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1 JOSÉ DE SOUZA MARTINS

O PODER DO ATRASO
Ensaios de Sociologia da História Lenta

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EDITORA HUGITEG
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si IN idol ipie realizasse, a 13 de maio i
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ii. i me. ci N adoras das tradições mo- LIVRARIA Q,

n 1 1 < 1 1 1 it as desfalecidas". Belas Artes /


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JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Trinity Hall;
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m/nntirio r a Empresa (Estudo de Sociologia do Simon Bolivar Professor, 1993/94,
I».i»\ HIVIIUCIIIO),
d ' ed., 2.“ rcimpr., 1976 University of Cambridge
'•«' Mudo ( 'a jutalista de Pensar, 4.:‘ ed., 1986.
o
/ \/mifnntçáo e Violência (A Questão Política no Campo), 2/ ed., 1982; 3.“
rd , aumentada, 1991.
Introdução Critica à Sociologia Rural (org.), 2.a ed., 1986
A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira (org.), 1983
O Cativeiro da Terra, 4.a ed., 1990 O Poder do Atraso
A Reforma Agrária e os Limites da Democracia na “Nova República ” 1986. Ensaios de Sociologia da História Lenta
Caminhada no Chão da Noite, 1989
O Massacre dos Inocentes (A Criança sem Infância no Brasil) (org.), 2.11 ed.,
1993
Subúrbio (Vida Cotidiana e História no Subúrbio da Cidade de São Paulo:
São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha), 1992
A Chegada do Estranho, 1993.

A relação completa dos textos de José de Souza Martins encontra-se no fim deste
livro.

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1994
Sumário

Introdução 11

PRIMEIRA PARTE
O ESTADO: O USO CONSERVADOR
DA MEDIAÇÃO DO MODERNO

Capítulo I
Clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo . 19
1. O público e o privado na tradição oligárquica 21
2. Os destinatários do clientelismo político . . 28
3. A cultura do favor e do débito político . . 35
4. A crise da corrupção institucional 43

Capítulo II
A aliança entre o capital e a propriedade da- terra no Bra¬
sil: a aliança do atraso 52
1. A superação dos bloqueios ao desenvolvimento
na história brasileira 52
2. As lutas sociais no campo e o Estado de
compromisso 59
3. A intervenção militar na questão agrária:
a aliança entre capital e terra 68
4. Depois da ditadura, a inviabilização das
mudanças 80

"ti
ff

SEGUNDA PARTE
A IGREJA: O USO TRANSFORMADOR
DA MEDIAÇÃO CONSERVADORA Introdução
Capítulo III
Camponeses e índios na renovação da orientação pastoral
da Igreja no Brasil 95
1. A Igreja em face das oligarquias 100
2. Mudanças nas relações de trabalho rural
E A PERSISTÊNCIA do passado que constitui o teor
deste livro. O passado que se esconde, e às vezes se es¬
e seus desafios pastorais 108
117 conde mal, por trás das aparências do moderno, fazendo
3. O conflito entre o Estado e a Igreja
da sociedade brasileira uma sociedade em que essa pecu¬
4. A influência da Amazônia na mudança da
liaridade pesa mais do que à primeira vista se vê. Uma
orientação católica 128
sociedade de comparação difícil com as sociedades cuja
5. A pastoral indígena e a pastoral da terra . . . 137 dinâmica está pressuposta nos modelos de vida social que
dominam os manuais de sociologia. O peculiar da socie¬
Capítulo IV
dade brasileira, como de outras sociedades, está em sua
A ação pastoral das igrejas e o retrocesso
145 história. Menos, obviamente, por suas ocorrências carac-
na reforma agrária
terísticas e factuais. E mais pelas determinações que dela
1. As mudanças políticas e as dificuldades
145 fazem mediação viva do presente. História inacabada, o
do trabalho pastoral
inacabado e o inacabável vão se revelando as determi¬
2. Uma nova consciência das debilidades
154 nações estruturais que demarcam o nosso trajeto, nosso
das elites
nunca chegar ao ponto transitório de chegada; àquele que
3. A emergência política das necessidades
define uma realidade configurada, marcada por seu pró¬
imediatas dos trabalhadores .... 158
4. A tática do alternativo e seu sentido . 163 prio tempo singular, seu modo de ser e de interpfetar-se.
A história contemporânea do Brasil tem sido a história
da espera do progresso. Como o progresso não veio, senão
de um modo insuficientemente lento, essa história se trans¬
formou na história da espera da revolução. Mas a revolução
também não veio (afinal, devia ser esperada ou devia ser
feita?). Na verdade, a história da sociedade brasileira tem
sido uma história inacabada, uma história que não se con¬
clui, uma história que não chega ao fim de períodos defi¬
nidos, de transformações concluídas. Não é uma história
que se faz. E uma história sempre por fazer.
Os quatro ensaios deste volume tratam de problemas
distintos, articulados entre si por temas comuns relativos
V

12 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 13

ao fazer História: a dimensão política da propriedade da a todos e a tudo, quem sabe e quem não sabe, quem vê e
terra c a dimensão política da atuação dos que se envolvem quem não vê, quem quer e quem não quer.
na luta pela terra. Uma certa pobreza de perspectiva tem A propriedade da terra é o centro histórico de um sis¬
sustentado a suposição, mesmo entre sociólogos, de que a tema político persistente. Associada ao capital moderno,
questão da terra interessa aos trabalhadores rurais e a mais deu a esse sistema político uma força renovada, que blo¬
ninguém. Problema residual do passado, será resolvido queia tanto a constituição da verdadeira sociedade civil,
com o progresso e o desenvolvimento urbano inevitáveis. quanto da cidadania de seus membros. A sociedade civil
Assim pensam os que não conseguem ver que no problema não é senão esboço num sistema político em que, de mui¬
fundiário está o núcleo das dificuldades para que o País tos modos, a sociedade está dominada pelo Estado e foi
se modernize e se democratize. Fala-se de sociedade civil transformada em instrumento do Estado. E Estado baseado
e de cidadania como se uma coisa e outra pudessem se \ em relações políticas extremamente atrasadas, como as do
constituir e se disseminar com a vulgarização de dois ou clientelismo e da dominação tradicional de base patrimo¬
três capítulos de clássicos do pensamento social francês. nial, do oligarquismo. No Brasil, o atraso é um instrumen¬
Essa ingenuidade da mentalidade colonizada não permite to de poder. As recentes denúncias de corrupção, que po¬
ver que não estamos na França nem na Europa. A cidada¬ deriam ter levado, mais do que qualquer coisa, a uma
nia não é o milagre do discurso fácil. Onde é real e tem revisão profunda do sistema político brasileiro, mais do
sentido, não foi produzida pela cansativa repetição da pa¬ que exclusivamente do Estado brasileiro, apenas revelaram
lavra que a designa. A cidadania foi produzida por confli¬ como a sociedade inteira está profundamente envolvida na¬
tos radicais, que afetaram a sociedade na raiz; além disso, quilo que a constrange e que denuncia. A denúncia da
muito mais profundos e significativos que os conflitos de corrupção serviu exatamente para mostrar a natureza vi¬
classes. ciosa do sistema político.
Por que entre nós, o discurso sobre a cidadania é mais Nesse esquema, em que a sociedade está dominada pelo
forte do que a pseudocidadania que temos? Por que o já Estado, e atua segundo a lógica do Estado, a força da so¬
lugar-comum dos clamores da sociedade civil é tão mais ciedade civil se dilui e, frequentemente, se perde. Todas
visível do que apropria sociedade civil? Na verdade, estamos as grandes pressões sociais de fortes possibilidades trans¬
muito longe de uma sociedade de cidadãos. Nossas tradições formadoras, a partir da Segunda Guerra Mundial, no Bra¬
históricas e nossos dilemas* históricos não resolvidos nos sil, se diluíram facilmente em projetos e soluções exata¬
empurram perigosamente em outra direção. A propriedade mente opostos aos objetivos das lutas sociais. O sistema
latifundista da terra se propõe como sólida base de uma político tem demonstrado uma notável capacidade de cap¬
orientação social e política que freia, firmemente, as possi¬ tura dessas pressões e propósitos, assimilando e integrando
bilidades de transformação social profunda e de democrati¬ o que é disruptivo e o que em outras sociedades foi fator
zação do País. E um sério erro supor, como fazem muitos, essencial de transformações sociais e políticas até profun¬
que a questão fundiária deva ser isolada do conjunto dos das.
processos sociais e históricos cie que é mediação, para no Os grupos sociais descontentes, muitas vezes consciente¬
fragmento de um isolamento postiço ser analisada como mente desejosos de grandes mudanças históricas, ao atua¬
mero problema social, circunscrito a algumas regiões e a rem no marco dessas limitações, no marco de uma sociedade
alguns grupos sociais. Na verdade a questão agrária engole cujos movimentos sociais e cujas aspirações se esgotam pri-
14 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 15

mariamente na reprodução de uma máquina incivilista de É justamente essa peculiaridade histórica da sociedade
poder, são na verdade, involuntariamente, agentes da história brasileira que faz com que certas ações e orientações políti¬
lenia. As mesmas ações e até os mesmos protagonistas (os cas em favor de transformações sociais, e a própria consciên¬
camponeses, os operários, os jovens, os negros), em outras cia do que vem a ser transformação social, abram um campo
sociedades, atuando pelos mesmos objetivos, conseguiram de possibilidades de ação transformadora aos característicos
mudanças sociais e políticas notáveis, que redefiniram o representantes do que os clássicos definiram como pensa¬
modo de ser de sociedades inteiras. Aqui não. mento conservador. Nessa perspectiva é possível observar
Quando se reconhece que a sociedade brasileira, como que o pensamento conservador não é um pensamento imo-
outras sociedades de origem colonial, com problemas simi¬ bilista, como vulgarmente se supõe. Ao contrário, o pensa¬
lares, é uma sociedade de história lenta e se toma essa cons¬ mento conservador se tornou ativo e transformador, na
tatação como perspectiva de interpretação da realidade so¬ própria Europa, quando a sociedade tradicional foi posta em V
/

cial, os resultados são diferentes dos que se consegue por \ confronto com os efeitos socialmente desagregadores do
outro meio. A perspectiva do que posso chamar de uma progresso e da modernização. Algumas conquistas sociais r-
sociologia da história lenta permite fazer uma leitura dos fundamentais das classes populares européias foram inspira¬
fatos e acontecimentos orientada pela necessidade de distin¬ das em constatações e descobertas somente possíveis na
guir no contemporâneo a presença viva e ativa de estruturas perspectiva do pensamento conservador. Não nos esqueça¬ \ /
fundamentais do passado. De modo que os fatos de hoje mos de que o próprio pensamento de Marx tem suas raízes
acabam se mostrando como fatos densamente constituídos na lógica da tradição conservadora e ele próprio é a mais i \ f
pela persistência de limitações e constrangimentos históricos importante indicação da vitalidade radical dessa origem.
que definem o alcance restrito das condutas transformado¬ Numa situação limite, como a brasileira, e de outros
ras. Mais que isso, uma sociologia da história lenta permite países em situação histórica idêntica, a própria intenção
descobrir, e integrar na interpretação, estruturas, institui¬ conservadora se radicaliza e se transforma em arma de
ções, concepções, e valores enraizados em relações sociais pressões por mudanças até profundas. Penso que é por
que tinham pleno sentido no passado, e que, de certo modo, *

essa via que se pode entender o papel singular da Igreja


e só de certo modo, ganharam vida própria. É sua mediação Católica no País, no seu envolvimento e identificação
que freia o processo histórico e o torna lento. Não só porque com as potencialidades transformadoras das lutas popula¬
reduz o âmbito da tomada .de consciência das verdadeiras res no campo e na cidade. Lutas que, no fim, têm como
à transformação social, mas também porque referência antagonística, ainda que indireta, justamente
,/ÿtenua ou reorienta o sentido das ações de propósito trans¬ esse sistema político que atenua o impacto e as consequên¬
formador. O grande equívoco de sociólogos e cientistas cias das pressões sociais dos descontentes. O uso de esque¬
.)} políticos tem sido o de~pressupor que essas mediações são mas pré-fabricados e chavões gestados em outros confron¬
' apenas obstáculos ao progresso, ao desenvolvimento e à tos e outras sociedades não tem aqui senão o aspecto de
modernização. E de que o progresso domina inexoravelmen¬ conduta imitativa, não criativa, própria do colonizado que
te a História. A questão, aliás, nem é saber se domina ou não, ainda pensa com a cabeça do colonizador. A ação política
Uy dúvida em si mais que razoável. A questão é saber quais são neles baseada não leva senão a uma prática política redu¬
I V.
-o as condições históricas que estabelecem o ritmo do progresso zida a frases vazias e palavras de ordem inconsequentes.
em diferentes sociedades. Historicamente, o País se fragmenta em dois partidos: o
V-
*rr . ó '•
fl
10 INTRODUÇÃO

partido do sistema político e o partido da ruptura. O difícil


tem sido, claramente, fazer com que na práxis política dos
que se motivam pelo afã de mudar e transformar se assuma PRIMEIRA PARTE
que seu partido é o partido da ruptura e não o partido
do poder. Equívoco, aliás, que faz do revolucionário um
conservador.
O ESTADO: O USO CONSERVADOR
DA MEDIAÇÃO DO MODERNO

Este livro não estava nos meus planos quando as¬


sumi a Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cam¬
bridge, eleito seu titular para o ano acadêmico de
1993/94. Na verdade, pretendia trabalhar em outro livro,
e de fato o fiz. Mas as circunstâncias me sugeriram a
possibilidade e a oportunidade de concluí-lo.
Sou, por isso, imensamente agradecido à Universidade
de Cambridge, que me ofereceu, nesse período, excepcio-
nais condições de trabalho. Esses agradecimentos se esten¬
dem às pessoas que ali me asseguraram, na convivência
quase cotidiana, o melhor clima de acolhimento e simpatia:
Ilona e David Lehmann, Celia e David Brading, Maria Lú¬
cia e Peter Burke, minha secretária, a sra. Ana Gray, inex-
cedível na disponibilidade e atenção, e a sra. Clare Hariri,
secretária-executiva do Center for Latin American Studies.
Dedico um agradecimento particularmente caloroso ao
Master, Sir John Lyons (bem como a sua esposa, Lady Da¬
nielle Lyons) e aos fellows de Trinity Hall, que me elegeram
fellow daquela veneranda comunidade. Eles me ofereceram,
generosamente, a melhor acolhida que estava ao alcance
de suas tradições seculares e me deram a oportunidade de
conhecer e conviver diariamente com um grupo de pessoas
notável não só por sua imensa cultura, mas sobretudo por
sua exemplar humildade.
JH
Cambridge, 8 de julho de 1994.
'

Capítulo I

Clientelismo e corrupção
no Brasil contemporâneo*

o aspecto, provavelmente, mais significativo dos


episódios de denúncia e punição de casos de corrupção
no Brasil, iniciados com o impedimento e a cassação dos
direitos políticos do presidente da República, Collor de
Mello, e continuados com a denúncia e cassação de par¬
lamentares, não está na constatação da corrupção em si.
No meu modo de ver, o aspecto mais importante está no
luto de que os acontecimentos que culminaram com o
afastamento do presidente tenham sido definidos como cor¬
rupção e assim aceitos pela opinião pública. Esse é, no
meu modo de ver, o fato histórico que sugere, nesses
episódios, a ocorrência de mudanças políticas na socie¬
dade brasileira.
De fato, o trânsito de dinheiro particular para os bolsos
dos políticos por meio das funções públicas que ocupam
combina-se, na tradição brasileira, com o movimento in¬
verso do dinheiro particular dos políticos em favor dos
interesses particulares dos eleitores, justamente como com¬
pensação pela lealdade política destes últimos. E evidente
que, nesse trânsito de riqueza por canais que passam pelo
% exercício de funções públicas, fica difícil distinguir o que
e dinheiro público e o que é dinheiro particular. No com-
b
trabalho apresentado no simpósio sobre “Political Corruption: Latin America
and Europe in comparative perspective”, Institute of Latin American Studies,
University of London, em colaboração com o Institute of Latin American
Studies, University of Liverpool, Londres, 4-5 de maio de 1994.
<T

20 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO N< ) I1RASII. CONTEMPORÂNEO 21

dos do poder. Entretanto, não seria estranho se, ao fim do


portamento politico do povo, mesmo dos eleitores, ao lon¬
go da história política brasileira, essa distinção parece ter período de suspensão de seus direitos políticos, voltassem
a se candidatar e a se eleger, como, aliás, já ocorreu em
sido irrelevante. A política do favor, base e fundamento do
Estado brasileiro, não permite nem comporta a distinção outros casos. Como, também, a rigor, políticos envolvidos
entre o público e o privado. em notórios casos de corrupção tenham.sido eleitos para
c argos do executivo imediatamente após a cassação de
Por outro lado, qualquer tentativa de interpretar a dinâ¬
( aillor. Ou que parlamentares envolvidos em
mica do processo político brasileiro, e seus episódios singu¬ corrupção
lares, passa pelo reconhecimento de que as mudanças só tenham candidamente participado da cassação de Collor,
ganham sentido nas crises e descontinuidades do clientelis- como se a dele fosse corrupção e a deles não.
mo político de fundo oligárquico que domina o País ainda A questão, portanto, não está na corrupção em si. Mas na
hoje. Passa também pelo reconhecimento de que a tradição própria definição da corrupção nos episódios recentes, na
do mando pessoal e da política do favor desde há muito mobilização popular que ela desencadeou e na crise insti¬
) tucional que produziu. No fim, ela é reveladora da força,
depende do seu acobertamento pelas exterioridades e apa¬
rências do moderno, do contratual. A dominação política mas, também, das fragilidades atuais de um Estado cuja
constituição resulta da contraditória combinação de inte¬
patrimonial, no Brasil, desde a proclamação da República,
pelo menos, depende de um revestimento moderno que lhe resses e concepções tradicionais e modernas. Um Estado,
dá uma fachada burocrático-racional-legal. Isto é, a domina¬ enfim, relativamente impermeável às pressões dos movi¬
ção patrimonial não se constitui, na tradição brasileira, em mentos sociais, das manifestações modernas da opinião pú¬
forma antagónica de poder político em relação à dominação blica, mas não impermeável às fragilidades da tradição
c piando subsumida na lógica do moderno. Não é, predo¬
racional-legal. Ao contrário, nutre-se dela e a contamina. As
oligarquias políticas no Brasil colocaram a seu serviço as minantemente ou exclusivamente, na força dos movimentos
instituições da moderna dominação política, submetendo a sociais que está o centro dinâmico dás mudanças políticas
seu controle todo o aparelho de Estado. Em consequência, no Brasil (afinal, as massas, nas ruas, em 1984, não con¬
nenhum grupo ou partido político tem hoje condições de seguiram eleições diretas para a presidência da República),
mas nas contradições e debilidades que a modernização
governar o Brasil senão através de alianças com esses grupos
tradicionais. E, portanto, sem amplas concessões às necessi- introduziu na dominação oligárquica. Aí, sim, na ação so-
'dades do clientelismo político. Nem mesmo os militares, bre essas fragilidades é que os movimentos sociais têm con¬
secularmente envolvidos num antagonismo histórico com as seguido propor e, até, introduzir suas demandas na agenda
tradições oligárquicas, conseguiram nos vinte anos de sua política do Estado brasileiro.
recente ditadura destruir as bases do poder local das oligar¬
quias. Tiveram que governar com elas, até mesmo amplian-
do-lhes o poder. No fim, o poder pessoal e oligárquico e a 1.0 público e o privado na tradição oligárquica
k prática do clientelismo são ainda fortes suportes da legitimi¬
E certamente difícil explicar os acontecimentos recentes
dade política no Brasil.
Porém, eu não chegaria a supor que não há contradições sem o recurso à história da relação entre o público e o
profundas por trás dessa legitimidade cie tipo tradicional. privado na formação do Estado brasileiro. Basicamente,
Tanto há, que Collor e vários parlamentares foram expeli- porque no Brasil a distinção entre o público e o privado
22 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 23

nunca chegou a se constituir, na consciência popular, como mesmo princípio, também usufruíam do património do
distinção de direitos relativos à pessoa, ao cidadão. Ao con¬ íei, assim consideradas as terras devolutas, as árvores, os
trário, foi distinção que permaneceu circunscrita ao patri¬ Irutos e os animais que, por sua qualidade, haviam sido
mónio público e ao património privado. Portanto, uma dis¬ previamente classificados como reais: as terras realengas, a
tinção relativa ao direito de propriedade e não relativa aos pimenta-do-reino, as madeiras-de-tó, o papagaio-rmZ, como
direitos da pessoa. Mesmo aí, distinção que nunca ganhou os nomes já indicam. Tudo disponível para uso mediante
clareza e contornos nítidos. Durante todo o período colo¬ pagamento de tributo. Em relação às terras, em particular,
nial, os direitos se superpuseram, o público e o privado. centro e base do poder até os dias de hoje, e muito mais
A grande distinção era de outra natureza e se sobrepunha ainda no período colonial, o rei mantinha sempre a pro¬
a todas as outras: o que era património do rei e da Coroa priedade eminente dos terrenos concedidos em sesmaria.
e o que era património dos municípios, isto é, do povo. ( ) (jue significava a preservação do seu direito de recupe-

È aí a própria concepção de pessoa, como sabemos, estava i ar a posse das terras que fossem abandonadas ou não

limitada aos brancos e católicos, puros de sangue e puros j usadas de maneira a produzir os tributos a que tinha di-
de fé. Os impuros, isto é, os mestiços, os escravos indíge¬ icito. No fim das contas, uma relação de arrendamento.
nas, os escravos negros, mas também os mouros e judeus, Ao mesmo tempo, já nessa época, os representantes do rei
estavam sujeitos a uma gradação de exclusão que ia da concediam as terras em nome dos interesses do rei e não
condição de senhor de património à condição de património cm nome das necessidades do povo. Não há pedido de
de senhor. sesmaria do período colonial em que o requerente não o
O rei, constantemente, se valia do património dos súdi¬ .justifique com serviços já prestados à Coroa, na guerra
tos para lograr os fins da Coroa, isto é, do Estado. Eram ao índio, na conquista do território. No século XVII, os
os particulares que faziam as expedições de guerra ao ín¬ pedidos acrescentam até mesmo uma história familiar de
dio, que construíam as pontes e caminhos, que organiza¬ lealdades, em que são invocados os nomes de antepassados
vam e administravam as vilas, que faziam a guerra ao in¬ que também serviram ao rei.ÿA concessão territorial era
vasor. Sempre à custa de seu património, como tributo o benefício da vassalagem, do ato de servir. Não era um
político, mais do que económico, devido à Coroa. Não direito, mas uma retribuição. Portanto, as relações entre o vas¬
havia uma distinção entre o que hoje poderíamos chamar salo e o rei ocorriam como troca de favor. A lealdade política
de bens do Estado e bens do cidadão, de modo que entre recebia como compensação retribuições materiais, mas também
eles se estabelecesse uma clara relação contratual. Não ha¬ honrarias, como títulos e privilégios, que, no fim, resul-
via, por isso, medida para que o rei reclamasse dos súditos lavam em poder político e, consequentemente, em poder
serviços custosos, inteiramente cobertos pelos recursos pes¬ económico.
soais de quem era convocado para fazê-los. Não havia outra Nesse esquema de trocas, os súditos não estavam excluí¬
regra que não fosse a vontade do rei. Se em um ano se dos da gestão da coisa pública. Desde os primeiros tempos
apresentassem as necessidades económicas de muitas guer¬ da história do Brasil, há um claro confronto de interesses
\ ras, o rei simplesmente requeria os serviços dos súditos. e de poder entre a Coroa e o município. Na constituição
Não havia nada que pudesse ser incluído na idéia do cál¬ d. is vilas, o rei reconhecia o poder das câmaras municipais
culo racional e predeterminado. sobre o respectivo território, especialmente em relação às
Os súditosÿ isto é, o povo, por seu lado, em nome do questões propriamente urbanas. Se, por um lado, as câma-
(1,
I

24 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 25

ras agiam como delegadas da Coroa, havia prerrogativas <|iie o fisco nessa classificação já indicasse uma concepção
municipais nas quais o rei não se envolvia, a não ser para patrimonial do súdito. Ao mesmo tempo, como revelariam
reconhecê-las e legitimá-las. os recenseamentos do século XVIII, o arrolamento nominal
Especificamente preocupado com a questão do que leva tinha por objetivo controlar a constituição de novas famí¬
r a definir como corrupção os acontecimentos recentes, penso lias e, portanto, novas unidades patrimoniais e fiscais, su-
que é necessário recorrer à história daquilo que permanece, isto joitas a tributo, em consequência do casamento de filhos
é, a história da constituição de mecanismos de poder e da r I ilhas. Porém, o fato de que essas mesmas unidades fis-
constituição de instituições em que o público e o privado se < ais, através do cabeça-da-família fossem convocadas pelas
confundem. Surpreendentemente, porém, se confundem na câmaras e, portanto, pelos próprios chefes de família, para
separação que dá a cada um sua especificidade. Justamente realização dos chamados serviços do bem comum, como
por isso, trata-se de entender público e privado nao como ibrir e conservar caminhos, construir e manter pontes, é
práticas definidoras de condutas subjetivas, mas como con¬ indicativo de que a unidade familiar, além de ser uma uni¬
cepções submetidas ao arbítrio de quem personifica o públi¬ dade fiscal era também uma unidade política de primeira
co e de quem personifica o privado. instancia. O que mostra que a unidade política da colónia
No Brasil dos séculos XVI e XVII, o público era quase j.i era, desde o princípio, uma unidade patrimonial.
que inteiramente personificado pelo privado. As re-públicas, A nomeação de “cabos dos moradores dos bairros”, isto
isto é, as vilas, os municípios, eram constituídas pela casta e, comandantes, para realização dos serviços públicos, so¬
dos homens bons, isto é, os homens sem mácula de sangue brepunha à autoridade do chefe da família a autoridade do
e, também, sem mácula de ofício mecânico, isto é, homens diefe do bairro, sempre bairro rural, todos empenhando
que não trabalhavam com as próprias mãos. A elas dele¬ nessas obras o seu' próprio património. O Jributo não as-
gava o rei parte de sua autoridade e nelas os homens bons mmia forma monetária direta e, portanto, não carregava
administravam essa concessão no benefício da república. < < msigo implicações de natureza contratual. É significativo
República era, pois, sinónimo de coisa pública administra¬ que os mais conspícuos desses cabos de moradores apare¬
da pela assembléia dos particulares, isto é, dos súditos. çam relembrados nas genealogias do século XVIII com a
Contraditoriamente, no fundo, era público o que não era denominação de pais-da-pátria.1 Significativo porque indica
do rei, isto é, do Estado. E que estava, portanto, sob ad¬ uma concepção campanilista e paroquial de pátria, circuns-
ministração dos agentes do privado. < lila ao território do poder local. Mas significativo, tam¬

Quando se cobrava o tributo chamado de Donativo Real, bém, porque sugere que o patrimonialismo político da épo-
nos séculos XVI e XVII, no modo como era feito o arro¬ < a colonial não se expressava no poder derivado de relações
lamento do contribuinte, já estavam indicados a natureza fonlratuais e de qualquer concepção de representação po-
\WN e o formato da estrutura de poder do Brasil colónia, mas ira. Derivava, antes, de uma concepção patriarcal de au-
I \ também do Brasil independente: o responsável pela tribu¬ loi idade e de uma certa sacralidade no exercício da função
tação estabelecia como unidade fiscal o fogo, isto é, a casa publica. O que faz sentido no caráter estamental da socie-
k —
e a família extensa o chefe de família, a mulher, os filhos,
1 I IVdro Taques de Almeida Paes Leme, “Nobiliarquia Paulistana”, in Revista

D as noras e genros se fosse o caso, os agregados e os escra- lumes trai do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brasil, tomo
t vos. Como eram listados todos nominalmente, inclusive os WXV, Parte Primeira, B. L. Gamier Livreiro-Editor, Rio de Janeiro, 1872,
escravos, homens e mulheres, adultos e crianças, é provável passim.
1
. Kr
-SP* 26 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 27

dade da época e nas concepções de exclusão social baseadas l io de ação e mobilização dos membros da Guarda era o
em pressupostos de fidalguia, isto é, de nobreza. território municipal. De modo que os potentados locais
Essa estrutura evoluiu no século XVIII para a organização ganharam visibilidade e forma política como coronéis da
política das chamadas companhias de ordenanças, entidades Guarda. O que fora originalmente instrumento político do
corporativas que militarizavam a população civil masculina, município e, portanto, dos senhores de escravos e de ter¬
•7- ' cujos capitães agiam, como os antigos cabos de bairros, por ras, sobretudo nos séculos XVI e XVII, tornara-se instru¬
delegação das câmaras. Agora, porém, também por delega¬ mento direto de expressão do poder absoluto da Coroa a
ção do rei. Na segunda metade do século XVIII, os capitães- partir do século XVIII. Com a Independência, esse poder
generais das capitanias, isto é, os governadores, dirigiam-se acrescido e organizado politicamente pelo absolutismo no
diretamente aos capitães de ordenanças, sujeitos também às período colonial, retornou ao controle dos potentados ru-
t rN ordens das câmaras municipais, dando-lhes instruções e fa¬ i ais e locais. Eles se tornaram os guardiães do Estado na¬

zendo solicitações. Não é difícil encontrar indicações de tional nascente e, portanto, a fonte de legitimidade política
funções policiais atribuídas a esses comandos civis. E comum do novo país.
v
' encontrar na documentação da época indícios extremamen¬ Fundamentalmente, pois, na base, um Estado não-igua¬
if te claros da verticalização do poder absoluto à custa da litário e patrimonial, mutilado por uma categoria povo
sr diminuição das atribuições das câmaras. Com frequência, bem distinta da do Estado moderno, porque povo esta-
numa carta do rei ou do ministro de ultramar ao capitão-ge- mentalmente dividido entre grupos sociais com direitos de¬
neral, há ordens, determinações e solicitações enviadas aos siguais, além daqueles que não tinham nenhum direito,
jJÿcapitães-generais, imediatamente retransmitidas por estes que eram os escravos, de modo algum incluídos na cate¬
aos capitães-de-ordenanças de remotos e obscuros bairros goria povo. E, no* próprio Império, parte do povo estava
rurais2. privada do direito de voto e de expressão política: obvia-
Com a Independência, e após a abdicação de Dom Pedro inente, não só não votavam os escravos, como não votavam
I, a Regência de Feijó criou a Guarda Nacional. Não é os mendigos e as mulheres (que permaneceram excluídas
preciso buscar na experiência e na história de outros países, do direito de voto ainda nas primeiras décadas da Repú¬
como se faz, o modelo inspirador dessa inovação política. blica). Além disso, nem todos votavam em todas as elei¬
tf Pois o que a Regência fez foi simplesmente ampliar a es-
trutura das companhias de ordenanças, que eram corpo¬
ções: a amplitude do voto era regulada pelo património
de cada um, pois só os mais ricos votavam em todas as
rações civis, dando-lhes uma hierarquia militar completa e eleições (municipais, provinciais e nacionais). Os não tão
submetendo-as ao controle do Ministério da Justiça, que i icos votavam nas eleições municipais e provinciais mas

atuava como uma espécie de ministério de negócios inter¬ não nas nacionais. E os senhores de posses modestas vo-

V
- nos. Com a criação da Guarda Nacional, o que de fato
aconteceu foi a captura do poder central pelos municípios
e sua tradição oligárquica e patrimonial. Porque o territó-
lavam apenas nas eleições municipais. Essa escala fazia do
município, na verdade, o lugar de mais completa partici¬
pação política da minoria a quem se reconheciam direitos
políticos, pois era onde estava o mais completo colégio
2 Isso pode ser largamente constatado na volumosa correspondência de Martim eleitoral, dos eleitores mais ricos aos eleitores com redu¬
I Lopes Lobo de Saldanha, capitão-general da Capitania de São Paulo, cuja
intromissão nas atribuições da Câmara local provocou frequentes atritos com
os vereadores.
zido património. De certo modo, era uma escala de dele-
gação de direitos políticos e ação política indireta: os ex-
28 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
29

cluídos do direito de voto estavam incluídos na tutela dos ciamento eleitoral já que, supostamente, o sistema político
potentados rurais, como clientes e protegidos, inclusive no teria se modernizado, inviabilizando a sobrevivência desses
que se refere às questões propriamente políticas. Com os mecanismos antiquados de relacionamento entre o poder
que só votavam nas eleições locais constituía-se, portanto, e o povo.
a unidade política de referência, o município, em que vo- Essa interpretação parece-me equivocada. De um lado,
tava a totalidade dos eleitores. O município legitimava
a porque o clientelismo político não desapareceu. Ao contrá-
ação política dos que tinham acesso às demais instâncias no, em muitas regiões do País ele se revigorou, embora
do poder, embora delas não participasse diretamente a mudando de forma, praticado por uma nova geração de
maioria dos eleitores. Todo o sistema estava, por isso, baseado políticos de fachada moderna3. De outro lado, porque, na
em mecanismos de intermediação política de fundamento patri- verdade, ele não se reduzia nem se reduz a uma modali¬
monial. dade de relacionamento entre políticos ricos e eleitores po¬
A concessão gradativa do direito de voto ao povo, até bres. Minha concepção é a de que o oligarquismo brasileiro
muito recentemente, quando se reconheceu o direito de

se apoia em algo mais amplo do que esse relacionamento
voto aos analfabetos, obedeceu, na verdade, a critérios
de ele se apóia na instituição da representação política
ampliação do poder dessas oligarquias mediadoras entre como uma espécie de gargalo na relação entre a sociedade
os excluídos e o Estado. Não é estranho que os militares, e o Estado. Não só os pobres, mas todos os que, de algum
herdeiros do absolutismo monárquico, e historicamente ad- modo, dependem do Estado, são induzidos a uma relação
versos às oligarquias, tenham se composto com elas na di- de troca de favores com os políticos.
tadura recém-terminada. Pois o que de fato aconteceu, com De fato, as indicações sugerem que o clientelismo político
a Independência e também com a República, foi a preser¬ sempre foi e é, antes de tudo, preferencialmente uma rela¬
vação de um certo absolutismo, que o Exército representa; ção de troca de favores políticos por
benefícios económicos, não
uma certa verticalização do poder, com base, porém, no importa em que escala. Portanto, é essencialmente uma. re¬
poder paralelo e local das oligarquias, dos potentados. As lação entre os poderosos e os ricos e não principalmente
uma
oligarquias asseguram a estabilidade do poder. São, na ver¬ relação entre os ricos e os pobres. Muito antes de que os pobres
dade, os magistrados do processo político, como se viu na pudessem votar e, portanto, negociar o preço do voto, já
eleição de Tancredo Neves como primeiro presidente após o Estado tinha com os ricos, isto é, os senhores de terras
a extinção do regime militar, e se vê agora, com extraor¬ c escravos, uma relação de troca de
favores, como espero
dinária clareza, com os acordos políticos que definem os ter demonstrado acima: a Coroa portuguesa, por pobreza
rumos da eleição presidencial de 1994. ou avareza, recorria ao património dos particulares para a

a
Um interessante estudo de Hoefle, sobre a política local no Nordeste
do Brasil
2. Os destinatários do clientelismo político c a manutenção do sistema clientelístico ao longo de
diferentes regimes polí¬
i O clientelismo político tem sido interpretado, no Brasil,
ticos neste século, até o período recente, é indicativo de
modernização das atividades económicas dos políticos locais (
n ada também nas atividades comerciais, além da agricultura)com
que, ao lado da
a sua en-
permanecem
como uma forma branda de corrupção meramente política, velhos mecanismos de controle do voto e do comportamento
eleitoral. Cf.
Scott William Hoefle, Harnessing the Interior Vote: The Impact Economic
mediante a qual os políticos ricos compram os votos dos of
Unbalanced Development and Authoritarianism on the Local Politics Northeast
Change,
eleitores pobres. Além disso, uma forma obsoleta de ali- llmzily Working Papers 14, University of London, London, of
1985.
f

N( ) BRASIL CONTEMPORÂNEO
30 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO 31
<le favores. O que talvez explique a apatia da burguesia
realização dos serviços públicos, pagando, em tioca, com
brasileira, que nunca se pôs claramente o problema da sua
o poder local e honrarias, isto é com nada. Esse nada,
icsponsabilidade política como classe dominante. Ela atua
porém, tinha a virtude real ou potencial de poder ser con¬
vertido em riqueza, terras ou dinheiro. No fim das contas, por delegação, por interpostas pessoas, através dos mecams-
esses mecanismos não eram apenas os complicados mecanismos
mos do clientelismo político (foi, no fim das contas, o que
do poder numa sociedade sem representação política. Eram tam¬
apareceu como corrupção no caso Collor). O mesmo se dá
bém os complicados e tortuosos mecanismos cia acumulação da
com a classe operária. Os esforços dos historiadores do
n abalho, de explicar a existência de uma classe operária no
riqueza. Quando a riqueza se modernizou ao longo do sé¬
111 asil, orientada, desde o começo, por posições de esquerda,
culo XIX e, sobretudo, nas décadas finais daquele século,
nao se modernizou por ações e medidas que revolucionas¬ c-m particular anarquistas ou socialistas, são esforços vãos. E
< laro, houve minorias esclarecidas, sobretudo
sem o relacionamento entre a riqueza e o poder, como imigrantes
acontecera na história da burguesia dos países mais repre-
estrangeiros, que agiram no sentido da defesa dos interesses
< la lasse trabalhadora, inspiradas pelas concepções do anar-
sentativos do desenvolvimento capitalista. Ao contrário, na
(

