência de Autores em nossa
cinematografia, ela será “salva”.

Assim, Glauber divide a história do cinema como “cinema comercial” e “cinema de


autor”, pensando uma relação entre elas:

Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução.


A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos
de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um autor como revolucionário,
porque a condição de autor é um substantivo totalizante. Dizer que um autor
é reacionário, no cinema, é a mesma coisa que caracterizá-lo como diretor
do cinema comercial; é situá-lo como artesão; é não ser autor. (ROCHA,
1963, p. 14)

O importante aqui para Glauber não é a politique des auteurs nela mesma, mas a
criação, a partir dela, de um novo termo, o “cinema de autor”, pelo qual se articula toda a
história do cinema. Esse termo, por sua vez, é pensado em contraposição ao “cinema
comercial”, que denigre o cinema enquanto Arte, rebaixando o cineasta à mera função de
artesão, e não artista. Portanto, a dicotomia anterior também pode ser dita nos seguintes
termos: Arte x Artesanato. O que vemos aqui é: primeiro, um par conceitual “cinema
comercial-cinema de autor” e, segundo, uma concepção implícita de Arte. É o que
estudaremos a seguir.

32
É possível sublinhar a mesma problemática em Paz: “No niego la utilidad e inclusive la necesidad de la crítica
extranjera: para mí las literaturas modernas son una literatura. (...) En lugar de repetir como mirlos persas o
loros americanos lo que dicen anónimos revisteros de Chicago o Milán, los críticos deberían leer a nuestros
autores como Caillois ha leído Borges; desde la tradición moderna y como parte de esa tradición. Dos tareas
complementarias: mostrar que las obras hispanoamericanos son una literatura, un campo de relaciones
antagónicas; describir las relaciones de esa literatura con las otras. (os grifos são do autor)” PAZ, O Corriente
alterna. 3 ed. México: Siglo Veintiuno, 1969. pp. 42-3. Em seu livro, Glauber realiza com o cinema exatamente
o citado procedimento.
33
Podemos notar uma diferença significativa com os “Jovens Turcos”: a referência a Serguei M. Eisenstein
(1898-1948), que não pertencia ao panteão francês.
47

Vimos que os “Jovens Turcos” contrapõem ao cinema de “Autor”, o cinema de


“Tradição de Qualidade”. É possível traduzir tais termos nos glauberianos “cinema de autor”
e “cinema comercial”? Sim e não, dependendo pelo que se entende por “cinema comercial”.
As críticas a uma morosidade estética graças à aplicação constante de regras formais
convencionadas, movida pelo único interesse em não perder o capital investido na produção,
aproximam Glauber e os “Jovens Turcos”. Não há criação, apenas aplicação de modelos, o
que destitui o cinema de seu status de Arte. Porém, como vimos, a originalidade dos “Jovens
Turcos” é radicalizarem o conceito de autor, aplicando-o no cinema hollywoodiano. O cinema
de autor não é entendido como experimentalismo, pelo contrário, há um “classicismo”
presente nos franceses. O cinema dos grandes estúdios, voltado para o entretenimento em
larga escala, não impede o exercício da “autoria”, pois um verdadeiro Autor possui uma
personalidade forte o suficiente para deixar a sua marca pessoal em seus filmes. A verve
provocadora de Truffaut se empenhou nisso, acusando os cineastas da “Tradição de
Qualidade” de covardes, o que o fez colecionar inimigos que o perseguiram mesmo após a
sua morte, como Autant-Lara. A senilidade estética do cinema francês dos anos 50 era vista,
acima de tudo, como falta de coragem e de imposição. Reconhecemos que se trata de uma
visão personalista, denunciada por Bazin, o que torna possível ler a politique des auteurs
como tributário do conceito de artista demiurgo de sua obra, surgido no Romantismo. Em
Glauber, o autor também é pensado como um demiurgo, mas ele está à margem de um cinema
convencional, de uma tradição. O “cinema de autor” é pensado como uma vanguarda (em
seus termos, “revolucionária”), que rompe tal tradição. Portanto, o autor é, por definição,
contrário ao status quo de uma sociedade que possui um cinema tradicional. Eis o ponto de
discordância entre Glauber e os “Jovens Turcos”. Apesar de Glauber também pensar a Arte (o
“cinema de autor”) como criação (“visão de mundo” do artista), essa, por sua vez, possui um
compromisso com a verdade, entendida como denúncia à realidade atual:

O autor é o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua “mise-en-scène” é
uma política. Como pode então, um autor, olhar o mundo enfeitado com “maquillage”, iludido com
refletores gongorizantes, falsificado em cenografia de papelão, disciplinado por movimentos
automáticos, sistematizado em convenções dramáticas que informam uma moral burguesa e
conservadora? Como pode um autor forjar uma organização do caos em que vive o mundo capitalista,
negando a dialética e sistematizando seu processo com os mesmos elementos formativos dos clichês
mentirosos e entorpecedores? A política de um autor é uma visão livre, anticonformista, rebelde,
violenta, insolente. (...) Godard, apreendendo o cinema, apreende a realidade; o cinema é um corpo-
vivo, objeto e perspectiva. O cinema não é um instrumento, o cinema é uma ontologia. (ROCHA,
1963, pp. 14-5)

Como o autor é um criador, a tradição é a sua maior inimiga. Neste sentido, tanto o
“cinema comercial” como o cinema de “Tradição de Qualidade” são sinônimos. Porém,
Glauber amplia o “tradicionalismo” do campo cinematográfico para a sociedade que o possui
como característica (“a moral burguesa e conservadora”). Não somente um cinema
convencional deve ser combatido, como o tipo de sociedade que necessita dele, encarando-o,
portanto, como “instrumento”. Esta sociedade, por definição “conservadora”, possui um
nome: capitalista. Assim, a própria idéia de “criação” é transformada. Afirmamos acima que
os “Jovens Turcos” possuem o “classicismo” como marca; isso pode confundir o leitor, pois
eles também são, paradoxalmente, “antitradicionalistas”. Ora, como entender isso? Na
verdade, se a Arte, na concepção moderna, é pensada como “originalidade”, toda ruptura
necessita do diálogo com uma tradição. Só é possível “romper” com algo prévio. Assim,
48

como afirma Paz, a modernidade continua a tradição via crítica (ruptura).34 O que queremos
dizer é que o “Cinema Moderno”, sendo a crítica do “Cinema Clássico”, o continua de um
certo modo. A diferença de Glauber para os “Jovens Turcos” é que o cineasta baiano duplica
essa questão, colocando-a em mais um outro nível, que poderíamos chamar de “social”.
Assim, o Cinema e, por extensão a Arte, é visto como um diálogo, via crítica, com uma
tradição, entendida não somente em termos estéticos, mas também sociais.Dessa forma, tal
ruptura (a “criação artística”) não somente se dá com o que lhe é específico (o estético) mas
com outro nível (o social). Portanto, a Arte é revolucionária, estética e socialmente. Assim,
como a sociedade socialista é uma crítica à capitalista, o “cinema de autor” critica o “cinema
comercial”. Isso é tão significativo que Glauber chega a afirmar, em um termo sugerido por
Bernardet35, o seguinte oxímoro: uma “indústria do autor”; a “síntese dialética” que será
operada pelo Cinema Novo.

Para chegar a essa proposta e arriscar uma definição para “Cinema Novo”, Glauber é
obrigado a voltar seus olhos para a sociedade brasileira. Se o “cinema comercial” é a tradição,
como uma manifestação da sociedade burguesa (“o cinema é uma cultura da super-estrutura
capitalista”), devemos pensar o cinema brasileiro atrelado ao capitalismo local. Somente
assim saberemos o que é o cinema nacional e, por conseguinte, compreender o aparecimento
do Cinema Novo. Podemos notar que para Glauber está ocorrendo uma mudança na nossa
sociedade e, conseqüentemente no cinema, pois as “classes produtoras”, que se resumiam até
então a uma pequena burguesia provinciana ou a grupos financeiros com ares de mecenas, já
estão criando uma “consciência”, transformando amadores em artesãos e expulsando os
autores para as produções independentes. Em suma, Glauber está vislumbrando a
industrialização do cinema no país. A morte da chanchada que é vista, portanto, como um
cinema pré-industrial, é a expressão dessa metamorfose. Estamos diante de um novo
momento histórico, mas que também possui os seus perigos (“Os mitos de Zé Trindade e
Oscarito foram substituídos pelos mitos do escândalo da mulher nua e do regionalismo
pitoresco de macumba e chapéu de couro”). O que motivou Glauber a escrever seu livro é
justamente denunciar tal ameaça, para salvaguardar o movimento do Cinema Novo (“O
desenvolvimento industrial do cinema brasileiro, atrasado de meio século, contará com uma
estagnação cultural de trinta anos.”).

Na verdade, Glauber vai além: o florescimento do “cinema de autor” é uma mudança


em escala mundial, o que podemos deduzir que ele o vê como um sintoma da decadência da
sociedade burguesa. Assim, Glauber atribui ao cinema no Brasil uma dupla missão
“histórica”: afirmar a cultura nacional e reforçar o seu compromisso com a destruição da
sociedade capitalista. As “classes produtoras”, que adquiriram uma “consciência”
recentemente, possuem o Autor como o seu adversário, enquanto classe. Portanto, a visão
beligerante do campo cinematográfico (“cinema comercial” x “cinema de autor”) é transposto

34
“Lo que distingue a la modernidad es la crítica: lo nuevo se opone a lo antiguo y esa oposición es la
continuidad de la tradición. La continuidad se manifestaba antes como prolongación o persistencia de ciertos
rasgos o formas arquetípicas en las obras; ahora se manifesta como negación u oposición. En el arte clásico la
novedad era una variación del modelo; en el barroco, una exageración; en el moderno, una ruptura. En los tres
casos la tradición vivía como una relación, polémica o no, entre lo antiguo y lo moderno; el diálogo de las
generaciones no se rompía.” Assim, Paz faz uma reflexão muito sintomática e interessante, para não dizer bem
“latino-americana”: “Muchos pueblos y civilizaciones se llamaron a sí mismos con el nombre de un dios, una
virtud, un destino, una fraternidad: Islam, judíos, nipones, tenochcas, arios, etc. Cada uno de esos nombres es
una suerte de piedra de fundación, un pacto con la permanencia. Nuestro tiempo es el único que ha escogido
como nombre un adjectivo vacío: moderno. Como los tiempos modernos están condenados a dejar de serlo,
llamarse así equivale a no tener nombre propio”. PAZ, O. Op. cit. pp. 20/22
35
BERNARDET, J. – C. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994. p.143
49

para o cenário nacional, mas, de um modo paradoxal, pois ainda não existe uma indústria
nacional de filmes. O papel do autor no Brasil “é lutar contra a indústria, antes que ela se
consolide.” Mero importador de filmes estrangeiros, o Brasil somente alcançará a sua
autonomia cinematográfica ao somar a produção a uma estética comprometida com as classes
progressistas do país, criando assim uma “indústria de autor”. O fato de existir um termo
perturbador (“Cinema Novo”) já é uma evidência, porém este está, segundo Glauber, sendo
manipulado facilmente. Assim, urge acirrar as fileiras do Cinema Novo, para que ele se torne
uma articulação coerente enquanto um movimento à altura da importância de seu papel.36
Somente assim, o cinema brasileiro deixará de ser um “apêndice” do cinema mundial,
adquirindo um caráter próprio. Para isso, o primeiro passo é mudar a leitura de sua história.

O “esteticista” Benedito J. Duarte esboça uma história do cinema brasileiro no início


do catálogo da Retrospectiva do Cinema Brasileiro, por ocasião do I Festival Internacional de
Cinema do Brasil, realizado em São Paulo, em 1954. Primeiramente, o crítico afirma a
necessidade de uma memória cinematográfica, cuja existência de uma cinemateca é básica. O
valor estético de um filme, que possui uma vida muito efêmera, precisando de cuidados, é,
muitas vezes, constatado somente com o tempo. O exemplo citado é justamente Ganga bruta
(1933), que já tinha sido “resgatado” recentemente.37 Posteriormente, Duarte divide a história
de nossa cinematografia em três idades, como ele a nomeia, nos seguintes termos:

1) A idade muda, ou de esplendor.


2) O advento do som, ou a fase da decadência.
3) O renascimento, ou a era do cinema paulista.

A melhor fase do nosso cinema é a muda que, apesar de não ter constituído uma
indústria, alcançou um elevado grau artístico. Reconhece-se a seriedade e o compromisso de

36
A modéstia não está nos planos de Glauber: “Quando André Bazin disse que o western era o “cinema
americano por excelência”, forneceu um dado para que hoje se possa pensar na possibilidade de o cinema ser “a
cultura brasileira por excelência”” Idem, p 17. Interessante notar que Glauber, inconscientemente, se afasta da
politique des auteurs, ao se identificar com o teórico francês. Por outro lado, vemos a suma contribuição do
cinema a dar ao país, sendo encarada como a arte principal para a sua expressão. Glauber inverte um “senso
comum” de desvalorizar o cinema brasileiro, atribuindo-o o viés de síntese da cultura nacional. Porém, para
outorgar ao cinema brasileiro tamanho grau de nobreza, Glauber criará um panteão específico deste cinema, a
partir de nomes já consagrados em outras artes nacionais.
37
O primeiro resgate público de Mauro foi na 1ª Mostra do Cinema Brasileiro, realizada em São Paulo, em
novembro e dezembro de 1952. Do cineasta mineiro, foram exibidos, além de Ganga bruta, O descobrimento do
Brasil (1936), Lábios sem beijos (1930), O canto da saudade (1952), Argila (1940) e Thesouro perdido (1927)
in Catálogo da “1ª Mostra do Cinema Brasileiro”. Um relato da “descoberta” de Mauro se encontra em
DUARTE. “Roteiro de Humberto Mauro”. In VIANY, A. (Org) Humberto Mauro: sua vida, sua arte, sua
trajetória no cinema. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1978. pp. 48-58. Aqui, o crítico paulista aproveita
para ajustar as suas contas com o Cinema Novo: “De Humberto Mauro, não vi nada de fato nos filmes do
cinema novo, ali, abundando, atabalhoadamente e de modo canhestro, tudo quanto fizeram os rapazes da
nouvelle vague, de cambulhada com as idéias do cinema-verité e com os modos de alguns autores italianos, do
neo-realismo aos filmes de Antonioni. E ao ler-se o que escrevem os incensadores do grupo (...), até parece que
foram esses desmazelados cineastas que inventaram o cinema e descobriram... Humberto Mauro! – Ora, nem
Humberto Mauro, na sua simplicidade de homem emotivo e original, nem nós da crítica acadêmica, que
desenterramos Humberto Mauro do túmulo do esquecimento e da incompreensão em que se achava sepulto,
trazendo-o à luz dos projetores e da análise escrita de seus principais filmes, nunca nos vangloriamos de termos
feito algo de novo, ou de sermos os donos de um artista e de exegese de sua obra. Porque o novo, neste mundo
de dependências mútuas e de turbulências permanentes, se faz com o resíduo subjacente de idéias velhas; um
processo novo é sempre apoiado ou estruturado em critérios e fragmentos do passado, na experiência e na
maturidade dos antigos...” Idem, p. 53
50

algumas pessoas (semelhante aos “diletantes” de Viany) contudo já existiam “grandes


exploradores e os pequenos aproveitadores da imagem, tais como os “picaretas” de hoje”.
Esses corruptores recebem um nome: os “cavadores”.38 Entretanto, o advento do som foi a
grande desgraça, que pôs em terra a potencialidade que se vislumbrava em nossa
cinematografia. Se os “cavadores” já ameaçavam o nosso cinema na época muda, com o som,
eles tomam à frente, convertendo esse período na “fase áurea dos aproveitadores”. O desprezo
do crítico a esse período é tal, que ele se isenta de uma suposta “neutralidade” esperada de um
historiador, narrando uma dantesca “idade das trevas”:

E foi a época áurea das fitas sem planejamentos, das películas feitas ao
Deus-dará, dos “alôs, alôs!”, apelativo vindo no rastro de uma série
horrorosa de fitas carnavalescas (...) as de pura “cavação”, melodramas
medonhos cujos títulos, até agora, nos recusamos a escrever. Não os
citaremos como não mencionaremos os nomes dos autores desses crimes
cometidos friamente contra o nosso cinema. O que se tinha, então, por
“cinema brasileiro” era bem o reflexo de uma indústria, que se arrastava
precariamente no País, dotada de aparelhamento obsoleto, quase sempre
improvisado e, em geral, manejado por técnicos de formação feita à última
hora, ou em hora nenhuma.
(...)
À maioria dos que faziam cinema no Brasil, não interessava um
conteúdo brasileiro no fazer cinema, já que a forma, toda ela adstrita a uma
técnica paupérrima, não era passível de melhoria imediata. Quase tudo o
quanto saía dos estúdios, mal e mal aparelhados, era uma caricatura
grotesca do mau cinema norte-americano, revestida de um
convencionalismo ridículo, daquele aspecto melodramático do mau teatro,
que há muito já havia sido superado na técnica e na estética do cinema
contemporâneo. (...) O que interessava, realmente, era o lucro imediato,
mesmo que para tal, se destruísse a dignidade do verdadeiro cinema
brasileiro ou a honra dos homens que lutavam por ele.
Tal era o panorama desanimador do cinema no Brasil, até bem
pouco tempo. Não; não desejamos sequer nos lembrar dessa época.
Preferimos saltar para uma data ainda recente: 3 de novembro de 1949.
Nesse dia, fundava-se em S. Paulo a Cia. Cinematográfica Vera Cruz. Para
nós, o Cinema Brasileiro renasceu, em sua fase sonora, no dia 3 de
novembro de 1949.39

Aqui podemos constatar, além de seu raciocínio histórico, um critério de juízo estético.
Um verdadeiro cinema, com valor artístico, somente é possível com técnicas atualizadas. O
valor da fase muda está, apesar de sua pequena produção, na “ânsia de qualidade artística e
técnica”. Os homens de valor daquela fase tinham a consciência que qualidade estética anda
colada com a técnica, e portanto, um verdadeiro cinema somente pode existir numa indústria.
É por isso que, na fase sonora, encontramos o termo cinema brasileiro entre aspas, pois não
havia a vontade de se investir numa indústria, mas apenas adquirir um lucro imediato.
Portanto, não poderia existir um cinema. O pensamento, digamos, “estético-industrialista”
seria retomado no cinema paulista, superando a decadência do sonoro (que deve ser, por
enquanto, sumariamente esquecida). Duarte advoga, portanto, que para haver um conteúdo
brasileiro num filme, é necessário um vigor na forma. Somente assim, surgirá um autêntico

38
“O que contribuiu para o nosso cinema não ser tomado a sério, são os filmes de “cavação” (...)” DUARTE.
“As idades do cinema brasileiro”. In Catálogo “Retrospectiva do cinema brasileiro”. Infelizmente, a brochura
não possui as páginas numeradas, o que nos impede de citá-las.
39
Idem
51

cinema brasileiro, possuindo um diálogo entre iguais com as demais cinematografias. A


valorização de Ganga bruta parte desse preceito, atribuindo-lhe um valor quase que heróico,
já que, numa indústria dando seus primeiros passos, Mauro pudesse realizar um filme de um
valor tão elevado. O seu fracasso de crítica e público se deve ao despreparo, no Brasil, para a
recepção de uma obra que, de tão intensa, tornou-se vítima da incompreensão.

Dentro do citado catálogo, há um pequeno artigo de Duarte analisando o filme.40


Todas as referências laudatórias, encontradas no texto, são retiradas, estranhamente, da
cinematografia européia, mais especificamente francesa. Inicialmente, cita o valor do filme
Exemplo regenerador (1919) de José Medina (1894-1980), notando uma influência dos
chamados films d’art.41 Esses filmes, por sua vez, eram fortemente influenciados pelo teatro e
pela literatura, transformando-se nos principais “bodes expiatórios” dos teóricos da avant-
garde, da década de 1920. Assim, os filmes desses teóricos sofisticam a linguagem
cinematográfica, visando romper com a pesada herança do teatro ainda reinante no cinema
francês (cultuando o cinema norte-americano como um exemplo a ser seguido). Ora, o que
Duarte conclui é que os filmes da avant-garde são superiores aos dos films d’art, criando uma
linguagem mais própria ao cinema ao expressar visualmente os estados psicológicos dos
personagens, sem o uso abusivo de intertítulos e fugindo da câmera estática do “teatro
filmado”. O procedimento de valorização de Ganga bruta realizado por Duarte é constatar
que o filme de Mauro é a influência mais forte e direta da estética da avant-garde em nosso
cinema. Por isso, seu filme é superior ao de Medina. Ganga bruta aborda seus personagens de
um modo intimista, subjetivista, beirando ao hermetismo; o que explica a má recepção na
época. É irônico notar que Duarte não cita, em nenhum momento, o cinema norte-americano
(que, além de cultuado pelos franceses, ocupou um papel principal na formação de Mauro),
mas somente o francês, e por vezes, o expressionismo alemão.42 Desse modo, o crítico
equivale “Ganga bruta” a um outro filme nacional, que já possuía um valor artístico
reconhecido e indiscutível: Limite (1930) de Mario Peixoto (1908-1992). Portanto, Peixoto e
Mauro são os cineastas brasileiros que mais genialmente conseguiram absorver a estética
“vanguardista” francesa. Assim, Ganga bruta atinge “uma profundidade de conteúdo estético,
uma significação quase ‘proustiana’, seja-nos permitida a expressão, que nenhuma outra
realização da época – além de “Limite” de Mario Peixoto – alcançaria depois”.

Em Glauber, ocorre uma mudança radical no viés da obra de Mauro, e por conseguinte,
até o modo de se interpretar a sua relação com Peixoto. O pensamento cíclico de Duarte é
abandonado, apesar de prosseguir a crítica à chanchada. O crítico paulista ainda utiliza o
critério “cinema mudo/cinema sonoro” o que já o caracteriza como um raciocínio
ultrapassado. Glauber pensa a história do cinema mundial como uma luta entre o “cinema
comercial” e o “cinema de autor”. Assim, o pensamento cíclico é substituído por um
raciocínio linear, formado por duas linhas paralelas e antagônicas, sendo que uma é a
dominante (a tradição) e a outra é a marginal, que luta por sua sobrevivência. É justamente
esse raciocínio que será aplicado ao cinema nacional. O seu capítulo sobre Mauro já possui
um título sintomático: “Humberto Mauro e situação histórica”43. Toda a história do cinema

40
DUARTE. “Humberto Mauro e ‘Ganga bruta’”. In Idem
41
Cuja maior expressão foi o L’assassinat du duc de Guise (1908) de Charles Le Bargy (1858-1936) e André
Calmettes (1861-1942). Uma rigorosa reconstituição histórica, esse filme foi realizado para ser uma expressão
artística inegável. A maioria de seus profissionais pertenciam à Comédie Française, o roteiro escrito por Henri
Lavedan (1869-1940) da Academia Francesa e a música composta por Camille Saint-Saëns (1835-1921).
42
Os dois únicos cineastas citados são importantes nomes do cinema francês dos anos 20: Germaine Dulac e
Dimitri Kirsanov, ou na versão galicizada, Kirsanoff (1899-1957).
43
ROCHA, G. Op. cit. pp. 19-31
52

nacional, analisada sob a perspectiva do “cinema de autor”, como é afirmado na “Introdução”,


é dissecada a partir da relação com Mauro. Ele é dignificado por intermédio de um panteão
internacional, varando épocas, escolas e nacionalidades. Posteriormente, vemos o mesmo
procedimento no interior da cultura brasileira, utilizando nomes consagrados de outras artes,
como a literatura, a pintura e a música. Bernardet estuda como ocorre tal procedimento, e não
temos mais o que acrescentar44. Portanto, faremos de sua conclusão, o nosso ponto de partida:

(...) é Mauro que, uma vez dignificado, poderá dignificar os cineastas


cujos nomes forem associados ao dele. Essa concepção de Mauro, criada
pela projeção da ideologia autoral, faz do cineasta assim legitimado o
patrono do Cinema Novo que ele então passa a legitimar. O Cinema Novo
encontra assim a sua tradição (...). (BERNARDET, 1994, p. 146)

Contudo, como Glauber articula a relação Cinema Novo-Humberto Mauro? Ele


resolve tal questão, ao utilizar, primeiramente, um exemplo extraído da literatura brasileira, e
cria, portanto, uma analogia. Assim, do mesmo modo que Graciliano Ramos (1893-1952)
tornou o romance regionalista nordestino mais crítico, social e politicamente; o Cinema Novo
realiza tal processo com o cinema maureano. Glauber aproxima o cineasta mineiro do tipo de
literatura que se realizava em sua época (a primeira fase do regionalismo nordestino),
definindo-o como “um caráter confusamente impregnado de realismo e romantismo”. Assim,
podemos afirmar que o Cinema Novo é um “amadurecimento” de Mauro, em termos políticos.
Entretanto, quais são os pontos de contato entre os dois?

Inicialmente, Glauber proclama um princípio de produção, que podemos retirar de


duas afirmações:

(...) o princípio de produção do “cinema novo” universal é o filme


antiindustrial: o filme que nasce com outra linguagem, porque nasce de uma
crise econômica – rebelando-se contra o capitalismo cinematográfico, das
formas mais violentas no extermínio das idéias.
Logo, a tradição de Humberto Mauro não é apenas estética e cultural,
mas é também uma tradição de produtor que não encontra eco no delírio
milionário de hoje. Humberto Mauro – com o impacto de sua obra – obriga
repensar o cinema no Brasil, pelo menos àqueles que são honestos e não
temem assumir necessária consciência crítica. (os grifos são nossos)
(ROCHA, 1963, p. 26)

Aqui, podemos constatar um raciocínio em nível mundial, e posteriormente, local. Ora,


Glauber atrela “cinema de autor” a um tipo de produção necessariamente anti-industrial.
Como já vimos em Marie, ele comete um equívoco, porque a Nouvelle Vague não é fruto de
uma “crise econômica” no cinema francês. A conclusão que retiramos dessa afirmação tão
peremptória é a ratificação de nossa hipótese de que Glauber vê no “pipocar” dos vários
“cinemas de autor”, em todo o mundo, uma manifestação das contradições do capitalismo,
apontando para o seu futuro fim, mais cedo ou mais tarde. A necessidade de se voltar para
Mauro parte, não somente da urgência do atual momento histórico, como do reconhecimento
de um tipo de cinema (o “de autor”), que está presente já na origem de nossa cinematografia.
Ou seja, Mauro abre o caminho para o que seria um autêntico cinema brasileiro. Como
entender essa brasilidade?

44
BERNARDET, J. – C. Op. cit. pp. 144-7
53

O primeiro aspecto já foi abordado: o uso de parcos recursos como fonte criadora na
expressão artística. Ou seja, fazer da precariedade, uma estética. Assim, ao assumir esse
princípio, tal estética possui um compromisso com a verdade, o que é a definição de “cinema
de autor” (já visto na “Introdução”). Mauro é um Autor pelo fato de criar uma mise-en-scène,
i. e., é impossível separar o argumento da direção, sendo o filme uma unidade indivisível. Se
Glauber assimila corretamente o conceito de mise-en-scène, ele, por sua vez, não o utiliza
como os “Jovens Turcos”, que analisam sistematicamente toda a obra de um cineasta,
chegando a uma definição geral. Glauber elogia explicitamente dois filmes: Ganga bruta e
Favella dos meus amores.45 Não estamos afirmando que ele despreza os demais, porém, estes
dois filmes, outrora já citados por Viany, condensam, aos seus olhos, o que é relevante para o
Cinema Novo. Se Viany se volta para o segundo filme, Glauber analisa o mais conceituado
dos filmes maureanos. Ora, se o raciocínio “estético-industrialista” dos “esteticistas” deve ser
categoricamente rejeitado, o elogio deles deve ser visto com suspeita e, portanto, atirado ao
fogo. É, acima de tudo, uma ameaça, e urge, portanto, refletir um verdadeiro elogio a Ganga
bruta. O filme, como sublinha Bernardet, é enobrecido com várias referências ao cinema
mundial, sem respeitar limites de gêneros (o que o põe na alçada do “Cinema Moderno”),
porém, consegue, mesmo assim, possuir uma coerência e uma unidade.46 Assim, ele chega a
uma conclusão retumbante ao comparar com o cenário cinematográfico posterior: “é possível
traçar a involução da linguagem cinematográfica brasileira”. Houve um desvio de um
caminho estético rico, transformando o cinema brasileiro num marasmo.47 Qual é, então, o
princípio da mise-en-scène maureana? Glauber, numa leitura, digamos “baziniana”, o calca na
fotografia. Mauro extrai um lirismo do enquadramento, sendo uma contemplação autêntica da
paisagem brasileira. Diferente de Lima Barreto e, por suposição, também a chanchada, que
encaram a paisagem brasileira com exotismo (apesar de Glauber, em nenhuma passagem do
livro, teorizar o porquê de sua recusa à chanchada). O cangaceiro (1952) é visto como um
filme perigoso, pois seu exotismo e ufanismo da terra brasileira o torna um discurso proto-
fascista.48 Em suma, não é esse o caminho que o cinema brasileiro deve tomar. O lirismo
maureano não é a exaltação de nossa terra, mas uma compreensão da mesma, alcançando a
contradição presente em nossa realidade: um povo pobre, subdesenvolvido, numa terra rica e
fértil. Essa relação do homem brasileiro com a natureza acaba por também expor uma
denúncia, mesmo que o cineasta mineiro não tenha nenhuma consciência disso:

E, selando a autoria, o que se deduz da posição de câmera de Mauro é


uma compreensão dos valores objetivos da paisagem física e social. Sendo
entendimento e não êxtase frente à exuberante paisagem brasileira –
romantismo verde-amarelo ao qual voltaria Lima Barreto e no qual
mergulham os profissionais de nossa miséria – Mauro, embora
ideologicamente difuso, faz uma política despida de demagogia. Obtém o
quadro real do Brasil – que é a alienação dos costumes, sociologicamente
mistificado de romantismo. Neste quadro não esconde a violência da
miséria. (os grifos são nossos) (ROCHA, 1963, p. 29)

45
ROCHA, G. Op. cit. p. 25
46
Vejamos o quanto Glauber enobrece Mauro ao relacioná-lo com um cineasta incontestável: “Se a discutida
seqüência freudiana da fábrica é o único momento historicamente superado do filme, vale a pena lembrar que
Eisenstein tinha Marx e Freud como os autores básicos em sua teoria. A Mauro faltava uma cultura marxista e,
quanto a Freud, não creio que as metáforas da fábrica fossem um experimento consciente.” Idem. p. 29
47
A idéia de desvio permeia o capítulo. Numa outra passagem, Glauber chega a afirmar que o cinema brasileiro
dos anos 30 tinha grandes possibilidades, se unisse conscientemente os talentos dos cineastas Mauro, Peixoto e
Cavalcanti e o empenho entusiasta de Gonzaga e Carmem Santos. Perdeu-se, assim, um momento histórico para
a constituição de um autêntico cinema brasileiro, perigo que também ronda o Cinema Novo. Idem. p 25
48
Idem. p. 71
54

Portanto, o vínculo do Cinema Novo com Mauro não é político. Trata-se de uma
opção estética, da qual é possível extrair uma política. Desse modo, podemos resumir os
pontos de contato entre o Cinema Novo e Humberto Mauro em: um princípio de produção
(negar os grandes estúdios) e um princípio estético, expresso pelo rompimento da cisão entre
argumento e direção (a mise-en-scène) e o uso da fotografia como um método de
conhecimento. Desses princípios é possível chegar a uma política, ainda não processada e
articulada no cineasta mineiro. Assim, e somente assim, os jovens do Cinema Novo, que
pregavam um marxismo, podem, paradoxalmente, ver num cineasta cristão e de formação
conservadora o seu patrono. Glauber tem plena consciência desse paradoxo, e por isso, frisa o
vínculo estético com o velho Mauro. Isso é possível por sua leitura ser histórica, diferente da
dos “Jovens Turcos”, interpretando o cinema de Mauro como uma etapa, relacionando o
cineasta mineiro a uma “situação” (como diz o título), pela qual passou o cinema brasileiro.49
Portanto, Glauber consegue, simultaneamente, criar uma origem nobre para o seu movimento
(arrancando Mauro das mãos dos “esteticistas”) e se posicionar em relação aos problemas
vigentes do cinema brasileiro. É o que torna possível a sua crítica a Walter Hugo Khouri.
Apesar de reconhecê-lo como autor, pelo fato de ele criar uma mise-en-scène, e por isso, estar
à margem da indústria, Glauber o diferencia do Cinema Novo. O seu cinema é puramente
subjetivista, preocupado com questões de foro íntimo, e não social. Tal visão pode ser autoral,
no sentido de também manifestar as contradições da sociedade burguesa para além do puro
entretenimento (“cinema comercial”). Aliás, Glauber, na “Introdução”, interpreta
Michelangelo Antonioni (1912- ) nestes termos. Porém, e aqui podemos reconhecer uma
distinção de ordem nacional, o autor do nosso cinema deve estar comprometido com o
“homem brasileiro”, uma herança maurena. Mas, distinto do momento de Mauro, o cinema de
então adquiriu uma maior “consciência”, o que significa que compreender esse homem é
conhecer e transformar a nossa realidade. Não há mais espaço, nessa conjuntura, para
cineastas “ideologicamente difusos”, como no tempo de Mauro. Portanto, Khouri é visto
como uma “possibilidade” como frisa Bernardet50, necessitando abandonar as suas veleidades
“pequeno-burguesas”. Aqui podemos constatar uma diferença radical com os “Jovens
Turcos”: existe uma subdivisão entre os Autores. Isso ocorre pelo fato de Glauber atrelar à
sua singular interpretação da politique des auteurs, um olhar histórico. E como a História,
para ele, possui um sentido, a Arte (o Cinema) possui laços e responsabilidades em relação a
ela. O Cinema é pensado em articulação a algo exterior a ele. Assim, Glauber, de modo
semelhante a Viany, descreve dois caminhos dentro do cinema brasileiro: um, social e
autenticamente brasileiro, o Cinema Novo; e outro formalista e universalista; os herdeiros
renitentes do cinema paulista, com Khouri à frente.51 Esses dois caminhos podem ser
encontrados desde longa data. Assim como o Cinema Novo prolonga Mauro, Khouri prolonga
Mario Peixoto. Se Duarte dignifica Ganga bruta via Limite, Glauber corta tal laço,
constituindo-os em duas fontes nas quais bebem duas linhagens distintas do cinema brasileiro.

