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Cultura e sentimentos

ensaios em antropologia das emoções

Maria Claudia Coelho


Claudia Barcellos Rezende
[ o r g a n i z a ç ã o ]

BIBLIOTECA PARTICULAR
/l-J.iJ— •» * ■■
C o p y r i g h t © , 2 0 11 d o s a u to re s

C A PA , P R O JE T O G R Á F IC O E P R E P A R A Ç Ã O
Contra Capa

co elh o , Maria Claudia; r e z e n d e , Claudia Barcellos [org.]


Cultura e sentimentos: ensaios em antropologia das emoções.
Rio de Janeiro: Contra Capa / f a p e r j , 2011
220 p, 16 x 23 cm

is b n 978-85-7740-091-1

1. Cultura. 2. Sentimentos. 3. Emoções. 4. Antropologia.


1. Título. 11. Maria Claudia Coelho, m. Claudia Barcellos Rezende.

A publicação deste livro tornou-se possível


graças ao apoio da Fundação Carlos Chagas Filho
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro

2011
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Sumário

Introdução.
O campo da antropologia das emoções
M A R IA C L A U D IA C O E L H O
C L A U D IA B A R C E L L O S R E Z E N D E

Emoção “brega” e relações de gênero


na feira de São Cristóvão:
corações, corpos e mentes
em transbordamento emocional
S O N IA M A R IA G IA C O M IN I

A produção de gênero no hipismo


à luz dos discursos sobre as emoções
L U IZ F E R N A N D O R O JO

Ninguém se arrisca à toa:


os sentidos da vida para
praticantes do esporte base jump
VERÔNICA ROCHA

A dimensão emocional:
miiliíi, 1'tnoçilo c felicidade «1
“À flor da pele” :
discursos da emoção
e gênero biográfico
na construção da idolatria
p a tr íc ia c o r a lis

A manifestação de
sentimentos no Santo Daime
LU CAS K A ST R U P FO N SECA REH EN

Notas sobre
a “experiência de quase-morte”:
interpretações e sentidos
R A C H E L A IS E N G A R T M E N E Z E S

Quando as emoções
dão forma às reivindicações
JU S S A R A F R E IR E

Aprendendo “no emocional” :


uma teoria nativa sobre a relação
dos adolescentes com a sexualidade
R O D R IG O R O S IS T O L A T O

Sobre os autores 217


M ARIA CLAUDIA CO ELHO

CLAUDIA BARCELLOS REZENDE

Introdução.
O campo da antropologia das emoções

As emoções gozam de um status ambíguo como objeto de estudo das ciências


sociais. Sua representação pelo senso comum ocidental como um fenômeno
pertencente, a um só tempo, à esfera do individual - porque associado à
experiência psíquica, definida como singular e idiossincrática - e à esfera
do natural - porque entendido como fato universal, da ordem da “natureza
humana” - parece ter contribuído para situá-las no polo “excluído” das duas
oposições fundadoras das ciências sociais: indivíduo-sociedade e natureza-
cultura. Sua concepção sendo simultaneamente (e um tanto paradoxalmente)
ila ordem da natureza - porque dotadas de uma essência universal - e da
ordem do indivíduo - porque associadas à singularidade do sujeito - seria
assim responsável, ao longo da história das ciências sociais, pela dificuldade
de sua constituição como área autônoma de investigação.
Sc, no entanto, voltarmos a dois clássicos fundadores, Émile Durkheim
i- ( ieorg Simmel, veremos que essa “exclusão” é bem mais matizada do que
'.uf.eiT o exame de seus “programas disciplinares”. Em seus textos programá-
luos, ambos se esforçaram em “recortar” o objeto da sociologia diante da
psicologia, demarcando assim sua especificidade. Nos textos analíticos, po-
i<ni. i.il lionleira delineada com tanta nitidez aparece esmaecida, sugerindo
i imhipiul.ulc ai ima mencionada: ora excluída por sua associação ao psico-
.11,1 rmompassada como aspeclo da experiência individual também
inlrp.i iillle dos estudos sobre n sociedade e a cultura.
Na obra de Durkheim, a ambigüidade pode ser reconhecida, se lembrar­
mos da sua famosa definição da unidade analítica sociológica - o “fato social” -
e, em seguida, voltarmos a atenção para sua análise do fenômeno da “eferves­
cência”. Em As regras do método sociológico, ele define “fato social” como “ma­
neiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a propriedade marcante
de existir fora das consciências individuais” (1984: 2); a natureza social dessas
“maneiras” se faria sentir por sua capacidade de coagir a vontade individual, ou
seja, elas seriam “dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe
impõem” (: 3). Em sua análise das formas da vida religiosa, todavia, a distinção
tão clara entre o individual e o social aparece matizada, como em sua busca por
explicar a capacidade humana de conceber o ideal, em meio à qual discorre
sobre o “estado de efervescência” ligado ao pensamento religioso:

Vimos, com efeito, que se a vida coletiva, quando atinge um certo grau de in­
tensidade, desperta o pensamento religioso, é porque determina um estado
de efervescência que muda as condições da atividade psíquica. As energias
vitais são superexcitadas, as paixões ficam mais intensas, as sensações mais
fortes; há algumas inclusive que só se produzem nesse momento (Durkheim,
1996: 466).

A ambivalência entre excluir a dimensão psíquica do escopo da análise


sociológica no momento de demarcar fronteiras disciplinares e reincorporá-
la nas obras que se debruçam sobre temáticas específicas pode ser reconhe­
cida também na obra de Simmel. Em “O problema da sociologia” - texto
que podemos tomar como equivalente, em termos de esforço de demarcação
de campo, a As regras do método sociológico - , Simmel parte do par forma-
conteúdo para descrever a interação social. Para ele, o “conteúdo” seria “o
interesse, o propósito ou o motivo”, enquanto a forma corresponderia a um
“modo de interação”, por meio do qual o conteúdo adquire “realidade social”
(1971: 24). Forma e conteúdo, contudo, são empiricamente indissociáveis,
sendo a distinção entre eles de ordem conceituai e prestando-se, nesse “pro­
grama” definido por Simmel, à demarcação da fronteira entre a sociologia
e a psicologia, como em seu comentário sobre o fenômeno do ódio entre
ex-companheiros:

Neste sentido, então, os dados da sociologia são processos psicológicos cuja


realidade imediata se apresenta em primeiro lugar sob a forma de catego
rias psicológicas. Mas essas categorias psicológicas, embora indispensáveis
para a descrição dos fatos, permanecem foi .1 <!«>•• piopo-.ílo'. ■l.i investigação
sociológica. É para isso que direcionamos nosso estudo da realidade objetiva
da sociação, uma realidade embutida em processos psíquicos, que muitas
vezes só pode ser descrita por seu intermédio (: 35, nossa tradução).