K quismo, do socialismo ou do comunismo. Mas a verdade nua


sociedade brasileira, a modernização se dá no marco da tradição,
c crua é que a única grande expressão política e ideológica
o progresso ocorre no marco da ordem. Portanto, as transforma-
< l.i dasse operária brasileira foi o populismo,
ções sociais e políticas são lentas, não se baseiam em acentuadas que teve seu
melhor momento no populismo de Vargas.
e súbitas rupturas sociais, culturais, económicas e institucionais.
A suposição de que as oligarquias e os militares estão
O novo surge sempre como um desdobramento do velho: foi o
próprio rei de Portugal, em nome da nobreza, que suspen¬ historicamente numa relação de antagonismo e de recíproca
e\( lusão é algo quemerece
deu o medieval regime de sesmarias na distribuição de uma revisão crítica. Leal sugeriu
terras; foi o príncipe herdeiro da Coroa portuguesa que
que o sistema coronelístico perde vitalidade com a ditadura,
proclamou a Independência do Brasil; foram os senhores porque esta prescinde do voto, desvalorizando, portanto, a
de escravos que aboliram a escravidão; foram os fazendei¬ mercadoria que alimenta a reprodução do sistema oligárqui-
n‘. Porém, a Revolução de 30, nos seus primeiros meses,
ros que em grande parte se tornaram comerciantes e in¬
(

i penas iniciou uma guerra contra


dustriais ou forneceram os capitais para esse desdobramen¬ os potentados locais, es-
pe( ialmente no Nordeste, abandonando-a em seguida5. Co¬
to histórico da riqueza do País. Nessa dinâmica, é que pode
lorou militares no lugar dos velhos chefes políticos regionais,
ser encontrada a explicação para o fato de que são os se-
alguns deles investidos de grande poder pessoal, minidita-
tores modernos e de ponta, na economia e na sociedade,
lores como o general Juarez Távora, que chegou a ser
que recriam ou, mesmo, criam, relações sociais arcaicas ou
(

atrasadas, como a peonagem, a escravidão por dívida, nos


(
oiihecido como o “vice-rei do Nordeste”. Por esse meio, as
anos recentes. Trata-se, portanto, de uma sociedade estru- oligarquias mantinham suas relações de clientelismo e, so-
turalmente peculiar, cuja dinâmica não se explica por pro¬ l>i eludo, sua dominação tradicional em relação à clientela,
)/ cessos políticos e históricos dos modelos clássicos. Uto é, o povo. Mas, passaram a prestar obediência aos novos
As novas classes prontamente se ajustaram aos mecanis¬ 1 ( I Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, 2 a edição, Editora
mos do clientelismo, tanto a burguesia quanto a classe ope¬
Alfa-
I ( )ntcga, São Paulo, 1975.
rária. A história da moderna burguesia brasileira é, desde o ' I José de Souza Martins, Os Camponeses a Política no Brasil, 2.a
(
edição,
l ditora Vozes, Petrópolis, 1983.
começo, uma história de transações com o Estado, de troca
N< ) BRASIL CONTEMPORÂNEO 33
32 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO

donos do poder, os militares e burocratas do Estado centra¬ 1964 tenha sido, justamente, o combate à corrupção e à
lizado. No fim, mesmo onde a Revolução renovou as lideran¬ subversão, dois desvios que a ditadura considerava associa-
ças políticas, recorreu ao mesmo sistema de compromissos dos: supostamente, os corruptos eram os primeiros interes¬
sados na subversão para acobertarem-se e, ao mesmo tem¬
com facções locais em que o coronelismo sempre se baseou.
Talvez haja alguma dificuldade para dar o devido peso po, no caos político, aumentarem seus ganhos ilícitos. Era
uma concepção ingénua de corrupção.
a esses compromissos porque a tendência generalizada dos
historiadores e cientistas políticos seja a de, equivocada- basicamente a suposição era a de que a força conser¬
mente, imaginar o governo Vargas, de 1930-1945, como
vadora do clientelismo político se debilitava em face justa¬
mente da sua utilização por um governo que preconizava
sendo qualitativamente o mesmo do começo ao fim. A
importância de suas oscilações não ganha destaque nas reformas sociais profundas, que, por sua vez, debilitariam
análises. Ao contrário, esses quinze anos de getulismo, vis- esse mesmo conservadorismo, abrindo caminho para a rup-
lura do pacto de poder da época de Vargas, com as oli¬
tos na sua variável estabilidade cotidiana, não se desenro-
laram na certeza de um regime e de um período de go¬ garquias, e, portanto, abrindo caminho para a subversão
da ordem. E aí o que dava sentido final a essas conside-
verno definidos. Longe disso. O governo Vargas parèce ter
i ações era obviamente o cenário da Guerra Fria.
sido, do começo ao fim, um suceder de jogos políticos
executados com maestria e competência. Porém, marcado Em decorrência, o governo militar cassou os mandatos e
lii eitos políticos de muitos dos mais progressistas parlamen-
por inúmeras incertezas. Isso talvez explique por que Var¬
(

lares. Mas manteve o mandato de um grande número de


gas estabeleceu com os “coronéis” sertanejos uma espécie
de pacto político tácito. Em decorrência, o governo nao
parlamentares que representavam o que havia de mais típico
das tradições oligárquicas e clientelistas., Foi dessa base tra¬
interferiu diretamente nem decisivamente nas relações de
dicionalista que os militares tiraram seu esquema de susten-
trabalho rural, não as regulamentou, indiferente ao seu I; içfio política6, assegurando a
atraso histórico, embora, ao mesmo tempo, regulamentasse legitimidade que seu regime
e melhorasse substancialmente as condições de vida dos podia obter a partir da cooperação servil que era e é típica
da representação partidária despolitizada e desideologizada
trabalhadores urbanos. Com isso, manteve nas zonas rurais
da tradição oligárquica e clientelista: o mandato é sempre
e nas cidades interioranas do País uma enorme força elei-
um mandato em favor de quem está no poder, pois é daí que
toral conservadora, que se tornou o fiel da balança da
vêm as retribuições materiais e políticas que sustentam o
política brasileira. Força eleitoral, porém, que se realimenta.
< licntelismo, não importa a orientação ideológica de quem
continuamente do dientelismo político e, portanto, de re-
está no poder. Tratava-se, portanto, de reorientar a força do
lações institutional corruptoras.
A ditadura militai recente (1964/1984) reconfirmou a
oligarquismo em favor de um Estado conservador.
Não foi, pois, mero acidente ou engano que fez com que
impossibilidade dc governar sem um entendimento com
essas bases municipais organizadas e controladas pelas oli¬ mantivessem funcionando, ainda que mutilados pelas cassa¬
ções, o Congresso Nacional, as assembléias legislativas dos
garquias. No fim, a demorada estabilidade que o regime
eslados e as câmaras municipais. Aparentemente, a opção
militar conseguiu durante seus vinte anos, se baseou num
militar e dos setores civis envolvidos no golpe era pelo
servilismo parlamentar notório, que assegurou alguma le¬
gitimidade política ao regime. Não deixa de ser notável 6 (
Scott William Hoefle, ob. cit., p. 27.
que a palavra de ordem que justificou o golpe militar de
34 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO N( ) BRASIL CONTEMPORÂNEO 35

desenvolvimento económico e pela modernização com t. A cultura do favor e do débito político


apoio na ordem e na estabilidade política. O revigoramento
e a incorporação das oligarquias à ditadura criou uma espé¬ ( londutas e práticas que, nos episódios recentes, foram
cie de guarda pretoriana do regime político no interior do ii n li lidos no conceito de corrupção têm ocorrido, na socie-
País, onde se desenrolavam e se desenrolariam as tensões d.idcí brasileira, ao longo de sua história, sem causar estra¬
sociais mais importantes do período, sobretudo em decor¬ nheza, indignação ou repulsa política. A questão, portanto,
rência da importância que nele teve a questão agrária. Ao que a situação atual oferece à reflexão sociológica, é a de
mesmo tempo, a sobre-representação política das oligarquias la iscar explicação para a mudança de concepção havida. O
no Congresso criou uma poderosa barreira na defesa das que mudou no Brasil que levou a sociedade a classificar
instituições autoritárias contra o radicalismo urbano e ope¬ negai ivamente o que até há pouco aparecia interpretado
rário, este último decorrente sobretudo da política de arro¬ I »el<> senso comum na perspectiva de valores positivos?
cho salarial e de confinamento forçado das lutas operárias ( >s mecanismos tradicionais do favor político
sempre fo-
fora do terreno propriamente partidário. i am considerados legítimos na sociedade brasileira. Não só

No meu modo de ver, não foi por acaso que, quando u lavor dos ricos aos pobres, o que em princípio já era
esses mecanismos deixaram de operar com a mesma efi¬ • « miprcendido pela ética católica7. Mas o favor como obri-
cácia da época do bipartidarismo forçado, dos anos setenta, gaeao moral entre pessoas que não mantêm entre si vínculos
os próprios militares abriram o leque das opções partidᬠ• «mli aluais ou, se os mantêm, são eles subsumidos pelos
rias. De um lado, para colocar nas mãos dos partidos po¬ • levei cs envolvidos em relacionamentos que se baseiam antes
líticos e, portanto, colocar ao alcance da negociação polí¬ • U Ilido na reciprocidade. Imensas contabilidades de obriga-
tica, as metas dos movimentos sociais. Mas, de outro, para • «ies morais decorrentes de favores recebidos sempre pesa-
dividir e enfraquecer o partido que concentrava a oposi¬ i nu muito na história das famílias brasileiras, ricas ou po-

ção, o MDB, Movimento Democrático Brasileiro, permitin¬ l'i« Débitos que se transferiam para gerações sucessivas e
do, assim, que as tendências minoritariamente oligárquicas pioduziram, ao mesmo tempo, verdadeiras teias de débitos
e populistas, que nele também havia, pudessem ganhar for¬ • « i rd i I os morais. Em muitas regiões do Brasil essa contabi-
ça e expressão, secundando e reforçando as mesmas ten¬ lid.ulr de débitos e créditos de honra ainda tem um peso
dências no partido governista, a ARENA (Aliança Renova¬ muílo maior do que se crê. Tais débitos e créditos envolvem
dora Nacional, depois PDS (Partido Democrático Social). uan só o favor recebido ou favor concedido, mas também a
Com isso a hegemonia de esquerda no partido de oposição • •!< usa i ecebida ou cometida. Trágicas histórias de vingança
se enfraqueceria, diluída num pequeno conjunto de parti¬ Hi .ivrssam gerações no âmbito de famílias extensas. Mesmo
dos cujas opções ideológicas vão da social-democracia ao • uiic os pobres do sertão, ainda hoje o assassinato de um
socialismo. Desse modo, mais tarde, esse recurso colocou
nas mãos de uma . maioria de representantes da própria \i* •• M CUIO XVII, pelo menos, foi comum no Brasil os ricos, isto é, os grandes
tradição oligárquica a tarefa de redemocratizar o País em pi "|n iriiíi ios de terras e escravos, estipularem em seu testamento a distribui-
• ai» tlr runolas entre os pobres, após sua morte. Muitas vezes, a confirmação
1984, tirando-a das mãos de uma coalizão tácita de cen¬ ilrMn legados dependia de que os pobres participassem das cerimónias de
tro-esquerda, que, em outras condições, teria possibilidade • | M ili .«ii i« i ilo do falecido. O imaginário da época é pleno de alegorias cm
ijiii MI íleos se apresentam perante o trono de Deus, para ouvir sua sentença,
de influir na definição e institucionalização de um novo «• MII i| i.mliados de uma legião de pobres que atestam ter sido eles praticantes
regime político, civil e democrático. I i t ai Idade cristã.
«

36 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO
' M > BRASIL CONTEMPORÂNEO 37

pai de família, atira sobre os ombros do filho mais velho o Esses fatos envolviam e envolvem não só os ricos e pode-
débito da vingança8 e por sua vez, engendra verdadeiros mas também a população pobre que gravita em torno
1 1 >*.< >s,
encadeamentos de assassinatos sucessivos de crianças e jo¬ deles, dependentes do favor político e das práticas clientelis-
vens para atalhar a vingança decorrente9. i.e. da dominação patrimonial. Mesmo onde o património já
Até praticamente a Revolução de 1930, não era raro que IMO (em presença visível na política, como ocorre nas gran¬
conflitos mortais entre facções das oligarquias culminassem de*, < idades, a população, sobretudo migrante de áreas tra-
em verdadeiras ações de cerco e aniquilamento de povoados dii i< mais e rurais, continua, cie algum modo, se relacionando
e pequenas cidades que constituíam redutos de uma das • «mi a política e com os políticos em termos das concepções
facções envolvidas10. A sebaça, isto é, o saque consentido li adicionais que não separavam o político do protetor e
pelos chefes políticos, era efetuada como prática legítima piovedor. Na escala ampliada do eleitorado urbano, fica
por meio da qual a facção vencedora remunerava e premiava • • onomicaménte impossível ou, ao menos, difícil manter a
seus sequazes e pistoleiros11. E recente a história do homem H Lu ao patrão/cliente como relação de base patrimonial. A

que mandou matar o líder sindical Chico Mendes em ação IOM a, porém, dessa idéia pode ser exemplificada facilmente,
concebida inteiramente dentro da lógica da tradição bligár- i » ( |ue indica a dificuldade de ressocialização do eleitorado

quica, com envolvimento de representantes da oligarquia .


I MI a padrões modernos de conduta política. Na época da
regional do Acre. Na história desse homem há ao menos um • IM< ao de Collor, esteve a ponto de ser candidato à presidên-
episódio em que mandou matar um desafeto e em seguida • ia c, se candidato, com grande probabilidade de ser eleito,
tomou para si a posse da mulher e do filho de sua vítima, • mi < onhecido animador e proprietário de canal de televisão,
fazendo deste último uma espécie de filho adotivo que estava MU São Paulo. Seu programa dominical, de grande audiên-
sendo preparado para tornar-se seu pistoleiro12. Além do • M. além de programas diários de rádio, aparentemente
que, em episódios desse tipo, não foi raro que o vencedor indica como essa demanda da baixa classe média e das
assumisse como coisa sua o que era propriedade de seu pnpi ilações pobres das cidades encontrou um poderoso me-
inimigo. • ii usino de revitalização nos meios de comunicação de mas-
*«a c de manipulação da opinião pública, sem abandonar a

8 Cf. Maristela Andrade, “Violências contra crianças camponesas na Amazônia”, mediação patrimonial da política brasileira. Nesse programa
in José de Souza Martins (ed.), O Massacre dos Inocentes (A criança sem infância •.an distribuídos prémios, muitas vezes valiosos, como casas
no Brasil), Editora Hucitec,.São Paulo, 1991, p. 37-50.
9 Cf. Luiz de Aguiar Costa Pinto, Lutas de Famílias no Brasil, 2.a edição, Cia. • «anos, como se fossem doações derivadas da generosidade
Editora Nacional, São Paulo, 1980. É dos últimos anos a ocorrência de episó¬ du animador, que os entrega pessoalmente. Certamente, um
dios de antigo conflito dessa natureza no município de Exu, no estado de i • I- a ço para essa imagem do pai doador e protetor está no
Pernambuco, que envolveu o cardeal-primaz da Bahia c o cantor Luís Gonzaga l » i M de que ele, em diferentes momentos do programa,
numa tentativa de apaziguamento das famílias envolvidas, sendo o conhecido
cantor membro de uma delas. di*»l i iluia dinheiro para os presentes, às vezes atirando notas
10
Alguns desses episódios foram imortalizados cm páginas da literatura brasi¬ MM direção ao público13.
leira. O mais conhecido está relatado em “O Sobrado”, que integra a obra-
prima dc Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento, e se passa no Rio Grande do
Sul. Outro episódio real, ocorrido em Dianópolis, estado de Goiás, é o tema « i Programa Sílvio Santos, a que estou me referindo, é o centro dinâmico de
de um belo romance de Bernardo Élis, O Tronco. mu gmpo económico que tende a se transformar em base de um grupo
11 Cf. Othon Maranhão, Setentrião Goiano, Editora Piratininga, Goiânia, 1978.
I" 'In mi íortemente identificado com os partidos mais claramente oligárquicos.
12 Esse adolescente foi a principal testemunha da acusação no julgamento dos I • gmpo capta recursos com a venda de carnês baratos a populações mar-
assassinos de Chico Mendes. i iii I mirnlc pobres da periferia de grandes cidades em todo o País. O carnê
38 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO II RASIL CONTEMPORÂNEO 39
Certamente é essa disseminada prática que associa pa¬ os professores tenham seus protegidos no setor adminis-
trimónio e poder a principal responsável pela difusão e h iitivo, proteção que se transforma em facilidades e bene¬
contínua renovação do que pode ser chamado de cultura fit ios que outros não têm. Além disso, logo após o golpe
da apropriação do público pelo privado. Muito do que aparece dr Estado de 1964, quando muitos intelectuais de esquerda
aos olhos da classe média letrada como arbítrio e roubo, rs lavam sendo presos, cassados ou perseguidos, viu-se um
não aparece com a mesma conotação aos olhos da grande súbito revelar de relacionamentos pessoais entre muitos de¬
massa pobre, rural e urbana. Até porque essa massa, de les e membros do grupo vencedor, de direita, a quem re-
um modo ou de outro, está inteiramente integrada na po¬ inniam para escapar da prisão, para libertar um filho,
lítica do favor: praticamente tudo passa pela proteção e In ii ar destruir uma ficha policial ou obter informações so-
pelo favorecimento dos desvalidos. Mesmo nos setores dos hi<* algum deles já encarcerado14. Tudo perfeitamente in¬
serviços públicos onde se situam os focos mais consistentes tegrado na lógica das concepções oligárquicas relativas à .
de crítica à corrupção, e de elaboração do discurso abs¬ irora de favores. Só que isso estava acontecendo nas gran¬
trato sobre a cidadania, como é o caso da Universidade, e des e modernas cidades do País, como São Paulo. E nas
mesmo a imprensa, os mesmos críticos estão muitas vezes pequenas localidades do interior ou amplas regiões
envolvidos em práticas cotidianas de troca de favores com 1 1 ,«(li( ionalistas, como o Nordeste, subversivos eram, aos
superiores, colegas e funcionários administrativos, seja < i lhos dos potentados locais, os que lutavam contra seus
para receberam benefícios pessoais, como promoções ou ii He icsses políticos e económicos e, portanto, quem não se
facilidades, ou aliciamento para conseguir que um chefe i oloeava sob o abrigo patriarcal dos chefes políticos. Não
ou colega se omita no cumprimento de um dever funcional ( \,\ necessário ter ligação com o Partido Comunista ou

que se transformaria em exigências de trabalho que muitos • n in as Ligas Camponesas para ser considerado subversivo.
preferem evitar. Não é raro, na própria Universidade, que < ) débito político pode ser débito por um simples conse¬
lho paternal. Não faz pouco, uma revista brasileira publicou
habilita seu comprador a concorrer a prémios milionários ou, até mesmo, a
• \iensa matéria sobre a vida política do atual presidente do
modestos prémios de consolação. Quem não for premiado pode retirar em
mercadorias o valor pago, com correção monetária, nas lojas do Baú da II Quando já era docente da Universidade de São Paulo, fui preso pela polícia
Felicidade. Aparentemente, o comprador não sai perdendo nada. De fato,
porém, ele adiantou dinheiro ao grupo aludido, que negocia com ele como
capital de terceiros, sem o pagamento de juros e sem distribuir aos compra¬
— —
I ii till K it, DOPS Departamento de Ordem Política e Social em 1966, com
null o colega e um grande número de estudantes que haviam participado de
|MHsrutas contra a ditadura militar naquele dia e no dia anterior. Havia não
dores os lucros extraordinários que podem decorrer da especulação com os MI csiudantes da Universidade de São Paulo, e dois professores, mas também
preços dos produtos finalmente distribuídos. Fundamentalmente, o grupo mu grande número de estudantes da Universidade Mackenzie. Aí pelas três
opera com capital de terceiros, sem a necessidade de pagar os juros que lim.is da tarde do dia seguinte ao da prisão, apareceu na carceragem um
pagaria ao banco se o tomasse emprestado. Ao mesmo tempo, ganha como tu I vogado contratado pelo Mackenzie para libertar seus estudantes, o que foi
comerciante na venda de produtos que devem ser compulsoriamente com¬ I H il iludo porque muitos delegados do DOPS haviam estudado na Faculdade
prados em suas lojas. Embora usando dinheiro de seus próprios clientes e
• li Direito daquela universidade. Aos outros presos que pediram sua interfe-
potencialmente eleitores, o animador aparece como provedor. Exatamente i < in ia riu favor deles também, o advogado contestou que a outra universidade
como ocorria com os políticos sertanejos, ele enfia a mão no bolso e vai
fnolryrssr seus estudantes, como aquela fazia em relação aos seus. De minha
tirando dinheiro e distribuindo ao público. Ao mesmo tempo, diferentes epi¬ irlu vi também quando um sujeito que eu conhecia, mas que não sabia ser
sódios do programa dão-lhe a imagem de um protetor da família pobre, como lulmiuiinlc do DOPS, compareceu na mesma carceragem, exibindo o distin-
I realizador de sonhos impossíveis dos pobres e dos desamparados, especial¬ n vn il.i polícia na lapela do paletó, para, a pedido de um deputado que eu
mente a mãe e o deficiente físico. Para completar, é um promotor de casa¬ i uiibcin conhecia, libertar o filho de um amigo do político que lhe pedira
mentos de pessoas que ficaram à margem do processo matrimonial normal.
• v.r lavor.
40 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 41

Senado Federal. Em fins de semana, como sempre fizeram luquela guerra, em que a munição havia sido fabricada com
os velhos “coronéis” sertanejos, ele vai para sua fazenda no i na (criais falsificados, não detonando. Vidas de militares
interior do Nordeste, senta-se na varanda de sua casa-grande h i um sido perdidas em consequência desse suposto ato do
e ali recebe as pessoas que vêm pedir favores, conselhos, general, que por isso teria recebido propina do fabricante17.
bênçãos, providências em caso de ofensas e agressões, etc.10 < ) nervoso bate-boca que ali se deu, entre oficiais militares
Tudo, no fim, se traduz em voto. Um eminente prelado que apoiavam o acusador e oficiais que apoiavam o acusado,
católico do Nordeste do Brasil explicava o voto conservador e menos importante pela denúncia em si do que pelo fato
após anos de seca e miséria e após movimentos sociais que de se tratar de um episódio da fase de gestação da Revolução
convulsionaram a sociedade brasileira, justamente em decor¬ de ( hitubro. Para o que aqui nos interessa, sua importância
rência das denúncias de corrupção, com a afirmação de que < si.i no fato de que o eventual envolvimento do general num

essa contradição de comportamento resultava do fato de que .Ho que hoje, sem dúvida, seria classificado como corrupto,
o eleitor nordestino é honesto e leal. Os pobres da região, levava a um gesto de grave insubordinação militar porque o
majoritariamente, não votam por convicção política, mas .Ho vitimara membros da corporação envolvidos no dever
por lealdade, para pagar favores. da guerra. Portanto, uma deslealdade em relação à corpora-
Não é necessário realizar uma pesquisa sistemática de « ao. Já não aparecia como corrupção o procedimento que o
dados para ser ter uma idéia, ainda que fragmentária, a industrial e engenheiro Roberto Simonsen adotava. Incum¬
respeito do que se poderia chamar de “história da corrup¬ bido da construção de quartéis para o Exército em São Paulo
ção no Brasil”. A tradição de um sistema político baseado e no Mato Grosso, quando o engenheiro Pandiá Calógeras
na confusa relação do património público e do património or tipou o Ministério da Guerra, de quem era amigo, Simon-
privado tem sido a base a partir da qual essa relação foi vn |>assou a adotar ó esquema de convidar oficiais engenhei-
dando lugar a procedimentos que começam a ser classifica¬ IOS militares a que pedissem a reforma no Exército, isto é, a
dos como corruptos. Poucas vezes, o que hoje chamamos de aposentadoria, e fossem trabalhar com ele nas suas empre-
corrupção chegou a causar indignação política, com efeitos Com isso, e essa era claramente a proposta, Simonsen
políticos. Um desses raros casos foi a denúncia que o tenente I »ndia pagar salários baixos aos engenheiros porque o soldo
Gwayer de Azevedo fez contra o general Setembrino de d.i aposentadoria complementava o salário, produzindo um
Carvalho, comandante-em-chefe das tropas do Exército na g.mho conjunto superior ao que poderiam ganhar no Exér-
Guerra do Contestado16. Enfrentando-o face a face numa Mto ou ao que poderiam ganhar trabalhando como enge¬
sessão do Clube Militar, Azevedo acusou Carvalho de coni¬ nheiros na vida civil18.
vência na aquisição de munição, pelo Exército, para uso ( )u, então, algo que se tornou comum na e com a ditadura

I 16 Situação ainda similar à de


algumas décadas atrás, descrita por Marcos Viní¬ 1'
Cl Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, Editora Civilização Bra¬
cius Vilaça e Roberto C. de Albuquerque, Coronel Coronéis, Tempo Brasileiro, sileira, Rio de Janeiro, 1965.
Rio de Janeiro, 1965. M
Roberto Cochrane Simonsen era engenheiro e, mais tarde, tornou-se político.
16 A Guerra do Contestado ocorreu entre 1912 e 1916, no estado de Santa
‘MM principal indústria estava instalada na região industrial do chamado ABC,
Catarina, no sul do País, em território disputado com o estado do Paraná. no subúrbio de São Paulo, onde sua família tinha muitos bens e estava en¬
Basicamente foi uma guerra entre as populações camponesas da região, ex¬ volvida tanto em atividades económicas quanto em atividades políticas. Depois
pulsas da terra por uma grande companhia de propriedade do milionário de deixar o cargo de ministro, Calógeras foi justamente para essa região
Sir Percival Farqhuar, e o Exército brasileiro. Mais da metade do Exército h;t bulhar como engenheiro industrial. Roberto Simonsen tornou-se senador
participou do combate à revolta camponesa. da República. Foi um empresário moderno.
42 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO N( ) URASIL CONTEMPORÂNEO 43

militar recente: a contratação de oficiais das forças armadas, I HTI iva unidade política, seja o município, seja o Estado, seja
inclusive oficiais generais, como diretores de indústria. E i l Jnião, amplas verbas para serem distribuídas às chamadas

claramente não só como reconhecimento do eventual talento entidades assistenciais. Isso envolve desde a doação de bolsas
profissional desses oficiais, mas também em consequência de estudos para estudantes que presumivelmente não podem
da rede de relações desses oficiais no interior do governo. I >agar a escola privada (num país em que nada absolutamente
Hoje uma informação sobre programas rodoviários, projetos paga pela escola pública), até a doação de cadeiras-de-ro-
de desenvolvimento industrial, tendências nos investimentos < las, óculos e dentaduras a quem deles precise. Essa distribui-
governamentais, vale uma verdadeira fortuna. Outras vezes, (,ao é feita diretamente pelo político. Evidentemente, sob
essas relações podem ser fundamentais para, simplesmente, condição de que ele receberá o voto do beneficiário na
assegurar o recebimento de créditos atrasados. A criação do próxima eleição. Exatamente como se faz onde ainda preva¬
Grupo Permanente de Mobilização Industrial, imediatamen¬ il < e a conduta política clientelista. Muitas dessas verbas vão
te após o golpe de Estado, assegurou a eventual súbita I >ara os cofres de fundações criadas pelos próprios políticos,
conversão das plantas industriais em bases de produção de convertidas em seu património e depois presumivelmente
material bélico em caso de guerra. Assegurou, também, em distribuídas aos eleitores segundo critérios que assegurem a
muitas indústrias, o emprego de oficiais das forças armadas MU fidelidade eleitoral. Sem contar a manipulação de verbas
atuando como oficiais de ligação entre elas e a empresa. dos orçamentos locais, estaduais ou federais, como se viu há
Casos de altos oficiais militares serem contratados por em¬ pouco no segundo grande episódio de corrupção envolven¬
presas civis, após a respectiva aposentadoria e reforma, são do membros da Câmara dos Deputados. A destinação das
noticiados com frequência. Evidentemente, isso ocorre não verbas atende, quase sempre, as conveniências do próprio
só porque esses oficiais possam ser profissionalmente quali¬ político, de sua família ou de membros de seu clã político.
ficados para ocupar funções civis, mas claramente porque
eles têm relações privilegiadas e fáceis com amplos setores
do governo. I. A crise da corrupção institucional
Estamos, portanto, em face de uma insidiosa disseminação
das práticas clientelistas e patrimoniais da política brasileira A insidiosa presença desses componentes patrimoniais
para amplos e até inesperados setores dessa sociedade. Se a iu vida política brasileira confunde-se com os vários âm-
sociedade se democratiza, o populismo urbano se dissemina bltos de atividade do homem comum, como já indiquei.
nutrindo-se de simulacros de patrimonialismo para o estabe¬ A política do “presentinho” vai desde a Universidade que
lecimento de um vínculo de natureza clientelista com os se rebela contra a corrupção, até a vida paroquial e até os
eleitores. Como o património pessoal já não pode fazer face mais inesperados recantos da vida social. Aparentemente,
ao tamanho da clientela política (é preciso mais votos para <• insuportável para amplas parcelas da população brasileira
eleger um simples vereador na cidade de São Paulo do que eslabelecer relações sociais de qualquer natureza, políticas
para eleger a maioria dos deputados federais) e o uso direto ou não, com base unicamente nos pressupostos racionais
e descarado do património público seria considerado cor¬ do contrato social e com base no pressuposto da igualdade
rupção em face da lei, há artifícios para uso de bens públicos < da reciprocidade como princípios que regulam e susten-
como se fossem bens privados. Desde os vereadores até os liim as relações sociais. Sem a mediação do “presentinho”,
deputados federais podem consignar no orçamento da res- de alguma forma de retribuição extra-económica, a relação
44 . CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 45

fica ininteligível e cria um sentimento de ingratidão e culpa v.ivelmente decorrente de que o conceito de corrupção foi
que torna a vida insuportável19. Os que nada têm para (liluildido e interpretado corno sinónimo de roubo, de
doar, têm ainda o comportamento subserviente como últi¬ apropriação indébita de coisa pública. E o que os fatos
mo recurso dos desprovidos para demonstrar acatamento. revelados indicavam era o recebimento de doações mate-
E de qualquer modo, têm o débito moral que pode ser i lais vinculadas a prováveis retribuições e favorecimento
pago politicamente. É comum os chamados “cabos eleito¬ políticos aos doadores. Portanto, o tradicional mecanismo
rais” se dirigirem a* amigos em nome de políticos para de troca de favor. A relutância da população em ir às ruas
cobrar-lhes o débito do favor feito algum dia mediante o para apoiar as investigações parlamentares contra o presi¬
pagamento em voto. Mesmo quando se fala em crescimento dente da República explica-se, no meu modo de ver, por¬
das esquerdas, que, embora vacilante, é um crescimento que ela não podia ver ilegalidade no que lhe era, aparen-
real, ainda que lento, uma parte desse crescimento deve tcmente, legítimo. Legitimado, além do mais, pela tradição
ser creditada a mecanismos morais desse tipo, como ma¬ da política de troca de favores. Não teria sido surpresa se
nifestação de lealdade moral, muito mais do que política uma pesquisa de opinião tivesse revelado, na época, que
e ideológica, a um grupo local, uma comunidade de base, muitos eleitores não estavam entendendo o que acontecia,
um sindicato, um parente, um amigo20. i emendo até mesmo verem-se envolvidos num ato de des¬
E necessário lembrar que a população brasileira relutou lealdade para com alguém que parecia estar apenas pagan¬
significativamente em se manifestar a favor da cassação do do, com favores e favorecimento político, débitos morais.
mandato e dos direitos políticos do então presidente da Mesmo o favorecimento da própria família do presidente
República, Collor de Mello, mesmo quando as investiga¬ aparecia aos olhos de muitas pessoas como sagrado cum¬
ções já estavam adiantadas e eram do conhecimento públi¬ primento do dever do parente poderoso em relação ao
co. Só tardiamente foi às ruas e, mesmo assim, quem o foi parente sem poder. Certamente foi decisivo para o desen-
era notoriamente uma bem-definida categoria de jovens es¬ ( adeamento do processo o fato de que a denúncia tenha
tudantes, os chamados “caras pintadas”21. Relutância pro- sido formulada pelo próprio irmão do presidente. Foi mui¬
to mais decisivo para a aceitação do impedimento e para
19 Não faz muito, numa o não atendimento do apelo presidencial para um maciço
agência bancária da cidade de São Paulo, tive a opor¬
tunidade de presenciar uma insólita conduta dessa natureza. Uma senhora apoio popular o fato de que um irmão tenha denunciado
idosa estava à minha frente na jfila de pessoas que esperavam ser atendidas outro irmão. Portanto, a credibilidade da denúncia, para
pela funcionária do caixa. Quando chegou a sua vez, vi que fora receber o
dinheiro de uma minguada aposentadoria. Teve que preencher e assinar uns uma parte da população, não decorria simplesmente de
papéis, no que foi pacientemente ajudada pela funcionária, apesar da longa uma avaliação racional da conduta precisa e cuidadosa da
fila de clientes. Antes de se retirar, porém, separou uma nota de valor menor, (omissão de inquérito, mas se apoiava na crença de que o
do dinheiro recebido, e a deu à funcionária atónita como presente, que a
recusou. Mesmo assim, ela não se moveu dali enquanto o dinheiro não foi vínculo de sangue entre acusador e acusado revestia a de¬
aceito.
20 Cf. Benno
núncia de uma gravidade certamente superior ao que os
Galjart, “Class and ’following’ in rural Brazil”, in América Latina,
ano 7, n.° 3, julho-setembro de 1964.
21 O caso começou
no dia 24 de maio de 1992, quando a revista Veja publicou apoiá-lo contra o Congresso Nacional, é que os estudantes foram às ruas para
uma entrevista do irmão do presidente denunciando que o tesoureiro da apoiar o pedido de impedimento. Cf. Maria D’Alva Kinzo, “The political
campanha presidencial estava praticando ações ilícitas que envolviam negócios process of Collor’s impeacliment”, in Brazil: The Struggle for Modernisation,
I do governo. Só depois do dia 13 de agosto, quando Collor fez um apelo para
que os brasileiros vestissem camisas com as cores da bandeira nacional, para
Institute of Latin American Studies, University of London, London, 1993,
p. 25.
46 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO N< ) BRASIL CONTEMPORÂNEO 47

fatos indicavam, pois decorria da ruptura de um vínculo de uma certa tendência e de uma certa ansiedade política
sagrado. por um Estado moderno e baseado na dominação racio-
Rigorosamente, pois, por um conjunto enorme de prᬠnal-legal, como a concebia Max Weber, tendência ao mes-
ticas, condutas e concepções relativas à idéia do favor e mo tempo solidamente baseada em concepções morais de
da retribuição, pode-se dizer que o conceito de corrupção lipo tradicional.
como se difunde na sociedade brasileira hoje atinge nao ( )s episódios relativos à cassação do presidente, sobretu¬
só alguns políticos: atinge todo o sistema clientelista basea¬ do as manifestações de rua, que foram fundamentais para
do ainda em fortes componentes da dominação patrimo¬ assegurar que as investigações chegariam ao fim e produ-
nial. Nesse sentido, quase toda a população, sem disso ter /ii iam os efeitos legais nelas pressupostos, indicam uma
consciência, está de algum modo envolvida em corrupção. nova realidade política baseada numa espécie de dupla e
Daí, provavelmente, a lentidão da resposta popular ao apelo i < mtraditória legitimidade: a legitimidade do voto e a legi-
dos políticos, a certa altura inquietos com a possibilidade I unidade da rua. Legitimidades significativamente contra¬
de um fracasso nas investigações e a possibilidade de -seu postas por um abismo entre gerações, as mais antigas e as
próprio isolamento. O fato de que o presidente impedido aluais. A mesma população, que de um modo ou de outro
não tenha tido seus bens confiscados nem tenha ido para apoiou a cassaçao nas ruas de São Paulo, ou ao menos não
a cadeia, “por roubo”, pode ter confirmado na mente po¬ loi às ruas para evitar a cassação do presidente, em segui-
pular a ambiguidade do conceito de corrupção e, sobretu¬ da, nas eleições municipais, votou e elegeu um político
do, a ambiguidade da política brasileira. O que se reforçou submetido a reiteradas acusações de corrupção. É possível
em seguida, quando parlamentares do mesmo Congresso qive a manifestação política através do voto dê força e peso
que cassara o mandato presidencial, alguns deles destaca¬ a uma maioria eleitoral que tem ainda uma relação tradi-
dos líderes do processo de cassação, foram eles próprios t ional com o voto e seus efeitos políticos: uma maioria
acusados de corrupção e submetidos a processo para perda alienada, que não vê nas consequências do voto a definição
de mandato. E que o mesmo Congresso tenha agido de dos destinos do País e, portanto, também de quem vota.
modo ambíguo, admitindo o processo e depois absolvendo I Ima maioria que ainda pensa o comportamento eleitoral
alguns acusados, certamente confirma que, na verdade, as riu termos das obrigações morais da sociedade tradicional.
pessoas com rosto e nome são apenas protagonistas cir¬ Porém, ao mesmo tempo, os que vão à rua, mesmo englo¬
cunstanciais do drama e das fragilidades políticas do clien- bando, certamente, numerosos membros do primeiro gru¬
telismo no mundo moderno. po, constituem-se numa espécie de multidão iluminista,
Há certamente alguns aspectos interessantes nesse qua¬ < I U(* vislumbra o conflito entre a impessoalidade do poder
dro e nos episódios recentes. Mais do que um indiscutível c o uso pessoal do poder, condenando a este último.
e irreversível desenvolvimento político da sociedade brasi¬ Aparentemente, o primeiro grupo não é a favor da cor-
leira, parecem indicar a importância das condutas críticas i npção, embora esteja nela profundamente mergulhado: é a
e divergentes gestadas no âmbito mesmo das concepções lavor do clientelismo, da proteção e segurança precárias que
conservadoras e tradicionais. A ambiguidade do conceito ele pode assegurar. Já o segundo grupo não é contra o
de corrupção, tal como acabou ganhando força nas idéias clientelismo e os mecanismos de cooptação que levam al-
dominantes na fase da cassação, expressa, no meu modo I» ném ao poder: é contra o exercício imoral do poder, o uso
I de ver, justamente as contradições que apontam na direção do poder como um bem pessoal (e não como um generoso
48 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 49

serviço ao País). Há uma certa dimensão sacrificial, de tipo dois principais partidos políticos do País: o do tradicional e
religioso, nas idéias desse grupo, mas também do outro. A o do moderno, mesclados entre si, um como mediação do
história trágica da política brasileira contemporânea parece outro. Os políticos tradicionais e oligárquicos fazem política
dar sentido a essa dimensão tão presente na vida das atuais e se revigoram politicamente tornando-se indispensáveis
gerações: o suicídio de Getúlio Vargas, a cassação e a morte através de instituições modernas. É impossível implementar
de Juscelino Kubitschek em acidente automobilístico a cas- qualquer programa de modernização do País sem pagar-lhes
sação e a morte de João Goulart no exílio, a morte, antes da hibutos políticos e económicos, como é evidente desde o
posse, de Tancredo Neves. A morte por causa da política e pi iníeiro governo de Getúlio Vargas. Os políticos modernos
da suposta vontade de servir, sobretudo aos pobres, reveste c modernizadores, que melhor expressam a mentalidade
do carisma da generosidade a biografia dos que assim se ui bana e a idéia do vínculo político racional entre o gover-
consumiram nesse ato de doação22. nante e os governados, não têm acesso ao poder se não fazem
Essa duplicidade encerra um conflito de legitimidade que amplas concessões à mentalidade clientelista do eleitorado,
nasce das ambiguidades políticas do povo brasileiro, que v ao controle que têm dos votos os que tratam o eleitorado
foram se tornando claras e significativas a partir das mani¬ < nino se fosse um rebanho político.
festações de rua pelas eleições diretas do presidente da Desde o fim da ditadura de Vargas, em 1945, o País é
República, em 1984, e que culminaram com o fim da dita¬ governado por um terceiro partido, que não está necessa-
dura militar implantada pelo golpe de Estado de 1964. Essas i ia mente no poder, isto é, por um partido que se interpõe
ambiguidades trazem a debate a atualidade do dualismo do nitre os dois principais partidos que polarizam o processo
tradicional e do moderno na sociedade brasileira, dualismo político. PSD (Partido Social Democrático), claramente $ S)
que os sociólogos subestimaram e condenaram nos anos n pt (‘sentanfe dos interesses oligárquicos do interior c das \j 9ÿ
sessenta, de um modo notoriamente apressado. Na verdade, iões mais atrasadas do País, decidiu os rumos do poder
a conduta ambígua dos brasileiros sugere que são esses os dm.mte todo o período democrático, de 1946 a 1964, em
99 que a polarização política contrapunha o populista Partido :V?
Durante as investigações do caso Collor, o senador Bisol, membro da comissão
e representante do Rio Grande do Sul, mesmo estado de Getúlio Vargas, em trabalhista Brasileiro e a elitista União Democrática Na- wZ
debate na televisão, ante insinuação de alguém, testemunhou que Getúlio era ii mal. A ditadura militar só acabou em 1985, porque uma 'ÿÿÿ
uin homem honesto. E esclareceu: quando da realização do inventário dos
Lm ao oligárquica se retirou do partido governista e se > -
bens deixados por Vargas, que se deu no município de São Boija, Bisol era nA
juiz em comarca vizinha. Estando em férias o titular da comarca onde tra¬ aliou à oposição, assegurando, assim, a eleição de um civil,
mitava o inventário, coube a ele dar o despacho final. Foi quando constatou I a n credo Neves, para a presidência da República (um civil
que Vargas, ao morrer, em 1954, tinha praticamente os mesmos bens que já
possuía quando assumira o poder em consequência da Revolução de Outubro
que, de qualquer modo, vinha do antigo PSD oligárquico).
de 1930. Já a santificação do político ganhou seu momento mais expressivo < )uem se opôs a esse grupo partidário ou não teve seu
durante os dias da doença fatal de Tancredo Neves, já eleito presidente da apoio, não governou: Jânio Quadros, João Goulart. E, num
República, em 1985, que acabou falecendo sem poder tomai' posse. Durante
l Cl lo sentido, também Collor de Mello. É significativo que
os dias de seu internamento no Hospital do Coração, da Universidade dc
São Paulo, multidões começaram a se aglomerar diariamente do lado de fora rsie último tenha se candidatado e tenha sido eleito por y \f
L
do hospital, com rezas, promessas e orações. Uma pesquisa no local, na época, um partido fictício, criado artificialmente para isso, o PRN
feita por estudantes de ciências sociais da Universidade de São Paulo mostrou
que o próprio Tancredo já começara a ser objeto de veneração religiosa,
como se fosse um santo. Não é demais lembrar, a propósito, o caso de Eva

Pai lido de Reconstrução Nacional de qualquer modo
um quase inexpressivo partido oligárquico, com trinta ca¬
Perón, na Argentina. ll nas num colegiado de 503, que é a Câmara dos Depu-
ÍTTÍ

50 CLIENTELISMO E CORRUPÇÃO N< > HRASIL CONTEMPORÂNEO 51


tados. Embora originário de um dos mais oligárquicos es¬ lo governante. Esse funcionário está hoje em muitos se-
tados do Nordeste, Alagoas, de que fora governador, Çqllor Imes fundamentais da administração pública: na educação,
não foi candidato do partido que melhor expressa as tra¬ ii. i magistratura, nas forças armadas, na polícia. A media-

dições oligárquicas, o PFL Partido cía Frente Liberal (a ÇilO ( lesse funcionário purifica e dá sentido e direção às
mencionada dissidência de ocasião no partido da ditadura, ambiguidades de legitimidade que surgem no confronto
que possibilitara a eleição de Tancredo Neves para a pre¬ i nii c a rua e a urna, entre a manifestação moral ativa dos
sidência, em 1984). Na verdade, seu grupo quis governar «!• Montcntes nas ruas e o comportamento eleitoral majo-
acima da teia de alianças e interesses clientelísticos desse iii. ii io dos indiferentes na hora de votar.
grupo politicamente poderoso e, portanto, acima dos par¬
tidos. Ora, nem Getúlio nem os militares governaram sem
ele ou sem fazer-lhe concessões expressivas. Ainda agora,
neste momento, o peso enorme que esse grupo tem ex-
pressa-se nos acordos políticos que podem ter decidido a
eleição do presidente da República, em 1994.
O aspecto certamente mais positivo desse conflito de
legitimidade está no uso que dele fez, nos recentes casos
de corrupção, essa relativamente nova categoria de fun¬
cionário público que, de algum modo, é produto de regras
estabelecidas durante a ditadura militar, relativamente à
obrigatoriedade do concurso público para seleção e no¬
meação dos funcionários: a do funcionário profissional e
neutro e não mais a do protegido. Mas vem também, e
poderosamente, da grande resistência à ditadura em mui¬
tos setores da classe média e vem da formação de uma
consciência cívica que não pode ser subestimada: a de que
o funcionário público serve à sociedade e não ao podero¬
so; o Estado é um instrumento da sociedade e nao a so¬
ciedade um instrumento do Estado. Há aí, claramente, a
presença de uma nova geração de funcionários públicos
que passaram pelas universidades durante a ditadura e ne¬
las encontraram um forte pensamento democrático ou re¬
volucionário, profundamente comprometido com a idéia
de que o povo é o protagonista da História. Teria sido
impossível levar adiante o processo pelo impedimento do
presidente da República sem a ação desse funcionário pú¬
blico de perfil weberiano, identificado com a impessoali¬
I dade da função pública, servidor do Estado e não servidor
\ NUANÇA DO ATRASO 5S

vni. i ser desdobrada criticamente para que pudéssemos,


i.imhém, examinar a hipótese oposta e alternativa de que,
iii i lím das contas, é a modalidade de crescimento econô-
Capítulo II mico o que, na verdade, bloqueia o desenvolvimento social
i político da sociedade brasileira. A melhor alternativa de
A aliança entre capital e propriedade da ntlci pretação, porém, penso eu, é a de que esses fatores e
terra no Brasil: a aliança do atraso* i ondições se combinam numa espécie de causação circular

. ,i< uniulativa, como dizia Myrdal nos bons tempos do de-

irnvolvimentismo.
I )<• lato não é uma preocupação nova. Retrospectivamen-
ii . lei liando Henrique Cardoso, no início de sua carreira
1. A superação dos bloqueios ao desenvolvimento na a ulêinica, na segunda metade dos anos cinquenta e no
história brasileira mii io dos anos sessenta, fizera, justamente, um competente
i . une das condições sociais e políticas do primeiro grande
A idéia de bloqueios económicos, sociais e institucionais
ao crescimento económico do Brasil não é nova. Foi uma
. I< (bloqueio da história brasileira contemporânea, o repre-
•n iitado pela abolição da escravatura23.
insistente preocupação nos anos cinquenta e perdurou até I n doso trabalhou a hipótese de que a acumulação de
o golpe militar de 1964. Influenciou uma boa parte da iipll.il gerado na exploração do trabalho escravo entrara
literatura de ciências sociais dessa época e do debate aca¬ riu oi ili adição justamente com essas mesmas relações de
(

dêmico (e político) de então. A ênfase na palavra cresci- Ii.lhalho. Daí a necessidade de abolir o escravismo. Essa
mento, por outro lado, também não é nova. Relembra hlpiilese, de distintos modos, presente em trabalhos de vá-
confrontos de idéias dessa mesma época: crescimento ou
desenvolvimento ? Depois de trinta anos de captura do desen¬
volvimento pela ideologia do crescimento, é no mínimo insti-
gante que os acadêmicos venham a se pôr os mesmos pro¬
.....
i los autores, reclamava, porém, uma explanação que rela-

. 11
lasse seu caráter geral com as condições particulares
iedade brasileira em que a contradição ganhava fei-
• ins sociais e políticas localizadas. A questão era a de saber
blemas, a reconhecer que três décadas de crescimento •I .1 mesma classe dos velhos senhores de escravos podia,
apenas repõem o tema e o problema original: o não desen¬ i l.i mesma, assumir a alternativa social que a contradição
volvimento no crescimento. Mudou a economia ou não mu¬ IIIIIH ava e promover a abolição da escravatura. Mas, sobre-
damos nós? iiiilo, promover o desenvolvimento das condições para que
Quando se fala em bloqueios ao crescimento económico i i epmdução do capital passasse a ocorrer de modo capi-
do Brasil, é impossível não reconhecer a sugestão da pre¬ talr.la Isto é, os fazendeiros estavam em condições de per-
cedência do económico em relação a outras dimensões da
vida social. Uma preocupação, porém, que poderia e de- i \
l. nmudo Henrique Cardoso, “Condições sociais da industrialização de São
r nilu", ui Revista Brasiliense, n.° 28, São Paulo, março-abril de 1960; Fernando
$ ll< miqiic Cardoso, “O café e a industrialização de São Paulo”, in Revista de
Trabalho apresentado na conferência “Constraints on Growth in Brazil: Eco¬ llhloun, n.° 42, São Paulo, 1960; Fernando Henrique Cardoso, “Condições
nomy, Society and Institutions”, University of London, Institute of Latin Ame¬ i l.iinn s sociais da industrialização de São Paulo”, in Revista Brasileira de
rican Studies, 17-18 de fevereiro de 1994. I chulos Politicos, n.° 11, Belo Horizonte, 1961.
52
54 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ \ 1,1 ANÇA DO ATRASO 55

sonificar o capital, na concepção de uma espécie de em¬ In, contradição entre o capital e o escravismo não tinha
,i

presário weberiano, e dar curso à reprodução capitalista .


