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de Melo Neto
M IN IS T É R IO
DA E D U C A Ç A O
Prosa
PNBE
2003
João Cabral de Melo Neto
Prosa
3” impressão
▲
E D IT O R A
NO VA
FR O N TE IR A
© by João Cabral de Melo Ñeco
D ir e i t o s d c e d iç ã o da o b r a e m lín g u a p o r t u g u e s a n o
B r a sil a d q u ir id o s p e la E d i t o r a N o v a F r o n t e i r a S .A .
E d i t o r a N o v a F r o n t e i r a S.A.
R u a Bam bina, 25 — B o tafo g o — 222 5 1 -0 5 0
R io de Jan eiro - R J — Brasil
T e l.: (21) 2131-1111 - F a x : (21) 2 5 3 7-2659
h ttp ://w w w .n o v a fro n te ira .c o m .b r
e-m ail: sac@ n o v afro n teira.co m .b r
E q u ip e de P ro d u ção :
Regina Marques
Carlos Alves
Leila Name
Julio Fado
R e v isã o :
Sofia Sousa e Silva
D iagram açao:
Marcio Peres de Araujo
I S B N 85-209-0896-9
97-1464
C D D 869.98
C D U 869.0(8 3)-8
P r e f á c io
6
Prefárío
Marly de Oliveira
S u m á r io
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João Cabral de Melo Neto ^ Prosa
II
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Considerações sobre o poeta dormindo
Uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. O sonho é uma coisa
que pode ser evocada, que se evoca. Cuja exploração fazemos através
da memória. Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre
nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição. Porque é preci
so lembrar que o sonho é uma obra cumprida, uma obra em si. Que se
assiste. Esta fabulosa experiência pode ser evocada, narrada. Como a
poesia, ou por outra, em virtude da poesia que ela traz consigo, apenas
pode ser transmitida.
III
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IV
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Considerações sobre o poeta dormindo
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João Cabral de Melo Neto ^ Prosa
VII
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J o a n M ir ó
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n
Quando a § Os primeiros pintores do Renascimento — in
estrutura ventores do que é hoje a Pintura — eram obriga
foi pesquisa dos a um trabalho de criação eminentemente inte
lectual. E m teoria, podemos imaginar esse tipo de
artista. Ele estava colocado diante de um problema
permanente que resolver. O mínimo detalhe de sua
composição significava problema.
§ Que resolver cientificamente (Para ele, as idéias
de ciência e de arte não se tinham dissociado como
posteriormente, até se tornarem antagônicas). A
criação de uma pintura coincidia então, com a cria
ção da Pintura. Ele ainda não dispunha de uma arte
— de uma técnica — e, muito menos, de memória.
Era, a sua, uma pesquisa de cada minuto, num cam
po desconhecido, lúcida e intelectual. Era ainda, e
essencialmente, invenção. Posteriormente, passaria
a ser descoberta.
§ A inteligência, eminentemente pragmática, resol
ve cada problema de uma vez por todas. Mata cada
problema ao resolvê-lo. Anula o que é pesquisa,
convertendo resultados em leis, isto é, em receitas.
a § Depois, o sistema dessas leis, dessa experiência,
estrutura passou a poder ser transmitido. O pintor já possuía
então a sua arte. O trabalho de criação era reduzi
do, da pesquisa de uma solução conveniente, para a
aplicação do que se sabe ser a solução convenien
te. A lei desintelectuaüza o trabalho de criação, já
que foi formulada para que esse trabalho não ti
vesse de se repetir sempre.
§ O pintor que já não criava uma lei mas aplicava
uma experiência recebida de outro, o pintor já ar
tista, vai-se tornando cada dia menos intelectual.
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P.S.
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não porque a poesia tenha de ser forçosamente uma luta com a norma
mas porque a norma foi estabelecida para assegurar a satisfação da
necessidade. O que sai da norma é energia perdida, porque diminui e
pode destruir a força de comunicação da obra realizada.
É evidente que numa literatura como a de hoje, que parece haver
substituído a preocupação de comunicar pela preocupação de expri-
mir-se, anulando, do momento da composição, a contraparte do autor
na relação literária, que é o leitor e sua necessidade, a existência de
uma teoria da composição é inconcebível. O autor de hoje trabalha à
sua maneira, à maneira que ele considera mais conveniente à sua
expressão pessoal.
D o mesmo modo que ele cria sua mitologia e sua linguagem pes
soal, ele cria as leis de sua composição. D o mesmo modo que ele cria
seu tipo de poema, ele cria seu conceito de poema, a partir daí, seu
conceito de poesia, de literatura, de arte. Cada poeta tem sua poética.
Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra, nem mesmo àque
las que em determinado momento ele mesmo criou, nem a sintonizar
seu poema a nenhuma sensibilidade diversa sua. O que se espera dele,
hoje, é que não se pareça a ninguém, que contribua com uma expres
são original. Por isso, ele procura realizar sua obra não com o que nele
é comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha
com todos os homens, mas com o que nele é mais íntimo e pessoal,
privado, diverso de todos. Para empregar uma palavra bastante corrente
na vida literária de agora, o que se exige de cada artista é que ele trans
mita aquilo que em si mesmo é o mais autêntico, e sua autenticidade
será reconhecida na medida em que não se identifique com nenhuma
expressão já conhecida. Não é preciso lembrar que, para atingir essa
expressão pessoal, todos os direitos lhe são concedidos de boa vontade.
Esta é a razão principal que faz difícil, ou impossível, abordar o
problema da composição do mesmo ponto de vista com que se abor
dava na época da tragédia clássica, o problema das três unidades. Não
vejo como se possa definir a composição moderna, isto é, a compo
sição representativa do poema moderno. Qualquer esforço nessa dire
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Mas ele jamais será ponto de partida; será sempre uma influência incô
moda contra a qual o autor tem de lutar.