Assim, não é o sentimento de ódio o objeto de estudo, mas sim as formas


da interação por ele engendradas ou, nos termos de Simmel, as categorias de
“união” e “discórdia”. Do mesmo modo que em Durkheim, esse aspecto psico­
lógico e emocional dos processos de interação, aqui excluído explicitamente
tio escopo da análise sociológica, é reinserido sob a forma de construção dos
objetos de textos analíticos, como em sua análise dos sentimentos de fideli­
dade e gratidão.
Em “Fidelidade e gratidão”, Simmel afirma que esses dois sentimentos
s.u) essenciais para a coesão e a estabilidade da vida social. Para ele, a gratidão
seria o sentimento que move a reciprocidade, sendo a “memória moral da
humanidade” (1964: 388). A fidelidade, por sua vez, é descrita como o fator
.1 letivo de preservação das unidades sociais (: 381), sendo um sentimento “so-
c iologicamente orientado”, ao contrário de outros sentimentos que, embora
l.unbém possam concorrer para o estabelecimento de vínculos interpessoais,
Ie1 iam uma natureza mais “solipsista” (: 384). Em bela formulação, a fidelidade
r 1ida como a “ inércia da alma” (: 380).
Vemos na obra desses dois “pais fundadores”, portanto, um movimento
dc exclusão/encompassamento da emoção como objeto possível de análise
.<>( íológica. Tal ambivalência, realçada pelo contraste entre a nitidez dos
lextos programáticos e a maior “nebulosidade” de análises temáticas espe-
i (ficas, diz respeito à centralidade do esforço de reflexão sobre os modos de
opor/articular o indivíduo e a sociedade, com a exclusão do primeiro apare-
1 eiulo como estratégia fundamental para dar identidade a esse novo campo
d< saber. Esse esforço, contudo, de inegável importância em um momento
original 11a constituição das ciências sociais, se suavizaria em momentos
posteriores da história destas, aparecendo de forma mais matizada na obra
■I' autores clássicos das principais tradições do pensamento antropológico:
t liaiuesa.a britânica e a norte-americana.

n n m l i t)u u n o t ii x t o i>u 1 ) 1 , ic a d o originalmente em 1921, Mareei Mauss


u 11 Ir, 1 um 1011 junto de 1ilos funerários australianos. Seu tema central retoma
1 pirot up,n,.i" Imid.uiicul.il de I hirklieim: o poder de coerção da sociedade
subir n Indivíduo, IoiiiuiI.hIo cm termos d.i relação entre obrigatoriedade
c espontaneidade. Na obra de Mauss, todavia, essa relação aparece menos
em termos de uma oposição na qual o social coage o individual e mais sob a
forma de uma articulação entre as duas instâncias, nuançando a perspectiva
durkheimiana à qual está filiada.
A hipótese de Mauss é de que as expressões orais dos sentimentos, longe
de serem fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, constituem
“fenômenos sociais marcados, eminentemente, pelo signo da não esponta­
neidade e da mais perfeita obrigação” (1980: 56). O recurso à etnografia des­
ses rituais analisados atestaria a natureza coletiva dos sentimentos, suscita­
dos em momentos específicos que envolvem toda a coletividade ou grupos
socialmente delimitados, e parecem fazer a dor recrudescer ou atenuar-se.
Entretanto não se trataria de uma “coerção” pura e simples, uma vez que a
natureza coletiva da expressão do sentimento não exclui a sua sinceridade; ao
contrário, sugere Mauss, seria justamente seu caráter coletivo que intensifi­
caria a vivência emocional. Em seus termos, “tudo isso é, ao mesmo tempo,
social e obrigatório, e, no entanto, violento e natural: afetação e expressão de
dor andam juntas” (: 60).
Embora a afirmação de que a natureza coletiva da emoção tem por efeito
sua intensificação pareça retomar a descrição do fenômeno da efervescência
feita por Durkheim, há nela uma matização na forma de conceber a relação
indivíduo-sociedade no que diz respeito à experiência emocional. Essa
nuança pode ser sintetizada pela definição da expressão dos sentimentos
como uma linguagem à qual o indivíduo recorre para falar do que sente para
os outros e, no mesmo movimento, também para si.

Mas todas estas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de for­


ça obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais do que
simples manifestações, são signos de expressões compreendidas. Numa pa­
lavra, são uma linguagem. Esses gritos são como frases e palavras. É preciso
pronunciá-los, mas se é preciso pronunciá-los, é porque todo o grupo os
compreende.
Faz-se, portanto, mais do que manifestar os sentimentos, manifesta-se-os
para os outros porque é preciso manifestá-los para eles. As pessoas manifes­
tam seus sentimentos para si próprias, ao exprimi-los para os outros e por
conta dos outros.
É, essencialmente, simbólico (: 62).

A temática das emoções pode ser encontrada também na antropologia


funcionalista britânica, desta feita em articulação com o problema da organi
/.ação social. Nesse desenho, um autor de referência é, inegavelmente, Alfred
R. Radcliffe-Brown em sua conhecida discussão sobre a jocosidade nas rela­
ções de parentesco.
Nesse estudo, os sentimentos desempenham importante função social,
.linda que tenham, para o autor, um status ambíguo. Por um lado, o afeto
aparece como oposto ao dever nas relações familiares, ficando o pai e seus
irmãos associados à autoridade e à disciplina, enquanto a mãe e seus irmãos
seriam responsáveis pelo cuidado afetivo.1 Como diz Radcliffe-Brown em
passagem reveladora:

O parentesco por brincadeira, sob certos aspectos, se opõe frontalmente à re­


lação contratual. Em vez de deveres específicos a serem cumpridos, há desres­
peito privilegiado, liberdades ou mesmo licitude, e a única obrigação é não se
sentir ofendido ante o desrespeito desde que ele se mantenha dentro de certos
limites definidos pelo costume, e não ultrapasse esses limites. Qualquer falta
na relação é como uma ruptura das regras de boas maneiras (1973:130).