,i i ulicalidade da contradição que opusera o capital às re-

fora dos estreitos limites da grande agricultura, como até 1, ições feudais.
então? Por trás das interpretações teóricas de Cardoso e Nesse sentido, os próprios fazendeiros estariam em con¬
do grupo de cientistas sociais da Universidade de São Pau¬ dimos de personificar as necessidades de reprodução ca-
lo, que sobre o tema refletia na época, estava o combate pllalisla do capital, não dependendo esta de uma nova clas-
às interpretações do marxismo vulgar24, muito difundidas •H SC M ial, distinta da classe dos proprietários de terra, para

na América Latina de então, que reduziam a realidade do i ubializar-se historicamente. Em suma, ao entrar em con-

escravismo moderno ao modelo de uma sociedade feudal. li adição com o escravismo, o capital anunciava a possi¬
As quais se baseavam na suposição de que a substituição bilidade de transformações sociais, de superação dos blo¬
do trabalho escravo pelo trabalho livre correspondia ao queios sociais e económicos a que suas virtualidades se
que ocorrera séculos antes na Europa com a superação do nuiiilestassem numa realidade social transformada e nova.
feudalismo pelo capitalismo. Na interpretação do grupo \ questão que preocupou Cardoso foi a de saber quem
de São Paulo25, o escravismo se desenvolvera no corpo do poderia protagonizar as mudanças sociais potencialmente
próprio processo de expansão mundial do capital. Portan- i < ml idas naquela situação. E quem de fato as protagonizou.

Seu interesse pelo estudo das elites está diretamente rela-


i limado com as questões que essa indagação propunha.
94
Numa entrevista em que se refere à perspectiva e à orientação teórica do
grupo de cientistas sociais da Universidade de São Paulo que estava produ¬ Iii lato, a velha classe dominante podia assumir o papel
zindo uma interpretação do Brasil, Cardoso lembra que o seminário desse
grupo sobre Marx “precedeu a grande vaga de estudos marxistas na França” iiialivo e transformador que a História lhe propunha?
e que o grupo leu e discutiu Marx “rigorosamente, à maneira acadêmica”. Na mesma épocã, Florestan Fernandes, de quem Cardo-
Cf. Fernando Henrique Cardoso, Entrevistas a Lourenço Dantas Mota, Centro •ni eia assistente, também se preocupava com o tema. São
Gráfico do Senado Federal, Brasília, 1985, p. 8.
Quando falo do “Grupo de São Paulo”, estou me referindo ao grupo dc di ssa época seus estudos sobre o que então se chamava de
cientistas sociais que, especialmente nos anos cinquenta e sessenta, trabalhou o Msiència social à mudança”. Florestan discutia a questão
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
O núcleo desse grupo reuniu-se ao redor de Florestan Fernandes e foi cons¬
do desbloqueio, da superação dos constrangimentos ao de-
tituído de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Marialice Mencarini • uvolvimento e à modernização no âmbito das classes su-
Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco. Dele fez parte, temporariamente, I. dumas, das populações pobres, rurais e urbanas, cujas
Renato Jardim Moreira, que depois deixou a universidade. Florestan Fernan¬
des era titular da Cátedra de Sociologia (I), que fora fundada por Claude dilu uldades à inserção no mundo moderno decorriam de
Lévi-Strauss e posteriormente ocupada por Roger Bastide, ambos membros tim.i socialização desfavorável à mudança.26 Uma preocu¬
pai., io enraizada nas mais caras tradições da Universidade
da missão europeia que fundou a Universidade de São Paulo em 1934. Na
mesma Faculdade de Filosofia e participando do mesmo debate intelectual,
deram contribuições importantes para o debate dos temas aqui assinalados di Sao Paulo que, desde o seu início, assumira uma exis-
Paula Beiguelman (Ciência Política), Maria Isaura Pereira de Queiroz (Socio¬ h m l.t devotada justamente ao estudo e reconhecimento
logia II), José Arthur Gianotti (Filosofia) e Fernando Antonio Novais (Histó¬ do-, bloqueios à transformação do Brasil num país desen-
ria). Esse grupo foi desmantelado, no início de 1969, quando a ditadura
militar decidiu aposentar compulsoriamente e excluir da universidade, entre volvldo e moderno. Daí que o tema da educação na escola
outros, os seguintes professores da Faculdade de Filosofia: Florestan Fernan¬ 'll H lológica de São Paulo assumisse dimensão criativa e
des, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, José Arthur Gianotti, Paula
Beiguelman, Bento Prado Júnior e Ada Natal Rodrigues. Essa medida repres¬
siva do governo militar interrompeu justamente o debate sobre os temas aqui ' lii ui i r outros estudos desse autor, cf. Florestan Fernandes, Mudanças Sociais
tratados. MU Ihtiiil, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1960.
56 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ \l IANÇA DO ATRASO 57
transformadora, ressocializadora, como o próprio Flores- |H ) i parte do Estado, teria gerado um fluxo de renda, que
tan Fernandes a entende27. ln i.i estimulado o mercado, que, por sua vez, teria estimu¬
No mesmo grupo de São Paulo, Octavio Ianni trabalhou lado indústria. Desse modo, a crise de 1929 teria sido
criticamente, em vários de seus textos, a concepção de cres¬ indireta e involuntariamente responsável pelo impulso à
cimento que, como aqui neste seminário, se propunha Industrialização. Basicamente, Furtado estava interessado
como referência para a análise das dificuldades repre¬ • ui reconhecer no Estado o demiurgo da História, o agente
sentadas pelo atraso da economia brasileira28. E propunha politico capaz de dinamizar os setores atrasados da econo-
que a concepção de desenvolvimento (económico e social) IIII.I, com amplos desdobramentos sociais e políticos.
era mais rica e mais abrangente do que aquela. Ao invés A 1 lipótese era boa, mas as evidências eram ruins. Há,
da concepção quantitativa e linear de crescimento (econó¬ poicm, um inexplicável vazio no livro de Furtado: não há
mico), Ianni sugeria a concepção dialética de desenvolvi¬ n< Ir um capítulo sobre a história da industrialização. De
mento (histórico) que levasse ao exame das contradições lain, já no final do século XIX, em associação clara com o
estruturais (e, portanto, políticas e de classe) que erguiam hm da escravidão e a disseminação do trabalho livre, houve
obstáculos às transformações na sociedade brasileira. um surto industrial no Brasil, especialmente em São Paulo.
Uma segunda tentativa de recorrer à história para des¬ < Miando ocorreu a crise de 1929, já existia uma indústria
cobrir tendências do processo histórico foi a de Celso Fur¬ n I alivamente importante no País, especialmente na região
tado29. Sua preocupação com o desbloqueio da estagnação • aleeira. Não só uma indústria de bens de consumo, mas
e do atraso incidiu, porém, sobre a transição da agricultura lambem uma indústria de bens de produção. Mesmo que
à indústria, com a crise do café, de 1929, decorrente da as precárias estatísticas industriais da primeira metade do
chamada Grande Depressão, e a Revolução de 1930. Fur¬ M I ulo não sejam muito sugestivas a esse respeito, Furtado

tado trabalhou com a hipótese da condução não consciente (i nâo só ele) deixou de levar em conta as peculiaridades

das transformações estruturais que teria viabilizado o des¬ da indústria brasileira de então, peculiaridades que chega-
bloqueio. Todos conhecem a sua hipótese (e não teoria) i am até praticamente a época em que ele escreveu seu livro

de que involuntariamente os mecanismos de socialização I um lamentai: as grandes fábricas estabelecidas entre o fim
das perdas, com a compra e queima do café sem mercado, da escravatura e os anos cinquenta estavam normalmente
2/
dnladus de uma seção de produção de máquinas ou de
O tema de uma educação socialmente transformadora é recorrente na densa
obra de Florestan Fernandes e, do mesmo modo, o da missão que os sociólogos i ondicionamento de instrumentos e equipamentos e de
(e a sociologia) e a universidade poderiam ter nesse projeto. Remeto o leitor, li paios que responde, por exemplo, pela longa vida dos
porém, aos seus livros Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada, Livraria Pioneira h aies na indústria têxtil e pelo caráter obsoleto do equipa-
Editora, São Paulo, 1960, esp. o cap. 4 (“A ciência aplicada e a educação como
fatores de mudança cultural provocada”), p. 160-219; e Educação e Sociedade no meiiío nos anos cinquenta (tema aliás de um relatório fa¬
Brasil, Dominus Editora/Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, moso das Nações Unidas sobre o atraso da indústria têxtil
1966. In asileira). Sem contar a existência de instituições educa-
Ianni também se dedicou ao estudo do desbloqueio do desenvolvimento que
« tonais e de pesquisa avançadas, como a Escola Politécnica
pode ser representado pela educação. Cf., especialmente, Octavio Ianni, In¬
dustrialização e Desenvolvimento Social no Brasil, Editora Civilização Brasileira d» São Paulo, do século XIX, e o Instituto de Pesquisas
S.A., Rio de Janeiro, 1963, esp. a Terceira Parte (“Educação e classes sociais”),
l« nologicas, das primeiras décadas desde século. Furtado
i
p. 181-269.
lena encontrado confirmação do papel desbloqueador e
1
OQ
Celso Furtado, Formação Económica do Brasil, Editora Fundo de Cultura, Rio
de Janeiro, 1959. inovador do Estado justamente na negação de sua hipótese
58 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ ALIANÇA DO ATRASO 59

relativa ao efeito involuntário da política de socialização < ias dos dois episódios anteriores. Juscelino pertencia a um
das perdas: o relatório do ministro da Fazenda de Vargas, pari ido essencialmente oligárquico, o PSD partido Social
em 1931, indica com precisão que o intuito da política de DciiiocrStíco) e teve que governar com um Congresso Na-
compra e queima do café era justamente o de manter o lonal fisiológico e clientelista32. As inovações de seu go-
fluxo de renda, evitando a crise económica que decorreria \ « i no se basearam numa espécie de duplicação da máquina

de uma súbita interrupção no giro do dinheiro se não hou¬ do Estado, mediante a criação de grupos executivos (como
vesse compradores para o café30. • GEIA —
Grupo Executivo da Indústria Automobilística)
Essas preocupações ganharam corpo no marco do de-
senvolvimentismo juscelinista, dos anos cinquenta e, por¬
< dr agências de fomento (como a SUDENE Superin-
icndência do Desenvolvimento do Nordeste). Neste último

tanto, num clima de intensa preocupação com a superação • aso, em particular, a conciliação entre os interesses dos

.....
do atraso económico (e, paradoxalmentc, pouca preocu¬ gmpos clientelistas e oligárquicos do Nordeste e os inte-
pação com o atraso político representado, sobretudo, pelo i e sses modernizadores, supostamente dos empresários do
clientelismo das oligarquias regionais). Na verdade, porém, Sudeste, fica mais do que evidente33. O governo Kubitschek
tanto a experiência do desbloqueio representado pela abo¬ suprimiu arcaicas agências de clientelismo político
lição da escravatura, quanto a do ocorrido com a Revolu¬ « nino o DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra

ção de 1930, quanto, ainda, o do procurado e realizado as Secas). Com isso podia assegurar apoio político para o
pelo governo Kubitschek, a constatação é uma só:_as gran¬ seu projeto de desenvolvimento económico e de modern-
des mudanças sociais e económicas do Brasil contempor⬠l/.içao da sociedade brasileira, supondo que as elites regio¬
neo não estão relacionadas com o surgimento de novos nais e oligárquicas, beneficiárias do atraso e por ele res¬

protagonistas sociais e políticos, portadores de um novo ponsáveis, legitimariam seu projeto modernizador.
e radical projeto político e económico. As mesmas elites
responsáveis pelo patamar de atraso em que se situavam
numa situação histórica anterior, protagonizaram as trans¬ As lutas sociais no campo e o Estado de
formações sociais. E claro que há aí questões a considerar, « ompromisso
a principal das quais parece ser a das diferenças regionais.
Na abolição da escravatura, o papel inovador dos fazen¬ Se, nos anos cinquenta, as elites se moviam (técnicos
deiros do oeste de São Paulo, em relação aos fazendeiros f.oven lamentais, uma parte dos políticos, bispos, indus-
do vale do Paraíba31; na Revolução de 1930, a criatividade
política dos gaúchos em relação às oligarquias paulistas e Nfto seria demasiado supor que o impulso reformador na economia e o imo-
mineiras (e também nordestinas). I H I IMHO político, no governo Kubitschek, poderiam ter sido responsáveis pela
Mas, no fundo, a experiência reformista e transforma¬ rlrição dejjmio Quadros, candidato de um partido supostamente moderno e
dora do governo Kubitschek apenas confirmou as ocorrên- modernizador,ÿ UDN Democrática Nacional) para a presidência da
I'epiiblica. E, ao mesmo tempo, pela não renovação dos quadros do Congresso
N.H ional, onde os “oligárquicos” continuaram sendo maioria em relação aos
30
José de Souza Martins, Agriculture and Industry in Brazil: Two Studies, Working "modernos”. Daí o impasse institucional da renúncia de Quadros.
( )rlavio Ianni, Estado e
Papers n.° 27, Center of Latin American Studies, University of Cambridge, Capitalismo, Editora Civilização Brasileira, Rio de Ja-
Q1
31
1977. • u*i i o, 1965; Octavio Ianni, O Colapso do Populismo no Brasil, Civilização Bra-
‘ilm.i, Rio de Janeiro, 1968; Octavio Ianni, Estado e Planejamento no Brasil
Paula Beiguelman, A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro: Aspectos Políticos,
Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1968. I IV101970), Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1971, esp. p. 109-224.
60 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ ALIANÇA DO ATRASO 61
triais, intelectuais) no sentido de diagnosticar as causas do ( i il( > XIX, viabilizaram a transformação da renda-em-traba-
atraso e os obstáculos ao desenvolvimento económico e II io em principal relação de produção nos canaviais. Rela-
social do Brasil, também a massa dos trabalhadores rurais • .to que variou ao longo do tempo, com maior proporção
começava a se mover. Depois de décadas de imobilismo, de dias de trabalho na cana para o fazendeiro ou maior
quebrado eventualmente pelos movimentos messiânicos e proporção de dias de trabalho no roçado para o próprio
por anárquicas manifestações de banditismo rural no Nor¬ • amponês. A revitalização do mercado do açúcar nos anos
deste, mas também em São Paulo e Santa Catarina, os tra¬ • mqúenta, reduziu a parcela do roçado e, consequentemen-
balhadores rurais de várias regiões, durante os anos cin¬ l e, implicou um acentuado aumento da exploração do tra¬
quenta, começaram a manifestar-se de modo propriamente balho nos canaviais e aumento da pobreza rural. A coope-
político. i.tliva funerária era um indício dramático dessa pobreza.
Ganhou notoriedade na literatura mais ou menos espe¬ Que os trabalhadores tenham pedido permissão ao fa¬
cializada, mas também na imprensa, o surgimento das Li¬ zendeiro para organizá-la é também indício do tradicional
gas Camponesas, no Nordeste. Não só a intelectualidade modo de relacionamento entre trabalhadores e fazendeiros,
de esquerda, mas também a direita (as oligarquias e, so¬
bretudo, os militares que, nos quartéis, ainda mantinham
baseado no poder pessoal destes últimos —
uma relação
desigual de mando e obediência e não, em primeiro plano,
um liame com as idéias fascistas dos anos trinta e quarenta) nma relação contratual entre iguais. A cooperativa era,
se encarregaram de destacar a dimensão estritamente po¬ lambem, uma indicação do empobrecimento dos moradores
lítica do fato. O que pesaria decididamente no modo como do Engenho. Mas, era, sobretudo, uma indicação do per-
os militares acabaram interpretando o movimento campo¬
nês das Ligas, como episódio de uma revolução agrária
• urso da consciência que podiam ter da sua situação: a
< ooperativa funerária recuperava concepções das velhas ir¬
comunista em andamento. De fato, as Ligas surgiram como mandades das almas, dando-lhes uma vestimenta laica e
um movimento religioso e legalista, aí por meados dos económica. Centrando, porém, numa certa concepção da
anos cinquenta. No Engenho Galiléia, em Vitória de Santo morte o entendimento do que deveria e poderia ser a so¬
Antão, Pernambuco, os chamados moradores, de fato arren¬ lidai iedade dos pobres em face de uma situação adversa.
datários submetidos a formas arcaicas de pagamento de ( ) filho do fazendeiro temeu, e disse-o ao pai, que a
renda-em-trabalho, pediram e obtiveram permissão do fa¬ pei missão para que os moradores do Engenho organizas-
zendeiro para organizar uma cooperativa funerária para «iii a cooperativa encerrava o perigo da organização dos
amenizar os custos de sepúltamento dos mortos. O fato, pobres. De fato, naquele contexto social e político, a coo-
porém, aconteceu num momento em que estavam ocorren¬ peiaiiva foi o instrumento que mobilizou os trabalhadores
do transformações na economia canavieira, de forte reper¬ quando o fazendeiro decidiu retomar as terras de lavoura
cussão na vida dos trabalhadores rurais do setor34. Chama¬ dos moradores para nelas plantar cana-de-açúcar. Foi a par¬
dos a substituir os escravos que foram vendidos para os iu daí que eles decidiram procurar no Recife o deputado
fazendeiros de café do Sudeste na segunda metade do sé- »(ialista e advogado Francisco Julião para lhe pedir con¬
selhos sobre como agir. A via sugerida por Julião foi ex-
34 Antonio Callado, Os Industriais da Seca e os “Galileus ” de Pernambuco, Editora i nmamente legalista e nem mesmo implicava atrelar aque-
Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro, 1960; Antonio Callado, Tempo de li pequeno grupo de trabalhadores rurais a qualquer idéia
Arraes, José Álvaro Editor, Rio de Janeiro, 1965. que os despertasse para a realidade política da classe social
62 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ ALIANÇA DO ATRASO 63

e da luta de classes35. Julião sugeriu que, como não existiam prrior e, portanto, a que possibilitava a luta pelo socialis¬
direitos trabalhistas assegurados em lei para os trabalha¬ mo; c* os que (inspirados pela Revolução Chinesa) enten-
dores rurais, melhor era recorrer à Lei do Inquilinato, uma (li.iin que as lutas no campo tinham mais acentuada eficá-
lei que regulava as relações entre locadores e locatários de i I.I política na revolução social, o Partido Comunista se

casas, isto é, de moradias. Sendo foreiros e residentes na envolveu contraditoriamente nos conflitos rurais. Foi a sua
fazenda, isto é, arrendatários e, mesmo assim, pagando ren- MI MO que definiu uma mediação politizadora para as lutas

da-em-trabalho, poderiam ter seus direitos assegurados « amponesas no Brasil a partir dos anos cinquenta38.

pela referida lei, como se inquilinos fossem36. A luta dos A presença do Partido Comunista nas lutas camponesas
foreiros desse e de outros engenhos do Nordeste e, mais lornou-se visível em vários pontos do País39, mais do que
adiante, de outros trabalhadores rurais transformou-se no Nordeste, sem dúvida, pois as Ligas nunca chegaram
numa luta por direitos tidos, mas não aplicados ou não reco¬ ,i se alinhar inteiramente com ele. Antes mesmo que as
nhecidos nas relações reais37. I igas despontassem como indicação de que no campo no¬
A polarização política da época, demarcada pela Guerra vos sujeitos se erigiam em protagonistas da história social
Fria, o anticomunismo oficial, mas sobretudo o pacto po¬ do país, camponeses migrados do Maranhão para Goiás,
lítico tácito de 1946, produzido na sucessão da ditadura ao longo do rio Tocantins, seguindo a direção do que pre-
de Vargas, definiram a chave de leitura desse e de outros Mimivelmente seria o traçado da rodovia Transbrasiliana e
acontecimentos em várias regiões rurais do País. É claro que veio a ser aproximadamente o traçado da rodovia Be-
que interferiu na definição dessa “chave de leitura” dos Icnl-Brasília, instalaram-se na região de Trombas, não mui-
fatos a presença ativa de facções do Partido Comunista no I < r longe de onde seria construída a nova capital federal40.
campo. Dividido entre os que entendiam que o trabalho l ie s não sabiam, mas estavam entrando num território de
assalariado representava a realidade social politicamente su- mflitos potenciais, já com alta incidência de grilagem de
( (

ras, falsificações de documentos de propriedade e espe-


i (*i
O*
Benno Galjart constatou, na própria época, a presença de orientações culturais (ulação imobiliária. Os migrantes transformaram-se em
tradicionais de dominação pessoal na relação entre Julião e os camponeses.
Cf. Benno Galjart, “Class and ‘following’ in rural Brasil”, in América Latina,
posseiros. Os grileiros das terras tentaram convencê-los a
ano 7, n.° 3, julho-setembro de 1964. assinar contratos de arrendamento, o que viabilizaria pos-
30 Francisco
Julião, Que são as Ligas Camponesas?, Editora Civilização Brasileira Ici iores expulsões por via judicial. Os posseiros se recusa-
S.A., Rio de Janeiro, 1962; Francisco Julião, Cambão - The Yoke, The Hidden
uin, o que deu início à violência. A repercussão do caso
Face of Brazil, Penguin Books, Harmondsworth, 1972; Clodomir Moraes, “Pea¬
sant Leagues in Brazil”, in Rodolpho Stavenhagen (ed.), Agrarian Problems and levou à região uns poucos militantes do Partido Comunista,
Peasant Movements in Latin America, Anchor Books, Garden City, 1970; Cynthia que ensinaram aos camponeses modos de organização e
N. Hewitt, “Brazil: The Peasant Movement of Pernambuco, 1961-1964”, in
Henry A. Landsberger (ed.), Latin American Peasants Movements, Cornell Uni¬
de resistência. Em Trombas, os posseiros rapidamente se
versity Press, Ithaca and London, 1969, p. 374-98.
'M
37 As lutas
camponesas revelaram, na verdade, as limitações da lei e que sob |osé de Souza Martins, Os Camponeses e a Política no Brasil, 2.a edição, Editora
ela um amplo conjunto de direitos permanecia e permanece na dependência Vozes, Peuópolis, 1983, esp. p. 21-102.
de voluntário reconhecimento por parte de quem tem poder e manda. Ao ' 1
Gregório Bezerra, Memórias (Segunda Parte: 1946-1969), Civilização Brasileira,
longo dos vinte anos da ditadura militar, a luta pelos direitos foi a principal Rio de Janeiro, 1979.
1,1
tônica da ação dos trabalhadores rurais organizados em sindicatos ou orien¬ |osé Godoy Garcia, 0 Caminho de Trombas, Civilização Brasileira, Rio de Ja¬
tados pela Igreja. Sobre uma parcela dessa população e a ação sindical há um neiro, 1966; Janaína Amado, Movimentos Sociais no Campo: a Revolta de Formoso,
estudo específico de Lygia Sigaud, Os Clandestinos e o Direito, Livraria Duas Goiás, 1948-1964, Projeto de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura,
Cidades, São Paulo, 1979. Rio de Janeiro, abril de 1980, mimeo.
:

64 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ ALIANÇA DO ATRASO 65

organizaram em conselhos políticos, os chamados “conse¬ questão política moderna no caso do sudoeste do Paraná,
lhos de córrego” e organizaram grupos armados de auto¬ nos anos cinquenta, quando terras federais começaram a
defesa. De certo modo, constituíram um território autóno¬ .«•i vendidas pelo governo do estado, provocando a dupli-

mo, no qual não se podia entrar e do qual não se podia ( ação de titulares.
sair sem salvo-conduto. Nos jornais, mas aparentemente A novidade dos procedimentos do grupo político no go¬
também nos meios militares, começaram a circular notícias verno de então, no Paraná, estava no fato de que a terra
sobre a chamada “República Socialista de Trombas”, que, n a usada fundamentalmente para obter retornos econômi-
aliás, seria militarmente ocupada apenas no início dos anos < os e não retornos políticos: a mesma terra era vendida a
setenta, seis anos depois do golpe de Estado. Portanto, du¬ d i (crentes pessoas e ao mesmo tempo hipotecada ao Banco
rante cerca de vinte anos os camponeses de Trombas esti¬ do Estado Já não se tratava de grilar, de disputar com
veram politicamente organizados num território próprio, outro o mesmo terreno. Mas de envolver um grande nú¬
imune ao poder do Estado. Tratava-se da tática política mero de pequenos agricultores numa fraude, pois eles não
usada na Guerra da Coréia, da mesma época, que foi a de eram posseiros e sim compradores de pequenos lotes de
conquistar e liberar territórios, ali instituindo a presença lei ra. Situação, portanto, diferente do que acontecera na
organizada de camponeses armados. região de Trombas, em Goiás. Em Trombas, se os grileiros,
A mesma tática seria usada no sudoeste cio Paraná, no e entre eles também autoridades, inclusive membros do
,Sul, na chamada Revolta Camponesa de 195741. Mas, ali a 1 1 K liciário, atuavam no terreno da ilegalidade, também os
questão era totalmente outra. Os conflitos atingiam mais posseiros estavam privados de instrumentos legais de pro¬
do que a mera propriedade económica da terra. Eles atin¬ priedade. Portanto, sua luta não se desdobrava no interior
giam diretamente os mecanismos de reprodução do poder das instituições, da lei e da ordem. Eles pleiteavam, impli-
oligárquico: a grilagem de terras. Desde o século XIX, a < ilamente, uma ampliação da concepção de direito à terra,
grilagem de terras era uma questão restrita a litígios no de modo que seus direitos fossem reconhecidos. No Para¬
interior das próprias oligarquias, envolvendo número res¬ ná, os pequenos agricultores reivindicavam o reconheci¬
trito de pessoas, casos quase sempre debatidos e, bem ou mento de direitos que estavam no interior da lei e da or¬
mal, resolvidos no judiciário como sendo apenas casos de dem. A possível ilegalidade que recobria sua situação e sua
dúvidas, quanto a direitos, ou de notória falsificação de
tc interpretado pelo governo e pelas oligarquias como sendo um movimento
documentos, etc. A questão da grilagem não era até então monarquista e anti-republicano de caráter subversivo. A luta foi aparentemente
uma questão social e política disseminada. Dera uma in¬ detonada pela entrega das terras ao longo da Estrada de Ferro São Paulo-Rio
dicação de que poderia sê-lo no episódio da Guerra do Grande ao grupo económico de Sir Percival Farqhuar, para que as revendesse
em programas de colonização. Essas terras já estavam tradicionalmente ocu¬
Contestado, na divisa dos estados de Santa Catarina e do padas por posseiros. Como acontecera em Canudos, na Bahia (1896-97), o
Paraná, entre 1912 e 191642. Tornou-se efetivamente uma Exército sofreu severas derrotas militares no confronto com os camponeses.
Cf. Mauricio Vinhas de Queiroz, Messianismo e Conflito Social (A guerra sertaneja
41
Joseph Wallace Foweraker, The Frontier in the South-West of Paraná, from 1940, do Contestado, 1912-1916), Editora Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro,
B. Phil, diesis, Oxford, 1971. 1966; Maria Isaura Pereira de Queiroz, La “Guerre Sainte” au Brésil: Le Mou-
42 A chamada Guerra do Contestado envolveu, durante quatro anos, de um vement Messianique du “Contestado ” Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
lado, uma multidão de camponeses do oeste de Santa Catarina e, de outro, da Universidade de São Paulo, Boletim n.° 187, São Paulo, 1957; Duglas Tei¬
mais da metade do Exército Brasileiro numa revolta que deixou um grande xeira Monteiro, Os Errantes do Novo Século, Livraria Duas Cidades, São Paulo,
número de vítimas. Inicialmente um movimento messiânico que mesclava con¬ 1974; Oswaldo Rodrigues Cabral, A Campanha do Contestado, 2.a edição, Edi¬
cepções de várias extrações milenaristas européias e medievais, foi rapidamen- tora Lunardelli, Florianópolis, 1979.

VI
I
..........
(>(> A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA 67
\ MI \N(. \ l)( ) ATRASO

reivindicação vinha antes da irregularidade das compras


que fizeram, de terras griladas, além disso hipotecadas
pelo mesmo vendedor a um banco oficial. A sua reação
armada, em outubro de 1957, não foi contra as limitações
.....
i

|H. <l<
IIKIK íII dos trabalhadores rurais44. A disputa com os
tii i

(
começara tenuamente em 1950, quando o bis-
úmpanha, Minas Gerais, lançara uma carta pastoral
• m lavor da reforma agrária45. Menos para propô-la do
e insuficiências da lei, mas pelo cumprimento do que jul¬ • 1 1 1 « para reconhecer que “conosco ou sem nós” a reforma
gavam um direito assegurado em lei. Nil lei la. E significativo que a carta tenha sido lançada
Não obstante, os camponeses do sudoeste do Paraná de¬ i ii n i ia grande reunião de fazendeiros e não numa reunião
ram à sua revolta um formato claramente antagónico em • li li abalhadores rurais. Também no Nordeste, poucos
relação à ordem jurídica e política. Já nessa época, em vᬠmos depois, os bispos católicos se reuniram para acolitar
rias localidades da divisa de São Paulo com o Paraná e no o governo Kubitschek, em favor de suas iniciativas desen-
Paraná havia células organizadas de militantes comunistas, vnlvimentistas e modernizadoras.
orientadas sobretudo para a mobilização e organização dos A idéia era a de que no oceano de prosperidade possível
trabalhadores rurais. Não só no sudoeste do Paraná, ,mas de um país regionalmente desenvolvido no Sudeste e no
também na região de Porecatu. No sudoeste, os campone¬ Sul, havia ilhas de miséria, a mais dramática das quais era
ses ocuparam cidades, destruíram arquivos da companhia o Nordeste. Dominava a concepção de que o País estava
de terras que os fraudara, tomaram uma estação de rádio, li aturado - de um lado o País próspero e de outro o País
prenderam e destituíram autoridades e constituíram juntas miserável. Mais importante nisso tudo, e aí estava a verda¬
governativas locais. E, por fim, retiveram como refém o deira subversão que convulsionaria o País nos anos seguin¬
próprio secretário da segurança pública do estado, que tes, era a tomada de consciência por importantes setores
para ali se dirigiu para negociar com os rebeldes. Na oca¬ das elites (os bispos e o clero, os intelectuais, uma parcela
sião, houve interferência do Exército para recolher armas dos políticos, alguns empresários) de que a questão da mi¬
e apaziguar a situação. O caso não era, ainda, um caso de séria era uma questão política. Não era a seca, propria¬
alçada do governo federal. Até porque, sendo o governador mente, como se dizia desde o século XIX, que respondia
do mesmo partido do presidente da República, a interven¬ pela pobreza dos trabalhadores rurais nordestinos. Era o
ção militar configuraria uma situação delicada de confron¬ uso político da seca como pretexto para obtenção de re¬
to entre o presidente e as forças armadas, com as quais o cursos financeiros do governo federal que, no fim, não
governo federal enfrentava dificuldades43. iam aliviar a miséria dos pobres, mas revigorar a máquina
Houve, sem dúvida, ativismo político de tipo voluntaris- do clientelismo político dos ricos46. Uma situação que só
ta, baseado na idéia de que a ação deliberada no sentido poderia ser resolvida com uma revolução, como entendiam
de despertar as consciências adormecidas dos trabalhado¬ e temiam alguns dos próprios setores das elites. Ou então
res rurais acrescentaria uma nova força ao embate político com reformas sociais.
e ideológico. A principal consequência imediata da inves¬ Porém, quem as faria, em nome de quem e por quê? E,
tida comunista no campo foi a mobilização da Igreja Ca¬ sobretudo, como as faria?
tólica numa ampla cruzada de conscientização e organiza-
44 Cf., especialmente, Emanuel de Kadt, Catholic Radicals in Brazil, Oxford Uni¬
AQ versity Press, London-New York, 1970, esp. p. 102-89.
Durante o governo Kubitschek houve os levantes militares de Aragarças, em 45 Estudos da CNBB, Pastoral da Terra, Edições Paulinas, São Paulo, 1976.
Goiás, e de Santarém, no Pará. 46 Antonio Callado, Os Industriais da Seca e os “Galileos" de Pernambuco, cit.
68 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA V M I \NI ;A l)( ) ATRASO 69

3. A intervenção militar na questão agrária: a aliança i >i i


I PI issihilidade de uma reformulação da legislação fundiá-
entre capital e terra i i i de modo a estabelecer limites para o tamanho e uso da
I ii 1 1| ii ir< lade da terra. Foi esse documento a base do Estatuto
Desde, pelo menos, a revolta camponesa de outubro de i l.i I cri a, aprovado em 1965.