Portanto, o que é “Cinema Novo” para Glauber? Inicialmente, ele o pensa dentro de
uma conjuntura internacional, o que já significa que não se trata de mero voluntarismo por
parte desses jovens cineastas. Eles estão coadunados com as transformações estéticas que
ocorrem no resto do mundo. Assim, esse é o primeiro passo de legitimação do movimento
nacional, vinculando-o a uma plêiade incontestável de cineastas estrangeiros. O segundo
passo é realizar um procedimento semelhante dentro da cultura nacional. É o que ocorre com
Humberto Mauro, que é dignificado por intermédio de nomes de outras artes nacionais. Aqui

49
Esse tema é abordado mais explicitamente no artigo que deu origem ao capítulo do livro, ver ROCHA.
“Humberto Mauro e situação histórica”. In Viany, A. (Org). Op. cit. pp. 77-84
50
BERNARDET, J. – C. Op. cit. p. 148
51
ROCHA, G. Op. cit .p. 79
55

podemos notar um raciocínio semelhante ao de Cavalcanti, que ao não subestimar a


genialidade do povo brasileiro, cria um paradoxo em como entender a mediocridade do nosso
cinema. Glauber somente resolve esse paradoxo, quando consegue finalmente enobrecer um
cineasta, a quem cujos nomes vinculados a ele passam a ser contagiados por tal legitimidade.
Portanto, a mediocridade do cinema brasileiro não é congênita . Entretanto, Glauber, ao
resolver tal paradoxo, cria uma outra questão: se o cinema brasileiro não é medíocre, por
definição, por que ele foi infectado por essa doença? Um exemplo é citado pelo cineasta
baiano: de Ganga bruta à Primeira missa (1960) de Lima Barreto, houve uma “involução da
linguagem cinematográfica brasileira”. Em suma, o cinema brasileiro não é medíocre, ele está
medíocre. Se remetermos o livro de Glauber à nossa tradição crítica, podemos notar um alívio
que ele suscita ao resolver o paradoxo, explicitado por Cavalcanti, exterminando um estado de
inferioridade reinante nos homens de nosso cinema. Portanto, Glauber, ao vencer tal
inferioridade, desloca a angústia de profissional do cinema brasileiro de um estado de
natureza para uma condição histórica. O ônus pago é a narrativa do nosso cinema ser
conduzido por caminhos tortuosos. Assim, em que momento o nosso cinema se desviou de
suas imensas possibilidades, chegando a uma condição tão desalentadora? Duarte, em seu
pensamento cíclico, deu a sua resposta: o advento do som desorganizou uma indústria
nascente, e criou a condição para o reinado dos “cavadores”. Este período deve ser, por
enquanto, apagado da nossa memória, pela vergonha e tragédia que nos causou. Glauber já
não se preocupa mais com tal momento, pois encara a chanchada como uma etapa superada,
preocupando-se com uma apropriação ardilosa do rótulo “Cinema Novo”, graças à indefinição
do termo. Contudo, o que está em jogo é o mesmo em Duarte: como deve ser pensada a
produção de filmes no Brasil. Para o “esteticista”, é necessário criar o mais urgente possível
uma indústria, e acabar de vez com os “cavadores” que parasitam o nosso cinema. Glauber se
embaraça com a questão, pois se o “cinema de autor” está à margem do “cinema comercial” é
incoerente a aplicação desse “conceito” no Brasil, pois não há uma indústria cinematográfica
nacional. A resposta se converte em prevenção: é necessário destruir a indústria antes que ela
se consolide. Daí, podemos supor dois preceitos: um é a existência atual de pessoas
equivocadas que desejam criar tal indústria; e o outro, já que o nosso pensamento é histórico
linear, é também remeter essas pessoas a uma tradição. Portanto, assim como o Cinema Novo
possui raízes em Mauro, o “cinema de autor” universalista em Peixoto, tais homens também
“descendem” de alguma linhagem. Essa preocupação, um tanto confusa neste livro de
Glauber, aponta para a questão fundamental: o que é Cinema Brasileiro? Tentaremos
desentranhá-la por um caminho que Glauber nos abriu: Humberto Mauro. Já que ele é o nosso
primeiro autor, ou seja, ninguém antes dele efetivou uma “linguagem cinematográfica
brasileira” (e nem depois, pois de Ganga bruta para cá houve um declínio), é necessário
entendê-lo para respondermos à questão acima. Porém, é impossível abordá-lo sem nos
mergulharmos em sua “situação histórica”, o que significa que seu nome, obrigatoriamente,
está vinculado a outros. Assim, chegamos a um nome fundador do pensamento
cinematográfico brasileiro: Adhemar Gonzaga.52

52
Foi justamente pelo caminho aberto por Glauber que Salles Gomes rumou: GOMES, P. E. S. Humberto Mauro,
Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1971. Este livro, que se converteu num pilar da nossa
historiografia clássica, aborda exaustivamente o surgimento e amadurecimento do cineasta Mauro. Porém, não
estamos preocupados com Mauro, mas como ele foi articulado a uma noção de cinema brasileiro, cujo livro de
Salles Gomes exerce um papel fundamental. A nossa abordagem é via Glauber, que extrai uma definição de
cinema brasileiro a partir do conceito “Cinema Novo”. Portanto, o que estamos estudando é a resolução do
problema posto no início deste capítulo: o que é “Cinema Novo”? Mauro foi uma ferramenta para essa resposta,
relacionando-o a algo muito maior. Coube a Salles Gomes entrar pela porta aberta por Glauber. Porém, veremos,
posteriormente, como o próprio Glauber consegue encontrar uma outra resposta mais coerente, porém,
colocando a sua questão em outros termos.
56

CAPÍTULO 3 – PENSAR O CINEMA BRASILEIRO

Se afirmamos que a falência do projeto paulista desencadeou um movimento de re-


pensar o cinema no Brasil, provocando, para Salles Gomes, o fim de um “mundo de ficções”1,
está implícita a existência de um pensamento prévio e consolidado. Ignoramos se
anteriormente aos críticos da revista Cinearte, alguém já havia refletido sobre o cinema
especificamente brasileiro, preocupando-se em pensá-lo para além da simples aplicação de
uma técnica, ou seja, reconhecer alguma singularidade dessa nova arte em nosso país. Porém,
isso não nos impede de afirmar que foi na Cinearte que, pela primeira vez, tal questão se
articulou sistematicamente como uma preocupação central.2 Assim, reconhecemos Adhemar
Gonzaga e Pedro Lima (1902-1987) como os inauguradores da discussão do Cinema como
uma questão nacional. Portanto, podemos sintetizar esse pensamento como a resposta a duas
interrogações vinculadas entre si: o que é o cinema brasileiro e quais são as condições de
possibilidade de sua existência?

Em seu célebre capítulo “O cinema brasileiro visto de ‘Cinearte’”, Salles Gomes


responde a tais questões, dentro de seu procedimento metodológico.3 O ideário de Cinearte
está fundamentado no pensamento liberal, explicando o uso do cinema norte-americano como
modelo, seja estético como de produção. Contudo, Salles Gomes delimita nuanças entre
Behring4 e Gonzaga, sobretudo na relação com as distribuidoras estrangeiras. O primeiro via
que a qualidade dos filmes nacionais somente seria elevada por intermédio da concorrência
com o produto estrangeiro, enquanto que o segundo via a necessidade de se recorrer ao Estado
para a proteção, de algum modo, da produção nacional, mas não para o financiamento. O
sedutor da tese de Salles Gomes é a sua lucidez no sentido de atentar para o perigo de uma
visão simplista das idéias de Cinearte. Apesar de todos os seus defeitos (o “americanismo”, o
policiamento, o moralismo e o racismo), não podemos taxar Gonzaga e Lima de “ingênuos”.

1
Ver os artigos “Um mundo de ficções”, “A agonia da ficção”, “O gosto da realidade” e “O dono do mercado”
In: GOMES, P. E. S. Op. cit. pp 296-313.
2
A revista Cinearte foi criada em 1926, por Gonzaga e Mário Behring e circulou até 1942. Não foi a primeira
revista de cinema no Brasil, porém a mais importante da década de 20. Gonzaga e Lima foram colegas no
Colégio Pio Americano, construindo uma sólida amizade pelo amor ao cinema, junto com outros condiscípulos,
que também terão um papel importante na formação desse pensamento. Porém, foram Gonzaga e Lima os seus
principais formadores. Após os seus estudos secundários, ambos ingressam no jornalismo: Gonzaga trabalha em
Para Todos..., na qual cria, em 1923, uma coluna específica para o cinema brasileiro (“Filmagem Brasileira); e
Lima trabalha em Selecta, onde realiza o mesmo em 1924 (“O Cinema no Brasil”). Com a criação de Cinearte,
Gonzaga convida Lima, tornando-o responsável pela coluna “Filmagem Brasileira”, posteriormente intitulada
“Cinema Brasileiro”. É por essa revista que ambos promovem a chamada “Campanha pelo Cinema Brasileiro”,
exercendo uma função de pólo centralizador de informações e difusor de idéias estéticas e organizacionais. Tal
ideário será posto à prática na realização de Barro humano (1930), dirigido por Gonzaga e cujo sucesso de
público e crítica, amadurece a idéia da fundação da produtora Cinédia, em 1930. Devido às divergências
ideológicas e pessoais, a amizade é rompida, provocando o desligamento de Lima da revista no mesmo ano,
marcando, assim, o término da campanha. RAMOS, F. e MIRANDA, L. F (Org). Enciclopédia do cinema
brasileiro. São Paulo: SENAC, 2000. pp. 126-7; 130-2; 278-1; 326
3
GOMES, P. E. S. Op. cit. pp 295-366
4
Mário Marinho de Carvalho Behring se dedicou aos estudos históricos desde jovem, contudo ingressou no
jornalismo, trabalhando para a Sociedade Anônima O Malho. Em 1924, é nomeado diretor da Biblioteca
Nacional, mas, por razões financeiras, nunca deixou de escrever artigos. Foi Grão-Mestre Geral do Grande
Oriente do Brasil (GOB) de 1922 a 1925, quando a maçonaria ainda possuía um papel ativo na sociedade
brasileira. Em 1927, por motivos eleitorais ao Grão-Mestrado, rompe com o GOB e promove a fundação de
Grandes Lojas Independentes no país. Sobre a relação de Behring com o cinema no Brasil, ver especialmente
Idem. pp. 295-303
57

A superestimação da propaganda, criando um star system, a afirmação de certos valores


estéticos em detrimento de outros e a “crença” em compartilhar o mercado com o produto
estrangeiro não podem ser vistas como singelas idiossincrasias pessoais, mas como posturas
derivadas de uma determinada condição que se vai moldando aos poucos. Eram pioneiros e
tiveram que, sozinhos, forjar as suas idéias de como fazer cinema no Brasil5. Salles Gomes
chega a advertir o leitor em não crer piamente nas frases de efeito publicadas na revista, pois a
face pública de Gonzaga nem sempre coincide com a privada.6 A passagem do mudo para o
sonoro e da crítica para a produção acelerou um processo de amadurecimento traumático
desses jovens entusiastas ao se “chocarem” com o verdadeiro “estado das coisas” do cinema
no país - um mercado invadido:

O fim do cinema mudo coincidia com o fim da mocidade de Adhemar Gonzaga e de seus
amigos. A idade de ouro – instante incomparável mesmo quando impregnado de penúria – de Selecta,
Para Todos... e do começo de Cinearte e Barro Humano, já pertencia ao passado, embora eles ainda
não tivessem se apercebido disso. Chegava para os sonhadores, que Behring acolhera e ironizava, com
simpatia, a hora da chamada vida prática com todas as suas capitulações. (GOMES, 1971, p. 352)

Em suma, Salles Gomes, após estudar, cuidadosamente, a formação e propagação das


idéias da revista, aponta para a sua diluição, como espuma, quando tais homens chegam à
“idade da razão”, i. e., quando são defrontados com um “núcleo duro” de uma realidade
vigente, já vislumbrada por eles, e que suscita doloridas “capitulações” (não só de idéias, mas
de amizades). A resposta a esse fato fará divergir Gonzaga e Lima, mas, como o interesse do
autor é pelo primeiro, anuncia um “pragmatismo”, de um certo modo já em prática, no futuro
dono da Cinédia. Ou seja, os ideais, sobretudo estéticos de Gonzaga, tombarão diante da
realidade do mercado, sacudido pela inovação técnica. Apesar de Salles Gomes não afirmar
explicitamente, podemos deduzir que a utilização do termo “pragmatismo” se deve a um não-
aprofundado questionamento das condições do mercado por parte de Gonzaga. As regras do
mercado são aceitas, e é necessário, portanto, se adaptar a elas da forma mais pertinente. Isso
está intimamente associado a um modelo de cinema que é universalizado.

Se Glauber pensa o “cinema de autor” em contraposição ao “cinema comercial” e os


“Jovens Turcos”, o cinema de “Autor” ao de “Tradição de Qualidade”, Gonzaga, por sua vez,
contrapõe o seu modelo de cinema ao de “cavação”. Podemos ver tal contraposição na
discussão entre Gonzaga e Behring acerca do filme “posado” (ficção) e do “natural”
(documentário). Para Behring, o nosso país somente teria condições de realizar o filme
“natural”, por fatores técnicos e financeiros, enquanto que Gonzaga se empenhava na defesa
da produção dos “posados”, que além de ser a única capaz de deitar as raízes de uma indústria,
exercia uma função “civilizadora” (guardaremos esse termo, para discuti-la posteriormente).
Vale sublinhar que por detrás dessas posições existem certos princípios, não só de Cinema
mas de Brasil, que iremos esmiuçando aos poucos. O que deflagra a “Campanha pelo Cinema
Brasileiro” junto com Lima é, acima de tudo, a necessidade de se produzirem filmes
“posados”. A Cinearte não somente se converte num pólo de estímulo aos produtores
espalhados pelo país, tornando-se num ponto de convergência, como um promotor de certas

5
“Chegado a este ponto do exame (...) pode parecer que Adhemar Gonzaga e Pedro Lima gastaram anos com
preocupações supérfluas, sem qualquer inserção nos problemas econômicos reais do cinema brasileiro. A
falsidade dessa impressão é denunciada pela espantosa pertinácia – a pertinácia tem menos vigor – com que
procuraram enfocar naquela conjuntura a problemática concreta da cinematografia brasileira. Ao acompanhá-los
nesse percurso é preciso não esquecer a impossibilidade de encontrar alguém no Brasil de Epitácio ou Bernardes,
capaz de ensinar: eles foram obrigados a tudo descobrir por conta própria.” Idem. pp. 315-6
6
O uso, pelo autor, da correspondência de Gonzaga a Mauro demonstra que o “mestre” do cineasta mineiro
buscava em sua amizade, apoio e compreensão. Em suma, o ideário gonzaguiano ainda não era algo maduro.
58

concepções estéticas.7 A revista aponta um motivo fundamental que impede o florescimento


do cinema nacional: o descaso das autoridades e dos capitalistas (prováveis financiadores da
produção). Aqui esbarramos com uma relação, já aludida, entre o papel do Estado e o da
iniciativa privada. Porém, a “cavação” perturba esse fator.

O que se entende por “cavação” é algo muito genérico. São filmes documentais,
realizados de modo praticamente pessoal (não há uma equipe técnica); que adquirem um
sentido pejorativo inclusive no aspecto moral: certos realizadores ofereciam seus serviços a
particulares (as possibilidades do cinema eram desconhecidas) que, por sua vez, davam
dinheiro para a sua realização. Com o dinheiro na mão, o realizador desaparecia. Portanto,
como o meio cinematográfico estava povoado de pessoas de má índole, isso acabava por
denegri-lo. A mesma imagem era associada às chamadas “escolas de cinema”, onde os donos
se aproveitavam do dinheiro de seus alunos. Salles Gomes enfatiza o moralismo presente nas
acusações da Cinearte, sobretudo de Lima, ignorando o papel que tais procedimentos
possuíram como forma de sobrevivência após a desarticulação da produção nacional com a
invasão do filme estrangeiro. Além do mais, pessoas não-idôneas existem em qualquer área de
atuação. Ou seja, a “cavação” não pode ser mecanicamente associada a inclinações morais de
indivíduos, mas a fatores materiais de produção. O que nos interessa são as conseqüências
disso: para a revista, seria necessária uma “limpeza moral” no setor, para que o cinema fosse
visto com bons olhos, atraindo o cuidado do Estado e o financiamento dos capitalistas. Uma
das funções da revista, portanto, seria julgar quem seriam as pessoas confiáveis, zelando pela
honra do cinema brasileiro. Aos profissionais honestos, cabia incentivá-los, a partir de dois
princípios básicos, estudados por Salles Gomes: o “scenario” (o que hoje entendemos por
roteiro) e a publicidade. Em suma, criar um star system, publicando entrevistas e fotos de
atores e atrizes, e conselhos sobre a construção da narrativa. Esses dois pilares, que sustentam
esse pensamento cinematográfico, persistirão até o declínio do cinema paulista. Surgem daí,
duas idéias que perdurarão durante décadas em nosso cinema (que já foram aludidas no
primeiro capítulo). Uma é o problema crônico da “incompetência de nossos roteiristas”
(lembremos do 5º fator de Cavalcanti). A outra, de caráter mais amplo, é o próprio
questionamento da existência de um cinema brasileiro. Se Cinema, por definição, é indústria,
o fato de essa ainda não existir em nosso país, põe em dúvida a própria existência de cinema
brasileiro. Essas duas idéias foram dinamitadas pelo Cinema Novo.8

Seguindo a interpretação de Salles Gomes, Xavier analisa o processo de


“universalização” desse modelo.9 A divisão de seu livro entre teóricos franceses e brasileiros
busca uma leitura das reações diante do cinema norte-americano, entre um centro e uma
periferia do capitalismo. A sociedade patriarcal e agro-exportadora brasileira absorve, sem
questionamentos, modelos estéticos estrangeiros, sejam europeus como no Chaplin Club ou
norte-americanos em Cinearte, evidenciando o seu “mimetismo”, termo do autor, devido à
submissão de um “colonialismo cultural”. O fato de os franceses absorverem uma linguagem,
criada por Hollywood, e a partir dela proporem uma outra, indica um tipo de procedimento
diametralmente oposto ao de Gonzaga. Podemos notar uma preocupação em Xavier em

7
Autran interpreta as idéias de Lima a partir do “pensamento autoritário brasileiro”, teorizado por Lamounier,
pelo fato do crítico pregar a necessidade de um centro dirigente que “modele” a massa amorfa do cinema
brasileiro. AUTRAN, A. “Pedro Lima em Selecta” Cinemais nº 7 set/out 1997. pp. 53-65
8
Por outro lado, surge a seguinte dúvida: existe um star system no Cinema Novo? Podemos afirmar que sim,
com a condição desse conceito sofrer algumas mudanças. Um certo padrão estético foi criado, atrelado a um
princípio político, voltando-se, portanto, à um público específico. Vale a pena lembrar a valorização do corpo do
negro, expressos, principalmente, em Luiza Maranhão (1940- ) e Antônio Pitanga (1939- ).
9
XAVIER, I. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978
59

afirmar a existência de outros princípios estéticos, evitando a “naturalização” do modelo


criado pelos norte-americanos.10 Esse, por sua vez, deve ser pensado segundo às suas
condições materiais de produção. No interior de uma sociedade capitalista, Hollywood
sistematizou uma linguagem para atender tais condições, visando, simultaneamente à
produção em larga escala, respeitar as particulares técnicas do cinema.

Salles Gomes sublinha que o star system não pode ser pensado como uma pura
manipulação, como se fossem as “estrelas” que garantissem a produção (o que ocorre em
Gonzaga), mas como um fenômeno bem particular da sociedade norte-americana.11 Do
mesmo modo, podemos desvincular o “scenario” da sociedade norte-americana. Segundo
Sadoul, deve-se a Thomas Ince (1882-1924), que para Louis Delluc (1890-1924) prolonga e
supera Griffith, a criação do que hoje entendemos por “decupagem”.12 Especializado em
western, Ince, a partir de 1912, supervisionava vários diretores, sendo seguidas as suas
anotações feitas antes da filmagem, passando, posteriormente, o material para a montagem
sob a sua estrita orientação. Não é por acaso o seu tipo de gênero, pois esse o forçou a pensar
em como suavizar ao máximo os cortes (as passagens de um plano para outro) sem quebrar o
ritmo da narrativa. Assim, na década de 20, tais métodos de realização já estavam bem
consolidados no cinema norte-americano, chegando a ser exportados. São esses métodos,
popularizados, em todo o mundo, por intermédio de cursos de correspondência, que Gonzaga
utiliza e aconselha. O nosso ponto é: apesar de ser evidente a entrada, cada vez mais
sistemática, da cultura norte-americana em nossa sociedade (como tanto enfatizam Salles
Gomes e Xavier), não podemos, por outro lado, subestimar o valor da originalidade do cinema
norte-americano, como se fosse um mero epifenômeno de fatores empíricos. O nosso
objetivo é alcançar a sua dimensão lógica. O impacto mundial de sua estética forçou homens
de todo o mundo a re-pensar o que é o Cinema, os seus atributos e as suas potencialidades.
Por exemplo, a forte tradição de um determinado conceito de Arte, tornava o cinema europeu,
mais especificamente o francês, demasiado preso ao teatro e à literatura. O que queremos
sublinhar é como se transformou, em tão pouco tempo, o modo de se encarar o Cinema, que
de aparelho técnico para fins científicos à categoria de arte, passando por mera curiosidade
circense e entretenimento popular, adquiriu uma importância cada vez maior na sociedade
(que estava sofrendo graves transformações). Assim, podemos notar um leque de diferenças,
quando homens, de cultura e formação distintas, se deparam com as inovações dos mesmos
filmes norte-americanos. É fundamental notar que, tanto na França quanto na Rússia, foram a
partir dos estudos desses filmes que surgiram várias teorias. Enquanto que os primeiros
enfatizam mais a fotografia; os segundos, a montagem. Ou seja, podemos perceber leituras
distintas devido às singularidades de cada pensamento, que possuem os seus respectivos
princípios e tradição.

10
Esta preocupação também está presente numa outra publicação do mesmo período:______. O discurso
cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. O que escapa à leitura de
Xavier, nestes livros, é o aspecto da própria “linguagem clássica narrativa” ser assimilacionista, se apropriando
de outros modelos estéticos.
11
“A confiança que o grupo de Cinearte depositava no papel da publicidade era ilimitada (...). Para Adhemar, o
sucesso do estrelismo norte-americano era atribuído quase que exclusivamente à técnica da propaganda, não
compreendendo ele – como até hoje muita gente não compreende – a espontaneidade psicossocial do fenômeno
em suas origens. A grande ficção mitológica de Hollywood fora construída a partir da realidade, ao passo que
para Adhemar Gonzaga e seus amigos tudo ocorre como se coubesse à publicidade criar de toutes pièces uma
ficção que em seguida deitaria raízes no mundo real: as “estrelas” e “astros” perderiam as aspas.” GOMES, P. E.
S. Op. cit. p. 337
12
SADOUL, G. Dictionaire des cinéastes. Paris: Microcosme/Seuil, 1984. pp. 138-0. Por sua vez, Tariol afirma
ser um tanto exagerada a importância que Delluc consagrava a Ince, pois lhe atribuía a direção de vários filmes
que tinham sidos apenas supervisionados por ele, mas o que não chega a invalidar a existência de um “estilo
Ince”: TARIOL, M. Louis Delluc. Paris: Seghers, 1965. pp. 23; 105-7.
60

O mesmo ocorre com o cinema brasileiro. Um tipo de pensamento, o brasileiro, se


podemos assim dizer, se defronta com a estrutura desses filmes e é constrangido a sistematizá-
los segundo a sua ordem singular. Demandaria uma pesquisa vasta e um caminho muito rico,
a análise desse “pensamento brasileiro”, aqui no caso, de Francisco de Varnhagen (1816-
1878) aos Modernistas, passando por Tobias Barreto (1839-1889), Sílvio Romero (1851-
1914), Nina Rodrigues (1862-1906) e Capistrano de Abreu (1853-1927). Porém, o nosso
objetivo é muito mais específico, mas não menos árduo e fértil: como se pensou Cinema no
Brasil, e por conseguinte, um conceito de “cinema brasileiro”. Quando Glauber se empenha,
com todas as suas armas, em conceituar o termo “Cinema Novo”, o enjeu é justamente este.
Como já vimos, ao criar um corte entre “cinema de autor” e “cinema comercial”, ele busca,
com o auxílio da História, lançar as bases de um novo pensamento. O livro de Salles Gomes
sistematiza e arremata esse processo, solidificando um novo modo de se pensar Cinema no
Brasil. Como já aludimos, é interessante o quanto Salles Gomes reforça o pioneirismo de
Gonzaga. Ainda preso a modelos importados, graças ao seu momento histórico, Gonzaga foi
constrangido a pensar Cinema, conforme tais moldes. Por sua vez, Mauro é a figura central
devido a sua singularidade nesse contexto: a sua atribulada relação com Gonzaga, em cujo
livro é abordada apenas até 1930, quando se manifestaria um processo de formação e
amadurecimento do cineasta mineiro. Apesar de estar na mesma situação histórica, haveria já
um germe em Mauro de um tipo de cinema que, apesar de sufocado ao longo dos anos,
finalmente, emergiria no Cinema Novo. É claro que o texto de Salles Gomes não é tão
simplista e teleológico assim, mas ele está comprometido com esse pensamento. Aliás, um
dos méritos de seu livro é a abordagem de seus “inimigos”. O pioneirismo de Cinearte o torna
mais sensível ao seu contexto circunscrito, e portanto, Gonzaga não pode ser considerado
como um “ingênuo”. A seriedade intelectual de Salles Gomes pode ser identificada aqui, pois
não há nenhuma crítica ad hominem; diferente de Gonzaga, quando esse, por sua vez, critica o
livro de Salles Gomes. A aversão gonzaguiana à “cavação” constrói um conceito de Cinema,
associando critérios estéticos e econômicos. Salles Gomes critica Gonzaga por não perceber a
real importância da “cavação”, pois ele subestima os fatores econômicos nos quais está
montada a nossa cinematografia. As “capitulações” da maturidade são os fatos que confirmam
a sua tese.14 Porém, inconsciente ou não, Salles Gomes apenas substitui um modelo único de
pensamento por outro, criando um critério de legitimidade do que seja ou não cinema
brasileiro. Se anteriormente, questionava-se a própria existência do nosso cinema, passou a se
questionar a validade de certos filmes e o futuro de nosso cinema (qual caminho devia ser
seguido). Em suma, a interrogação, anteriormente até existencial, se converteu na afirmação
de uma ontogênese e, por conseguinte, de seus critérios de genuinidade.

Se nos referimos a um “pensamento brasileiro”, não devemos esquecer que, nos anos
20, podemos notar algo relevante: mudança. Havia um processo de transformação que
identificamos na cabeça dos homens e mulheres daqueles tempos, através de uma vontade de
mudar o país, de eliminar os resquícios do escravismo e do patriarcalismo. Porém, essa
vontade somente foi definida e articulada, na década seguinte. Portanto, a “Campanha pelo

14
A Cinédia, para manter as suas portas abertas, foi obrigada a fazer “cavação”; realizando “filmusicais”, que
culminam nas chanchadas, e filmes institucionais para o Estado. Apesar de ser num outro contexto distinto do
livro, Salles Gomes não poderia deixar de frisar tal dado: “Para Adhemar Gonzaga e Pedro Lima o cinema
natural era sinônimo de “cavação” e no entanto se o presente trabalho não se interrompesse em 1930 nós
encontraríamos o primeiro produzindo jornais cinematográficos [e aqui há a seguinte nota: “E também a mais
brilhante forma que a “cavação” posada viria a atingir: a chanchada.”] para equilibrar a produtora que fundara e
o segundo filmando para o Ministério da Agricultura, para não falar do aluno mais brilhante da escola, sem aspas,
de Cinearte – Humberto Mauro – que será tão ilustre no documental quanto o foi no posado.” GOMES, P. E. S.
Op. cit. p. 309
61

Cinema Brasileiro” da Cinearte deve ser lida necessariamente nestes termos. Seguiremos tais
termos, muito bem sublinhados por Schvarzman:

(...) a aversão de Gonzaga ao cinema europeu, tem haver também com o seu
lado ainda teatral de encenação, claro na persistência de dramas de
inspiração literária e reconstituições históricas. Gonzaga quer para o Brasil
a nova arte, a arte que fala por seus próprios meios, e não aquela que ainda
decalca o teatro e a literatura numa sensibilidade ultrapassada. Nesse
sentido ele é efetivamente moderno. (SCHVARZMAN, 2000, p. 29)

Eis o nosso ponto de partida: como definir a modernidade de Gonzaga? O que nos
conduz a uma questão mais abrangente: o que é a Modernidade?

Responder a tal questão, que pode ser sob os mais diversos modos, demandaria uma
vasta biblioteca. Iremos empreender um esforço de síntese, visando sempre o aspecto
cinematográfico. O nosso método de análise parte da epistemologia francesa de Gaston
Bachelard (1884-1962), cuja linha é seguida por Michel Foucault (1926-1984) ao estudar as
ciências humanas, que erguem a pretensão de verdade para abordar esse estranho objeto: o
homem.15 Essa nossa metodologia não é fortuita: como já aludimos, o cinema era inicialmente
encarado como um artefato tecnológico para servir à ciência, porém, se transformou em arte.
Essa passagem nos intriga, colocando em cena duas faces bem distintas: o conhecimento e a
fruição estética. A passagem do século XIX para o XX é apontada por Bachelard como o
advento da autêntica episteme científica. A física mecanicista ainda estava apegada a uma
visão do Todo, um vício da filosofia. Com a queda da lógica proposicional de Aristóteles,
surge uma pluralidade de lógicas. É o que torna possível o surgimento de uma “Filosofia do
Não”, nos termos bachelardianos: não existe a Física, mas Físicas; as físicas não-newtonianas;
assim como as geometrias não-euclidianas e as químicas não-lavoisierianas. E todas erguem
pretensão de verdade, ou seja, não há mais uma Verdade única, como tanto desejava a
Filosofia, ao estudar o Ser.

Lembremos que consideramos Cinema como sucessão de imagens. O conceito de


movimento é o pilar constitutivo do discurso cinematográfico. Por outro lado, também,
enfatizamos que o cinema é uma arte industrial. Movimento, reprodução e repetição podem
ser encarados na mesma linha de raciocínio. E movimento surge com historicidade, que é
posto à luz com limitação do conhecimento pela medida humana (Foucault). A época
moderna problematiza o homem, pois os parâmetros do conhecimento são finitos. Eis a nossa
definição: a Modernidade é o advento da finitude como padrão. Anteriormente, o padrão era
divino, o projeto da ontologia, que era “conhecer como as coisas são nelas mesmas”, não era
humilde: buscava-se ver o mundo tal como Deus o vê.

O discurso cinematográfico, dentro das relações que compõem uma fruição estética
contemporânea, está calcado, como já vimos, no movimento, evidenciado pela historicidade
que nos remete, em última instância, à reflexão acerca da finitude da existência humana.
Estamos nos referindo à estrutura do discurso cinematográfico (o movimento), o que significa
não se tratar de conteúdo. Portanto, isso ocorre independente do gênero (documentário,
comédia, drama, etc) pois a atividade artística, não somente o cinema, já não possui um laço

15
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Trad. Salma Muchail. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000
62

com uma ordem metafísica – a instrumentalização do Belo, como referência sensível a uma
ordem transcendente.16

Pois bem, como se enuncia tal finitude em Gonzaga? Antes de tudo, pelo seu “culto”
ao movimento que se manifesta, sobretudo em seus critérios de “scenario”. Tal aspecto foi
bem ressaltado por Schvarzman: Gonzaga anseia por essa nova arte, devendo expurgar dela, e
daí o “policiamento” de Cinearte, toda e qualquer “impureza” causada por outras artes.
Portanto, o amor de Gonzaga ao Cinema está intrinsecamente vinculado por uma vontade de
ser “moderno”. O Cinema, mais especificamente o “posado”, seria a melhor via por onde o
movimento se processaria. Não se trata somente do aspecto industrial, mas da estrutura do
discurso cinematográfico. Salles Gomes termina seu trabalho justo no período da passagem do
mudo para o sonoro, quando ocorre uma desestruturação da economia cinematográfica, mas
também de sua linguagem. Por isso, tal momento marca o fim da juventude de Gonzaga. O
ano de 1930 sintetiza esse processo de mudança, em vários níveis: não somente o Brasil como
o próprio Cinema. Portanto, depois da construção dos valores estéticos da Cinearte, Gonzaga
é forçado a contestá-los. Se ele possui uma vontade de mudança, ela, por sua vez, sempre é
acompanhada pela perda de referenciais. Salles Gomes frisa o aparecimento de um
“saudosismo” e um “pessimismo” que surgem neste momento, que serão, futuramente,
substituídos pelo dito “pragmatismo” do velho Gonzaga. Ao reconhecer que é preciso realizar
filmes sonoros, Gonzaga se prostra diante de uma exigência não-previsível para ele. Por outro
lado, é interessante notar que Salles Gomes, que confessa ter iniciado seu interesse pelo
cinema a partir de uma discussão ultrapassada da querela “mudo x sonoro”, afirma que essa
transformação na linguagem, era uma demanda interna a ela, pois a própria estética dos
últimos filmes mudos já exigiam o som: interpretação idêntica à de Bazin. Gonzaga, como a
maioria das pessoas na época, não chegou a perceber isso. O que queremos frisar é o tipo de
crítica de Salles Gomes: ela não é estética, mas, antes de mais nada, econômica. Em suma, ele
quer costurar duas camadas que a Cinearte mantinha separadas. Gonzaga não notou que a
estética do cinema norte-americano está atrelada à economia daquele país, que, por
conseguinte, não pode ser importada para cá. O próprio Gonzaga, ao se deparar com a
“realidade” do sonoro, acabou praticando isso, inconscientemente, como é o caso dos
“filmusicais”, que surgiram como uma opção comercial. O erro de Gonzaga, portanto, é partir
de uma estética para criar um contexto econômico. Para Salles Gomes, o Cinema Novo é
autenticamente nacional no sentido de sistematizar uma estética partindo das singularidades
econômicas, visando sua transformação.

Apesar de todas as ressalvas, há um nacionalismo em Gonzaga. Por incrível que


pareça, o “americanizado” Gonzaga é nacionalista, não no sentido vulgar de “ufanismo”,
como transparece por vezes nas páginas de Cinearte, mas em pôr o Cinema como uma
“questão nacional”. O que entendemos por isso? O ideário gonzaguiano se desenrola a partir
do deslocamento de uma estrutura estamental para uma estrutura contratual. Ou seja, a
sociedade brasileira deve ser pensada segundo o conceito de “indivíduo”, o que não havia no
pensamento de tipo oligárquico, que se estrutura por um modelo de autoritarismo e
personalismo inerentes à dominação patrimonial. Sendo o Brasil, até então, um país agro-
exportador, o poder político é exercido por uma elite de latifundiários, que administram as

16
Sendo coerentes com esse raciocínio, podemos radicalmente afirmar que somente num mundo sem Deus pode
haver cinema. Isso problematiza como pensar as cinematografias não-ocidentais. Um dos modos de refletir isso é
diferenciar Cinema de Cinematografia. Como há uma pluralidade de lógicas, o Cinema pode ser enunciado sob
vários modos (as Cinematografias), e como ele é, acima de tudo, uma Arte, é de sua definição ser paradoxal, pois,
para usarmos termos lacanianos, o que não é científico (o campo da Letra) é da ordem do Significante; e esta
sempre possui uma defasagem entre o enunciado e a enunciação, pois a linguagem não é fechada.
63

instituições públicas como um prolongamento da ordem privada. O país é politicamente


arrumado por uma série de alianças e relações de compadrio entre as distintas oligarquias, seja
no nível regional, estadual e nacional. Assim, em todo o continente latino-americano, os
chamados caciquismo, gamonalismo, caudilhismo ou coronelismo são as manifestações das
oligarquias locais e regionais que, por sua vez, apoiavam e eram apoiadas por líderes de
governo no âmbito nacional. Portanto, o presidente, o ditador ou o imperador correspondia a
uma figura oligarca no lugar mais alto da hierarquia social. Isso significa que esses líderes
repetiam, em sua figura, o que o latifundiário realizava dentro de sua região.

Portanto, constatamos que no oligarquismo não existem os elementos mais caros ao


pensamento liberal - o que não significa que o Estado oligárquico não seja capitalista. Isto é,
não há espaço, filosoficamente falando, para a figura do indivíduo que, por sua livre iniciativa
entra em relação com outros indivíduos com os quais compartilha um solo de igualdade
política e jurídica. Observamos o que DaMatta nomeia de uma “sociedade de pessoas” e não
de indivíduos.17 Dito de outro modo, uma sociedade hierarquizada, em que as relações pré-
existem ao sujeito, colocando-o num espaço determinado da escala social. Estar sob a
proteção de um poderoso, além de características étnicas (branco x não-branco) e religiosas
(cristão x não-cristão), o situa dentro do feixe de relações que formam a sociedade.
Exemplificando: tomando o caso mais extremo – o brasileiro – a ordem social era constituída
por dois tipos de pessoas: ou era escravo, isto é, estava em contato com os meios de produção,
ou era homem livre e dono de terras e escravos, garantindo seu sustento econômico.18

O rompimento dessa estrutura aflora, no caso específico de Gonzaga, pelo Cinema. A


estrutura estamental ainda está pensada em critérios de um Todo, distribuindo seus elementos
segundo uma ordem, que remete, em última instância, a Deus. A legitimidade do poder, nesta
sociedade, se alicerça em termos teológicos. O Cinema, cuja estrutura é movimento, traz em si
a destruição do pensamento estamental por seu caráter movente, graças à finitude como
medida de todas as coisas. Ao afirmar a necessidade de que exista o Cinema, Gonzaga,
portanto, é radicalmente contra o modelo estamental. O que enfatizamos é que essa “vontade
de ser moderno”, a necessidade de que se produzam filmes no Brasil é lógica, e não uma mera
volição individual. É inerente à estrutura conceitual do ideário gonzaguiano. O nacionalismo
de Gonzaga está presente ao se atrelar ao Cinema a necessidade de expressão de uma
determinada singularidade: romper com o pensamento estamental. Para ajudarmos em nosso
raciocínio, partiremos de um conceito bem amplo de Nacionalismo:

A teologia e a metafísica sempre se empenharam em fornecer provas da existência de Deus,


recorrendo seja às provas a priori (da essência de Deus se deduz a necessidade de sua existência), seja
às provas a posteriori (da finitude do mundo e das criaturas se deduz a necessidade de um princípio
infinito criador). Não creio ser descabido considerar o nacionalismo um substituto moderno para o
teológico-metafísico, na medida em que aqui o discurso opera como prova a priori ou a posteriori da
existência da nação, de modo a conquistar (esquerda) ou a conservar (direita) um espaço posto pelas
classes dominantes, e sobretudo, para garantir a realidade em si e por si da nação. Dessa maneira, há
um empenho para eliminar aquilo que talvez seja o mais interessante no nacional: sua indeterminação,
sua existência como prática contraditória em busca da unidade que anule a divisão social e que não
pode cumprir-se, aparentemente, senão pela conversão da prática histórica numa substância imortal.
Nesse contexto, compreende-se porque os vários nacionalismos se preocupam em produzir a

17
DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. 5 ed Rio de Janeiro: Guanabara, 1990
18
Contudo, esse quadro não era tão dicotômico, pois havia uma parcela da sociedade que escapava dessa ordem
que, na sociedade brasileira aumentava cada vez mais, a partir do século XVIII: era o homem livre pobre. Não
podendo viver do trabalho, reservado ao escravo, era forçado a buscar proteção de algum poderoso para se
encaixar na ordem social. Em nossa literatura é a figura do “agregado”.
64

identidade nacional que, na prova a priori, é deduzida das etnias, dos costumes, da língua, da cultura
em sentido antropológico, e, na prova a posteriori, é deduzida do Estado. Freqüentemente, as duas
provas se combinam e seu fruto (pouco bendito) costuma ser batizado com o nome de política cultural.
(CHAUÍ, 1984, p. 43)

Para nós, tanto Gonzaga quanto Glauber constróem um modelo único de pensamento
pelo fato de destruírem um Todo, lançando as bases de um outro. Como se perdeu uma
referência supra-sensível e supra-humana, o homem entra em cena, socialmente pela idéia de
contrato (que passa a legitimar o poder) e artisticamente pela criação de algo original. O
Cinema muda de aparato científico para se tornar uma manifestação artística quando deixa de
ser articulado a um critério de descontinuidade (corte epistemológico) para ser um princípio
de continuidade (lembremos de Paz, na arte moderna, a ruptura prolonga a tradição), visando
uma ordem a ser construída (os valores estéticos criados pelo artista), ou seja, passa a exercer
uma função diametralmente oposta. Assim, quando o cinema passa a possuir essa função de
continuidade, é possível lhe ser associada uma idéia de Nação, que é algo moderno, no
sentido de buscar a coerência de um Todo que foi perdido com a queda do pensamento
teológico-metafísico. Assim, Gonzaga e Glauber, cada um à sua maneira, atrelam ao conceito
de Cinema (movimento) um critério constitutivo deste Todo perdido. E ambos, por
conseguinte, possuem provas para a existência dessa substância que é o Cinema, do qual
aponta para a Nação. Em Gonzaga, a prova a priori é o postulado da racionalidade do
mercado, de onde se deduz a necessidade do Cinema ser uma indústria. A prova a posteriori é
o sucesso de público de um determinado modelo estético, do qual se deduz a necessidade da
referida indústria. Já em Glauber, a prova a priori é o postulado da racionalidade da História,
de onde se deduz a necessidade do Cinema ser um “cinema de autor”. A prova a posteriori é a
dificuldade de produção, distribuição e exibição dos filmes brasileiros, de onde se deduz a
necessidade de um cinema militante.