Assim, apesar de os sentimentos parecerem estar fora do âmbito do dever


1 tl.is obrigações sociais, permanecendo equacionados ao individual e ao não
u-f.rado, o trecho citado expõe uma outra visão das emoções, talvez até mais
I•1. valente em sua análise das relações jocosas entre tios e sobrinhos, avós e
nelo.s, sogras e genros. O sentimento de não se ofender torna-se uma obri-
f u a<> nessas relações, desde que o desrespeito seja expresso de acordo com
as regras costumeiras, desfazendo-se então a oposição entre dever e afeto, e
■mIiv o social e o individual.
Mais ainda, os sentimentos de amizade e de hostilidade, presentes princi­
palmente nas relações de parentesco por aliança, são equilibrados pelo respei-
lo ou pela jocosidade nessas relações, o que garantiria a ordem social. Como
Maili li lie Urown argumenta em vários momentos, sob nítida influência de
I *mi khei m, os sentimentos não só desempenham funções sociais significativas,
..... . lambem se originam de certas situações estruturais, distanciando-se da
\ 1 .ao de uma origem puramente individual das emoções.

\ 1111. .11a de hostilidade, o desrespeito permanente, é contínua expressão


• Ia dis|ini(,ao social que é parte essencial da situação estrutural total,

. r . i i i 11111.1 iMilli'i. .I.i u|)oni^rto rntre <lcver C uíiMo em Radcliffe Urown c o m o form a oci-
, 1. iil.it . 1. .. 1111 ell 11.11 11 mundo, ver Vivei m i n de ( .e.l 10 e Araújo (1977).
mas sobre a qual, sem destruí-la ou sequer enfraquecê-la, existe a conjunção
social da amistosidade e ajuda-mútua (: 121).

Na antropologia norte-americana culturalista, por sua vez, as emoções


são foco de estudo como elementos padronizados pela cultura. Embora essa
ideia tenha sido abordada por vários autores da Escola de Cultura e Perso­
nalidade,2 a conceituação de configurações de cultura de Ruth Benedict sem
dúvida foi marcante durante esse período.
Preocupada em explicar a integração das culturas, Benedict parte da no­
ção de que haveria um princípio, de acordo com o qual os elementos cultu­
rais -estariam organizados em padrões coerentes e variáveis entre os grupos
sociais, ou seja, as configurações de cultura “condicionam as reações emocio­
nais e cognitivas de seus portadores, de forma que estas se tornam incomen-
suráveis” (1970:316). Estudando grupos indígenas norte-americanos como os
Pueblo e os Zuni, Benedict argumenta que, apesar dos contatos e das trocas,
cada cultura reelabora os traços culturais adotados para que exprimam sua
“padronização emocional” distintiva.
Temos, pois, uma visão que toma as emoções como elemento cultural -
foco de ação da cultura. O relativismo de Benedict só é limitado pela no­
ção de que o indivíduo possui “disposições inatas”, que podem ou não ser
acentuadas pela cultura na qual ele nasce. Com essa ideia, percebe-se uma
concepção mais essencializada das emoções, que pertenceriam à natureza
de cada indivíduo, mas seriam moldadas - acentuadas ou afastadas - cultu­
ralmente. Em outras palavras, embora sua origem esteja fora da cultura -
em disposições inatas ao indivíduo - , as emoções são, ainda assim, elemen­
tos padronizáveis que ganham matizes distintos, de acordo com cada con­
texto cultural.
E importante destacar ainda a centralidade que as emoções têm no con­
ceito de configurações culturais. Mais do que discutir as reações cognitivas,
Benedict se detém nas reações emocionais dos Pueblos, que enfatizariam
contenção e sobriedade, e dos Zuni, marcados pelo exagero, em situações
sociais variadas, tomando-as como principal fator distintivo entre as culturas.
Em suas palavras, “o que importa é o background emocional diante do qual
tem lugar o ato nas duas culturas” (: 319).

2 Destacamos aqui o trabalho de Gregory Bateson (1958) e sua elaboração do conceito de


ethos como um sistema culturalmente padronizado de organiza-lo de emoções.
a d e s p e it o d e a s e m o ç õ e s terem estado presentes nas reflexões de pen­
sadores clássicos da sociologia e da antropologia, a preocupação com a de­
limitação formal de um campo específico para o estudo antropológico das
emoções data, nos Estados Unidos, da década de 1980, com a publicação de
dois textos que realizaram mapeamentos e são tomados aqui como marcos
iniciais desse esforço de organização do campo na cena norte-americana.
O primeiro deles, de autoria de Catherine Lutz e Geoffrey M. White, sur­
giu em 1986 e se propôs a realizar um balanço do interesse sobre as emoções
na década antecedente. Os autores sugerem algumas razões para o incremento
desse interesse, das quais se destaca, para nossos propósitos aqui, a ascensão da
antropologia interpretativa, segundo eles “mais apta a examinar o que havia sido
I'icviamente considerado um fenômeno incoerente” (Lutz & White, 1986:405).
O mapeamento realizado tem como fio condutor a distinção entre os
estudos preocupados com os aspectos universais e invariantes da experiência
1 mocional, de um lado, e aqueles preocupados com sua diversidade histó-
1 it o-cultural, do outro. Essa tensão entre universalismo e relativismo se faz
acompanhar de outras quatro tensões, que, ainda segundo os autores, atra-
vi . ..11 iam o campo de estudos das emoções: positivismo/interpretativismo;
ma terialismo/idealismo; individual/social; e romantismo/ racionalismo.
O universalismo, de acordo com os autores de orientação epistemológi-
■ 1 positivista, entende a emoção como fenômeno “pan-humano”, de essência
nn ai iante; nessa perspectiva, eventuais “variáveis” são tratadas como epifenô-
menos. |á o relativismo rompe com a visão da emoção como “estado interno”,
Imot porando ao escopo da investigação os processos sociais associados a ela.
A oposição positivismo/interpretativismo apresenta íntima articulação
10111 a tensão central entre universalismo e relativismo. Está ligada a uma
' 11 1 a<i disciplinar, muito embora não exclua eventuais interpenetrações e
mlliii iu ias recíprocas. O positivismo, mais forte nos estudos de cunho psi-
>nlnf.íio, enfatiza a relação entre emoção e comportamento, com o interesse
I" In emocional sendo justificado por sua concepção como causa para o com-
I•• 11 lamento, tomado por sua vez como via de acesso ao estudo da relação
• nlie 1 ult 111 a e emoção. )á no interpretativismo, a emoção é tida como “um
i .|m1 to . entrai do significado cultural” (: 407-8). A concepção aí presente