1957, no Paraná, os militares estavam atentos ao que acon¬ Nao deixa de ser irónico que os grandes proprietários
tecia no campo. Sua cautelosa presença na área, uma sensível dr lena, organizados sobretudo numa das mais tradicio¬
área de fronteira com a Argentina, aparece claramente nas nalistas entidades de defesa de seus interesses, a Sociedade
próprias fotografias que ilustraram as reportagens sobre o Km ,il Brasileira, de São Paulo, tenham dado decisivo apoio
acontecimento na imprensa da época. Aparece de maneira i preparação do golpe. Foram eles os responsáveis pela

mais decisiva na constituição do GETSOP (Grupo Executivo uig.inizaçao da chamada “Marcha da Família com Deus
das Terras do Sudoeste do Paraná), já no governo Goulart, pela Liberdade”, ocorrida inicialmente na cidade de São
um modelo embrionário do que seria a intervenção militar Paulo poucos dias antes da deposição de Goulart e decisiva
na questão agrária durante a ditadura militar. Ainda no | iara consumação do golpe. Imediatamente após a tomada
governo Goulart, a Aeronáutica atacou e desmantelou úm do poder, os militares encaminharam ao Congresso Nacio¬
suposto campo de treinamento guerrilheiro no norte de nal, já depurado dos parlamentares mais comprometidos
Goiás, em Dianópolis, na divisa com a Bahia. Um exame dos com as reformas sociais, justamente um projeto de reforma
índices de documentos e livros do Arquivo Histórico do agrária. Um projeto que acabou sendo aprovado por um
Exército, no Rio de Janeiro, mostra claramente que havia parlamento em que as oligarquias e os grandes proprietá¬
vigilância detalhada sobre o que acontecia no campo uma rios de terra estavam anomalamente sobre-representados
vez que dele constam rubricas relativas a “cangaço” e “mes¬ em consequência das cassações de mandatos e de direitos
sianismo”. E significativo que o general Castelo Branco, políticos dos parlamentares mais progressistas e empenha¬
primeiro presidente do regime militar, tenha acompanhado dos nas reformas sociais propostas por Goulart. ,
seminários sobre a questão agrária, quando comandante do Os estudiosos não analisaram ainda as contradições e as
Quarto Exército, em Recife, no Instituto Joaquim Nabuco, lições desse fato. Mas, aparentemente, ele se inscreve numa
tP
para os quais fora convidado o próprio Francisco Julião. E larga tradição histórica, no Brasil: as grandes reformas so¬
que já na fase de preparação do golpe de Estado, um dos ciais, como a abolição da escravatura, foram propostas pe¬
grupos organizados no IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos los representantes do pensamento radical, os liberais, mas
Sociais), encarregado de realizar estudos preparatórios para postas em prática pelos conservadores48; ou como a pro¬
um programa de governo militar, do qual participava o clamação da República, proposta pelos radicais da época
próprio general Golbery do Couto e Silva, tenha produzido e consumada, contra eles, pelos militares, na verdade her¬
um avantajado diagnóstico para um projeto de reforma deiros da tendência centralizadora, profundamente presen¬
agrária47, o qual seria, no fim, o projeto implementado logo te nas contradições do Estado brasileiro, e oriundas do
nos primeiros meses da ditadura, com a consequente refor¬ absolutismo monárquico, em cuja crise esse Estado foi ge¬
ma constitucional, cuja prévia inviabilidade política bloquea- rado. Esse jogo político envolvendo tendências opostas,

47 IPES
- Instituto de Pesquisas Estudos Sociais, A Reforma Agrária (Problema 48 Paula Beiguelman, Formação Política do Brasil, Livraria Pioneira Editora, São
Base - Solução), São Paulo, 1964. Paulo, 1967.
9
70 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ M IANÇA DO ATRASO 71

responde pelo modo contido como as reformas sociais e vrnio que implementou medidas em favor da extinção da
políticas são concretizadas no Brasil. Além do que, seus < «II.II da Nacional, base institucional do poder pessoal dos
executores são, quase sempre, seus inimigos. O que talvez < I irles políticos regionais e do oligarquismo. Extinção que

explique por que decisões políticas fundamentais ganhem airiidia a uma aspiração dos militares, que era a de ver
forma legal até sem grande dificuldade, mas emperrem mipiimida uma força paramilitar, armada e fardada, sob
justamente na aplicação, vitimadas e esvaziadas pela con¬ • MUI role de civis. A Revolução de 1930 pôs no poder uma
duta conspirativa de uma burocracia pública que ainda age •lunça de militares e oligarquias regionais marginalizadas
predominantemente a partir das orientações pessoais dos p« In sistema oligárquico, aliança de inspiração centraliza-
chefes políticos e não a partir da impessoalidade pressu¬ • In i a , dcsenvolvimentista e, em princípio, antioligárquica.
posta no cumprimento formal da lei por parte do empre¬ I v .i tradição cíclica é bem caracterizada pela identifi-
gado público. A questão, portanto, não é a de aprovar leis • H ,m dos governos militares com o desenvolvimento eco-
avançadas, mas assegurar que elas não serão executadas, itniiiim, especialmente o desenvolvimento industrial, a re-
ou não serão executadas contra os interesses dos que as pn v..io política e a precedência da centralização do poder
aprovaram49. II.M lonal em relação ao poder regional nos estados. E pela

O encaminhamento dado à questão agrária pelos mili¬ !•!. nlil ii ação dos governos civis e oligárquicos com os in-
tares deve ser entendido à luz de uma tradição do que se i» n v.rs rurais, com um certo liberalismo político e o for-

poderia chamar de movimento pendular do poder no Bra¬ i ti» < i mento dos estados (e, portanto, das oligarquias anti-

sil. Diferentes estudiosos já mostraram que a dinâmica do !' i .o novas).


processo político e republicano brasileiro é regulada por . < > hm do governo Vargas promoveu a restauração da
uma cíclica alternância, no poder, das oligarquias e dos d* nine i aria, de uma certa liberdade política e, também, o

militares, isto é, de governos descentralizados, organizados n i"iiio ao poder dos representantes dos interesses oligár-
com base no poder local e regional de chefes políticos e i|m« ns r rurais, mantidos sob controle durante a ditadura.
governadores; e governos centralizados, com predomínio ou v iigas, em princípio, não necessitara das oligarquias para
forte controle militar50. A República foi proclamada pelos gnu 1 1 iai , já que seu governo não dependia necessariamen-
militares numa espécie de golpe de Estado antecipatório h do vnlo51 (quando dependeu, a opção foi pela ditadura).
contra o movimento republicano baseado nas províncias e I i igi i após a Revolução de 1930, diversos “coronéis” serta-
nas oligarquias. De fato, os dois primeiros governos repu¬ m 1 1 •s Imam presos, na tentativa de desmantelar as bases
blicanos, do marechal Deodoro e do marechal Floriano iln HMICI local
Peixoto, a partir de 1889, foram militares e “fortes”, um I >» ei to modo, Vargas instituíra as bases de um acordo
(

eufemismo para a palavra ditadura. O governo do mare¬ l- "In M H que ganharia configuração no fim de seu governo
chal Hermes da Fonseca não foi ditatorial, mas foi o go- • nu < slabelecimento do governo constitutional que o su-
1 1 1 l- n I Ir próprio promoveu a criação de dois partidos
49 Atribui-se ao
presidente Getúlio Vargas esta sentença que expressa primoro¬ pnliihus o PSD (Partido Social Democrático), fortemente
samente esse componente do estilo político brasileiro: “Para os amigos tudo;
para os inimigos a lei”. • d. iii 1 1 K ado com o clientelismo rural, o chamado “corone-
50 Victor

.......
Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cit.; Nestor Duarte, A Ordem I l *i i i i n as oligarquias; e o PTB (Partido Trabalhista Bra-
Privada e a Organização Política Nacional, 2.a edição, Companhia Editora Na¬
cional, São Paulo, 1966; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, Editora Globo,
Porto Alegre, 1958. um •, I .cal, ob. cit.
72 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ M.IANÇA DO ATRASO 73

sileiro), de orientação populista e urbana, que colhia os im,i de exportação, inclusive a sua substituição pela produ-
votos das massas operárias e urbanas incorporadas ao pro¬ • para o mercado interno, como aconteceu com o café,
cesso político sob inspiração de Vargas e de sua política *4i 1 1 »st il iiíclo basicamente por pastagens, tudo isso enfim mo-

...
trabalhista. E significativo que o mesmo Getúlio Vargas • lil irou profundamente as condições sociais do País, as re-
que propôs e viabilizou a Consolidação das Leis do Tra¬ I H nrs entre as classes sociais, a dinâmica dos conflitos. E
balho, em 1942, para regular a questão trabalhista nas fᬠLuubéin as relações políticas. De um lado porque houve
bricas e nas cidades, não tenha estendido aos trabalhadores < Iam enfraquecimento político das oligarquias, seja
rurais direitos legais que dariam forma contratual a rela¬ • "in o desencadeamento dos movimentos sociais no campo,
ções de trabalho ainda fortemente baseadas em critérios • m < • pe< ial no Nordeste, seja com o envolvimento da Igreja
de dependência pessoal e de verdadeira servidão. Com • MI programas de alfabetização e de conscientização das
isso, Vargas não quis, ou não pôde, enfrentar os grandes H I pulações rurais. Com isso, a composição do Congresso

proprietários de terra e seus aliados. Foi em seu governo • ia\ .1 mudando claramente em favor de uma representação
que se estabeleceram as bases para um pacto político tᬠp* 'III ira mais sensível às necessidades de reformas sociais.
cito, ainda hoje vigente, com modificações, em que os pro¬ Dilei entes e opostos setores da sociedade brasileira es-
prietários de terra não dirigem o governo, mas não são • i\.mi conscientes da necessidade de adoção de reformas
por ele contrariados. •M H ui-. A reforma agrária era, certamente, a mais central

A Constituição de 1946 não alterou substancialmente • I» I r. e a que tocava mais profundamente as relações de
esse pacto, antes o reforçou. De certo modo, foi a con¬ • I i v,« ( ) Partido Comunista era a favor da reforma agrá-
sagração da opção pela ordem, como condição para o pro¬ i la Mas a Igreja Católica também era. A Igreja, porém,
gresso, na significativa inspiração positivista que instaurou V '
i HIIIO outros setores das elites, exigia que o dispositivo
o regime republicano no Brasil. Uma garantia essencial1' i •i MMíUIC ional relativo à indenização em dinheiro fosse

da ordem era o dispositivo constitucional que estabelecia b "tupi ido. Ao que tudo indica, a opção pela reforma agrá-
como restrição às desapropriações de terra para fins so¬ • • não na o que dificultava a sua realização. O problema
ciais (inclusive, pois, a reforma agrária) a obrigatoriedade • i IN a in que a reforma agrária dividia as elites, os dife-
(

da indenização prévia e em dinheiro ao proprietário. Esse I* nu •* gi upos, como a corporação dos militares que estava

dispositivo tornava a reforma agrária economicamente in¬ P* Mgosamente dividida como consequência da introdução
viável. Sendo dispositivo da. Constituição, tornava essa pos¬ ill' idol mas sociais na agenda política do Estado brasi-
sibilidade ainda mais remota, dado que sua alteração de¬ I* io. \o mesmo tempo, as Ligas Camponesas começavam
pendia de maioria absoluta de dois terços dos votos do • I d ii « ui reforma agrária radical, para distinguir sua pro-
Congresso. I " • LI «I.I proposta de grupos mais conciliatórios ou mais
O desenvolvimentismo do período entre 1946 e 1964, a • "ii • i \ adores. Em suma, não só mudava a composição po-
incorporação de novos territórios à economia nacional,
com o deslocamento da capital federal para o Centro-Oeste,
a ampliação da frente pioneira em decorrência da abertura
da rodovia BelémdBrasília, a modernização, a ampliação do
....
'•
..... . .
IIíÍMI «In Congresso, mas no fundo entrava em discussão
» IM*»I iiMlerial das classes, a questão da propriedade e o

I mienlo das relações políticas, até então predominan-


.i|>( >iadas no monopólio da propriedade da terra.

setor industrial, sobretudo com a indústria automobilística,


o desenvolvimento siderúrgico, a reformulação da agricul- q ......
f ío hm das contas, o problema era mesmo o de saber
i • pm lauto, em nome de quê) conduziria o processo
WHMMI

74 A.ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \l IANÇA DO ATRASO 75

de implantação das reformas sociais, uma vez que a clássica • ui . sulicientemente fortes para produzir uma base de de-

alternância de conservadores e liberais, que viabilizara as • siabilização política do País ou que alguns militares cha-
reformas desde o século XIX, já não se concretizava. O iiinvam de desordem, a mazorca. Na falta de uma elite
papel dos militares, de abrir parênteses históricos e desa¬ diligente capaz, as tensões no campo viabilizavam e forta-
fogar as pressões por reformas, já não parecia eficaz, so¬ I' i um a ação dos diferentes grupos de esquerda, que não
bretudo em face de uma alteração institucional que atin¬ podiam deixar de representar e protagonizar mudanças so-
giria profundamente a base do sistema de poder no País. • i n . e políticas radicais. No contexto da época, isso signi-
Uma alteração que alcançava as próprias forças armadas, ln ava lazer pender o fiel da balança política internacional
impondo-lhes mudanças na doutrina do chamado dever mi¬ P ii .1 o lado dos países e regimes políticos e da opção ideo-
litar , da disciplina e da hierarquia, na própria medida em I"}',K a opostos àquela em que nos situávamos desde o final
que o debate sobre as reformas acabou impondo a discus¬ da Segunda Guerra Mundial, a do chamado “bloco ociden-
são sobre a participação e representação política dos subo- lal Portanto, as tensões no campo (mas, também, as agi-
ficiais e sargentos no Congresso Nacional e nas assembléias LH.OCS operárias nas cidades) ganhavam sentido numa op-

......
legislativas. • iu ideológica e política que deslocava o País para uma
Isso porque, diferente do que ocorreu em outras socieda¬ ii HIM, ao oposta. Isso dava às dispersas e frágeis lutas do
des, não havia, na elite, uma classe antagónica suficientemen¬ • impo uma dimensão que concretamente não tinham e
te forte e consciente de seus interesses e de suas oposições, importância que decorria antes de sua inserção em
como uma burguesia industrial ou simplesmente uma bur¬ • oiil I il os ideológicos mais amplos e não de sua própria
guesia moderna, oposta aos interesses do latifúndio, que I **•i * i ou de sua própria representatividade.
pudesse levar adiante reformas sociais que não afetassem \pa rentemente, foi essa circunstância que alterou a pos-
opções políticas e ideológicas fundamentais. É significativo il alidade dos arranjos dos interesses de classe que em ou-
e revelador que os inimigos da reforma radical acusassem n i • Nociedades fizeram da reforma agrária um passo es-
seus instigadores de atuarem no sentido da organização de • in ia) para sua respectiva modernização, apoiada em
uma “república sindicalista”, ou de optarem por uma refor- • li mus progressistas e modernizadoras, até os primeiros
ma agrária socializante. Alguns sugeriam que estava em ui" . após a Segunda Guerra Mundial, antes da polarização

andamento uma revolução agrária. E não se lhes pode negar i d « < ilógica internacional. Mesmo que o nome da reforma yv/'A*-'
clareza quando diziam que, no fundo, os comunistas (o que nau Irnlia sido esse. Mas, no geral, desde o século XIX,1 Aÿ.A
incluía os comunistas propriamente ditos, as Ligas Campo¬ • "in i ascensão da burguesia em vários países, foi a refor-
nesas, a esquerda em geral e, até, alguns setores da Igreja) MM do direito de propriedade e a democratização do acesso

manipulavam setores das elites para subverter a ordem eco¬ • pi "pi iedade, de maneira a abolir privilégios nele basea- X
I !( IN, dinamizar o mercado e incrementar a igualdade jurí-
nómica e política, agindo, portanto, de um modo indireto.
Isto é, os comunistas não tinham bases nem forças para dh a que dinamizaram a economia capitalista e acentuaram
promover uma revolução social. Mas tinham condições para p ipH transformador do mercado.
i > brasil, desde há muito e muito lentamente, havia se
desestabilizar o regime, isto é, a ordem.
As indicações que os militares podiam colher na história • ngajado cm procedimentos nesse sentido orientados. Ini- c?
social e rural recente do País sugeriam, muito provavel¬ • i ilmenle, com a abolição do regime de sesmarias imedia-
mente, que no campo estavam se acumulando tensões so- • ii m i ile antes da reunião das Cortes de Lisboa, poucos
76 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA N NUANÇA DO ATRASO 77
meses antes da Independência02. Em seguida, após a Inde¬ No Brasil dos anos cinquenta e sessenta, portanto, a ques-
pendência, a abolição dos morgados, a herança concentra¬ i io agrária emergiu em meio a relações de classes que não
da num único herdeiro, o primogénito, que poderia cons¬ ( ombinavam no sentido de fazer dela um fator de mudan-

tituir a base de uma aristocracia fundiária, como temiam • ,i c de modernização social e económica. A questão agrária
eminentes figuras envolvidas no episódio. A Lei de Terras, n.io favorecia alianças progressistas nem opções liberalizan-
de 1850, já teve um caráter ambiguamente conservador, o
que mostra que, no fundo, os grandes proprietários de
h .
ao contrário do que ocorrera em outros países53. Seria
nina imensa bobagem dizer que os camponeses são histori-
terra foram paulatinamente constituindo e reforçando seu • ainente conservadores e que não é por meio deles que
poder. Foi assim na criação da Guarda Nacional, na Regên¬ giandes transformações sociais podem ser alcançadas. A
cia, que deu a eles poderes militares e políticos. É que a liuloiia das lutas camponesas desde o século XVIII, em
Lei de Terras, longe de ter por objetivo a liberalização do n ios países, como tendência geral, sugere que são eles impor-
acesso à terra, teve por objetivo justamente o contrário: i .mies desestabilizadores da ordem social e política tradicio¬
instituir bloqueios ao acesso à propriedade por parte dos nal, baseada na propriedade da terra, e seu papel histórico
trabalhadores, de modo que eles se tornassem compulso- I ni ida mental está em que, justamente por isso, abrem cami¬
riamente força-de-trabalho das grandes fazendas. Ao con¬ nho para a ação reformadora ou revolucionária de classes
trário do extinto regime de sesmarias, o novo regime reti¬ < uis dotadas de projetos históricos mais abrangentes. Clas-
M

rava do direito de propriedade a co-propriedade do Estado. *» t s que, por sua vez, não têm uma posição social que lhes
*

No regime sesmarial, o fazendeiro tinha apenas a posse pu mini justamente desestabilizar a ordem tradicional para
formal, que podia ser objeto de venda, mas o rei, isto é, o • li .encadear e concretizar as mudanças sociais significativas
Estado, mantinha sobre a terra a propriedade eminente, de que podem ser os protagonistas principais.
podendo arrecadar terras devolutas ou abandonadas e re¬ ( ) golpe de Estado de 1964 e a forma assumida pela

distribuídas para outras pessoas, como fora comum até o lelonna agrária proposta pelos militares inserem-se clara-
século XVIII. nienlc nesse quadro de impasses históricos e institucionais.
I ui primeiro lugar porque o golpe não teria sido possível
- convocação
52
A convocação das Cortes, por Dom João VI, rei de Portugal, equivalia à em ,i intervenção e a ação, mais ideológica do que política,
de uma assembléia nacional constituinte e visava, justamente, à il« uma classe social tão amplamente disseminada sobre o
modernização da legislação portuguesa e colonial. O regime de sesmarias vigia
em Portugal desde muito antes da descoberta do Brasil. Nele, o acesso à terra
dependia da pureza de sangue do concessionário, não sendo ela acessível aos ' ' \*. esquerdas da época, conscientes dessa dificuldade, ainda tentaram abrir
mouros, aos judeus e aos negros. A Casa de Suplicação de Lisboa, uma espécie iiin.i brecha nas defesas das classes dominantes, proclamando a existência de
de supremo tribunal, chegou a julgar casos de herança relativos ao Brasil em iim.i burguesia nacional progressista que, aliada às classes trabalhadoras, po¬
que alguns dos envolvidos no litígio eram mestiços e, portanto, sujeitos a dei I.I levar adiante reformas sociais como a reforma agrária que, por sua vez,
interdição no que se refere à aquisição de propriedade. No regime de sesma- i Hiimulariam o desenvolvimento capitalista voltado para o mercado interno.

rias, a obtenção da terra pelo sesmeiro era condicional, já que ele tinha apenas
o direito de posse e uso. Se durante um certo número de anos a terra não
|)« lato, o modelo de desenvolvimento capitalista estava em jogo

I UM o mercado interno ou para o mercado externo. Erravam os que enten¬
voltado

fosse utilizada economicamente, podia cair em comisso, isto é, retornar ao diam ser a primeira a única opção modernizadora quando supunham que o
património do rei, que mantinha a propriedade eminente da terra, podendo d* -.envolvimento capitalista voltado para o mercado externo implicaria um
arrecadá-la de volta sempre que as condições da concessão fundiária não fos¬ irloiço á economia de exportação e, portanto, ao latifúndio “feudal e atrasa-
sem respeitadas pelo fazendeiro. Ao menos entre os séculos XVI e XVIII, esse i li > I- que a dinâmica da economia brasileira não dependia apenas de decisões
direito do rei foi inúmeras vezes utilizado em diferentes regiões do Brasil, e mimi.is, mas estava em grande parte condicionada pelas tendências da eco-
disso há documentação. iinim.i internacional, como se viu depois.
78 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA N M IANÇA DO ATRASO 79

território como a classe dos proprietários de terra04. Foram In. Illll.t distinção entre terras desapropriáveis e terras não \ h'
eles, apoiados em grupos conservadores do clero e na clas¬ d. . 1 1 > i < >| > i iiíveis. O duplo conceito de latifúndio, por exten-
se média, que conseguiram levar para as ruas a idéia da I H > i exploração, no fundo era mais radical do que o
resistência às reformas sociais, invocando para isso a sacra- •
H i

i|M .
(

< oiH rito de latifúndio usado pelas esquerdas antes de


lidade dos valores da tradição. Contraditoriamente, porém,
em nome da liberdade, uma conjunção sempre presente
nos momentos de grandes reformas sociais na história do
Brasil contemporâneo. No fundo, a liberdade de ser desigual,
ao invés da clássica concepção que associou liberdade e
i

........
1
»« , „
i | H que incluía como latifúndios terrenos não tão ex-
'• ii •• porém, mal explorados. Ao mesmo tempo, incluía
• terras desapropriáveis os minifúndios, ou ao menos
• • inclina nas terras penalizáveis pela taxação, que era o
piim ipal instrumento da reforma. A flexível categoria de
'

igualdade.
As resistências e temores, dos proprietários de terra, logo
- 1 1 1 » i •s a rural recebia as simpatias do Estado e escapava da
1 (

possibilidade de ser incluída nas desapropriações. O que


que ficou claro que os militares estavam trabalhando num mdi. a, (‘in princípio, uma reforma agrária orientada para a
projeto de reforma agrária, desdobraram-se em iniciativas ui. >d(M nização económica e para a aceleração do desenvolvi-

para desestabilizar ou radicalizar o novo regime. O regime in. nt o capitalista na agricultura.

militar, porém, produziu uma legislação suficientemente am¬ Esses procedimentos foram contrabalançados, logo em
bígua para dividir os proprietários de terra e assegurar ao seguida, com a proposta de uma política de ocupação
mesmo tempo o apoio do grande capital, inclusive o apoio l.ivorecida da região amazônica. A criação do Banco da
do grande capital multinacional55. De fato, o Estatuto da \iuazônia e da Superintendência do Desenvolvimento da
Terra preconizava critérios de desapropriação bastante pre¬ \jnazônia (SUDAM) preconizou uma política de concessão
cisos. As esquerdas haviam trabalhado com um conceito de de incentivos fiscais -aos empresários, especialmente das re- ,

latifúndio suficientemente impreciso, antes do golpe, para gioes mãis ricas, para que deixassem de pagar 50% do
incluir numa política de reforma agrária todas as proprieda¬ imposto de renda, desde que o dinheiro fosse depositado
des, inclusive as médias. O regime militar procurou classifi¬ naquele banco para financiar projetos de desenvolvimento
car usos e extensões de propriedade, de modo a formular na Amazônia, de cujo capital constituiriam até 75%. Os
um conceito operacional de latifúndio e estabelecer, portan- investimentos orientaram-se de preferência para a agrope-
( uária, de modo que um grande número de empresários e
54 Imediatamente
após o golpe, fazendeiros e comerciantes de médias cidades de empresas, especialmente do Sudeste, sem tradição no
de várias regiões do País, associados ao clero local, organizaram réplicas mu¬
_nicipais da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, tentando assegurar
uma legitimidade adicional ao regime militar já instalado.
55 Poucos meses
após a consumação do golpe de Estado, Walt Rostow, conheçido
i amo, tornaram-se proprietários de terras e empresários

rurais. Em princípio, a aquisição de terras pelos grandes


economista e subsecretário do Departamento de Estado americano, fez uma
( apitalistas do Sudeste animou o mercado imobiliária, coii:
concorrida conferência na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo vertendo, por isso mesmo, os proprietários de terras em
para dizer que agora estava aberto o caminho para que reformas como a proprietários de dinheiro e forçando-os, por sua vez, a agi-
reforma agrária fossem feitas, de maneira a integrar vastas populações rurais
i em como capitalistas. Ao contrário do que ocorria com o
no mercado e estimular o desenvolvimento industrial (Cf. Walt W. Rostow,
Algumas Tarefas de Desenvolvimento Económico na América Latina, USIS —Serviço modelo clássico da relação entre terra e capital, em que a
de Divulgação e Relações Culturais dos Estados Unidos da América, São Paulo, terra (e a renda territorial, isto é, o preço da terra) é reco¬
25 de agosto de 1964). Excetuada a diferença de personagens, essa era prati-
camente a mesma proposta que fazia, antes do golpe, o Partido Comunista nhecida como entrave à circulação e reprodução do capital,
Brasileiro. no modelo brasileiro o empecilho à reprodução capitalista do capital
80 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA V AI I \N(. \ 1)0 ATRASO 81

na agricultura não foi removido por uma reforma agrária, mas M I í.i c ;is lutas camponesas. Embora tenha mantido uma
ii

pelos incentivos fiscais. O empresário pagava pela terra, mes- iH .


" ui. »«, io básica em relação aos conflitos no campo: de
mo quando terra sem documentação lícita e portanto pro¬ ••ui 1*1110, circunscrevê-los e desativá-los, pela força e pela
duto de grilagem, isto é, de formas ilícitas de aquisição. Em 1 1 1. u,.io moral; de outro lado, identificar e aniquiliar as li-

compensação, recebia gratuitamente, sob a forma de incen¬ ' -'liças, tidas como intervenções alienígenas na sociedade
tivo fiscal, o capital de que necessitava para tornar a terra IH .isilcira. Era a tradicional doutrina do cerco e aniquilamen¬
produtiva. O modelo brasileiro inverteu o modelo clássico. Nesse to, m. iis de uma vez mencionada nos escritos gcopolíticos
sentido, reforçou politicamente a irracionalidade da propriedade «In general Golbery do Couto e Silva.
fundiária no desenvolvimento capitalista, reforçando, conseqúen- Até o final da chamada Guerrilha do Araguaia, no início
temente, o sistema oligárquico nela apoiado. Com a diferença, dos ; mos setenta, o governo aparentemente entendeu que
porém, de que a injeção de dinheiro no sistema de proprie¬ i possibilidade de uma revolução camponesa,
ideologica¬
dade modernizou parcialmente o mundo do latifúndio, sem mente consistente, continuava na ordem do dia. A multi¬
eliminá-lo, como se viu, finalmente, nos últimos e recentes plicação dos conflitos fundiários na Amazônia, mas não
anos, após o término do regime militar, em 1984, com o so nela, parecia sugerir que os agrupamentos políticos de
aparecimento de uma nova elite oligárquica, com traços cs< [iierda tinham acentuada presença no campo e, sobretu¬
exteriores muito modernos. do, uma grande capacidade de mobilização, organização e
/
Q regime militar, por esses meios, procurou modernizar, orientação revolucionária das populações rurais. A Guer-
mantendo-a, a propriedade da terra, afastando, portanto, a i ilha do Araguaia parecia confirmar esse temor do gover-
alternativa de uma reforma agrária radical que levasse à no*,(), reforçando, portanto, uma compreensão da questão
expropriação dos grandes proprietários de terra com a sua agrária, em que ela âparecia antes como questão militar e
consequente substituição por uma classe de pequenos pro¬ nao como questão social. Essa amplitude da compreensão
prietários e pela agricultura familiar, como sucedera em
outras sociedades. Ao mesmo tempo, comprometeu os grandes
,()
Na verdade, a região de Xambioá, na divisa de Pará e Goiás, onde se desen¬
rolaram os episódios da guerrilha conduzida pelo Partido Comunista do Bra¬
capitalistas com a propriedadefundiária e suas implicações politi¬ sil, filochinês, não se destinava nos planos iniciais a ser o foco da luta armada.
cas. co fim das contas uma tentativa de instituir uma base Deveria ter sido apenas uma base de apoio logístico, situada lateralmente em
estável para a aliança política que ganhou forma com a relação ao centro do confronto. Este último e um segundo acampamento de
Revolução de 1930. Com a, diferença, porém, de que não se
tratava de mera aliança política, como se dera até 1964, mas
apoio jamais chegaram a ser estabelecidos (Wladimir Pomar, Araguaia o
Partido e a Guerrilha, Ed. Brasil Debates, São Paulo, 1980). O confronto cm
Xambioá parece ter sido provocado pelo próprio Exército, que já dispunha

agora de uma substantiva aliança social e económica. Uma de informações completas sobre os guerrilheiros quando a luta começou. Em
entrevistas na região de Marabá, em 1977 e 1978, consegui saber que disfar¬
opção, portanto, de larga durabilidade e não apenas uma çados de “soldados da malária”, isto é, funcionários da Superintendência de
opção transitória para esvaziar as tensões sociais no campo. Campanhas Especiais (SUCAM), do Ministério da Saúde, que têm livre acesso
e grande acolhimento entre as populações sertanejas, oficiais do Exército,
espccialmente treinados, vindos de Brasília, entraram nas casas dos guerri¬
lheiros, revistaram e fotografaram tudo que puderam. Normalmente, esses
4. Depois da ditadura, a inviabilização das mudanças funcionários fazem a dedetização das casas, quando então os moradores são
obrigados a delas se afastar. Na época do confronto armado, aquela ainda
não era uma região de conflitos fundiários, localizados a uma distância bas¬
O regime militar não teve, ao longo de seus vinte anos tante razoável. Ao menos, os moradores com quem os guerrilheiros tinham
de duração, uma conduta uniforme em relação à questão uma convivência cotidiana ainda não estavam envolvidos na luta pela terra.
82 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA v \l IANÇA 1)0 ATRASO 83

que do problema tinham os militares pode ser constatada • •« ir, capatazes e pistoleiros, em centenas de pontos no
na ampla extensão territorial coberta pela ação contra-re¬ !' H . mirim, na certeza de que eram impunes e, além disso,
volucionária das forças armadas e pela ação repressiva con¬ da repressão na manutenção da ordem. Claramen-
tra populações civis supostamente aliadas à subversão ar¬ i» i a MIO repressiva longe de favorecer o
monopólio da
mada. Não só o reduzido território no sul do Pará, em ' o »li i H ia por parte das instituições militares, implicou, ao
que os guerrilheiros estavam localizados, mas também am¬ '"iih ano, um amplo favorecimento da violência paramili-
plas extensões dos estados de Goiás, Mato Grosso e até lai piivada dos grandes proprietários de terra. Nunca
Maranhão foram incluídos na varredura repressiva, muitas ii. i lnslória do Brasil o latifúndio foi tão poderoso no uso

vezes a mais de mil quilómetros do foco de conflito. 1 v mlencia privada e nunca as forças armadas foram tão
'
O aniquilamento final da guerrilha, aí por 1972, parece li r. «ui relação a ele quanto durante o regime militar.
ter sugerido aos militares que a possibilidade de uma re¬ D« M I i<> modo, era como se a Guarda Nacional tivesse
volução comunista apoiada na inquietação camponesa e " II.IM ido como força de segunda linha do Exército.
nos conflitos fundiários era reduzida ou nula. Pois foi jus¬ \ a< ao repressiva e violenta, sobretudo a repressão pri-
tamente a partir daí que o governo federal passou a aban¬ Vi •d i .ilcançou setores importantes da sociedade civil nas
donar sua política de colonização oficial das terras ama- •n ,r. mi ais em que mais marcadamente ocorreu. Se os
zônicas, para em seu lugar favorecer a colonização por •indiialos foram sistematicamente visados, eles estavam
meio de empresas privadas, beneficiárias de amplas con¬ i mibém, contraditoriamente, incluídos nos programas so-

cessões territoriais com essa finalidade. Na prática, isso i lah »ln governo militar, que deles passou a se valer para

significava optar pelos colonos relativamente prósperos do ITI/I (lugar ao campo, a partir do governo Médici, os
Sul, que podiam comprar terras na Amazônia, em detri¬ I mui ,K li >s • precários recursos de uma quase ilusória pre-
mento dos colonos pobres originários do Nordeste. A Ama¬ ' idi m ia social rural. De modo que eles ficaram mais ou

zônia deixava de ser instrumento imediato de objetivos po¬ H" uns imunes à ação repressiva de que foram vítimas nos

líticos e sociais de natureza estratégica para se tornar uma I mu trims meses da ditadura.
fronteira de recursos económicos. No fundo, uma mudança \ mesma benevolência não chegou até a atividade da
substancial. Ela implicava uma certa reformulação dos ob¬ I'
" |.i < atólica. Já em 1973, os bispos decidiram organizar
jetivos estratégicos do Estatuto da Terra, mais um instru¬
mento para administrar e- controlar os conflitos no campo
do que um instrumento para efetivamente promover uma
......
I
t
....
•• < * u r.rllio Indigenista Missionário (CIM1), destinado a
|
uma ampla reformulação na pastoral indigenista
modificai radicalmente o missionarismo de conversão
redistribuição significativa da propriedade com o objetivo I'" « n M lerizara a atividade missionária de certas congre-
de transformar a estrutura da sociedade brasileira. De qual¬ H“,H • iHigiosas e da própria Igreja em seu conjunto. O
quer modo, uma mudança que, em princípio, afastava o ’ **I
" I * 1 1 o genocídio que acompanhou a abertura da Ro-
governo militar de qualquer tentativa de solucionar a grave d"' * i 1 1 ansamazônica e de outras estradas na Amazônia,
questão social no campo, especialmente na própria região o modo in acionai e violento como se deu o contato com
amazônica, onde os conflitos sangrentos se multiplicavam h ll ti m indígenas ainda desconhecidas, sensibilizaram forte-
e se multiplicariam ainda mais depois do final da guerrilha. m» HI. bispos que vinham da tradição da doutrina social
A repressão militar em si mesma abrira as portas para d » I n I I < da influência da Ação Católica. O fato de que
a ação violenta dos grandes proprietários de terra, através i lin ma violência tenha alcançado os posseiros da região,

i
Ml

(pic
A AI.1ANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA

estavam sendo expulsos das terras que passavam a ser


ocupadas pelas novas fazendas, levou os bispos a organi¬
zarem, em 1975, a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em
ambos os casos os agentes de pastoral passaram a ser vi¬
........ .
> Ml\! .« A

••'I
|>( ) A I KASO

h niriiir dependentes da eficácia dos grupos de mediação,


p ii ndos ou não. O envolvimento maciço da hierarquia ca¬
ll iln.i II. I questão indígena e camponesa, sobretudo a tra-
85

políticas das lutas sociais no campo eram for-

sados pelos grandes fazendeiros, pelas policiais estaduais i h ii io dos dispersos e nem sempre claros objetivos dessas

e também pelo Exército e pela Polícia Federal. lui.is em lei mos das concepções da doutrina social da Igre-
Nos anos cinquenta, a tomada de consciência, por parte I»«. podeiia dar a elas um referencial ideológico que até
dos bispos católicos, das causas da pobreza no Nordeste, • ui. IO n.io tinham. Foi temendo esse fato, que nos próprios
di. is d.i assembléia o governo militar iniciou o seu progra-
os movera a um compromisso com programas de conscien-
tização das populações rurais, mas também de estímulo e
apoio aos programas federais de desenvolvimento econó¬
mico e de modernização. Naquela época, fora o Nordeste que
ma ( le militarização da questão agrária com a criação do
i.iupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GE-
I \ I ), notório instrumento de intervenção militar, que ti¬
w
definira o teor dos compromissos da Igreja na prática da doutrina ni ia raízes no GETSOP, do Paraná, do início dos anos ses-
social. A questão da violência na Amazônia, porém, envol¬ senlii, e que fora a resposta militar à revolta camponesa
via muito mais do que a eliminação da pobreza. Ali, na de 1957.
verdade, os pobres estavam sendo eliminados ou violenta- ( )s militares, basicamente, se propuseram a forçar acor¬

mente expulsos da terra em nome, justamente, de um am¬ dos entre camponeses submetidos a violências, e ameaça¬
plo programa nacional de desenvolvimento económico e dos de expulsão da terra, e os grandes proprietários. Mes¬
de modernização do País. O novo modelo de desenvolvi¬ mo em casos de terras obtidas por meios fraudulentos,
mento não tinha por objetivo a incorporação dos pobres duas meras exposições de motivos ao Conselho de Segu¬
e marginalizados a um sistema económico moderno. O que rança Nacional, durante o governo Geisel, ganharam força
ali ocorria alcançava a consciência católica de um modo de lei e criaram condições para legalização das aquisições,
mais radical do que o que ocorrera no Nordeste. Não só mesmo em detrimento de ocupantes prévios que não pos¬
como decorrência do que se fazia aos camponeses, mas suíam documentos, nem mesmo falsos. Os militares se pro¬
também, e sobretudo, em consequência da ação genocida puseram a legalizar para cada posseiro, inicialmente, uma
contra as populações indígenas. Pode-se dizer que a radicali- área equivalente ao módulo rural regional estabelecido
dade do humano foi posta em questão nos confrontos sociais e -pelo Estatuto da Terra e pelo Instituto Nacional de Colo¬
étnicos da Amazônia, no final dos anos sessenta e durante os nização e Reforma Agrária. Mais tarde, tentaram reduzir
anos setenta. A Amazônia é que passa a ser, então, a grande a área concedida a cada um, o que gerou reações. O ob¬
referência social na aplicação da doutrina social da Igreja. jetivo, basicamente, era o de assegurar a posse mansa e
Essa reformulação aparece nas orientações católicas a pacífica dos grandes proprietários, eliminando focos de
partir de 1973 e culmina na asscmbléia da Conferência tensão no interior das terras que alegavam ser suas.
Nacional dos Bispos do Brasil, no início de 1980, com o Essas medidas foram completadas com a criação do Mi¬
documento “Igreja e Problemas da Terra”, um documento nistério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (MIRAD),
que, num colegiado de cerca de trezentos bispos, teve o sendo indicado ministro um general ligado ao Conselho
AP voto contrário de apenas quatro prelados, os mais notoria- de Segurança Nacional. Essa medida completava a milita¬
rização e assegurava intervenção militar na questão agrária
V < , mente conservadores. Para o governo era já claro que as

.
n f>S) ML . y *
86 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \l I ANCA 1)0 ATRASO 87

cm todo o País. Ao mesmo tempo, durante os últimos qua¬ Basicamente, estava claro para os militares a probabi-
tro anos do regime militar, no governo Figueiredo, o go¬ 1 1< I . i c I ( do fim próximo da ditadura e a necessidade de
*

verno agia paralelamente, por meio da ação de militares jv.rgiu ar o fim dos conflitos fundiários e, ao mesmo tempo,
e de agentes da Polícia Federal, no sentido de desmobilizar a desmobilização da Igreja como grupo de mediação na
o envolvimento da Igreja na questão agrária. O fracasso • piessão e liderança dos conflitos. Essa concepção ficou
dessa intervenção no acampamento de Encruzilhada Nata¬ • lai a no discurso que o general Golbery do Couto e Silva fez
lino, município de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, M I I scola Superior de Guerra para justificar o início da

ficou claro quando o governo quis remover os lavradores • 1 1 miada abertura política. Ali ele se referiu expressamente
ali acampados, expulsos da reserva indígena de Nonoai, i" lain de que Igreja se transformara num instrumento de

ir a para núcleos de colonização no Mato Grosso, e os colonos rs I a < . .ao de reivindicações sociais que deveriam se expres-
cr \
recusaram57. A Igreja, que tinha forte presença no acam¬
pamento, foi responsabilizada. Como contrapartida, o mes¬
mo oficial do Exército que ali comandava as operações,
.....
....
M . 1 1 1 aves de canais políticos e partidários. Com seu envol-

nas questões sociais, a Igreja impedia que essas


• • mdi< ações corressem pelo seu leito natural que eram os
I'

originário do combate à guerrilha do Araguaia, voltou-se I * M i idos. I )e certo modo, nessas concepções estava o enten-
para outro grave foco de tensão, na região do Baixo Ara¬ • In i a ni o de (jue a Igreja fazia a inquietação camponesa saltar
guaia. Fazia meses que seus subordinados estavam montan¬ Hl I I >i < os estreitos limites em que ela podia ser contida,
do uma armadilha para nela colher os padres franceses • I ando lhe uma dimensão política e filosófica mais ampla. A
que lá atuavam58. Tratava-se de uma clara ação repressiva il" i ini a política promoveria, como de fato acabou promo-
para desmobilizar o envolvimento da Igreja nas reivindica¬ vi ndo, a reorientação da questão agrária para o âmbito
V-
ções das populações camponesas. Que um fracasso militar l*ii i K lai io, retirando-lhe a radicalidade representada pelo
e policial no Rio Grande do Sul tenha tido uma resposta HI II Impacto na própria concepção de destino da condição
militar e policial no Pará é bem indicativo da amplitude Imm ma, sobretudo presente na questão indígena.
de perspectiva e de considerações na ação do regime. < » novo regime civil instaurado em 1985 acabou confir-
m nulo os efeitos politicamente bloqueadores da arquitetura
d. ili. inças efetuada pelos militares. Quando se apresentou
O acampamento começou à beira da estrada de Ronda Alta, com duas famílias
que ficaram fora da divisão de duas fazendas entre colonos sem terra, no dia • Inv labilidade das eleições diretas para presidente da Re-
f
<<X
8 de dezembro de 1980 (0 São Paulo, 23-29 de abril de 1982, p. 6-7). Em
fevereiro de 1981, já havia 150 famílias acampadas no lugar (O Estado de S.
Paulo, 30 de agosto de 1981, p. 24). O acampamento terminou no dia 13 de
......
pnblh i licou claro que o novo regime seria estabelecido
• MI • Ima de acordos e composições partidários, tudo no
I » . on! as profundamente determinado pelas condi-

.....
março de 1982, quando a Igreja conseguiu recursos para comprar uma área

.. . .. ..
(

de terras para abrigar provisoriamente os colonos que haviam resistido à ten¬ I Ill’S I l« irvivescência cio oligarquismo que os militares ha-
tativa dos militares de transferi-los para o Mato Grosso (O Estado de S. Paulo,
14 de março de 1982, p. 27). i im assegurado. A crise se desdobrou no desmantela-
58 Os padres eram Aristide Camio e François Gouriou, ambos ex-missionários ti" do partido governista, no surgimento dc facções
no Laos. Camio começou a produzir anotações diárias sobre o que estava
acontecendo na região e começou a registrar indicações de que os militares I MI i hl. ii ias favoráveis à abertura política e na elaboração
e os “federais” estavam montando um esquema para comprometê-lo com ações • li dos que asseguraram o fim da ditadura. Uma vez
violentas na área. Não só tive oportunidade de ler essas anotações, como a m ii » os anseios de liberdade apareceram no cenário polí-
respeito tive oportunidade de conversar com os dois padres em diferentes
ocasiões, mesmo quando estavam presos na sede da Polícia Federal, em pt ui ados pelos partidos e grupos de orientação clien-
Brasília. h ll i t • oligai quica. Não é casual que o mais oligárquico
1

88 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA \ M IANÇA DO ATRASO 89

dos grupos tenha se organizado num partido político que h ,n .i Igreja, já que era ela, na verdade, o grande canal de
leva justamente o nome de Partido da Frente Liberal. l • pirssào do descontentamento camponês60.
Muitos dos representantes do oligarquismo passaram, sem
maior problema, para os quadros do partido de oposição ...... I I,I notório que o novo regime teria que se defrontar
pressão das populações rurais e sua demanda repri-
.i

.......
à ditadura, considerado pelos próprios militares um partido MIHI.I poi um programa redistributivo de terras. Ocupações
de esquerda, o Partido do Movimento Democrático Brasi¬ ui !< 1 1 as já estavam ocorrendo e era óbvio que um minis-

leiro (PMDB). Essa composição apareceu claramente na cha¬


pa vencedora da eleição direta: Tancredo Neves, do antigo
partido oligárquico, o PSD, e José Sarney, um típico repre¬
.....
. ontrolado por pessoas em princípio comprometidas
.i ideia de justiça social e com a proposta de reforma

M I HM seria assediado por um recrudescimento das pres-

sentante do clientelismo maranhense, ele mesmo envolvido ii it I assim foi.