Em nosso tempo, como não existe um pensamento estético univer
sal, as tendências pessoais procuram se afirmar, todo poderosas, e a
polarização entre as idéias de inspiração e trabalho de arte se acentua.
Como a expressão pessoal está em primeiro lugar, não só tudo o que
possa coibi-la deve ser combatido, como principalmente, tudo o que
possa fazê-la menos absolutamente pessoal. A inspiração e o trabalho
de arte extremos são defendidos ou condenados em nome do mesmo
princípio. É em nome da expressão, e para lográ-la, que se valoriza a
escrita automática e é ainda em nome da expressão pessoal que se
defende a absoluta primazia do trabalho intelectual na criação, levado
a um ponto tal que o próprio fazer passa a justificar-se por si só, e
torna-se mais importante do que a coisa a fazer.
Por tudo isso, se quisermos falar das idéias que prevalecem hoje em
matéria de composição literária, temos de partir da consideração dos
fatores pessoais. Podemos verificar que o conceito de composição de
cada artista, da mesma maneira que seu conceito de poema, é determi
nado pela sua maneira pessoal de trabalhar. Libertando da regra, que
lhe parece, e com razão, perfeitamente sem sentido, porque nada pare
ce justificar a regra que lhe propõem as academias, o jovem autor co
meça a escrever instintivamente, como uma planta cresce. Natural
mente, ele será ou não um homem tolerante consigo mesmo, e esse
homem que existe nele vai determinar se o autor será ou não um autor
rigoroso, se pensará em termos de poesia ou em termos de arte, se se
confiará à sua espontaneidade ou se desconfiará de tudo o que não
tenha submetido antes a uma elaboração cuidadosa.
O espetáculo da sociedade aparecerá a esse jovem autor coisa mui
to confusa e ele não saberá descobrir, nela, a direção do vento. Por
isso, preferirá recorrer ao espetáculo da literatura. A partir da vida lite
rária que está fazendo no momento, ele fundará sua poesia. O confrade
lhe é mais real do que o leitor. Ora, no espetáculo dessa vida literária
ele pode encontrar autores justificando todas as suas inclinações pes
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Poesia e composição
soais, críticos para teorizar sobre sua preguiça ou sua minúcia obses
siva, grupos de artistas com que identificar-se a partir de cujo gosto
condenar todo o resto. Aí começa a descoberta de sua literatura pes
soal. E ssa descoberta é curiosa de acompanhar-se. Primeiro, o jovem
autor vai procurando-se entre os autores de seu tempo, identificando-
se primeiro com uma tendência, depois com um pequeno grupo já de
orientação bem definida, depois com o que ele considera o seu autor,
até o dia em que possa dar expressão ao que nele é diferente também
desse seu autor. E então neste momento, em que depois da volta ao
mundo se redescobre com uma nova consciência, a consciência do
que o distingue, do que nele é autêntico, consciência formada a custa
da eliminação de tudo o que ele pode localizar em outros, que o jovem
autor pensa ter desencavado aquele material especialíssimo, e exclusi
vo, com que construir a sua literatura.
Já que é impossível apresentar um tipo ideal de composição, perfeita
mente válido para o poema moderno e capaz de contribuir para a reali
zação do que exige modernidade de um poema, temos de nos limitar ao
estudo do que as idéias opostas de inspiração e trabalho artístico trouxe
ram à poesia de hoje. Na literatura atual, a polarização entre essas idéias
chegou a seus pontos mais extremos e é a partir desses extremos que se
organizam as idéias hoje correntes sobre composição. Também cabe sa
lientar que essas posições extremas não estão ocupadas por um só con
ceito de inspiração e por uma só atitude radical de trabalho de arte. A
inspiração será identificada por uns como uma presença sobrenatural —
literalmente — e a inspiração pode ser localizada por debaixo das justi
ficações científicas para o ditado absoluto do inconsciente. Trabalho de
arte pode valer a atividade material e quase de joalheria de construir
com palavras pequenos objetos para adorno das inteligências sutis e pode
significar a criação absoluta, em que as exigências e as vicissitudes do
trabalho são o único criador da obra de arte.
Ê a partir desses pontos externos que tentaremos esboçar as idéias
que prevalecem hoje a respeito da composição literária.
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vida diária dos homens. Para o poeta de hoje essa exigência é violenta
porque em sua sensibilidade ele não dispõe senão de formas pessoais,
exclusivamente suas, de ver e de falar. Ao passo que no autor identifi
cado com seu tempo não será difícil encontrar a mitologia e a lingua
gem unânimes que lhe permitirão corresponder ao que dele se exige.
N essas épocas de equilíbrio, fáceis de encontrar nas histórias
literárias, não há na composição duas fases diferentes e contraditórias
— não há um ouvido que escuta a primeira palavra do poema e uma
mão que trabalha a segunda. Nessas épocas, pode-se dizer que o tra
balho de arte inclui a inspiração. Não só as dirige. Executa-as também.
O trabalho de arte deixa de ser essa atividade limitada, de aplicar a
regra, posterior ao sopro do instinto. Também não se exerce nunca
num exercício formal, de atletismo intelectual. O trabalho de arte está,
também, subordinado às necessidades da comunicação.
As regras nessas épocas, não são obedecidas pelo desgosto da liber
dade, que segundo algumas pessoas é a condição básica do poeta. A
regra não é a obediência, que nada justifica, as maneiras de fazer de
funtas, pelo gosto do anacronismo, ou as maneiras de fazer arbitrárias,
pelo gosto do malabarismo. A regra é então profundamente funcional
e visa assegurar a existência de condições sem as quais o poema não
poderia cumprir sua utilidade. Para o poeta ela não é jamais uma mu
tilação mas uma identificação. Porque o verdadeiro sentido da regra
não é o de cilicio para o poeta. O verdadeiro sentido da regra está em
que nela se encorpa a necessidade da época.