•I 1 1 miH.io como construção cultural traz como uma de suas conseqüências


1 . a1 a* teri/açAo do projeto de conhecimento da “verdade sobre a emoção”
>nm n aluo problemático.
• 1 lu. n prim ipal da distinção niatcrialismo/idealismo é a divergência na
......... <l.i emoyto. () primeiro a concebe como uma “coisa material”, de
..... .lililli, iu liioló^ít a t \piessa em movimentos l.u iais, alterações de pressão e
processos neuroquímicos, entre outras manifestações fisiológicas. Nessa visão,
a cultura influencia esses fenômenos, que, entretanto, são dados do mundo ma­
terial com os quais os indivíduos e as sociedades precisam lidar. Em contrapar­
tida, no idealismo a emoção aparece como “julgamentos valor ativos”, estando
ligada a aspectos da vida social, tais como o poder e a estrutura social (: 407).
A quarta oposição se dá entre o individual e o social. Para Lutz e White,
sua articulação perpassa os estudos sobre emoção e cultura, com o indivíduo
surgindo em algumas abordagens como o lócus da emoção e defrontando-se
com padrões sociais e culturais. Tal cisão tornaria necessária a distinção entre
“emoção” e “sentimento”, sendo a primeira definida como privada e o segun­
do’ como símbolo social e expectativa comportamental (: 409).
A última tensão ocorre entre o romantismo e o racionalismo. Naquele,
a emoção recebe valoração positiva como aspecto da “humanidade natural”
e é associada à pureza e à honestidade, tornando-se a capacidade de sentir o
atributo definidor da condição humana. Já o racionalismo estaria ancora­
do na concepção ocidental que associa a emoção à irracionalidade, sendo
um fenômeno problemático e desorientador, ou mesmo evidência de “ani­
malidade” (: 409).
Para os autores, a maior ou menor proximidade dessas vertentes respon­
deria pela pluralidade de focos analíticos presentes nos estudos sobre as emo­
ções. Em seguida, o mapeamento realizado por eles se dá ao longo de dois
eixos: tendências internas ao campo comprometido com a busca de univer­
sais invariantes no fenômeno emocional e perspectivas engajadas na visão da
emoção como construto sociocultural.
O esforço realizado por Lutz e White se conclui com uma exploração da
contribuição que a etnografia pode trazer para o estudo da emoção e, num
movimento de mão-dupla, dos efeitos possíveis da atenção na experiência
emocional sobre os estudos etnográficos. No primeiro caso, o foco é deslocado
do problema da universalidade eventual de uma experiência emocional para
“o modo como as pessoas atribuem sentido aos acontecimentos da vida” (: 428).
Os dois autores advogam ainda a importância de refletir sobre a forma
como os antropólogos ocidentais entendem, na condição de “nativos” de sua
“cultura”, a experiência emocional, bem como sugerem que muitas das oposi-
ções que sustentam as cinco tensões identificadas no campo são tributárias des­
sas representações ocidentais sobre a emoção (racional/irracionai, natureza/
cultura etc.). Por esse motivo, seria urgente um esforço autorreflexivo para
refinar a construção da emoção como objeto da pesquisa antropológica.
Feito isso, o estudo da emoção poderia trazer duas contribuições para
o empreendimento etnográfico de viés interpretativista: a compreensão da
importância metodológica das emoções do pesquisador no campo e a revita­
lização da descrição etnográfica. Conforme sugerem Lutz e White:

A incorporação da emoção na etnografia permitirá apresentar uma visão


mais completa daquilo que está em jogo para as pessoas em seu cotidiano.
Ao reintroduzir a dor e o prazer em toda a sua complexidade em nossos
retratos da vida cotidiana das pessoas em outras sociedades, podemos hu­
manizar esses outros diante do público ocidental (: 431).

O segundo mapeamento, também de autoria de Catherine Lutz, mas des-


1.1 vez em parceria com Lila Abu-Lughod, introduz a coletânea Language and
lhe politics ofemotion, organizada por ambas em 1990. Nesse texto, as autoras
identificam quatro estratégias usadas no desenvolvimento do campo da an-
11 (tpologia das emoções. A abordagem essencialista trataria as emoções como
processos psicobiológicos que respondem a diferenças ambientais e culturais.
Sei iam processos universais com os quais os sistemas sociais devem “lidar”.
I 111 tal perspectiva, o estudo das emoções se torna problemático, pois só seria
possível por meio de relatos introspectivos. Em seguida, a abordagem relati-
' r.1.1 partiria da premissa da construção cultural das emoções, tomando-as
• 1uno conceitos locais, articulados a questões sociais mais amplas. Com esse
1 >111.11, categorias emotivas são relativizadas e comparadas entre culturas, fra-
1•111 11ido a pertinência da própria categoria de emoção (Abu-Lughod & Lutz,
njijo: |). A abordagem historicista, por sua vez, compartilharia com a anterior
1 postura relativista, porém esta se daria em relação ao tempo, afirmando-
.<• o 1,11 ater histórico das emoções. Buscaria recuperar genealogias de certas
■ 1I1 f,oi ias emotivas, a fim de revelar como constituíram sua forma atual ou
1 u i 1.1111 seu lócus social deslocado ao longo do tempo. Por fim, a quarta abor-
.1 1) ,. 111, desenvolvida posteriormente às outras e defendida pelas autoras, iria
il> m <lo viés comparativo e historicista, voltando-se mais para a riqueza das
.11 ii.u.ocs sociais específicas nas quais as emoções se apresentam.
Ao tomar 0 conceito foucaultiano de discurso como ponto de partida,
■ ..i prispa tiv.i procura situar os contextos sociais em que as emoções são
1 p . . . . r . , com o intuito de mostrar que os discursos emotivos podem ser
>i-.to-, 1 01 no pi.iticas que estruturam os próprios objetos de que falam (: 9).
\ 11. 11., ,10 .10 disc urso permite tratar as emoções como parte da interação so-
• 111 ' . |><>i lauto, .itcit.is ;i imprevisibilidade das reações dos atores envolvidos,
pi 011ti/indo "uma visão mais complexa dos possíveis sentidos múltiplos, mu-
l am:ro 1 onlt '.l.ido.tlcclocuçócse trocas emocionais” (: ii ). Assim, mais do que
....... 1 11 1 ' xpirv.ao da rinoçilo como veículo de estados subjetivos internos,
busca-se afirmá-la como “atos pragmáticos e desempenhos comunicativos”
(: 11), ou seja, como “uma forma de ação social que tem efeitos sobre o mun­
do, que são lidos de um modo culturalmente informado pela audiência da
fala da emoção” (: 12). Tal abordagem contextualista evidenciaria, portanto, a
dimensão micropolítica das emoções, permitindo usá-las como via de acesso
para a compreensão de relações de poder e desigualdades sociais.
Para aprofundar questões levantadas pela perspectiva relativista e pela
perspectiva contextualista, que marcam o campo da antropologia das emo­
ções nos Estados Unidos, discutiremos os trabalhos de Michelle Rosaldo
(1984) e a etnografia de Catherine Lutz (1988) como exemplos da primeira
abordagem, e o de Lila Abu-Lughod (1990) como ilustração da segunda.
Rosaldo propõe uma antropologia do self e da emoção fortemente am­
parada no paradigma interpretativo, que toma o significado como público e
a cultura como uma associação de significados. Nesses termos, o estudo das
emoções vincula-se a uma compreensão mais fundamental da pessoa como
construção cultural. A aquisição de um sentido de self implicaria visões cul­
turalmente organizadas de possibilidades e sentidos do que é uma pessoa,
do mesmo modo que afetos seriam interpretações culturalmente informadas,
nas quais o ator envolve seu corpo, seu self e sua identidade. Buscando pro-
blematizar a dicotomia ocidental que opõe pensamento a emoção, Rosaldo
propõe que:

