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A FAVELA
organização
Angela Randolpho Paiva e Marcelo Baumann Burgos
Editora
PUC RIO
------- BôlLAS
Rio de Janeiro, 2009
69769
O impacto do tráfico de drogas na rotina escolar
1. Introdução
Este capítulo está organizado em duas partes. A primeira levanta questões
relacionadas à presença multidimensional do tráfico na rotina de escolas que
atendem a moradores de favelas submetidas a gangues de traficantes. Nesse
caso, a favela que serviu de referência ao estudo situa-se na Zona Oeste da cida
de do Rio de Janeiro e encontrava-se, durante a pesquisa, submetida ao convívio
com bandos de traficantes. Nela, foram pesquisadas três escolas públicas, todas
localizadas no interior da favela. Com base em entrevistas realizadas com pro
fessores e diretores dessas escolas, procura-se compreender, a partir da análise
de suas percepções, as diferentes manifestações da violência referentes ao tráfi
co de drogas na rotina escolar.
Na segunda parte do artigo, mobiliza-se o caso da outra favela da Zona Oeste
contemplada pela pesquisa, e que é dominada pela milícia,1 a fim de comparar
a representação que os professores constroem, em cada caso, sobre o seu aluno.
Nesse caso, foram pesquisadas duas escolas públicas, ambas dentro da favela.
O tráfico de drogas e a milícia tendem a estabelecer um padrão de sociabili
dade baseada no uso da força, que se contrapõe à sociabilidade fundamentada
no princípio da cidadania, baseada na igualdade assegurada pelo respeito aos
direitos, os quais dependem, em última instância, do monopólio da violência
pelo Estado (Machado, 2008, p. 37 e segs.). E um dos papéis que se espera da
escola é justamente o de contribuir para a formação de alunos cidadãos. Mas,
como se verá ao longo deste capítulo, para escolas como as estudadas, essa atu
ação se mostra, segundo os professores, comprometida pela exposição à violên
cia do tráfico e da milícia, que seria proporcional à fragilidade da presença do
Estado como garantidor da igualdade e da cidadania. Nesse caso, a hierarquiza
ção torna a cidadania símbolo de privilégio, pois, como lembram Gilberto Ve
lho e Marcos Alvito (2000): “Se ele tem privilégio e o outro não tem, não existe
cidadania. Porque a ideia de cidadania é basicamente a ideia de que o outro tem,
pelo menos potencialmente, os mesmos direitos e deveres” (p. 236).
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R:- Como diz a expressão: “Quem faz a lei é nós" Você percebe que quem
faz a lei é nós,2 porque você, quando entra pela rua principal, você vê meio-
fio, barreiras, vocês não viram? Não existe regra (diretora, 2° segmento).
R: Do poder do dinheiro. Porque, hoje em dia, se tem uma briga de dois ga
rotos aífora... “Ah, vou mandar meu tio te pegar! Sabe quem é meu lio? Sabe
quem é meu irmão? Sabe quem é meu pai?" Então, os valores do poder, do
respeito, estão muito voltados para essa parte. Quem tem poder de fazer algu
ma coisa é quem está mais ligado ao tráfico (professora, 2-a segmento).
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Outro exemplo claro de situação envolvendo o tráfico foi dado por esta
professora:
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P: É comum não haver aula por causa do tráfico? (...) E ainda mais pela
localidade da escola, não é?
R: É, tem épocas que está mais forte. Aí o Caveirão entra e é tiroteio para lá
e tiroteio para cá, essas coisas... Então, isso interfere muito, isso é uma coisa
muito forte aqui dentro. (...) A gente está cercado aqui... cercado por várias
bocas, mas a gente ainda consegue manter um território neutro. As vezes,
quando agente tem um problema sério, a diretora... não é que ela não con
siga resolver, mas precisa de ajuda de fora. Ela consegue um contato... e aí
o pessoal vem: “Não, a escola não, vamos respeitar os professores, a direção.
Aqui dentro não quero bagunça" (professora, 2a segmento).
Como nos mostram esses relatos, a escola se utiliza algumas vezes do poder
de coerção do tráfico para resolver questões que lhe fogem ao alcance. Fica evi
denciada a imersão da escola nesse processo valorativo conflituoso. Tal falo de
correría da necessidade de adaptação ao meio, mas seu risco é evidente, a saber,
o cancelamento de sua autonomia institucional. Concordando com Guimarães
(op. cit.):
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R: Depende, eles têm uma... para eles terem essa postura, eles escolhem a
quem eles querem se mostrar. Quando eles não querem, não adianta. A
coisa fica bem difícil, fica bastante complicada. Tem que se abrir esse canal
mesmo, que aí eles se mostram. Você consegue ajudá-los. Eles conseguem se
modificar. (...) Mas, é o ouvir, é o organizar a mente e tentar compreender
tudo que eles assistem... Porque, se eu for te relatar o que eles assistem, você
vai ficar arrepiada. Mas eles assistem coisas assim... absurdas. Aí, a cabeça
fica assim, meio confusa. Ai, tem que tentar levar eles a compreender. São
incompreensíveis as situações, mas tem que fazer esses malucos seguir em
frente e não ir por esse caminho. Esse caminho é muito fascinante. Muito
fácil. Por comodismo, algumas pessoas até entram, porque lutar para cres
cer dá trabalho (professora, 1Q segmento).