1 > Ml UAI) começou a se organizar para fazer as desa-
em sério conflito com posseiros, no vale do Pindaré, em
terras que lhe chegaram às mãos por meio de documentos pi • q a iaçòes necessárias com base no Estatuto da Terra,
de propriedade de validade discutível59. Quando o pêndulo • miando os casos de conflito nos diferentes estados e
I nidn ,i cada um o encaminhamento legal cabível, todos
da política brasileira oscilou, mais uma vez, da ditadura
para a democracia, foi na verdade empurrado pelas esquer¬ !• • nl minando com a elaboração da minuta do decreto
das, mas puxado pelas oligarquias. Essa composição, como !• di .apropriação. A retórica oficial, inclusive do presiden-
já acontecera em 1946, confundia a prática liberalizante de • qih a< abou assumindo o governo no lugar de Tancredo,
dois grupos na verdade opostos. |HI lain eu, José Sarney, era a do discurso liberal de sem-
Na composição do ministério do novo governo prevale¬ P* • « ui lavor da reforma e da justiça social. Ao mesmo
,

ceram os velhos critérios oligárquicos de distribuição dos h mpo. porém, nomeara para ministro da Casa Civil e,
cargos pelos estados, de comum acordo com os governado¬ "Hiauio, coordenador do gabinete presidencial, um mem-

res. O Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário, MIM I* * IT I M Marco Maciel, um dos produtos modernizados
na falta de outro, foi definido, equivocadamente, como o 1 1 lirarquias do Nordeste. A medida que a pressão pela

ministério que caberia à região amazônica (porque ali, na • • l"ima agrária crescia enormemente em 1985 e 1986, e o
verdade, ocorria maior número de conflitos fundiários). M I U \ I ) encaminhava à presidência os projetos de desapro-
Consequentemente, foram os governadores dos estados piiai.au <las fazendas improdutivas que a lei determinava
amazônicos convidados a indicar um nome para ministro. i
- • m desapropriadas, o Gabinete Civil estabeleceu uma
din 1 1 i / icsiTvada para evitar que os decretos fossem assi-
Ora, os governadores não eram propriamente os repre¬
sentantes das grandes vítimas dos confllitos agrários da u 1 d* • « >u, mesmo, fossem postos em prática. Antes de se-

região, os posseiros, e menos ainda dos índios, que nem


sequer têm direito a voto. Eles estavam envolvidos profun¬
damente nos acordos do oligarquismo regional. Tancredo
Neves entendeu, também, que na composição deveria en-
........
..
.....
""i|tinlici pcssoalmente vários episódios envolvendo a escolha do novo

........ l'H<> menos dois dos três presumíveis candidatos eram meus conhe-
• »a, . , .tmlgos, c chegamos a conversar mais de uma vez nas horas que an-
.» indicação. Nessas horas também tive contato com os setores da
hi " I » 'I'" -n posta mente, estavam sendo envolvidos na indicação de um nome.
59 O envolvimento do senador José Sarney na aquisição das terras da Fazenda M» liiiii, wpi Hiii dc muitas opiniões em contrário, a CNBB acabou secundando
Maguary, no município de Santa Luzia, antes mesmo de sua candidatura à •« iit'li, ,,»«i dn governador do Pará e apoiando o nome que ele trazia para
I,

vice-presidência na chapa de Tancredo Neves, fora investigada por uma co¬ M»M|,ti " ministério. Nenhum dos três “candidatos” originais foi indicado: um
missão de inquérito do Senado Federal. •In Kiiii, nun O dc São Paulo e outro do Paraná.
90 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA I II IANÇA DO ATRASO 91

..........
rem encaminhados à assinatura presidencial, eram rigoro¬ 'D in iv. i Constituição inúmeros juízes de comarcas do in-
samente selecionados, de modo que muitas propriedades do País c tribunais estaduais passaram a jogar com

....
«i'ii
não foram alcançadas pela desapropriação. Mesmo decretos i mil ilgíiidaae do conceito de terra produtiva para inter-
assinados pelo presidente da República nunca foram publi¬ eito de empresa rural, fixado no Estatuto da
cados no Diário Oficial, deixando, assim, de ter efeito le¬ I ' M i I >111,1 sistemática onda de despejos de ocupantes de
gal61. As consequências do boicote são conhecidas: a lenta o 1 1 i ligados na maioria dos casos ao Movimento dos Sem

queda do ministro e de seus auxiliares imediatos, inclusive I i I. vai i eu o País, indicando uma conduta relativamente
cio segundo escalão em praticamente todo o País. i MI q,| if is magistrados em defesa de
concepções extrema-
Mas a consequência principal se deu na elaboração da nu i ti i conservadoras da propriedade da terra62.
Constituição de 1988. Os precários avanços na legislação ••
que era pressão resultante dos movimentos campone-
fundiária da ditadura militar foram praticamente anulados • passava a esbarrar na muralha que a aliança entre ca¬
pelos constituintes. A utilização dos conceitos de “proprie¬ pa il e lena erguera contra a possibilidade de qualquer
dade produtiva” e de “propriedade improdutiva” introdu- 'In i ai, ao substantiva na ordem política e social. De fato, a

......
ziu uma ampla ambiguidade na definição das propriedades i n idade da situação no campo não contou com nenhum

sujeitas a desapropriação para reforma agrária, praticamen¬ d!"li' significativo no Congresso Nacional e nos instru-
te anulando as concepções relativamente mais avançadas los e grupos de formação da opinião pública63, com
do Estatuto da Terra. Essa mudança refletia não só a rea¬
ção dos grandes proprietários de terra que haviam orga¬ ( )*
I« •l * s lornin amplamente amparados pela manipulação da opinião pública
/ •

I"" p‘»l< (la maioria dos jornais. Um episódio, em particular, foi fatal para
nizado a União Democrática Ruralista, de cunho direitista • pi imanência dos progressistas no MIRAD. Refiro-me à denúncia, de com-
e paramilitar, para enfrentar diretamente as ocupações de )•!• m m.t fé, feita pelos jornais, de que equivocadamente assessorado o presi-
terra e que haviam colocado o governo em face da possi¬ d« nl« d.» República havia decretado a desapropriação de todo o município
d« I ««iidiina, no Paraná, incluindo a cidade. A retumbância do caso foi de
bilidade de uma onda terrorista e sangrenta no campo. • «I "«drill que os responsáveis pela medida nem mesmo foram ouvidos quan-
Refletia um lado fundamental das alianças de classe na -l" mu.iram explicar os procedimenos que levaram ao equívoco de interpre-

história brasileira, mas quase sempre pouco visível: já antes


......
i M<> poi parte da imprensa. O que de fato ocorrera é que os técnicos do

61 A denúncia do boicote apareceu em grandes jornais brasileiros em julho de


..
illinium in, precisa e cuidadosamente baseados no Estatuto da Terra, tinham
iiminhar uma desapropriação de fazenda naquela rica região ao redor
d« iiiipoi (ante cidade do norte pioneiro do Paraná. O Estatuto estabelecia
1986, quando se soube que vários decretos de desapropriação de terras para
reforma agrária no Maranhão haviam sido assinados pelo presidente da Re¬
pública, mas haviam desaparecido antes de serem publicados pelo Diário Oficial
.....
• ...
•I'" «** desapropriações só poderiam ocorrer em áreas prioritárias para re-
1 ;il ‘a> assim reconhecidas e declaradas mediante decreto presidencial.
1 MM I null ;í rio poderiam ser declaradas ilegais pela Justiça. É claro que o
(Cf. Folha de S. Paulo, 18 de julho de 1986, p. 25; Folha de S. Paulo, 19 de d' «I Ho não tinha por objetivo promover a desapropriação de um inteiro
julho de 1986, p. 21; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 de julho de 1986, p. mmili Ipio, mas apenas o de declarar que aquele município passava a fazer
20). Em 1985, fazendeiros de São Paulo começaram a fazer manifestações l« ii Ir dr uma área prioritária para a reforma. Só então poderia o presidente
contra a reforma agrária. Pouco depois do boicote antes referido, o Movimento d • !'* pública emitir e assinar os respectivos decretos e documentos de desa-
Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na manhã do dia 24 de setem¬
bro de 1986, organizou bem conjugada invasão de quinze prefeituras no Es¬
tado do Paraná e também cm outros seis estados, além da invasão da sede
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária em dois estados, com
O Objetivo de forçar a aceleração da reforma agrária (Folha de S. Paulo, 25 de
setembro de 1986, p. 12). Grandes manifestações de trabalhadores pela refor¬
»l I

......
I" "l«i i.H.iio de um imóvel específico.
• MI, mdi* Henrique Cardoso, referindo-se justamente a essa dificuldade, ob-
M I V A I Mill lazào, referindo-se à questão agrária e às dificuldades para reali-

Ir uma reforma agrária, que “as propostas não passam porque existe
• maioria que é contra. E não é só isso. Estas questões não se politizaram
M •diurnlr; não dividem. Não só não passam nas votações, como não chegam

ma ocorreram em 1985 e 1986, em vários pontos do País, e novamente em « •« i dlvinnrcs de águas, não estão no centro da discussão”. Cf. Fernando
1989 e 1990. Ml miqur Cardoso, A Democracia Necessária, Papirus, Campinas, 1985, p. 35.

III
92 A ALIANÇA ENTRE CAPITAL E PROPRIEDADE DA TERRA

exceção de grupos minoritários na classe média e numa


parcela da Igreja. De qualquer modo, em 1985-1986, o nú¬
mero de membros da Igreja a se impressionar com a situa¬ SEGUNDA PARTE
ção no campo estava claramente reduzido em relação aos
membros da hierarquia que em 1980 estiveram dispostos a
reconhecer a legitimidade de um novo regime de proprie¬
A IGREJA:
dade em gestação na experiência social dos conflitos cam¬ O USO TRANSFORMADOR
poneses. A aliança estruturalmente básica entre capital e DA MEDIAÇÃO CONSERVADORA
terra, promovida pelos militares, debilitou a eficácia dos
movimentos sociais que poderiam reivindicar reconheci¬
mento e ampliação de direitos sociais em favor das popu¬
lações pobres, especialmente no campo64. Essa aliança en¬
fraqueceu a sensibilidade de amplos setores da sociedade
brasileira, basicamente porque anulou a vulnerabilidade po¬
lítica das classes dominantes ao anular a possibilidade de
um conflito de interesses tão radical quanto o que poderia
existir no conflito entre a racionalidade do capital e a ir¬
racionalidade da propriedade fundiária.

fi4
As mais consequentes movimentações em favor da reforma agrária têm sido
as do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Foi ele que
deu sequência organizada às ocupações de terras iniciadas em 1969, na fron¬
teira com a Argentina. Foi ele que organizou as grandes manifestações em
favor da reforma agrária em 1985 e 1986 e novamente em 1989 e 1990. O
esvaziamento do movimento pela reforma agrária, em 1986, durante o go¬
verno Sarney, deu-se simultaneamente ao esvaziamento de outros movimentos
em distintas regiões do País, como o dos seringueiros do Acre. Ali os serin¬
gueiros incorporaram, como técnica de luta, o empate, isto é a ocupação dos
acampamentos de peões das grandes empresas, que trabalhavam em desma-
tamentos, seguida de sua expulsão, às vezes violenta. Essa técnica foi desen¬
volvida originalmente por posseiros do Acre, em maio de 1976, quando um
grupo deles fez um empate na BR-236. Em outubro do mesmo ano, um grupo
de mais de cem posseiros gaúchos, também no Acre, atacou e impediu o
trabalho numa derrubada em fazenda de empresários paulistas (O Estado de
S. Paulo, 30 de outubro de 1976, p. 14). Os empates se apoiavam no Decre¬
to-Lei n.° 4.841, de 17 de outubro de 1942, quando Getúlio Vargas, já em
função da economia de guerra e por motivos estratégicos, proibiu a derru¬
bada de castanheiras e seringueiras no território do Acre (O Estado de S.
Paulo, 22 de junho de 1980, p. 60). Em 1980 os empates se generalizaram
como técnica de luta, agora dos seringueiros. Só então começam a aparecer
as lideranças sindicais de Brasiléia e Xapuri na organização de empates, que
teriam, entre outras, duas vítimas muito conhecidas: Wilson Pinheiro e Chico
Mendes, ambos assassinados.
Capítulo III

< .mi|Joneses e índios na renovação da


« 1 1 Kill ação pastoral da Igreja no Brasil*

l IM KXAME atento do comprometimento da Igreja


i i «III povos indígenas e as populações camponesas mostra
í
• |«i. questão agrária e suas peculiaridades na sociedade
i

......... .
l-t * il< lem afetado, mais profundamente do que se imagi-
ii .1
M» i mudanças nas concepções e na orientação do seu
n '!•illin pastoral. E compreensível que seja assim. De fato,
In .1 Igreja diz que fez opção preferencial pelos pobres,
• logicamente necessário qualificar esses pobres. E, ao

......
i * • In, descobre-se .que o lugar estrutural dos diferentes po-
Im .
diverso cm cada caso. As consequências da ação sobre
I K < k*s de vida dos camponeses são diferentes das con-
1 1 1 1 1 ii < I.I , da ação sobre as condições de vida dos operários
1
d i l,il H K a. A ação sobre as condições de vida dos índios tem,
n M ilmenle, diferente consequência da ação sobre as condiçõ-
d« vida dos camponeses. Com isso quero dizer que os
• I* in i la ação pastoral nesses diferentes “lugares estruturais”

I indi m M I socialmente mais profundos ou menos. Podem


.
d. i a , ideai 1 1 ansformações (e reações) em cadeia muito além
• I • • qii< se pode esperar (e, mesmo, desejar) do trabalho
4
1 1 nil a al.
..... f Jan sc 1 1 ata aqui de supor que a ação da Igreja esteja
.ai u mente orientada pelo cálculo prévio do que dela

l'nl ilii ai l« > <>i iginalmente com o titulo de “Campesinos e indios en la renova-
inn a. I,i orieiitación pastoral de la Iglesia en el Brasil”, in Peter Hunermann
1 1 MI i ( .u'los Scannone,
SJ (eds.), América Latina y la Doctrina Social de la
I rli » /. / idino V, F.diciones Paulinas, Buenos Aires, 1993, p. 237-84.
95
96

vai
CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO

decorrer, orientando pelo presumível resultado a deci¬


* . ...... I AÇÃO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL

l< uni |iu.i on a sua diocese, em caso de conflito, imediata-


97

MM Mh uni número desproporcional e poderoso de forças


são de agir ou deixar de fazê-lo. Esse, certamente, não é
MIS c militares se levantem contra eles67. E que, com
o caso. Mas se trata de constatar que uma pastoral espe¬
cífica pode incidir sobre pedras angulares da estrutura so¬ 1
" ilid.idr, o mero apoio moral a essas vítimas se traduza
i M M 1 1 1 .1 1 ai n ente num confronto entre a Igreja e o Estado
cial e, consequentemente, afetar interesses sociais (e políti¬
Mil no mínimo, entre a Igreja e o Exército68. A simples
cos) poderosos. É o que comprovadamente ocorre com esse ,

trabalho pastoral. De fato, como se verá ao longo deste I» ll 1,1 Ir uma tribo indígena vitimada por práticas geno-
(

texto, os camponeses e os índios do País não vivem em • lil i\ i miio ocorreu abundantemente a partir da segunda
mera situação de pobreza. Vivem um doloroso processo MM Li di dos anos sessenta, tem sido imediatamente decifra-
de exclusão social, que se materializa principalmente na • I» mino conjuração internacional (e subversiva) couth's
expropriação territorial e seus efeitos sociais dramáticos. MlM 1 1 Nsrs nacionais do Brasil, especialmente se feita por
Essa opção da Igreja se reflete sobre a própria ação pas¬ MM • i • *11*11 io estrangeiro.
toral e sobre as concepções que a norteiam60. • i pei spectiva, é necessário rever criticamente algu-
Um trabalho de promoção da justiça entre camponeses MM*i mcepções utilizadas com excessiva facilidade para
e índios implica, necessariamente, optar por suas deman¬ plh ai o envolvimento dos bispos e dos agentes de pas-
das de sobrevivência e, consequentemente, opor-se aos in¬ »l ii. is di! iceis situações dos camponeses e dos índios.
teresses dos que os expulsam de suas terras, sempre por lais concepções são estratégicas e comprometem
meios violentos. Isto é, implica opor-se aos interesses dos '"•li i explicação do processo histórico da Igreja. O con-
grandes proprietários de terra. Ora, no Brasil, a proprie¬ • ui" inais comum tem sido o de “conversão”69. Por meio
dade fundiária é uma das bases essenciais do sistema eco- In a lácil explicar que um bispo “conservador” se tor-
nômico e, sobretudo, do sistema político00. Nenhum pacto llff a*» vc/rs quase subitamente, um bispo “progressista”.
político foi feito neste País, desde a Independência, em Iftln ( um bispo rotineiramente devotado a uma prática
1822, até a recente Constituição, de 1988, que não fosse
i Mi mi Pedro Casaldáliga, “Operação da Polícia Militar e outras forças ar-
I
ampla concessão aos interesses dos grandes proprietários Mimliii IM Area da Prelazia de São Félix-MT”, in Cadernos do Ceas, n.° 26,
de terra. A estrutura do Estado brasileiro está em parte •
I * III i » de Estudos e Ação Social, Salvador (Bahia), agosto de 1973, p. 57-65;
constituída com base nesses interesses. Por aí se pode com¬ IMi .min Kfzcndc Figueira, A Justiça do Lobo (Posseiros c padres do Araguaia),
i • ""|"ilii, Vozes, 1986, p. 73-93; Helena Salem (org.), A Igreja dos Oprimidos,
preender que, quando um' sacerdote, uma religiosa ou um Art" P iiiln, Editora Brasil Debates, 1981, p. 139-41 e 194-96.
bispo sai em defesa dos camponeses que compõem a sua • I Mi nu Pedro Casaldáliga, Yo Creo en la Justicia y en la Espeianza, Bilbao,
L *•I* • de Brower, 1975, p. 64-6, 71, 91-9.
65 ...a conversão da Igreja ao evangelho e sua capacidade de evangelizar só
« I bi.M d Uriel lies concepções de “conversão” têm sido utilizadas para explicar

podem realizar-se na medida em que ela mesma se converte no caso ao —
posseiro, se solidariza com ele participando de sua luta”. Cf. Cláudio Perani,
•H
•|
imiiMuças na orientação pastoral da Igreja, no Brasil. Uma de origem leiga
*lii ii i, poderia ser definida como conversão pelo processo social, os bispos

“Bispos da Amazônia: a conversão ao posseiro reflexões teológico-pastorais
sobre o encontro das Igrejas da Amazônia Legal em Goiânia”, in Cadernos
p 1 ""l«i .i orientar sua ação pastoral pela suposta lógica do próprio processo
liiMiiiiin (Helena Salem, ob. cit., p. 212). Outra, de origem teológica e pas-
*»M iil, cniKebc ii, de modo mais consistente, como conversão ao camponês,
do Ceas, n.° 39, Centro de Estudos da Ação Social, Salvador (Bahia), setem¬
im •nleiidlincnto de que “toda a palavra de Deus e sobre Deus chega a nós
bro-outubro 1975, p. 24.
66 Cf. Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil, Rio de Janeiro, Zahar •III ilVlS di is liomens e se manifesta no seio de sua experiência histórica”.
Editores, 1975, passim; Octavio Ianni, Origens Agrárias do Estado Brasileiro, São
Paulo, Brasiliense, 1984, esp. p. 192 e ss.; Octavio Ianni, 0 Ciclo da Revolução

Ni M.I niiii cpção, a relação social é lugar teológico “lugar em que a exis-
nu " I minima se abre à revelação de Deus” (Cf. Claudio Perani, cit., p. 24-5).
Burguesa, Petrópolis, Vozes, 1984, esp. cap. 1 (“Monarquia e oligarquia”). " "" " i* ''lo. as referências críticas dizem respeito à primeira interpretação.
98 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO IM MH II U I M \< ) PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 99

sacramental, em determinado momento, passa a pôr em iniiiu pode mobilizar a solidariedade com a vítima, e
ui I.I;

prática uma pastoral social e popular. Rigorosamente fa¬ II |M mil n O] )l (‘SSOr. É ela que impõe a necessidade de uma
i

lando, essa concepção não dá conta do processo real que MM I. I iiih .io da ação pastoral, o resgate do sentido profundo
leva o bispo, bem como o sacerdote e a religiosa, a assumir . poih IKO permanentemente contido, como possibilidade
ol'|i 1 1 v a e necessidade, no trabalho pastoral, com os excluí-
corajosamente a defesa da vida de um grupo indígena ou
de uma comunidade camponesa vitimados pela sua remo¬ • !•• i niii as vítimas.
ção ou pela sua expulsão violenta das terras que ocupam. ji i( com a hipótese dessa coerên-
lexto, vou trabalhar
E possível observar que bispos chamados de “conserva- i la, omo premissa da ação pastoral. Como princípio que
(

dores”atuem , em certas circunstâncias, de maneira “pro¬ | M d i « a por que, em certas circunstâncias sociais e históri-
I

gressista”. Como foi possível observar que apenas quatro I ilN, o bispo, independentemente de sua biografia social,

bispos em uma conferência episcopal de mais de trezentos illvn silique a sua ação pastoral para ultrapassar o âmbito
não votaram a favor do documento Igreja e Problemas da .. MINCIK ionalmente definido da sua rotina e alcançar um
Terra, que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil unhíto que pode ser concebido como histórico por suas
(CNBB) redigiu e anunciou em 1980: um documents con¬ . < mseqiiências.

siderado muito avançado dentro e fora da Igreja. A compreensão do modo como se tem dado a concre-
Essas concepções distorcem completamente o sentido da 1 1/ iição da doutrina social da Igreja na ação pastoral, entre
ação pastoral e de sua relação com as condições sociais e • .imponeses e índios, no Brasil, depende, como se verá,
históricas da qual resulta. Além do mais, deixam de lado (I.i referência constante à história social e política em que
as mediações (inclusive a mediação institucional da Igreja «.I.i ganha corpo e sentido. Muitas vezes os documentos,
e da religião) que tornam peculiar a relação de sentido p ( > i meio dos quais essa doutrina se expressa, têm como
entre a posição social (e institucional) do bispo (e do agen¬ leferência histórica a realidade social dos países do Velho
te de pastoral) e sua ação, mesmo na génese de princípios Mundo, como é o caso da Rerum Novarum70. Daí a impor-
doutrinários, que depois se fixam em textos de interpreta¬ lância da ação e da prática na atualização da doutrina nos
ção e orientação coerentes e articulados. países pobres e periféricos. E quando a Igreja passa do
Elas sugerem, equivocadamente, que o bispo e os agentes temor ao novo para o temor ao velho que fica nítida a
religiosos atuam no sentido da História quando se tornam constelação de valores que a orienta em relação aos pro¬
incoerentes; quando, supostamente, rompem com uma li¬ blemas da transição social, da mudança e da modernização.
nha de atuação e interpretação da sua prática e do lugar Esse é um tema forte na “Constituição Pastoral sobre a
dela no mundo. Entretanto, a interpretação dessas aparen¬ Igreja no Mundo Atual” (Gaudium et Spes), de 1965, não
tes descontinuidades e rupturas, desses aparentes saltos e por acaso a principal referência nos documentos que assi¬
“conversões”, ganha em pcrspectiva e riqueza de compreen¬ nalam a reorientação do trabalho pastoral no Brasil71.
são quando considera que o trabalho pastoral, numa so¬ A história do envolvimento da Igreja na questão agrária
ciedade convulsionada como esta, incide cliretamente sobre no País é, pois, a história das contradições sociais que a têm
contradições sociais, sobre desencontros históricos, ruptu¬
ras profundas, realidades sociais cujos ritmos não con¬
70 Cf. Ralph Della Cava, “Igreja e Estado no Brasil do século XX”, in Estudos
vergem. Numa situação social assim, a coerência ética e Cebrap, n.° 12, São Paulo, abril-junho 1975, p. 11.
religiosa é que pode mobilizar a denúncia, e não mais a 71 Gaudium et Spes, n.° 66.

_ I
f:

100 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO


" • 'I'll1 IMTAÇÃO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 101

mobilizado, particularmente nos últimos quarenta anos, em |ii MI I.IIIKK ;IO emblemática: “Antecipai-vos à revolução”. A
favor dos pobres da terra, os camponeses e os povos indíge¬ • * | M >i 1'uibilidade pelo rumo das transformações sociais, já
nas. E, igualmente, a história das respostas pastorais que a lm viuveis, era concebida, portanto, como sendo não só

... . .
Igreja tem formulado para explicitar a sua opção preferen¬ ili i pnvmio e dos proprietários rurais, mas também da
cial pelos pobres. E é, por fim, a história da compreensão 1 1 * » • | i < Liberia a eles “desproletarizar o operário dos cam-
que a Igreja desenvolveu não só da situação dos pobres do I ii I*I I )« um lado, através da reforma agrária e, de outro,
*

campo, mas da sua missão (e não só da sua missão entre eles). ivcndo o aparecimento de lideranças entre os traba-
No limite, é, além de história de uma prática, uma história Mi MIMH 1 1 irais, para que o homem do campo pudesse “de¬
de idéias. li mli i se contra as perigosas seduções daqueles que enxer-
H mi uclc um caldo de cultura fecundo para o bacilo das
iiÿll »IM M*S c das revoluções violentas”. O título do docu-
1. A Igreja em face das oligarquias MH Mln episcopal esclarece as condições em que a Igreja
i >• I n i aceitar a conveniência da reforma agrária: “Conos-
A preocupação da Igreja com a questão agrária começa • >i m nós ou contra nós se fará a reforma rural”.
II

a expressar-se, de modo mais consistente, por uma carta íi li .msparentes as motivações anticomunistas da posi-
pastoral do bispo de Campanha, uma diocese do interior • •».• ululada pela Diocese de Campanha, num estado da
de Minas Gerais, Dom Inocêncio Engelke, de setembro de l* il» i .i* ào brasileira, o de Minas Gerais, nitidamente lati-
1950. Ela resultou de um encontro de 60 párocos, 250 fa¬ Imidi .la c politicamente conservador —um dos grandes re-
zendeiros e 270 professoras rurais72. Nesse encontro não
esteve presente nenhum trabalhador rural, nenhum cam¬
.....
*1 • i h * . políticos das oligarquias rurais. A motivação antico-
•MM m ia perdurará, ainda, por longo tempo na pastoral

...
ponês. Foi feito sob orientação e inspiração da Ação Ca¬ I Mas esse, certamente, não é o seu aspecto mais im-
tólica Brasileira. A carta pastoral de Dom Inocêncio é de piii lanlc Não é por ele que o documento se filia à tradição
teor nitidamente conservador. Sintomaticamente, o docu¬
mento surgiu poucas semanas após o Partido Comunista
do Brasil ter lançado um manifesto em favor de uma re¬
.. ..
• ••li -tv adora. E sim pelo fato de se basear na premissa da
idade social da vida comunitária rural: o documen-
d. 1 1 a para os problemas do êxodo rural (que, na ver¬
forma agrária radical. O documento daquele bispo é sig¬ dade, piejudicava os fazendeiros, privando-os de mão-de-
nificativo porque expõe, sem procurar disfarçar o contexto ola • l» ii ala c farta), uma motivação que se manteve nítida
ideológico, idéias e preocupações que se manterão no cen¬ •ii ",
documentos mais recentes do episcopado. Assinala,
tro das inquietações da Igreja nas décadas seguintes como
....... . .
IMMIIH MI. o temor de que a Igreja perdesse o rebanho para

......
estas: “os dias confusos em que vivemos”, o êxodo rural st as, em consequência dos efeitos socialmente
e o despovoamento do campo, os efeitos desagregadores • H M }•adores da vida urbana sobre os migrantes.

da vida na cidade, o perigo do comunismo e a agitação


política no campo. A ação da Igreja ganhava sentido numa .. Ni* 1961, ano do golpe militar contra o governo cons-
nal do presidente João Goulart, a Igreja evoluiu para
• poshào desenvolvimentista, na sua interpretação da
72 Cf. Dom Inocêncio Engelke, “Conosco, sem nós ou contra nós se fará a re¬ qui a a» agi ária. Essa posição foi mais nítida em relação
forma rural”, in Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Pastoral da Tetra, ill Ml bispos do Nordeste, que, durante os anos cinquenta,
São Paulo, Edições Paulinas, 1976, p. 43-53.
I i II « a i| MI am da elaboração de uma política governamental
102 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO "' "NI NI AÇÃO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 103

que promoveria a direta interferência do Estado na econo¬ • • ii .ilulhudores urbanos dispunham de uma Consolidação
li I ris do Trabalho, de 1942, que sistematizava as leis
mia da região73. Teve em vista a aceleração da industriali¬
zação e do desenvolvimento económico, mediante a con¬ " ib.ilhisias postas em vigor após a Revolução de 1930. Os
H ilulli.ulores rurais não tinham direito à sindicalização
cessão cie incentivos fiscais às grandes empresas privadas.
linn Inibam seu relacionamento com os proprietários de
Em consequência, foi criada uma agência de desenvolvi¬
mento, a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento ••MI K guiados obrigatoriamente por um contrato escrito
do Nordeste), inspirada na experiência da TVA (Tennessee d» n.iballio. De seu lado, o Partido Comunista começaria
Valey Authority), que nos anos trinta promovera o desen¬ • "ig mi/ar associações pré-sindicais, com vistas a obter o
•" luiiiio reconhecimento legal, pelo Ministério do Tra-
volvimento do vale do Tennessee, nos Estados Unidos da
1 "li"* quando fosse aprovada uma lei do trabalho rural.
América, com base em grandes projetos governamentais.
O Nordeste, e sua pobreza emblemática, acabou polari¬ l"!'ih/ação idêntica começou a fazer a Igreja. Aí ficou
• In" que as motivações extra-eclesiais pesaram decidida-
zando as posições e orientações da Igreja, durante todo o
período que foi até 1964. Ali, nos anos cinquenta, o pro¬
blema do êxodo rural para o Sudeste do País (Rio e São
Paulo) tornou-se intenso, despejando nas grandes cidades M
I M .....
...
ui. | MI a que os bispos de orientação conservadora, e

anticomunista, se vissem ativamente envolvidos


• MI gam/ação de sindicatos de trabalhadores rurais74. Fato
massas de migrantes, que se submetiam a condições mise¬ qm < bot ava com os interesses da maioria dos grandes
ráveis de vida. Outra motivação, para essa polarização, foi I
Itwi'iM * i i os, habituados a levar a exploração do trabalho
*

a de que as grandes fazendas começavam a expulsar seus im limite máximo, exercitando uma relação de poder
Ml h il. imune à intervenção da Justiça. Não por acaso,
trabalhadores residentes, particularmente na área de cana-
de-açúcar, os chamados moradores. Na mesma época, o Par¬ jfiHlD MI militantes comunistas e, mais tarde, até militantes

.....
tido Comunista, com êxito, fazia proselitismo nas áreas ru¬ » »IM|I. MS. definiram tais relações sociais como relações feu-
rais da região, principalmente em Pernambuco. Em 1955, llrilfl, embora não o fossem.

.........
'•d. 1 1 lo concreto e eficaz da militância comunista no
fora do controle do Partido, mas com seu apoio, começa¬
III ui. d e, particularmente, o desafio da ação das Ligas
ram a desenvolver-se as chamadas Ligas Camponesas, que
* ..is, de inspiração socialista e radical, levou a Igre-
preconizavam uma reforma agrária radical, expropriatória,
I» H iim.i ,iç;io pastoral que veio a se materializar naquilo
diferente da reforma preconizada pela Igreja, gradual e
baseada na justa indenização aos proprietários para isso 1 M .
1 1 1*'|< t hamamos de trabalho de base. A natureza polí-
||i »« d., (onfronto envolveu-a numa experiência social nova
desapropriados.
Rapidamente, a Igreja, de um lado, e as Ligas e os co¬
munistas, de outro, entraram numa disputa ideológica, no
• i. imv.tdni ;i no trabalho direto com as comunidades ru¬

I MI* I v,.i experiência ressocializou os agentes religiosos.


esforço de sensibilização, mobilização e organização dos NU anho que práticas e concepções sociais, princi-
trabalhadores rurais. De ambos os lados, a luta se faria em |MIIIM ui. das Ligas Camponesas, tão temidas, reapareces-
ui II. i Nrgimda metade da década de setenta, no modo
prol da reforma agrária e de uma legislação que regulasse
as relações de trabalho rural. Até aquele momento, apenas
NI lavelas do Rio de Janeiro, que abrigaram muitos dos migrantes
'I M

II»'* *li .i Declaração dos Bispos do Nordeste, de 1956, dizia que “tor-
*i in. n,
73 Cf. Comissão Brasileira Justiça e Paz, CNBB Cf Nordeste, 1956-1984, Rio de II M *MII 1,.| .is favelas cariocas focos de perigosa agitação social, sobretudo
i PH|i|iu»ii,An comunista”. (Comissão Brasileira Justiça e Paz, cit., p. S3).
Janeiro, Libeijuris, s.d., passim.
104 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO "Mi l AC AO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 105

de ação dos agentes de pastoral no campo. Portanto, quan¬ I *ti i |M»liii(;i e do absolutismo monárquico. De outro lado,
do a possibilidade de uma revolução agrária, de inspiração |MI lido do que, nessa época, era reconhecido como povo,

......
materialista e de esquerda, se apresentou no Nordeste, nos Into I d. is oligarquias rurais, cujo poder estava nos muni-
anos cinquenta, a motivação anticomunista da Igreja des¬ IIJMON i sc constituía como poder local. Quando as posi-
pertou-a, em parte, para aprender com seus adversários a II H polnicas assumiram conotação ideológica mais clara,

fazer o que é hoje chamado de “trabalho popular e de i Independência, os adeptos do absolutismo e da cen-

base”. o »li H .10 política (contra a autonomia das províncias e dos


A ação da Igreja entre os camponeses, a partir de 1950, •»" •! ii' ipios), no geral, constituíram-se num partido conser¬
colocou-a, por implicação, contra os interesses dos grandes \ li li »! ve. oligarquias, que se opunham à centralização po-

........
.....
proprietários de terra. Mesmo que, ideologicamente, como Illli I iii defesa do seu próprio poder local, tenderam a
é claro na carta pastoral do bispo de Campanha, ela en¬ • o "ii'ii se num partido liberal. Liberalismo, porém, per-

tendesse que era deles aliada. Muitos pesquisadores tam¬ ii" ido | M >I relações de trabalho escravistas e que tinha

bém pressupõem que a Igreja era tradicionalmente aliada social grandes proprietários de terra70. Não era,
dos grandes proprietários de terra e que por isso não po¬ |IO|M «• mesmo liberalismo que ganhara sentido na Europa,
dia facilmente assumir um compromisso com os campone¬ • i Kevolução Francesa. Nessa polarização, a Igreja se
ses. Na verdade, a Igreja era herdeira de uma visão clc » M"I nun de preferência com a corrente conservadora,
1

mundo que vinha do tempo da escravidão e que foi, aliás, 1*1 « um o centralismo político e (até a proclamação da

um dos pilares do pensamento conservador no Brasil, a Mi |till di« a) com as tendências absolutistas da monarquia
visão de que o mundo da fazenda era um mundo unitário hi eil. n,i Mesmo depois que a República foi proclamada,
e destituído de contradições e conflitos. O bem comum i li i I MM1 1, ,i orientação geral da Igreja continuou sendo de

ainda era por ela entendido como o bem do fazendeiro c li ndi li. i.i politicamente centralizadora e absolutista.
do seu agregado, assim como no passado entendera que I I lim do Império coincidiu com o início da romaniza-
o bem do senhor era também o bem do escravo. Em gran¬ i li i 1 1,1 Igreja Católica, ao mesmo tempo em que esta se

de parte por isso é que interpretava as tensões e conflitos ÉHMiitva do Estado76. Enquanto a ala civil da República
dos anos cinquenta e sessenta como sendo, necessariamen¬ till •I* i I,I o poder local e, portanto, as oligarquias políticas
te, resultado de uma agitação que vinha de fora desse mun¬ In lutei i o i , .i romanização assegurava à Igreja a permanên-
do, trazida pelos comunistas. l hl l IM iil nação das concepções e orientações centraliza-

Não só por ser menos proprietária do que parecia, a dm ii > que, no plano político, tinham sentido no Estado
Igreja não tinha seus interesses necessariamente alinhados lull. e IMO no Estado federativo, que a República implan-
com os dos grandes fazendeiros. Até o final do Império, till l‘"i t.mlo, as oligarquias políticas brasileiras evoluirão, nos
em 1889, bispos e sacerdotes eram funcionários da Coroa » seguintes, numa direção oposta à da evolução da Igreja.
e a Igreja estava numa situação razoavelmente similar à do
Exército. Essa constatação é essencial para entender-se mui¬ II M'luimniln Eaoro, Os Donos do Poder (Formação do Patronato Político Brasi-
tas das posições assumidas por ela, no País, ao longo da frli.'l • a ViUni Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cit., p. 59 e ss.
História, e ainda nos dias de hoje. A rigor, desde a Colónia,
houve aqui dois grandes partidos fundamentais. De um
lado, o partido do rei e, portanto, o partido da centraliza
......
I' ilj.li I i. ll.i ( lava, Miracle at Joaseiro, New York, Columbia University Press,
lont I* '•> V Pedro A. Ribeiro de Oliveira, “Religião e dominação de classe:
I i< imunização’”, in Religião e Sociedade, n.° 6, Rio de Janeiro, no-
»i»!.».. dr 1980, |>. 167-87.
V

106 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO

A República não eliminou as tendências políticas abso¬


......
..... .
II I AÇÃO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL

lugares e simbolicamente centralizada na figura do


107

lutistas e centralizadoras, que passaram a ser corporificadas Ao i bispo da Bahia (quando, na verdade, a capital, desde
predominantemente pelo Exército. A política brasileira as- H *M I tilo XVIII, já tinha sido transferida para o Rio de
sumiu, então, uma dinâmica pendular, oscilando entre pe¬ IWlin), começa a deslocar-se para o cardeal do Rio de

......
....
ríodos de centralização política e ditadura (militar ou de ti u lio, Dom Sebastião Leme78. A Revolução de 1930, ao
hegemonia militar, como na recente ditadura de 1964 a i •I •1 1 1 .M i .i constituição do Estado forte e centralizado, cor-

1984) e períodos de abertura política e relativa democracia, <\ ;i partir de 1937, de inspiração fascista, viabi-
cujo discurso liberal, porém, se apóia numa base social lumi um reencontro da Igreja com o Estado, oficialmente
agrária, latifundista e oligárquica. A qual viabiliza reformas •» |« •i nlns desde 1889. O pacto político entre o presidente
sociais em benefício das populações urbanas, mas resiste r o cardeal Leme deu à Igreja um reconhecimento
ferozmente às reformas sociais que beneficiem as popula¬ |H» • • • •In ia! e, ao mesmo tempo, assegurou-lhe benefícios
ções rurais. A sociedade brasileira ainda está vivendo esse f|H» i n ililavam sua ação no sentido de uma hegemonia
processo. E não é surpresa que algumas reformas sociais
que beneficiaram as populações rurais, nos últimos pouco
mais que cem anos, tenham sido levadas adiante justamente

lii*i

i
.....
vir
sobretudo através da educação e do ensino re-
" I"i *, 1 1 a.
escolas públicas79.
IUS
momento, para assegurar sua própria legitimida-
pelas correntes conservadoras e autoritárias: destaco, espe •it I lado brasileiro fez, também, um pacto de silêncio
cialmente, a abolição da escravatura, em 1888, quando es¬ min < m giandes proprietários de terra, após um período
tava no poder o Partido Conservador77, e o Estatuto da iMi.nl di repressão contra certos setores das oligarquias,
Terra, que viabilizou tímida reforma agrária de natureza u .
I.ilmcnte no Nordeste. Esse pacto implícito limitou a
estratégica, a partir de 1965, quando estavam no poder os M H M I M uri H ação das relações de trabalho unicamente à ci-
militares. Convém salientar que a tendência conservadora d.d náo a estendeu ao campo, bloqueando, assim, o
e, nela, especialmente os militares, concretizou, nos seus HHJMIIO da sindicalização dos camponeses e dos trabalha-
períodos de governo, políticas económicas industrializado- ilm m i ui ais. Ao mesmo tempo, a representação corpora-
ras, desenvolvimentistas e modernizadoras, baseadas, ao MVH IM ( .miara dos Deputados, em 1934, e a supressão
mesmo tempo, em acentuada redução da liberdade política. .1 * li unes, com a ditadura, em 1937, bloquearam o voto
A evolução particular da Igreja, no Brasil, em direção a i i "l li, que era um dos mecanismos fundamentais de so-

um modelo de organização centralizada e, ao mesmo tem¬ MH v Im IIC ia das oligarquias, através do clientelismo políti-
po, em direção a uma concepção de modelo político ba¬

......
» 11 \ Ig, reja não se insurgiu contra esse pacto, que, aliás,
seado na centralização da autoridade e na natureza corpo¬ H »" |»n |tidicava seriamente os interesses dos grandes pro-
rativa do Estado ganhou sentido com a Revolução de 1930, |M !•i.ulns de terra. Sua ação, nesse momento, mostra que
que levou Getúlio Vargas ao poder. Nesse momento, a Igre¬ MM rpçoes politicamente centralizadoras estavam so-
ja, no Brasil, estava passando por transformações internas • IMIIIM mi apoiadas na classe média urbana e, nessa época,
importantes. A autoridade, dispersa pelos bispos de dife ||n MH.inio direitista dessa classe social.