A crítica à “cavação” está associada ao nacionalismo, pelo fato de este “barrar” a


estrutura do Cinema (o movimento) e de ainda compactuar com o modelo estamental, pois o
realizador está sob a “proteção” de um poderoso. O filme não é uma mercadoria fabricada por
um grupo de trabalhadores, que possuem uma relação contratual com o dono dos meios de
produção audiovisual, mas ainda um trabalho calcado numa relação personalista. Sendo uma
indústria, o filme é fruto de um trabalho em série, passando por vários trabalhadores
especializados numa função (roteiro, produção, realização, montagem e publicidade). Como
já vimos, a tese de Salles Gomes demonstra as origens deste modelo e a sua impossibilidade
de implementação. Xavier, por sua vez, se preocupa mais com o seu lado ideológico presente.
Algo interessante, mas que foge do alcance de nosso trabalho, é entender o que suscitou essa
originalidade no cinema norte-americano, ou seja, porque essa determinada sociedade
conseguiu compreender e criar os mecanismos dessa “nova arte”. Essa questão está presente
nos teóricos franceses, ligando a formação liberal do país da América ao tipo de demanda e
conceito de Arte nela presentes. Vimos isso em Bazin, indicando a necessidade de uma
“sociologia da produção” para entender o dito “génie cinématographique américain”. Algo
semelhante encontramos nos teóricos da avant-garde. Talvez motivados por uma “ferida
narcísica” européia, eles foram constrangidos a pensar como a França, o berço do Cinema
(para eles), não conseguiu compreender a essência dessa “nova arte”. Em suma, a noção de
“moderno” se associa à sociedade norte-americana graças à sua formação recente e antifeudal,
entrando em cena o conceito de “indivíduo” e a ausência (benéfica, para os “tempos
modernos”) de uma pesada tradição. Somente tal civilização poderia alcançar o uso desta
“nova arte”, que é o cinema. Porém, o que outrora fora alcançado inconscientemente, oriundo
do empirismo dos norte-americanos, se elevará ao sofisticado grau de Arte, pela reflexão (e
aqui é necessária uma tradição) dos europeus (é evidente), mais especificamente do génie
65

français. Entretanto, devemos sublinhar que esse diálogo com o continente americano faz
parte do pensamento francês, e, portanto, não é algo recente que veio com o cinema. Basta
nos lembrarmos de Michel de Montaigne (1533-1592), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e
Alexis de Tocqueville (1805-1859). Portanto, o «americanismo» da avant-garde e da Cahiers
du Cinéma pertence a uma longa tradição. Por outro lado, nós, latino-americanos (termo aliás
criado pelos franceses, visando a nossa tutela via identidade latina), possuímos uma outra
relação com os norte-americanos. Usando uma metáfora já desgastada, o sol, que faz germinar
idéias no solo europeu, queima aqueles que lhe estão muito próximos... Assim, como pensar
essa outra relação?

No final de seu clássico livro, O’Gorman, após estudar detalhadamente como se criou
o ser da “América”, tece uma reflexão sobre o seu sentido histórico.19 Quando se atribuiu
àquele achado geográfico o conceito de “quarta parte do mundo”, outorgando-lhe, portanto, o
título de “continente”, houve uma revolução radical na concepção cosmológica do Ocidente.
Uma transformação no próprio conceito “cósmico” de Mundo: de acordo com o pensamento
greco-latino, retomado pelo cristão, Mundo é o lugar próprio ao homem, condizente à sua
natureza (estrutura ontológica). Sendo um animal terrestre, segundo o lugar que lhe foi
delegado no universo (um todo harmônico, que os gregos chamavam de Cosmos), somente
pode ser chamado de Mundo, as partes de terra do globo (crença reforçada no cristianismo
pela gênese humana oriunda do barro). Portanto, O’Gorman enfatiza que as chamadas
“Grandes Navegações” possuíam um sentido diferente para nós na cabeça daqueles homens:
eram empreendimentos cósmicos, pois eles se lançavam a um lugar hostil à sua natureza (o
Oceano).20 Quando a América foi pensada como um continente, adquirindo uma igualdade
com os outros três (Europa, Ásia e África), o próprio Oceano, que o separa dos demais,
passou a ser encarado como algo próprio à natureza humana, criando, assim, o nosso conceito
moderno de Mundo: a totalidade do globo terrestre. Deduz-se daí que, sendo todos os
continentes iguais, eles compartilham uma mesma substância, formando uma unidade.
Contudo, há uma hierarquia e se a Europa é a região mais propícia para o florescimento do ser
humano, a América é uma Europa em potência. Portanto, o Mundo possui uma única
substância, distribuída hierarquicamente em suas diferentes partes e uma única história que
une todos os povos. A colonização do continente americano é o projeto de passar esse ente de
potencialmente europeu para ato, ou seja, atualizar a sua virtualidade européia. Contudo,
O’Gorman afirma que tal projeto não foi unívoco, pois o modelo europeu foi aplicado
segundo dois procedimentos: moldar o continente segundo este modelo, encarando-o como
um mero prolongamento da Europa (a América ibérica); ou moldar tal projeto segundo as
singularidades do continente, o que acarretou, sub-repticiamente, na afirmação de uma
originalidade em relação à Europa (a América anglo-saxã). Eis a questão que podemos
encontrar, de distintos modos, na totalidade dos pensadores latino-americanos, seja, por
exemplo, nos termos de “civilização x barbárie” de Domingo Sarmiento (1811-1888) ou de
“colonizações assimilacionista x segregacionista” de Darcy Ribeiro (1922-1997).

Dito isso, a nossa questão é refletir sobre a relação entre o Cinema (o movimento) e o
pensamento norte-americano (o seu liberalismo), pois ainda não temos uma tese
consolidada.21 O importante para nós é: partindo do raciocínio de que o cinema está, por
definição, atrelado à modernidade; isso significa que a originalidade dos norte-americanos ao

19
O’GORMAN, E. La invención de américa. 2ª ed. México: FCE, 2001
20
Devido a esse aspecto “cósmico”, o autor afirma que as Grandes Navegações estão para aqueles homens o que
as explorações espaciais estão para nós.
21
Questão que nos remete a como pensar as cinematografias não-ocidentais. Vale a pena frisar a importância nos
anos 90 dos cinemas iraniano, chinês e japonês. Isso é um sintoma de algo?
66

criarem essa “nova arte” prova que se deve entrar na Modernidade, necessariamente, pelo
estilo norte-americano? Em suma, modernidade é sinônimo ou é algo logicamente tributário
do American way of life?

Said chama de orientalismo um procedimento sistemático pelo qual o Ocidente


pensou o Oriente.22 O orientalismo parte de uma “geografia imaginária”, que distribui duas
essências radicalmente opostas: o ocidental e o oriental. Porém, o orientalismo não é um
discurso que visa velar o Oriente real. O trabalho de Said é demonstrar que, antes de ocupar
militar e administrativamente essas terras, o Ocidente construiu um discurso acerca do Oriente,
que o tornou possível pensá-lo como um todo fechado e imutável. E foi, por intermédio desse
pensamento, que o Ocidente administrou o Oriente, fabricando-o conforme esse discurso,
através de um processo que o autor chama de “orientalização do Oriente”.

A verdade do Oriente, para o orientalismo, está em seu glorioso passado,


convertendo o oriental moderno num ser decaído. Graças às sutis e elaboradas técnicas
ocidentais, foi possível trazer à luz essa verdade. Portanto, o ocidental possui a chave para
esclarecer o Oriente, pois o próprio oriental é ignorante de sua verdade. É por intermédio
desse saber que o ocidental possui a capacidade de governar o oriental, pois ele o conhece
melhor que o próprio oriental. Desse modo, o orientalismo compõe um vasto quadro que se
alicerça em certos tipos de textos, traduções, anotações, monumentos, engendrando um modo
sistemático de ver, escrever, experimentar e pensar o Oriente, por intermédio de publicações e
instituições, formando um grupo específico de especialistas: os orientalistas. Como podemos
notar, o interesse do autor não é sobre o que é o Oriente nele mesmo, mas como ele é pensado.
Esse “como” é todo o espinhoso problema das ciências humanas que expõe a delicada questão
da possibilidade de se representar uma cultura radicalmente diferente da nossa.

Em seu livro seguinte23, Said busca uma resposta, frisando que, se o Ocidente pensou
e moldou os não-ocidentais, eles, por sua vez, não foram elementos passivos; houve uma
resistência. Assim, o seu livro transita da formação desse pensamento (segundo a sua
metodologia de crítica literária) à sua contestação, aflorando nos movimentos de
“descolonização”. Ao analisar os romances do século XIX que descrevem terras distantes,
podemos ver o funcionamento do pensamento imperial. O romance exerceu um papel
fundamental na constituição de um mundo pós-teológico, e não é por acaso que exercem uma
função de suma importância na cultura das duas maiores potências imperiais: Inglaterra e
França. Concordamos com o autor ao afirmar que tais artistas não foram mecanicamente
determinados pela ideologia, pela classe ou pela história econômica. O imperialismo é, acima
de tudo, um modo de se pensar o mundo e o romance contribuiu para esse pensamento, a seu
modo. Mas, voltando às questões postas acima, todos os povos não representam, ao seu modo,
o mundo, alocando em algum lugar os demais povos?

Todas as culturas tendem a elaborar representações de culturas estrangeiras a fim de melhor


dominá-las ou de alguma forma controlá-las. Mas nem todas as culturas fazem representações de
culturas estrangeiras e de fato as dominam ou controlam. Este é o traço distintivo, a meu ver, das
culturas ocidentais modernas. Isso exige que o estudo do conhecimento ou das representações
ocidentais do mundo não-europeu (sic) seja um exame tanto dessas representações quanto do poder
político que elas expressam. Artistas do final do século XIX, como Kipling e Conrad, ou, nesse
contexto, figuras da metade do século como Gérôme e Flaubert não reproduzem pura e simplesmente

22
SAID, E. Orientalismo. Trad. Tomás Bueno. São Paulo: Cia das Letras, 2001
23
_____. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 1999
67

os territórios distantes: eles os elaboram ou lhes dão vida utilizando técnicas narrativas, vieses
históricos e inquisitivos, idéias positivistas do gênero oferecido por pensadores como Max Müller,
Renan, Charles Temple, Darwin, Benjamin Kidd, Emerich de Vattel. Todos estes desenvolveram e
acentuaram as posições essencialistas na cultura européia, proclamando que os europeus deviam
dominar, e os não-europeus ser dominados. E os europeus de fato dominaram. (SAID, 1999, p. 143)

Advirtamos o leitor de que ao entendermos o “imperialismo” como um modo de


pensamento não estamos cometendo uma abstração. As idéias não estão alocadas em algum
lugar, seja numa realidade exterior ou numa consciência transcendente ou transcendental. O
real é imanente à teoria e, portanto, a teoria somente existe sob a forma de uma prática. Não é
possível cortar o laço entre o lógico e o empírico, como se se tratassem de dimensões
separadas e paralelas. No caso, o romance, como um feixe de enunciados, está concatenado
com outros, que são fabricados sob a forma de relações com os outros povos que devem ser
dominados, pois são pensados como inferiores. O romance é um processamento singular,
ordenando os enunciados segundo um princípio de narrativa. A sua função está em seu poder
de narrar e, por conseguinte, escolher o que e como e sobretudo, impedindo outras narrativas.
Eis a sua função e dimensão dentro do “imperialismo”.

A nossa hipótese é a seguinte: o papel exercido pelo romance na civilização européia


no século XIX foi substituído na civilização norte-americana, no século seguinte, pelo cinema.
Concordamos com Bonitzer em que o cinema nasceu quando deixou de identificar o ponto de
vista da câmera com o do público.24 Quando ocorre o corte no “campo fílmico”, surge
concomitantemente o cinema e o público de cinema (até então, os espectadores era um
público de teatro). Ou seja, a câmera passou a ter um olhar próprio, que escolhe o que cortar e
onde cortar (e impedindo outros tipos de cortes). Assim, cria-se uma narrativa quando se
sistematizam tais cortes segundo um principio de unidade. Que princípio é esse? O critério
criado pelos norte-americanos é a referência ao corpo do personagem principal: plano geral,
plano médio, primeiro plano e primeiríssimo plano, e seus intermediários. Esse critério
antropométrico de escala, que remete ao “movimento” como conseqüência da finitude, é
tributário de um princípio filosófico: o primado da percepção humana (que será contestado
pelo Cinema Moderno), pois a câmera, ao possuir o seu olhar particular, passa a ser pensada
como se fosse um homem que, por sua vez, olha para um outro homem (o personagem).
Podemos afirmar que o cinema é, por definição, moderno pois já nasceu “humanista”, distinto
das demais artes, que nasceram teológico-metafísicas. Mas, o importante para nós aqui é o
seguinte: o privilégio de um personagem, i. e., a existência do personagem principal. Esse
critério individual será contestado pelo cinema soviético, que usa como “personagem
principal” as coletividades. E mais, a própria câmera se torna em um homem, pois o seu olhar,
além de ser medido pela percepção humana, privilegia aspectos que lhe interessam enquanto o
narrador da história (lembremos do papel da descrição no romance). Porém, existe um outro
olhar: o do público nas salas escuras. Para quem se dirige essa história do narrador?

Segundo Manent, Tocqueville, ao estudar a América, transforma o pensamento liberal,


pois reconhece uma tensão constante ente a igualdade e a liberdade. 25 O esforço de se criar
instituições políticas condizentes com o liberalismo se deve, em parte, pelo fato de esse
pensamento partir justamente do princípio mais a-político e a-social que existe: o indivíduo.
Os norte-americanos, segundo Tocqueville, conseguiram criar as instituições políticas mais
apropriadas, o que não significa que não haja problemas. O que une esses indivíduos

24
BONITZER, P. Le champ aveugle: essais sur le réalisme au cinéma. Cahiers du Cinéma: Paris, 1999
25
MANENT, P. Historie intellectuelle du libéralisme. Paris: Hachette, 1995. pp. 221-241
68

atomizados?26 Ou um poder central que zela pela integridade dessa igualdade ou os próprios
indivíduos que, para zelar pelos seus interesses, se associam entre eles. O individualismo
radical é o momento negativo da democracia que é superado por um constrangimento (é esse
o termo) que obriga os indivíduos a saírem de seu mundo fechado. Assim, Tocqueville frisa
que o “homem democrático,” por ser só, é extremamente frágil, sendo constrangido a se
associar com seus semelhantes ou delegando os afazeres públicos a um Estado centralizador
(o grande perigo das sociedades democráticas). Portanto, a “liberdade de associação” é vista
por Tocqueville como o principal remédio para esse mal, tornando o “homem democrático”
sensível aos afazeres públicos ao reconhecer o Estado, não como uma entidade superior e
estranha, mas como algo derivado de seus interesses. Em suma, o povo se reconhece e,
simultaneamente, vigia o Estado. Portanto, a democracia é ao mesmo tempo um “estado
social”, o reconhecimento da igualdade e, portanto, as diferenças são acidentais e um “dogma
político”, a soberania do povo, que é zelado pelas instituições do Estado e seus representantes,
a quem, portanto, devo respeitar a autoridade. Manent frisa a originalidade tocquevilliana ao
ver que o “estado de natureza” do homem, tão estudado pelos liberais pré-Revolução Francesa,
somente pode, paradoxalmente, existir como fruto de um constrangimento, como uma
construção. Em suma, com Tocqueville, o “homem” é simultaneamente o seu mestre e sua
matéria, criando a si mesmo. A “democracia” é um dos nomes desse processo, pois ele é um
princípio e um fim. Porém, um dos perigos da democracia, apontado pelo pensador francês, é
a ameaça que paira sobre uma das mais caras liberdades: a de pensamento. Se eu tenho o meu
próprio sistema de valores, porque devo escutar o outro? Por outro lado, passo a questionar os
meus próprios valores pois, se o outro é igual a mim, os seus valores são tão verdadeiros
quanto os meus. Esse dilema é resolvido com a criação de um critério transcendente, mas sem
deixar de ser humano: um “terceiro homem”, que é a massa. Portanto, a medida dos valores é
citada pela opinião pública, o que pode ser extremamente perigoso, como adverte o liberal
francês. A genialidade de Tocqueville o fez vislumbrar, antes do advento das chamadas mass
media, o “paradoxo democrático”: o indivíduo mais isolado se torna o mais massificado.
Portanto, o grau de periculosidade do cinema norte-americano foi constatado por Tocqueville
quase meio século antes de sua invenção. Assim, Griffith é “tocquevilliano” na medida em
que pensa a sua narrativa dirigida para um determinado olhar: o do “terceiro homem”, a
massa; que fecha a “tríade humanista” do cinema norte-americano: a câmera-homem e o
personagem principal.27 Não entraremos na questão se é possível tirar o cinema desse
“paradoxo democrático”, pois nem o próprio Tocqueville encontra tal solução, ele apenas
constata o problema. Os franceses e os soviéticos tentaram buscar uma solução própria, e para
tal, tiveram que definir o que é o cinema de um modo distinto dos norte-americanos (a tríade
estudada acima). Assim, voltando ao raciocínio de Said, tal conceito de cinema pode ser
concatenado a um imperialismo ao definir que homem é esse, que amarra os três vértices do
cinema. São notórios o machismo e o racismo presentes nos filmes de Griffith, pelo fato de
esse Homem, que costura o seu cinema, ser definido segundo o critério ocidental, branco e
masculino.

26
Segundo Tocqueville, a expressão máxima da democracia (a igualdade entre os homens) se encontra nos
Estados do Oeste. Quando Bazin afirma que o western é o cinema americano por excelência, pelo fato de ser o
mais atrelado ao mito de origem daquela sociedade, é tributário desta constatação, pois como diz Tocqueville, a
diferença dos norte-americanos para os franceses, é que aqueles “já nasceram livres”, enquanto que os segundos
se “tornaram livres”, por intermédio de uma sangrenta revolução e uma sucessão de revoltas e golpes de Estado.
27
Esse conceito de “tríade humanista”, que resume a totalidade do cinema norte-americano, ainda não é uma tese
consolidada. Porém, afirmamos ao leitor que um modo extremamente rico para se pensar Griffith é via
Tocqueville, o que infelizmente ainda não foi feito (ou pelo menos, não conhecemos ninguém que tenha seguido
tal caminho).
69

Por outro lado, não podemos esquecer que o “americanizado” Tocqueville, assim
como Gonzaga, é nacionalista. Ele frisa que o seu estudo sobre a sociedade norte-americana
não visa criar um modelo único, pois, apesar de partir de uma observação empírica, a sua
intenção é definir o que é a democracia em geral. Ou seja, sociedade democrática não é
sinônimo de sociedade norte-americana. Assim, para o autor, todas as sociedades chegarão à
democracia, mas não pelo mesmo caminho. Partilhando de uma leitura “biologista”, bem
comum no século XIX, o pensador francês vê cada sociedade como um organismo próprio,
que possui características bem singulares. Portanto, apesar da democracia (a igualização entre
os homens) ser um processo irreversível e universal, segundo Tocqueville, conforme a
Providência, cada nação, como um organismo particular, trilhará uma via conforme a sua
singularidade. Em suma, Tocqueville analisa os norte-americanos, mas pensa na França.

Pois bem, podemos constatar o mesmo procedimento em Gonzaga? Acreditamos que


sim. É possível afirmar que o problema gonzaguiano é exatamente o mesmo de Tocqueville:
exterminar o pensamento estamental, ou seja, como “se tornar livre”. A solução virá do
mesmo modo: voltar os olhos para a nação da América do Norte, pois lá, os homens “já
nasceram livres”. Porém, diferente do intelectual francês, que está preocupado em pensar
como devem ser as instituições políticas democráticas, Gonzaga encara o cinema como mais
do que um atributo da democracia; ele é assumido praticamente como um instaurador.
Portanto, ao fazê-lo existir em nossa terra, torna-se uma evidência do bom caminho trilhado
pela nossa nação. Lembremos que a democracia não é uma essência, é um campo de força
(polarizado entre a liberdade e a igualdade), havendo, em sua definição, a existência de um
constrangimento. Para Gonzaga, o cinema deve forçar, constranger o homem brasileiro a
moldar a si mesmo, arrancando-o da solidez estamental. O “scenario” e a publicidade, tão
bem estudados por Salles Gomes, foram os melhores instrumentos encontrados para essa
violenta tarefa. Porém, com o advento do sonoro, os valores estéticos forjados como armas
para essa violência, perderam o seu corte. Eis, talvez, o calcanhar de Aquiles da Cinédia:
quais armas utilizar e quem é esse homem brasileiro que se estava transmutando? A tríade
retirada dos norte-americanos se choca com um grave problema, pois, enquanto Griffith
mantinha bem sólidos os seus referenciais, Gonzaga estava numa situação muito diferente.28
Para Salles Gomes, o “pragmatismo” do velho Gonzaga foi a solução encontrada: seria uma
estratégia de um amadurecido general mais sóbrio, e menos entusiasta, em usar a sua fraqueza
como força, para, no máximo, alcançar uma vitória de Pirro. Não discutiremos essa fase de
Gonzaga, mas a criação do seu exército: a Cinédia, armada com o que sobrou do arsenal da
Cinearte. Contudo, o terreno é movediço pois é um período de ruptura, tanto no âmbito
cinematográfico quanto no nacional. E uma das estratégias foi colocar na frente da linha de
fogo o seu mais valoroso soldado: Humberto Mauro.

Se o Cinema Novo é “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, a Cinédia só tinha
a câmera, a idéia ainda não estava pronta. É um equívoco pensar que o projeto da Cinédia já
estava amadurecido, quando Gonzaga abre as suas portas. Num arroubo que podemos chamar

28
Vamos levantar um problema: o cinema norte-americano, o “democrático por excelência” - diria Tocqueville -
, possui como “pai” Griffith, uma pessoa, justamente, de formação sulista e, portanto, de fortes características
estamentais. Esse paradoxo pode ser suavizado pelo fato de lembrarmos que o próprio Tocqueville era
aristocrata e, como ele próprio afirma, possuía um privilégio histórico: pertencer a uma geração posterior à
Revolução Francesa e portanto, com um distanciamento crítico necessário para avaliá-la, fugindo das acaloradas
discussões entre liberais e aristocratas do momento revolucionário. Portanto, isso o tornou capaz de identificar os
aspectos positivos e negativos da democracia, sem cair nas interpretações parciais. Assim, talvez somente um
Griffith, um “aristocrata” com a distância necessária para avaliar a democracia, poderia criar o cinema norte-
americano.
70

de arrivista, Gonzaga viu a hora certa para o golpe. Mas são poucos os que conseguem o seu
18 Brumário. Para Salles Gomes, a Cinédia teve um 9 Termidor avant-la-lettre, quando o
comandante Gonzaga, antes de ir à ativa, é assaltado pelo pessimismo e saudosismo (justo
numa correspondência ao fiel Mauro). Em suma, a Cinédia surgiu mais como uma aposta do
que como uma estratégia bem planejada e articulada. Portanto, o projeto da Cinédia foi uma
marcha árdua e dolorosa, que foi sendo pensada no calor da batalha, além de ir se agravando
com as preciosas baixas; primeiro, de Lima, e depois, de Mauro.

Apesar de todos os problemas, Gonzaga conseguiu esboçar um “método”, um plano de


ataque para instaurar o cinema como uma força que constrange à modernidade: o primado da
temática feminina. Podemos testemunhar tal fator antes da criação da Cinédia, em Barro
humano, temática que se prolongará em Lábios sem beijos (1930), Mulher (1931) e Ganga
bruta. As personagens femininas possuem uma função muito superior às de Griffith, por
exemplo. Um primeiro aspecto será a própria interpretação das atrizes: já em Griffith, a carga
dramática começa a se concentrar no rosto, sobretudo na expressão dos olhos. Bonitzer chama
esse processo de “adestramento do corpo do ator”, disperso no slapstick, criando uma
profundidade psicológica nos personagens, pois há uma “mancha” na tela, causando um
estranhamento (e portanto, um desejo) no olhar do espectador.29 Por sua vez, na Cinédia, a
câmera escruta os corpos femininos (privilegiando as pernas). É evidente que a gramática
griffithiana é seguida, no sentido, de que há a valorização do rosto e dos olhos, mas podemos
notar que a câmera, por vezes, fica dividida, ou seja, ela é ambígua (o que talvez já a
aproxima de um Sternberg). Além disso, as personagens masculinas possuem maior privilégio
do rosto enquanto que as femininas se lhes enfocam outras partes do corpo. Por que a mulher
é tão valorizada no ideário gonzaguiano?

Possuímos uma hipótese. O caminho encontrado por Gonzaga foi o que Foucault
chama de histerização da mulher dentro do seu conceito de “bio-poder”.30 Na época da
soberania, o poder estava assentado no confisco dos corpos e das coisas. Segundo o direito
romano, o soberano (o proprietário da vila romana) era considerado o gerador da vida de seus
subordinados (mulher, filhos e escravos) e, portanto, tinha o direito de retomar essas vidas
para si. Esse direito “de vida e de morte” é definida como o direito de causar a morte e deixar
viver. Com a constituição da sociedade disciplinar, esse “confisco” tende a diminuir, surgindo
funções de controle, vigilância, majoração e organização. Surge um poder de gerar a vida,
que a aloca em uma potencialização de suas funções. De um poder de causar a morte e deixar
viver, há uma substituição para um poder de causar a vida ou devolver a morte.

Esse poder se constitui interligando dois pólos. O primeiro, surgido no século XVII,
centrou-se no corpo como máquina; formando um adestramento com a ampliação de aptidões
e extorsão de forças, visando uma docilidade e utilidade. O segundo pólo, que surge no século
XVIII, centrou-se no corpo-espécie, constituindo numa mecânica biológica da população:
taxas de nascimentos e mortalidade, nível de saúde, duração da vida. Assim, esse novo poder
sobre a vida está montado nesses dois pólos: as disciplinas do corpo e as regulações da
população. A vida, tanto no nível corporal quanto populacional, é gerida, controlada, medida,
maximizada, surgindo um corolário de instituições que se proliferam no século XIX. Eis o
“bio-poder”, isto é, um poder sobre o organismo vivo, que será um elemento indispensável ao
desenvolvimento do capitalismo, controlando e inserindo corpos e populações em processos
de produção.

29
BONITZER, P. Op. cit. pp. 35-52. O conceito de “mancha” (tache) é oriunda da psicanálise lacaniana.
30
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Mª Tereza C. Albuquerque e J. A. G.
Albuquerque. 12 ed: Rio de Janeiro: Graal, 1997. pp.125-152.
71

Portanto, vemos surgir várias instituições e novos saberes que se voltam para o corpo e
a população. Batalhões de médicos, sanitaristas, bacteriologistas, criando seus discursos
higienistas e eugênicos, passam a colher para as redes de poder os corpos, que devem ser
“retirados” das garras da doença e do vício. Novas condutas de alimentação, postura,
vestimenta, moradia, limpeza e sexualidade formam essa “vida”, guiada pelos parâmetros da
“tecnociência”, substituindo “antigos preconceitos e hábitos ignorantes”. Como já afirmamos
acima, o bio-poder é vital para o capitalismo e, desse modo, essa vida saudável e eugênica é
uma definição de “vida moderna”.

Essa “vida moderna” apresentada nos filmes gonzaguianos, vincula-se a uma


erotização intensa da mulher. É aqui que podemos testemunhar um dos pólos fundamentais do
dispositivo de sexualidade: a aludida “histerização da mulher”, produzindo um vasto saber
sobre o seu corpo e sexo, acarretando uma medicalização visando o corpo feminino como
indivíduo (o uso privado do prazer) e interseção com a espécie; a conduta saudável da
procriação, gerando filhos de boa formação. O saber sobre a mulher gira em torno do alicerce
da instituição familiar, como célula básica da sociedade.

Uma vida sexual regrada é uma premissa da solidez da relação matrimonial,


comprometendo-se com a espécie. Costa analisa como a mulher brasileira foi retirada dos
laços patriarcais segundo o saber médico, que se apropria da família brasileira a partir do
Segundo Reinado, formando, assim, a família mononuclear burguesa, assegurada por laços
individuais de amor pessoal.31 O conjunto de práticas e saberes, arrancando a família
brasileira da ordem patriarcal, que remetia a uma ordem teológico-metafísica, sobrepõe três
discursos: o matrimônio, o prazer e o amor. O matrimônio na ordem anterior não se baseava
em critérios de amor pessoal, mas por um mando do patriarca, buscando a preservação dos
bens espirituais e materiais da família: o sangue (não corrompê-lo com pessoas de estirpe
inferior) e o patrimônio. Ou seja, o matrimônio era regido pela manutenção da família e não
para a felicidade e prazer do indivíduo, seguindo uma hierarquia legitimada por regras divinas.
No matrimônio moderno, busca-se a plenitude da felicidade pessoal, através do amor que
acimenta a relação e o prazer, pois o sexo saudável se realiza com amor. Uniram-se três
conjuntos: o sexo legítimo é o que se realiza no matrimônio, que é formado pelo amor dos
cônjuges, proporcionando o verdadeiro prazer. Porém, a divergência biológica na constituição
do corpo masculino e feminino pode pôr em perigo a relação entre ambos. Segundo o discurso
médico, as predisposições de cálculo e o raciocínio abstrato no homem e uma maior
sensibilidade nervosa na mulher são frutos da fisiologia humana. O laço conjugal será
assegurado pelos filhos, florescendo um discurso de que todo homem e mulher alcançam a
plenitude fisiológica e afetiva na paternidade e na maternidade. Assim, devem-se reprimir as
condutas desviantes, tanto da mulher (a mundana e a prostituta) quanto do homem (o
celibatário, o libertino e o homossexual).32 Seguindo o princípio foucauldiano, é pela exceção
que se constitui a regra e, portanto, o saber médico se volta a esses desvios de conduta.
Contudo, esse cuidado do corpo, como ponte entre indivíduo e espécie, é possível dentro de
um contexto maior. A produção do saber médico surge numa certa configuração de saberes e
poderes, da qual Foucault chama de “sociedade disciplinar”.

Como já vimos, a desagregação do pensamento estamental faz borbulhar um


pensamento laico e cientifizante. A chamada geração de 1870, que derrubou o Império,

31
COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 3 ed, Rio de Janeiro: Graal, 1989
32
Idem. pp. 208-274
72

processou as teorias raciais da Europa de acordo com a realidade brasileira. As limitações


biológicas das raças inferiores poderiam ser administradas por um “branqueamento” da
população, incentivando a imigração européia. Desse modo, a jovem república brasileira
poderia modernizar o país, apesar das impurezas raciais de sua origem. Isso causou uma
ambigüidade em muitos intelectuais ao pensarem a miscigenação como um processo de
purificação racial. Contudo, economicamente, não houve uma mudança na estrutura fundiária
do país. A elite branca e latifundiária, desde os tempos coloniais, administrou o seu racismo
para a manutenção do clientelismo e mandonismo, selecionando os negros e/ou mestiços em
assumir estamentos mais elevados. O racismo brasileiro sempre se voltou para a cor da pele e
não para a origem racial. Isso demonstra o embaraço que as teorias cientificistas raciais
tiveram no país.

Nos anos 1920, surge um outro discurso: o brasileiro não é inferior por sua origem
racial, mas por sua falta de instrução. O povo brasileiro não necessita ser “purificado”, mas
educado. A educação passa a ser a principal bandeira de luta, liderada pela chamada “Escola
Nova”. De origem norte-americana, o escolanovismo está enfocado sobre o aluno,
evidenciando-o como indivíduo e não como uma peça receptora do saber.33

Desenhado esse terreno movediço no qual marcha Gonzaga, podemos visualizá-lo


com outros dois importantes discursos: O manifesto dos pioneiros da Educação Nova, de
1932; e a publicação de Casa-grande e senzala, de 1933. Não estamos sendo teleológicos,
mas delimitando sob um viés sincrônico uma vasta rede discursiva. A valorização dada à
educação era o modo de modernizar o país, relativizando, por outro lado, o pesado biologismo
racial da geração de 1870, que se tornara um grilhão ao progresso nacional.34 Não podemos
esquecer que por “educação” também se entende a aquisição de práticas saudáveis, ou seja,
que coloquem o corpo na articulação entre “indivíduo” e “espécie” que define a “vida
moderna”. É relevante notar que a “mulher gonzaguiana”, apesar de estar acessível aos males
da liberdade (o grande perigo de ser seduzida), é beneficiada pelo amor via matrimônio ou por
algum substituto dele, isto é, a legitimação do relacionamento. Assim, podemos ver nos
filmes que é preferível se expor afetiva e sexualmente a acatar as ordens de um patriarca às
custas da felicidade pessoal. Pelas informações que possuímos de Barro humano, essa “ética
moderna” de Gonzaga é expressa da forma mais clara possível. A personagem Vera (Graça
Morena) é forçada a trabalhar, devido à morte do pai, tomando contato com a “vida moderna”.
Passa a freqüentar festas, banhos de piscina e usar maquiagem. Apaixona-se pelo playboy
Mário (Carlos Modesto), por quem é desvirginada, porém os dois acabam se casando, pois o
amor é recíproco. Assim, ele abandona a sua vida desregrada em prol do matrimônio com
amor. A contradição com a personagem Gilda (Lelita Rosa) é interessante. Reprimida pela
mãe (Martha Torá), ela acaba os seus dias como dançarina de cabaré. Ou seja, a mulher presa
à ordem estamental está fadada à infelicidade, i.e., não alcança o matrimônio com amor.
Desse modo, cremos que o racismo subjacente no ideário gonzaguiano, denunciado por Salles
Gomes, pode ser interpretado como uma otimização do indivíduo em detrimento de rígidas
divisões de uma sociedade estamental. Tanto que não é mera casualidade encontrarmos nos
33
“A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação são outros tantos princípios em que assenta a escola
unificada e que decorrem tanto da subordinação á finalidade biologica da educação de todos os fins particulares e
parciaes (de classes, grupos ou crenças), como do reconhecimento do direito biológico que cada ser humano tem
á educação” “O manifesto dos pioneiros da Educação Nova” In GHIRALDELLI Jr, P. História da educação 2
ed, São Paulo: Cortez, 2000. p. 63. Podemos notar que o acento biológico não está assentado à raça mas ao
indivíduo, ou seja, ao desenvolvimento cognitivo do educando.
34
Porém, concordamos que o “mito da democracia racial” pode ser lido como um estertor da antiga oligarquia
diante dos novos anseios modernizantes, mas que se coaduna com estes; ver COSTA, E. V. “O mito da
democracia racial no Brasil” In Da monarquia à república. 6 ed. São Paulo: Unesp. 1999. pp. 365-384
73

próximos filmes a “temática feminina” (os supracitados Lábios sem beijos, Mulher e Ganga
bruta, além dos projetos interrompidos de Saudade e Marta). As mulheres estudadas aqui são
de raça branca, mesmo que não sejam economicamente abastadas. Portanto, o outro pólo
estudado por Foucault, o “corpo-espécie” é subestimado, enquanto que o “corpo-máquina” do
indivíduo, a regulamentação do uso dos prazeres, é estrategicamente privilegiado, tanto no
erotismo presente nos filmes quanto no discurso ao sexo saudável (realizado no matrimônio).
Assim, a “histerização da mulher” é um libelo contra o poder patriarcal. De fato, a questão
racial será um tabu durante anos no cinema brasileiro, o que pode explicar a ênfase do
“discurso gonzaguiano” à mulher. O corpo do negro e do mulato encontrará na chanchada um
melhor modo de ser enunciado para, posteriormente, ser utilizado numa articulação política
no Cinema Novo.

Portanto, o “método” de Gonzaga é extremamente ambicioso: coube ao corpo


feminino, como ponte entre indivíduo e espécie, o enfoque modernizador, ramificando-se
num campo discursivo laico, cientifizante e urbano. Assim, a aplicação da referida tríade do
cinema norte-americano é bem diferente de Griffith. Enquanto que para o “aristocrata”
Griffith o referencial é masculino, para o “positivista” Gonzaga, a mulher é o centro das
atenções. Mas o denominador comum é a raça branca. Portanto, essas são as condições de
possibilidade para a existência de um cinema brasileiro que, desse modo, está articulado com
tais enunciados. Essa sexualização, produzida por um bio-poder que será potencializado na
era Vargas (lembremos que a educação e a saúde estarão no mesmo ministério, lugar para
onde emigrará Mauro), visa contornar os limites raciais que prendiam o desenvolvimento da
sociedade brasileira.