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C r ít ic a l it e r á r ia
A GERAÇÃO DE 45*
Artigo I
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Artigo II
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Crítica literária
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Apenas uma vaga noção de verso livre; mas essa mesma noção de
verso livre não era a de um verso mais plástico, com maior variedade
de ritmos, mas a de verso em plena liberdade, como que autorÍ2ando
qualquer maneira de fazer peculiar.
A despreocupação formal desses poetas, que sobrevive em quase
todos, com uma ou outra exceção recente, parece vir daí: desse senti
mento de que sua voz não teria de se submeter a nenhuma forma
preexistente, e de que sua forma seria definida depois da obra realiza
da, como soma das peculiaridades de sua voz.
Para o poeta de 1930, o que havia a fazer era cantar, simplesmente.
Não havia uma sensibilidade criada, como sua exigência, sua prefe
rência por tal ou qual forma. A eles é que competia criar essa sensi
bilidade. Eles estavam colocados numa posição especial. Naquele
momento coincidia a criação de sua poesia pessoal com a criação de
uma nova poesia brasileira, com suas novas formas, sua mitologia, sua
sensibilidade, isto é, seu público.
Sua despreocupação formal: quis dizer, seu desprezo pelo que na
poesia pode vir do jogo ou dos recursos puramente formais. Se a poe
sia que muitos desses poetas escrevem hoje é diferente da que escre
viam em seus primeiros livros, o verso que eles empregam é, no fundo,
o mesmo de antigamente, está claro que com bastante mais desenvol
tura. Mas é o mesmo, o verso nascido das exigências de sua expressão
pessoal, o verso que se sentiam mais aptos a realizar, ou o único que
lhes era possível realizar. Pois esses diferentes tipos de verso foram os
que se transformaram nas matrizes que os poetas de 1945 encontra
ram em funcionamento e às quais tiveram de se submeter sua voz.
Para o poeta mais jovem, surgido quando a poesia brasileira, como
conjunto de formas aceitas e como sensibilidade, estava cristalizada
em torno da obra de sete ou oito desses inventores mais originais, a
situação era completamente diferente. Em primeiro lugar, encontra
ram eles uma sensibilidade formada. Impor-se, para eles, era muito
mais fácil do que os poetas de 1930, que tiveram de criar, com os
anos, o seu leitor. Os poetas de 1945 encontraram já uma determinada
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Crítica literária
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Artigo III
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Critica literária
meifos poemas, mas que se vai fazendo mais e mais aparente à medida
em que, com o domínio da técnica adotada, ele vai conseguindo libe
rar mais e mais sua mensagem particular.
E ssa renovação se processa, assim, como uma luta pela libertação.
O que acontece é que essa luta está ainda em curso, e que ainda
podem ser identificados, mesmo nos poemas dos que mais evidente
mente avançaram em seu caminho pessoal, a marca desta ou daquela
maneira de fazer aprendida. Dito de outra maneira: o que já tem sido
realizado passa desapercebido se o processo não é encarado como um
processo em andamento, dinamicamente, ou se se exige desses poetas
de 1945, desde o primeiro momento da luta, uma completa vitória.
Evidentemente, para que esse estágio final do processo, isto é, a
obtenção de uma maneira de fazer completamente independente da
que foi adotada como ponto de partida, já tivesse sido alcançado por
muitos, seria necessário nos poetas dessa geração, mais do que ver
dadeira força poética. Seria necessário que cada um deles estivesse
armado de uma aguda consciência de si mesmo e da tradição em que
se tem de mover, inicialmente, a fim de poder apressar o processo de
liberação por meio da eliminação de tudo o que em sua voz soasse
como eco da voz de alguém.
Ora, é inegável que dentro da geração de 1945, esse tipo de escritor
não é numeroso. Mas também eles não são freqüentes nem na Litera
tura Brasileira nem entre os poetas que foram os criadores das formas
da poesia brasileira presente. Não foi uma grande consciência poética
que transformou estes últimos em inventores de poesia, mas sua posi
ção histórica, que fazia deles cantores libertos de toda a tradição e
dava categoria de estilo às próprias deficiências de seu canto.
Não é de estranhar por tudo isso, que o avanço da grande maioria
dos poetas da geração de 1945 no sentido da obtenção de um timbre
pessoal para sua poesia, se dê lentamente. E m muitos deles não existe
mesmo uma consciência nítida daquilo que em seu poema é recebido
de outro. E m outros, não existe uma adesão a uma forma já existente,
um ponto de partida único, mas a incorporação de experiências de
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diferentes poetas. Tudo isso dificulta a luta que têm de realizar. Sua
libertação terá de fazer-se pouco a pouco na medida em que o maior
domínio de seus meios diminua o peso do ato de fazer e permita sua
mensagem particular se revelar livremente.
Talvez seja este o momento de indicar em que sentido se está ope
rando a ação dos poetas de 1945 dentro da poesia brasileira contem
porânea. Tanto no que diz respeito às formas como no que diz respei
to ao repertório dessa poesia, a contribuição dos poetas mais jovens
tem sido a de estender, alargar a base estreitamente individual com
que, a partir da expressão de sete ou oito inventores mais poderosos se
estava fazendo a poesia brasileira.
Isto é: estendendo a base dessa poesia, ampliando a experiência
adotada como ponto de partida, desenvolvendo certas tendências ape
nas apontadas na obra daqueles fundadores de caminhos, a geração de
1945 está contribuindo para reduzir as diferenças entre os sete ou oito
caminhos particulares, irredutíveis entre si, desde a linguagem empre
gada até o conceito mesmo de poesia e arte poética. E sobretudo, pode
contribuir para a fusão dos grupos de sensibilidade que se organizam a
partir da expressão pessoal de cada um desses inventores, numa sensi
bilidade mais geral.