77 Sobre a dinâmica do relacionamento entre o Partido Liberal, propositor d< M


' ' •' 'Ipli Delia Cava, “Igreja e Estado no Brasil do século XX”, cit., p. 13.
inovações, e o Partido Conservador, seu executor, no Império, cf. Paula Bei *M Ihdn M. |l 18,
guelman, Formação Política do Brasil segundo volume, cit., p. 36-8. I I \ M 1 1 H N lines Leal, ob. cit., p. 248-9.

I) I
108 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOV\ÇÃO

A concluta política cio cardeal Leme em relação ao go¬


verno Vargas, na verdade, contraditoriamente, fortaleceu a
Igreja e criou as bases da sua independência política, que
teria grande importância nas décadas seguintes, ao apro¬
....HA «MUI N I AÇAO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL

lln • I I inbiça e do afã de lucro dos fazendeiros. Portanto,


109

i' Millado de disposições subjetivas dos ricos. Desse


HIIHIH, d desenvolvimento capitalista era bom; má era sua
ln \ Igreja se comprometia com o desenvolvimento

fundar a desvinculação da Igreja da tradição oligárquica, HIMIMIUICO e não com o retrocesso a um estágio da His-
MHII di. minado pelo paternalismo das relações sociais no
sua conduta independente e, sobretudo, sua sensibilidade
iniiiini da grande propriedade, que era a realidade de
para as classes e grupos sociais excluídos do processo po¬
mmi r, legiões do Brasil. Ao contrário do que acontecera
lítico. Ao mesmo tempo, sua filiação à tradição conserva¬
dora, absolutista e centralizadora, por oposição à tradição • m muros países, a Igreja adotava uma perspectiva moder¬
liberal, oligárquica e latifundista, a alinhou com as concep¬ na de identificação mais com a força transformadora do

......
ções que mais adiante seriam desenvolvimentistas e mo- •| Ml ill do que com a força conservadora da propriedade
dernizadorassl. E, também, com concepções a respeito da da n M I Ainda que tal diferença estivesse atenuada e re-
responsabilidade social cias elites, inclusive dela própria.
Essa tradição sempre cultivou idéias, que vêm do escravis¬
mo, de que o povo deve ser tutelado (e protegido) porque
socialmente incapacitado para decidir sobre seu próprio
destino82.
• ........
M"l'di pelas concepções morais do mundo patrimonial e
1 '»i
pii ilisia, cujo sujeito é a pessoa e não o indivíduo,
•• fu óes políticas fossem concebidas como relações de
Mde e não como relações de poder.
I a mescla contraditória de padrões e concepções de
Ht M • 1 1 u I Idade, foi justamente o fator que aguçou a sensibi-
lUliidi elira da Igreja e definiu os critérios políticos da
M “• pastoral. Mais cedo do que outros setores da socie-
2. Mudanças nas relações de trabalho rural e seus de¬
safios pastorais d.nl» a Igreja se deu conta, razoavelmente, e logo, das
dl!» o in as históricas profundas que havia entre terra e ca¬
Essas referências são fundamentais para explicar não só pital. eixos económicos opostos na mediação das relações
o progressivo envolvimento da Igreja na questão agrária, lais e na constituição da sociedade. Por isso, não lhe
a partir dos anos cinquenta, mas também para explicar o lot «hl li il preconizar, num primeiro momento, o desenvol-
Mm iiin < apilalista e o progresso material como instrumen-
modo como se deu esse envolvimento.
>

A primeira constatação que a Igreja fez foi a de que a 11 1 *i da pmmoção humana e da justiça social. Nesse diag-
distribuição dos bens, em particular a terra, era distribui¬ MrtMli i imensa miséria das populações rurais, sobretudo

.. ...
HH htidcsle do Brasil, poderia ser suprimida mediante po¬
ção injusta. Ela se fazia segundo a lógica acumulacionista
lui' i de desenvolvimento económico induzido, que que-
do capital e não segundo as regras do bem comum e da
!H • • m as relações económicas existentes e suas corres-
justiça social. Nesse primeiro momento, a miséria dos cam¬
nles relações políticas clientelistas e atrasadas. Estava
poneses e dos trabalhadores rurais aparecia como resulta-
1 1*1111 p.na os bispos e técnicos do governo nos anos cin-
81 Cf. Ralph Della Cava, cit., p. 42. •|‘|# i ii .i que a pobreza era produto de um círculo vicioso,
82 “Os primeiros documentos reformistas caracterizavam-se por um certo elitis- • M| n Hilaridade tinha que ser rompida por uma inter-
mo e supunham que os camponeses eram incapazes de desenvolver uma visão Vi in MI exlerna isto é, do Estado, em oposição às irracio-
crítica da realidade.” Cf. Scott Mainwaring, Igreja Católica e Política no Brasil,
São Paulo, Editora Brasiliense, 1989, p. 74. M ill' I nli do mercado que recriavam as carências sociais.
110 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO * MWNIAÇAO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 111

Nesse sentido, só uma medida centralizadora e antioligár- i U iiims < iuquenta e boa parte dos anos sessenta foram,
quica romperia com as relações de dependência pessoal, MM '•idade, anos de profunda crise nas velhas relações de
desbloquearia o domínio local e regional das oligarquias, twtftdllio implantadas nas grandes propriedades rurais des-
cujo poder e cuja riqueza se nutriam, justamente, do atraso Ml "I Inal da escravidão em 1888, ou até antes. Não era
e da miséria das populações rurais83. H ajiii h an política que operava sozinha no campo. Desde
A criação da SUDENE (Superintendência do Desenvol¬ N flln do escravismo, em 1850, os escravos foram substi-
vimento do Nordeste) se apoiava numa política de incen¬ Miid I li pni amponeses pobres, que mantinham com os fa-
(

•Ml» It 1 1 I IN uma relação de tributo e de


tivos fiscais à industrialização da região e colocava sob con- quase servidão.
trole federal recursos financeiros até então simplesmente » ÍMIH inotlv% o País se dividia em três grandes regiões
i . relações de trabalho que começavam a
transferidos às oligarquias regionais, que, controlando os passar
governos estaduais e locais, os utilizavam na realimentação p"i pin lu ndas transformações. A que começou a mudar

da sua política clientelista. Essa medida era essencialmente pi IIIM lm, nos anos cinquenta, foi a região canavieira do Nor-
centralizadora e antioligárquica, embora posta em prática d.-n» \i, desde o fim da escravidão, o trabalho era feito
por um governo civil e democrático, ele próprio de origem |MM I » » 1 1 1 1 H meses residentes na grande propriedade, que
oligárquica. Nessa perspectiva, a pobreza rural e suas con¬ Mill»' •' mi seus próprios produtos de subsistência. A ta¬
sequências apareciam desde o começo como questão polí¬ Ml 11 1 •• .li » < l.i ct onomia do açúcar provocou uma elevação
tica, isto é, um problema aparentemente económico cuja llll I II II I l« I de dias de tributo que os trabalhadores de-
solução dependia de decisões políticas. p igai aos fazendeiros para poderem continuar cul-
Nesse período, anterior ao golpe militar de 1964, os do¬ II v iim !i i seus alimentos na grande propriedade. Foi o cme-
cumentos episcopais ainda indicam que para os bispos o S" • las lulas sociais. Mais adiante, os proprietários
desenvolvimento económico, e claramente desenvolvimen¬ i » 'MM ,u am a expulsar os trabalhadores da terra
(
para a
to capitalista, orientando-se no sentido da justa distribuição MM (| « 1 MI com cana-de-açúcar, suprimindo os cultivos de
i 1

da riqueza, resolveria o problema da miséria rural e, con- llil» i i* o» ia dos trabalhadores.


seqúentemente, suprimiria a possibilidade do proselitismo I ’m |>i < X esso similar de expulsão começou a ocorrer na
e da expansão comunistas entre os camponeses. E justa¬ IIIMIIM epora, sobretudo nos anos sessenta, nas
fazendas
mente nesse sentido que o golpe de Estado, de 31 de março M(/« »/»» Sudeste, especialmente de São Paulo. De um lado,

de 1964, foi acolhido pela Igreja. As tensões no campo, a IMH |M ilii K .1 governamental de erradicação dos cafezais de
desordem que aparentemente decorria da ação rural dos |MU»I pmdulividade e sua substituição por outras culturas,
comunistas e dos militantes das Ligas Camponesas, impon¬ IflMi • nu H INNAS e mecanizáveis, ou sua substituição por
do aos católicos mais do que um confronto ideológico, |i » a 1 1 M u\. implicou uma grande expulsão de trabalhadores

.....
aparecia aos olhos dos bispos como resultado da agitação IMIII» iih *. nas fazendas. De outro lado, a mecanização e
deliberada das esquerdas e não do agravamento das con- ni » 1 1 / a« .lo de produtos químicos em certas fases da pro-

•..
tradições que penalizavam profundamente os camponeses 11Mi i * * agi ícola,em diversas culturas, inclusive café, tornou
e os trabalhadores rurais. » i vuiia a mão-de-obra residente. As fazendas passa-
fHM. (nci essitar de trabalhadores avulsos unicamente na

83 Cf., especialmente, o capítulo II da Declaração dos Bispos do Nordeste, de


i|n II I I la colheita. Como resultado, os fazendeiros se apro-
1956, in Comissão Brasileira Justiça e Paz, cit., p. 25-6. |iii H mi das terras até então utilizadas pelos trabalhadores
CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO "' 11 N I A(.:A() PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 113
112
I » I H |,l valorização da sua condição de
para a produção de subsistência, passando a utilizá-las em camponês. E por-
Mllhl, |M Li resistência às mudanças que ocorriam, opondo
culturas comerciais.
*» » III i reivindicação de uma reforma
Tanto no caso da cana-de-açúcar, no Nordeste, quanto agrária. Não se tra-
no caso do café, no Sudeste, essas mudanças provocaram I ' I |H > is, de advogar a manutenção das condições de vida
M’Mmh •, Curiosamente, era nessa direção que atuavam,
a formação de uma grande massa de operários da agricul¬
» Mill M in, .is Ligas Camponesas, que por esse motivo, e por
tura, sujeitos a acentuado desemprego sazonal, vivendo em
HHIIM , mirariam, mais tarde, em desacordo com os comu-
condições miseráveis na periferia das cidades do interior.
Verdadeiras multidões itinerantes e desenraizadas numa itólicos e as Ligas preconizavam a reforma agrá-
permanente busca de trabalho fora de seu lugar de mora¬ diferença de que as Ligas lutavam por uma
(ÍIHIMI.I agrária radical, confiscatória, enquanto os católi-
dia. Justamente com eles a Igreja começou a desenvolver
llh l |ti< i iam uma reforma agrária que respeitasse o direito
um dos seus trabalhos mais interessantes, o da pastoral dos
migrantes. •I» |ini|>i iedade, ou melhor, não o modificasse, mediante
|i i a Indm ixação aos proprietários que tivessem suas terras
Na década de setenta, a expulsão começou a chegar aos
seringais da Amazônia. Não foi aí causada por mudanças no (impi ladas84 Os comunistas não descartavam a reforma
ni.i como um objetivo a ser atingido, mas ela era se-
processo de trabalho, mas pela derrubada das florestas
I MIM III 1,1 •m relação à regulamentação
para implantação de grandes pastagens e substituição da das relações de tra-
economia extrativa, de borracha e castanha-do-pará, pela IIHIIMI INIO é, em relação à imposição oficial da contratua-
agropecuária. Foi a consequência da política de incentivos ll»l M I I i • relações de trabalho.
fiscais do governo militar, para que o grande capital se .1 »• lain, em 1963, foi finalmente aprovado o Estatuto do
expandisse em direção à Amazônia. Os expulsos foram hMballiador Rural, que estendeu ao campo muitos dos cli-
ocupando terras que ainda não tinham sinal da presença IHIIM. dos operários da cidade, inclusive o direito de sindica-
||#Mi,an ( !om isso, a luta pela reforma agrária foi seriamente
da grande empresa, para serem expulsos novamente, em
II high la. afetando tanto a ação das Ligas Camponesas quan-
seguida, na espiral de violência que alcançou a região nessa
IM i di MI < alólicos. A possibilidade de uma intervenção legal
época.
ii" dlh ito de propriedade, que viabilizasse a
O período mais intenso dessas mudanças durou cerca justa distribui-
de vinte anos, justamente os anos de crescimento das ten- fcrtn da leira e restaurasse as condições de sobrevivência
soes no campo. A primeira metade desse período, até 1964, IlUii H n a da família camponesa, ficou seriamente comprome-
lida < > Estatuto resolvia o problema de uma parte dos
foi a do confronto entre comunistas e católicos, na sensi
bilização e arregimentação dos camponeses e dos trabalha¬ IÿIIIMIII.K lores do campo e os afastava, esvaziando-a, da luta
dores rurais. ,..l irlonna agrária80. De certo modo, a precedência da
ti (nil HI mil ação das relações de trabalho implicava, objetiva-
A militância católica era diferente da militância comu¬
nista, em muitos aspectos. Os comunistas, até por razões IIIHHr, uma opção política pela grande propriedade empre-
doutrinárias, aceitavam com mais facilidade o destino da apoiada no trabalho assalariado, como a fábrica —um
•iii i il

proletarização dos camponeses, que entendiam ser inevitã


vel, e que estava, de fato, na essência, das transformações fHl|**•"11 Mainwaring, ob. cit., p. 66-77.
que ocorriam. Os católicos, porém, orientavam-se de pre •HM |IIM' ( c-sar Gnaccarini, Latifúndio e Proletariado, São Paulo, Editora Polis,
17/
ferência pela idéia da permanência do trabalhador na tei
|i
I

CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇAO *• S "I'll J I AÇÀO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 115


114

modelo de clara inspiração leninista. Ficava, assim, compro •I» i \ I c • então, como vimos, esses trabalhadores estavam
metida a possibilidade histórica do modelo alternativo o
de uma sociedade cuja agricultura tivesse por base o peque
— MU i f i ill i.ido s em relações de dependência


pessoal, tutela-
l"i pelos grandes proprietários de terra. Ainda que for-
ii 1 1 1 1 1 1 < 1 11 « ' livres, suas relações não eram efetivamente rela-
no empresário agrícola, autónomo. Somente com a ditadura
é que os militares imporiam ao Congresso a aprovação de
| Ml M i null atuais. Baseavam-se antes na subjetividade dos
i • i mli nos, que impunham a seus dependentes
um Estatuto da Terra, que finalmente abriria a possibilidade não só cri-
h iiM-i dr extração do excedente económico, mas também
da reforma, subordinada, porém, a critérios estratégicos c
( IIIHIOS de comportamento político e até interferiam na
nao a critérios sociais (e morais) como queria a Igreja. Poi

...
*•1 1 |H i \ .ida do trabalhador. Dessas relações não podia nas-
ísso, uma reforma que não visava a implantação de
um
1 1 1 o Idadào. Por isso, todo o trabalho de conscientização
modelo social baseado na agricultura familiar.
dl 1 1 ii li/ação permitia converter um quase servo em elei-
Um segundo aspecto distinguiu a ação das esquerdas e
a ação da Igreja na questão agrária nesse período. A Igreja
nao se contentava com uma intervenção económica que
promovesse uma justa distribuição da terra. Estava claro
. • I* >i .i lo de informação política que
pudesse situá-lo
ttjtiiilo da sociedade, na compreensão e defesa dos
II MM Inli i esses.
\ »li‘.pi il as desse período, entre os católicos e as esquer-
que essa intervenção promoveria transformações estrutu
rais profundas, provavelmente disseminando um pequeno • • nnliatn, de ambos os lados, no entanto, fortes compo-
I II porativos. Nas esquerdas, o Partido Comunista,
agricultor próspero, familista e comunitário, como ocorri. i
no sul do Brasil, entre imigrantes italianos e alemães che p MIH tilar, estava empenhado na supressão de relações
gados durante o século XIX, católicos e protestantes. Com * " que ( lassificava, de modo equivocado, como feudais.
1 1 r mpenho maior estava na organização política dos
eles, a Igreja desenvolvera e desenvolvia um intenso train
lho. As mudanças económicas advindas de uma eventual I ‘»l ilh idmes que fossem progressivamente alcançados pela
reforma agrária e a própria luta pela reforma agrária li H+hili/ ii .H> que promovia. Antes que os sindicatos de tra-
nham, no entender da Igreja, que ser acompanhados poi IIIOK •. i ui ais pudessem ser legalmente criados, o Parti-
IIM ptMiiiovia a formação de associações de lavradores, que
uma açao educativa, uma ação de conscientização, como
era chamada. Portanto, o empenho pela sindicalização <
pela reforma agrária ia acompanhado por um empenho
pela alfabetização de adultos e formação de uma conscicn
.....
...
Mui. Mil a Histência legal, mas não podiam atuar como enti-
(

.IíS. As Ligas Camponesas também se organiza-


f Ml M .1. *1*»» i loi ma, como associações civis legalizadas perante
cia sindical86. Embora a questão não estivesse posta ciai a 1 in H M i< i I < x 1 1 . .
lii.' hluile a ansiedade do Partido Comunista para ter
mente pela Igreja, nem pelas esquerdas, de fato, toda a
ação se orientava no sentido da constituição da cidadani a |fllMIioli nao só dos sindicatos locais que viessem a se
entre os trabalhadores rurais. O que basicamente signiíu a pMMl/.ii . mas também das federações sindicais em cada
I IlHll Ma < < m federação nacional. Em grande parte por-
que a disputa pela reforma agrária ocultava, na verdade.
mais do que uma luta pelo poder, uma concepção de po i •"I ess< • meio, o Partido, que não tinha existência

86 Cf. Luiz Eduardo Wanderley, Educar para Transformar (Educação popular, lÿqn
Católica e política no Movimento de Educação de Base), Petrópolis, Vozes, 1 DH I
•• HMh HUM
Ihl ii i HMiÍMx
I |.ii
ia da pobreza, mas sim a politização dessa pobreza que
ilguni setores da Igreja repensassem o seu conservadorismo
esp. parte 2; Emmanuel De Kadt, Catholic Radicals in Brazil, London, Oxfnnl lllll i i i I Scott Mainwaring, ob. cit., p. 56.
University Press, 1970, p. 102 e ss.

V
116 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇAO h \ i •NI M \< ÀO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 117
legal, e que era, portanto, um partido clandestino, passava hl o Exército no campo de batalha, em defesa de suas
ui ui io
a atuar diretamente na política por um meio não partida ( Mill l de justiça e em defesa do que presumiam ser os
jM.ues
rio. Reforçava, assim, a frente política de esquerda, que «HM I llieiios. Na melhor das hipóteses, por esse meio, debi-
procurava respaldar e viabilizar o programa de reformas III ill nu as vc lhas estruturas de dominação, de base oligárqui-
sociais de base que o presidente constitucional, João Gou¬ i »i •oni prometendo o poder pessoal dos potentados locais.
lart, pretendia levar adiante. Portanto, as esquerdas que S I ) 1 1 |.i II.IO apoiou tais movimentos. Ao contrário, comba-
1

riam efeitos imediatos com a mobilização e a organização h M H i porque, na verdade, eram basicamente movimentos
camponesas, no jogo político difícil do período Goulart. lo ll III •s Dessas lutas, os camponeses saíram militarmente
Por seu lado, a Igreja avançara até o ponto de aceitar rc ill ••"l l< is. ai

formas de consequências sérias, como a reforma agrária e I1' onli onto entre os católicos e as esquerdas, para
iii

a sindicalização dos trabalhadores do campo. Era o meio IM»ilill!/,U e organizar os camponeses, politizou as lutas ru¬
de assegurar a hegemonia de líderes e militantes católicos l M*1 l is demandas da população do campo. Isso não quer
nas organizações que fariam a mediação política das de )||#n que tenham desaparecido as formas pré-políticas de
mandas daquele novo sujeito político, que era a inquiet a Wh imlii .IMKI social, pois movimentos milenaristas ainda
massa dos camponeses e trabalhadores rurais. Mais de uma Mil llmesrein no interior do Brasil, entre os camponeses
vez, a Igreja tentou organizar e dominar federações sindi |i i • Na Igreja, nesse momento, os camponeses encon-
i i

cais do campo, para evitar que elas caíssem sob direção if HI nu um aliado, empenhado em construir estruturas de
comunista88. an política, que acabaram transformando-os em su-
Em ambos os casos, a realidade social da base tinha um a !•» dn pmeesso histórico. Essa foi a segunda conseqúên-
importância relativa. Nesse sentido, o mínimo de cidadania I Irt Impi u l.mlr.
que resultava da ação de ambos os grupos era consequent i.i
secundária do confronto maior e mais imediato, a rigor um
confronto político conjuntural, cujo desenlace, qualquer que I M i ii nllito entre o Estado e a Igreja
fosse, poderia ter consequências históricas definitivas. De
qualquer modo, por meio dessa disputa política, que apare 1 1 M"lp« militar de 1964 alterou completamente a situa-
cia com uma forte dimensão religiosa, como confronto entre H* li ti a questão agrária um outro enquadamento. Foi
católicos e comunistas,«entre cristianismo e ateísmo, os cam MMI i i» niaiiva de despolitizá-la. Os militares impuseram ao
poneses e os trabalhadores rurais conseguiram emancipai Nacional uma modificação constitucional que
politicamente suas formas de luta e suas reivindicações so
ciais. Até 1940, as lutas camponesas no Brasil assumiram a
forma de movimentos milenaristas, alguns de grande impoi
_ ntlllM’in a reforma agrária. A resistência dos parlamen-

|HU em acoitar essa mudança, no regime anterior, fora
IIM» d... I ali >i cs que mais poderosamente contribuíram para
tância histórica, ou a do chamado banditismo social, como M##4 IMMC dado o golpe de Estado. Poucos meses depois
na ação dos famosos bandos de cangaceiros do Nordeste I Mllpr, n país já dispunha de um Estatuto da Terra, que
Nessas lutas, os camponeses foram a única classe social que IPlliil i • um ( lareza a reforma agrária que poderia ser feita
i"1" ",,v" icgime político. A ditadura desencadeara enor-
88 Cf.
José de Souza Martins, Os Camponeses e a Política no Brasil, Petrópnlii P Hpn ao no campo, fazendo cessar, aparentemente, a
Vozes, 1981, p. 81-91. ••nidi m ui al e, ao mesmo tempo em que caçava as li-

III 1 I
if

118 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇAI ) IMII'N lAÇÂO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 119
I» n il.i República. De certo modo, o Estado militar pôs
deranças de esquerda, criava, em princípio, as condições in

para a realização de uma reforma no direito de proprie¬ Hll pirsiào o monopólio católico nas relações de poder,
i

dade e a promoção de uma redistribuição da propriedade i|iii «luiiinte o regime de Vargas (1930-1945) e a hegemo-
da terra. A Igreja estava, de certo modo, atendida. Logo •iftii In* i .ii quica do cardeal Leme, entrou no pacto entre a
ficou claro, porém, que a reforma que os militares preten 1 M |IM o listado, mediante o reconhecimento do catolicis-
diam levar adiante não coincidia com a reforma que a Igre Hin mino religião da maioria da nação brasileira91.
ja julgava adequada e aceitável. Na onda de repressão po
\ opressão contra os católicos que desenvolviam um

lítica no campo, não só os comunistas e militantes das •


I 1 1 • dl n i educativo e conscientizador entre camponeses
H tli.tlludorcs rurais, apesar do apoio da Igreja ao golpe
e
Ligas Camponesas foram violentamente atingidos, mas
também militantes católicos, principalmente aqueles lig a ÉHllbu de 1964, não foi um fato propriamente estranho,
dos aos programas de educação e conscientização populai • • " «d. i .KI.I essa tradição de afastamento. Entretanto, a re-
Três meses depois do golpe, que haviam apoiado, os bispos incidiu sobre um aspecto particular da ação dos
lançavam um documento com críticas ao regime pela re¬
1 i us, a educação e a
conscientização dos camponeses.
pressão contra os militantes católicosS9. Ainda assim, a Igre¬ Ai » 'i av'a i * problema. O marechal Castelo Branco, primei-
ja conseguirá conviver com os militares até 1968, quando
o confronto se torna radical e assim continuará até o f im
• M |H ildrnte militar após o golpe, ao propor ao
} N»ii Innal uma reforma constitucional para
Congres-
viabilizar a
da ditadura, em 1984. (•rtlMiiu agiiiria e um Estatuto da Terra, para regulamen-
Na verdade, desde a proclamação da República, que se $ la 1 1 -.»• justificava com motivos estratégicos, basicamen-
i* - •• d i ueutr alização das lideranças políticas
parou a Igreja do Estado, nunca houve maior proximidade no campo.
entre a Igreja e os militares (e entre a Igreja e os republi r»"" "I ii mente, a neutralização das ideologias que tradu-
canos)90. O fato é compreensível, em grande parte porque HHIH « quesifio agrária em termos da necessidade de uma
os militares republicanos eram positivistas e sempre en< a (fiiidi mudança na estrutura social e política. Os militares '

raram a Igreja Católica como um risco de poder paralelo

...
I que havia uma injusta distribuição da terra
ao do governo, supostamente comprometida com o antigo - I,II. |M ii lauto, a demanda por uma reforma agrária era
regime monárquico. A dimensão religiosa do confronto eu IfUHllii » ’ Mas discordavam de que essa demanda devesse
*

tre militares e católicos, até estes dias, accntuou-se durante M * Il(la por uma ação que pudesse
revolucionar a so-
a ditadura recente. Foi com os governos militares desse l li d «li* ( ioncretamente, isso queria dizer que a reforma

período que políticos oriundos das igrejas protestantes ti ||tt ili v* ii.» alterar o pacto político, entre os grandes em-
veram pela primeira vez, acesso a importantes postos ll.l
orgamzaçao do Estado, particularmente presbiterianos v
batistas. Isso seria impensável antes do golpe de Estado. I
r M U |M* urbanos e os proprietários de terra, que desde
fliu *1 1 ditadura de Vargas sustentava o Estado brasileiro.
* !• • a reforma agrária deveria ser um instrumento
mais impensável, ainda, seria que um protestante, como o Ml» mm UM ni/ação económica e não um instrumento de
li -m l • mação social. Era, portanto, uma questão técnica,
luterano general Ernesto Geisel, chegasse à própria presi
89 Cr. Scott Mainwaring, ob. cit., p. 103.
90 “A República, porém, havia nefastamente levado ao poder uma minoria <1. P'tl|.li Delhi Cava, ob. cit., p. 15; Scott Mainwaring, ob. cit., p. 43.
||HII
crente, deixando os crentes, que constituíam a maioria, sem poder de dr< Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, Questões Agrárias,
IM.. I

a respeito dos problemas da nação.” Ralph Della Cava, cit., p. 11-2. I1 lntM" Ihasília, s.c., 1975, p. 5-12
120 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇAÍ )

e não uma questão política, e fazia parte de uma estratégia


M*
III
......
H ( III
1 AO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 121
relação à questão agrária, acabariam afetando
de preservação da ordem institucional. A transposição do Mfttlundíi mente a Igreja e revolucionando o seu trabalho
tema da reforma agrária para ideologias de confronto, que |M*i"i i| () novo regime clefiniu critérios para as desapro-
refletiam a polarização disseminada no mundo pela Guei de terras destinadas à reforma agrária. Claramen-
\

ra Fria, fosse pela ação das esquerdas, fosse pela ação dos
, o (nimeiro critério foi o de que seriam alcançadas as
católicos, remetia o problema para algum tipo de revolu IH rm que houvesse tensões sociais ou que, potencial-
ção, que alteraria as relações sociais no campo e, conse

.....
III Ml» as tivessem. Ao mesmo tempo não seriam alcan-
pt l,i reforma agrária as chamadas empresas rurais,
quentemente, o pacto político. Até porque tanto um grup<
quanto outro representava corporações que tinham intei R!|Mt I » propriedades cujas terras estivessem sendo usadas
namente estrutura de Estado, o que constituía uma ameaça ili «In mitável e produtivo por seus proprietários. Po-
ao Estado nacional. Foi em nome deste (e, portanto, da
tradição absolutista e centralizadora) e da elite da bum
ill I I Mil M bjeto de desapropriação os latifúndios e nao
| ()

•tí tin pmpriedades extensas, que ultrapassassem certa área



cracia estatal, os militares, que a reforma agrária acabou bildi mas também aquelas que, não a ultrapassando,
sendo proposta. Ela não servia apenas para combater os Him v »m lendo utilização económica inferior à que de-
fH"iu in. Além disso, a reforma agrária poderia
comunistas, mas também para combater toclo corporal i atingir
llliu panela significativa dos pequenos agricultores na
vismo concorrente, fosse “progressista” ou “conservadoí
",
incluindo o católico. Hl*d»di em que os minifúndios estariam sujeitos à desa-
É, por isso, compreensível que os militares não tenham p|1«pini .in para remembramento e formação de parcelas
se oposto ao funcionamento dos sindicatos de trabalhai l<
.
leiloo que viabilizassem atividades económicas de natu-
res rurais e da sua Confederação Nacional (CONTA( i ), t»M • • mpiesarial. Por outro lado, uma parte do problema
que resultara de um acordo político entre católicos e c:o |pW'Mu i.ri resolvida através dos projetos de colonização,
munistas, fundada pouquíssimo tempo antes do golpe. Na
verdade, os sindicatos eram tutelados pelo Ministério do
Trabalho, cujo ministro tinha o poder de não reconhecei
s lltlli it (Ml particular, que deslocaria populações sem terra
IM • • I i.miadas frentes pioneiras: basicamente, as terras
pipo a .mieiUe livres da região amazônica, embora não só
e de depor toda a sua diretória mediante assinatura d<
I i •dl ima possibilidade,
um simples ato administrativo. De fato, os sindicatos s< que chegou a ser amplamente
riam utilizados pelo governo para fazer chegar às popu ||||itml i * Li, sobretudo com a construção da Rodovia Tran-
lações rurais alguns serviços assistenciais, forma, ao m< BM/IHIM.I, foi comprometida seriamente logo em segui-
mo tempo, de procurar esvaziá-los de qualquer conteúdo m ii governo pôs em prática uma doutrina gcopolítica
político. O êxito dessa política seria apenas parcial. Pois
i Mnip.ii ao dos
chamados espaços vazios. Para tanto, de-
nas regiões de maior tensão social, os sindicatos COIIM Hdlii i MU r< lei estímulos significativos às grandes empre-
guiram se transformar na grande força de representação • i »| »ii alísias, que, de modo geral, não
estavam envolvi-
dos trabalhadores rurais. Em cerca de quinze anos, o sin I i m al i\ idades agropecuárias, para que o fizessem. O
dicato passou de zero a cerca de seis milhões de trabalha nu no , t provou legislação que permitia às empresas, con-
dores rurais sindicalizados, mais de 50% da força de n Ith "I i sobretudo na região sudeste do País, deixar de
balho do campo. do imposto de renda (o mais importante tri¬
Algumas medidas tomadas de início pelo governo nu ll hi mirim), desde que investissem o dinheiro na Ama-
I I

CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO |l\ I •I'll : l I AÇÃO PASTORAL DA


122 IGREJA NO BRASIL 123

zônia. Dinheiro que poderia constituir 75% do capital que * MM devastação da floresta para transformá-la em pas-
i

viesse a ser aplicado naquela região, entrando o empresa • »i in'" I1 ram donas de propriedades imensas: num caso
i *1 I • lllo, o do Projeto
rio com os 25% restantes, de seus próprios recursos. Jari, do americano Daniel Keith
A preferência das empresas foi para a atividade agro- I uilwig, mais de três milhões de hectares de terras94. Ou
pecuária e, também, para a mineração. Terras baratas, fa iso c< >mo o da Volkswagen, no sul
do Pará, com
cilidade para formação de grandes estabelecimentos rurais, Ml II I de Cin mil hectares. Para complicar ainda mais a
(

li
mão-de-obra de baixo preço, isenções de impostos, além HIM u m, muitas das terras ocupadas, seja pelas grandes
r;i
dos próprios subsídios governamentais, levaram a uma fMipii ’.as seja pelos projetos govenamentais, eram terras
pida ocupação do norte do Mato Grosso, sul do Pará, oeste iMillfn nas, ale mesmo de tribos que ainda não haviam sido
do Maranhão, parte do Acre e Rondônia. A entrada das
......
....
...
»*ini n Lulas pela chamada civilização e
viviam em estado
grandes empresas chocoú-se com as correntes migratórias (MiMiiilvn c natural95. Desenhou-se, assim, o panorama de
que se dirigiam para essas áreas, constituídas de pequenos conflito social e étnico, que logo deixaria um
agricultores, em busca de terras livres que pudessem SCI HhMhlr número de vítimas, sem contar a quase dizimação
ocupadas por camponeses pobres. Duas correntes, de ori •I* * MI r. tribos indígenas, que não suportaram a violência
i" iiMinein branco nem suas doenças.
gens diferentes e destinos diferentes, se estabeleceram: do
sul do País, pequenos agricultores, quase sempre de as I MM Impacto, que atingiu mais da metade do território
cenclência européia, sobretudo italiana e alemã, imigrados IM I il« iro, e centenas de milhares de pessoas, além de po-
Ml indígenas inteiros, no curto período de
para o Brasil no século XIX, que estavam perdendo suas tempo de pou-

......
i l r M Ml s dr uma década, ainda não
terras em consequência do empobrecimento, da conccn cessou seus efeitos. Atin-
tração da propriedade, do crescimento da família e dos N,H a Igicja em cheio. O idílico trabalho missionário, que
grandes projetos governamentais (como as barragens das I* dm i\a pelo menos dois séculos, vivia seus últimos mo-
hidrelétricas), começaram a cleslocar-se para a Amazônia MM MI por 1965-1966. Nessa época, uma tribo inteira
Ocidental, principalmente Mato Grosso e Rondônia. Uma d» índios xavante foi removida de seu território, com
au-
outra corrente, de pequenos agricultores sem terra, p<
) ll M l dr missionários, para uma missão católica, para que,
MM Ingai onde vivera até então, fosse estabelecida uma fa¬
bres, deslocara-se do nordeste do País em direção à Am a
li oda dr c riação de gado, com quase 700
zônia oriental. mil hectares de
,i fazenda Suiá-missú.
O primeiro grupo fòi constituir a massa de colonos qu< Nessa remoção, dezenas de
adquiriu terras, com os recursos obtidos na venda dos pr iMillo* morreram contaminados por doenças de branco96.
quenos lotes no Sul, comprando-as seja ao governo sc|a I HIM l l*i posseiros, a violência foi diferente, mas não foi
às colonizadoras particulares. O segundo grupo, sem ir MM " Pisloleiros de aluguel, sob ordens das grandes em-
cursos económicos, já vinha se deslocando para a Ama/A
nia desde os anos quarenta, constituindo a categoria dos '* i •' l tiv io
Lu ii ii A Luta pela Terra, Petrópolis, Vozes, 1978, p. 97 e ss.
chamados posseiros, ocupantes de terras supostamente li *L 1'ihIm
II 1 —
Hávio Pinto, Jari Toda a Verdade Sobre o Projeto de Ludwig, São
in IM

vres, sem qualquer título de propriedade e sem qualqm I 1'illtora Marco Zero, 1986, p. 132-133.
P I I Million II. Davis, Vítimas do Milagre (0 Desenvolvimento e os índios do
direito assegurado à terra ocupada. As duas correntes <l< , Kio dc Janeiro, Zahar Editores, 1978, passim.
pequenos agricultores, especialmente a segunda, foi log< l •
i I >i MII Pedro Casaldáliga, Uma Igreja da Amazônia na
p Imdi" r a Conflito com o Lati¬
alcançada pela chegada das grandes empresas, que inic In Marginalização Social, São Félix, s.d., 1971, p. 22.
n
MN i 'I H NTAÇÂO PASTORAL DA
124 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO IGREJA NO BP \SIL 125
W|i"itillvii distribuição dos bens, isto é, o próprio capital
presas, começaram a expulsar violentamente das terras os • o. i i csolver a questão agrária. A dificuldade estava em
pequenos agricultores sem títulos de propriedade, quei HM •• progresso era lento, não se dava no ritmo adequado
mando casas e plantações, ferindo e matando pessoas9'.
O modo que a Igreja desenvolvera para interpretar a
A lligi m ia dos problemas. Nesse sentido, a intervenção do
I i rti l< i, para promover essa aceleração, era necessária.
questão agrária, ainda no tempo em que os problemas mais \qm estava encerrado um segundo princípio: o de que
graves eram os do Nordeste, foi profundamente golpcad< l udo e supostamente justo, age
pelo modo como passou a se dar a entrada do grande a social e é, portanto, o promotor da
segundo critérios de
III capital no campo. A experiência do Nordeste ensinara a li i tie a este segundo princípio, estava a
justiça. Subja-
Igreja que a questão agrária era produto do atraso econo II M .1 1 1 1 Teia política do Estado pode
contrapartida de
mico, social e político. Esse atraso, aparentemente, podi a
(
comprometer essa
ibilidade. Daí a necessidade de uma instigação moral,
ser vencido com a intervenção do Estado através de uma 1 HIIH » ,| da Igreja, que rompesse com essa inércia, provo-
política de desenvolvimento económico que estimulasse a . « i i intervenção no
presença modernizadora do capital nas regiões atrasadas'
1 1 i
processo económico para quebrar
iimilo vicioso da pobreza. A Igreja destacava, assim, a
A pobreza e a injusta distribuição da terra não eram con
||H|“'i l.mt ia da consciência crítica dos cristãos e dela pró-
cebidas como resultados da ação do capital, mas da sua
|Hit Nrsse âmbito é que a doutrina social da Igreja ga¬
ausência ou da sua insuficiência. Mesmo quando, em
19(>.'>,
ni»»' a i onsistência como alimento dessa consciência crítica.
a Igreja já se convencera de que a reforma agrária era
necessana e que talvez não houvesse possibilidade de in
All ini MHO tempo, já era clara a relação dialética eiv ve
|Mt mi< tilo crítico e a ação, que se
denizar em dinheiro os grandes proprietários, mesmo as consubstanciava no
i

i »•»!•» do
sim considerava o direito de propriedade um direito sa
ver-julgar-agir. Mais importante, historicamente,
l|i qm .1 intervenção da Igreja nas questões
grado. Ainda aí se podia contar com uma certa conversão