Assim é que, salvo algumas exceções, a maioria dos profissionais afirma não
se sentir preparada para esse tipo de cotidiano escolar, percebido como atraves
sado por situações perturbadoras e violentas, como alunos drogados, invasões
do perímetro escolar, brigas em classe, tiroteios, ameaças por parte de alunos ou
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tem gente que a gente já sabe que está no caminho errado, e que a escola
é às vezes um contato... A gente já sabe que a criança está envolvida com
o tráfico, ou que tem um parente envolvido. E tem outro que vem para cá
mais para ter um compromisso social, não é pelo aprendizado, mas pela
escola, que ele se sente mais seguro na escola por causa de toda a violência
da comunidade. (...) Então, a realidade é coisa muito diferente, coisa que
eu não imaginava. Às vezes você fala: “Graças a Deus que eu estou indo
embora... Não. Eu estou indo embora, mas eles continuam aqui. Eu tô
saindo, mas eles continuam...” Então, a escola tem a função social de ser
um lugar onde eles se sentem seguros, às vezes a gente acha que o menos
importante é o conteúdo. Conteúdo é o de menos. É a gente parar e ouvir,
é a gente proporcionar um momento até de lazer para esse aluno (profes
sora, 2Q segmento).
P: Você falou que eles são muito bagunçeiros, não é? Quais são as outras
características mais importantes dos seus alunos?
R: Na 8“ série eles já são adultos, muitos têm filhos, então chegam aqui mui
to cansados, é difícil tirar alguma coisa. A violência também da comuni
dade é um fator de desmotivação, principalmente no turno da manhã, que
eles chegam mesmo para dormir... que eles se sentem seguros na escola para
dormir. Então, ficam cansados... dormem um sono profundo na sala de
aula, porque teve tiroteio de madrugada. Porque o bandido pulou na laje.
Porque o Caveirão entrou. Teve um período que foi bastante agitado, na
semana passada isso aqui estava pegando fogo (professora, 2“ segmento).
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O desejo de mudança entre os alunos na favela com tráfico não estaria rela
cionado apenas à ascensão econômica, mas também, segundo os professores, à
vontade de sair da favela, em grande medida pelos constrangimentos impostos
pelo tráfico.
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De todo modo, identifica-se na favela com tráfico um aluno com mais atitu
de, qualidade que se vê realçada quando contraposta à favela com milícia. Mas
essas qualidades positivas são contrapostas a atributos negativos, como “agres
sivos”, “mal-educados”, “inquietos” e portadores de “baixa autoestima”, que tam
bém são realçados em face da comparação com a favela com milícia.
Os atributos de mal-educados e agressivos, que, segundo professores, se des
tacam nos alunos da favela com tráfico, formam situações constrangedoras que
dificultam o trabalho escolar. Uma professora, que já trabalhou nas duas favelas,
observou o seguinte:
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No dia em que fui levar os alunos para o curso de animação passei pelo
shopping, alguns alunos não sabiam que estavam no [nome do] shopping.
E não é por falta de dinheiro, é falta de sentir que podem ir ali, sentir que
podem atravessar essas barreiras (professor, 1“ segmento, Fl).
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Nessa comunidade não se vê tráfico, o que você sente não é a questão do trá
fico, mas o poder paralelo. Existe um poder onde as pessoas ficam preocupa
das em manter a comunidade no limite, um limite de “civilização’’, vamos
chamar assim. Tem esse poder paralelo que controla a comunidade que o
tráfico não atinge, mas é um poder onde as pessoas [milícia] determinam
o que é certo e o que é errado. “Temos que viver assim.” [modo de pensar e
de falar da milícia, segundo o professor] Quem não vive de forma correta
precisa sair da comunidade, essas pessoas [moradores] são convidadas a se
retirarem (professor, 2Q segmento, F2).
É nítido, portanto, que, para parte dos professores, algumas das caracterís
ticas positivas atribuídas aos alunos da favela com milícia, tais como as de ca
rinhosos e respeitosos, seriam antes uma expressão contraditória da submissão
imposta pela milícia nessa localidade. Explica-se, assim, a ambiguidade do pro
fessor em face desse tipo de controle social, que lhe parece mais sutil do que
a objetividade ostensiva do tráfico e seus efeitos sobre o comportamento dos
alunos, porém, igualmente pernicioso.
4. Considerações finais
O cotidiano escolar apresenta um padrão de sociabilidade violenta que con
tribui para sua segregação e estigmatização diante da sociedade em geral. O
tráfico de drogas estabelece para a favela uma ordenação particular, reconfigu-
rando os padrões sociais vigentes na sociedade em geral, substituindo-os por
outros, que fazem parte do que seria, para os professores, uma cultura da vio
lência. Assim, o direito de ir e vir, a liberdade de crença religiosa, a questão da
propriedade privada e do direito à integridade física se veem comprometidos. E,
junto com isso, prejudicado o direito à escola.
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