as emoções são pensamentos de alguma maneira “sentidos” em rubores,


pulsações, movimentos do fígado, mente, coração, estômago, pele. São pensa­
mentos incorporados, pensamentos permeados pela percepção de que “estou
envolvido” (1984:143, nossa tradução).

E segue questionando visões ocidentais de pessoa que informariam aná­


lises comparativas de emoções como culpa e vergonha. A noção de um self
privado e interno, repleto de desejos e impulsos, e distinto da pessoa pública e
social, estaria por trás da proposta de tomar esses sentimentos como guardiões
das normas sociais e da ordem moral. Em seu estudo dos Ilongots, nas Filipi­
nas, Rosaldo encontra a vergonha não como emoção que constrange o indiví­
duo em relação a seus impulsos antissociais, e sim como sentimento que surge
de situações de desigualdade que ferem uma forte valorização da igualdade.3

3 Em outro artigo, Rosaldo aprofunda sua análise do sentimento de vergonha e a ausência


da culpa entre os Ilongots (Rosaldo, 1983).

10 I (i U I T U H A M NMNTIMMNTUN
I’ara ela, se o sentimento de vergonha parece estar sempre relacionado aos in­
vestimentos que uma pessoa faz em determinada autoimagem, a forma tomada
por essa emoção depende tanto do modo de conceber e lidar com as demandas
ilos indivíduos quanto de cada situação social.
Em sua etnografia sobre os Ifaluk, voltada para a compreensão de suas
vicias emocionais, Lutz assinala a importância, para esse tipo de projeto etno­
gráfico, de compreender as categorias nativas ocidentais sobre a experiên-
i i.i emocional, ao que denomina de “etnopsicologia euroamericana”. Para
ria, as representações ocidentais da emoção se organizam em torno de duas
<«posições básicas: emoção versus pensamento, e emoção versus alheamento.
A valoração da emoção, contudo, altera-se em função daquilo com que con-
11 -isla: em oposição ao pensamento, é o polo negativo; diante do alheamento,
Inrna-se o polo positivo.
lúnoção e pensamento compartilhariam um traço importante: são “carac-
lei Isticas internas das pessoas”, sendo vistos como “realidades mais autênticas e
i <mio um lócus do self mais autêntico em comparação com a relativa inauten-
l u idade da fala e de outras formas de interação” (Lutz, 1988:56, nossa tradução).
I v..i oposição apareceria sob diversas roupagens, da ciência ao senso comum,
e se desdobraria em diversas outras, entre as quais “vulnerabilidade/controle”,
■iios/ordem” “físico/mental”, “natural/cultural” e “feminino/masculino”. Con-
Itido, ao se opor ao alheamento, a emoção se revalorizaria como uma forma
II
m i n profunda de compreensão, vizinha da sabedoria, constituindo outras ver-
II írs dessa oposição: “relação/individualismo”, “comprometimento/niilismo” e,
III >\ .1mente, “natural/cultural” e “feminino/masculino”. A dupla possibilidade
tlf conceber a emoção traria consigo uma ambivalência, ligada, segundo a au-
im.i, .1 uma contradição que perpassaria atualmente os Estados Unidos e se
■I n 1.1 "rnire a ênfase na racionalidade, no controle e na ordem, e a promoção
■I" |>1.1/11 c da dor da emoção” (: 59, nossa tradução).

m u i 1 u i i i i o i ) p r o b l e m a t i z a , algum tempo depois, aspectos da perspec-


Hv.t n l.iiivista, cm particular a ideia de que as emoções poderiam ser separa-
I 1 'l<i II iixo <l,i vida social contida no próprio nome da área “antropologia das
1 uh 11,Oi I >i1o de outro modo, a proposta de relativizar conceitos emotivos
iii ikui.ipm loui.í los como dotados de um sentido unívoco, independente-
tin 111 ■ do-, 1 outextos soi i.lis em que são expressos. Nessa perspectiva, a pró-
pi 1,1 noi.tio de soi ledade tende .1 sei pensada como um corpo unitário, e não
1 nnio ui 11 1 onjimlo de indivíduos e grupos envolvidos em relações de poder
e competindo por seus interesses. Abu-Lughod, em vez disso, argumenta em
favor de uma visão pragmática das categorias emotivas que desloca o foco
dos seus significados para sua prática, isto é, os modos pelos quais os discur­
sos emotivos são acionados em contextos diversos, por razões distintas e com
efeitos variados, decorrendo daí sua concepção micropolítica das emoções,
que busca inserir os discursos emotivos em negociações e jogos de poder.
Com base nessa abordagem contextualista, Abu-Lughod analisa o lugar
da poesia amorosa no cotidiano de um grupo beduíno do Egito, os Awlad’Ali.
Apesar dos casamentos preferenciais entre primos e da relação de modéstia
entre marido e mulher, que reforçam a autoridade da hierarquia social en­
tre os gêneros e as gerações familiares, as poesias amorosas fazem parte do
cotidiano acionando outro conjunto de valores, calcado na resistência e na
liberdade. Recitadas principalmente por jovens rapazes e mulheres, estas se
tornam um discurso de desafio aos ideais da vida social beduína. Com as
mudanças econômicas que, desde a década de 1980, vêm afetando o estilo
nômade dos beduínos, os jovens rapazes, cada vez mais sob a autoridade dos
patriarcas, têm recorrido crescentemente às poesias amorosas, agora grava­
das em fitas cassetes, como forma de protesto. Em sua análise, portanto, Abu-
-Lughod busca mostrar como um discurso emotivo como a poesia amorosa
beduína, longe de possuir um significado constante, retira seu sentido de
cada contexto em que é expresso, afetando as relações sociais em jogo.