.....
sociais foi a
M min.K áo de um modo de pensar crítico,
dos fazendeiros a uma ética católica de justiça social, como «•’. intelectuais
sobretudo
católicos, instrumento de uma cultura
já preconizavam os militantes da Ação Católica na reunião •I» slot inação da sociedade.
que dera lugar à carta pastoral do bispo cie Campanh a, N'1'ii porém, a relação entre pensamento crítico e so-
em 1950.
A Amazônia pôs a Igreja diante da evidência de que o
MNIIMII .imda era polarizada em favor do pensamento, nos
ÉMltin* leimos da tradição conservadora. Os problemas
capital e o desenvolvimento capitalista maciços, ao conti.i tii decorriam, nessa concepção, de
rio do que se supunha, podiam criar problemas sociais
d< insuficiências em
superavam os d 1 IN princípios que estavam presentes no pensamento
tal gravidade, que se equiparavam ou gi .1

víssimos problemas da miséria rural do Nordeste. Até m • I Ml. li ( ) pensamento estava certo e a realidade social es-
i i • n.id.r. As transformações
tão, o conjunto das idéias que norteavam as concepções sociais deveriam ocorrer
i

i| I I •|iii .i perfeição do
a ação da Igreja em relação à questão agrária estavam ccn pensamento social se concretizasse.
tralizadas no princípio de que o progresso promover .1
i;i if IIMMIM de pensar a realidade era estático e a dinâmica
||?t •• d.ide estava demarcada pela possibilidade de tornar
|ml iqmlo que a doutrina anunciava. Ao
e ss.; Ri< .H •1* •
defrontarem-se
9ÿ
Ibidem, p. 60 e ss.; Octavio Ianni, A Luta pela Terra, cit., p. 191 pi i miipl.i expropriação de camponeses, com as
p. 108-15. intensas
Rezende Figueira, ob. cit.,
98 Cf. Ralph Della Cava, cit., p. 24 e 42; Scott Mainwaring, ob. cit., p. 7.H Htyl»to"'s <’ com a violência e as graves injustiças na região
v NO BRASIL 127
126 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO D> ORIENTAÇÃO PASTORAL DA IGREj'
,rair
tenta, esse capitalismo tem
amazônica, os bispos, as seções regionais da Conferência cxlrair os
™ tributos
<
de que se al.r piIaMsm0
i
viotalto. Daí re-
Episcopal e a propria Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) agiram, num primeiro momento, de modo
conservador, isto é, no sentido de corrigir os desvios re¬
<
” cameõt
meT,temP° “"!>
fis,camente,
U
Tre
6 0g,a
repressiva.
e suo prática seja, até
‘radiía° d° Pensamento
Ora, rrf ao ca italiJ _
a crítica
presentados pela realidade social dramática. E nesse senti¬ ro>lservad°r e central a criticÿ „
comunitárias as relações
v
do que o comprometimento da Igreja com os camponeses, co-jistiuida
«i-n,
na otica das relaçoe'< na
j
,
Ufíi • ,1 perspectiva da pessoa.
1
os trabalhadores rurais e os índios não se constituiu numa „ /íetanas, a critica do mdivídtv „ *
t

. / como sujeitos de sua cri-
conversão, pois as premissas de sua atuação já estavam pre¬
sentes na própria doutrina e na própria educação recebida ACod7r7dMSCS
tÍC , ’
de tradiÇao
C
conserva
‘lora’ «pito, a Igreja assu-
jma capitaIigJ,
pelos religiosos, especialmente sob influência da Ação Ca¬
mi,o P Spe.C 1Va a vltlma e
v. orientação conservadora
tólica. Ao se envolverem dramaticamente na realidade dos tír'°- espemlativo e eaorsivo. |a defromou.se, portanto
pobres do campo, os bispos não deram o salto histórico e
da incoerência de conduta que representasse, eventualmen¬

rrr°
uma
cot11 con, f°rma a?° *
ati asada de
e,
carD Estado que gerencia os
te, a ruptura com a tradição conservadora. E nesse sentido
que não se pode falar em conversões individuais. E é nessa
a forma atrasada
desse
c»do é ideologicamente
capitalismo. Esc ,0dentiZador. O
intl-resses que acon-
perspectiva que se pode entender que bispos supostamente
“conservadores” possam adotar comportamentos “progres¬ COCcom0ae7n,COn0rm‘Cament'
tec‘
ctase processo,
‘ a í J;i ol 'lnc’ na Çileira a mesma base social
sistas” em determinadas circunstâncias e vice-versa. Foi a nãC encontrou na sociedade bra- pensamento conservador.
coerência doutrinária e ética dos bispos e dos agentes de
pastoral que abriu a perspectiva que possibilitou a com¬
preensão crítica do processo económico e político. Por isso,
<r™rrlfT
Vi' f™
óèt '
anelam
>
!fntid°m/Lg-Made d<= conflitos em que os
da pessoa con-
a experiência pastoral nas adversidades da Amazônia foi
qUC fom»sP preservaça°
dV e políticas que querem
economic* Jai sáo Qs
fundamental para o avanço da Igreja Católica no seu com¬
'™, temd aS°C,a,a-
,a c nãQ
promisso com índios, camponeses, trabalhadores rurais, os fraíites
as A irnd
C
marg'“p
T
ganha consistência no
conserradÿvolvida do capitalismo no
pobres do campo. cor1
™„
èa„hamc„a r" subdeser,desafio e contestação des-
A grande revolução que essa experiência promoveu na E
a aÇao P°htlca
ação da Igreja foi a da mudança do sujeito social do pen¬
samento conservador que demarca suas orientações. Na
se
sp capitalismo.
• ~
?
Daí que a ação /Ontradiçao f- desse confron-
tradição clássica, esse sujeito era a elite territorial e pré-
dC
"Z‘mT
to, [01
C“SerVad°ra' e transformadoras.
nem-se açoes contestador/Anc)._fQ - Ç‘
. tiana ma'
capitalista. Daí que o pensamento conservador fosse tam¬ j;às;a compreensão brotou da à se dissemina
!
bém o pensamento da ordem e da dominação política. Na \ Hp
Cap,lal,Sm°
. unicamente

experiência latino-americana, e particularmente na brasilei¬


2Ô”
,U do „ro8
se difunde, também, ne-
ra, as bases territoriais das elites não as opunham (e não
, formas arcaicas de
rd“
as opõem) ao capital e sua lógica. Ao contrário, a aliança
do capital com a propriedade da terra engendrou um ca¬

viz/1
açâo do trabalho,
°-
expulsa/0' marPnahzand°* “era-
pitalismo tributário que opera de modo distinto do capi¬
talismo típico e contratual dos países desenvolvidos. Para
tl

128 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÁí ) "ÿ' < >RIENTAÇÂO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 129
I 4. A influência da Amazônia na mudança da Imensos desafios, que representavam um empenho de si-
orientação católica In. ii ; Igreja no mundo moderno. Também ficava inviabi-
jluda pelo poder pessoal dos grandes fazendeiros e em-
Não só os documentos procedentes da Igreja da Ama pnsarios, poder revitalizado pelo fortalecimento do
zônia, a partir de 1971, mas também as informações sobre 1 1 1 1 1 1 ii i( lio e o recrudescimento de
relações servis de tra¬
as primeiras dificuldades da pastoral católica anunciaram il, t II m. Eles não tinham o menor interesse na
presença cie
uma radical mudança no lugar social da Igreja. Era calai ••ui agente crítico no interior da grande propriedade, em
e consentir numa política económica internacionalmei ii < -

........
• oni alo com os trabalhadores. Um bispo da Amazônia,
denunciada como genocida ou alinhar-se com as vítimas e i » MI IVdro Casalcláliga, na sua primeira carta
pastoral, de
denunciar as brutalidades que estavam sendo cometidas. i 1 I lalando dos desafios sociais de sua
prelazia, área dos
No final de 1966, o governo militar já aprovava as primei nos grandes latifúndios modernos da Amazônia bra-
ras leis cie intervenção económica (e, posteriormente, mi * 1 1 • ii a, registrou o impasse de modo preciso: “A
desobriga
litar) na Amazônia. Rapidamente, as grandes empresas <*<> *» a i , imentalizou sem
evangelizar, sem edificar Igreja”101.
meçaram a avançar sobre imensas áreas de terra na região, Iin 1971 os bispos começaram a lançar os primeiros
expulsando posseiros, promovendo a remoção de tribos in •IIH iimentos de severa denúncia do que estava ocorrendo
dígenas, cometendo violências". Já em 1968, missionários Mim < amponeses, trabalhadores rurais e índios. Esses do-

que trabalhavam com populações indígenas e missionário-. • MI i M iiios e denúncias mostram que a
propriedade territo-
que trabalhavam com os chamados posseiros, os campone
ses da região, começaram a fazer reuniões de estudo <
• Ml. .io contrário do que ocorrera no modelo europeu e,
JMHII ularmente, do que ocorrera nas sociedades que aca-
avaliação dos acontecimentos, bem como a fazer as primei »H MU se transformando em base das
teorias sobre a ex-
ras denúncias. Ao mesmo tempo, todo o trabalho pastoi ;i I (•IMIN.IO do capital, como a inglesa, estava no centro do
começou a ser redefinido em função dos graves desafios Ml* H If 1 1 » brasileiro de desenvolvimento capitalista. Enquanto
com que a Igreja se defrontava. Em 1964, a CNBB tomara IMM il ( ) modelo europeu no centro do desenvolvimento ca-
uma medida vital para o trabalho pastoral: a criação d< (•li ilfii está o capital, no modelo brasileiro, profundamen
,i

treze regionais, cujos bispos podiam, assim, definir sua M ui. u ( ado pela tradição da dependência colonial, a terra
ação pastoral cotidiana com base numa colegialidacle mar *I'H ‘ ir i.d para o desenvolvimento
capitalista porque pro-
concreta e imediata, na troca de experiências, informações hli l.i uma acumulação de capital com base no tributo e na
e opiniões com outros bispos da mesma região, com pm » 'I •! I ui. u ão, isto é, com base na renda da terra. Portanto,
blemas parecidos, e de acordo com as peculiaridaedes i \ iirunstâncias, o desenvolvimento se
(
nutre de formas
sociais cie cada desafio pastoral100. A pastoral antiga, que ini lm f modalidades de relações sociais que lembram com

vinha dos tempos coloniais, concretizada na chamada “dt |»M lia M( Ir o feudalismo, embora não o sejam. A
centralidá-
sobriga”, entrou em crise. Não só não correspondia a tod .i •I* problema territorial, de que se podia suspeitar na
a significativa evolução da doutrina social da Igreja e seus tlim ,I nu (jue a realidade do Nordeste era a principal mo-
MIMI.I da pastoral da Igreja, e de suas interpretações,

00 Cf. Lúcio Flávio Pinto, Amazônia o Anteato da Destruição, Bclcm, Gralivi,
1977, p. 11-90; Lúcio Flávio Pinto, Amazônia: no Rastro do Saque, São Paulo,
ui •.< ii ansparente no caso da Amazônia.

Editora, Hucitec, 1980, p. 1-46 e 119 e ss.


100 Cf. Scott Mainwaring, ob. cit., p. 105 e ss. Ml i l*"ui IVdro Casaldáliga, ob. cit., p. 9.
ri

130 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO *' ' 1 'I'll' NTAÇÂO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 131

Ali, não era o latifundista atrasado, de comportamento •It \M| I,I i ;i seus lugares de origem e a suas famílias. A
arcaico e, até, anticapitalista, que cxáava os problemas so I" ' • lulalidade dos fugitivos conseguiu formular denún-
ciais. Eram as próprias empresas modernas, instaladas no ' la i i . .nitoridades, com apoio e assistência da Igreja e do
sudeste do país, sua região mais industrializada, que avan Mllillt •Ho, embora nenhum empresário tenha sido efetiva-
çavam sobre a Amazônia, em nome do capital, através da II*' "i‘ processado pela justiça do País por essa violação da
expansão territorial. Eram empresas dotadas de amplo de Li i unvóm lembrar que nessas fazendas está interditada
senvolvimento tecnológico, dirigidas com base em model
nas técnicas de gerenciamento empresarial. No entanto, es
.....
Mthlmcia religiosa. Os trabalhadores (peões, como são
• li Hindus) trabalham sob vigilância de pistoleiros armados,
sas mesmas empresas estavam implantando na Amazônia

.....
Mi lurados quando seu trabalho não rende o que deles
formas de organização económica e de gerenciamento, qiu > • tpeia c, fora do trabalho, permanecem trancados em
combinavam desde sofisticadas técnicas de produção alé in nos, sob vigilância. Os que tentam fugir, se captura-
violentas relações de trabalho, as do chamado regime de astigados e, muitas vezes, mortos102. Desde 1968,
peonagem, a escravidão por dívida. k lilspus <• os agentes de pastoral vêm se perguntando que
Um caso emblemático de combinação do mais moderno ffpii illtinn é esse e que Igreja pode ser edificada numa
com o mais atrasado foi o da Volkswagen, um caso denuu M|" i" soí ial como essa.
ciado publicamente pela Igreja e que foi objeto de exame I H I • ii isao do grande capital na Amazônia não afetou

de uma comissão de parlamentares e jornalistas. A emprcs *1 M* • 1 ,1 i i lações de trabalho. Uma outra frente de conflito
implantou, no sul do Pará, a Fazenda Vale do Rio Crisl a I «•»» n. i < om o confronto entre as grandes empresas e os
lino, para criação de gado de corte, cujo produto sei I.I In* ,, os camponeses sem títulos legais de propriedade.
exportado para a Europa. Além da derrubada da floresln
e sua transformação em pastagem, a fazenda empregou
cerca de seiscentos trabalhadores escravizados para reali/;n
esse serviço. Ao mesmo tempo, o gado era controlado poi
sofisticada tecnologia eletrónica, de que a imensa maioi ia
ti .
ly
»«n*.

Pftl •
*"
I
........
i ,iin já ocupantes da terra há muito tempo, dcdican-

IIM «• • niii.i economia de subsistência, que se combinava


SI
iulização de produtos extrativos ou, eventual¬
I i lentes agrícolas, como o arroz. Os novos

IIIIIIIIM sobretudo do Nordeste, foram se


possei-
adaptando
das fazendas brasileiras sequer dispõe. Outras fazendas da I Hl* *Hi" legiine de posse da terra e ao mesmo tipo de
i'egião amazônica, ligadas a empresas estrangeiras OU 1)1 .1 |M mu «mi sobretudo a comercialização de excedentes agrí-
sileiras, têm utilizado •amplamente o recurso do trabalho I I ’i n i ouflito implicou e implica ainda a expulsão de
escravo, ao menos numa fase de suas operações. Mini'll dl amponeses de suas terras, por meios violentos
Registros relativamente cuidadosos feitos pela Igreja, cm . (

HN UI ui i I.I dos casos, pela ação de pistoleiros pagos pelas


particular pelas dioceses e prelazias das áreas em que n Mesmo quando a expulsão é decretada por um
problema é mais grave, apóiam-se em depoimentos de li a polícia tem sido invariavelmente auxiliada por
balhadores escravizados que conseguiram fugir das fazei i
das. Eles correspondem a 5% dos escravos de cujos locai* I|Mi •itl !'•dm ( lasaldáliga, ob. cit., p. 26-8; Lúcio Flâvio Pinto,
Jari: Toda
de trabalho houve alguma fuga, com sobrevivência dos Iti

.......
NUW* »"/'*•' n hojeto Ludwig, cit., p. 85-116; José de Souza Martins, A
l ijhliiu r m Limites da Democracia na “Nova República ” São Paulo,
l ik gitivos. Esses casos permitem falar em pelo menos novcni.i
mil trabalhadores escravizados a partir de 1970. Muilm
Hl" II • UMI •, i.ip 3 (“A escravidão hoje no Brasil”), p. 39-44. Em 16,5%
c JIIC* se constatou a existência de trabalho escravo, houve
desses fugitivos foram abrigados pela Igreja, na tentai iva Ml tt| "in, tin <lc ( rabalhadores que tentaram
fugir.
1

132 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇAí > t*\ "I' I I N rAÇAO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 133

esses pistoleiros, culminando, quase sempre, em incêndios '»* dr I'm a das localidades em conflito. Em muitos lugares,
de plantações, casas, objetos pessoais, ferimentos e até morlc • li'ii |.i retomou sua ação no sentido de estimular a orga-

de camponeses. Mais de mil camponeses foram assassinados Ml/ n..M» dos trabalhadores, sobretudo a organização sindi-
entre 1970 e 1985, metade dos quais na Amazônia103. * »l O I alo de que mais de seis milhões de trabalhadores

É preciso ter em conta que até mesmo no caso de ex Mil IIN < camponeses tenham entrado para o sindicato, a
pulsões determinadas pela Justiça, muitos dos títulos de prtllli de 1963, principalmente após 1964, se deve, entre
propriedade das grandes empresas têm origem viciada. Islo
é, foram obtidos por meios fraudulentos, até mediante lai
sificação de documentos, legalizados todos mediante art i
fícios de cartórios notariais, que dificultam sua recusa pelos
tribunais ou, então, facilitam sua aceitação impune pelos
juízes. O próprio governo militar baixou resoluções coin
tilo ....
Mino.. I atores, à continuação do trabalho de mobilização

IIMIM IV olvido pela Igreja. Essa tem sido a única forma de


M O in as demandas camponesas de alguma dimensão ins¬
il, dirigindo-as para canais legítimos de comuni-
Ityit" ' mu o Estado, forma de pressioná-lo para exigir o
MMM| M 1 1 1 1 ( 11( o das leis, em particular o cumprimento do
*

1= •MU HM da Terra, que justamente preconizava a reforma


força de lei para legalizar esses documentos ilegais. Para
"í se ter uma idéia do volume das fraudes, basta considerai
que, no Estado do Mato Grosso, nos anos setenta, a soma
MU i oino solução para os problemas das áreas de ten-
Mo m H lai.
da área de terra mencionada nos títulos de propriedade t • n u iço das empresas sobre a Amazônia, em particular,
em circulação era três vezes superior à área real do Estado MM IMOII O conflito apenas aos camponeses. As popula-
Muitos desses títulos foram emitidos e distribuídos por go "• indígenas foram gravemente atingidas por essa expan-

vernantes corruptos com a finalidade de premiar auxiliai cs II»"' l | M aia I mente porque o governo brasileiro começou
pllnii uma rede viária extensa, que teve como um dos

......
políticos, os chamados “cabos eleitorais”, recrutadores d«
votos, peças importantes na política de clientela e de troe .i HMl* *i os publicitários a Rodovia Transamazônica. Essas
(orlaram territórios tribais isolados, que manti-
de favores, que caracteriza ainda hoje o sistema político
brasileiro. Em 1981, a Comissão Pastoral da Terra, d.» Itt povos indígenas protegidos do contato com o
CNBB, assinalava que mais de vinte milhões de hectares ilrtiH ii v seus efeitos desastrosos. Não só porque o branco
de terra haviam sido obtidos por meios ilegais e violentou. p M • «d. a de enfermidades para as quais os indígenas não
No conjunto do País, quase um milhão de famílias de cam IfrlM Imunidade, como a gripe, que lhes é, geralmente, fatal,
poneses estava sujeito* à expulsão por falta do adequado
título de propriedade.
Todo o peso desses conflitos caiu sobre os sindicatos c
e • " MMIIH m porque as frentes de expansão da sociedade
|(MM M • I.IO povoadas por tipos humanos, não raro degra-
dmlo" pi la maiginalização e a violência104. Os índios são
sobre a Igreja. Invariavelmente, bispos e agentes de p asln illm "l" nao só pela contaminação por doenças venéreas,
ral, que acabaram se transformando numa mediação mi Mt HHIO', devastadores sobre o equilíbrio demográfico
portante, não só na denúncia das ocorrências, mas também |tynipiM nibais. Mas, também, pela violência desses su-
M|M pi'Hieiios da sociedade branca que, geralmente, têm
na busca de soluções junto às autoridades, especialmcnli
I Ilidi" uma concepção que os põe abaixo da escala hu-
103 Cf. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Assassinatos no
Crime e Impunidade (1964-1986), 2.a edição, São Paulo, Global Editora, Ml N M "M UIIM IIU, OS índios e a Civilização, Petrópolis, Editora Vozes, 1977,
passim.
'! 1

134 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVA( \( ji i i|i 1 1 N I AÇÀO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 135

mana. Muitos, e esse ainda é um fato dos nossos dia*. • • Manaus-Caracaraí. Os índios lutaram contra os
i i

consideram que os índios não são humanos e estão mui lo (•» MI. M*. de 1968 a 1975, tentando resistir ao seu avanço.
mais próximos dos animais da floresta do que dos homens i • Ini.nn duramente atingidos pela violência, pela fome
Nas décadas recentes, várias tribos foram severamente aiin i |n I r, doenças. A situação de conflito e a necessidade
da
gidas por expedições punitivas, como se se tratasse de sim « M‘ • |" imanente, em face do avanço dos brancos, come-

.....
pies caçada de animais selvagens. Foi o que ocorreu, eniie i»n mi .i < lificultar e a impedir que fizessem as plantações,
outros, com os Arara (da Transamazônica, no Pará), com H • n i começou a escassear. Em seguida, o território foi
os Uru-eu-wau-wau (de Rondônia) e com os Suruí (de Maio Iht nlclo por uma grande empresa mineradora e, ainda,
Grosso). Foi forma de castigá-los pelos simples fato de o |> il mente alagado pelas águas da hidrelétrica de Balbi-
rem defendido seus territórios da invasão e agressão pie n» mn piqjeto genocida de poucos resultados economicos.
datória do homem branco. I •» nu uão atende sua principal finalidade, a do abaste-
Em consequência da abertura da rodovia Cuiabá-rSani ilm» nio de energia elétrica à cidade de Manaus.
rém, no Mato Grosso e Pará, nos anos setenta, o povo Mills le três mil e trezentas ocorrências atingiram as
Kreenakarore foi descoberto e contatado, às pressas, p;ai a
evitar que sua presença impedisse a conclusão da estrad;a i M i
tempo previsto100. Foi quase exerminado. Em pouco tempo
80% desses índios morreram. O representante da F mui
c lliiil.ii.oes indígenas do País, a partir de 1971, incluindo
n> * de territórios, violências dos brancos e ataques
ii irs
In* piiipiios índios contra seus agressores. Na maior parte
tio* envolvendo tribos amazônicas.
unis,
(Fundação Nacional do índio), supostamente encarregado \ 1 1 • M \iao camponesa e a questão indígena, como foi dito
de protegê-los, confiscou-lhes arcos e flechas, que são seus IHh | «usei am diante da Igreja um capitalismo diferente do
instrumentos de caça e sobrevivência, a pretexto de protegei Hind. I.. presumido no trabalho pastoral que desenvolvera
os brancos que se aproximavam. Em pouco tempo, os índios HH íMI I IRSIE até 1964. Agora, claramente, o capital se apre-
deixaram de fazer plantações, prostituíram suas mulheres ( I» ui M ,i i nino proprietário de terra e o próprio Estado apa-
filhas com os trabalhadores brancos que abriam a estrada
- da
ou dela se utilizavam, assimilaram o alcoolismo. Três anus . ..
.......
M i « * nino seu mentor e financiador. Porém, o problema
|»MI unha sua própria complexidade. Não era e não é o
após o primeiro contato, já eram vistos perambulando pel
estrada, como mendigos, sujos, disputando restos de comi
da. Que no meio dessa tragédia não faltasse um gesto d«
grandeza humana: em 1975, seus inimigos tradicionais <•
mortais, os índios Txukahamãi, do Xingu, os convidaram
para viver com eles. Para isso, fizeram-lhes casas e plantaram
roças de que pudessem alimentar-se.
in

fflM l
i .a .... c aso dos povos indígenas e no caso das popula-
nesas. No caso dos índios, não se tratava de mero
ui ipn

|H •.1 ili nia de terra, no sentido que tem modernamente


dr propriedade territorial. Para eles, tratava-se
"«ii pi blcma de território107, no sentido mais politico
1 1

Mini nial que tal palavra pode ter para nós brancos.
i 1 1 I n .a i do índio com seu território é uma relação
De
o
de
e
fato,
vital.
Não foi pequena, também, a tragédia dos povos Wainii Mi m disso, o território é delimitado pelas necessidades de
ri-Atruahi106. Seu território foi atingido pela abertura d .i M » mihulaçao que demarca o ciclo vital da tribo. Portanto,
105 Cf. Shelton
H. Davis, ob. cit., p. 96-101. \ i ii I ii 11 IN Secgei e Eduardo B. Viveiros de Castro, “Terras e territórios
106 Cf. •i
José in > Brasil", in Encontros com a Civilização Brasileira, n.°
Porfírio F. de Carvalho, Waimiri-Atroar i • A História que Ainda ndo m li.M iiii’. 12, Rio de
Foi Contada, Brasília, s.e., 1982, passim. |IM.UM jtinlin clc 1979, passim.
STI
136 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇA< )
" ' 'UIENIAÇÀO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 137

ao contrário do que frequentemente entenderam as empre¬ udeiiação dos sobreviventes à morte social por razões
i 1 1

sas e o próprio governo, uma tribo não sobrevive apenas da • MMIII .IíS.
terra que utiliza de modo mais intenso, momentaneamente.
As tribos agrícolas, como ocorre com os povos tupi, fazem
a chamada agricultura de roça, itinerante, que implica culti ‘ A pastoral indígena e a pastoral da terra
var uma área por um período curto, de uns três anos, e,
depois, abrir nova roça em outro lugar, para que o terreno 1973, no 25.° aniversário da Declaração Universal
I m
da antiga possa recuperar a sua fertilidade e permita o Direitos do Homem e no 20.° aniversário da encíclica
renascimento da floresta, da qual os índios também vivem fan in in Terris, bispos de diferentes regiões do País, em
As áreas de caça estão sempre em outro lugar. E há, também, HI* "in los regionais, lançaram duas proclamações sobre a
áreas específicas de onde são tirados materiais necessários .1 ll »r» dia no campo. Os do Nordeste editaram o documento
atividade artesanal que produz cestos, vasilhas, arcos, fie 0M «»#/!'/ ay clamores do meu povo. Os do Centro-Oeste, isto é,
chas, etc. '» pii ir mais atingida da Amazônia, lançaram Marginali-

Num certo momento desse período, o governo brasilei )f dr um povo —grito das Igrejas. No Natal do mesmo
ro promoveu a remoção de tribos inteiras de seu território itM» bispos e missionários que trabalhavam com populaçõ-

...
para áreas ecologicamente diferentes. O resultado foi faial I Indígenas também lançaram sua declaração -Yjuca-pira-
Foi o que ocorreu com o povo Nambikuara, do Mato Gros pff «* índio: aquele que deve morrer; que classificaram como
so. Atingido, inicialmente, pela abertura da rodovia Cuia il miirnlo de urgência”109. Esses documentos anunciavam
M

bá-Porto Velho, foi removido de seu “habitat” de floresta Mn... \< idadeira revolução no trabalho pastoral, e constata-
para permitir a instalação, na área, de fazendas de gado. I1" de fato, o capitalismo subdesenvolvido e tributá-
que em pouco tempo derrubaram a mata e semearam pas NM llrtu levaria à emancipação dos pobres. Ao contrário, o
tagens. Os índios foram levados para uma região de cri Bÿlivolvimento económico, que o Estado e o capital leva-
rado, a savana brasileira, cuja flora e cuja fauna são dili 1 »»»• i diante, no País, semeava fome, violência,
destruição
rentes da flora e da fauna da floresta. Os índios foram 1'tfMnh Os bispos do Nordeste criticaram a Igreja assis-
rapidamente atingidos pela fome. Muitos tentaram vollai iHi* » »li LI. identificada com os dominadores110. Eles se per-
ao seu território antigo. Ao fazê-lo, o encontraram devas •nt • am “Como podemos chamar de cristão um mundo
tado pelas 22 fazendas que nele se instalaram. Numa epi |i tpH senta como resultado de seu funcionamento nor-
demia, em 1971, morreu toda a população Nambikuaia d i mi. is iniquidades?” Observavam que “a Igreja tem
de menos de quinze anos, comprometendo a sobrevivênt ia H" •• |'igo dos opressores, tem favorecido aos poderosos
da própria tribo108. Fato tanto mais grave quando consi i dlliliclio e da política contra o bem comum...” E pro-

déramos que nos grupos tribais a interdição do incesto < i IHIIIMV im "À luz, portanto, de nossa Fé e com a consciên-

mais ampla do que na nossa sociedade, reduzindo muito H •!* Injustiça que caracteriza as estruturas económica e
a possibilidade de cruzamentos matrimonais. Com isso,
qualquer epidemia ou massacre pode representar, de luto IIM —
i >tn‘i in ('.la mores do Meu Povo Documento de Bispos e Superiores Reli-
WHI tin Noulcste, Salvador, Editora Beneditina, 1973; Marginalização de um

108 Cf. Vincent Carelli e Milton Severiano, Mão Branca contra o Povo Cinza, S.i*

" 1lnlo das Igrejas, Goiânia, 1973; Y-Juca-Pirama o índio: Aquele que
W¥9 Mitiift ( Documento de urgência de Bispos e Missionários), s.c., s.l., 1973.
Paulo, Brasil Debates, s.d., passim. la (hint m Clamores do Meu Povo, cit., p. 10.
CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃC )

.
" N 1 ORIENTAÇÃO PASTORAL DA
138 IGREJA NO BRASIL 139

social de nosso país, entregamo-nos a uma profunda revisão do solo que sustentavam as reivindicações campone-
de nossa atitude de amor pelos oprimidos, cuja pobreza e 4.» •. indígenas. Nesse documento, o episcopado estabeleceu
r

a outra face da riqueza de seus opressores”111. I istinção entre terra de trabalho e terra de exploração, terra
pii.i trabalhar e terra para explorar o trabalho de outros.
Já os bispos do Centro-Oeste afirmavam: “Precisamos isto, nu distinção conceituai que resgatou da doutrina social da
apoiar a organizaçao de todos os trabalhadores. Sem
eles não se libertarão nunca . Os bispos
”112 diziam, também, lf»n | » a precedência do trabalho em relação ao lucro es-
que “É preciso fazer um mundo diferente. Não sabemos bem |H ulativo e rentista na definição dos direitos dos camponc-
i

como ele deve ser. Mas já desconfiamos. Queremos um Além disso, o episcopado insistiria no apoio à organiza-
mundo onde os frutos do trabalho sejam de todos. Quere • dos trabalhadores, para exigência de seus direitos. E
i»>

mos um mundo em que se trabalhe não para enriquecei, itl limava: Com os irmãos na fé e todos os trabalhadores,
mas para que todos tenham o necessário para viver: comida, |HI MURAREMOS organizar uma nova sociedade. Com eles,
zelo com saúde, casa, estudos, roupa, calçados, água e luz •| M n.tclos em Deus, despertaremos um novo espírito de
Queremos um mundo em que o dinheiro esteja a serviço dos Hmvivcncia”115.
homens e não os homens a serviço do dinheiro”113. \s i corientações que esses documentos anunciam ganha-
Por sua vez, os missionários que trabalhavam com as • tin rorpo na criação de duas agências especializadas do
populações indígenas diziam, com clareza, que “não aceila h ibalho pastoral: o Conselho Indigenista Missionário
remos ser instrumentos do sistema capitalista brasileiro”. I , < * I N II), em 1972, e a Comissão
Pastoral da Terra (CPT),
mais adiante, esta afirmação de consequências pastor:ar. • m 1975, ambas vinculadas à Linha de Ação Missionária
profundas: “O objetivo do nosso trabalho não será ‘civil i/a i •I >•< !NBB. Na pastoral indígena, medidas já vinham sendo
os índios”. E insistem na “urgente necessidade de reconhc*< Cl mini .idas desde 1968,’ no sentido de fechar internatos, onde
i HM educados os
e publicar certos valores que são mais humanos, e assim, jovens das tribos contactadas, e dispersar
mais evangélicos do que os nossos ‘civilizados’ e constituem HH missionários pelas
aldeias. Elas se inspiravam em teste¬
uma verdadeira contestação à nossa sociedade”114. munhos, como o das Irmãzinhas de Jesus, que há muitos
A partir desse momento, bispos das regiões mais pro fim llms viviam uma experiência de missão encarnada, na al-
damente atingidas por essa forma perversa de desenvolvi di I dos índios Tapirapé, no Mato Grosso116. Essa reorien-
mento capitalista, sustentada pelo Estado militar, procl;;im.t i n li» nnplicou uma profunda
revalorização das culturas
vam na verdade, uma reorientação ampla do trai >;i II M Indipeii.is c o reconhecimento dos povos indígenas
como
pastoral, que aliás já vinha sendo posta em prátic;a, (in MVo* mm direito ao seu território e à autodeterminação.
I ui i Icuionto prático dessa ação missionária,
muitos lugares, desde 1968, pelo menos. Essa reorientaçm que teve gran¬
ganharia o aval de toda a Conferência Episcopal na ass< m ite if .Hu e, tem sido o da realização das assembléias dos
bléia de 1980, quando seria preparado e divulgado o d< M II «IlIlVN indígenas, reunindo representantes de diferentes po-
>c!,i \ IM l*u.i que debatam seus
mento Igreja e Problemas da Terra, em apoio não só à luta | problemas e busquem soluções
reforma agrária, mas também às formas alternativas dc api «• |MI i i levs, sem a presença de brancos, nem mesmo missio-

111 Ibidem, p. 27.


i I
nnlriõncia Nacional dos Bispos do Brasil, Igreja e Problemas da Terra,
i
112 I'.mln, Edições Paulinas, 1980, p. 36.
flu
Cf. Marginalização de um Povo, cit., p. 42.
113 .
M \ 1 1 1 1 ii In Ci de O. leite, A Mudança na Linha de Ação
114
Ibidem, p. 43.
Cf. Y-Juca-Pirama, cit., p. 21. -
• 1'uiln, Edições Paulinas, 1982, p. 52-62.
Missionária Indigenista,

fl >111
140 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO D\ < JRIENTAÇÀO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 141

nários. Alianças tribais nasceram dessa experiência, mesmo p.iiii reforma agrária, nos últimos anos da ditadura, foi
alianças entre tribos tradicionalmente inimigas. Foi graças irsiiltado indireto dessa pressão e da politização dos con-
a essa inovação que muitos povos indígenas ergueram bar II lios por meio do envolvimento da Igreja na defesa dos
reiras eficazes ao avanço das empresas sobre seus ter rito n .ihalhadores. Num certo momento, os militares chegaram
nos e forçaram o reconhecimento de seus direitos por par ,i inner que essa
politização criasse uma força política de
te do Estado. Na verdade, essa nova concepção de missão I m ido religioso, estranha aos quadros partidários submeti-
desencadeou um verdadeiro movimento social indígena, ilns ao jogo do poder e do Estado. Esse foi um dos argu¬
que encontrou reforço em movimentos sociais da própria mentos utilizados por um influente general e teórico do
sociedade branca, em favor dos índios e de seus direitos. irgiine em favor da abertura política, para que instituições
Certamente, o melhor sinal do alcance desse trabalho pas i nino a Igreja retornassem a suas funções apolíticas117.

toral foi o despertar de uma consciência crítica nos povos I into no caso da pastoral indígena quanto no caso da
indígenas e a construção de uma identidade, que inclui a (hiMoral da terra, a repressão militar e policial do governo
I crítica da própria atividade missionária. !"i ( Iara e ampla. A ela se somou a repressão de grupos
A Comissão Pastoral da Terra tornou ativa a presença pilvados, no sequestro, tortura e assassinato de religiosas
da Igreja nas regiões de conflitos sociais que vitimam os • •i crc lotes, bem como de agentes de pastoral leigos, em
(

camponeses. Ela se propôs a constituir-se num canal su nu lo a um grande número de assassinatos de trabalhado-
plente de expressão e apoio para que os trabalhadores se I I * i m ais, especialmente de líderes sindicais. Esses crimes,

organizem, especialmente nos sindicatos, e exijam respeilo no geral, têm ficado impunes118. Eles denunciam uma am-
por seus direitos reconhecidos em lei e, até mesmo, avan |»la delerioração das instituições da ordem no Brasil, o que
cem na direção do reconhecimento legal de seus costumes •lil uma importância ‘especial à organização dos grupos in¬
relativos à concepção do direito de propriedade. A ação dígenas e camponeses e dá ao trabalho pastoral uma di-
pastoral da CPT somou-se à do sindicato no sentido de Minis; ío historicamente inovadora.
Tanto a pastoral indíge-
transformar a violência, que os proprietários de terra Ir II.I < |iianto a pastoral da terra ganharam a dimensão de

vam aos camponeses, numa disputa legal. Mesmo que <» mu nabalho de inovação social que ultrapassa os limites
aparelho judicial seja ainda muito dependente da influen
cia das oligarquias, a que se soma hoje o poder dos gran
' i I (iolbery do Couto c Silva, Planejamento Estratégico, Brasília, Editora Uni-
11 iHÍdude de Brasília, 1981, p. 521-2.
des grupos económicos, a transformação dos conflitos cm |I« MIJ- 1968, a Igreja vinha sofrendo
repressão e perseguições do governo
casos judiciais criou uma espécie de duplo tribunal: o 1 1 1 milii.ii De 1968 a 1978, 122 padres, religiosos, religiosas e seminaristas
!•ti, nu presos e bispos foram detidos ou mantidos sob cerco e
bunal institucional, diante do qual os casos são apresei il ;t vigilância.
1 1 » •» i . dações da Igreja foram invadidas, até na presença de bispos. Documen-
dos, e o tribunal da opinião púlica, que, sobretudo ati íIVCH 1'fi loiam confiscados. Foram submetidos a tortura 84
religiosos e semina-
dos meios de comunicação, acabou se transformando em llitiiR. Nesse período, seis sacerdotes e um seminarista foram assassinados.
I m .mi abertos 21 processos e inquéritos militares contra religiosos, inclusive
grupo de pressão sobre as autoridades. Essa providêiu l.l tiiii.i bispos. Trinta bispos sofreram algum tipo de repressão,
incluindo
pôs em questão a tradicional violência privada do latilim \ »i i"*« arcebispos c três cardeais. Sem contar ameaças de morte. Depois desse
dio, em que o proprietário ainda é rei e juiz, cuja vitalicl;i< li |n Undo, a violência continuou, com assassinatos de sacerdotes e agentes de
|M*I<MUI c prisão de sacerdotes com base na Lei de Segurança Nacional. Cf.
se revelou no seu recrudescimento no regime civil que su
cedeu a ditadura militar, em 1984. Embora insuficienh
l • ui in Ecuménico de Documentação e Informação
— CEDI, Repressão na
/jo» /»# nn Brasil, Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos H umanos

um surpreendente avanço nas desapropriações de ten.i M.H finalizados da Arquidiocese de São Paulo, São Paulo, 1978, passim.
t

\
¥

I
142 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO I IA ORIENTAÇÃO PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL 143

de suas próprias intenções. A violência que sobre seus a aliam operando contra aquele que o direito supostamen
agentes se abate é apenas indicação de que sua ação incide !«' deve favorecer. Houve até mesmo caso extremo de um
diretamente sobre os mecanismos de reprodução da injus¬ di'i teto do presidente militar, de 1972, estabelecendo que
tiça e da impunidade, necessária à sustentação dos interes¬ despejos não poderiam ser feitos em áreas onde já existis-
ses económicos e políticos que constituem a base atual do •'iii lavradores, sem prévia audiência do Ministério da

Estado brasileiro. Essa é a razão por que um trabalho apa¬ Mpícultura. Esse decreto resultara especificamcnte de de-
rentemente inocente, como o trabalho pastoral, produz fa¬ III meias feitas pela Prelazia de São Félix, no Araguaia (Mato

......
cilmente confrontos entre a Igreja e o Estado. Foi a cons¬ t ; i ' isso), devido à verdadeira convulsão que se instalara na
ciência dessa complicada interpenetração de fatores e da n giao de Santa Terezinha, quando a fazenda, de proprie¬
incidência estrutural da ação pastoral que mobilizou tão dade de um grande banco do Sudeste, decidiu expulsar
amplamente o episcopado. adores antigos do lugar, onde já existia um povoado

.....
Nesse âmbito, a ação pastoral acabou refletindo não só miponês dezenas de anos antes da chegada da empresa.
a reação contra as injustiças económicas, mas também con I'"i\ mesmo assim, supondo que a lei tem validade nacio-
ii d. quando advogados pediram em juízo a aplicação da
tra o próprio aparelho de Justiça. Num primeiro momento,

.....
os bispos ainda tentaram apelar às instituições civis (e até lida prevista em lei, foram presos. Ficava claro, pois,
aos militares), denunciando que a violência económica vio D i os bispos, que o capitalismo não promovia a igualda-
u
lava, também, direitos dos trabalhadores, camponeses e ín 1 1» social e económica, como também o Estado brasileiro

dios. Direitos, aliás, consagrados em lei. Aí, porém, não promovia a igualdade jurídica. Por isso, em grande
poucos juízes e promotores atuavam e atuam ainda de ma |iiiU<\ a concepção de libertação ganhou tanta força entre
neira tendenciosa. Pequenos fatos relativos ao andamento I 1T católicos brasileiros, intensamente concebida como
dos processos nos tribunais, fatos aparentemente normais ' • mslormação social promovida em nome daqueles e por
iii |'«« les que vivem no limiar do direito, da possibilidade
e legais, operavam contra a possibilidade de que os pobres
levassem os processos adiante. Em particular na região d. sobrevivência e da justiça.
amazônica, em que a citação judicial implica o deslocamcii I ! transformação ainda aparece segundo a tradição do

to do interessado por distâncias de centenas de quilôme i" ir.nncnto conservador. Há nela um componente integris-
i • que na verdade revoluciona a prática. Não foi por acaso
tros, onde o transporte é raro, caro e difícil, não foi inco
mum juízes convocarem os camponeses e, após a chegada qut , ao longo desses anos, a Igreja tenha sido tratada pelo

.......
destes, adiarem as audiências para meses mais tarde. Ou, I I.HIO militar como instituição subversiva e perigosa. Ela o
então, dificultarem os processos com exigências formais '•"i sido deliberadamente. Uma vez que estabelece como
menores ou pequenas omissões, como descumprimento dr in. ilid.i de julgamento dos processos económicos e sociais o

datas e prazos, em prejuízo das vítimas. Sem contar os cm inteiro a pessoa, que esses processos procuram
muitos despejos judiciais sem qualquer verificação da lega •ilifii.ir, fragmentar e tornar descartável, literalmente. Foi o
lidade dos documentos dos fazendeiros e sem atenção aos 1 1| i' ' observou a CNBB nos resultados da pesquisa que pro-
argumentos dos camponeses, especialmcnte quando estes in* ''li sobre os efeitos de uma das secas recentes no Nordes-
"
se encontravam na terra há muito tempo. Uma lei que i' quatrocentas mil mortes por fome —as vítimas morriam

assegura o direito de usucapião tem sido escassamenlr o ili tlliando nas frentes de emergência, pagas pelo governo,
| I •ui salário de cerca de metade do
cumprida, porque seus custos e os procedimentos judie iUI'. salário mínimo, para
144 CAMPONESES E ÍNDIOS NA RENOVAÇÃO

fazerem obras públicas ou, mesmo, obras nas propriedades


dos grandes fazendeiros. Um salário que, sabidamente, leva-
na os trabalhadores e suas famílias à morte. O pensamento Capítulo IV
e a ação dos bispos se organizaram em defesa desse homem
inteiro, e vítima, contra um processo cuja perversão se revela \ ação pastoral das igrejas e o retrocesso
na sua força de sujeição e destruição. na reforma agrária"
Nesse sentido, eu diria, concluindo, que os bispos, de fato,
não se converteram e não havia por que fazê-lo. Sua intei
pretação da realidade e sua ação pastoral é que se tornaram
profundamente transformadoras porque, na sociedade bra
sileira, o desenvolvimento capitalista dissemina a pobreza <• I \% mudanças políticas e as dificuldades
nao a riqueza e o bem-estar; e também porque, nessa socic • (i «bailio pastoral
dade, as instituições da Justiça fundamentalmente dissemi
nam a injustiça. Essencialmente, é esse um sistema que
dissemina e aprofunda as desigualdades e a desumanização
das relações sociais. E nessa ótica que, necessariamente, .1
doutrina social ganha, nessa sociedade, uma dimensão reve
ladora, a da sua insuspeita radicalidade.