Isto é, o trabalho de extensão, determinado pela sua posição histó
rica, pode levar perfeitamente à criação de uma expressão brasileira
moderna, geral, que seja constituída não pela coexistência de um pe
queno número de vozes irredutíveis e dissonantes, mas por uma voz
mais ampla e geral, capaz de integrar num conjunto todas as disso
nâncias.
N o que diz respeito às modificações operadas pelos poetas de 1945
nas formas encontradas e adotadas como ponto de partida para sua
expressão pessoal, creio ser evidente que eles a tornaram muito mais
maleáveis. Porque não as inventaram, lhes foi muito mais fácil
desenvolvê-las. Eles encontraram um conjunto de soluções resolvidas
onde escolher livremente. Eles podiam facilmente, desenvolver solu
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ções apenas esboçadas, que seus criadores haviam largado por falta de
oportunidade ou de gosto.
Não há dúvida de que o verso perdeu o sabor de coisa nova, o
encanto de coisa que se inventa, com sua dureza e seus tropeços
freqüentes, e bastante, também, do outro encanto, a que nos acostu
mamos modernamente — o que vem de saber determinada coisa pes
soal, absolutamente, e exclusiva. Mas ganhou em desenvoltura, enri
queceu-se de novos ritmos, em fluência. Sobretudo, .ampliou-se
consideravelmente, se fez polivalente, pôde ser empregado para trans
portar experiências diversas daquelas que o determinaram.
Neste ponto, é preciso fazer referência a uma outra opinião forma
da a respeito da geração de 1945, compartida aliás por alguns. Quero
referir-me à opinião que enxerga numa certa tendência esteti^ante o deno
minador comum da obra desses poetas.
Não creio que tal tendência possa definir a todos. Talvez ela seja
válida para um grupo — para aquele grupo menos numeroso que, em
bora partindo da experiência de um poeta mais antigo, toma essa experi
ência quase que pelo seu lado negativo, quase como coisa contra que
lutar. Mas os poetas que criam nesse estado de tensão são raros. A gran
de maioria dos poetas de 1945 não demonstra uma consciência de seu
ofício suficientemente grande a ponto de constituir tendência.
Contudo, até o ponto em que tendênáa esteti^ante não pretenda signi
ficar uma atitude mental definida, ela pode valer. Isto é, até o ponto
em que com essas palavras se queira registrar a desenvoltura ou a
plasticidade (o que não é consciência estética, ao pé da letra) com que
muitos desses poetas de 1945 chegaram a manobrar o verso herdado
dos poetas que os antecederam.
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E sb o ç o d e pa no ra m a *
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literária aparecida, hoje em dia, entre nós. Com ela, certos valores fo
ram substituídos, muitos deles pelos valores opostos aos que preva
leceram a partir de 1930. Outros dos valores introduzidos vão de en
contro ao movimento de apreensão da vida brasileira pregado pelos
modernistas de 1922. E outros, enfim, vão contra a própria tradição
da Literatura Brasileira e contra o que parece lícito esperar-se da lite
ratura de um país em construção.
O que parece existir por debaixo nos novos valores introduzidos
poderia ser resumido dizendo-se que são portas para fugir da realidade
que se reclama dos escritores de hoje. Para isso, substituiu-se o objeti
vo pelo subjetivo; o real pelo sobre-real; deixou-se de exigir de uma
obra comunicação para exigir-se expressão; passou-se a renunciar ao
que na literatura pode ser instrumento de influência coletiva em nome
do que, nela, pode satisfazer a certas necessidades interiores, egoístas
por sua exclusividade. Em resumo: passou-se a desprezar o que um
livro vai ser capaz de realizar, uma vez publicado, e a valorizar-se o
que um livro foi capaz de realizar, ao ser escrito.
A escolha da poesia como porta de saída da realidade, razão prin
cipal de sua posição na Literatura Brasileira de hoje, está justificada
pela própria natureza moderna da poesia. Digo moderna pensando
no conceito atual de poesia que a vê como uma substância comple
tamente independente do verso. Este, antes, era um instrumento rít
mico, capaz de criar a linguagem afetiva que iria dar um sentido poé
tico a determinada mensagem. Foi esse conceito que permitiu a
existência de toda a poesia épica, da poesia didática e, ainda hoje, da
poesia narrativa popular.
Desde o momento que se descobriu que a missão do poeta não era
falar poeticamente de coisas do mundo, mas criar no leitor um estado
especial, independente de todo o assunto que pudesse transmitir, a
poesia perdeu sua capacidade de explorar a realidade, de transmitir,
por meio da linguagem afetiva, um conhecimento da realidade. A poe
sia passou a ser um estado, uma sensação, a freqüência de realidades
artificiais.
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C omo a E uropa v ê a A m é r ic a *
R espo sta à t e se d o pr o fesso r R o g e r Ba s t id e
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Como a fiuropa vê a América
por outro lado, cabe estranhar que certos setores da sociedade européia,
esmagados na concorrência com essa sociedade maquinista norte-ame-
ricana, procurem, exatamente, emigrar para o seio dela. (Não nos deve
mos esquecer de que as cotas nacionais estabelecidas pelas autoridades
de imigração dos Estados Unidos são sempre muito inferiores ao núme
ro de candidatos à imigração e que em todos os países da Europa, ainda
hoje, pessoas esperam, anos e anos, por sua vez na fila de candidatos a
receberem visto de residência das autoridades norte-americanas).
Não é só da uniformidade de opinião dos europeus em seu julga
mento das Américas que fatos como estes nos levam a duvidar. Fatos
como estes nos fazem ver com reserva a tese do prof. Bastide, segun
do a qual a visão que o europeu tem, hoje em dia, da América Saxônica,
está condicionada por uma atitude de defesa do humanismo, face ao
maquinismo desumanizador.