Qual foi o papel desempenhado por Humberto Mauro nesse “método”? Como já
vislumbramos acima, o Mauro-funcionário público do INCE (Instituto Nacional de Cinema
Educativo) apenas prolonga, de um certo modo, a sua função modernizante na Cinédia. Como
estudamos anteriormente, Glauber exalta no cineasta mineiro o seu enquadramento para fugir
do paradoxo ideológico ao consagrar como patrono um cristão, “ideologicamente difuso”. O
interesse do Cinema Novo em Mauro se deve por sua mise-en-scène e, sobretudo, pelo
processo de produção empregado, possuindo um aspecto “anti-industrial”. O improviso e a
curiosidade são elementos fundamentais no processo criativo, sendo absorvidos no discurso
fílmico. Se o Cinema Novo revela esse aspecto escancaradamente, por uma intenção política,
Mauro não o promove propositadamente. Se, por vezes, seus filmes abordam temas ambíguos
ou paradoxais, como é o caso do cultuado Ganga bruta, deve-se mais ao que está diante da
câmera do que o seu uso premeditado, acusando uma posição auto-declarada por parte do
cineasta. Possuindo um olhar poético sobre as coisas, o tom lírico se manifesta justamente por
intermédio da ambigüidade ou do misterioso, o que talvez esteja relacionado com a
religiosidade presente no pensamento de Mauro. Se as paisagens e o erotismo a serviço de
Gonzaga, em Lábios sem beijos, devem forçar a modernidade, o Mauro maduro do INCE
aponta certas contradições na própria modernidade.

Os filmes de maturidade de Mauro possuem um vínculo com a terra, preocupado em


abordá-la com a maior sinceridade possível. Existe um tempo próprio nela, e o objetivo de
Mauro é usar o cinema para captá-lo. Podemos ver uma reversão do uso do Cinema que,
durante muito tempo, esteve associado à modernidade e à uma exaltação da ciência e do novo
mundo inaugurado por ela. O cinema de Mauro é uma inversão desse discurso, utilizando,
paradoxalmente, o cinema, uma “arte moderna”, para resgatar o mundo destruído pela
modernidade. Porém, é temerário caracterizar Mauro como um singelo saudosista, como um
“caipirão” que denuncia os males da modernidade, evocando o passado como o modelo de
74

vida. Existe um esforço, um constrangimento (de novo esse termo) por parte dos homens em
compreender e analisar a natureza. A “cosmologia maureana”, se podemos assim afirmar, não
subestima o homem, pelo contrário, confere-lhe um papel ativo e importante. Podemos ver a
sua preocupação com o patrimônio popular, sobretudo com a música.

Assim, o homem não está no mundo como um hóspede num lugar que não lhe
pertence. O pensamento grego via o homem mergulhado numa ordem transcendente, chamado
de cosmos, que o define como uma peça simples e sem muita importância na totalidade da
Natureza. O pensamento judaico-cristão rompe com este modelo, pois o homem está
destinado a trabalhar a terra, desde que foi expulso do Éden. Portanto, vemos surgir a idéia de
um homo faber, inexistente nos pagãos, pois esse novo conceito remete à própria concepção
de um deus novo, um deus criador. Criado à Sua imagem e semelhança, o homo faber remete
a um deo faber. Inicialmente, o cristianismo, sobretudo pela influência da herança pagã, vai
valorizar o tom cosmológico. Com o advento da modernidade, a concepção de um homem
criador é resgatado, rearticulando todo o pensamento ocidental, que, posteriormente, se laiciza
por completo, dispensando a idéia de deus.35 Portanto, é possível afirmar que o “saudosismo”
de Mauro não se opõe à modernidade, pelo contrário, é um resgate da própria modernidade,
que se desviou do seu verdadeiro caminho, o cristão. Assim, se Gonzaga é “tocquevilliano”,
ao por o homem como demiurgo de si mesmo, Mauro, por sua vez, é um “pascaliano” que
encontra na fé e na arte, que foram traumaticamente desvinculadas da razão, o caminho ético
mais seguro diante da angústia que suscita a modernidade.36 Porém, ressaltamos que é
possível afirmar que a modernidade não é originalmente um rompimento radical com o
cristianismo, mas a radicalização de um conceito que lhe é próprio. Cabem aos homens
assumirem o seu papel, que é trabalhar sobre a terra, mas respeitando-a, pois o homem não é o
seu dono, nem um mero hóspede, mas um elemento que a constitui. Assim, cabe à Arte, em
última instância, resgatar esse aspecto, lembrar ao homem que ele não está sozinho. Como
Mauro afirmava, “o progresso é antifotogênico”, ou seja, o cinema deve estar, por definição,
atrelado à memória, para buscar no passado, ou nos seus traços ainda existentes, essa ordem,
não por uma intenção meramente contemplativa, mas como uma função pedagógica.

É o que ocorre nos documentários do INCE, que exploram a harmonia entre o homem
e a natureza. A natureza ensina os homens a viver por intermédio de seus ciclos e regras.
Porém, os homens não são meros joguetes, pois cabe a eles desvelarem os segredos que estão
nos encantos da natureza. A esse respeito, ressaltemos o projeto não-realizado de Mauro de
filmar o “Eclesiastes”.37 Em relação ao texto bíblico, o cineasta ressaltava a descrição em
imagens, ou seja, esse livro é uma pedagogia calcada na informação visual. Lembremos que
Mauro é um homem da técnica e do meio rural mas, fundamentalmente, uma pessoa que não
pensava “livrescamente”, mas por imagens. O seu autodidatismo não é uma singularidade,

35
A passagem da cosmologia pagã para a cristã e o vínculo dessa última com a modernidade é estudada em
O’GORMAN, E. Op. cit. pp. 55-76. A “invenção da América” desempenhou uma função capital na releitura
ocidental do universo, pela transformação da concepção cosmológica de Mundo (já abordada anteriormente).
36
Não podemos esquecer que existe uma religiosidade em Tocqueville. A História, para ele, possui um sentido:
o processo de igualização entre os homens - Verdade revelada pelo Evangelho e concretizada na democracia.
37
“Tem uma riqueza de imagens maravilhosa: Todas as águas correm para o mar... (...) O Eclesiastes é a palavra
de Deus ensinando a gente a viver. Você não deve procurar na vida mais doçura do que ela pode lhe dar. Sim,
mas dentro do que ela pode dar, existem coisas formidáveis. Tudo tem sua hora e sua oportunidade e é muita
aflição do homem. Andamos aflitos. Não sei que diabo de aflição é essa! Tudo tem o seu tempo determinado”.
Isso também se relaciona com o seu célebre procedimento de como filmar a natureza: “Quando vejo uma
cachoeira, não vou de cara em cima dela. Escondo-me atrás de uma bananeira, esperando a hora certa. Há
momentos na natureza que não se repetem nunca mais. (...) Natureza a gente não deve filmar quando a gente
quer, mas na hora que a natureza escolhe.” In VIANNY, A (Org) Op. cit.. pp. 178-9, 181
75

pois a própria intelectualidade brasileira o praticava, mas o seu aprendizado era oriundo do
improviso e da curiosidade, o que provoca a simpatia dos “cinemanovistas”. Aliás, o cineasta
mineiro sempre afirmava: “nunca abri um livro de cinema. Curso de brasileiro é olhar: olhou,
viu, fez”. Eis o termo – olhar. É o que testemunhamos na ética e na cosmologia de que trata o
texto bíblico, que são obtidas pela simples descrição da natureza:

“Todos os rios entram no mar, e o mar nem por isso transborda; os rios voltam ao mesmo
lugar donde saíram, para tornarem a correr. Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode
explicar com palavras. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir”.38

Em suma, a riqueza da obra e pensamento de Humberto Mauro, que seduz todos


nós, pesquisadores do cinema brasileiro, se deve em grande parte ao nó górdio da
modernidade que ele agarra. Enquanto Glauber o vincula a um pensamento histórico linear,
podemos identificar, por parte do próprio Mauro, uma certa visão cíclica na ordem das coisas.
O que não impede, paradoxalmente, a existência do conceito de História em Mauro, que é
evocada via memória. Lembremos dos ensinamentos de Mounier, dos quais a teoria
cinematográfica de Bazin é tributária: o conceito de História irrompe no pensamento pelo
Ocidente, graças à sua origem judaico-cristã (não podemos esquecer que o islamismo também
descende da mesma linhagem). Portanto, há um sentido na História: estamos caminhando,
segundo a profecia do apóstolo João, para a Nova Jerusalém, a última etapa da criação divina
que advirá após o Armagedon. Glauber, por sua vez, aponta para o fim da sociedade
capitalista. Discordamos categoricamente da interpretação grosseira do marxismo de que ele
seria uma simples leitura atéia do cristianismo.39 Por outro lado, concordamos com a total
possibilidade de tal interpretação “religiosa” que, inclusive, o próprio Glauber a terá como sua
pelo que podemos ver no milenarismo presente em sua obra.40 Por incrível que pareça,
Glauber se aproxima muito de Mauro, mas enquanto o primeiro aponta para o futuro,
indicando um rumo para a autêntica modernidade (a sociedade sem classes), o segundo está
preocupado com o passado, trazendo à tona as marcas de uma ordem autêntica perdida e a ser
resgatada (o sentido cristão da modernidade). Assim, a figura de Mauro exerce três funções
em relação à modernidade: o de instaurador, em Gonzaga; o de anunciador, em Glauber e o de
resgatador, em sua maturidade. Como já afirmamos, não estamos preocupados em saber quem
foi o “verdadeiro” Mauro pois, para nós, trata-se de uma falsa questão. Mauro não é uma
essência. A sua figura pode exercer três funções distintas ou mais, se contarmos a primeira
fase do INCE. Assim, concordamos com a conclusão de Schvarzman:

Com Adhemar Gonzaga e a “Campanha do Cinema Brasileiro” de Cinearte,


tratava-se de definir como o Brasil deveria aparecer para si mesmo. Com o
INCE e o cinema educativo, de como o Brasil viria a ser, e com o Cinema
Novo e o trabalho de críticos como Alex Viany e Paulo Emílio Salles

38
Eclesiastes 1; 7-8
39
Existem vários “marxismos”, principalmente, pelo tipo de interpretação dada à sua polarização entre um
“conhecimento científico” da sociedade e uma aplicação desse conhecimento para a sua transformação. Assim, é
possível lê-lo como uma “profecia”. O que queremos evitar é uma leitura simplista do filósofo alemão, perdendo
a profundidade e a riqueza de seu pensamento. Assim, a sociedade comunista não é o paraíso na terra, pois como
toda sociedade humana também terá os seus problemas. Porém, são problemas que nem podemos imaginar por
estarmos tão mergulhados na sociedade burguesa.
40
Gomes frisa a importância da rigorosa formação presbiteriana de Glauber, presente na leitura bíblica e nos
hinos de louvor, mas posta em cheque com o impacto da morte de sua irmã mais velha. Todos esses elementos
fizeram surgir no cineasta uma vontade de justiça social atrelada a uma “raiva bíblica” (não ódio), que encontrou
num “humanismo marxista”, termo do biógrafo, a sua forma de expressão. Por tal motivo, o autor escreve, com
uma certa ironia, a recusa da mãe, D. Lúcia Rocha, de ver qualquer indício de ateísmo em seu filho. GOMES, J.
C. T. Glauber Rocha: esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997
76

Gomes, o que o Brasil era realmente. Em comum, o fato de que todos, em


cada momento histórico, postulam mudanças, onde o cinema é objeto
condutor do vir a ser nacional. Entretanto, como a imagem do Brasil é,
sempre, algo que está por se fazer, corrigir ou denunciar, estas terminam por
constituir, no nosso entendimento, utopias nacionais que se ancoram no
cinema e onde Humberto Mauro se inseriu como sujeito e depois como
objeto, já que no final dos anos 50 suas imagens e a forma de produzi-las é
reconhecida como paradigma de uma realização – em forma e em conteúdo
– autenticamente nacional. (SCHVARZMAN, 2000, pp. 381-2)

Após passar por Adhemar Gonzaga e Edgard Roquette-Pinto (1884-1954),


Humberto Mauro cai nas mãos do Cinema Novo. Tomando-o da crítica paulista (onde Mauro
também exerce uma função), Glauber prolonga a querela já presente em Viany. Quais são os
dois caminhos que o cinema brasileiro deve tomar, apontando para um autêntico caminho,
cuja fonte é Mauro. O que pode se assemelhar à questão posta por Gonzaga: o Cinema e a
“cavação”. Mas é um erro crer que se trata de uma semelhança. Gonzaga é mais radical; ele
não abre dois caminhos: há somente um, que é bloqueado por uma excrescência. Por isso,
escrevemos “o” Cinema e a “cavação”, pois é um problema parmenídico: o Ser e o Não-Ser.
A “cavação” não é cinema, ou seja, é um ente que não participa de sua essência, de sua
definição. Por outro lado, Glauber, seguindo a trilha de Viany e prolongado por Salles Gomes,
testemunha um embate entre duas linhagens de um cinema que já existe. A “cavação”,
rejeitada por Cinearte e pela crítica paulista, não possui mais sentido pejorativo no Cinema
Novo, pois é o “cinema industrial” que deve ser combatido. Mauro assume um papel
importante ao se valorizar a simplicidade dos recursos técnicos utilizados. Portanto, o termo
“Cinema Novo” é salvo, não somente ao atrelá-lo a um movimento em nível mundial (“o
cinema de autor”), mas ao ligá-lo a um tipo de cinema que já se fazia na nossa própria
cinematografia. Porém, segundo um procedimento ainda não inteiramente “amadurecido” em
termos políticos. Como entender esse amadurecimento? Que passo é esse, dado pelo dito
“Cinema Novo”, que prossegue a marcha iniciada por Mauro? Ao responder essas questões,
Glauber re-pensa o próprio termo “Cinema Novo”, chegando finalmente a uma definição.
77

CAPÍTULO 4 – GLAUBER ROCHA RESPONDE: “O “CINEMA NOVO” É...”

Num artigo intitulado O cinema novo de 1962, e portanto, anterior ao seu livro,
Glauber Rocha já buscava uma definição para o termo cunhado por Ely Azeredo.1 Assim,
podemos notar que se trata de uma questão que o perseguia obsessivamente, e ao estudarmos
a busca dessa resposta, conheceremos as mudanças no pensamento e na obra do cineasta
baiano. Nesse artigo, Glauber conclui que não é a sua aparição recente o que torna tal cinema
ser novo, mas a sua posição em relação à problemática brasileira. O “homem brasileiro” é
novo, os problemas do Brasil são novos e, portanto os filmes que se vinculam a essa
“problemática” são irremediavelmente distintos dos produzidos na Europa. É relevante
ressaltar que esse artigo possui como epígrafe a célebre frase de Paulo César Saraceni: “O
cinema novo não é uma questão de idade; é uma questão de verdade”. Esse pensamento
autoriza Glauber a empreender o projeto que se realiza em seu livro, pois “o cinema novo”
não é apenas um movimento cinematográfico recente, mas uma instrumentalização do cinema
voltada para, nos termos de Glauber, a abordagem da “problemática brasileira”. Assim, é
possível identificar, no passado, filmes que compartilham a mesma ou uma semelhante
intenção. Em suma, existe uma tradição, subterrânea, em nossa cinematografia que irá
desembocar nos filmes desses novos cineastas. É o que Glauber já faz no próprio artigo:

“(...) Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso
cinema é novo não por causa da sua idade. O nosso cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o
de Humberto Mauro que nos deu em Ganga Bruta nossa raiz mais forte.” (ROCHA, 1981, p. 83)

Por outro lado, é importante frisar a seguinte frase: “Não existe na América Latina um
movimento como o nosso”. Apesar de o jovem crítico de cinema Glauber exaltar o filme
mexicano Raíces (1953) de Benito Alazraki (1921- ), por conseguir conciliar duas estéticas
até então diametralmente opostas para os europeus, - o construtivismo soviético e o neo-
realismo italiano - abrindo, assim, portas para um modelo estético latino-americano, percebe
tratar-se, na verdade, de um caso ímpar.2 Os cinemas mexicano e argentino ainda não
possuíam um grupo de cineastas “novos” como no caso brasileiro.

O que podemos entender por “problemática brasileira”? Por que esse epíteto de
“novo”, e o que significa “velho”? No livro, através do uso bem particular da politique des
auteurs, Glauber o atrela a um viés histórico, certificando um sintoma, o florescimento dos
“cinemas de autor”, e apontando para os perigos dos supostos estertores do “cinema
comercial”, ao se apropriar dos “autores” como vedetes. Isso é bem evidente no seu artigo O
processo cinema, de 1961, em que ele escreve como e por que se tornou cineasta, assumindo
uma produção problemática, Barravento (1961), o seu primeiro longa-metragem.3 Nesse texto,
Glauber caminha sobre o fio da navalha da atividade cinematográfica: as suas faces artística e
comercial. Distinto do artesão do passado, que realizava o seu trabalho anonimamente, o
artista, nos dias de hoje, é alçado à categoria de “atração pública”, de exceção. O cineasta é o
que mais sofre, pois carrega em seus ombros o investimento de um enorme capital.
Ironicamente, Glauber, nesse artigo, critica a politique des auteurs e a Cahiers du Cinéma, ao
«divinizarem» cineastas norte-americanos substituindo-os na função de “vedetes” até então

1
ROCHA, G. Revolução do cinema novo. pp 15-7
2
Ver “Rayzes mexicanas de Benito Alazraki” In Ibid. pp. 1-7. É significativo notar que se trata do texto
escolhido por Glauber para abrir o seu livro sobre o Cinema Novo.
3
Ibid, pp 8-15
78

reservada aos atores e atrizes. O cineasta baiano chega a afirmar que o “fenômeno da nouvelle
vague foi apenas um golpe de produção muito bem lançado”. Apesar de um certo niilismo que
pode engendrar o problema posto por Glauber (o artista como “atração pública”), ele o resolve
ao separar alguns nomes, que mesmo diante desse dilema moral, conseguiram enfrentá-lo com
dignidade:

O problema, contado dramaticamente pelos homens que já estão


engrenados no cinema, é mais solucionável do que pensamos: Antonioni era
um autor maldito até a explosão de L’Avventura. Em seguida, La Notte, em
Paris rende na primeira exibição quarenta milhões de francos. Hoje,
Antonioni é um bestseller. Não fez as vergonhosas concessões comerciais.
Apenas a sua arte foi descoberta pelo público. (ROCHA, 1981, p. 10)

Portanto, o cinema pode ser salvo não por uma mudança no produtor, pois para ele
somente lhe interessa do cineasta a compra de sua força de trabalho intelectual, mas pelo
público. O público é o único meio de se salvar o cinema. Aliás, é instigante notar que todos
aqui estudados (Cavalcanti, Viany, Salles Gomes e Gonzaga) jamais condenam o público
brasileiro; ele é sempre visto mais como vítima do que como réu. Desse princípio se
desenrolam duas questões: quem é esse público e o aparecimento de uma outra figura: o
crítico. É desse ponto que o problema começa a ser formulado em termos nacionais. O
caminho no artigo de Glauber é justamente esse:

Sem dúvida, os críticos são mais inteligentes e cultos que os cineastas


e são ao mesmo tempo artistas íntegros ou demasiadamente tímidos,
incapazes de aderir à corrupção. Um crítico sincero teria a coragem de
negar o cinema, se o cinema é para ele a motivação intelectual e também
profissão? No caso brasileiro, o único homem de cinema que ainda pode
viver de ofício é o crítico. Alguns recebem bons salários pelas colunas e
mais algumas comissões de publicidade e promoção. São honestos, com as
exceções de praxe, e precisam justificar suas respectivas existências.
(ROCHA, 1981, pp. 10-1)

Glauber aponta para a dicotomia, estudada anteriormente, entre “Estética” e “Poética”.


Na verdade, ele aponta para algo mais: começa a formular esse problema no caso brasileiro. A
passagem, realizada pelos “Jovens Turcos”, da crítica para a realização possui um outro
sentido entre nós. Como vimos, os “Jovens Turcos” não colocam a sua questão em termos
nacionais. O fato de serem franceses ou europeus não é explicitado em seu pensamento.
Concordamos que a guerra contra o “Cinema de Tradição de Qualidade” possui uma
preocupação com o cenário cinematográfico francês, utilizando os norte-americanos como
arma. Mas a questão não é pensada, em nenhum momento, como uma particularidade da
cultura francesa ou norte-americana. É um problema interno do Cinema, não uma
singularidade de cinematografias. Em seu livro, Glauber conclui que o cinema brasileiro está
medíocre, graças a algum desvio histórico, que não é explicado. Por outro lado, os “Jovens
Turcos” afirmam algo semelhante; o cinema francês está doente, pois ele assumiu uma
relação inautêntica com o Cinema. Apesar das afirmações se parecerem, as questões são
radicalmente distintas. Glauber busca responder um problema (o que é “Cinema Novo”?),
conseguindo superar o dilema explicitado por Cavalcanti, que chegava a pôr em dúvida a
própria existência de um cinema brasileiro. Os franceses, por sua vez, jamais duvidaram da
existência de seu cinema. Muito pelo contrário, eles se consideram os criadores do Cinema.
Não há nenhuma humildade ou complexo de inferioridade. Portanto, podemos afirmar
categoricamente que os “Jovens Turcos” são extremamente franceses quando pensam o
Cinema como uma realidade própria. Eles não estão preocupados nem jamais se preocuparam
79

com o “cinema francês” mas, sim, com o Cinema. Glauber, em seu livro, ainda não explicita
conceitualmente essa distinção, mas ele dará esse passo...

Voltando ao artigo, Glauber questiona o que leva uma pessoa a ingressar num meio
artístico tão ingrato e corrupto quanto o cinema. Claro que há os que se “vendem” sem
problema, seduzidos por uma indústria poderosa e rica, visando se integrar em seus quadros.
Porém, os criadores honestos, como o citado Antonioni, são levados por uma “ambição”
própria de qualquer artista, que é aumentar a visibilidade de sua obra. Essa inclinação também
traz um problema, estando muito próxima a “venda de sua alma”. Portanto, o cinema,
indústria e arte, agarra para si aqueles que abandonam as suas outras tendências (crítico, poeta,
escritor, pintor) com a condição de deixarem a humildade na porta de entrada. A lucidez de
Glauber o faz diferenciar a “arte” do “artista”, o que em geral não ocorre. Podemos afirmar
que a arte possui uma dimensão trágica no sentido de que sua potência e valor é feita às custas
dos artistas. Dito de outro modo, a arte é algo fantástico e deslumbrante, apesar dos artistas,
que podem ser pessoas medíocres e vaidosas. Em suma, o mistério da criação artística, que já
vimos em Gilson, é a sua inversão lógica de um princípio cartesiano: como o “menos”, no
caso o artista, pode engendrar o “mais”, a arte?4 Como um ser medíocre e desprezível pode
criar algo tão soberbo e magnânimo? É óbvio que nem todos os artistas podem ser julgados
assim, e o esforço de Glauber é encontrar alguma saída moral para esse paradoxo.

O primeiro ponto levantado são os fatores materiais de produção, ou seja, o cinema, a


arte que mais corrompe, deve ser temido pela sua própria forma de criação? Glauber nota as
diferenças entre realizar um filme no Brasil e no exterior. Se o dilema moral, acima
apresentado, assalta a consciência dos cineastas no nosso país, os cineastas sofrem por outro
motivo. O artista não está atrelado à grande indústria, exercendo apenas uma determinada
função à serviço do capital, mas pelo contrário, a frustração do cineasta brasileiro é a
impotência de realizar os seus objetivos estéticos. Enquanto o primeiro se lamenta das
condições em que está submetido, como assalariado de um grande sistema industrial, o
segundo se lamenta de suas impossibilidades.

Portanto, como pensar o que é o Cinema e, principalmente, o que é o cinema


brasileiro?

A imagem, rigorosamente, deve ser um vocábulo, e o cineasta deve escrever


com a imagem. Esta teoria, sob várias formas, ocupou centenas de críticos.
Mas que imagem é esta? O rosto humano? O homem? A natureza?
Respondo que esta imagem apenas existiu em algumas seqüências de alguns
cineastas. Porque o cinema exige uma organização, na maioria das vezes
linear, a palavra interfere para auxiliar a imagem, evitando que o próprio ser
do cinema seja esvaziado até uma completa inconseqüência artística, que
seria o didatismo dos documentários. Não é o vanguardismo condenado até
pelos mais formalistas? O cinema de hoje é uma traição ao signo. Como o

4
René Descartes (1596-1650), na terceira de suas Meditações, prova a existência de Deus aplicando o princípio
de causalidade, pelo qual, um ser finito e imperfeito, como o eu pensante, somente pode possuir em si a idéia de
infinito e perfeição, pelo fato de essa idéia ter sido posta por um ser infinito e perfeito e que, por conseguinte, tal
ser, o res infinita, racionalmente existe e é causa do outro ser, o res cogitans. A concepção moderna de Arte
subverte o princípio de causalidade, oriunda da física aristotélica, ao afirmar a criação de uma realidade singular,
partindo de um suporte empírico que é o artista. Voltamos a repetir, não podemos confundir o empírico com o
lógico, pois cairíamos numa explicação fisiológica, psicológica ou sociológica para a criação artística,
encarando-a como um simples epifenômeno de alguma suposta natureza humana ou apelaríamos para uma
transcendência, como a teoria kantiana do “gênio”, considerando a criação artística como um mero laço com
alguma substância superior, seja a Natureza ou Deus.
80

ideograma japonês e como o hieróglifo egípcio, o cinema é uma linguagem


escondida e esquecida até mesmo por estes grandes cineastas aqui citados.
Não é a montagem narrativa, nem esta montagem pianística (atonal), que
pode atingir o filme. Jamais seria (é uma covardia de espírito e da
imaginação admitir) o roteiro ficcional ilustrado, paginado na tela como se
pagina uma reportagem numa revista. (...) É inadmissível que um homem
inteligente não saiba da incalculável tarefa intelectual que se exige para que
o filme seja atingido como objeto e não como tubo condutor de idéias
duvidosas. (o grifo é do autor)
Quando aceitei a profissão de fazer filmes e para isto fiz a penitência de 90
dias numa praia deserta, sem muito dinheiro e com uma equipe
humanamente heterogênea, só admiti aquele trabalho contrário às minhas
idéias originais sobre o cinema porque tive a consciência exata do País, dos
problemas primários de fome e escravidão regionais, e pude decidir entre a
minha ambição e uma função lateral do cinema: ser veículo de idéias
necessárias. Idéias que não fossem minhas frustrações e complexos
pessoais, mas que fossem universais, mesmo se consideradas no plano mais
simples dos valores: mostrar ao mundo que, sob a forma do exotismo e da
beleza decorativa das formas místicas afro-brasileiras, habita uma raça
doente, faminta, analfabeta, nostálgica e escrava.
O exemplo não é cabotinismo mas a franqueza de confessar que o cinema
como veículo de idéias só pode ser honestamente aceito enquanto servir ao
homem no que ele mais precisa para viver: pão. (os grifos são nossos).
(ROCHA, 1981, pp. 12-3)

O jovem Glauber assume a condição frustrante de cineasta brasileiro movido por um


compromisso moral com o público. Se, somente o público pode salvar o Cinema, a função do
cineasta em nosso país é se comprometer, e não tergiversar (“Idéias que não fossem minhas
frustrações e complexos pessoais”) com as condições às quais estão submetidas esse público e
o próprio cineasta. Sendo “uma função lateral” e não o seu próprio ser, o cinema, encarado
como um veículo de idéias, ou seja, uma mera ferramenta, possui validade somente pela
articulação com algo que o transcende. As “idéias universais” enobrecem o cinema na medida
em que afirmam o compromisso do cineasta com o público. Por outro lado, como é possível
esse enobrecimento? Lembremos que o didatismo foi rejeitado por sua mediocridade. Se a
politique des auteurs possui uma “moral do espetáculo”, o jovem Glauber também
compartilha essa ética, condenando o “didatismo” e o “vanguardismo”. Porém, a relação
cineasta-público é distinto aqui e nos “Jovens Turcos”. A situação de respeito do artista com o
espectador não é a mesma, na medida em que, para Glauber, o cinema está atrelado a algo
fora dele, que são “as idéias universais”. Ambos, artista e espectador, são seres carentes, o que
torna insuportável a própria presença do cinema. Para um povo que tem fome, que serventia
possui a arte? Essa questão rói a consciência de todos os artistas brasileiros, sobretudo, os
cineastas, pois é a “arte moderna” por excelência e portanto não possui, logicamente, sentido
num país atrasado. Portanto, o próprio cineasta se questiona existencialmente e busca de
algum modo fugir dessa questão, tentando salvar o sentido de seu próprio ser e de sua criação
artística:

Ser cineasta no Brasil é permanecer no vestíbulo da grande experiência e,


por isto, não podemos nem atingir o clímax que possibilita a frustração
como resultado orgânico. A nossa frustração é primária, superficial. Ela está
mais em conseqüência da anterior ambição econômica e social. Não é
mentira se dissermos que o cineasta nacional é um homem sempre a
caminho da inutilidade. (...) Vai se estiolando culturalmente. Descamba na
maioria das vezes para uma posição de esquerda ou então se converte num
81

antinacionalista extremamente reacionário, acusando, inclusive, até a


paisagem de ser responsável por seus fracassos. Estes não possuem a
coragem de dar uma olhada no espelho e ver que o asfalto das metrópoles é
um pseudodesenvolvimento e que, no fundo, somos o que mais ou menos o
europeu pensa: índios de gravata e paletó. (o grifo é nosso) (ROCHA, 1981,
p. 14)

O compromisso que permeia a relação cineasta-espectador deve inicialmente partir da


coragem em reconhecer a nossa situação precária. A “problemática brasileira” deve ser a mola
principal do cinema, mas como abordá-la? O cinema, como condutor de idéias, não é algo
extremamente problemático? Além de sufocar as veleidades estéticas do artista, esse tipo de
cinema pode acarretar numa posição professoral, rompendo com a ética da relação. O grande
perigo não é tanto o primeiro ponto, mas o segundo.

Não poderíamos voltar àquela antiga condição de artesão obscuro e


procurar, com nossas miseráveis câmaras e os poucos metros de filme de
que dispomos, aquela escrita misteriosa e fascinante do verdadeiro cinema
que permanece esquecido? Não saberia mesmo dizer que cinema é este, que
verdade é esta. Esta proposta, que não tem intenções de ser manifesto, e
talvez seja mesmo uma pública interrogação pessoal, poderá parecer
romântica e até mesmo imbecil. Creio, no entanto, que o cinema só será
quando o cineasta se reduzir à condição de poeta e, purificado, exercer o seu
ofício com a seriedade e o sacrifício. Mas, por outro lado, o cinema se eleva
como o maior instrumento de idéias do universo. Seria justo a deserção dos
cineastas se eles, mesmo escravos, falam por vezes tão alto? (o grifo é do
autor)
Sem dúvida, estamos num círculo vicioso. O cinema é uma arte profana.
Somente o futuro, com a destruição ou o enraizamento desta fase inicial,
poderá responder. Até lá, entre produção & angústia, os cineastas concedem
ou negam. (ROCHA, 1981. pp. 14-5)

Se fomos tão exaustivos nas citações desse artigo é pelo fato de ele ser, na nossa
interpretação, a pedra fundamental do pensamento glauberiano. O cinema é dilacerado, pois
está dividido entre ser esta linguagem escondida e misteriosa ou um simples condutor de
idéias. Glauber não encontra resposta e cai num beco sem saída. Relevante notar que ele se
refere ao futuro, supondo a existência de um verdadeiro cinema, que esteja além dessa
contradição. Uma resposta que algum dia virá, quando o cinema retomar a sua essência, que
foi esquecida, tornando o cineasta um homem pleno. Podemos vislumbrar um viés metafísico
e histórico. Uma essência foi oculta, desenrolando-se por intermédio de uma contradição, e
apontando, no futuro, para uma superação. Por outro lado, toda a preocupação é posta em
termos nacionais. Essa contradição, que é inerente à condição do cinema, possui um outro teor
entre nós. A nossa contradição é maior, pois o ingresso da sociedade brasileira na
modernidade não foi efetivado. Se o cinema é próprio da modernidade, por sua definição ser
oriunda da finitude, o “cinema brasileiro”, logicamente, não existe. Como Glauber sublinha,
vivemos num “pseudodesenvolvimento”, definindo- nos como “índios de gravata e paletó”.
Portanto, os cineastas brasileiros se defrontam com essa questão, e não suportam encará-la.

Entendemos o seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro como uma resposta ao
dilema posto nesse artigo de 1961. Ao buscar uma definição para “Cinema Novo”, Glauber
visa abordar a contradição presente na definição de cinema (linguagem oculta x condutor de
idéias). Ironicamente, ele se utiliza da politique des auteurs para tentar solucionar essa
contradição. O “Autor” cria uma visão de mundo, com a qual está comprometido, mantendo a
82

sua integridade diante das garras da indústria cinematográfica. Porém, como já estudamos,
Glauber interpreta a metodologia “jovemturquiana” de um modo bem singular, ao atrelá-la a
uma leitura histórica. Pensa-se o cinema, remetendo-o a algo exterior, o que no citado artigo
era intitulado de “idéias universais”. O filme de um Autor é a captação e leitura da realidade,
sendo entendida como um compromisso com a “verdade”. Portanto, o cinema não é isolado,
não sendo visto como um puro “experimentalismo” e nem um mero entretenimento, pois é
algo de muito grave, sendo alçado à categoria de “conhecimento” (a relação com a Verdade).
Essa leitura é muito comum e denunciada por Gilson, ao se interpretar a Arte como uma
forma de conhecimento. Glauber, de um certo modo, compartilha essa tradição, que segundo
o neo-tomista francês é algo de muito nocivo. Porém, Glauber vincula o conhecimento com
uma realidade movente, sendo diametralmente oposto a uma interpretação aristotélica. Como
já ressaltamos várias vezes, o cineasta baiano possui um viés histórico.

Interessante notar como Glauber realizou a sua passagem da crítica para a realização.
Se os “Jovens Turcos” rompem com a distinção clássica entre “Poética” e “Estética”, Glauber
o faz motivado por uma outra razão. Os franceses encaram o filme como uma realidade
própria, melhor dito, um conjunto de filmes (o “Autor”), ingressando nela para estudá-la
internamente, julgando, portanto, o cineasta e não o filme. É a simultaneidade do juízo de
valor e de realidade. Por isso, a existência de uma “moral” nos filmes, que é relevante. Assim,
a passagem dos “Jovens Turcos” da crítica para a realização é natural, já que escrever sobre e
realizar filmes estão na mesma ordem. Por outro lado, como Glauber associa o cinema com
algo exterior, o que deve ser estudado, melhor dito, o que é conhecido, é a realidade exterior
ao filme, mas, paradoxalmente, através do filme. O filme, sendo uma “visão de mundo”,
possui uma face dupla, pois ele é o que é dentro de uma outra coisa que é o que é. Na verdade,
este “é” deve ser lido como “sendo”, pois tal realidade, e por conseguinte também o filme,
está em movimento (História). Portanto, é coerente que Glauber, após olhar para o futuro, em
seu artigo de 1961, volte-se para o passado, em seu livro de 1963. E, sendo assim, é possível
afirmar que Ganga bruta seja um filme “cinemanovista”, mesmo que tenha sido realizado em
1933. Como Glauber afirma em seu artigo, o que o motivou a ingressar no cinema foi a
consciência das condições em que vive o nosso povo, pois o que deve ser conhecido é a
realidade exterior ao cinema, mas, por uma articulação realizada no filme (a mise-en-scène).
Todo o problema do pensamento de Glauber é como se dá essa “articulação” entre o filme e a
realidade do povo brasileiro. O caminho para o didatismo é muito próximo, mas deve ser
radicalmente rejeitado por minar a própria definição de Autor. O filme tem que ser uma visão
pessoal dessa realidade, e não uma mera apresentação didática. Aqui, podemos notar a
importância de Mauro para esses jovens, pois os seus documentários são um exemplo a ser
seguido. Interessante notar que Glauber analisa Mauro atravessando as fronteiras de gênero,
estudando, após Ganga bruta, o curta documental Engenhos e usinas (1955). Portanto, é
coerente intitulá-lo de Autor, já que ele impõe a sua visão pessoal independente dos
procedimentos técnicos e das condições de realização. Por outro lado, Glauber afirma uma
“situação histórica” à qual está circunscrita Mauro e, portanto, o seu cinema, de um certo
modo, já está superado. O dilema posto no artigo de 1961 está justamente certificando a
necessidade histórica de uma transformação na arte cinematográfica. Em seu livro, Glauber
esboça uma resposta ao tomar para si o termo de “cinema de autor”. Apesar de anteriormente
ter se referido à Nouvelle Vague como “um golpe de produção”, que é justamente a grande
controvérsia desse movimento (que Marie busca desbaratar), o compromisso do autor é com o
público e é, justamente, esse compromisso que o alça à categoria de artista. É somente por
intermédio desse compromisso que o cinema pode ser “salvo”. Por outro lado, a preocupação
de Glauber se restringe ao nosso país (isolando-o, por exemplo, da América Latina). Ele
constata uma mudança no cenário cinematográfico brasileiro, que é o início de sua
83

industrialização, exatamente o que ocorre em Salles Gomes, ao denunciar a morte do “mundo


de ficções”. Ou seja, o Brasil pode produzir filmes, pois ele não é, por definição, um país
agro-exportador e importador de mercadorias industrializadas. Na verdade, é algo maior: o
Brasil não só pode, como deve fazer filmes. Um país desenvolvido necessita construir uma
identidade audiovisual, não como uma mera “apresentação” para o exterior, mas para si
mesmo. O cinema é uma arte moderna, e uma nação e um povo, ao ingressarem na
modernidade, necessitam produzir a sua imagem. Eis a questão que move a geração do
Cinema Novo; essa exigência lógica da modernidade, re-pensando todo o conceito de “cinema
brasileiro”. O teor nacionalista está justamente nesse citado compromisso, que põe no mesmo
nível tanto o artista quanto o público, caindo numa discussão interminável sobre o que é o
“ser brasileiro”. Podemos notar, em dois aspectos, essa ânsia de encontrar uma definição para
nós mesmos. Uma é a certificação da “brasilidade” do cineasta, condenando vigorosamente os
estrangeiros que criam a nossa identidade em nosso lugar, à frente Camus na ficção e Jean
Manzon (1915-1990) no documentário, não poupando inclusive, num certo momento, o
moçambicano Ruy Guerra (1931- ). O outro aspecto é a analogia do Cinema Novo com os
Modernistas de 22. Em seu livro, Glauber enobrece a “Homenagem ao Documentário
Brasileiro”, realizada por ocasião da Bienal de 1961, atribuindo-lhe a mesma importância para
o nosso cinema que a “Semana de Arte Moderna”, de 1922, teve nas demais artes.5 Ou seja,
Glauber não somente resolve o paradoxo explicitado por Cavalcanti via Mauro, como marca
um “fato histórico” da magnitude do evento consagrado como o advento da “arte moderna
brasileira”. Assim, o cinema, a mais medíocre das nossas artes, é finalmente reconhecido
como uma expressão legítima da genialidade do nosso povo, fértil em grandes artistas.