A d im e n s ã om i c r o p o l í t i c a d a s e m o ç õ e s vem merecendo também,


na cena norte-americana, a atenção de pesquisadores de áreas próximas da
antropologia, como na análise sociológica de inspiração interacionista so­
bre a gramática da compaixão, realizada por Candace Clark (1997), ou sobre
a relação entre a moral e os sentimentos de nojo e desprezo, analisada por
William Ian Miller (1997). A ênfase na capacidade da emoção em dialogar
com a vida social, com os sentimentos sendo, a um só tempo, facultados e
engendrados pelo lugar ocupado pelo sujeito na sociedade, e podendo con­
tribuir para dramatizar ou alterar esse mesmo lugar, confere nova dimensão
ao estudo da emoção pelas ciências sociais.
No Brasil, tal campo ganha espaço desde a década passada. Entre as ini­
ciativas pioneiras, destaca-se a criação, em 2002, da Revista Brasileira de So­
ciologia das Emoções, publicação virtual editada por Mauro Koury, da Uni
versidade Federal da Paraíba. Outras formas de institucionalização são a
realização de grupos de trabalho nas principais reuniões científicas, entre as

lH | « |l | M I M A I 1 N H N ( I M l> N I O h
quais a Reunião de Antropologia do Mercosul ( r a m ) e a Associação Nacional
dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais ( a n p o c s ) , e a criação
do Núcleo de Antropologia das Emoções na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, envolvendo alunos da graduação e pós-graduação em torno da
discussão sobre as emoções.
Na produção científica brasileira, Koury (2005) apresenta um esforço
pioneiro de mapeamento do campo no Brasil, discutindo os precursores da
antropologia das emoções no país. Desde o trabalho de pensadores clássicos
como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, as emoções figuram en-
tre as preocupações relacionadas à constituição de uma identidade nacional
brasileira. Koury destaca, mais recentemente, os trabalhos de Roberto Da-
Matta que analisam como as formas de expressão das emoções, entre outros
comportamentos, se ajustam às diferenças entre espaços públicos e privados.
( iilberto Velho e Luiz Fernando Dias Duarte são apontados como figuras de
referência por seus estudos dos modos particulares pelos quais as emoções
■•ao expressas nas camadas médias e populares, mostrando como a tensão
i'11 Ire indivíduo e sociedade perpassa distintamente cada um desses contextos
.<)ciais. Os próprios trabalhos de Koury sobre o luto e o medo nas cidades são
contribuições importantes para o campo da antropologia das emoções.
Os trabalhos das organizadoras desta coletânea também integram os es-
lorços de construção da antropologia das emoções como uma área autôno­
ma de investigação. Claudia Barcellos Rezende estudou o tema da amizade,
ao adotar uma perspectiva comparativa entre os universos londrino e carioca
( M)02a, 2002b), e ressaltar a relação entre amizade, emoção e hierarquia.
I 111 pesquisa recente, analisou a elaboração subjetiva da identidade brasilei-
II entre professores universitários que estudaram no exterior, destacando
I.into o aspecto emotivo presente nessa construção identitária quanto emo-
1111". ligadas à experiência de ser estrangeiro (Rezende, 2009). Maria Claudia
1 oelho vem explorando a temática das emoções desde seus estudos sobre
idolatria, em que trabalhou a relação entre amor e fascínio na experiência
■I" Ia (( oclho, 1996,1999). Em sua pesquisa sobre a dádiva no universo das
1 11 u.idas médias cariocas, a emoção foi abordada à luz de duas perspectivas: a
i> ir.,10 entre obrigatoriedade e espontaneidade, e a capacidade micropolítica
da', emoções engendradas pelas trocas materiais de dramatizar a natureza
da relação entre doador e receptor (Coelho, 2006a). Mais recentemente, tem
Invi ii)',.ulo a relaçao entre emoção e violência, com foco em relatos de expe-
II. 111 i,e. de vilinii/açào em assaltos a residências (Coelho, 2006b, 2009).
( trabalhos aqui reunidos visam dar continuidade a tal esforço de re-
11• não Nobie 1 emoçilo como objelo de esludo socioanlropológico. Com base