Mas, cabe a pergunta agora: não estaria sendo a interpretação do
ilustre relator, apenas, aquela média entre as atitudes extremas que
indiquei um pouco acima? Tenho, para mim, que tais pontos extremos
de opinião são irreconciliáveis e que, mais do que uma média que ge
neralize a opinião do povo europeu, a interpretação do prof. Bastide
representa o modo de ver das camadas intermediárias da sociedade
européia, camadas que se situam entre aquelas outras cujos interesses
determinam esses pontos de vista extremos. O que não é a mesma
coisa: pois enquanto o estabelecimento de uma média aritmética é
capaz de representar determinado conjunto (e este é um dos funda
mentos da estatística), a opinião de um setor intermediário da socie
dade não é forçosamente representativa dessa sociedade.
O fato de não ter o ilustre relator levado em conta a diversidade de
opiniões dos diferentes setores da escala social em que se distribui o
povo da Europa a respeito de cada uma das Américas, é mais de se
lamentar, quando se pensa na América Latina. Não apenas por estar
mos incluídos nesta mesma América Latina. Sobretudo, porque o prof.
Bastide parece esperar muito do perfeito entendimento entre o que se
poderia chamar a velha e a nova latinidade. Não é pelo gosto da minúcia
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Como a Huropa vê a América
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Por outro lado, uma visão muito mais realista da América Latina
tive a surpresa de encontrar nos trabalhadores, candidatos à emigra
ção para o Brasil, a quem entrevistei e dei vistos em passaportes du
rante anos. Pois bem, não me lembro de ter encontrado no meio de tais
emigrantes qualquer atitude messiânica quanto a uma sua possível
missão na América Latina, como, tampouco, qualquer visão ideal ou
simplesmente aventureira de possíveis eldorados americanos. Encon
trei, sim, uma atitude consciente, nascida de uma visão realista e in
formada da realidade brasileira, informada acerca de dados sobre as
condições de vida no Brasil, mesmo acerca de dados considerados os
menos relevantes; encontrei uma visão concreta, que a muitos pode
parecer limitada e superficial, mas que existe indiscutivelmente e com
a qual é indispensável contar.
Ora, a importância de termos, nós brasileiros, uma consciência exata
do que é a visão desses homens, parece-me indiscutível. Quando nada,
porque a visão que tenham de nós deixa de ser assunto para discussões
acadêmicas, porque eles vêm, de fato, concretamente, agir sobre nossa
vida de latino-americanos. E uma visão que se traduz em ação, desde
o momento em que penetram, como imigrantes, na vida do país. Esses
homens são, em geral, os que trazem na capacidade de suas mãos, os
fatores que construíram a civilização européia, e eles é que operam
aquele transplantamento de que tanto se fala.
Seria demasiada impertinência pedir ao eminente prof. Roger Bastide
que, algum dia, reduza a “ categorias” a visão que o imigrante europeu
desse tipo tem da nossa América Latina?
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E/ogio de A ssis Chateaubriand
que com sua escrita têm tendência a considerar todo esse homem: ou
o mais significativo desse homem.
Nem poderia ser outro o método de ninguém que quisesse dar a
entender a obra de um escritor que foi sobretudo um jornalista. Pois
se, num jornalista qualquer, já é difícil traçar uma linha nítida entre
sua obra e sua personalidade, em Chateaubriand essa dificuldade se
faz impossibilidade. A obra de um jornalista, todos o sabemos, não é
nunca a obra de um escritor de gabinete, e uma análise puramente
estilística não levaria muito longe. Para se apreender a obra de um
jornalista, creio, mesmo quando se está apenas à procura de sua quali
dade literária, é indispensável levar-se em conta o homem que a escre
veu: desde as condições em que esse homem escreveu, até o que leva
va esse homem a escrever.
No caso de Chateaubriand, essas condições foram as condições co
muns aos jornalistas profissionais. Mas há nele um traço psicológico que
não se pode deixar de levar em conta, e que ele mesmo definiu, ao decla
rar no Senado: “Sou uma índole de controvérsia” . índole que, sem dúvi
da nenhuma, Chateaubriand pôde expressar amplamente, pois não sei
de jornalista que mais se tenha envolvido em controvérsias, que mais
tenha amado a controvérsia. Era como se só concebesse viver nesse
clima; e não espanta que, apesar de tudo o que de positivo ele realizou,
tenha vindo a ser um dos homens mais controvertidos de nosso tempo.
E sse traço de seu caráter, aliás, já se havia revelado em sua moci
dade. Lembremo-nos da maneira inteiramente desinteressada, com que,
em A. morte da polide% lançou-se contra Sílvio Romero, na polêmica
que este mantinha com José Veríssimo. E esse traço de caráter conti
nuou pela vida afora: a leitura de seus discursos no Senado dá a im
pressão de que o orador só “ entrava em calor” quando os apartes se
cruzavam a sua volta, ou quando violentamente aparteado ele mesmo.
Nessa atmosfera de polêmica viva ele parecia mais à vontade e toda
sua vivacidade despertava. E ssa era a atmosfera preferida de sua inte
ligência e a mais propícia a seu estilo de escritor, e ele tudo parecia
fazer para provocá-la.
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Elogio de A ssis Chateaubriand
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João Cabral de Melo Neto Prosa
presa, que receia ir mais além desse onde chegar: para só citar dois
tipos sociais com que ele tanto conviveu, cujos interesses sempre es
teve associado, mas que o devem ter visto sempre, quando seu asso
ciado, desconfiadamente, como um verdadeiro espalha-brasas. E (não
creio que seja absurdo dizê-lo) esse seu gosto da controvérsia o deve
ter levado, de propósito, e mais de uma vez, a adotar campanhas que
ele sabia as mais impopulares.