Portanto, re-pensar o “cinema brasileiro” é movido por uma questão: discutir a


modernidade no Brasil. Se Glauber testemunha o nascimento da indústria cinematográfica
brasileira, igual a Viany, o que o cineasta baiano contesta é o rumo que está tomando essa
modernidade. O “pseudodesenvolvimento” de nosso país aflora as contradições nas quais
estão assentadas a nossa sociedade. Se o cinema é uma forma de conhecimento, não podemos
esquecer que conhecer, para Glauber, não é somente constatar mas transformar. O
conhecimento não se resume a um ato cognitivo, mas está vinculado a um procedimento
performativo. Assim, como entender essa relação entre o cineasta e o público? Qual é a
função do primeiro para o segundo, e vice versa?

Numa carta, de 13 de junho de 1961, endereçada a Saraceni, Gustavo Dahl (1938- )


e a Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), Glauber escreve:

Cada filme deve tocar o povo, não demagogicamente, mas no sentido


que Brecht toca. O povo deve raciocinar em torno dos problemas. Aqui no
Brasil nosso cinema deve ser inicialmente um problema mais ÉTICO DO
QUE ESTÉTICO. Compreendo aos poucos que nossa ambição de puristas e
formalistas deve ser esquecida. Agora os sociólogos daqui colocam muito
bem o problema da consciência crítica nacional, equacionando o país em
termos verdadeiramente científicos. O Cineasta tem uma responsabilidade
acima do que julga: como o ficcionista e o teatrólogo. A poesia acabou e
resta isto para fazermos a revolução. Sartre viu o Brasil melhor que nós. Fez
conferências geniais e falou de Cuba o tempo todo. (a caixa alta é do autor)
(ROCHA, 1997, p. 158)

5
ROCHA, G. Op. cit. p. 106
84

Na entrevista dada à Jalusa Barcellos, Carlos Estevam Martins, um dos idealizadores


do CPC (Centro Popular de Cultura), ligado à UNE (União Nacional dos Estudantes), fala
como a arte era vista por essa organização política:

Eu achava que a gente tinha que se comunicar e não expressar. Isso foi uma
fonte de atrito que perdura até hoje. Os caras não me perdoam até hoje por
causa disso. O Cacá, o Jabor, eles não me perdoam, porque acham que eu
fui um cara que massacrou a vocação artística deles. É verdade que eu botei
a arte a serviço de outras coisas. Mas a proposta não era essa? Se eles
estavam ali, estavam ali para isso. Eles ficavam divididos: queriam
participar daquilo e, ao mesmo tempo, ser grandes artistas.
Na verdade, o CPC aglutinou, naquele momento, o pessoal que começava a
esboçar o Cinema Novo, a moçada que esboçava a Bossa Nova, enfim: ele
foi uma espécie de aglutinador de todas essas idéias, não é?
Sim, embora quanto mais o sujeito tivesse ambições individuais, como
artistas, menos condições ele tinha de entrar para o CPC. Veja um exemplo:
o Glauber Rocha. Ele não entrou por quê? Porque era o que tinha mais esse
“fogo sagrado” das coisas que ele ia fazer. Ele o criador, ele o autor. Tanto
que a mulher dele entrou, mas ele não. Na verdade, quem entrou para o
CPC foi quem não tinha produção nenhuma e que, de uma forma ou de
outra, via ali um espaço para começar a produzir. O próprio Vianinha vivia
esse dilema: ser artista ou fazer o CPC. Porque, na realidade, eram dois
caminhos totalmente diferentes. (BARCELLOS, 1994, p. 90)

Parece que esbarramos em uma contradição. Glauber aconselha seus amigos a


abandonarem o formalismo e o purismo, certificando algo muito duro (“a poesia acabou”),
mas, por outro lado, o caminho da pura propaganda política foi rejeitada. Nessa entrevista,
praticamente trinta anos depois das atividades cepecistas, Martins reconhece que não havia
arte no CPC. Mas, aos olhos de hoje, tal questão talvez seja mais evidente. O dilema afirmado
por Martins, entre fazer arte (expressar) ou utilizar a arte como um meio (comunicar), é o
mesmo que aparece na carta de Glauber. Portanto, a “poesia acabou”, pois os filmes a serem
realizados no nosso país, naquele momento histórico, devem necessariamente abrir mão de
seu “aspecto artístico”. É o que Glauber reconhece no citado artigo do mesmo ano. Porém,
como já analisamos em seu livro, Glauber cria um estranho conceito para dar conta desse
dilema: o “cinema de autor”. Afinal, esse termo, na boca de Glauber, foi realmente uma
solução ou é o próprio problema hipostasiado?

Por enquanto, ele não nos esclarece muita coisa. Não retornaremos à distinção entre
Glauber e os “Jovens Turcos”. Mas, por outro lado, reconhecemos que o historicismo de
Glauber não é o mesmo de Bazin. Não é somente o aspecto cristão que aparecerá numa
interpretação extremamente singular em A idade da terra (1980), mas pela relação com o
“classicismo”. O diálogo da Cahiers du Cinéma e da Nouvelle Vague com o cinema
hollywoodiano é visto com muita suspeita pelos “cinemanovistas”. Para esclarecermos o que
Glauber entende por Autor devemos voltar a frisar a passagem do “Cinema Clássico” para o
“Cinema Moderno” e como essa passagem é interpretada para o cinema brasileiro.

Num texto de 1962, Viany reconhece o teor qualitativo dos nossos filmes, manifestado
pela representação do Brasil, pela primeira vez, em todos os festivais internacionais de cinema,
não nos envergonhando.6 O crítico carioca vê nessa nova geração a manifestação de um novo

6
VIANY, A. “Cinema Novo, ano 1” In O processo do Cinema Novo. José Carlos Avellar (Org.). Rio de Janeiro:
Aeroplano, 1999. pp. 21-39
85

tipo de cinema, e deposita nela a esperança da arte cinematográfica em nosso país. O seu
esforço é caracterizá-la, saber quem são esses jovens e o que eles entendem por Cinema.
Relevante notar o seguinte trecho: “chamá-los de Nouvelle Vague é ofensa, se bem que os
autores de Os cafajestes, Rui (sic) Guerra e Miguel Torres, não escondam (sic) seu fascínio
pelo movimento francês”. Há um questionário, respondido por vários cineastas do movimento,
que levanta a importância que eles atribuem a vários cineastas e filmes. Como somente nos
interessa Glauber, selecionamos as suas respostas:

1) Neo-realismo italiano: “Foi a melhor coisa do cinema depois da guerra. Para o


Brasil, deu uma lição inestimável, se bem compreendida e transposta.”

2) Nouvelle Vague: “É uma inspiração tipicamente neo-decadentista, um movimento


cultural que defende a pequena liberdade burguesa e que integra também na linguagem
anárquica. É um perigo para os jovens dos países subdesenvolvidos, embora tenha contribuído
para o avanço do cinema. Godard e Resnais são respeitáveis, assim como Truffaut. Mas, no
fundo, são burgueses, cantam a tristeza desesperada da França e esquecem a redução sartreana,
que me parece o mais importante na cultura européia de hoje. Pessoalmente, a Nouvelle
Vague não me interessa, embora sejam belas algumas de suas manias: as mulheres,
principalmente, o trato delas. Vadim, sem dúvida, é uma sofisticada revolução na
superestrutura...”

3) Ingmar Bergman (1918- ): “Bergman, sendo um grande diretor, é o resultado de


uma tradição cultural que me interessa apenas como cultura.”

4) Federico Fellini (1920-1993): “Um moralista provinciano, um místico


impressionista. É uma personalidade, e basta.”

5) Luchino Visconti (1906-1976): “O grande pensador do cinema moderno. Porque é


um marxista que procede dialeticamente sobre o homem, em seu todo, como carne e
ser social. Rocco e i suoi Fratelli/Rocco e seus irmãos (1960) é, como sistema de
pensamento, o maior filme do cinema.”

6) Filmes brasileiros: “Agulha no palheiro, que introduz o Neo-realismo, e Rio, 40


graus, que o realiza. No passado, Ganga bruta, de Humberto Mauro. Hoje, o romance popular
que é Mandacaru vermelho, como fonte para um western sertanejo nacional. Os filmes curtos
da turma nova, A grande feira, de Roberto Pires e Rex Schindler. Os cafajestes, de Rui (sic)
Guerra, como prova da possibilidade de um cinema nosso no asfalto. O pagador de
promessas, o maior filme brasileiro, maior mesmo que Ganga bruta.”7

Podemos notar que o Neo-realismo possui uma ressalva de cunho nacional e que o
único cineasta realmente elogiado é Visconti. O filme em questão sempre exerceu um fascínio
em Glauber pois, segundo ele, o cineasta italiano conseguiu conciliar a crítica social com o
aspecto subjetivo dos personagens, expressando uma visão pessoal do autor (a mise-en-scène).
Ou seja, ele demonstra a riqueza que um filme pode alcançar, e daí provém o elogio tão
solene, o fato de abrir um caminho, aos olhos de Glauber, para a resolução do dilema que

7
No ano seguinte, no livro Revisão crítica do cinema brasileiro, a opinião sobre O pagador de promessas já não
é tão positiva; Glauber reconhece alguns problemas, apesar de grandes méritos, preferindo, pessoalmente, “o
diretor simples, espontâneo e pessoal de ‘Absolutamente certo’ ”. ROCHA, G. Op. cit. pp. 132-5
86

vimos acima.8 Portanto, é lícito supor que, da mesma forma que no elogio ao Neo-realismo, é
necessária uma transposição do “modelo viscontiano” para o cenário brasileiro. Por outro lado,
é relevante assinalar que os outros cineastas citados não são necessariamente desqualificados
(o exemplo de Bergman é significativo), mas não possuem nenhuma relevância estética para
nós, sendo a Nouvelle Vague, o mais evidente, pois é um “perigo” para “os jovens dos países
subdesenvolvidos”. Aqui está o termo fundamental que impulsiona o pensamento de Glauber,
que o faz buscar uma solução para o dilema explicitado por Martins. Na verdade, há uma
ligeira diferença entre o que Martins explicita, e o que Glauber afirma em sua citada carta. O
dilema, presente no CPC, pode ser visto como inerente a qualquer manifestação cultural que
se proponha militante, como por exemplo, o cinema soviético dos anos 1920. Já nos referimos,
brevemente, o quanto Eisenstein é uma figura forte para os “cinemanovistas”, mas a sua
estética não pode ser aplicada maquinalmente. Eis a diferença com Glauber. O cineasta baiano
sempre está pensando tal dilema numa singularidade brasileira, buscando construir um tipo
de estética que possa se adequar à “problemática brasileira”.

Assim, podemos voltar à distinção entre o historicismo glauberiano e baziniano. Se,


para Bazin, a linguagem cinematográfica está “evoluindo”, rumando para o “realismo”, para
Glauber, essa marcha não é una, ou seja, se a história da linguagem cinematográfica em Bazin
possui um sentido claro e unívoco, por outro lado, em Glauber, existe um deslocamento
interno no Cinema. Não é possível pensar a arte cinematográfica como uma realidade única,
que se manifesta de vários sentidos e em diversas etapas, mas existem diferenças de natureza
entre as cinematografias. Ou seja, realizar um filme num “país subdesenvolvido” não possui o
mesmo sentido que na Europa ou em Hollywood, não somente em termos técnicos, mas
estéticos. Aqui está uma distinção radical com o livro de Viany, de 1959. A industrialização
do cinema brasileiro o alçaria a uma nova etapa, pois ele já existe, porém conforme termos
internacionais, pois há uma teleologia universal. Lembremos que Viany ainda está preso à
dicotomia “forma-conteúdo”. Glauber, ao se apropriar da politique des auteurs, supera essa
polaridade, pois ele pensa o filme como uma mise-en-scène, i.e., não há diferença entre o
roteiro e a realização. Porém, a diferença para com os franceses é que a mise-en-scène,
segundo Glauber, deve abordar a “problemática brasileira”, ou seja, o Autor está
comprometido com uma nacionalidade, o que é uma contradição para os “Jovens Turcos”.
Assim, se pela mise-en-scène não há distinção entre o que se narra e o como se narra, a
abordagem da “problemática brasileira” não é apenas um aspecto temático de roteiro, mas de
uma concepção geral do filme, dito de outro modo, a “brasilidade” do filme não está apenas
no tema mas no modo em como se pensa o filme. A exaltação de Glauber ao filme de Visconti
é motivada pelo procedimento formal do cineasta, tanto em termos temáticos como de
concepção estética da totalidade do filme. Ou seja, não é apenas a crítica social à
desagregação da tradicional família italiana, a partir do impacto dos migrantes sulistas em
Milão, mas a estrutura narrativa num molde trágico, tanto na divisão do filme em atos como
na construção dos personagens, conforme uma ópera, como afirma Visconti em suas
entrevistas. Portanto, apesar de um certo classicismo no filme (o uso à estrutura operística), o
mérito de Visconti é justamente usar esse “classicismo” para dar uma dimensão, até então

8
No debate sobre Deus e o diabo na terra do sol (1964), realizado em 24 de março de 1964, Glauber afirma: “O
filme que mais me impressionou e que mais atuou dentro de Deus e o diabo na terra do sol foi Rocco e i suoi
Fratelli, para mim, o maior filme do cinema moderno. Adoro o filme, acho-o perfeito, porque talvez seja o
primeiro filme do cinema moderno que tira o roteiro da categoria de narrativa e lhe dá a categoria mais profunda
de um romance. A estrutura de Rocco que é uma estrutura tradicional, clássica, acadêmica, também me parece
muito boa, e o tom de tragédia de Visconti sempre me impressionou muito. Não é propriamente a forma de
Visconti, mas uma demonstração que ele dá do que é possível levar o cinema às últimas conseqüências, em
termos de extroversão dramática.” ROCHA, G. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1965. p 135. Esse debate também está transcrito em VIANY, A. Op. cit. pp. 51-84
87

inexistente, nos filmes de crítica social. E talvez o mais sedutor para Glauber seja o fato de
Visconti abordar a “problemática italiana” segundo uma estética italiana (a tradição da Ópera).
Assim, podemos sintetizar esse “novo historicismo”, dando voz ao próprio Glauber, numa
carta a Saraceni de 1962:

Antonioni só me interessa enquanto sou intelectual de superestrutura.


quando eu faço a redução pro BRASIL SUBDESENVOLVIDO E
INCULTO – eu vejo que a Europa é a HISTÓRIA FEITA e nós SOMOS A
HISTÓRIA A FAZER, e nosso tempo é pouco, nosso passado é vergonhoso
e temos de agir engajados na história. o Brasil de hoje não tem lugar pro
artista romântico e sim para o artista revolucionário, mas não um
revolucionário da arte e sim da própria história. estética hoje é uma questão
política. (as caixas altas são do autor) (ROCHA, 1997, pp. 165-6)

Apesar de retornar ao dilema de Martins, já podemos notar a diferença fundamental


entre fazer arte aqui e na Europa. É essa diferença que jamais pode sair da cabeça dos nossos
artistas, pois deixarão de ser autenticamente artistas “nacionais”, ou seja, revolucionários,
comprometidos com a História. Assim, é possível testemunhar algumas reviravoltas no
pensamento glauberiano, entretanto, já podemos identificar alguns de seus elementos
importantes. Por exemplo, vimos que Sartre já foi citado duas vezes. Por outro lado, também
já afirmamos a influência de sua filosofia em Bazin. Mas, não se trata do mesmo aspecto, pois
Glauber está se relacionando com a fase da Crítica da razão dialética (1960), onde o filósofo
francês busca conciliar o existencialismo com o marxismo. É o que podemos notar na
referência à Revolução Cubana (1959), da qual Sartre foi um simpatizante, antes do governo
castrista se alinhar ao bloco soviético. Em suma, o elogio do filósofo ao país caribenho,
visitado por ele no mesmo ano de sua passagem por nosso país (1960), é realizar uma
revolução inteiramente ímpar, não existindo ainda um conceito para ela.9 Para toda a geração
do Cinema Novo, a revolução em Cuba foi um exemplo e uma prova de que era possível
realizar uma verdadeira modernização no Brasil. Porém, ao certificar que se tratava de algo
radicalmente novo, se demonstrava a singularidade de certos países, apontando um novo
caminho para a Modernidade. A admiração de Glauber é exemplar disso.10 Os contatos com o

9
“Apesar dos argumentos imbecis da propaganda imperialista, não é verdade que a revolução cubana seja
comunista. Se o fosse – digo-o tranqüilamente -, eu não veria nisso mal algum: não é da conta de ninguém. Não
podemos negar a evidência; nada justifica essa “acusação”: nem a situação da ilha, nem o povo cubano, nem a
prática da revolução, nem a ideologia, nem os dirigentes do país, nem a atitude do Partido Comunista Cubano.
Este último, é verdade, considera necessária a revolução e justificadas as medidas adotadas: por isso, apóia o
governo. Mas, de forma alguma, não se deve confundir esta transformação social com aquela que levou Lenine
ao poder, nem mesmo com a que forjou a China de Mao Tse-Tung.” SARTRE, J. – P. Furacão sobre Cuba. Trad.
s.n. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964. pp. 7-8. Podemos também adiantar a relação de Sartre com um
outro evento capital, justo nesta ocasião: a Guerra da Argélia (1954-1962).
10
Numa carta enviada a Saraceni, entre março e maio de 1961, Glauber escreve: “Escrevi um artigo negando o
cinema [com certeza, se refere ao artigo aqui estudado]. Não acredito no cinema, mas não posso viver sem o
cinema. Acho que devemos fazer a revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem
dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Não se esqueça de seu país, veja se politiza o Gustavo [Dahl]. Cuba é o
máximo, eles estão construindo uma civilização nova no coração do capitalismo. São machos, raçudos, jovens
geniais.
Estão fazendo um novo cinema, possuem uma grande revista, vários filmes longos e curtos. Estou
articulando com eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo
política. Agora, neste momento, não credito nada à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar
tudo.
Do contrário eu me suicido.
Estou em processo para isto. Jamais serei um reacionário, um alienado, comprometido com a corrupção,
o capitalismo, a escravidão. Creia-me, com sinceridade.” ROCHA, G. Op. cit. p. 151
88

cinema cubano se devem, justamente, por esse fator. Portanto, apesar de o cineasta baiano
sempre se referir ao povo brasileiro, o fascínio pelos cubanos alarga essa singularidade para
uma extensão continental: a América Latina. Entretanto, como já vimos nas críticas aos
cinemas mexicano e argentino, esse sentimento latino-americano ainda não estava
amadurecido. Talvez, para os olhos de Glauber, caberia ao cinema brasileiro ser o próximo a
tomar o rumo aberto pelo cubano. Ou seja, inculcar nos cineastas brasileiros e, por
conseguinte em seu público, uma urgência para esse processo (“o nosso tempo é pouco”).
Contudo, o grande problema diante da relação “cineasta-público”, que constantemente se
esbarra no dilema de Martins, se deve a uma ausência de conceitos para pensar todo esse
processo. Cuba é o sintoma de que algo está mudando, mas como pensar isso? É o que Sartre
constatou e se esforça em responder... Em sua viagem ao Brasil, ele instigou os intelectuais
locais a pensarem isso. É por tal motivo que Glauber afirma que o filósofo francês viu o nosso
país melhor que nós.11

Assim, é possível identificar uma característica muitíssimo semelhante à de Gonzaga.


Um arraigado sentimento de mudança. Uma transformação, não somente estética (a passagem
do “Cinema Clássico” para o “Moderno”, assim, como foi o advento do sonoro para Gonzaga),
mas também, um momento de grandes transformações sociopolíticas.

Vimos que Gonzaga articula o cinema para destruir o pensamento estamental, visando
lançar as bases de um pensamento democrático liberal, a partir do modelo norte-americano.
Assim, nós relacionamos a “problemática gonzaguiana” com a de Tocqueville, aproximando
certos elementos conceituais de seu pensamento. Por outro lado, agora que estamos estudando
Glauber, esbarramos em uma “ausência de conceitos”. Ele se refere a Sartre, porém, o próprio
filósofo francês, por sua vez, reconhece que a sua posição é diametralmente distinta da nossa.
Portanto, para desbaratar esse problema devemos, inicialmente, tentar compreender o que é
essa mudança.

Gomes sintetiza:

O Cinema Novo representou a cristalização de um objetivo continuado,


amadurecido desde o final da década de 50, com raízes baianas bem
definidas, mas fruto de interesses e aspirações por todo o Brasil,
notadamente Minas, Rio e São Paulo. (...)
Não é possível deixar de reconhecer esse movimento como reflexo da
mentalidade industrial e desenvolvimentista criada no Brasil pelo governo
de Juscelino Kubitschek [1902-1976], cujo grande mérito, ao lado do clima
(raro) de liberdade política e convivência democrática (Juscelino foi o único
presidente com consciência verdadeiramente democrática, no sentido pleno
da palavra), foi o de ter disseminado a idéia de modernidade num país
cevado em práticas arcaicas e retrógradas. A geração do Cinema Novo era
constituída de adolescentes, mas, de modo geral, atenta e participante (até
porque muitos vinham da experiência do jornalismo), e sentiu que era o

11
“Agora, ao apresentar este livro ao público brasileiro, percebo as deficiências de meu trabalho: muitos meses
se passaram e, por outro lado, mudou a perspectiva deste continente. Vista de Paris, Cuba não passa de uma ilha
longínqua. Pode atrair-nos, mas somente a energia de seu povo é capaz de nos empolgar; nossos problemas
diferem completamente dos seus – a França é uma antiga nação colonialista, ao passo que Cuba é uma colônia
que se libertou. Em toda parte, no Brasil – na Bahia, no Rio, em São Paulo, em Araraquara – encontrei uma
juventude arrebatada, cuja primeira pergunta era sempre: “E Cuba ?” E, apesar de todas as características que
distinguem um país do outro, acabei compreendendo que falar aos brasileiros sobre a ilha rebelde cubana era
falar deles próprios.” (os grifos são nossos). SARTRE, J. – P. Op. cit. p 7
89

momento, no convulsionado início da década de 60, de assumir uma


posição histórica. Foi precisamente essa consciência de modernidade legada
pelo juscelinismo (1956-1960) que os impeliu a usar como meio de
expressão um instrumento tecnologicamente tão avançado como o cinema,
desvinculando-o das tradições literárias que marcaram as gerações
precedentes. (GOMES, 1997, pp. 142-3)12

Os anos JK devem ser associados a dois aspectos: uma “consciência de modernidade”,


reconhecendo que, de fato, o país ainda continuava atrasado e, por outro lado, a sensação de
que era possível e necessário transformar tal situação. Soma-se a isso a experiência de Cuba.
Portanto, para aqueles jovens, se uniu a vontade de mudança com uma possibilidade efetiva
desta transformação. À semelhança de Gonzaga, podemos assistir ao ruir de um modelo, que
entendemos como “pensamento”, que ficou conhecido sob o nome de “populismo”.

Conceitualmente, o populismo é definido como um período de transição. Assim, Ianni


escreve:

(...) o populismo latino-americano parece corresponder à etapa final do


processo de dissociação entre os trabalhadores e os meios de produção.
Corresponde à época da constituição do mercado de força de trabalho, pela
formalização das relações de produção de tipo capitalista avançado. Nessa
ocasião, as massas trabalhadoras estão abandonando os padrões sócio-
culturais criados e vigentes quando predominavam as oligarquias. Os
valores culturais (religiosos, políticos, econômicos) ainda impregnados do
espírito da comunidade são pouco a pouco abandonados e substituídos por
valores criados no ambiente urbano e industrial. No nível dos processos
sócio-culturais que lhe são inerentes, o populismo exprime um ponto
avançado no processo de secularização da cultura e do comportamento. (...)
Em outros termos, o valor de uso submerge no valor de troca. (IANNI, 1991,
pp. 9-10)

Como bem assinala Ianni, os fenômenos de massa, principalmente o peronismo,


forçaram os primeiros teóricos do populismo a entender as transformações nas sociedades
latino-americanas. Esses autores (Gino Germani, Torcuato S. Di Tella e Jorge Graciarena)
encaram o populismo como uma passagem do que chamam de “sociedades tradicionais” a
uma “sociedade industrial”, trabalhando com conceitos de mudança social, modernização e
democratização. As sociedades latino-americanas são encaradas como sociedades duais, em
que processos não-contemporâneos se encontram numa simultaneidade. Com o êxodo rural,
há uma transformação na classe proletária, até então composta por imigrantes europeus, que
traziam de seus países os instrumentos de luta, como o socialismo e o anarquismo. Esse novo
proletário, recém-saído do campo, ainda não possui as condições psicossociais do
comportamento urbano, e vive um “efeito de deslumbramento” da vida na cidade, sendo
movido por uma psicologia de ascensão social. Essa elevação do “status social” conduz tal
proletário a se apropriar de um pensamento tipicamente individualista, e abandonar os valores

12
Numa entrevista a Cahiers du Cinéma, Glauber reconhece: “Je pense qu’il faut faire les choses. C’est ce que
pensait Kubistscheck quand il disait: «Il faut faire Brasília». Les économistes disaient que Brasília serait l’échec
économique du Brésil. De fait, la dévaluation a été telle que ça a provoqué une crise économique. Mais Brasília a
été la révolution culturelle du Brésil; aprés cela, le Brésil a pu se débarasser de son complexe du colonialisme.
L’éveil politique et la conscience du sous-développement datent de Brasília. Ce qui est assez contradictoire car
Brasília c’était une sorte d’Eldorado, la possibilité pour les Brésiliens de créer eux-mêmes quelque chose. Si je
parle de ça, c’est aussi parce que le cinéma brésilien est né avec Brasília alors que personne n’y croyait».
Cahiers du Cinéma nº 214, jul 1969, p. 22
90

comunitários do campo ou a ignorar os interesses de classe pelos quais tanto lutavam os


imigrantes europeus. Por outro lado, a sociedade urbana ainda não possuía amadurecidas as
instituições políticas, como um autêntico sistema de partidos políticos, adequadas à
mobilização e incorporação dessas massas. Portanto, não se torna possível o alicerçamento de
um verdadeiro quadro da democracia representativa. Essa imaturidade institucional do Estado
latino-americano abre espaço para o surgimento de líderes carismáticos, que através de seu
poder personalista, algo tipicamente agrário, é capaz de manipular as vontades das massas,
sustentando-se politicamente. Portanto, o populismo é concluído como um processo singular
de modernização da América Latina, ocorrendo um “desvio histórico” na consolidação das
instituições democráticas do continente.

Podemos notar que tais autores estudam os movimentos de massa e o governo de


caráter populista sob as bases de conceitos europeus. Portanto, o esforço de Ianni e Weffort13
é pensar o populismo em sua singularidade, ou seja, fora de parâmetros teóricos elaborados
para a Europa e os Estados Unidos. E, nesse sentido, é um erro, por exemplo, acusar o
peronismo de um movimento fascista.

Dias critica esses dois estudiosos, sobretudo em suas concepções de “política de


massas”, atrelando-o à idéia de “manipulação”, através do fenômeno dos líderes
carismáticos.14 Preocupada em estudar a chanchada dos anos 1950, a proposta de Dias é
acabar com a leitura clássica entre chanchada e manipulação de massas. Contudo, os citados
autores não são tão simplistas. Não se trata mais de um aspecto puramente personalista, em
que tais políticos, de modo cínico e hipócrita, manipulam as vontades das massas - a
caricatura do político populista que vemos em tantos filmes. O populismo não pode ser
explicado como uma prática demagógica da política, pelo contrário, esses líderes carismáticos
somente puderam se manifestar devido a certas conjunturas históricas de nossas sociedades. E
como Weffort bem insiste, se o líder populista manipula as massas, é que essas realmente
aspiram a certas satisfações que são realmente demandadas. Ou seja, é um equívoco imaginar
o populismo como pura manipulação. Dessa forma, o populismo é uma prática política
extremamente instável. Se o Estado populista se define como um compromisso entre
diferentes setores da sociedade (o conceito de “vazio político” de Weffort), haverá um
momento histórico em que certa classe irá impor sua hegemonia. E podemos dizer mais, como
afirma Ianni, o populismo, se consolida nas massas populares urbanas, despertando interesses
do proletariado que podem “fugir do controle”. E aqui, Ianni critica a esquerda latino-
americana de não ter conseguido criar uma relação com as massas, fora dos quadros do
populismo. O que queremos frisar é que a tese de Dias possui um ponto fraco e outro forte. O
ponto fraco, se deve a uma leitura não completa da teoria de Ianni, que compromete a sua
argumentação. É significativo o fato de ser estudado apenas um livro de Ianni, O colapso do
populismo no Brasil15, que é da segunda metade dos anos 1960, no calor da hora do pós-
Golpe de 64; passando desapercebido o posterior, o célebre livro já citado A formação do
Estado populista na América Latina, que é da primeira metade dos anos 1970, sob o impacto
das Teorias da Dependência. O aspecto forte é o uso, não tanto articulado, de uma outra
leitura do populismo, o da sofisticada interpretação de E. Laclau16, com a qual concordamos.
Laclau, partindo de uma apropriação de conceitos althusserianos, se empenha em abrir uma

13
WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. 3 ed Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
14
DIAS, R. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1993
15
IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971
16
LACLAU, E. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo.Trad. João Maia e
Lúcia Klein. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978
91

discussão puramente conceitual sobre o “populismo”, que é um termo vago e difundido (um
problema semelhante ao de Glauber em relação ao “Cinema Novo”), criticando as
interpretações de Ianni e Weffort por as atrelarem necessariamente a um fenômeno social e
histórico específico, a chamada “industrialização por substituição de importações”. Não
estamos preocupados em buscar um conceito apropriado de “populismo” e o seu uso no caso
particular brasileiro, mas em pensar a relação de Glauber com a chanchada.

Lembremos que Glauber não está mais preocupado em pensar a chanchada, usurpando
o leitor de uma definição da mesma e do motivo da rivalidade do Cinema Novo com ela.
Porém, supomos através de seu livro que, ao afirmar que está ocorrendo um processo de
industrialização do cinema brasileiro, a chanchada, encarada como uma etapa histórica
superada, é um cinema pré-industrial. Assim, podemos concluir que: o Cinema Novo está
comprometido com a modernização do país e, portanto, a sua rivalidade inicial com a
chanchada se deve a um “princípio histórico”, ou seja, o compromisso do Cinema Novo é
com uma missão histórica atribuída, de um modo ou de outro, ao cinema em relação ao nosso
país. Portanto, se os “cinemanovistas” são progressistas, a luta inicial com a chanchada se
deve ao fato de ela ser encarada como um obstáculo a ser superado para que o país se
modernize de fato (lembremos do artigo, no qual Glauber frisa o nosso
pseudodesenvolvimento). Por outro lado, concordamos que era comum na época a
interpretação do populismo como uma mera “manipulação de massas”, o que dá espaço à
citada vinculação, criticada por Dias, da chanchada com essa leitura. Contudo, discordamos
de que a leitura de Glauber seja tão simplista assim.17 O que queremos frisar é a passagem do
“Cinema Clássico” para o “Moderno”, que entendemos como fundamental para Glauber,
senão o cineasta baiano não formularia a sua conceitualização de “Cinema Novo” através do
uso do termo “cinema de autor”. Portanto, a mencionada missão histórica do Cinema Novo
também se processa em termos estéticos, apontando para o problemático dilema de Martins (a
relação do artista engajado com o público). O beco sem saída em que cai Glauber se deve ao
fato de ele formular a “problemática brasileira” ainda em moldes políticos clássicos. Como já
afirmamos, estamos diante de uma “ausência de conceitos”. Portanto, seguindo a trilha aberta
por Gomes, como pensar essa “singularidade” presente nos anos JK?

Posto isso, resumimos o pensamento “juscelinista” nos seguintes termos de Limoeiro


Cardoso:

O subdesenvolvimento não é entendido como resultante de nenhum


determinismo que distinguisse, por fatalidade, alguns países dos demais. Ao
contrário, o quadro apresentado é de relativização da miséria em que se
encontram esses países: ela pode ser ultrapassada, é mesmo fatal que o seja, e
a mentalidade do desenvolvimento deverá fazer com que esse destino se
cumpra rapidamente. (...) Não somos subdesenvolvidos porque devêssemos
sê-lo ou porque não tenhamos condições de deixar de sê-los. Diante da técnica
moderna, as barreiras existentes, no que diz respeito a recursos ou a
produtividade, são perfeitamente transponíveis, e cada vez mais facilmente.
Indispensável é se dispor a realizar o esforço para alcançá-la. (CARDOSO,
1978, pp. 93-4)

Portanto, a fonte dos problemas nacionais, e entre elas, a dificuldade de se


implementar a “democracia representativa” no moldes clássicos (ou seja, o fenômeno do
17
Numa entrevista a Zuenir Ventura, em 1968, Glauber define “populismo”, na arte, como “falar coisas simples
que o povo entenda”. Portanto, partindo desta definição, não somente a chanchada é interpretada como
“populista”, mas também a “arte engajada” nos moldes do CPC. ROCHA, G. Op. cit. p. 100
92

populismo) é a miséria. Ela não somente deve como pode ser erradicada, sendo o
desenvolvimentismo uma “mudança da ordem dentro da ordem”, conforme Limoeiro Cardoso,
enfatizando os perigos das rupturas no quadro político institucional, como era visto o
comunismo. O Brasil estará ao lado das grandes nações ao conseguir superar esse problema,
utilizando-se das atuais técnicas e da associação com o capital estrangeiro, em áreas em que
sejam convenientes ao país. Segundo esse pensamento, o nacionalismo possui um papel
preponderante pelo fato de aliar os segmentos sociais, ao promover, sem rupturas políticas (“a
mudança da ordem dentro da ordem”), o processo de industrialização do país, retirando-o de
seu estado atrasado. Os chamados “segmentos sociais ativos” podem ser resumidos em: a
“burguesia nacional”, a “pequena burguesia” e a “massa proletária”. Seriam esses os
segmentos convocados pelo Estado de JK a realizarem a missão de superar a condição
primitiva que assolava o país, colocando-o no patamar historicamente reservado ao nosso
povo, democrático e trabalhador, manifesto em sua miscigenação e fraternidade. Essa
“ideologia do desenvolvimentismo” foi forjada num determinado espaço institucional, o
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) que, apesar de ter sido oficialmente criado
antes da chegada de Kubitschek à Presidência da República, pode ser entendido como o
criador e difusor das idéias de seu governo, assumindo uma função semelhante, embora de
outro modo, na conturbada gestão de 1961 a 1964 de João Goulart (1919-1976).

Segundo Toledo, um conceito era central nos isebianos: a alienação.18 Enquanto


conceito filosófico, esse termo foi criado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).
Significa uma etapa do Espírito, em que a consciência vê o fruto de sua própria criação como
algo hostil, submetendo-se a ele, ao invés de encará-lo como obra sua, ligada ao seu livre
desenvolvimento. Portanto, o Espírito se exterioriza na natureza e nas obras dos homens para
voltar-se a si como consciência desse processo (o Saber Absoluto). Hegel afirma que o estado
infeliz do homem se deve ao fato de seu ser estar dividido, ou seja, não há uma conciliação
entre a subjetividade e o universal. É necessário restabelecer a unidade perdida, visando a
libertação total do homem. É essa a função reservada à Filosofia, nas obras de maturidade de
Hegel.

Por sua vez, Karl Marx (1818-1883) utiliza esse conceito, mas o interpreta de outro
modo. Hegel não a dotava de um sentido negativo, pois a alienação era uma etapa, um
momento do devir total. Marx adotara um sentido mais ético, pois a alienação é vivida, dando
ao seu pensamento o compromisso de buscar uma destruição da alienação. As suas idéias são
impregnadas de um sentido de luta. Para Hegel, esse processo é efetivado pelo Saber
Absoluto, que é o resultado e, ao mesmo tempo, a supressão das alienações. Ele visa a um
sentido mais otimista, pois a exteriorização da consciência é um momento indispensável de
uma marcha progressiva. Assim, ocorre a totalidade humana, quando a essência se reúne,
porém enriquecida. Em Marx não existe esse acúmulo positivo mas, a intenção de reduzir a
alienação, que é uma experiência concreta dos homens. Não existe um otimismo progressista,
pois não há esse desenrolar da essência humana na História, já que o homem não possui
essência, ele é histórico. Na verdade, a leitura de Marx ao conceito de Hegel é algo um tanto
problemático, pois depende da interpretação dos comentadores e do uso nas fases da obra de
Marx. Por exemplo, somente no século XX, descobriu-se um texto de juventude, que foi
intitulado de Manuscritos de 1844, desconhecido inclusive por Lênin (1870-1924). Esse texto
exerceu um importante papel numa re-leitura do pensamento marxista, revelando uma face
filosófica até então desconhecida do pensador alemão, apenas conhecido por suas secas

18
TOLEDO, C. N. ISEB: fábrica de ideologias. 2 ed. Campinas: Unicamp, 1997
93

análises econômicas das suas obras de maturidade. O hegelianismo é bem acentuado nesses
escritos de juventude.