in m u B t i u À u 1 tu
em temáticas variadas, apresentadas a seguir, os autores tomam os sentimen­
tos ora como foco de análise, ora como recorte analítico pelo qual discutem
outras questões. Em todos os casos, privilegia-se o exame atento das emoções
como elemento fundamental das dinâmicas sociais.
Sonia Maria Giacomini apresenta resultados de etnografia realizada no
Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, conhecido popularmente
como “Feira de São Cristóvão”, local em que pessoas originárias do Nordeste
encontram-se aos domingos para “consumir” produtos variados dessa região
do país, entre os quais a música. A autora concentra sua análise nas barracas
de música “brega”, enfocando as letras das canções e os comentários sobre
esse gênero musical feitos por seus adeptos. O “brega” surge como um gêne­
ro cuja temática recorrente é a infelicidade amorosa. Expectativas frustradas,
abandono e traição são narrados sempre de forma incontida ou, nos termos
da autora, “transbordante”. O personagem principal, contudo, é sempre um
homem, seja ele o cantor ou o personagem da letra, que é alguém que sofre.
Por outro lado, quem “consome” o brega são mulheres, muitas vezes idosas
e desacompanhadas. Essa forma particular de articular gênero e emoção, em
que mulheres “consomem” narrativas de homens falando sobre suas dores
na experiência amorosa de forma incontida, torna o estudo do caso da músi­
ca “brega” de enorme relevância para o campo da antropologia das emoções,
uma vez que realiza um duplo rompimento com a forma “euroamericana” de
conexão entre ambos, tal como descrita por Lutz: aqui, a emoção é masculi­
na e descontrolada, sendo este, aparentemente, o maior atrativo desse estilo
musical para as mulheres que o “consomem”.
Luiz Fernando Rojo também discute a articulação entre gênero e emoção
em sua análise comparativa do hipismo no Rio de Janeiro e em Montevidéu.
Rojo elegeu o hipismo, porque, ao contrário de outras modalidades esportivas,
homens e mulheres disputam as mesmas competições. Assim, é possível ob­
servar associações entre esporte, gênero e emoção distintas de alguns discursos
midiáticos, como aqueles sobre a falta de equilíbrio emocional das jogadoras
brasileiras de futebol nas Olimpíadas de Atenas. No hipismo, Rojo argumen­
ta que, à primeira vista, tais articulações não aparecem: homens e mulheres
competiriam de forma igual e o controle emocional via o domínio da técnica
seria comum a ambos. No entanto, é na relação com o cavalo que as dife­
renças de gênero relacionadas à emoção são reinseridas. As mulheres teriam
maior “sensibilidade” para lidar com o animal, enquanto os homens
teriam mais “coragem” para enfrentar obstáculos. Tais percepções ganham
ênfases e valorações distintas no Rio de Janeiro e em Montevidéu, sugerindo
uma diversidade de construções de gênero articuladas às relações de poder
particulares a cada um dos contextos. Com atenção aos discursos apresen­
tados - não apenas às falas, mas também a práticas como o uso do chicote
a análise de Rojo exemplifica, de forma significativa, a abordagem contextua­
lista das emoções discutida acima, revelando como os elementos emotivos no
hipismo desvendam a micropolítica das relações de gênero no esporte.
Verônica Rocha também discute a relação entre emoção e prática espor­
tiva, destacando a questão do risco no esporte radical basejump. Como moda­
lidade caracterizada pelo salto com pára-quedas de estruturas fixas, a tensão
entre a vida e a morte perpassa a experiência objetiva e subjetiva dos prati-
i antes, e põe em questão não apenas o domínio do medo e a superação de si,
como também os sentidos da vida. Ao tomar a discussão de Mary Douglas
sobre a noção de risco como uma construção cultural que se relaciona com
tis normas de cada sociedade, Rocha enfatiza que as percepções de risco se
tornam marcadas por juízos de valor. Nas sociedades ocidentais moder-
ii.is, o risco é tido como fruto da responsabilidade individual e associado a
m ias experiências emocionais, em contraposição à ideia de uma socieda­
de que produz a segurança como bem social. Para os base jumpers, a escolha
i !<i esporte demonstra uma visão do risco como experiência positiva de vida.
Às emoções vivenciadas, relacionadas a cada etapa do salto - o medo antes de
uill.ir, o êxtase durante a queda livre e a alegria e a gratidão ao pousar pro­
movem uma sensação de superação da morte não apenas natural, mas também
imbolica, associada ao tédio de uma vida monótona. Assim, o trabalho de Ro-
i li.i .1rticula a vivência das emoções à construção da subjetividade - em seu caso,
Imiilnda nos ideais românticos de intensidade emocional - e contribui para a
lompi eensão da experiência do risco nas sociedades ocidentais modernas.
<ieraldo Condé aborda as representações da felicidade no tipo de discurso
mkllritico que chama de “imprensa conselheira”. Seu texto se ancora numa
rtlinid.igem antropológica da comunicação de massa, que entende serem os
|Módulos midiáticos um vastíssimo sistema simbólico em que é possível ler
ti piesenlações e valores das sociedades que os produzem. Tendo como obje­
to de .m.iIise a revista Vida Simples, o autor examina vinte matérias de capa
■ mo .ii.i ,i recorrência da preocupação com a “felicidade”, sugerindo ser tal
.... .... Mnç.i do discurso sobre a felicidade uma espécie de “contraponto” a
o1111 o iein.i que permeia um segundo campo discursivo sobre a modernida-
•li r, leoi iüs d.is ciências sociais c humanas, com sua ênfase no “mal-estar”
•111• i-.soliii i.i o sujeito contemporâneo. A concepção de felicidade expressa
Mi n vr.l.i .iiiiilisiidii articula uma dimensão material —associada a conforto
■ .1 r111 11ii,.i ,i otili.i em oiion.il, O loco de sua análise está nessa dimensão
loiiiil Minlo Irísos r.pei los 11 .il.ulos: o rei urso ,i outras emoções como
forma de configurar a “felicidade” ; a idealização de um estado de “equilí­
brio”; e a busca de uma “pacificação” de conflitos e tensões como forma de
alcançar a felicidade. Nesse sentido, o texto traz nova contribuição para a
percepção da centralidade do tema do “controle” como ideal a ser alcançado
pelo indivíduo moderno no plano emocional.
Patricia Coralis analisa o “consumo” de relatos biográficos sobre a can­
tora e atriz norte-americana Judy Garland por uma comunidade virtual de
fãs brasileiros, examinando como os elementos recorrentes nesses relatos são
ressignificados por estes num processo de elaboração de suas identidades.
A autora analisa o modo como a artista é mitificada em tais relatos midiá-
ticos, à luz do exame de como sua obra e sua vida se entrelaçam, residindo
aí seu maior poder de atração sobre os fãs. A mescla entre a admiração e o
sentimento amoroso é o ponto-chave da análise, que se desdobra em dois
níveis: a emoção percebida pelos fãs na obra e na vida pessoal de Judy Gar­
land, cujo fascínio se daria justamente por sua natureza incontida, excessiva,
e suas próprias reações emocionais à artista, em que a valoração do incontido
é substituída pela ênfase no controle como argumento em favor da legitimi­
dade da adoração, trabalhando desse modo em prol de uma “positivação” da
experiência de fã. O texto de Coralis compartilha assim com o trabalho de