Depois desse seu gosto da controvérsia, há um segundo traço em
Assis Chateaubriand que me parece essencial para definir o tipo de
jornalista que ele foi. Deste, também, ele tinha consciência, e muitas
vezes aludiu a ele: gostando mesmo de se classificar como repórter,
“ simples repórter” . N a verdade, em tudo o que escreveu, sente-se a
preponderância do fato acontecido, do lado concreto, da observação
de momento, da anedota vista ou ouvida; e tudo o que ele escreveu
parte sempre do episódico e está limitado pelo circunstancial: coisas,
todas essas, que constituem o instrumento e o material do repórter. E
vê-se também, em Chateaubriand, muito pouco de discussão abstrata
de idéias e quase nada de especulação ou de jogo de idéias.
Contudo, esse repórter que parece pensar somente a partir de fatos
que observou, e escrever somente com os fatos que tem na mão, nun
ca foi o repórter que se apaga por detrás do que os fatos dizem.
Chateaubriand participava, e nunca friamente, do sentido dos fatos
que lançava, punha de enfiada, empilhava em cada artigo. E essa sua
atitude não vem da época de jornalista eminente. Essa incapacidade
de apagar-se por detrás da linguagem dos fatos é visível, já, no autor
das reportagens sobre a Alemanha de 1920: muitas das entrevistas que
fez então, quando não soam com o verdadeiros debates entre o
entrevistador e o entrevistado, revelam a mão do entrevistador, com
pletando, discutindo, sublinhando o que disseram os entrevistados;
levando-os, a todos, na direção da tese de todo o livro.
Esses dois traços do jornalista Assis Chateaubriand criavam uma
dualidade que descreve melhor do que nada, o que ele foi como jorna
lista: um curioso cruzamento de polemista e de repórter; de homem
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Seu gosto da controvérsia explica, acho eu, certo ponto de sua bio
grafia: porque depois de um concurso para a Faculdade de Direito do
Recife e de uma viagem ao Rio para defender a cátedra que por moti
vos políticos não lhe queriam dar, no Rio tenha ele permanecido, en
tregue ao jornalismo, como se de repente tivesse compreendido que a
atividade de professor não poderia satisfazer aquele seu gosto da con
trovérsia; e que a atividade de jornalista num meio mais limitado, como
o da província, não poderia satisfazer esse gosto, ou satisfazê-lo com a
intensidade que, pelo que se depreende de sua vida posterior,
Chateaubriand devia então desejar.
D a mesma forma que seu gosto da controvérsia, seu lado de repór
ter, de homem cuja linguagem é feita mais de fatos do que de idéias,
explica outro ponto de sua biografia: seu curto exercício da profissão
de advogado, a que se dedicou, em certa ocasião, no Rio de Janeiro.
Quem sabe? E ssa profissão, que lhe permitiria escrever e agir perma
nentemente num clima de controvérsia não o tenha interessado muito
tempo porque, nela, a controvérsia, embora se inicie num plano con
creto, não permanece nunca nesse mesmo plano. Mas fatalmente se
amplia, e vai subindo, de instância a instância, para planos em que é
mais freqüente o debate de idéias, até acabar, muitas vezes, num plano
de pura especulação de idéias. Ora, o gosto da especulação, nesse ho
mem de grande curiosidade intelectual, está tão ausente de seus temas
quanto o abstrato do debate de idéias está ausente de sua linguagem.
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João Cabral de Melo Neto ^ Prosa
não literárias, mais de homem público, ele, mais do que nenhum, cor
reu o risco de que a qualidade de sua prosa ficasse despercebida.
Porque, para o leitor corrente, a expressão grande escritor, quando
aplicada a um jornalista, está destinada ao escritor que, de fora da
redação, também escreve para jornal; muito mais para este do que para
quem, dentro da redação, escreve sujeito às condições em que tem de
trabalhar o profissional do jornal; isto é, os que possuem aquele tipo
de inteligência que Eliot definiu como a do jornalista: a “que só pode
dedicar-se a escrever, ou que só produz o melhor do que escreve, de
baixo da pressão de uma ocasião imediata...” .
Assim, permito-me inverter os termos da tendência mais geral e
dizer que Chateaubriand foi um grande jornalista não por suas realiza
ções nem por suas lutas, mas, antes de tudo, porque foi um grande
escritor em prosa. E grande escritor não por haver escrito conservado
ramente, mas sobretudo porque foi um escritor criador: um escritor
que soube passar ao lado de todos os rolos compressores a serviço da
uniformidade, e, portanto, da pobreza, estilística, não pelo puro gosto
de subverter regras, mas porque havia nele essa coisa especial, e rara,
que revela, mais do que qualquer outra, o verdadeiro escritor: certa
maneira pessoal de usar a linguagem que dá um sotaque original ao
que ele escreve. Não gratuitamente mas funcionalmente original, isto
é, adaptado ao que ele tem a dizer, e capaz de fazer mais significativo
o que ele tem a dizer.
E o que é importante fazer notar: homem de redação toda a vida,
mesmo quando dono de jornais, o exercício do jornalismo nunca neu
tralizou o que me parece o traço mais saliente de seu estilo de escritor:
que foi o de escrever numa língua falada. Nisso, aliás, Chateaubriand,
homem de redação, se aparta do que acontece aos homens de redação.
Pois se as condições do trabalho de redação prejudicaram esse escritor
sob certos pontos de vista, não puderam prejudicá-lo naquilo que, para
um escritor, é essencial: encontrar sua voz própria, esse sotaque pes
soal que Chateaubriand, com o instinto de verdadeiro prosador, trans
formou em estilo.