Assim, o uso do conceito de “Alienação” pelo ISEB pode ser lido como tributário
desse momento de re-leitura do pensamento marxista, mas com um aspecto bem singular: é
colocado em termos nacionais. Nem Hegel nem Marx o utilizavam desse modo. Portanto, um
“povo-nação” pode ser “alienado”, pois o seu ser não é conhecido, sua essência está cindida
pelo fato de utilizar um modelo exterior, o de uma nação estrangeira. Culturalmente, o
subdesenvolvimento também é interpretado nesses moldes já que o “ser brasileiro” está
deslocado, pois o seu referencial são as nações centrais que o condicionam do exterior:

O subdesenvolvimento não é pensado em termos de capitalismo dependente,


mas de nação dependente; nem o desenvolvimento como a realização do
capitalismo na periferia. [como nas Teorias da Dependência, dos anos 1970]
Omitindo-se tais determinações, só se poderia concluir que o
desenvolvimento econômico da nação representaria o fim de todas as suas
dependências ou alienações. (TOLEDO, 1997, p. 89)

Unido a esse conceito, também vamos encontrar os termos “colonial” ou


“semicolonial”. Como vimos em Toledo, há um pensamento em termos de “nação” e,
portanto, a dicotomia “Metrópole-Colônia” é utilizada para se criar uma linguagem que
expresse o país como uma nação dependente, ou seja, ele ainda não alcançou a sua autonomia.
A idéia de “pacto colonial”, que já vimos no Capítulo 1, é utilizada, apesar de seu uso
indevido, rigorosamente falando em termos jurídico-políticos, para denunciar a situação do
Brasil, visando sublinhar a necessidade de sua transformação. Contudo, já que o problema é
posto em termos de “nação”, o nacionalismo é pregado como a ideologia de conscientização
dessa situação e, mais, como a alavanca necessária para tal mudança (nos termos de Toledo, a
ideologia como ante-factum e não no sentido marxista19).

Assim, esse paradigma “colonial” será utilizado para pensar a Revolução Cubana. A
ilha caribenha alcança a sua autonomia enquanto “nação” e “povo” por intermédio dessa
transformação social, e inaugura um novo regime político. Contudo, como já vimos, trata-se
de um procedimento extremamente singular. Diante do mundo bipolarizado da Guerra Fria
(1946-1989), o surgimento de uma mudança sociopolítica fora dos moldes dicotômicos do
cenário internacional é algo que intriga a todos, de ambos os lados. É nesse contexto que as
ex-colônias, no sentido rigoroso do termo jurídico-político, travam a luta por suas
independências, e rompem com uma visão de mundo criada e sistematizada a partir das Luzes,
colocando em cena outros modos de se pensar conforme culturas e povos não-ocidentais. Em
suma, o mundo já não é mais pensando como um Todo, que é disputado por dois pólos
contraditórios e excludentes (capitalismo x socialismo). A Modernidade, até então pensada
nos moldes iluministas, começa a ser questionada... A ausência de conceitos, à qual nos
referimos, é um sintoma dessa transformação que Glauber irá tomar pela mão, sendo coerente
com a sua visão de “missão histórica”.

19
Conforme o célebre livro póstumo A ideologia alemã de Marx e Friedrich Engels (1820-1895) divergindo da
leitura materialista de Ludwig Feuerbach (1804-1872). Assim, não podemos esquecer que a ideologia é
extremamente útil para a manutenção de uma ordem social, historicamente construída, já que tal situação é
“naturalizada”, ao se descaracterizar a sua verdade histórica. Portanto, para Toledo, o ISEB realiza o sentido
inverso, pois a “ideologia do desenvolvimentismo” é proclamada como uma ferramenta para se criar uma
situação que ainda não se realizou. Desse modo, o nacionalismo isebiano é lido, pelo autor, como um equívoco
conceitual, pois a ideologia precede as condições concretas e históricas.
94

Em 1961, é publicado um livro, que se transforma num texto-chave: Les damnés de la


terre (“Os condenados da terra”). 20 O seu autor é um médico psiquiatra antilhano, que se
engajou na luta de independência da Argélia, chamado Frantz Fanon (1925-1961). O livro em
questão é o seu último, escrito às vésperas de sua morte. Diante da leucemia que consumia a
sua saúde, Fanon decide organizar textos e articular idéias, dando origem a esse livro vigoroso
e ímpar, considerado por Said como “uma obra híbrida – ensaio, ficção, análise filosófica,
relato de caso psicológico, alegoria nacionalista, transcendência visionária da história”.21 Em
pouco tempo, o livro de Fanon adquire uma repercussão internacional. O que queremos frisar
é que Fanon foi transformado no maître à penser de toda uma geração devido ao seu êxito em
preencher o que chamamos de “ausência de conceitos”. As suas idéias conseguiram estruturar,
conceitualizar e reordenar o que estava, de um modo um tanto amorfo, presente nas cabeças
de seus contemporâneos, sobretudo nas da “juventude arrebatada” que interpelou Sartre. Eis o
ponto de onde queremos partir. Afirmamos que tudo estava mudando, com bases em
parâmetros até então impensados. O pensamento já não estava mais sendo sistematizado
conforme um aspecto sumamente privilegiado, o ocidental branco cristão. Citaremos Said que
resume da melhor forma esse processo:

Para os europeus, a sensação de uma tremenda e desconcertante mudança de


perspectiva na relação Ocidente e não-Ocidente era inteiramente nova,
desconhecida tanto na Renascença européia quanto na “descoberta” do
Oriente, três séculos mais tarde. Pense-se nas diferenças entre a recuperação e
edição dos clássicos gregos com Poliziano, na década de 1460 ou Bopp e
Schlegel lendo gramáticos sânscritos na década de 1810, e um orientalista ou
politicólogo francês lendo Fanon durante a Guerra da Argélia em 1961, ou os
Discours sur le colonialisme [Discurso sobre o colonialismo], de Césaire,
quando surgiram em 1955, logo após a derrota dos franceses em Dien Bien
Phu. O pobre sujeito não só está lendo nativos que combatem contra seu
exército, o que nunca acontecera com seus predecessores, como ainda está
lendo um texto na língua de Bossuet e Chateaubriand, recorrendo a conceitos
de Hegel, Marx e Freud para incriminar a própria civilização que os gerou.
Fanon vai ainda mais além ao inverter o paradigma até então aceito, segundo
o qual a Europa proporcionou modernidade às colônias, afirmando, pelo
contrário, que não só “o bem-estar e o progresso da Europa [...] [foram]
construídos com o suor e o cadáver de negros, árabes, indianos e amarelos”,
mas também “a Europa é literalmente a criação do Terceiro Mundo” (...). Para

20
FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: Gallimard, 1991. Há uma edição brasileira: FANON, F. Os
condenados da terra. Trad. José Laurêncio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
21
SAID, E. Cultura e imperialismo. p. 334. A obra de Fanon é pouca numerosa, mas extremamente densa.
Compõe-se de quatro livros. O primeiro, publicado em 1952, ou seja, antes de ele ir à Argélia, é Peau noire,
masques blancs, onde denuncia o racismo, elemento constitutivo do colonialismo, estudando a relação
Branco/Negro, especificamente nas Antilhas. Dentro do esforço de guerra, publica em 1959, L’an V de la
révolution algérienne que é re-publicado sob o título Sociologie d’une révolution, possuindo, portanto, dois
títulos. Aqui, Fanon analisa as transformações na sociedade argelina devido à guerra, mudando os hábitos da
juventude e das mulheres, o papel revolucionário da Rádio “La Voix de la Algérie combattante” e discute a
relação do médico francês com o paciente árabe e o futuro dos colonos brancos na Argélia independente. Em
1961, poucos meses antes de morrer, vem à luz a sua obra-prima Les damnés de la terre, que descreve o
funcionamento do sistema colonial e o processo de sua destruição, abrindo as portas para uma nova humanidade.
O sucesso do livro é imediato. Transforma-se numa obra cultuada, ao sintetizar as idéias fervilhantes na época
acerca do processo revolucionário da descolonização, preparando um solo fértil para as chamadas teorias do
“terceiro-mundismo”. Diante da consagração póstuma de Fanon, em escala mundial, os editores decidem
publicar uma coletânea de seus textos políticos em 1964, intitulada Pour la révolution africaine. São artigos que
cobrem o seu período intelectual mais rico, da publicação de seu primeiro ao último livro, dando ao leitor a visão
do amadurecimento de suas idéias políticas.
95

concluir esse absurdo reordenamento das coisas, encontramos Sartre ecoando


Fanon (e não vice-versa), ao dizer: “Não há nada mais coerente do que um
humanismo racista, visto que o europeu só foi capaz de se tornar homem
gerando escravos e monstros. (SAID, 1999, pp. 251-2)

A obra de Fanon pode ser lida sob vários modos, pois possui uma extrema riqueza e
uma profunda perspicácia. Porém, como estamos preocupados em analisar as querelas teóricas
de Glauber, vamos analisar conceitos do pensador caribenho para dialogá-los com o cineasta
baiano. Portanto, para articular com o pensamento glauberiano, vamos retirar de Les damnés
de la terre três pontos: a violência, o nacionalismo e o papel da cultura no processo de
libertação.

A idéia que abre a obra-prima de Fanon está sintetizada na seguinte frase: “la
décolonization est toujours un phénomène violent”. Daremos voz ao autor:

La décolonisation ne passe jamais inaperçue car elle porte sur l’être, elle
modifie fondamentalement l’être, elle transforme des spectateurs écrasés
d’inessentialité en acteurs privilégiés, saisis de façon quasi grandiose par
le faisceau de l’Histoire. Elle introduit dans l’être un rythme propre,
apporté par les nouveaux hommes, un nouveau langage, une nouvelle
humanité. La décolonisation est véritablement création d’hommes nouveaux.
Mais cette création ne reçoit sa légitimé d’aucune puissance surnaturelle:
la «chose» colonisée devient homme dans le processus même par lequel elle
se libère. (o grifo é nosso) (FANON, 1991, pp. 66-7)

Segundo Fanon, a descolonização se define como uma transformação total no


comportamento e na estrutura do colonizado. Fanon sublinha o aspecto ontológico para
indicar a radicalidade desse processo, que altera a própria definição do colonizado, dando-lhe
um outro sentido e função para a sua existência sobre a terra. Não somente o colonizado se
transforma em relação ao colonizador, mas em todas as suas relações, como as entre pais e
filhos e as entre homens e mulheres.22 Portanto, trata-se de uma transformação em toda a sua
globalidade. Assim, como já vimos na “juventude arrebatada”, que possuía a nítida
consciência de mudança e uma arraigada certeza de que é possível tal mudança, podemos
constatar, ao longo de todo o livro de Fanon, a mesma sensação de um momento de ruptura,
de extrema singularidade de um determinado período da História. O autor se vê como
testemunha e, mais, como partícipe privilegiado de uma ocasião na qual está em jogo não
somente o futuro do povo argelino, mas o da humanidade inteira. É significativo o uso do
plural no título, pois Fanon não está somente analisando a dura e sangrenta luta travada na
Argélia, mas a de todos os povos que se sublevam contra o colonialismo, modificando o
modo de se pensar o mundo e, por conseguinte, de agir sobre ele.

Sendo um “processo violento”, a primeira definição da descolonização é exterminar o


colonialismo. Pois bem, o que é o colonialismo? A sua essência se resume numa palavra:
violência. Para Fanon, “o colonialismo é um mundo maniqueísta”, “é um mundo cortado em
dois”, onde podemos ver duas essências radicalmente opostas colocadas em relação de modo
direto. Aliás, já vimos em Said, em seu conceito de “orientalismo”, essa dicotomia entre duas
essências imutáveis e radicalmente opostas. Num universo de alteridades absolutas, a
sociedade colonial funciona de um modo quase que orgânico, irracional:

22
Em dois artigos, L’Algérie se dévoile e La famille algérienne, Fanon estuda as mudanças ocorridas nos hábitos
e nas relações familiares e maritais devido à luta de independência. FANON, F. Sociologie d’une révolution:
L’an V de la révolution algérienne. Paris: Maspero, 1968. pp. 16-50; 83-106
96

«(...) le colonialisme n’est pas une machine à penser, n’est pas un corps doué de raison. Il est
la violence à l’état de nature et ne peut s’incliner que devant une plus grande violence.» (FANON,
1991, p. 92)

Importa frisar que o aspecto fisiológico utilizado pelo autor é mais que uma metáfora.
O homem colonizado é um “subhomem”, pois os efeitos do colonialismo não são apenas
psíquicos, mas somáticos. O corpo do colonizado é um organismo embrutecido, quase
anulando a sua “humanidade”. Aliás, o autor afirma ser essa a meta do colonizador: a
transmutação dos povos autóctenes em seres animalizados. Assim, Fanon enfatiza
clinicamente o alto grau de tensão muscular que existe nesses homens. Animalizados pelas
condições em que vivem, o seu estado psicofísico passa a ser utilizado abundantemente pelas
teorias racistas do colonialismo. Desse modo, seguindo o raciocínio da citação acima, o
colonialismo é uma máquina, cuja essência é a violência que move esse aparato, produzindo
monstros. A perspicácia de Fanon o faz apontar que a violência pode adquirir vários modos.
Portanto, o grande perigo do colonialismo se deve ao fato de ser uma máquina cambiante. As
formas de resistência do colonizado, pois o grande mito do colonizador é crer que não há uma
resposta por parte do colonizado, vão aos poucos modificando o aspecto do colonialismo.
Porém, trata-se da mesma máquina - a violência em seu estado bruto. Assim, o autor chama a
atenção para os perigos ardilosos criados pelo colonizador. Ele adverte que o colonialismo
não cede nada de boa vontade, pois o esforço do colonizador é prosseguir com o seu
monopólio da violência. Portanto, todo o direito que o colonizado recebe do colonizador se
deve a uma árdua conquista por parte da resistência e, em muitos casos, de uma estratégia por
parte do colonizador. Assim, podemos entender o grau de violência que é a descolonização,
pois o seu objetivo é substituir uma atitude global, por outra radicalmente nova, sem passar
por uma fase de transição. Ou seja, trata-se de transformar o mais rápido possível uma
estrutura ontológica antes que o colonizador reaja.

É extremamente relevante interrogar o seguinte: para quem Fanon escreve? Ele se


dirige em toda a sua obra (e não apenas em Les damnés de la terre) ao colonizado. Ele está
preocupado em refletir o que é o colonialismo e como destruí-lo. Como bem assinala Sartre
em seu “Prefácio” (citado por Said), o escandaloso, para o público francês, do livro de 1961,
se deve ao fato de que o europeu é o objeto de estudo, e não o sujeito. Pela primeira vez, o
europeu se vê na estranha posição de ser analisado, dissecado e condenado sem perdão por
um não-europeu:

Un ex-indigène «de langue française» plie cette langue à des exingences


nouvelles, en use et s’adresse aux seuls colonisés: «Indigènes de tous les
pays sous-développés, unissez-vous!» Quelle déchéance: pour les pères,
nous étions les uniques interlocuteurs; les fils ne nous tiennent même plus
pour des interlocuteurs valables: nous sommes les objets du discours. Bien
sûr, Fanon metionne au passage nos crimes fameux, Sétif, Hanoï,
Madagascar, mais il ne perd pas sa peine à les condamner: il les utilise.
S’il démonte les tactiques du colonialisme, le jeu complexe des relations qui
unissent et qui opposent les colons aux «métropolitains» c’est pour ses
frères; son but est de leur apprendre à nous déjouer. (o grifo é do autor)
(SARTRE23, 1961 apud FANON, 1991, p. 40)

23
Esse texto também se encontra em SARTRE, J. – P. Situations, V: colonialisme et néo-colonialisme. Paris:
Gallimard, 1964. pp. 167-193
97

Portanto, o referencial branco ocidental cristão é rompido, como foi resumido por Said,
criando laços de solidariedade entre os colonizados. Pois bem, como pensar a destruição do
colonialismo? O que pessoas de culturas e povos tão distintos como um árabe do Maghreb,
um libanês, um senegalês, um malgaxe, um vietnamita, um polinésio e um caribenho possuem
em comum? A resposta é o fato de estarem sob a bandeira tricolor francesa. O primeiro ponto
importante é constatar que o colonialismo é uma máquina que funciona do mesmo modo em
qualquer lugar. Assim, podemos compreender como Fanon, sendo um negro antilhano, é
capaz de se engajar na luta de independência de um país árabe norte-africano. O mecanismo
da violência, movido pelo racismo que ele conheceu na Martinica, é exatamente o mesmo na
Argélia. Em suma, o colonizador busca anular ao máximo todas as singularidades dos povos
espalhados pelos continentes, para transformá-los em seres inferiores. Inicialmente, a primeira
forma de definição do colonizado é em referência ao colonizador. As primeiras análises do
colonialismo partem da dialética do Senhor e do Escravo de Hegel. Para o filósofo alemão, há
um confronto entre duas consciências que lutam até a morte por seu reconhecimento até que
uma cede à outra. Surge o senhor que se define como negação do escravo. Contudo, tal
conflito é superado pela afirmação da igualdade pelo escravo, ocorrendo a negação da
negação. Esse processo é uma realização do Espírito Absoluto que, segundo Hegel, sua
síntese ocorre na Revolução Francesa. A crítica do colonialismo utiliza esse arsenal teórico
mas, em vez de se referir a princípios filosóficos desenrolados pela Idéia, trata-se de relações
sociais, políticas e econômicas.24

É relevante notar que Fanon já em sua primeira obra, critica essa interpretação.25
Enquanto o senhor hegeliano busca reconhecimento, o colonizador europeu busca
simplesmente sugar as riquezas do colonizado. Para existir reconhecimento, é necessário uma
relação prévia entre iguais, o que não ocorre na expansão colonial. Assim, o negro se vê
diante da seguinte proposição: ser homem é “ser branco”, e portanto, o negro “não existe”, é
apenas um ser “falhado” e condenado ontologicamente a essa carência. O mesmo
procedimento ocorre com todos os povos subjugados pelo colonialismo. É por isso que, em
seu último livro, Fanon utiliza o linguajar ontológico, para dar a dimensão necessária do
processo de descolonização. O colonizado, de um ente sem essência, se coloca na posição de
demiurgo de si mesmo.

O nacionalismo possui uma função relevante nesse processo. A primeira reação do


colonizado é irracional, como uma “distensão muscular”. Por vezes, essa contra-violência, em
resposta à violência do colonizador, se volta para o próprio colonizado. O colonialismo
alimenta as rivalidades tribais e religiosas como um procedimento de desunião entre os
colonizados. Contudo, aos poucos, essa violência passa a ser utilizada racionalmente. Fanon
analisa os partidos nacionalistas nos países subdesenvolvidos. O seu problema é a sua
estrutura e conceito partirem de modelos europeus, não possuindo eficácia na luta de
independência. Fanon é um ferrenho crítico das burguesias locais. Nascidas dos quadros
coloniais, elas não estão vinculadas ao setor produtivo, exercendo uma mera função de
intermediários da burguesia metropolitana. Portanto, o país recém-independente não pode cair
nas mãos dessa “sub-burguesia”, que abriu mão de seu papel histórico, comprometendo o
futuro da jovem nação. O exemplo da América Latina é amiúde citado como uma advertência

24
A melhor interpretação seguindo esse pensamento hegeliano se encontra em MEMMI, A. Retrato do
colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Trad. Roland Corbisier e Mariza Coelho. 2 ed, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977. É importante lembrar o contexto intelectual do pensamento francês dos anos 40, com
as interpretações da obra de Hegel por Jean Hyppolite e Alexander Kojève. Nesse mesmo período
ocorre a tradução francesa dos já referidos Manuscritos de 1844, do jovem Marx.
25
FANON, F. Peau noire, masques blancs. Paris: Seuil, 1974. pp. 175-0
98

aos novos países africanos e asiáticos.26 Portanto, o conceito de “nacionalismo” não pode ser
lido em sua definição clássica, já que “a fase burguesa” nos países sub-desenvolvidos é
impossível. Contudo, isso não significa cair no outro extremo, os tribalismos que perturbam a
África. O conceito de nação deve vincular-se ao trabalho coletivo de modernização da
economia e da melhoria das condições de vida do povo. Portanto, o país recém-independente
deve rapidamente abandonar a “consciência nacional”, que teve uma função importante no
processo de emancipação, por uma “consciência política e social”.27 É graças a esse raciocínio
que Fanon prega a necessidade de uma unidade entre os países subdesenvolvidos sublinhando,
no caso, a importância de um pensamento pan-africanista. Apesar de cada novo país africano
possuir as suas particularidades, a união desses povos tornam o continente mais sólido e
combativo às armadilhas neo-coloniais. As experiências de cada país no combate à fome, ao
analfabetismo e às doenças infecciosas devem ser compartilhadas, consolidando uma
experiência de fraternidade entre os povos e uma compacta frente política desses países
pobres no contexto internacional. Somente assim é possível evitar os conluios com o ex-
colonizador, pois o colonialismo (ou a sua nova versão) é sistemático. Se ele retornar à África
nem que seja em um único país, todo o continente corre perigo... Assim, o “esforço nacional”
está atrelado a uma “consciência política e social” e, portanto, o conceito de Nação deve ser
interpretado como uma construção (o “esforço nacional”), realizada por pessoas de todas as
camadas sociais, visando criar “homens novos”. Ou seja, uma construção vinculada às
perspectivas de uma nova humanidade em uma distinta etapa da História.

Nessa construção, o papel do intelectual é importante, e Fanon reserva um capítulo


para discutir o que é a “cultura nacional” para os povos colonizados. Estudando os rumos da
literatura nas colônias (usando como modelo, que depois ele aplica às outras artes), Fanon
descreve a transformação do intelectual colonizado, resumindo-a em “um panorama de três
tempos”.28 A primeira fase é o “assimilacionismo integral”, na qual o intelectual absorve, sem
quaisquer questionamentos, a cultura do colonizador. Ele, portanto, se define como um mero
homólogo da matriz metropolitana ocupando, de bom grado, uma posição inferior.

Na segunda fase, o intelectual colonizado se sente perturbado diante da cultura do


colonizador. Diante da miséria de seu povo, o intelectual colonizado se dilacera, pois a cor de
sua pele compromete suas idéias, pois é na cultura branca que está a residência do Espírito.
Para resolver esse dilema, ele mergulha no passado de seu povo. Assim, ele busca quebrar as
estratégias de embrutecimento do colonialismo. Fanon analisa a tática do colonizador em
homogeneizar as culturas africanas: não existem angolanos ou nigerianos; existem negros,
que antes do colonialismo, viviam num estado selvagem em suas superstições e fanatismos.

26
“Comment on le voit, la bourgeoise nationale de certains pays sous-développés n’a rien appris dans les livres.
Si elle avait mieux regardé vers les pays d’Amérique Latine, elle aurait sans nul doute identifié les dangers qui
la guettent. On arrive donc à la conclusion que cette micro-bourgeoise qui fait tant bruit est condamnée à
piétinier. Dans les payses sous-développés, la phase bourgeoise est impossible. Il y aura certes une dictature
policière, une caste de profiteurs mais l’élaboration d’une société bourgeoise se révèle vouée à l’échec. Le
collège des profiteurs chamarrés, qui s’arranchent les billets de banque sur le fonds d’un pays miserable, sera
tôt ou tard un fétu de paille entre les mains de l’armée habilment manouevrée par des experts étrangers. Ainsi,
l’ancienne métropole pratique le gourvenement indirect, à la fois par les bougeois qu’elle nourrit et par une
armée nationale, encadrée par ses experts et qui fixe le peuple, l’immobilise et le terrorise.» FANON, F. Op. cit.
p. 216
27
“Le nationalisme n’est pas une doctrine politique, n’est pas un programme. Si l’on veut vraimnet éviter à son
pays ces retours en arrière, ces arrêts ces failles il faut rapidement passer de la conscience nationale à la
conscience politique et sociale. La nation n’existe nulle part si ce n’est dans un programme élaboré par un
direction révolutionnaire et repris lucidement et avec enthousiame par les masses. Il faut situer constamment
l’effort national dans le cadre général des pays sous-développés.» (o grifo é nosso) Idem. pp. 245-6
28
Ibid. pp. 268-0
99

Antes da chegada do homem branco, o continente africano vivia numa “densa noite”, povoado
por bárbaros fetichistas e antropófagos. Homogeneização de culturas e da História; para o
colonizador existem apenas negros que foram resgatados de sua condição bruta do período
pré-colonial.

Ao tomar consciência do racismo, a primeira atitude do intelectual colonizado é


destruir a vergonha que sente por seu povo, voltando-se para o passado com o intuito de
resgatar culturas de civilizações africanas. Contudo, ele possui uma relação de exterioridade
com seu povo. Ocorre a racialização do pensamento pois, já que para os olhos azuis do
colonizador existem apenas negros, deve-se afirmar essa cultura negra, em suas diversas
manifestações. Contudo, Fanon denuncia a incompletude desse ato, pois acaba engendrando
um exotismo abstrato, graças ao seu passadismo. É na situação de miséria atual do povo, e
não em um passado glorioso que o intelectual deve retirar a força de seu pensamento,
engajando-se na luta de libertação. Eis a terceira fase, a de “combate”:

La culture nationale n’est pas le folklore où un populisme abstrait a cru


découvrir la vérité du peuple. Elle n’est pas cette masse sédimentée de gestes
purs, c’est-à-dire de moins en moins rattachable à la réalité présente du
peuple. La culture nationale est l’ensemble des efforts faits par un peuple sur
le plan de la pensée pour décrire, justifier et chanter l’action à travers
laquelle le peuple s’est constitué et s’est maintenu. La culture nationale, dans
les pays sous-développés doit donc se situer au centre même de la lutte de
libération que mènent ces pays. (FANON, 1991, p. 281)

Para Fanon, a cultura nacional não é uma essência ou uma coletânea de costumes e
hábitos. É a partir da libertação que o intelectual deve criar e engendrar a cultura. O problema
da segunda fase é o seu passadismo, se caracterizando em uma visão fechada, sistemática e
reacionária. O motivo principal disso é a cisão que ainda há entre o intelectual e o seu povo. A
conclusão de Fanon é que, sendo a descolonização um processo contínuo e aberto, a
libertação possui várias etapas. O autor afirma que o povo, diante das novas realidades criadas
pelo movimento libertário, se transforma mais rápido que o próprio intelectual, que é receoso
em abrir mão de conceitos já consolidados.29 Portanto, cabe ao intelectual se transformar para
mudar a sua relação com o seu povo. Assim, a própria definição de “cultura” deve ser distinta
pois a descolonização, como já vimos, é uma mudança de ordem global:

(...) Quels sont les rapports qui existent entre la lutte, le conflit – politique ou
armé – et la culture? Durant le conflit, y a-t-il suspension de la culture? La
lutte nationale est-elle une manifestation culturelle? Faut-il enfin dire que le
combat libérateur quoique fécond a posteriori pour la culture, est en lui-même
une négation de la culture? La lutte de libération est-elle, oui ou non, un
phénomène culturel?
Nous pensons que la lutte organisée et consciente entreprise par un peuple
colonisé pour rétablir la souveraineté de la nation constitue la manifestation
la plus pleinement culturelle qui soit. Ce n’est pas uniquement le succès de la
lutte qui donne par la suite validité et viguer à la culture, il n’y pas mise en
hibernation de la culture pendant le combat. La lutte elle-même, dans son
déroulement, dans son processus interne développe les différentes directions
de la culture et en esquisse de nouvelles. La lutte de libération ne restitue pas
à la culture nationale sa valeur et ses contours anciens. Cette lutte qui vise à

29
Uma interessante análise é o citado artigo L’Algérie se dévoile, onde o sentido do tradicional uso do véu se
transforma no transcorrer da guerra de independência (ver nota 36).
100

une redistribution fondamentale des rapports entre les hommes, ne peut


laisser intacts ni les formes ni les contenus culturels de ce peuple. Après la
lutte il n’y a pas seulement disparation du colonialisme mais aussi
disparation du colonisé. (FANON, 1991, p. 294)

Dessa forma, Fanon relaciona nação e cultura:

(...) La revendication nationale, dit-on ça et là, est une phase que l’humanité
a dépassé. L’heure est aux grands ensembles et les attardés du nationalisme
doivent en conséquence corriger leurs erreurs. Nous pensons au contraire
que l’erreur, lourde de conséquences, consisterait à vouloir sauter l’étape
nationale. Si la culture est la manifestation de la conscience nationale, je
n’hésiterai pas à dire, dans le cas qui nous occupe, que la conscience
nationale est la forme la plus élaborée de la culture.
La conscience de soi n’est pas fermeture à la communication. La réflexion
philosophique nous enseigne au contraire qu’elle en est la garantie. La
conscience nationale, qui n’est pas le nationalisme, est la seule à nous donner
dimension internationale. (FANON, 1991, pp. 295-6)

Fanon, ao sistematizar as três fases do intelectual colonizado, recorda que não


devemos condenar os nossos antepassados. Cada época possui os seus mecanismos
particulares de resistência e esses homens e mulheres não podem ser julgados a partir de
critérios atuais, ou seja, a da fase de combate. Estamos diante de um momento distinto, que
põe à deriva tanto o colonizador quanto o colonizado, pois a destruição do colonialismo
significa simultaneamente o fim dessas duas figuras. Assim, esses povos se definem como
“novos” e, portanto, eles próprios devem criar outros conceitos e procedimentos, distintos dos
formados e consolidados pelo branco ocidental cristão. Portanto, o conceito de cultura deve
ser radicalmente re-pensado. Podemos notar que para Fanon, a cultura é uma reflexão das
relações entre os homens de um povo. Contudo, não se trata de uma catalogação de hábitos,
pois o colonizado está em movimento constante (aliás, o autor frisa que ele é historicamente
lançado nessa “tormenta”) e, por isso, tais hábitos estão em rápida transmutação. A libertação
não pode ser encarada a partir de conceitos a priori, muito pelo contrário, ela é a parteira de
um pensamento processado pelo e através do ex-colonizado, visando a humanidade inteira. O
extermínio do colonialismo, que pensa a humanidade em dois pólos diametralmente opostos
(colonizador x colonizado), significa a formação de um outro modo de se pensar o mundo.
Isso é evidente na distinção que o autor faz entre “nacionalismo” e “consciência nacional”,
que nos pode auxiliar a pensar a Nação fora dos moldes totalizadores ao estilo teológico-
metafísico, descritos por Chauí.30 Portanto, todas as categorias tradicionais, incluindo as de
cultura e política, devem ser abolidas, pois diante dos nossos olhos se desenrola um
espetáculo sumamente original na História da humanidade. Assim, podemos concluir que: o
colonialismo é um processo irreversível. Uma vez que um certo povo cai nas engrenagens do
colonialismo, não há como voltar atrás. O erro do “folclorismo” é se agarrar ao passado

30
A admiração intelectual de Said por Fanon se deve a esse aspecto muito importante e perspicaz: “Fanon foi o
primeiro grande teórico do antiimperialismo a perceber que o nacionalismo ortodoxo seguia a mesma linha
aberta pelo imperialismo, que, parecendo conceder autoridade à burguesia nacionalista, estava na verdade
estendendo a sua hegemonia. Portanto, narrar uma história nacional simples é repetir, estender e também gerar
novas formas de imperialismo. Entregue a si mesmo, o nacionalismo após a independência irá “se esmigalhar em
regionalismos dentro da casca vazia do nacionalismo”. Os velhos conflitos regionais se repetem, um povo
monopoliza privilégios contra outro povo, reinstauram-se as hierarquias e divisões constituídas pelo
imperialismo, só que agora presididas por argelinos, senegaleses, indianos e assim por diante.” SAID, E. Op. cit.
p. 337-8
101

enquanto que a resposta correta é voltar-se para o presente do povo combatente, que se lança
furiosamente em direção ao futuro...

Desse modo, já podemos vislumbrar o quanto Fanon responde às inquietações do


jovem Glauber.

Afirmamos que Glauber, no início dos anos 60, estava diante de um grande problema:
definir o que é “Cinema Novo”. Podemos encontrar, definitivamente, a sua resposta num dos
seus mais célebres textos: Estética da Fome.31 Glauber o escreveu para o seminário “Terzo
Mondo e Comunnità Mondiale”, organizado pela Columbianum, durante a V Rassegna del
Cinema Latino-Americano, realizada em Gênova em janeiro de 1965. O tema, proposto pelo
secretário Aldo Viganó, era “Cinema Novo e Cinema Mundial”. Já vimos que em seu livro de
1963, Glauber esboça uma relação entre o cinema internacional e o brasileiro, lendo-a
segundo o termo de “cinema de autor”. Esse termo busca enfrentar o dilema exposto por
Martins, que pressiona a cabeça de Glauber, mas não consegue resolvê-lo totalmente. Por
outro lado, o conceito de mise-en-scène faz com que Glauber ponha o problema de Martins
em outros termos, conseguindo fugir da velha dicotomia “forma-conteúdo”, que ainda se
encontra presente em Cavalcanti e Viany. Isso é um grande mérito de Glauber, mas ele cai
num embaraço ao pensar o que seria tal mise-en-scène em “termos brasileiros”. O problema,
como mencionamos, é antigo e vasto pois o que se está discutindo é o conceito de
“brasilidade”. Mauro é apanhado como um modelo, frisando o uso do enquadramento e da
fotografia pelo cineasta mineiro. Contudo, o próprio Glauber amarra Mauro a uma situação
histórica. O fascinante, e ao mesmo tempo o embaraçoso, da problemática glauberiana é a sua
consciência do momentâneo; dito de outro modo, a sua percepção de que é urgente pensar o
significado de cinema brasileiro naquele determinado período histórico, no início dos anos
1960, após a exaustão da chanchada e da queda do cinema paulista. Glauber vê, como um
integrante ativo daquela “juventude arrebatada”, que as coisas já não eram mais as mesmas ao
seu redor. Portanto, os conceitos de Fanon são absorvidos e processados pela cabeça ávida do
cineasta baiano pelo fato de serem o que ele necessitava para articular a sua questão, re-
colocando-a em outros termos e apontando um caminho, escapando do beco sem saída em que
se encontrava. É comum encontrar nos estudos sobre Glauber a referência a Fanon, sobretudo
nesse célebre texto, porém não conhecemos nenhum estudo aprofundado dos conceitos
fanonianos na obra de Glauber. O que queremos dizer é que o teórico antilhano é bastante
citado mas é muitíssimo pouco estudado nos meios acadêmicos brasileiros, resumindo-se sua
importância no pensamento de Glauber, praticamente, a uma mera referência.32

Em sua primeira frase, Glauber afirma que dispensa uma “introdução informativa”
acerca da América Latina. O autor argumenta que tais “introduções” são ineficazes, pois não é
possível construir um diálogo entre o europeu e o latino-americano pelo fato de não existir um
campo comum de conceitos e de condições (uma coisa está atrelada a outra):

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica


geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as reações entre a

31
ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. pp. 28-33
32
O único estudo mais alentado do tema, que conhecemos, é o realizado por Avellar, mas, no qual Glauber é
inserido na teoria cinematográfica latino-americana. Assim, Fanon acaba sendo mais analisado em sua influência
no conceito de tercer cine dos cineastas Fernando Solanas (1936- ) e Octavio Getino (1935- ) do que no
próprio Glauber. AVELLAR, J. C. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa,
Sanjinés, Alea – Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed 34/Edusp, 1995
102

nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que


aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim,
enquanto a América Latina lamenta as suas misérias gerais, o interlocutor
estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas
apenas como dado formal de interesse. Nem o latino comunica sua
verdadeira miséria nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a
miséria do latino. (ROCHA, 1981, p. 28)

Um primeiro aspecto importante a notar é que Glauber monta o seu problema em


termos de América Latina, o que é bem diferente do seu artigo de 1962, no qual afirma que na
América Latina “não há um movimento como o nosso”, tecendo críticas aos cinemas
mexicano e argentino. Por outro lado, é lícito supor que Glauber apenas inicia a sua
argumentação numa visão ampla (América Latina) para chegar a um problema específico (o
movimento brasileiro do Cinema Novo). Contudo, podemos adiantar que o autor não realiza
tal raciocínio, já sendo possível identificar a presença de Fanon. Outro aspecto de suma
importância é saber para quem se dirige tal texto. Ora, o seu livro de 1963 que visa encontrar
um conceito para “Cinema Novo”, por intermédio da História, se desloca no campo de batalha
da teoria do cinema brasileiro. Ele visa aprumar o vago termo “Cinema Novo”, que era
utilizado perigosamente para neutralizar o autêntico grupo “cinemanovista”. Em suma,
Glauber está escrevendo para nós, brasileiros, reconhecendo um vazio teórico em termos
cinematográficos (“não há pensamento cinematográfico brasileiro”), e empenhando-se em
preenchê-lo. Por outro lado, o Estética da fome é um texto dirigido para um público europeu.
Em suma, Glauber está escrevendo para eles. Portanto, desde o seu início, ao dispensar a tal
clássica “introdução”, Glauber já está montando a sua argumentação segundo os moldes
maniqueístas do colonialismo. Vemos que Glauber se reconhece no papel de um colonizado
(o latino esfaimado) se dirigindo para o colonizador. É relevante notar o uso do termo
“observador europeu”, que também aparece posteriormente. Ou seja, a América Latina, para o
interlocutor ao qual Glauber se dirige, é um estranho continente visto de fora. Portanto,
Glauber se vê, e faz questão de frisar isso, como um orador diante de uma platéia
radicalmente alheia ao seu tema e ao seu ponto de vista, sendo impossível uma oratória no
sentido clássico do termo. O vigor do texto em questão se deve fundamentalmente a esse
princípio de incomunicabilidade. A ineficácia das “introduções” é um reconhecimento
político de que não há diálogo entre o colonizado e o colonizador, pois a relação entre ambos
está assentada na violência. Assim, desde a primeira linha, Glauber cria uma dicotomia entre
ele e o público, marcando nitidamente a sua posição (ele está do lado do colonizado),
reconhecendo que não há um diálogo possível, apontando, desse modo, para um dos
conceitos-chave do texto: a violência. Assim, ocorre uma reversão da lógica oratória clássica
pois, ao reconhecer que as suas palavras encontram ouvidos surdos, o texto se volta para si
mesmo, ocorrendo, como veremos a seguir, uma auto-análise. Retomando o exposto acima,
embora o texto de Glauber seja dirigido para eles, acaba possuindo uma vital importância
para nós, pois, ao reconhecer que a única via aberta com o público europeu é pela violência,
Glauber nos mostra que posição devemos ter diante do colonizador.