Condé, na análise de dois fenômenos midiáticos distintos, a atenção volta­
da para o “controle” como eixo de investigação das experiências emocionais
contemporâneas.
Lucas Rehen examina as emoções presentes na experiência religiosa do
Santo Daime, tendo como objeto de análise os hinos cantados durante as
suas cerimônias. Rehen trabalha com base na distinção entre os sentimentos
considerados “nobres” - o amor e a alegria, entre outros - e aqueles tidos
como “pouco nobres” - por exemplo, a inveja e o rancor - , mostrando de que
maneira eles se relacionam a uma classificação dos seres espirituais. Nesse
universo, as emoções presentes na experiência e no pertencimento religioso
são entendidas como uma medida do desenvolvimento espiritual do adep­
to, em que a vivência das emoções “elevadas” atesta maior proximidade dos
“seres de luz”. O autor mostra de que modo essas emoções apresentam a ca­
pacidade micropolítica de que falam Lutz e Abu-Lughod, e atuam na demar­
cação da hierarquia por meio da ocupação dos espaços físicos nas cerimônias.
Seu artigo traz ainda importante contribuição para o estudo antropológico
das emoções, ao descrever uma etnopsicologia de inspiração religiosa que
“inverte” a valoração da oposição clássica descrita por Lutz entre sentimento
e pensamento, uma vez que, na doutrina daimista, o sentimento “domina” c
o ideal se realiza na “anulação” do pensamento.
Discutindo igualmente percepções religiosas, Rachel Aisengart Menezes
analisa as representações e as emoções associadas à experiência de quase-
morte ( e q m ) , como constitutivas do ideário que compõe os Cuidados Palia­
tivos no atendimento de doentes terminais. Menezes observa, na literatura
sobre a e q m em sociedades ocidentais modernas, a recorrência da crença na
vida após a morte e da ideia de uma transformação individual acarretada por
essa experiência. Tal concepção contrasta com o modo como, nessas socieda­
des, a morte passou a ser vista como fonte de sofrimento insuportável, levan­
do ao embaraço em lidar com doentes terminais. Em decorrência disso, as
lécnicas dos Cuidados Paliativos visam principalmente pacificar os temores
tia morte. Buscam contrapor o desamparo e o receio do desconhecido e da
morte à ênfase na manutenção da identidade individual, ao reencontro com
entes queridos e ao englobamento pelo amor incondicional dos seres divinos.
Assim, a proposta dos Cuidados Paliativos, amparada em ideias sobre e q m ,
pretende propiciar aos doentes uma “boa morte”. Ao mesmo tempo, tais cui­
dados, de maneira paradoxal, acabam por negar emocionalmente a própria
morte, que passa a ser entendida como uma passagem para outra esfera. Com
essa análise, Menezes mostra como as emoções em torno da morte revelam
Ittrmas de compreensão de significados culturalmente específicos sobre a
pessoa e a vida. Com o controle das emoções consideradas problemáticas,
■miio a revolta e a raiva, os Cuidados Paliativos buscam, em sua tentativa de
p.u ilicar a morte, produzir um modo de lidar com a incerteza da existência
■ .1 li agilidade humana.
I ',m seguida, Jussara Freire analisa a experiência de mães de vítimas de
\ inléncia policial. Recorrendo, como ferramenta metodológica, à formação
»lr "t oletivos de confiança” - grupos focais cuja formação é precedida pelo
■li .envolvimento de uma relação de confiança com a pesquisadora, consi-
■lei ada essencial, devido à delicadeza dos temas tratados - , a autora examina
ii m.ilivas de mães a respeito das circunstâncias em que seus filhos foram
nii Mios e de suas tentativas de obter justiça. Sua análise tem como eixo fun-
ditmeutal a percepção de que a emoção - em particular, a dor e o sofrimento -
tu up.i muitas vezes o lugar da palavra, exercendo uma função discursiva, em
• i de ser algo sobre o qual se fala. Ao mesmo tempo, a emoção presente nas
ativas dessas mães surge como uma estratégia de reivindicação de justiça
■ sei ve tomo via de acesso para a entrada num espaço público. A reflexão
iilm as ielaçOes entre uma experiência emocional não articulada discursi-
mienle e .1 itmsl 1 iiçilo de uma forma de reivindicação política num espaço
pultllto ton11111111 paia a iluminaçao tio argumento central acima exposto:
1 p. 1 U11(111 Ia de la/et da em oção um objeto tia antropologia, qual seja, sua
capacidade de servir como via de acesso para a análise de temas canônicos e
urgentes da agenda política, entre os quais a violência policial.
Por fim, Rodrigo Rosistolato discute outro tema significativo da agenda
política: a educação sexual oferecida nas escolas como forma de prevenção
à a i d s , a outras doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez. Com foco
no programa de orientação sexual voltado para a formação de professores
no Rio de Janeiro, Rosistolato mostra como este se baseia em duas lógicas
complementares: a da racionalidade médica, que fornece aos estudantes os
saberes tidos como necessários, e a da afetividade, que busca produzir nes­
tes um “aprendizado no emocional” das questões em torno da sexualidade.
Os-professores acreditam que é preciso educar o emocional para que os alu­
nos modifiquem seu comportamento e evitem os riscos do sexo sem proteção.
Para tanto, o programa de orientação sexual oferece uma série de dinâmicas
nas quais os professores que participam devem “soltar” suas emoções como
técnica de construção do grupo de orientadores sexuais. A necessidade de
estar em grupo parte de críticas a uma vida individualizada que levaria à tris­
teza e à racionalidade dos métodos educacionais tradicionais, em detrimento
de uma lógica pautada na cordialidade e no afeto. Desse modo, as emoções
tornam-se alvo primordial de elaboração e expressão seja pelos professores
em formação, seja pelos alunos a serem orientados nas aulas de educação
sexual. Em outras palavras, o estudo de Rosistolato discute um marco fun­
damental do pensamento ocidental moderno, a dualidade razão e emoção,
mostrando que, em alguns contextos, questiona-se a preeminência dada ao
racional e problematiza-se a associação entre razão e saber/cognição.
Temos, pois, um conjunto de estudos que mostram as emoções em ar­
ticulação com aspectos variados da vida social: relações de gênero, esporte,
mídia, artes, religião, educação e política. Ultrapassando em muito a visão
corriqueira de que os sentimentos pertenceriam à esfera do privado e das
relações pessoais, esses estudos revelam que as emoções podem ser recur­
sos importantes de contestação no espaço público tanto na criação de novas
formas terapêuticas quanto na reivindicação de justiça social ou na busca de
novas pedagogias. Ademais, as emoções são discutidas em termos de seus
efeitos micropolíticos nas relações de gênero manifestas em práticas espor­
tivas e religiosas. Embora os artigos se baseiem principalmente na sociedade
brasileira, aparece em todos a temática do controle das emoções, questão
cara à modernidade ocidental de forma mais ampla. Nesse sentido, esta co­
letânea pretende contribuir para o exame das variadas formas de construção
da subjetividade, de modo articulado às questões macrossociais e por meio
do instrumental apresentado pela antropologia das emoçor,
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