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João Cabral de Melo Neto ** Prosa
prosa, dessa língua falada. Ela está ausente, por exemplo, em A morte
da polide% em que ele parece menos interessado em escrever com sua
voz própria do que em dar uma demonstração de que o jornalista de
vinte anos conhecia bem a técnica dos grandes polemistas da época. E
se essa língua falada começa a aparecer oca. A Alemanha, livro de 1921, a
verdade é que aparece em muito poucos momentos, como se o jornalis
ta de trinta anos ainda não tivesse consciência daquilo que viria a ser sua
maneira, ou não se sentisse ainda com toda a liberdade de exercê-la.
Por outro lado, se é certo que o estilo do primeiro Chateaubriand é
menos pessoal como textura, e está ainda longe da estupenda liberda
de com que escreveu a partir dos últimos vinte anos, é também verda
de que a estrutura de seus primeiros artigos é muito mais construída e
bem acabada. Esses artigos e reportagens mais antigos têm mais coe
são e coerência, e não sofrem do fragmentarismo das obras de sua
maturidade (que contudo são, como já disse, muito mais pessoais como
textura). Ao mesmo tempo, sua prosa mais antiga parece saber melhor
onde quer chegar, segue uma continuidade mais linear e clara do que a
prosa de rumo caprichoso de sua maturidade, que é inesperada, sem
pre a ponto de transbordar de si mesma, ou de se bifurcar por atalhos
incidentals absolutamente imprevisíveis.
Não pretendo que houvesse em Chateaubriand um projeto consciente
de escritor de chegar a uma linguagem falada. Creio, mais bem, que ele
chegou a ela por motivos psicológicos que estão, mesmo, no oposto de
qualquer “vontade de estilo” . A linguagem falada se foi desenvolven
do nele à medida que foi mudando sua situação de jornalista: à medida
que esta lhe foi dando uma maior liberdade como prosador. Mas seu
estilo não é em nada um estilo construído, planejado: é simplesmente
o estilo que ele achou quando sua situação de jornalista-dono-de-jor-
nais lhe permitiu escrever, não em estilo de jornal, mas da maneira
como bem lhe parecesse. Ora, ao poder escrever como bem lhe pare
cesse, Chateaubriand se viu escrevendo como falava.
Essa maior liberdade de que o jornalista-dono-de-jornais, com seu
temperamento informal e insofrido, passou a gozar, explica, a meu
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João Cabral de Melo Neto ■*=>' Prosa
soa outra. Assim, ela nada tem dos tons variados de uma conversa,
mas o tom único de uma discussão, ou de um debate; e é a língua de
uma pessoa que fala como quem discute, como era a própria fala de
seu autor, e que discute sempre apaixonadamente.
E também não se sente nela, jamais, o tom do oráculo ou do pro
fessor; e menos o de quem pretende dizer a palavra definitiva e lapi
dar. É , sempre, a voz de Chateaubriand, a voz física de alguém que
busca convencer e influenciar alguém; é sempre a voz de quem está
numa discussão e se apoderou da palavra num interminável monólo
go, e que, por isso mesmo, porque parece monologar durante uma dis
cussão, nunca esquece a presença do adversário, e, embora não lhe
ceda a palavra, monologa como antecipando todas as possíveis obje-
ções desse adversário; e é sempre a voz de quem, embora apaixonado,
não despreza esse adversário e não se situa jamais acima dele: mas se
esforça sempre para manter um nível em que a discussão seja possível;
e sobretudo em que a discussão possa continuar.
Essa prosa falada de Chateaubriand se foi fazendo tão natural nele
que, a partir de certo momento, é impossível distinguir o que escreveu
como artigo de jornal do que escreveu como discurso; ou o discurso
que improvisou, e que, recolhido por algum taquígrafo, foi publicado
como artigo de jornal, da transcrição de um monólogo informal do
conversador infatigável que ele era. Seus discursos no Senado, tanto
como seu discurso de recepção na Academia, e os muitos outros que
ia improvisando nas mil inaugurações e batismos de suas campanhas,
muitos deles publicados no local reservado a seu artigo diário, são
boas confirmações disso.
N ão creio que para chegar a esse estilo de prosa, que faz de
Chateaubriand um caso especial em nosso jornalismo profissional, te
nha sido casualidade o fato de, nascido em 1891, ter sido ele contem
porâneo dos criadores de nosso Modernismo. Nada sei da opinião que
Chateaubriand fazia do grande movimento renovador, nem até que
ponto se interessou por ele. N a época da Semana de Arte Moderna,
Chateaubriand já estava dedicado ao jornalismo político, e as questões
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Assis Chateaubriand com o sense of humour que não era uma das
menores qualidades de sua prosa, ao se empossar nesta Cadeira, cha
mou-a de “paiol de pólvora” . Disse que era “barulhenta” a “memória
dos que aqui se sentaram” , e chegou mesmo a falar na “rotina desse
clima celerado da cadeira de Gonzaga...” . E com outro traço de humour.,
que completa e realça o primeiro, excluiu-se ele mesmo dessa rotina,
dizendo: “Acredito que a Academia me elegeu como quem busca uma
natureza de equilíbrio para tirar o demônio que há mais de cinqüenta
anos ronda esta cadeira” .
Por mim, devo dizer que não consigo ver nenhuma tradição co
mum às personalidades de Tomás Antônio Gonzaga, Silva Ramos,
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A DIVERSIDADE CULTURAL NO
DIÁLOGO N o RTE-S u L*
Não creio que seja este o fórum apropriado para se discutir certos
aspectos culturais no diálogo Norte—Sul — e que são seus aspectos
determinantes — a saber, o lado econômico e político, como o inter
câmbio comercial, o neo-colonialismo, o imperialismo, etc.
Creio que esta reunião — no próprio título que a define, se limita
aos aspectos culturais — a diversidade — deste diálogo.
Ressalvo que a palavra diálogo não me parece a mais apropriada.