Assim, podemos identificar tal dicotomia (colonizador x colonizado) ao longo de todo


o texto. Quando Glauber estuda os problemas da “situação da arte no Brasil”, podemos notar
que tais problemas se devem ao mundo maniqueísta do colonialismo no qual está chafurdado
o intelectual brasileiro. Tais problemas são impensáveis para o “observador europeu”, que os
encara com exotismo e paternalismo, abordando explicitamente qual é a “situação” do
continente latino-americano, para nos referirmos ao famoso artigo de Salles Gomes:
103

A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é


apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis
daqueles que também sobre nós armam futuros botes. (ROCHA, 1981, p. 29)

Glauber não somente se defronta com o colonizador “de fato”, mas com colonizados
presos ao pensamento colonialista. Portanto, o autor, ao assumir a sua posição de colonizado,
não apenas se preocupa com o “observador europeu”, que nos olha como seres exóticos, mas
também com o colonizado acuado pelas ameaças que o rondam, sobretudo, as armadilhas
articuladas pelos colonizados comprometidos com o colonizador (podemos nos lembrar da
dura crítica de Fanon às burguesias nacionais). Não podemos esquecer que esse texto é escrito
após o Golpe de 64 e, portanto, bem distinto das efusivas esperanças que vimos nas cartas de
Glauber. Assim, esse texto é uma reflexão a posteriori, visando criar um conceito para o
termo “Cinema Novo” como o seu livro de 1963, mas o clima é o mais sombrio possível.
Enquanto no livro, Glauber está receoso com a banalização do termo, no texto de 1965, diante
dos militares no poder, as previsões são piores. Glauber ainda utiliza uma entonação
perspectiva (“daqueles que também armam futuros botes”), o que podemos supor um certo
perigo que ronda a América Latina (o golpe no Brasil pode ser o indício de um processo a ser
debelado em proporções continentais, embora cremos que em janeiro de 1965 essa “ameaça
golpista” ainda não era totalmente clara) e, fundamentalmente, as ameaças que pairam sobre o
cinema brasileiro com os “universalistas”, descendentes do cinema paulista, à frente dos
órgãos governamentais. Cabe afirmar que o I.N.C., que vimos ao estudar Cavalcanti, é
definitivamente criado em novembro de 1966 pelos militares através de um Decreto-lei, sendo
Flávio Tambellini (1927-1976) um dos seus principais idealizadores. Por outro lado, o mais
importante é que, em 1965, não se trata mais de afirmar a existência e coerência de algum
movimento, pois o Cinema Novo já estava consolidado, possuindo inclusive uma ampla
visibilidade internacional. Portanto, o relevante não era legitimar um grupo de filmes ou de
cineastas mas extrair dessa filmografia um conceito comum. Assim, a posse desse conceito,
em 1965, é um instrumento de resistência (e não de legitimidade, como em 1963) pois o
futuro do cinema brasileiro está nas mãos dos adversários do Cinema Novo.

Reconhecendo que a América Latina ainda é uma colônia, apesar de sua condição
jurídico-política de Estados soberanos, os efeitos do colonialismo podem ser identificados na
esterilidade e na histeria. Aqui, é possível estabelecer uma analogia com o quadro fanoniano
da cultura colonial. O que Glauber intitula de “esterilidade” seria a primeira fase de Fanon, a
de “assimilacionismo integral”. O artista colonizado é movido por juízos universais,
aplicando regras forjadas na metrópole. Assim, as obras são apenas homólogas, sem possuir
nenhum vigor e caindo na frustração (o caso Vera Cruz é evocado) ou num teatro de sombras:

Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos;


livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São
Paulo, provocaram inclusive falências)... O mundo oficial encarregado das
artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais,
conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias
partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de
Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. (ROCHA,
1981, p. 29)

Trata-se de uma cultura postiça, pois é apenas o puro esmero de veleidades formais.
Em suma, não possui nenhum vínculo autêntico com as relações entre os homens do povo do
qual o intelectual faz parte. O segundo item é a “histeria”, no qual Glauber aborda,
implicitamente, vários elementos:
104

A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o


anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é
uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo.
O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte
popular. (ROCHA, 1981, p. 29)

Nesse tópico, o artista colonizado abre os olhos para a situação colonial em que vive.
Podemos notar uma referência ao CPC e ao chamado “folclorismo” de Fanon. Estamos diante
da sua segunda fase, quando o intelectual se volta para o seu povo, mas possui uma relação de
exterioridade com ele. Glauber vê que o intelectual colonizado se esfalfa na impotência
enquanto que o colonizador o encara como um ser exótico e carente de assistencialismo. Esse
algo que o latino-americano sofre é chamado por Glauber de fome. Eis o nervo dessa
sociedade, sendo ela a originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial.
Encontramos o primeiro critério teórico na definição do termo “Cinema Novo”. Porém, essa
fome é sentida e não compreendida, ou seja, não há um uso racional dela e, portanto, se
manifesta de um modo praticamente orgânico. Lembremos que o homem colonizado é um ser
monstruoso, embrutecido.

Para combater o Cinema Novo, que expõe a fome, Glauber se refere a um “cinema
digestivo”, apegado a um formalismo visando esconder o que se chama de “miserabilismo”
dos filmes cinemanovistas. Assim, Glauber denuncia a política oficial do novo governo
brasileiro, que está nas mãos dos adversários do Cinema Novo. O chamado “cinema
digestivo” é uma ardilosa e a mais recente estratégia do colonialismo, para conservar esse
mundo violento e maniqueísta. Assim nos encontramos com um outro critério teórico, a que já
nos referimos, na definição de “Cinema Novo”: a relação com a Verdade:

O que fez do Cinema Novo um fenômeno internacional foi justamente


seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo,
que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de
60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido
como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso
cinema são internamente evolutivos. (...) experiências em vários sentidos,
frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três
anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período
Jânio-Jango [1961-1964]: o período das grandes crises de consciência e de
rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a
partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil,
ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo. (ROCHA, 1981, pp. 30-1)

Voltamos a encontrar a analogia com a literatura, especificamente, o romance


regionalista nordestino. Lembremos que Mauro é vinculado à primeira fase desse tipo de
romance. É possível deduzir que Glauber, ainda que de um modo implícito, afirma que Mauro
está para o Cinema Novo como José Lins do Rego (1901-1957) está para Graciliano Ramos.
Embora todos possuam um compromisso com a realidade do povo brasileiro (a Verdade),
Mauro e Lins do Rego primam pelo lirismo enquanto o Cinema Novo e Graciliano Ramos
pelo vigor militante. Porém, o cinema dos anos 60 realiza uma passagem qualitativa em
relação à literatura dos anos 30. Portanto, assim como Fanon, Glauber analisa a cultura
colonial em toda a sua globalidade, em diversas artes e em vários momentos históricos. É
evidente que o privilégio recai sobre o cinema, mas o autor está preocupado, como em seu
livro de 1963, em não isolar o cinema brasileiro e, sobretudo o Cinema Novo, das demais
artes nacionais. Esse raciocínio de globalidade também é aplicado na análise do próprio
105

movimento: o Cinema Novo não possui conceitos estéticos fechados e consolidados, mas
conceitos em movimento, conforme o panorama que Glauber traça (que é composto tanto por
sucessos como por frustrações, o que o torna num autocrítico do próprio movimento
cinemanovista). Essa transitoriedade presente nos filmes do Cinema Novo é articulada com o
período histórico que Glauber sublinha não ser “por acaso” os anos Jânio-Jango. Assim, o
“Golpe de Abril” é encarado como um refluxo nessa marcha histórica, que podemos constatar
na firme esperança presente em seu livro de 1963, sobretudo em seu último capítulo. Por isso,
é possível identificar as três fases fanonianas em Estética da Fome, dando um vasto leque de
toda a cultura brasileira, situado o Cinema Novo na fase de combate. Assim, o cineasta baiano
se aproxima do teórico antilhano ao definir essa última fase como um movimento contínuo e,
portanto, podemos deduzir que a sua definição de “Cinema Novo” não será uma fórmula
pronta.

Partindo da fome, que estrutura a cultura latino-americana, chegamos à parte mais


célebre do texto e à influência mais evidente de Fanon:

“Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.” (ROCHA, 1981, p. 31)

Buscando romper com a impotência que consome o intelectual colonizado, o Cinema


Novo sintetizou a manifestação mais nobre do colonizado: a violência, melhor dito, a sua
contra-violência voltada para o colonizador. Os comentadores amiúde citam Fanon por
ocasião dessa e das conseguintes passagens do texto, mas voltamos a frisar que a nossa tese é
que Glauber dialoga com o teórico da descolonização desde a primeira linha. De fato, o
desenrolar do raciocínio da violência, que Glauber traça a partir desse trecho do texto, expõe
uma visceral relação com o pensamento fanoniano. Quando afirma que o Cinema Novo não
pediu nada, que ele se impôs, distinto dos nossos dirigentes e burocratas (economistas e
diplomatas), Glauber lança uma crítica ao regime militar, classificando-o como um governo
colonial, que administra o país segundo um conluio com o colonizador. Assim, ao diferenciar
o Cinema Novo dessa “política de pacto”, Glauber sublinha que apenas a violência é o único
meio de libertação.33 Inicialmente, é pela violência que o colonizado, que segundo Fanon, era
um ente sem essência, realiza uma auto-transformação em um sentido ontológico. É pela
violência que o colonizado toma uma existência própria para si e, sobretudo, para o
colonizador. A referência glauberiana à Guerra da Argélia é significativa (“Enquanto não

33
“L’homme colonisé se libère dans et par la violence. Cette praxis illumine l’agent parce qu’elle lui indique les
moyens et la fin» FANON, F. Op. cit. p 118. As críticas de Glauber às autoridades governamentais, elogiando,
por outro lado, o Cinema Novo por seu ato de imposição, evoca o reconhecimento de Fanon da “má fama” de
falta de polidez dos dirigentes e diplomatas dos países recém-independentes que tanto chocavam os
“civilizados”: “Les hommes au pouvoir [destes novos países] passent les deux tiers de leur temps à surveiller les
alentours, à prévenir le danger qui les menace, et l’autre tiers à travailler pour le pays. (...) L’atmosphère de
violence, après avoir imprégné la phase coloniale, continue de dominer la vie nationale. Car, nous l’avons dit,
le Tiers-Monde n’est pas exclu. Bien au contraire il est au centre de la tourmente. C’est pourquoi, dans leurs
discours, les hommes d’Etat des pays sous-développés maintiennent indéfiniment le ton d’agressivité et
d’exaspération qui aurait dû normalement disparaître. L’on comprend également l’impolitesse si souvent
signalée des nouveaux dirigeants. Mais ce que l’on voit moins, c’est l’extrême courtoisie de ces mêmes
dirigeants dans leurs contacts avex les frères ou les camarades. L’impolitesse est d’abord une conduite aves les
autres, avec les anciens colonialistes qui viennent voir et enquêter. (...) L’enquête se propose de vérifier l
évidence: tout va mal là-bas depuis que nous n’y sommes plus. (...) Le radicalisme des porte-paroles africains
[na Assembléia Geral da O.N.U. em 1960] a provoqué le mûrissement de l’abcès et a permis de mieux voir le
caractère inadmissible des veto, du dialogue des Grands, et surtout le rôle infime réservé au Tiers-Monde.»
Idem pp 108-9. É possível reconhecer esse tom de descortesia no próprio texto de Glauber, ao dispensar a
“introdução informativa” para marcar, logo de início, o princípio de incomunicabilidade com a sua platéia.
106

pega em armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o
francês percebesse um argelino.”). Portanto, podemos identificar que o Cinema Novo possui
um princípio ontológico: ele constrói uma definição para o colonizado a partir da estrutura
conceitual na qual está articulado o mundo colonial - a violência. Outro aspecto é que dessa
ontologia Glauber deduz uma moral: o amor, mas “não um amor de complacência ou de
contemplação, mas um amor de ação e transformação.” A violência do colonizado visa
destruir o colonialismo e pensar o mundo de outro modo (ação e transformação).

Portanto, Glauber reconhece que o Cinema Novo está diante de uma nova etapa.
Voltamos a repetir, a definição buscada pelo autor não é lida segundo um molde estático:

Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para


existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique à
medida que a nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos
que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não
pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao
processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do
mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não
uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a
filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da
censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. (...) A definição é esta e
por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o
compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A
integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da
América Latina. (...) É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no
tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na
Filosofia: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará,
por fim, ao público, a consciência de sua própria existência.
Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.
O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por
isto mesmo, todas as fraquezas conseqüentes de sua existência. (os grifos
são do autor) (ROCHA, 1981, pp. 32-3)

Assim, o que é “Cinema Novo” para Glauber? O primeiro aspecto fundamental, que já
assinalamos, é notar que se trata de uma ação coletiva e em movimento (um “projeto”, como
chama o autor). Desse modo, em janeiro de 1965, por causa da situação política brasileira, o
Cinema Novo se encontra diante de uma nova realidade. Aliás, o próprio seminário realizado
em Gênova demonstra a visibilidade do movimento. Portanto, muito distinto de seu livro,
Glauber não necessita mais legitimar o Cinema Novo, o que fez através de Mauro, mas refletir
o Cinema Novo para o próprio Cinema Novo, realizando uma auto-análise e uma autocrítica.
O embate com o colonizador se encontra num outro nível, realizando uma passagem
qualitativa no movimento. Portanto, o primeiro ato é dar visibilidade, pela contra-violência,
do colonizado para o colonizador, pois lembremos que o colonizador cria o mito de que o
colonizado não oferece resistência. A realização desse seminário na Europa sobre os cinemas
do Terceiro Mundo é uma evidência dessa visibilidade. Glauber amplia o projeto
“cinemanovista” em proporções continentais, não se restringindo mais à “problemática
brasileira”, como vimos anteriormente. É “um fenômeno dos povos colonizados”, integrando
o caso brasileiro num ato de libertação de toda a América Latina. Portanto, o Cinema Novo
brasileiro não pode ser isolado de uma ação política e econômica para o continente latino-
americano, embora Glauber continue sobretudo preocupado com os rumos do cinema
brasileiro. O “cinema digestivo” ameaça o futuro do cenário cinematográfico nacional,
tratando-se de uma reação aos cinemanovistas. Vimos na correspondência de Glauber a sua
107

admiração ao povo cubano e uma inquietude, o que demonstra uma esperança depositada num
futuro recente do cinema brasileiro (que foi frustrada com o golpe). Por outro lado, também
vimos que Glauber se choca com o dilema de Martins, e prega aos seus companheiros abrirem
mão de veleidades estéticas, pois o que move o nosso cinema é uma questão ética. Assim, o
que queremos dizer é que podemos reconhecer os mesmos aspectos (estética e ética) em
Estética da fome, mas a originalidade desse texto é o princípio ontológico que estava faltando
ao Glauber. Desse modo, com os conceitos de Fanon, Glauber re-estrutura o seu problema em
outros termos (colonizador x colonizado), dando um outro rumo ao seu raciocínio.

Recordemos Fanon: a descolonização é criação de homens novos, e por conseguinte,


as categorias clássicas são radicalmente abolidas. É por isso que o Cinema Novo não possui
contatos com o cinema mundial, pois o seu compromisso é com a criação desses homens
novos. Assim, tudo deve mudar: o conceito de filme, a relação do espectador com o filme e a
relação do cineasta com o público. O diálogo de Glauber com os “Jovens Turcos” já havia
preparado um terreno teórico para essa mudança de postura, pois não há mais um estudo
estético em termos clássicos. Porém, a ruptura entre “Poética” e “Estética” se esbarra com as
singularidades da “problemática brasileira”. O questionamento posto pelo próprio Glauber
parte do reconhecimento de que tal ruptura em nosso país não pode ser pensada segundo os
mesmos moldes europeus. Estudamos que a diferença de Glauber com os franceses era o fato
de o cineasta baiano atrelar ao cinema algo exterior a ele. Portanto, tal lógica acarretava, de
um modo ou de outro, no primado de um elemento exterior sobre o especificamente
cinematográfico. Isso pode ser identificado no que Glauber chama de “frustração”, que
necessariamente assalta o profissional de cinema em nosso país. Em Estética da fome, por sua
vez, encontramos o termo “impotência” ao se referir ao artista brasileiro. Esse trágico fator se
deve à carência essencial do colonizado (o colonizado é um ente sem essência), em termos
glauberianos, a “Fome”, que somente é superada no ato de libertação, transformando o
colonizado em um demiurgo de si mesmo, ao re-pensar a humanidade inteira fora dos
conceitos dicotômicos do colonialismo. Assim, podemos entender por que se questionava a
própria existência do cinema brasileiro, pois sendo a mais medíocre manifestação artística
brasileira, devido a sua complexa feição industrial, tornava mais evidente, aos olhos de todos,
a falta de essência que define o colonizado. Lembremos que se pensava cinema como uma
atividade necessariamente industrial, nos termos internacionais, o que comprometia a própria
definição de cinema brasileiro e faz surgir, simultaneamente, a crítica à chamada “cavação”.

A passagem do “Cinema Clássico” para o “Cinema Moderno” inaugura o novo


pensamento de que existem vários modos de se realizar um filme. O Cinema pode ser dito de
modos distintos, o que significa uma pluralidade em sua definição. Assim, essa passagem em
nossa cinematografia adquire o sentido de que não só é possível como necessário pensar o
cinema brasileiro fora de um modelo universal; não se pode ver um filme brasileiro com os
mesmos olhos com que se vê um filme estrangeiro. Desse modo, o pensamento de que há
vários modos de se realizar um filme não somente é interpretado como uma diferença
estilística pessoal, como na politique des auteurs dos “Jovens Turcos”, mas como uma
distinção nacional. Portanto, essa necessidade é movida por um princípio político no sentido
de expressar a originalidade de uma cultura periférica no cenário internacional. Assim, para
Glauber, o Cinema Novo, através da violência, que é a ação mais alta da fome, adquire o
estatuto de instaurador de uma nova realidade. Desse modo, não se trata de uma subestimação
do cinema em relação a um fator externo, como algo alheio a uma realidade empírica. Ao
contrário, o Cinema passa a ser interpretado como um princípio de fabricação da realidade.
Melhor dito, a realidade é pensada através do cinema, pois o Cinema é encarado como um
modo de pensamento pelo qual é possível adquirir um conhecimento (a Verdade).
108

Especulamos que essa postura, um tanto radical, de vincular um princípio epistemológico a


uma manifestação artística se deve ao tom marxista presente, ou seja, a existência de uma
cientificidade que, por sua vez, é associada a uma posição política que há nesse pensamento.
Essa é a diferença fulcral em relação a Gonzaga. Vimos que, para Fanon, a descolonização se
define como a passagem qualitativa do colonizado em demiurgo de si mesmo, o que soa
familiar ao “princípio tocquevilleano” de Gonzaga. Para Manent, a democracia é o processo
pelo qual o homem se torna mestre e matéria de si mesmo. Porém, a diferença de Glauber
para Gonzaga é a afirmação explícita de uma epistemologia que vincula o cinema a um
conhecimento, que é interpretado como transformação. Concordamos que o nacionalismo
gonzaguiano também está ligado a um princípio transformador (romper com o pensamento
estamental), mas há uma despreocupação em conhecer, no sentido de expressar, o que seria a
brasilidade. Melhor dito, não se trata de uma “despreocupação” mas da falta de colocar, de
forma evidente, no próprio filme, esse questionamento nacional. De acordo com o
pensamento inaugurado pelo Cinema Moderno, a singularidade de um determinado povo pode
(melhor dito, deve) ser manifesta cinematograficamente, assim como nas demais artes. Por
exemplo, embora utilizem o mesmo idioma, há uma diferença conceitual entre as literaturas
portuguesa e brasileira. Há um modo brasileiro de escrever apesar do suporte comum (a
Língua Portuguesa). Esse exemplo não é gratuito, pois é possível que por tal aspecto ocorram
as referências constantes de Glauber à nossa literatura, pois trata-se de uma arte na qual o
questionamento da “brasilidade” já está mais clara e consolidada. Por outro lado, nos é
significativo o primado da temática feminina em Gonzaga pois ele, de um modo não militante
no sentido político, acaba por privilegiar um aspecto subestimado, periférico, isto é, fora do
modelo padrão (o masculino). Assim, do mesmo modo que o Brasil é um país fora do eixo
principal na ordem mundial, tanto Gonzaga quanto Glauber escolhem aspectos periféricos
para seus respectivos pensamentos (a mulher e o colonizado). Mas com o uso do conceito de
mise-en-scène, Glauber vai além: ele introduz esse princípio transformador (que está atrelado
ao aspecto epistemológico) para dentro do próprio filme. Porém, recordemos que esse
conhecimento não é um conteúdo temático (daí a crítica de Glauber ao didatismo). Xavier põe
a questão de modo correto: não se trata de uma estética sobre a fome, mas de uma estética da
fome.34 Portanto, é a partir da carência ontológica do colonizado que se deve pensar o que é
cinema, pois é necessário romper com a visão única de definição do que seja o Cinema. É o
que podemos notar ao compararmos com Gonzaga. Lembremos que para o fundador da
Cinédia não há uma multiplicidade de definições de Cinema. A “cavação” não é Cinema, é
algo que se desvia de sua definição; Gonzaga possui uma leitura, digamos, monista da arte
cinematográfica.35 O Cinema Moderno afirma que se deve pensar de distintos modos a arte

34
XAVIER, I. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome.São Paulo: Brasiliense, 1983
35
Também podemos notar um monismo em Tocqueville (aqui no caso, entendido como um ocidentalismo). São
significativas as notas de Said sobre o pensador francês, demonstrando que não é paradoxal o fato de ele ser,
simultaneamente, democrata e imperialista: “A destruição que os franceses praticaram contra a Argélia foi, de
um lado, sistemática e, de outro, constitutiva de uma nova ordem social francesa. Ninguém, nenhuma
testemunha das décadas de 1840 a 1870, tinha dúvidas a esse respeito. Alguns, como Tocqueville, que criticou
severamente a política americana em relação aos negros e aos índios autóctenes, acreditava que o avanço da
civilização européia exigia que se infligissem crueldades aos indigènes muçulmanos: a seu ver, a conquista total
era equivalente à grandeza da França. Ele considerava o islamismo sinônimo de “poligamia, o isolamento das
mulheres, a ausência de qualquer vida política, um governo tirânico e onipresente que obriga os homens a se
esconder e a buscar todas as suas satisfações na vida familiar”. E como achava que os nativos eram nômades, ele
acreditava “que deveriam ser empregados todos os meios de devastar essas tribos. Faço uma exceção apenas para
os casos interditados pelo direito internacional e da humanidade”. Mas, como diz Melvin Richter, Tocqueville
não se pronunciou “em 1846, quando se revelou que centenas de árabes haviam sidos asfixiados por fumaça
durante as razzias que ele aprovara por seu humanitarismo”. “Uma infeliz necessidade”, pensava Tocqueville,
mas de forma alguma tão importante quanto o “bom governo” que os franceses deviam exercer para os
muçulmanos “semicivilizados”. SAID, E. Op. cit. p. 236
109

cinematográfica, rompendo com uma visão rígida de conceitos construídos e bem definidos. É
o que vemos nos “Jovens Turcos”, porém os franceses não acentuam um tom político, isto é,
não estão preocupados com as singularidades nacionais, pois eles isolam o cinema de seu
contexto sócio-histórico pelo fato de ainda estarem presos a uma concepção extremamente
européia de Nação (e por conseguinte, de nacionalidade), dito de outro modo, não há a
distinção fanoniana entre “nacionalismo” e “consciência nacional”, que é o caminho para a
“consciência social e política” dentro do que ele chama de “esforço nacional”.

Assim, é possível identificar uma mudança em Glauber de Revisão crítica do cinema


brasileiro (1963) à Estética da fome (1965). Podemos ver que no último texto, ele não
distingue mais, como em seu livro de 1963, uma bipolaridade entre a cultura e as condições
sócio-econômicas e históricas (sociedade capitalista-cinema comercial x sociedade sem
classes-cinema de autor). Desse modo, o viés ontológico de Fanon liberta Glauber de uma
leitura simplista dos conceitos marxistas de infra-estrutura e superestrutura que ainda
encontrávamos. É relevante notar que o teórico antilhano sublinha a fraqueza das teorias
clássicas marxistas ao estudar o colonialismo:

Ce monde compartimenté, ce monde coupé en deux est habité par des


espèces différentes. L’originalité du contexte colonial, c’est que les réalités
économiques, les inégalités, l’énorme différence des modes de vie, ne
parviennent jamais à masquer les réalités humaines. Quand on aperçoit
dans son immédiateté le contexte colonial, il est patent que ce qui morcelle
le monde c’est d’abord le fait d’appartennir ou non à telle espèce, à telle
race. Aux colonies, l’infrastructure économique est également une
superstructure. La cause est conséquence: on est riche parce que blanc, on
est blanc parce que riche. C’est pourquoi les analyses marxistes doivent
être toujours légèrement distendues chaque fois qu’on aborde le problème
colonial. Il n’y a pas jusqu’au concept de société pré-capitaliste, bien
étudié par Marx, qui ne demanderait ici à être repensé. Le serf est d’une
essence autre que le chevalier, mais une référence au droit divin est
nécessaire pour légitimer cette différence statutaire. Aux colonies,
l’étranger venu d’ailleurs s’est imposé à l’aide de ses canons et de ses
machines. En dépit de la domestication réussie, malgré l’appropriation le
colon reste toujours un étranger. Ce ne sont ni les usines, les propriétés, ni
le compte en banque qui caractérisent d’abord la «classe dirigeante».
L’espèce dirigeante est d’abord celle qui vient d’ailleurs, celle qui ne
ressemble pas aux autochtones, ‘les autres’. (FANON, 1991, pp. 70-1)

Fanon se volta para o contexto colonial, e percebe que deve criar todo um arsenal
teórico original para dar conta dele. O mesmo podemos falar de Glauber. Ele se tornou
célebre como um intelectual que, apesar de transitar por várias teorias e articular diversos
conceitos, sempre se voltou para as singularidades do povo brasileiro (e também, para os
chamados “povos colonizados”). Em Estética da fome, o cineasta baiano afirma que o Cinema
Novo não é um grupo de cineastas (que inicialmente se reunia no Alcazar) mas um ato global
que articula ontologia, estética, ética e política, visando dar, primeiramente, consistência e
visibilidade ao colonizado para si e para o colonizador. A próxima etapa é a efetivação da
libertação, na qual ocorrerá o fim tanto do colonizador como do colonizado (o que Glauber
busca explicitamente em seus filmes no exílio). Portanto, a nossa conclusão é que o
instrumental teórico de Fanon ofereceu elementos para a resolução da questão primordial que
atormentava o jovem Glauber Rocha: criar uma rica e ampla definição de “Cinema Novo”,
retirando-a das mãos de seu forjador, um adversário e resolvendo, inicialmente, um problema
de legitimidade. Assim, Glauber abre portas para um novo modo de se pensar o cinema
110

brasileiro, incluindo-o no contexto latino-americano. A importante participação dos cineastas


brasileiros nos festivais em Viña del Mar (1967/1969) e em Mérida (1968) é tributária desse
novo pensamento cinematográfico.36 Assim, Glauber consegue transformar “Cinema Novo”
de mero termo vago e difundido em um conceito, a partir do qual se articula um novo modo
de se pensar o cinema brasileiro.

36
Na verdade, esse novo pensamento segue uma tendência de conjuntura mundial (o Nuevo cine
latinoamericano, o Junge Deutsche Film, o Free Cinema inglês, os cinemas árabe e africano) mas é evidente que
existem as devidas particularidades. Sobre o cinema na América Latina: “A confluência desses três fenômenos –
assimilação do neo-realismo, condensação de uma cultura cinematográfica, explosão do nacionalismo
desenvolvimentista – desemboca na constituição de um novo conceito de modernidade. Para os cineastas das
novas gerações, a modernidade deve estar inscrita na própria linguagem do filme, no corpo da obra. Assim, o
cinema passa a estar mais entrosado com as tendências contemporâneas da literatura, teatro e música. Coexistem,
é bem verdade, projetos diferentes.” PARANAGUÁ, P. Cinema na América Latina: longe de Deus e perto de
Hollywood. Porto Alegre: L & PM, 1984. p. 73
111

CONCLUSÃO

Em seu texto Ciclos ou crises, de outubro de 1987, Carlos Diegues discute a escrita de
uma história do cinema brasileiro, na ocasião da reedição de Introdução ao cinema brasileiro
de Alex Viany.1 Inicialmente, afirma a importância desse livro que marcou a sua geração. Foi
por seu intermédio que os futuros realizadores do Cinema Novo encontraram uma “certa
tradição à qual nunca nos haviam remetido, por ignorância e também por preconceito”.
Adquirido tal raciocínio de continuidade (há uma história do cinema brasileiro), Diegues
afirma que sempre se escreveu a história do cinema brasileiro comprometido com dois
conceitos-chave: brasilidade e progresso.

E acrescenta:

Porque, muito além da questão de uma arte nacionalista, o filme talvez seja
o único produto da indústria cultural brasileira a se desenvolver (com
raríssimos, escassos e desimportantes momentos de exceção), tanto nos
meios de produção quanto nos de difusão, fiel a uma política de economia
nacional, em franca oposição e conflito com a produção estrangeira
consumida no País.
Ilusão? Necessidade? Equívoco? Não sei. Mas é preciso que, um dia,
alguém nos esclareça isso. (os grifos são do autor) (DIEGUES, 1999, pp.
94-5)

A questão fica suspensa. O significativo dessa pergunta é a quem ela visa. Bernardet,
em Historiografia clássica do cinema brasileiro, constata, como o próprio Diegues, que
sempre se privilegiou o ponto de vista da produção na historiografia do cinema brasileiro.2
Também questiona o primado de Rio de Janeiro e São Paulo, nem sempre coincidentes quanto
a seus exponenciais de produção (como no que ele chama de mito da “Bela Época”) sobre
uma proclamada história do cinema brasileiro. Concordamos que essa atenção ao eixo Rio-
São Paulo se constata em outras historiografias, mas o que nos interessa aqui é a aceitação por
Diegues da metodologia utilizada por Viany ao escrever uma história do lado da produção.

Contudo, Diegues faz ressalvas ao uso do termo “ciclo” por Viany, que descreve o
cinema brasileiro como “aparentes “ciclos” que se abrem retumbantes e se fecham
melancólicos”. Criterioso, Diegues esboça outros prováveis recortes dessa História:

Ele [o leitor atento] pode descobrir, por exemplo, que não eram tão “cíclicos”
esses sistemas de produção. Ou seja, que a história do cinema brasileiro não
tem sido, como se supõe, uma sucessão de esperanças e fracassos fechados
em si mesmas, a história de uma improbabilidade violentada pela energia de
uns poucos, durante algum tempo.
Não, isso não é verdade. Podemos, pelo contrário, traçar linhas de coerência
que vão, por exemplo, da fundação da Cinédia no final dos anos 20 até a nova
Vera Cruz dos irmãos Khoury (sic) nos anos 60, passando pela velha empresa
de Zampari, pela Maristela Sonofilmes, etc.; ou uma outra que vai do projeto
original da Atlântida (o de Moacir Fenelon) em 1941 até a fundação da Difilm
em 1965 ou da Cooperativa Brasileira de Cineastas no final dos anos 70; ou

1
DIEGUES, C. Op. cit. pp. 93-97
2
BERNARDET, J. - C. Op. cit
112

mais uma, que sai do projeto trazido por Alberto Cavalcanti depois da guerra,
passa pelo Instituto Nacional de Cinema e termina na Embrafilme de hoje em
dia. (DIEGUES, 1999, p. 95)

O problemático do conceito de “ciclo” é sua opacidade, como algo que surge, se


cristaliza e desaparece, criando uma imagem de uma história repetitiva, sem grandes
transformações. Contudo, o mais ingênuo e esperançoso, nos termos de Diegues, é a narração
de uma “aventura precursora de grande e definitivo épico que há de vir como um ponto final”.
Portanto, o cinema brasileiro ainda não existe de modo definitivo, mas se resume apenas em
uma sucessão de tentativas buscando ser algo pleno. Esse tom teleológico é uma aposta no
futuro, quando o cinema brasileiro se instalará definitivamente.

Diegues, ao assinalar “linhas de coerência”, demonstra que o cinema brasileiro possui


uma multiplicidade de aspectos que podem atravessar critérios de décadas. Ele propõe
substituir ciclos por crises, pois não há um ponto fixo onde chegar. O conceito de crise, que o
autor frisa não ser somente do cinema mas do país, rompe com o finalismo, porém conserva a
idéia de descompasso. No caso do cinema brasileiro, ocorre um descompasso entre a
produção e a exibição. Por outro lado, com o uso do conceito de mise-en-scène, é possível
pensar esse descompasso na própria concepção do filme, ou seja, em termos estéticos. Então,
o filme em si, por sua própria estrutura, manifesta a crise, que voltamos a repetir, não é apenas
do cinema, mas do país. Portanto, a proposta de se pensar o filme brasileiro fora de um molde
universal traz consigo a afirmação de que a consciência dessa crise veio à tona com o Cinema
Novo, e talvez a proposta de Diegues, ao substituir o conceito de “ciclo”, não seja gratuita,
pois provém de um representante da geração “cinemanovista”. Assim, ao romper com a noção
teleológica, Diegues talvez esteja proclamando que o Cinema Novo é a afirmação autêntica
do cinema brasileiro, pois foi quando se percebeu que o cinema brasileiro não é algo que
ainda não está pronto, mas é algo que existe, mesmo que seja como “descompasso”. Essa
afirmação possui duas conseqüências: o nosso cinema se define por uma luta contra o filme
estrangeiro, trazendo um tom aguerrido que pode culminar com o revolucionário e a
consolidação dessa luta a partir de um conhecimento histórico, de uma continuidade - uma
tradição. Em suma, encontramos os mesmos princípios encontrados em Glauber: ruptura e
tradição, que remetemos à definição de “arte moderna” por Paz. Por outro lado, também
podemos identificar os dois pilares do pensamento marxista: a transformação da realidade por
intermédio de uma luta revolucionária calcada num conhecimento científico (histórico) da
sociedade.

Humberto Mauro é alçado à categoria de “pai” da linguagem cinematográfica


brasileira pelo Cinema Novo ao ser considerado o início dessa tradição, quando esse
descompasso aflora pela primeira vez, seja sob a forma de produção (artesanal) como em
critérios estéticos, pelo enquadramento e pela presença da ambigüidade em seus filmes. É
compreensível (e estratégico) que cada movimento artístico crie os seus “precursores” como,
por exemplo, a admiração e o resgate dos “Jovens Turcos” da obra de Jean Renoir. Porém, é
um erro conceitual afirmar simplesmente que Renoir está para a Nouvelle Vague como Mauro
está para o Cinema Novo. A questão é outra, bem exposta por Diegues (brasilidade e
progresso), estão-se discutindo a existência e o sentido do cinema brasileiro, o que é
impensável para os franceses. Eles estão pensando o Cinema. Assim, o “rompimento” da
relação entre Gonzaga e Mauro é interpretado pelos “cinemanovistas” como o ponto alto
desse descompasso, no qual o cineasta mineiro, embora ele seja “ideologicamente difuso”,
nota que os rumos do cinema brasileiro não podem ser os propostos pelo idealizador da
Cinédia. Assim, esse processo de “descolonização” de Mauro foi árduo e penoso, mas foi uma
condição necessária para que a nossa cinematografia alcançasse a fase de combate - o Cinema
113

Novo. Contudo, apesar do aspecto conservador e mimético que se associou à figura de


Gonzaga, vimos que Mauro se atrela ao ideário gonzaguiano dentro de um projeto
modernizador, iniciado pelas páginas da Cinearte, visando dar uma outra feição à realidade
brasileira.

Assim, estudamos que Mauro se vincula a uma exigência lógica nos discursos de
Glauber e Gonzaga segundo a qual, a necessidade de uma produção cinematográfica nacional
é um modo de se pensar a modernidade no Brasil. Privilegiamos o aspecto funcional exercido
através da figura de Mauro nesses pensamentos. Poderíamos haver analisado o prolongamento
dessa exigência de Glauber nos estudos sobre Mauro realizados por Viany e Salles Gomes,
nos quais encontramos a sistematização do princípio glauberiano posto em seu livro de 1963.
Também poderíamos ter estudado a relação desse novo pensamento cinematográfico
brasileiro em seu viés de produção, sobretudo na relação com a Embrafilme dos militares. Por
outro lado, poderíamos ter estudado a relação de Mauro com Gonzaga, delimitando o seu
desenrolar e as respectivas singularidades de cada um dos interlocutores.