Se há diálogo, é um diálogo um pouco especial em que um dos
interlocutores fala muito e que só é interrompido pela intervenção
ocasional dos outros interlocutores. Isso é visível no intercâmbio cul
tural entre o Norte e o Sul, onde este último só dispõe da palavra
quando sua obra é importante demais para ser ignorada. Refiro-me
principalmente à literatura, e talvez possa fazer notar quão menor nú
mero dos aqui presentes que podem falar do Sul em relação aos que
podem falar do Norte.
Além disso, cumpre-me fazer notar que essa formulação Norte—Sul
é por demais vaga, e não leva em consideração situações de diálogo
que não são as mesmas. O diálogo Grã-Bretanha—Estados Unidos nada
tem de comum, por exemplo, com o diálogo Espanha—Venezuela,
França—Senegal, Portugal—Brasil, e, imagino, porque não o conheço, o
diálogo entre e a Holanda e suas antigas colônias.
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A diversidade cultural no diálogo Norte-Sul
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João Cabral de Melo Neto ^ Prosa
E ssa situação não existiu nos países da América Latina, cuja co
lonização sistemática é anterior de alguns séculos. Nestes, como já
disse, sua literatura foi a princípio, uma cópia das literaturas das me
trópoles. Mas aos poucos, a vida num ambiente tão distinto, cercado
de coisas desconhecidas nunca expressadas anteriormente em litera
tura, fez com que se operassem certas transformações. E ssa literatu
ra molla, feita pelos filhos dos primeiros colonizadores europeus,
embora continuasse seguindo as formas dos colonizadores, já fala
va, usando essas formas, de uma outra realidade. E com isso muito
antes de que surgisse nessa literatura criolla qualquer sentimento de
nativismo político e de independência econômica.
Com a independência dos países da América Latina, nos princípios
do século X IX , e depois de anos em que certo sentimento nativista
se foi cristalizando e fazendo mais presente, surgiu uma literatura
mais francamente de reação contra as metrópoles. Essa fase já não
estava diretamente influenciada pela literatura dos colonizadores, mas
pela influência francesa. Então já não eram os temas que eram dife
rentes, mas as formas, e principalmente o uso da linguagem. Pode-se
dizer que a partir da independência os movimentos literários segui
ram os da França, e embora chegassem aos jovens países com algu
mas décadas de atraso, esses movimentos passaram a coincidir com
os da França, que os escritores, por reação contra a cultura das anti
gas metrópoles, passaram a ver a matriz de todo movimento cultu
ral. Assim como na França, sucederam-se no século X IX , o Roman
tismo, o Realismo, o Parnasianismo, o Simbolismo, na mesma ordem
e com a mesma ideologia dos movimentos homônimos da França.
(Nas antigas colônias espanholas, a ordem sofreu uma pequena alte
ração: o chamado “Modernismo” combinava Parnasianismo e Sim
bolismo, enquanto que no Brasil, esses movimentos eram diferencia
dos e até antagônicos.) Estou generalizando a partir da experiência
brasileira, mas não creio que nos países americanos de língua espa
nhola, apesar da exceção que apontei, a evolução tenha sido essen
cialmente diversa.
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João Cabral de Melo Neto & Prosa
que ela tem de pitoresco ou de costumbrista, isto é, pelo que ela possui
de exótico. O que essa literatura pode mostrar de novo e de profun
do sobre o homem de qualquer latitude não consegue ser assimilado.
O leitor do N orte conhece tais literaturas m esm o quando são
traduzidas e escritas em sua própria língua, apenas ocasionalmente e
por amostras esporádicas. Não integra essa literatura no corpo da
literatura universal (o que para eles é a do Norte), ou melhor, na
tradição das literaturas européias.
Por esse motivo, não creio que se possa falar num diálogo cultural
Norte—Sul, mas num quase monólogo dos países do Norte em que só
esporadicamente um escritor do Sul consegue a palavra. Se reuniões
como esta em que estamos podem se transformar num verdadeiro
diálogo cultural é coisa que resta a ver. Não acredito muito em que
discussões de intelectuais, que nada podem influenciar no estabeleci
mento de um diálogo econômico e político verdadeiro, possam deter
minar alguma transformação no estado atual das coisas. Como dizia
Auden: “A poesia não faz nada acontecer.”
Henry James dizia mais ou menos que o que faz a diferença entre
um escritor americano e um escritor europeu está em que o primeiro
busca seu “bem” em qualquer literatura estrangeira, ao passo que o
escritor europeu busca seus mestres dentro da tradição de sua própria
literatura. Se Jam es, norte-americano que escreveu numa época em
que a literatura de seu país era já rica de tradição, que dizer dos países
da América Latina, independentes no princípio do século X IX , e dos
da África e da Ásia, independentes em meados do século X X ? N ossa
tradição de escritores do Sul é curta, e não creio que nossa literatura se
possa desenvolver endogamicamente como as literaturas européias. É
certo que a tradição literária dos povos que foram colônias não se
limita à literatura que foi feita a partir dos descobrimentos ou a partir
da independência. A tradição é de toda a língua e embora nas colônias
ela se tenha modificado, também na Europa ela se modificou a partir
do século XVI, e o português que hoje se escreve em Portugal está
quase tão distante de Camões como o que se escreve no Brasil. Mas
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A g r a d e c i m e n t o p e l o p r ê m io N eu sta d t*
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Agradecimento pelo prêmio Neustadt
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P re fá c io a A n t o l o g ia p o é t ic a
de M a rly d e O l iv e ir a
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Prefácio a Antologia poética
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Este livro foi impresso cm Guarulhos, em janeiro de 2004,
pela Lis Gráfica e .Editora para a Editora N ova Fronteira.
O papel dc miolo é offset 75g/m - e o de capa 6 cartão 2 5 0 g/m 2.
C a r lit o A zevedo
A
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FRO N TEIRA
SEM PRE
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