Portanto, concluímos que:

Primo, Humberto Mauro ocupa várias funções em diversos momentos do pensamento


cinematográfico brasileiro. A sua figura não pode ser interpretada sob um foco único,
comprometendo a riqueza de seu pensamento e de sua obra. Postulamos que o principal
aspecto de fascínio do “universo maureano” é justamente a sua multiplicidade.

Secundo, essa multiplicidade vincula-se à principal questão da intelligentzia brasileira:


o “ser nacional”. Assim, a Modernidade entra em cena através da busca de uma identidade e
da discussão acerca do papel reservado a nós, brasileiros, seja sob a categoria de Nação como
na de Povo, no contexto histórico e internacional. A necessidade de romper com o
pensamento estamental é o princípio fundamental de uma re-definição do “ser brasileiro”,
discutindo em que sentido somos modernos. Assim, Mauro ocupa e condensa elementos que
buscam tal significado de modernidade em nós.

Tercio, as funções mais significativas ocupadas por Mauro ocorrem em períodos de


transição, tanto na linguagem cinematográfica como no contexto sociopolítico nacional.
Assim, Gonzaga coloca o cinema como questão nacional, se apropriando de Mauro não
somente pelo seu talento técnico (o que é amiúde frisado), mas por uma semelhança de
postura de ambos em relação à arte cinematográfica; o uso do Cinema como um lugar de
reflexão (seja como um instaurador, em Gonzaga, como um resgatador, no velho Mauro), o
que era até então reservado às outras artes, sobretudo a literatura. É relevante frisar o cuidado
de Salles Gomes em não caracterizar Gonzaga como um “ingênuo”. Pode-se afirmar algo
semelhante de Mauro que, apesar de não possuir uma sofisticada formação intelectual,
utilizava o Cinema como um espaço de pensamento. Tanto Gonzaga como Mauro, pensam o
Brasil pelo cinema. Por sua vez, Glauber, que transita por um vasto campo teórico, sofistica
tal postura graças à articulação do Cinema Moderno, ao afirmar uma singularidade estética de
nossa cinematografia como uma proposta explicitamente política. Contudo, a riqueza do
pensamento glauberiano está no fato de indicar várias possibilidades do que seja o cinema
brasileiro, mas a autêntica, sublinhada por ele, é a inaugurada por Mauro.

Vimos que Glauber segue um movimento teórico que visa re-definir o nosso cinema,
como o livro de Viany e o artigo de Salles Gomes.Assim, Glauber vincula Mauro a uma outra
questão: definir o que é “Cinema Novo”. Assim, o “cinema de autor” é o conceito utilizado, e
114

pelo qual Mauro é interpretado, para a discussão da modernidade, alcançando um novo teor
através dos conceitos de Fanon. Entretanto, Gonzaga ao defender a produção de “posados”,
esboçando um critério estético-temático ao privilegiar o campo feminino, articula Mauro em
sua luta contra o pensamento estamental. As críticas de Gonzaga à “cavação” e as de Glauber
à chanchada devem ser analisadas segundo as lógicas de seus discursos. É possível aproximar
ambos, Glauber e Gonzaga, por entenderem os seus respectivos objetos de rejeição como
“filme ruim e mal-feito”, porém há uma distinção. A “cavação” é um desvio no conceito de
Cinema, enquanto a chanchada é um fenômeno de uma determinada situação histórica, que foi
superada pelo Cinema Novo. Assim, o pensamento historicista do discurso “cinemanovista”
derruba o monismo, que passa a ser interpretado como algo nocivo e politicamente perigoso.
Assim, Humberto Mauro, em sua carreira de cinqüenta anos, torna-se uma figura que passou
por várias fases do cinema brasileiro, do mudo à Embrafilme, sendo consagrado como um
ícone de toda essa trajetória. É evidente que vários outros cineastas também passaram por tais
fases mas, como certos itens são privilegiados, a própria obra maureana foi remanejada
segundo uma lógica. Desse modo, ele passa a ser visto como um inaugurador, um homem
cuja vida, por intermédio de seus percalços, se confunde com a própria definição de cinema
brasileiro. Porém, é significativa a desatenção aos seus filmes da primeira fase do I.N.C.E.,
assim como de seus filmes produzidos por Carmem Santos (que é até compreensível pelo fato
de os filmes terem sido perdidos). Mas será que, pelo fato de tais filmes serem proto-
chanchadas, não foi determinante para o seu obscurantismo? A idéia de ver Mauro realizando
tal gênero de filme não é um tanto incômodo? Vimos que Viany exalta um deles por um
aspecto puramente temático, sendo uma postura bem distinta da de Glauber, cuja ferramenta
conceitual é a mise-en-scène.

Portanto, ver (e se apaixonar por) Humberto Mauro, cuja obra é tão multifacetada
como a nossa cinematografia, é interrogar sobre nós mesmos e sobre os vários modos de nos
pensarmos cinematograficamente...
115

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120

FILMOGRAFIA CITADA

ABSOLUTAMENTE CERTO
Longa-metragem Brasil 1959
Direção: Anselmo Duarte
Roteiro: Anselmo Duarte e Talma de Oliveira
Fotografia: Chick Fowle
Montagem: José Cañizares
Produtora: Cinedistri
Elenco: Anselmo Duarte, Maria Dilnah, Dercy Gonçalves, Odete Lara, Aurélio Teixeira

AGULHA NO PALHEIRO
Longa-metragem Brasil 1953
Argumento, Roteiro e Direção: Alex Viany
Fotografia: Mário Pagés
Montagem: Rafael Justo Valverde, Mario del Rio e Alex Viany
Produtora: Flama Filmes
Elenco: Fada Santoro, Roberto Batalin, Dóris Monteiro, Hélio Souto

ARUANDA
Curta-metragem Brasil 1960
Argumento, Roteiro e Direção: Linduarte Noronha
Fotografia e Montagem: Ruelker Vieira
Produtora: INCE, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Associação de Críticos
Cinematográficos da Paraíba e Secretaria de Estado de Educação e Cultura (Paraíba)

ARRAIAL DO CABO
Curta-metragem Brasil 1959
Direção e Roteiro: Paulo César Saraceni
Fotografia: Mario Carneiro
Produtora: Saga Filmes

BARRAVENTO
Longa-metragem Brasil 1961
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Glauber Rocha, José Telles de Magalhães e Luiz Paulino dos Santos
Fotografia: Tony Rabatoni
Montagem: Nelson Pereira dos Santos
Produtora: Iglu Filmes
Elenco: Antonio Sampaio (Pitanga), Luiza Maranhão, Lucy Carvalho, Aldo Teixeira

BARRO HUMANO
Longa-metragem Brasil 1929
Direção e Argumento: Adhemar Gonzaga
Roteiro: Paulo Wanderley
Fotografia: Paulo Benedetti
Elenco: Gracia Moreno, Lelita Rosa, Eva Schnoor, Eva Nil, Carlos Modesto, Raul Schnoor.
Produtora: Cinearte e Benedetti Filmes
121

BRAZA DORMIDA
Longa-metragem Brasil 1928
Direção, Argumento e Roteiro: Humberto Mauro
Fotografia: Edgar Brasil
Produtora: Phebo Brasil Film
Elenco: Nita Ney, Luiz Soroa, Máximo Serrano, Pedro Fantel

OS CAFAJESTES
Longa-metragem Brasil 1962
Direção: Ruy Guerra
Roteiro: Ruy Guerra e Miguel Torres
Fotografia: Tony Rabatoni
Montagem: Nello Melli
Produtora: Jece Valadão e Magnus Filmes
Elenco: Jece Valadão, Daniel Filho, Norma Bengell, Luci Carvalho

CAMINHOS
Curta-metragem Brasil 1957
Direção e Roteiro: Paulo César Saraceni
Fotografia: Haroldo Martins e Luís Lima
Elenco: Lisete Fernandez, Paulo César Saraceni, Adele Araújo, Virgínia Beltrão

O CANGACEIRO
Longa-metragem Brasil 1953
Direção e Argumento: Lima Barreto
Roteiro: Lima Barreto e Raquel de Queiroz
Fotografia: Chick Fowle
Montagem: Oswald Haffenrichter
Produtora: Cia Cinematográfica Vera Cruz
Elenco: Alberto Ruschel, Marisa Prado, Milton Ribeiro, Vanja Orico

CANTO DA SAUDADE
Longa-metragem Brasil 1952
Direção, Argumento e Roteiro: Humberto Mauro
Fotografia: José de Almeida Mauro
Montagem: Luiz Mauro
Produtora: Estúdio Rancho Alegre
Elenco: Cláudia Montenegro, Mário Mascarenhas, Humberto Mauro, Alfredo de Almeida

COURO DE GATO
Curta-metragem, posteriormente incluído como o 4º episódio do longa Cinco vezes favela
Brasil 1960
Direção e Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade
Fotografia: Mário Carneiro
Montagem: Jacqueline Aubrey
Produtora: Saga Filmes
Elenco: Cláudio Correia e Castro, Riva Nimitz, Henrique César, Napoleão Muniz Freire

CRUZ NA PRAÇA
122

Curta-metragem Brasil 1959


Direção, Argumento, Roteiro e Montagem: Glauber Rocha
Fotografia: Waldemar Lima
Elenco: Luiz Carlos Maciel e Anatólio de Oliveira

ENGENHOS E USINAS (BRASILIANAS Nº 4)


Curta-metragem Brasil 1955
Direção: Humberto Mauro
Fotografia: José de Almeida Mauro
Produtora: INCE

EXEMPLO REGENERADOR
Curta-metragem Brasil 1919
Direção e Argumento: José Medina
Fotografia: Gilberto Rossi
Produtora: Rossi Filme
Elenco: Lucia Laes, Waldemar Moreno, José Guedes de Castro, Carlos Ferreira

FAVELLA DOS MEUS AMORES


Longa-metragem Brasil 1935
Direção, Roteiro, Fotografia e Montagem: Humberto Mauro
Argumento: Henrique Pongetti
Produtora: Brasil Vita Filme
Elenco: Carmen Santos, Sílvio Caldas, Jayme Costa, Rodolfo Mayer

GANGA BRUTA
Longa-metragem Brasil 1933
Direção e Roteiro: Humberto Mauro
Argumento: Octávio Gabus Mendes
Fotografia: Afrodísio P. de Castro
Produtora: Cinédia
Elenco: Durval Bellini, Déa Selva, Lu Marival, Décio Murillo, Andréa Duarte

A GRANDE FEIRA
Longa-metragem Brasil 1961
Direção, Roteiro e Montagem: Roberto Pires
Argumento: Rex Schindler
Fotografia: Hélio Silva
Produtora: Iglu Filmes
Elenco: Luiza Maranhão, Geraldo del Rey, Helena Ignez, Antonio Sampaio (Pitanga)

O GRANDE MOMENTO
Longa-metragem Brasil 1958
Direção e Argumento: Roberto Santos
Roteiro: Roberto Santos e Norberto Nath
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: João de Alencar
Produtora: Nelson Pereira dos Santos
Elenco: Gianfrancesco Guarnieri, Miriam Pérsia, Paulo Goulart, Vera Gertel
123

OS HOMENS PREFEREM AS LOIRAS


(Gentlemen prefer blondes)
Longa-metragem E.U.A. 1953
Direção: Howard Hawks
Roteiro: Joseph Fields, Anita Loos e Charles Lederer
Fotografia: Harry J. Wild
Montagem: Hugh S. Fowler
Produtora: 20th Century Fox
Elenco: Jane Russel, Marilyn Monroe, Charles Coburn, Elliott Reid

JANELA INDISCRETA
(Rear window)
Longa-metragem E.U.A. 1954
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: John Michael Hayes
Argumento: Cornell Woolrich
Fotografia: Robert Burks
Montagem: George Tomasini
Produtora: Paramount e Patron Inc.
Elenco: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter

LÁBIOS SEM BEIJOS


Longa-metragem Brasil 1930
Direção e Fotografia: Humberto Mauro
Argumento e Roteiro: Adhemar Gonzaga
Produtora: Cinédia
Elenco: Lelita Rosa, Paulo Morano, Didi Vianna, Gina Cavallieri, Décio Murilo

LIMITE
Longa-metragem Brasil 1931
Direção, Argumento, Roteiro e Montagem: Mário Peixoto
Fotografia: Edgar Brasil
Produtora: Mário Peixoto
Elenco: Olga Breno, Taciana Rei, Raul Schnoor, Mário Peixoto, Brutus Pedreira

MANDACARU VERMELHO
Longa-metragem Brasil 1960
Direção, Argumento e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Nello Melli
Produtora: Nelson Pereira dos Santos
Elenco: Nelson Pereira dos Santos, Sônia Pereira, Ivan de Souza, Miguel Torres

MULHER
Longa-metragem Brasil 1931
Direção: Octávio Gabus Mendes
Argumento: Adhemar Gonzaga e Octávio Gabus Mendes
Fotografia: Humberto Mauro
Produtora: Cinédia
Elenco: Carmem Violeta, Celso Montenegro, Ruth Gentil, Alda Rios, Luiz Soroa
124

MULHER DE VERDADE
Longa-metragem Brasil 1954
Direção e Argumento: Alberto Cavalcanti
Roteiro: Miroel Silveira e Oswaldo Moles
Fotografia: Edgar Brasil
Montagem: José Cañizares
Produtora: Kino Filmes
Elenco: Inesita Barroso, Colé Santana, Raquel Martins, Adoniran Barbosa

ORFEU DO CARNAVAL
(Orphée noir)
Longa-metragem França/Brasil 1959
Direção: Marcel Camus
Roteiro: Jacques Viot e Marcel Camus, adaptação da peça de Vinícius de Moraes
Fotografia: Jean Bourgoin
Montagem: Andrée Feix e Geneviève Winding
Produtora: Dispatfilm eTupan Filmes
Elenco: Breno Higino Mello, Morpesa Dawn, Lourdes de Oliveira, Lea Garcia

O PAGADOR DE PROMESSAS
Longa-metragem Brasil 1962
Direção: Anselmo Duarte
Roteiro: Anselmo Duarte e Dias Gomes, adaptação da peça homônima de Dias Gomes
Fotografia: Chick Fowle
Montagem: Carlos Coimbra
Produtora: Cinedistri
Elenco: Leonardo Vilar, Glória Menezes, Dionísio Azevedo, Norma Bengell

PAINEL
Curta-metragem Brasil 1950
Direção: Lima Barreto
Produtora: Cia Cinematográfica Vera Cruz

PÁTIO
Curta-metragem Brasil 1959
Direção, Argumento e Roteiro: Glauber Rocha
Fotografia: José Ribamar de Almeida e Luiz Paulino dos Santos
Montagem: Souza Jr.
Elenco: Sólon Barreto e Helena Ignez

PORTO DAS CAIXAS


Longa-metragem Brasil 1963
Direção e Roteiro: Paulo César Saraceni
Argumento: Lúcio Cardoso
Fotografia: Mário Carneiro
Montagem: Nello Melli
Produtora: Equipe Produtora Cinematográfica
Elenco: Irma Alvarez, Reginaldo Faria, Paulo Padilha, Sérgio Sanz
125

QUANDO FALA O CORAÇÃO


(Spellbound)
Longa-metragem E.U.A. 1945
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Angus MacPhail e Ben Hecht
Fotografia: George Barnes
Produtora: Selznick International
Elenco: Ingrid Bergman, Gregory Peck, Michael Chekov, Lev G. Caroll

RAÍCES
Longa-metragem México 1953
Direção: Benito Alazraki
Roteiro: Carlos Velo, Benito Alazraki, Manuel Barbachano Ponce, María Elena Lazo, Juan de
La Cabada, Fernando Espejo, José Miguel García Ascot, Francisco Rojas González e Carlos
Velo.
Fotografia: Hans Beimler e Walter Reuter
Montagem: Miguel Campos e Luis Sobreyra
Produtora: Teleproducciones
Elenco: Beatriz Flores, Juan Hernández, Miguel Ángel Negrón, Alicia del Lago, Olimpia
Alazraki, Juan de la Cruz, Carlos Robles Gil.

RIO, 40 GRAUS
Longa-metragem Brasil 1955
Direção, Argumento e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Rafael Justo Valverde
Produtora: Equipe Moacyr Fenelon
Elenco: Jece Valadão, Glauce Rocha, Roberto Batalin, Cláudia Moreno, Zé Kéti

REBELIÃO EM VILA RICA


Longa-metragem Brasil 1958
Direção, Argumento e Roteiro: Geraldo e Renato Santos Pereira
Fotografia: Ugo Lombardi
Montagem: Lúcio Braun
Produtora: Cinematográfica Brasil Filmes Ltda.
Elenco: Paulo Araújo, Xandó Batista, Jaime Barcelos, Celso Faria

ROCCO E SEUS IRMÃOS


(Rocco e i suoi fratelli)
Longa-metragem Itália/França 1960
Direção: Luchino Visconti
Roteiro: Suso Cecchi d’Amico, Vasco Pratolini, Pasquale Festa Campanile, Massimo
Franciosa, Enrico Medioli e Luchino Visconti, adaptação do romance de Giovanni Testori.
Fotografia: Giuseppe Rotunno
Montagem: Mario Serandrei
Produtora: Titanus e Les Films Marceau
Elenco: Alain Delon, Annie Girardot, Renato Salvatori, Katina Paxinou, Alessandra Penaro

SANTUÁRIO
Curta-metragem Brasil 1951
126

Direção: Lima Barreto


Produtora: Cia Cinematográfica Vera Cruz

SCARFACE, A VERGONHA DE UMA NAÇÃO


(Scarface,, shame of the nation)
Longa-metragem E.U.A 1932
Direção: Howard Hawks e Richard Rosson
Roteiro: Ben Hecht, Seton Miller, W. R. Burnett, J. Lee Mahin, Fred Pasley
Fotografia: Lee Garmes e L. W. O’Connel
Montagem: Edward Curtiss e Lewis Milestone
Produtora: United Artists e Caddo
Elenco: Paul Muni, George Raft, Ann Dvorak, Karen Morley, Boris Karloff

SENHORITA AGORA MESMO


Curta-metragem Brasil 1927
Direção e Fotografia: Pedro Comello
Produtora: Atlas
Elenco: Eva Nil, Frederico Reingold, Mae Nil, Raul Valente

SINHÁ MOÇA
Longa-metragem Brasil 1953
Direção: Tom Payne e Osvaldo Sampaio
Roteiro: Osvaldo Sampaio, baseado no romance homônimo de Maria Dezzone Pacheco
Fernandes
Fotografia: Ray Sturgess
Montagem: Oswald Haffenrichter
Produtora: Cia Cinematográfica Vera Cruz
Elenco: Anselmo Duarte, Eliane Lage, Ruth de Souza, Ricardo Campos

VALADIÃO, O CRATERA
Curta-metragem Brasil 1925
Direção: Humberto Mauro
Argumento, Roteiro e Fotografia: Humberto Mauro e Pedro Comello
Elenco: Sthephanio George Younasse, José Augusto Monteiro Barbosa, Eva Comello
127

ANEXO

O PROCESSO CINEMA

Glauber Rocha

O cinema estará condenado ao desaparecimento? Esta pergunta poderá ser pueril se a


encararmos, talvez, sob um tradicional ponto de vista crítico. Desde que se escreve sobre
filmes, a dúvida nunca deixou de existir: as condições fundamentalmente técnico-econômicas
do cinema, sua evolução e suas conseqüências cada vez mais complexas tornaram-no não só
uma indústria do pensamento como também uma organização política de longo alcance. O
Estado sempre exerce sobre o produto uma ação vigorosa, seja no que se refere à própria
orientação prévia de uma ideologia, seja no que diz respeito aos efeitos que produções de
outros sistemas possam produzir sobre a sociedade nacional: falo da censura.

A expressão, ou o meio de expressão, está também colocada no plano volúvel da


técnica: cinerama, tecnirama, televisão e novos processos de melhor conduzir a imagem viva
preocupam os produtores de tal maneira que não resta tempo para cuidar do pensamento, digo,
daquela forma de pensamento que caracteriza os criadores e poetas seduzidos pelas aparentes
possibilidades estéticas da nova arte. Depois falarei de tais possibilidades. Todos sabem que o
filme é fruto de uma produção e que uma produção é investimento de capital, como outro
qualquer, apenas com a característica particular: necessita de sensibilidade, bom gosto,
inteligência, o convencional chamado arte e outros atributos indispensáveis para que a
mercadoria seja consumida pelo espírito do povo. A mercadoria é destinada ao espírito.
Talvez seja por isto – é por isto mesmo! – que poetas são atraídos. Há uma possibilidade de
expressão mais complexa do que as formas humildes e angustiadas do próprio verso ou do
quadro. E, sobretudo, há o chamado profano do mundo que corrompe o poeta, no momento
em que ele cruza as fronteiras do cinema. Em artigo publicado neste SDJB [Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil], Bergman fala do humilde artesão antigo, do homem dotado
que trabalhava em silêncio e que morria tendo a consciência tranqüila de que era um operário
como outro qualquer. Hoje, o artesão é um objeto de atração pública. É uma exceção que atrai
a curiosidade. Se o escritor e o pintor estão, na maioria dos casos, também inseridos neste
processo de imortalidade organizado pelos editores e proprietários de galerias, o cineasta,
mais do que qualquer artista, está colocado no topo. Em seu trabalho produtores investem
milhões. É necessário tornar o autor intelectual do filme uma peça rara. É preciso convertê-lo
em monstro sagrado, como antigamente era feito com as estrelas.

Desde o neo-realismo, e mesmo antes o cinema francês, que o cineasta vem


substituindo a vedeta no programa publicitário. Com o advento da nouvelle vague, todo um
plano tradicional foi subvertido e os jornais se viram subitamente invadidos pelas fotografias-
aventuras de Vadim, Malle, Chabrol, Truffaut, Resnais, Camus, Hossein, Franju, Goddard
(sic), Molinaro e mais uma dezena de jovens diretores de cinema. Somente Brigitte Bardot
manteve vantagem promocional. Estava oficialmente estabelecida a corrupção social do
criador de filmes, artesão que, se antes era exageradamente obscuro, agora passava ao exagero
do compromisso com as bilheterias.
128

Todos nós sabemos, portanto, que o fenômeno da nouvelle vague foi apenas um golpe
de produção muito bem lançado. O que os produtores franceses fizeram quebrou também a
linha garantida dos americanos: eles deram aos jovens maior liberdade e mesmo incentivaram
a inteligência como novo ingrediente do filme. Uma inteligência, no caso francesa, mais hábil
do que aquela escandalosa que de há muito já estava industrializada por Elia Kazan e logo
depois pelas transposições de Chayefsky, isto para não falar dos novos westerns, injeção de
psicologia padronizada no gênero de maior repercussão popular do mundo.

Então a crítica apareceu como a grande vítima (consciente ou não) do assalto à cultura
e a todos os valores considerados dignos pelos altos espíritos humanos. No caso francês,
abrimos uma Bíblia como Cahiers du Cinéma e encontramos alinhados em alta consideração
nomes como os de Hitchcock, Samuel Fuller, Richard Brooks, Nicholas Ray, Martin Ritt,
Richard Quine e de quase todos os diretores americanos da moda, diretores que, à exceção de
Hitchcock, não possuem o menor sentido criativo (ou não podem demonstrá-lo). São apenas
artesãos contratados, sem idéias más, lucrativamente, portadores de certas características
pessoais capazes de servir para melhor faturar novos padrões. Este mínimo de dignidade
permitido significa muito dentro do complexo industrial. Qual o autor moderno americano
livre de pecado, se mesmo a esperança Stanley Kubrick mergulhou numa superprodução
como Spartacus?

Se encontramos, a dedo, caso de autores como Ray (Índia), Fellini, Antonioni,


Visconti e Rosselini (sic) (Itália), Bergman (Suécia) e René Clair, Alain Resnais (França) –
que lutam para manter completa independência criativa – não podemos esconder que estes
nomes são hoje valiosíssimas atrações de bilheteria alfabetizadas do mundo inteiro.

II

Vemos, não raro, depoimentos de cineastas que contam ao público seus atrozes
sofrimentos. O produtor é um inimigo. O filme perante a lei é uma mercadoria, o autor
intelectual não tem direitos sobre a sua obra, que é mutilada segundo as necessidades da
distribuição. E o cineasta, sem outro caminho, é obrigado a ceder na esperança de criar o
mínimo. Orson Welles costuma dar entrevistas deste tipo. Mas não tem o autor de Cidadão
Kane completa consciência do quanto vale em dinheiro seu nome?

O problema, contado dramaticamente pelos homens que já estão engrenados no


cinema, é mais solucionável do que pensamos: Antonioni era um autor maldito até a explosão
de L’Avventura. Em seguida, La Notte, em Paris rende na primeira exibição quarenta milhões
de francos. Hoje, Antonioni é um bestseller. Não fez as vergonhas concessões comerciais.
Apenas sua arte foi descoberta pelo público. Contou-me o Sr. Charles Malandra, supervisor
da França Filmes na América do Sul, que não tinha a menor esperança em Hiroshima Mon
Amour. A bilheteria foi fantástica. É para perder dinheiro, por acaso, que produtores franceses
gastam agora, permitindo, a Alain Resnais e Robbe-Grillet, uma brincadeira em determinado
castelo da Áustria? O próprio Grillet, dos mais destacados nomes do roman nouveau, já é hoje,
a despeito de sua literatura ainda limitada a determinados círculos intelectuais, uma vedeta em
processo. Seu nome, ultrapassando o sucesso de seus livros, transformou-se em legenda
pública, cruzou fronteiras. E como a aventura de Marguerite Duras resultou em milhões de
francos, nada mais justo do que associar Resnais a outro escritor, e nada mais inteligente do
que associar este mesmo escritor a Roger Vadim, a coca-cola dos cineastas, sexo e bom gosto
a preço módico.
129

A idéia tem seu preço. Por isto, parece-me que a crítica ou se engana ou procura
sobreviver. Sem dúvida, os críticos são mais inteligentes e cultos que os cineastas e são ao
mesmo tempo artistas íntegros ou demasiadamente tímidos, incapazes de aderir à corrupção.
Um crítico sincero teria coragem de negar o cinema, se o cinema é para ele a motivação
intelectual e também profissão? No caso brasileiro, o único homem de cinema que ainda pode
viver do ofício é o crítico. Alguns recebem bons salários pelas colunas e mais algumas
comissões de publicidade e promoção. São honestos, com as exceções de praxe, e precisam
justificar suas respectivas existências.

III

Para quem, no Brasil, ingressa na produção cinematográfica (ou também em outras


partes do mundo, e a este respeito existe excelente depoimento do hindu Ray em um número
do Cahiers) somente a experiência de fazer filme pode colocar o cineasta num angustiante
labirinto de dúvidas.

No mesmo artigo publicado neste SDJB, Bergman pergunta por que escolheu o cinema.
Esta questão é a primeira angústia. Poderíamos responder que o problema (ou a tendência) é
orgânico. Respondo, com profunda sinceridade (aproveitando uma deixa de Bergman), que o
cinema é escolhido porque é uma forma de profanação à integridade humana e porque é o
caminho mais fácil de salvar o artesão. Esta é uma resposta perigosa que dou sem a menor
sombra de medo e aqui me refiro aos artesãos e aos autores. No caso do artesão (do metteur-
en-scène) é mais lucrativo, menos possível, mais promocional do que o teatro e televisão.
Afirmo mesmo que o teatro acabaria em noventa por cento se fossem dadas as devidas
chances a seus diretores. No Brasil, então, não é preciso muito interesse para ver que cada
homem de teatro é um ambicioso do cinema. Mas como o cinema aqui inexiste a
sobrevivência mais fácil já está garantida. Não que o teatro seja uma forma menor de
expressão. Pelo contrário. Mas seria indispensável a segurança de Brecht para negar e recusar
tão violentamente como fez o autor em seu processo contra Pabst e produtores, a propósito da
filmagem de A Ópera dos Três Tostões (ou Vinténs...).

No caso do autor, que essencialmente é poeta ou ficcionista, aderir ao cinema é, em


primeiro lugar, a maior ambição de criar mundos próprios mais visíveis e divulgáveis. Em
segundo, adquirido logo após o ingresso, disponibilidade para autoflagelação. Faço referência
a este segundo aspecto apenas para salientar mais um aspecto negativo da condição de
cineasta. Mas o que realmente interessa é saber até que ponto este sofrimento físico e moral
deixa de ser talvez um masoquismo para adquirir formas disfarçadas de demagogia. O
ingresso no cinema é um passo perigoso. Todo autor (que antes é um crítico, um poeta, um
escritor ou pintor) que abandona suas primeiras tendências e resolve criar filmes traz consigo
uma irrefreável ambição. Seria preciso conservar a humildade original para recusar,
implicitamente, a fortuna e a glória. Cruzando a fronteira, já aderiu, sob aquelas formas
disfarçadas da demagogia. E este aspecto mais se consolida quando o autor vê, no filme
pronto, apenas um espectro ou, quando mais, um esboço da sua idéia original. O vício porém
já o domina e é difícil recuar. A soma de responsabilidade de um cineasta é tamanha que
recuar seria destruir um grupo inteiro. Por isto, confessa Ray, não pôde o autor de Pather
Panchalli desistir, quando o desespero da prática tomava conta do poeta.

Mas seriam as condições materiais realmente as grandes causas da frustração?


130

Embora fazer um filme seja uma via-crucis no Brasil (o termo é de Paulo Emílio Sales
Gomes) e em outros países subdesenvolvidos, é também tarefa árdua dirigir em Hollywood ou
na França. Os problemas são outros. Existem contudo em grande escala, e mesmo em estúdios
organizados o diretor se vê sempre envolvido por problemas primários, fúteis, graves,
vulgares e profundos. O processo é, inclusive, inverso. No Brasil, um close é feito sem muita
ciência. Um close em Hollywood, que pode derrotar uma grande estrela, pode ser problema de
um dia. Pode ser causa de neuroses. Portanto, as tão comentadas condições não me parecem
causas justas. Sem dúvida, existem alguns filmes realizados. E foram rodados dentro da
mesma complicação.

Espero que não consideremos bons filmes as boas faturas comerciais do cinema: o
melhor Hitchcock ou grandes peças literárias ilustradas na imagem, como é o caso de Fellini e
Bergman (cuja própria literatura, pelo caráter híbrido, é duvidosa) e, até certo ponto,
Hiroshima Mon Amour. Quando digo bons, não estou negando estes filmes, mas apenas
perguntando se são realmente filmes. A pergunta não é velha que é o filme? Aqui, seria o caso
de mais outra revisão crítica.

A imagem, rigorosamente, deve ser um vocábulo, e o cineasta deve escrever com a


imagem. Esta teoria, sob várias formas, ocupou centenas de críticos. Mas que imagem é esta?
O rosto humano? O homem? A natureza? Respondo que esta imagem apenas existiu em
algumas seqüências de alguns cineastas. Porque o cinema exige uma organização, na maioria
das vezes linear, a palavra interfere para auxiliar a imagem, evitando que o próprio ser do
cinema seja esvaziado até uma completa inconseqüência artística, que seria o didatismo dos
documentários. Não é o vanguardismo condenado até pelos mais formalistas críticos? O
cinema de hoje é uma traição ao signo. Como o ideograma japonês e como o hieróglifo
egípcio, o cinema é uma linguagem escondida e esquecida até mesmo por estes grandes
cineastas aqui citados. Não é a montagem narrativa, nem mesmo esta montagem pianística
(atonal), que pode atingir o filme. Jamais seria (e é uma covardia do espírito e da imaginação
admitir) o roteiro ficcional ilustrado, paginado na tela como se pagina uma reportagem numa
revista. Quando um crítico diz que o cinema literário é o verdadeiro cinema moderno, ele está,
realmente, procurando a salvação. É inadmissível que um homem inteligente não saiba da
incalculável tarefa intelectual que se exige para que o filme seja atingido como objeto e não
como tubo condutor de idéias duvidosas.

Quando aceitei a profissão de fazer filmes e para isto fiz a penitência de 90 dias numa
praia deserta, sem muito dinheiro e com uma equipe humanamente heterogênea, só admiti
aquele trabalho contrário às minhas idéias originais sobre o cinema porque tive a consciência
exata do País, dos problemas primários de fome e escravidão regionais, e pude decidir entre
minha ambição e uma função lateral do cinema: ser veículo de idéias necessárias. Idéias que
não fossem minhas frustrações e complexos pessoais, mas que fossem universais, mesmo se
consideradas no plano mais simples dos valores: mostrar ao mundo que, sob a forma de
exotismo e de beleza decorativa das formas místicas afro-brasileiras, habita uma raça doente,
faminta, analfabeta, nostálgica e escrava.

O exemplo não é cabotinismo mas a franqueza de confessar que o cinema como


veículo de idéias só pode ser honestamente aceito enquanto servir ao homem no que ele mais
precisa para viver: pão. Se nem só disto ele vive, para viver de lirismo, de metafísica, de
apáthos (como os críticos gostam), é preciso antes fazer as três tradicionais refeições diárias,
embora que, para isto, seja necessário morrer em várias partes do mundo, onde esteja
correndo sangue demasiado.
131

Retomando outro ponto abordado aqui inicialmente, posso quase afirmar que a
demagogia do cineasta nasce desta frustração. No caso brasileiro, onde ainda não estamos em
condições de filmar como qualquer ser humano trabalha, isto é, filmar com o mínimo de boa
técnica e profissionalismo, as ladainhas ainda devem encontrar eco. O pior é que o cineasta
aqui vive no deserto da compreensão, o que agrava mais o seu drama. Ser cineasta no Brasil é
permanecer no vestíbulo da grande experiência e, por isto, não podemos nem atingir o clímax
que possibilita a frustração como resultado orgânico. A nossa frustração é primária,
superficial. Ela está mais em conseqüência da anterior ambição econômica e social. Não é
mentira se dissermos que o cineasta nacional é um homem sempre a caminho da inutilidade.
A sua luta diária com os subsistemas de produção toma o tempo todo. Ele abandona o
emprego pela loteria. Não resta um minuto para ler este livro ou mesmo ver aquele filme. Vai
se estiolando culturalmente. Descamba na maioria das vezes para uma posição de esquerda ou
então se converte num antinacionalista extremamente reacionário, acusando, inclusive, até a
paisagem de ser responsável por seus fracassos. Estes não possuem a coragem de dar uma
olhada no espelho e ver que o asfalto das metrópoles é um pseudodesenvolvimento e que, no
fundo, somos o que mais ou menos o europeu pensa: índios de gravata e paletó. É agora,
então, que humildemente pergunto: não poderíamos nós, pobres cineastas brasileiros,
expurgar os pecados de nossas ambições? Não poderíamos voltar àquela antiga condição de
artesão obscuro e procurar, com nossas miseráveis câmaras e os poucos metros de filme de
que dispomos, aquela escritura misteriosa e fascinante do verdadeiro cinema que permanece
esquecido? Não saberia mesmo dizer que cinema é este, que verdade é esta. Esta proposta,
que não tem intenções de ser manifesto, e talvez seja mesmo uma pública interrogação
pessoal, poderá parecer romântica e até mesmo imbecil. Creio, no entanto, que o cinema só
será quando o cineasta se reduzir à condição de poeta e, purificado, exercer o seu ofício com a
seriedade e o sacrifício. Mas, por outro lado, o cinema se eleva como o maior instrumento de
idéias do universo. Seria justo a deserção dos cineastas se eles, mesmo escravos, falam por
vezes tão alto?

Sem dúvida, estamos num círculo vicioso. O cinema é uma arte profana. Somente o
futuro, com a destruição ou o enraizamento desta fase inicial, poderá responder. Até lá, entre
produção & angústia, os cineastas concedem ou negam.
132

ESTÉTICA DA FOME
Glauber Rocha

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das


discussões sobre América Latina, prefiro situar as reações entre nossa cultura e a cultura
civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do
observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o
interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas
como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria
ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do
latino.

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje,
somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas
sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de
equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral
do político.

Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo


subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e
este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado,
mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista.

A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do


atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as
formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.

O problema internacional da AL [América Latina] é ainda um caso de mudança de


colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de
uma nova dependência.

Este condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à


impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e
no segundo a histeria.

A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se


castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O
sonho frustrado da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente.
Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e
poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive
falências)... O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários
festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias
partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes,
júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as
famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos


flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a
133

pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de
sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular.
Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico,
mas de um titânico e autodevastador esforço no sentido de superar a impotência: e, no
resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do
colonizador: e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo
humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de
compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento.

A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria
sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sentida, não é
compreendida.

De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou,


analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes,
personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo
para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi
esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado
pelo Governo pela crítica a serviço dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo
público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do
Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara,
Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo:
filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes
são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os
cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se
mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está
enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais,
pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filme. O que
fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível
de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela
literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como
denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do
miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo
Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político
(Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco Vezes Favela), ao
experimental (Sol sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia
(Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todos
compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o
período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e
revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema
digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende.
Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional.
Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome.
Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados
onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos
de gabinete e que os remendos de tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores Assim,
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somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.

A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem


sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultural: os relatórios
oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem
criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar o ofício sem ensinar o
analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no
campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois
festivais internacionais.

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência


de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é
primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?

Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva e [sic; é]


revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do
colonizado: somente conscientizando sua única possibilidade única, a violência, o colonizador
pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as
armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês
percebesse o argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também
não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência
encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de
contemplação mas um amor de ação e transformação.

O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre
foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com
fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba
foge de guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os
filhos; Rosa vai ao crime salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre
precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o
amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a
segurança do amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema
medíocre.

Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema
Novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais
discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O
Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao
processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o
Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do
Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões
hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver
um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo,
aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de
qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas
importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta
definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema
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Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do


Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo
empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais
burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se
refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na
Filosofia: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao
público, a consciência de sua própria existência.

Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.

O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto
mesmo, todas as fraquezas conseqüentes de sua existência.

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