Si
1
...
.
H vri
Au anotar, nestes dias, as muitas falas de trabalhadores
ifM Uies de pastoral que participam da 8.a Assembléia
ia! da Comissão Pastoral da Terra, senti-me impelido
as anotações que fiz durante a assembléia de agosto
•If PlMO. Aquela foi uma assembléia carrregada de impas-
a<> mesmo tempo, de certezas fáceis. Lembro-me bem
1I1 |i i<\ cm certos momentos, alguns participantes agiram
I111110 sc estivessem vivendo a euforia de um comício de
1 IIM 1 1 , 1 mento de campanha eleitoral vitoriosa. A
proximi-
•fnl das eleições presidenciais e o clima eleitoral em que
I'.ih vivia não deixaram de influenciar os pontos-de-vista
debates. Um número grande de participantes espe-
íidim nte de agentes de pastoral, tinha quase certeza de
in .IS \squerdas elegeriam o presidente da República e
(

th que esse presidente seria o candidato do Partido dos


li th.i II I.K lures. Essa certeza era certeza, também, de q ue o
|M • 4de ute da República pode tudo e de que, se o presi-
ih nit " fosse nosso”, a reforma agrária seria feita em todo
| hils Com isso, todos os problemas dos trabalhadores

• >" H v isi;i de trabalho publicado originalmente como capítulo do


livreto
I lit |".i «Ir Souza Martins e Cláudio Perani, Sonhos e Desejos dos Lavradores

I'<nn a CPT, Edições Loyola/Comissão Pastoral da Terra, São Paulo,
|IMI ' p 7 ‘2f>.
145
...... . 147
146 A AÇÃO PASTORAL DAS IGREJAS I' I II'"' I V,< ) NA REFORMA AGRÁRIA

rurais seriam resolvidos, já que esses problemas, supunha- i o h o I,i necessária para preservar o atraso económico do
se, se resumiam a “dar terra ao trabalhador”. E que a de¬ 1 li" e cias relações sociais e de trabalho nele baseadas.
cisão de “dá-la” dependia exclusivamente do presidente. Ao Iil" ' . para preservar mecanismos atrasados de acumulação
i i ,i pitai, os mecanismos do nosso capitalismo rentista.
mesmo tempo, para um grande número de pessoas, eleger
o candidato do PT seria o mesmo que “implantar o soci;i I "Il"i representava tudo isso, como representaram Tancre-

........
lismo”. Desse modo, muitos participantes da assembléia ra
I
" Ni M S e José Sarney: o poder do latifúndio atrasado, dos
ciocinavam a partir do pressuposto de um encadeamento In h i políticos do interior, mascarado por uma ideologia
iii" i iil Ki a, portanto, o mais provável vencedor, o que me-
necessário entre eleição-PT-reforma agrária-socialismo, um
encadeamento mágico que acabaria com os problemas eco •unia os ingredientes da circunstância política. A me-
nômicos e sociais, acabaria com a pobreza, com a injustiça, hi i '|oe .i maioria da população decidisse interromper o


com a violência e com o latifúndio!
Lembro-me bem de que foi difícil fazer uma análise da
IIH i\ MIM nio pendular dos ciclos políticos nacionais e elegesse
.
Hill I mdidato com outra origem e outros compromissos. E,

conjuntura política que me havia sido solicitada. Naquele •i'h" lildo, elegesse um Congresso Nacional comprometido
momento, qualquer análise minimamente objetiva já apon • "111 li I let essidades de modernização com reformas sociais.
tava para a fortemente provável vitória eleitoral do govei Mm It agmentação das esquerdas e seu profundo desacor-
nador de Alagoas, Fernando Collor de Melo. O principal
indicador dessa vitóiáa estava não só na insatisfação do
• • * H i" v ubilizavam essa alternativa.
I * HI! no me bem, ainda, de que essa análise ricocheteou
eleitorado com os partidos (preferindo, pois, um candidato •• • i" «li. i dura do dogmatismo e da obsessão voluntarista
que fosse crítico da política e dos partidos) e sua forte q»“ H MU ou ião forte aquela assembléia. Nem mesmo hou-
propensão em favor de um candidato personalista, que vi
‘ • • M (,M> política de debater essa interpretação da con-

......
se mostrasse auto-suficiente e autoritário. O principal in kthhii.i. ontra-argumentar, que era, de fato, a função da
dicador dos resultados prováveis da eleição estava na tra MM h • .ihrir espaço para que se debatessem as mudanças
dição pendular da política brasileira: ciclos de autor ii.i thii H'i » políticas que acaso negassem a repetição da tra-
rismo e centralização do poder no governo federal (isto dica do processo político brasileiro. A assembléia
é, ditadura), de governos desenvolvimentistas, industi i.i » H •• • lomada pela eufórica esperança de uma rápida che-
listas e modernizadores, seguidos de ciclos de governos |Ml.i dui li abalhadores ao poder. Porém, curiosa concep-
de descentralização política de base agrária e oligárqm iilii di poder: uma concepção gerencial e administrativa
ca, apoiados numa retórica liberal e democrática (isto nr o presidente fosse uma espécie de capataz do
*

é, abertura política). IfiiiiMiin nacional), mas não uma concepção política; não
A movimentação dos políticos e dos partidos de oposição pi,. io de que o poder é constituído, numa sociedade

à ditadura, já no final do governo militar, indicava com dio • tllh .ula como a nossa, pelos acordos e arranjos que
i Mhi i 1 1» ui em (orno de projetos comuns o antagonismo dos
clareza que as oligarquias haviam capturado o discurso (Oil
tra a ditadura, em favor da liberdade e da democracia, e com ihh o VH \ em jogo. E que a política é a arte de lidar e
base nele começaram a fazer acordos políticos, inclusive com HiMlHiNi.ti esses acordos e arranjos.
hi i I M i l amento da assembléia de 1989, fiz a seguinte
os militares, para instauração, sob seu controle, de um novo
regime político civil, a chamada “Nova República”. O oligiii
. (

o. i minha caderneta de campo, que julgo opor-


quismo brasileiro sempre teve uma cara moderna como Ihh i MI iNc i ever:
MS A AÇÃO PASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 149
“Temas lúndamentais, presentes na ação pastoral coti- brevivência, resistência à marginalização, a tornar-se
cliana, ficam habitualmente fora da definição das linhas mão-de-obra sobrante. E que o problema para esses tra¬
de ação pastoral. balhadores não é a produtividade, mas a sobrevivência,
“O tema da impunidade e da injustiça, tão presente com dignidade.
na vida cotidiana dos agentes de pastoral e dos traba¬ “Basicamente, o problema da reforma agrária é o de
lhadores, não aparece como tema das linhas de ação. manter na terra quem dela está ameaçado de expulsão
Aparece apenas como violência gratuita. (são os que estão envolvidos nos conflitos mais intensos)
“A tendência é, às vezes, a de definir uma conduta nas condições económicas e técnicas que têm.
quase exclusivamente sindical. Nenhuma ênfase nos mo¬ “Somente numa segunda etapa é que se poria o pro¬
vimentos sociais, no retorno ao trabalho de base. Retor¬ blema da extensão rural, da modernização, da elevação
no esse que deveria ganhar uma dimensão ecuménica, do nível tecnológico do pequeno empreendimento agrí¬
politicamente falando. A tendência tem sido a de pensar cola.
os temas na perspectiva da ‘classe trabalhadora’. Esse “A questão da reforma agrária foi erroneamente apre¬
ecumenismo deveria ampliar a base social da definição sentada como mera proposta de reassentamento de tra¬
dos problemas e da ação. Porém, está acontecendo o balhadores sem-terra.”
contrário. Essa base está se estreitando, cada vez mais
restrita a um tipo genérico de trabalhador. Em 1987, A vitória dos trabalhadores não estaria necessariamente
era claramente o pequeno agricultor. Agora, o tom da na eleição do presidente da República, que não poderia
assembléia é relativo a um vago trabalhador operário, governar sem maioria no Congresso Nacional. A vitória

polarizando, também, do outro lado todas as oposições
reduzidas a uma categoria única, a ‘burguesia’.
dos trabalhadores, mesmo sem eleger presidente e Con¬
gresso, estaria em pôr na ordem do dia e na agenda polí¬
“O tema da violência nas relações de trabalho nunca tica do Estado as suas demandas mais fundamentais e ur¬
foi problematizado, como fato a ser denunciado e com¬ gentes, as demandas por reformas sociais. Porém, os
batido. E um tema que se refere a violações mais amplas, trabalhadores estavam voltados (e os agentes de pastoral
de direitos que são direitos de todos. mais ainda) para a possibilidade da vitória eleitoral. Con¬
“O tema das migrações temporárias de trabalhadores seguiram, ao longo desses anos todos, sobretudo no final
rurais, não aparece como algo que tenha a ver com as da ditadura militar, organizar-se e transformar suas orga¬
condições de vida e a privação de direitos. Basicamente, nizações sindicais e políticas em organizações nacionais.
os agentes de pastoral não conseguem situar os proble¬ Porém, não conseguiram criar um programa de reformas
mas imediatos nos processos mais amplos. Não conseguem para as negociações políticas, uma definição para as refor¬
identificar o impacto do particular e cotidiano nos pro¬ mas sociais que as transformassem em condições de so¬
cessos mais gerais, que são os que estão presentes nos brevivência das próprias classes dominantes, das elites, da
esquematismos e nas palavras-de-ordem. classe média e de todos aqueles que a ideologia dualista
“Não conseguem separar a redistribuição da pro¬ cultivada pelos agentes políticos dos trabalhadores nos úl¬
priedade e a sua exploração economicamente rentável, timos anos puseram “do lado de lá”, como inimigos da
embora sejam de fato duas coisas diferentes. Não con¬ classe trabalhadora, o que genericamente foi chamado de
seguem considerar que a luta pela terra é luta pela so- “burguesia”. O programa dos trabalhadores era basicamen-
150 A AÇÂO PASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 151

te uma lista de prioridades administrativas, no caso de che¬ ferentes grupos de apoio aos trabalhadores rurais têm tido
garem ao poder, entre as quais uma reforma agrária sem para lidar com a diversidade dos problemas criados pela
maior conteúdo político, que acabaria servindo para au¬ questão agrária no Brasil e pela diversidade das categorias
mentar ainda mais o isolamento político dos trabalhadores sociais nela envolvidas.
rurais. Os trabalhadores foram municiados com uma con¬ Essas alterações, de que esteve alheio o Movimento dos
cepção insuficiente do poder e até utilizados como pretexto Trabalhadores Sem Terra, pois não participou do governo,
da transformação de agentes sindicais e políticos em fun¬ foram, provavelmente, feitas de modo intencional pelos
cionários públicos, em funcionários de uma proposta ad¬ membros do governo e pela imprensa. De um lado, pelos
ministrativa e produtivista de reforma agrária, de simples próprio governantes com o objetivo de deslocar o centro da
promoção de reassentamentos de trabalhadores “sem-ter¬ questão fundiária do posseiro para o sem-terra. As lutas dos
ra”, que não tocasse nem no pacto político da “Nova Re¬ posseiros estavam respaldadas por um forte conteúdo mo¬
pública” nem no modelo económico que a sustenta e que ral. Os posseiros não têm direitos legais reconhecidos sobre
herdou da ditadura militar. as terras que ocupam, mas suas lutas ganharam a legitimi¬
O fim da ditadura militar e a ascensão do Movimento dade da precedência de seu trabalho na terra em relação
dos Trabalhadores Sem Terra produziu uma notável inver¬ ao mero comprador de um título de propriedade muitas
são de prioridades na fala e na ação do que posso chamar vezes obtido de modo fraudulento. Grileiro ainda é sinó¬
de agentes de mediação das lutas dos trabalhadores rurais. nimo de delinquente, de beneficiário de um ato criminoso
Até o final da ditadura, essas lutas eram justificadas e ex¬ e violento. Não por acaso, os próprios grileiros tentaram
plicadas como lutas contra a expulsão dos trabalhadores acobertar-se, neste últimos anos, sob a denominação de
das terras que ocupavam. A figura social que então cen¬ “produtores rurais’’. Foi o forte conteúdo moral das lutas
tralizou o discurso sobre a reforma agrária foi a figura do dos posseiros que lhes deu aliados políticos da maior im¬
posseiro, uma figura predominantemente regional da Ama¬ portância, dos quais os principais são as igrejas.
zônia Legal. A inauguração da “Nova República” coincidiu Os sem-terra foram forçados a desenvolver sua luta num
com a substituição do posseiro pelo sem-terra, seja no dis¬ terreno desfavorável —o terreno do adversário. Isso porque
curso dos agentes políticos, seja nas reivindicações e na a ocupação de terra não se deu com base no mesmo ar¬
definição dos objetivos da luta pela reforma agrária; a luta gumento moral da precedência do posseiro, com seu tra¬
pela permanência na terra foi rapidamente suplantada pela balho, em relação ao grileiro, mero especulador fundiário.
luta por desapropriações e assentamentos dos trabalhado¬ Mas se deu com base no argumento económico da proprie¬
res sem-terra e, particularmente, pelo impacto das ocupa¬ dade improdutiva. Se a luta dos posseiros criou aliados
ções de terras. A figura do posseiro foi substituída por outra importantes, a luta dos sem-terra criou inimigos importan¬
figura regional, o pequeno agricultor sem terra da região sul, tes. E nem poderia ser de outro modo.
já desalojado, como ocorria claramente com os colonos As lutas dos posseiros, mais antigas e numerosas, foram
expulsos da reserva indígena de Nonoai e acampados em substituídas, nos jornais e nas preocupações governamen¬
vários lugares, entre eles a Encruzilhada Natalino, em Ron¬ tais, pelas lutas dos sem-terra, mais recentes e numerica¬
da Alta. Os acampamentos tiveram um impacto devastador mente menos importantes. Com isso, na formação da opi¬
sobre o sentido e a direção da luta pela terra no Brasil. nião pública e na sensibilização dos políticos responsáveis
Essas mudanças indicam as muitas dificuldades que os di¬ pela definição de normas constitucionais e legais relativas
152 A AÇÃO RASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 153

ao direito de propriedade, passaram a pesar desproporcio¬ Não podiam ver que já não estávamos nos anos sessenta,
nalmente os acontecimentos que se desenrolavam no ter¬ quando a reforma podia ser proposta, como o foi, como uma
reno escorregadio e difícil das ocupações de terras. Antes, reforma que dinamizaria o mercado interno para promover
o posseiro é que aparecia expulso de sua terra. Agora, os o desenvolvimento capitalista comandado pelo que então se
fazendeiros é que passaram a ser apresentados como víti¬ chamava de “burguesia nacional”. Não podiam ver que o
mas de invasões e expulsões. São muitos os indícios de capital nacional se mesclara com o capital multinacional e
que essa mudança de ênfase foi intencional, para desmo¬ que o capital se associara à propriedade da terra. Com isso,
ralizar as lutas dos trabalhadores rurais e os grupos que o capital se habilitou a receber subsídios e incentivos fiscais,
os apoiavam, especialmente a Comissão Pastoral da Terra. formas gratuitas de lucro e renda, que tributam e penalizam
Toda a política de reforma agrária do governo Sarney foi a sociedade inteira em benefício daqueles que têm a oferecer
dominada pelo problema dos sem-terra e do confronto ne¬ unicamente o seu título de propriedade. O capital se trans¬
cessariamente radical que ele acarreta com os grandes pro¬ formou em capital rentista, em titular de renda fundiária.
prietários, sem contar os temores que gera nos pequenos. O nó da questão estava e está, em primeiro lugar, na
Esse confronto ficou relativamente deslocado no noVo supressão constitucional de todos os subsídios e incentivos
regime político, pois tanto Sarney como Collor são típicos fiscais à grande propriedade e pelo estabelecimento de um
representantes das tradições oligárquicas e latifundistas, cu¬ tributo de retorno sobre incentivos e subsídios, já conce¬
jos interesses e cujas habilidades e alianças políticas os ele¬ didos com dinheiro público. Tratava-se, pois, cie cobrar, no
geram. Certamente, o efeito político mais grave do pacto novo regime civil, a hipoteca social contraída pelo grande
que produziu suas vitórias está no teor ambíguo e conser¬ capital durante o regime militar. Porém, pouco se disse e
vador da Constituição de 1988 e no retrocesso que ela quase nada se fez a' respeito. A questão já não era simples¬
representa na definição da política fundiária. A posição mente ou principalmente promover o crescimento do mer¬
deslocada da questão agrária no novo regime despolitizou-a cado interno, já substituído, em parte, pelo mercado exter¬
em favor do produtivismo económico da retórica dos gran¬ no e pela nova divisão internacional do trabalho. A questão
des proprietários, retórica da qual acabaram sendo vítimas era de combater a renda da terra que passou a se esconder
os próprios agentes políticos dos trabalhadores rurais. E, no interior do lucro do capital. Nem é preciso dizer que
com eles, os trabalhadores. essa associação entre capital e terra é, na verdade, uma
O clima eleitoral de 1989 deu nova vida ao já cambai eante poderosa e devastadora aliança de classes sociais, que fra-
projeto de confronto com as elites através, sobretudo, da giliza enormemente os trabalhadores, em particular os tra¬
reforma agrária. E preciso, aliás, que se diga que, no primei¬ balhadores rurais. E a forma desse combate não depende
ro governo da “Nova República”, não eram militantes do do voluntarismo dos burocratas de esquerda com vocação
Partido dos Trabalhadores os funcionários que tentavam de funcionário. Depende dos problemas sociais criados por
abrir caminho para uma reforma agrária economicista, pro- essa aliança e da consciência que dela tomam os trabalha¬
dutivista e tecnicista. Os que estavam no governo imagina¬ dores. Indícios dessa tomada de consciência aparecem já
vam, cquivocadamente, que a reforma agrária que propu¬ nos muitos encontros cie trabalhadores rurais, que têm
nham em nome dos trabalhadores era a reforma agrária ocorrido ao longo dos anos, e têm aparecido nestas assem-
aceitável pela burguesia e pelo capital, uma reforma agrária bléias da CPT, tanto na de 1989 como nesta de 1991.
que incrementaria o desenvolvimento capitalista do País. Enquanto os operários das fábricas, e mesmo os identi-
154 A AÇÃO PASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 155

ficados com o Partido dos Trabalhadores ou a ele vincu¬ um nome: como se os problemas fossem produtos da “cons¬
lados, exercitam-se na negociação política com seus oposi¬ ciência” e da capacidade subjetiva de identificá-los. Há aí
tores, inclusive sindicais, ganhando espaço e presença no uma clara dificuldade para entender que os problemas exis¬
debate sindical e nas relações de classes, os trabalhadores tem, e são problemas políticos, porque existe a classe traba¬
rurais têm sido levados ao confronto, à relação de força lhadora e existem as diferentes categorias que a compõem,
com adversários que só ganharam e se fortaleceram du¬ como as dos diferentes tipos de trabalhadores rurais, pois as
rante a ditadura militar e o novo regime. Adversários que, classes só existem no antagonismo social que as gera.
na verdade, têm demonstrado escassa competência e habi¬ Ao mesmo tempo, os trabalhadores e os agentes de pas¬
lidade para a negociação política, preferindo antes a solu¬ toral, mais aqueles do que estes, dão lugar principal a uma
ção bestial do confronto armado e do radicalismo fascista fala que em assembleias anteriores também se fez presente,
da União Democrática Ruralista. A situação é, portanto, mas ficou diluída em formulações mais gerais e de maior
uma situação de impasse que só beneficia os grandes pro¬ impacto pastoral e político. Nesta assembléia, ganhou gran¬
prietários, pois não estão sendo obrigados, pelos trabalha¬ de peso a fala sobre as necessidades de sobrevivência dos tra¬
dores, a assumir as consequências de sua vitória: assumir balhadores (embora não tenha faltado quem se insurgisse
suas responsabilidades sociais e económicas para com o contra a palavra “sobrevivência”) em confronto com os pro¬
conjunto da sociedade, em particular para com os traba¬ blemas imediatos. E, sobretudo, um componente relativa¬
lhadores rurais, encontrando alternativas de sobrevivência mente novo: os trabalhadores falaram de seus problemas e
para as classes sociais às quais impuseram o seu jugo e das de suas dificuldades em nome de seus filhos, em nome das
quais extraem todos os benefícios. irovas gerações.
Um grupo disse ’textualmente que “não se sente à von¬
tade, com seus filhos na escola e assistidos”. Outro grupo
2. Uma nova consciência das debilidades das elites falou contra a violência e a luta, contra o confronto, em nome
da paz e da sobrevivência. Muitas afirmações foram feitas
Nesta assembléia de 1991, trabalhadores e agentes de sobre as más condições de comercialização dos produtos
pastoral manifestam-se desalentados, desanimados, derrota¬ agrícolas, sobre o favorecimento dos grandes proprietários,
dos. A derrota eleitoral do Partido dos Trabalhadores e das sobre juros altos, sobre inviabilidade da agricultura fami¬
esquerdas nas eleições de 1989 derrotou, também, a perspec- liar, sobre agricultores que estão vendendo ou abandonan¬
tiva que tinham de que só elegendo um presidente e “che¬ do suas terras para os grandes proprietários, sobre migra¬
gando ao poder” seria feita uma reforma agrária e seriam ções de pequenos agricultores, sobre seu fim. Em todas
solucionados os problemas das classes trabalhadoras. Só o essas falas, não mais a primazia da terra, mas a defesa do
socialismo poderia resolver esses problemas e bastaria a direito ao trabalho, do respeito ao valor do trabalho e ao
eleição do presidente por um partido de esquerda para que trabalho como centro na definição da vida do pequeno
o País se tornasse socialista. Como não se elegeu o presiden¬ agricultor. Mas trabalho vinculado ao seu meio de traba¬
te, não há socialismo. E como não há socialismo, não haverá lho, à terra. Foram claras as queixas contra a alternativa
reforma agrária nem serão resolvidos os problemas sociais. do trabalho sazonal e incerto. E trabalho como meio de
E como se os problemas existissem porque os trabalhadores assegurar à família e aos filhos saúde, escola, casa, traba¬
e agentes políticos foram capazes de concebê-los e dar-lhes lho, paz, justiça, etc. Portanto, uma clara definição do direito
156 A AÇÃO PASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 157

à terra como direito ao meio de trabalho e àquilo que o trabalho nem é o fim do pensamento e da prática revolucionários,
pode assegurar. Claramente, também, o trabalho pensado liberados e enriquecidos, isto, sim, pelo fim do bloqueio e
como produtor de mercadorias para um mercado que se da distorção representados pelo Estado e pela idéia do gol¬
reconhece como fator de desvalorização do trabalho e, por¬ pe de Estado. E possível que estejamos vivendo os últimos
tanto, carente de uma intervenção do Estado para que suas momentos de uma era de revoluções sociais, sobretudo na
regras sejam justas, não desvalorizem o trabalho e não des¬ América Latina, de confronto radical entre as classes so¬
moralizem o trabalhador. Portanto, os trabalhadores fala¬ ciais, era em que os camponeses desempenharam o papel
ram do trabalho como mediação da sobrevivência, um tra¬ principal. E possível que as revoluções estejam sendo su¬
balho que se explica e se revela por meio de seus resultados plantadas pelas insurreições e revoltas nacionalistas, étnicas
na continuidade das gerações. Em suma, um trabalhador e religiosas. Esse encolhimento das alternativas definidas
que disputa com seus exploradores o valor de seu trabalho, pela “guerra fria” e pelo confronto Leste-Oeste, entre países
sejam eles patrões ou sejam eles comerciantes, bancos, etc. socialistas e países capitalistas, não deveria acalmar as elites
Portanto, a questão da terra, e do trabalho foi posta em termos de um país miserável como o Brasil. Ao contrário, a supres¬
de reformas sociais e não em termos de reformas meramente eco¬ são dessas alternativas transfere para elas a responsabilida¬
nómicas, de mera redistribuição da propriedade. Os trabalha¬ de de encontrar outras alternativas e, sobretudo, a de abrir
dores querem mais. Querem mais do que a reforma agrária caminhos para a integração e a participação dos excluídos,
encabrestada pelos agentes de mediação. Querem uma re¬ como é o caso dos trabalhadores rurais (e esse não é um
forma social para as novas gerações, uma reforma que re¬ problema tido pela classe operária) e é o caso das massas
conheça a ampliação histórica de suas necessidades sociais, urbanas desempregadas e subempregadas.
que os reconheça não apenas como trabalhadores, mas A imposição de uma derrota tão ampla e radical aos
como pessoas com direito à contrapartida de seu trabalho, trabalhadores, como a não-inclusão de reformas sociais na
aos frutos do trabalho. Querem, portanto, mudanças so¬ agenda política do governo brasileiro, implica estreitar
ciais que os reconheçam como membros e integrantes da enormemente o caminho da luta social organizada e poli¬
sociedade. Anunciam, em suma, que seus problemas são tizada e implica que as elites tenham que engolir o arrom¬
problemas da sociedade inteira. Que a derrota política de bamento das barreiras de segurança do Estado e das classes
seus agentes de mediação não os suprime historicamente. dominantes pela violência irracional, anárquica e desorga¬
A falta de reforma agrária não acaba com o camponês, nizada dos sequestros, dos saques, dos linchamentos, dos
com o pequeno agricultor, com o trabalhador rural. Ao quebra-quebras, como estamos observando claramente to¬
contrário, multiplica as responsabilidades das elites políti¬ dos os dias. Com a diferença de que aí não há com quem
cas porque suprime uma alternativa de integração política, negociar. Essas formas irracionais de reação social às in¬
social e económica dessa massa de milhões de brasileiros justiças e à pobreza estão devastando as instituições, par¬
que vivem no campo em condições cada vez mais difíceis. ticularmente a polícia e a justiça, em que se apoia a ordem
A crise do socialismo de Estado certamente afeta uma social e política. O que, mais do que a insegurança dos
das alternativas em jogo nos conflitos que têm sido vividos pobres, amplia a insegurança dos ricos.
pelos trabalhadores rurais. Não nos esqueçamos, porém, Tudo depende, agora, de que as classes trabalhadoras
de que é crise do socialismo oficial, do Estado socialista. rurais, em particular, desenvolvam uma nova compreensão
Mas que, certamente, não é o fim das alternativas socialistas do que está ocorrendo, da força, mas também, das novas
158 A AÇÃO PASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 159

debilidades das elites; da necessidade de novas táticas e O problema agrário tende agora a aparecer com maior
estratégias na defesa de seus interesses. E, sobretudo, com¬ clareza e maior pureza: a reforma agrária aparece através das
preensão de que nessas novas debilidades das elites está a necessidades dos próprios trabalhadores. Não aparece como pre¬
sua força principal: força para cobrar direitos sociais, polí¬ texto (e meio) para outras transformações sociais que po¬
ticos e económicos que lhes estão sendo negados; força deriam ser do interesse de outras classes e grupos sociais.
para cobrar a negociação política desses direitos; força para Nesse sentido, não aparece no primeiro plano enquanto po-
denunciar que, na falta das reformas sociais, as elites são blema agrário. Aparece como condição para que outras neces¬
responsáveis não só pela pobreza e pelas más condições de sidades sejam atendidas: necessidade de sobrevivência, neces¬
vida, mas também pela corrosão e desmoralização das ins¬ sidade de emprego, necessidade de saúde, de educação, de
tituições e, portanto, pela deterioração das condições mo¬ justiça, de futuro, de paz para as novas gerações, de respeito
rais, políticas, sociais e económicas da vida de todos e não por sua própria lógica (camponesa) anticapitalista (isto é,
só dos pobres. por seu modo de pensar e de interpretar a vida), necessi¬
dade de integração política, de emancipação (isto é, de liber¬
tação de todos os vínculos de dependência e submissão),
3. A emergência política das necessidades imediatas de reconhecimento como sujeitos de seu próprio destino e
dos trabalhadores de um destino próprio, diferente, se necessário.
Antes, acreditava-se que a reforma agrária traria tudo isso
Muito do problema vem do fato de que os trabalhadores e que bastaria conquistar politicamente o Estado para que a
rurais não conseguiram aliados políticos, a não ser escassos reforma se concretizasse. Agora, é possível ver que a reforma
aliados nominais. A pedagogia que as entidades de media¬ é tudo isso e que o Estado é apenas um intermediário (pode¬
ção utilizaram não convenceu o outro, porque não reconhe¬ roso) que precisa ser mobilizado pela sociedade civil, pelos
ceu os problemas do outro. Esqueceram-se, os trabalhadores, movimentos sociais, pelos grupos de pressão.
de que estão sub-representados no Congresso Nacional, Até aqui, no imediato, os trabalhadores têm enfrentado
que teria papel fundamental na definição dos limites do os seus problemas através de estratégias de sobrevivência.
direito de propriedade. Sem apoio de outros grupos e clas¬ Agora está posto que é imperioso transformar essas estra¬
ses, a reforma seria (como foi) inviável. Não houve reforma tégias em estratégias políticas.
agrária nas sociedades capitalistas sem intervenção de um Os mesmo atos, as mesmas reivindicações as mesmas
grupo estranho aos trabalhadores rurais que a considerasse coisas, os mesmos fatos têm agora outro sentido, outro sig¬
vital para a sobrevivência do conjunto social. nificado, pois as circunstâncias mudaram. As mudanças
A derrota da proposta que se tinha de reforma agrária mencionadas e catalogadas como derrota da reforma agrá¬
(e que não é derrota da necessidade de reforma agrária ria são parte de mudanças mais amplas e profundas que
nem é derrota dos trabalhadores rurais) devolve o proble¬ abrangem o mundo inteiro.
ma aos protagonistas, aos sujeitos da luta no campo. Na Antes, era o Estado que dava significado à luta pela
verdade, foram derrotados os mediadores, que traduziram reforma agrária. Era o Estado que dizia o que ela signifi¬
mal e insuficientemente as necessidades e os projetos im¬ cava politicamente. E o Estado falava em nome da polari¬
plícitos na prática e nas lutas dos trabalhadores. Os traba¬ zação do mundo gerada pela “guerra fria”. A reforma al¬
lhadores foram derrotados também por seus aliados. terava o equilíbrio político dos diferentes países e punha
160 A AÇÀO PASTORAL
DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 161
na
em risco a aliança ocidental. As revoluçÿeS aSianas cia, proclamadas pelos trabalhadores rurais. Em conse¬
América Latina ganharam uma profundiÿ3 e
suy\eisi\a
quência, também, os sobrepostos objetivos políticos impu¬
materna a, seram a forma da mediação que viabilizaria o processo: a
que não tinham necessariamente (BolíV*a?
Cuba, Nicarágua). Os alinhamentos rpolític<?s intcl jjacionais
fundiário

organização o sindicato e o partido político. Finalmente,
ocorriam automaticamente, locar no pro blema
~ , .
a própria mediação passou a definir a identidade do sujeito
e
alinhava o país automaticamente com a "°ÿieLlca
nestes
(o trabalhador genérico), que devia enquadrar-se no estereó¬
tipo, assumir sua ideologia e projeto. E a natureza do pro¬
a China. A questão da reforma agrária P° ’
nacional , uma jeto e das necessidades históricas de que decorria. Nesse
anos todos, roí uma questão de segurançan
r • i
,
questão que pressupunha ser ela meio e inst* 11 ,
âmbito, o projeto da classe predominou sobre a possibili¬
n , . . . . 1
.
sumiveis inimigos externos, isto e, os gov£AA
.
dos 1países dade e conveniência do reconhecimento das necessidades
e seSm anQa diversificadas e “menores” de uma categoria “limitada”
socialistas. Quando deixou de ser uma quest**0
nacional> deixou de ser necessária. como a dos trabalhadores rurais. Predominou o pressu¬
na assem posto da classe social e de que só a classe é politicamente
O importante das novas posições expfessas
bléia da CPT está em que o mediador, agoia’
Sta
.C e SC1
íem eficaz. Entretanto, a última década, em vários países, re¬
vela a emergência das categorias parciais como agentes ati¬
outro. Agora é a sociedade civil, e não ma*s ° .
° . cimeiro lugar. °’
cluÿA
vos do processo político: o gênero (as mulheres), as gera¬
°. . e
r •
u
deve dar sentido à reforma agraria em 1pt
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reforma agrária deve se constituir numa \ eforma
social ções (os jovens, os velhos), as minorias étnicas (os índios,
não apenas em reforma económica. Por isso? não
pode, em as nacionalidades, os negros) e religiosas (os cristãos iden¬
primeiro lugar, ser remetida à questão do abastecimento. tificados com a teologia da libertação, o fundamentalismo
Deve ser remetida à questão que foi anunÿ1ada
aqui pelos islâmico). Um quadro em que as classes sociais têm se re¬
trabalha-
grupos de trabalho e vem sendo anunciada pelos velado ineficazes se ignoram que no seu interior (ou, até,
de suas novas ultrapassando seus limites) há muitas e distintas forças. Os
dores: a da sobrevivência da sociedade no destin°
gerações. projetos sociais não se reduzem nem se mediatizam neces¬
O que estou chamando de necessidades àe s°
íevivcncn sariamente pelos limites e possibilidades das classes sociais.
ja se manifestava desde as primeiras reunxu
Além disso, as expressões da classe precedem a própria
termos classe. A substância das classes, seus antagonismos mais
dores de que participei. Exatamente nos jtiesmos
em que aparece hoje. *
, fundamentais, recua para o fundo da cena em favor da
a aca aia*n precedência de suas formas imediatas e mais tensas. O pro¬
As tendências e grupos políticos de esqtlCl
. j .. . ° r agentes
tendo exito em convencer
. A
de \oral de que
pasÿ 1
de cesso atual revela a força das formas sociais e, com elas,
nada adiantava todo o trabalho que faziam sG
sua pi oposta das particularidades, como sugere Henri Lefebvre. Esse
m Sian, processo não está desligado das transformações na estru¬
não fosse além dos limites da Igreja e da reÿêia0‘
de parte, desse ponto de vista, todo o
teria sentido se transformado em momeúto
trabÿkÿPasÿÿÿ°
o piocesso
tura e nas funções do Estado, da sua perda de substância
em favor da sociedade civil.
político. A política, e sobretudo a política Paitl anaJ Pas No Brasil, o processo de crise e transformação política
sou a definir o sentido da ação pastoral. E t11 conÿeÿÿncÿa» do Estado se confundiu com a transição do regime militar
para o regime civil. E o crescimento da sociedade civil se
o objetivo maior de transformação politicÿ \ , . „
j A
AQ sobreviven- confundiu com a oposição do povo à ditadura. Essa con-
dominou sobre as necessidades imediatas?
mmmm

162 A AÇÃO PASTORAL DAS IGREJAS Kl I'ROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 1(33

fusão não viabilizou a clareza das mudanças que ocorriam sentido se for pluralista, e compreender a diversidade do
na sociedade civil e no Estado. Em consequência, superado “nós” e do “outro”, se reconhecer as particularidades num
o regime militar, não ficou claro que a sociedade civil tinha
outras tarefas, que o Estado já era outra coisa, que as una¬
e noutro caso, a diversidade dos interesses do “nós”
sas e dos nossos aliados. Se reconhecer que o mundo da

nos¬

nimidades acima das classes e das categorias particulares vida não se limita às oposições económicas, mas envolve
já eram relativamente ineficazes, pois haviam chegado ao outras oposições e contradições, outras necessidades vitais,
fim. que não apenas a necessidade de trabalhar e de comer.
Essa crise e esses desencontros tornaram possível a visi¬ Essa “volta” propõe grandes desafios, sobretudo em re¬
bilidade das denúncias e demandas dos trabalhadores ru¬
rais, seus temores. Entretanto, isso não é tudo. Os agentes
lação àquilo que os próprios trabalhadores construíram
os sindicatos e os partidos. O desafio está na aparência de

de pastoral tendem com facilidade ao maniqueísmo. E desencontro e oposição que as diferenças podem assumir.
pode parecer-lhes que, devido a todas essas mudanças, ele¬ A volta, porém, deve ser também o movimento de demo-
vem retornar ao passado, rejeitar as organizações, despoli- ( i atização das organizações, para que reconheçam e assu¬
tizar sua ação (já começam a entender assim quando se mam a diversidade da unidade, a pluralidade das situações,

os partidos ou deixar a Igreja).

insurgem contra a suposição falsa de que devem deixar necessidades e reivindicações. E evidente que esse movi¬
mento de volta questiona os monolitismos, as unanimida¬
O que se tem agora é um novo desafio: restaurar a vi¬ des obrigatórias, as lutas por hegemonia no interior das
talidade “da base” e “do real”. Porém, agora como parte organizações como lutas prioritárias.
de um quadro político em que os trabalhadores já dispõem ’ Crescemos e aprendemos na “ida” e devemos aprender
de organizações nacionais (e não mais meramente locais ou e crescer na “volta”. E nesse movimento que o fragmento

regionais) os sindicatos e os partidos políticos. O movi¬
mento “de volta” à base e ao trabalho de base, de redes-
se faz parte do todo, se reconhece no todo e no próprio
movimento.
coberta da base, é um movimento enriquecido por essas

conquistas os trabalhadores criaram as grandes media¬
ções políticas e sindicais de suas ações, de suas lutas, de I. A tática do alternativo e seu sentido
suas necessidades. Quando a ditadura começou, os traba¬
lhadores não as tinham. Além disso, ganharam aliados im¬ A essa altura, ganha grande importância a construção

portantes nesse crescimento as igrejas. (ática das alternativas às dificuldades, misérias, injustiças e
Na “ida”, no distanciamento em relação aos grupos de
base, na busca das mediações politizantes, os trabalhadores

insuficiências do dia-a-dia a inventividade social dos traba¬
lhadores. As experiências e propostas de agricultura e co¬
foram “puristas”, exclusivistas, genéricos (cliluinclo-se a si mercialização alternativas sempre foram desaconselhadas e
mesmos e aos outros na categoria genérica de trabalhador), desdenhadas em nome da idéia de que ao capitalismo é

excludentes estabelecendo limites radicais para os de
dentro e os de fora, eles e os outros, aliados e adversários.
alternativo o socialismo, quase sempre equivocadamente pen¬
sado em termos da estatização da sociedade. Por outro lado,
Na “volta” à base, o processo só tem sentido se enrique¬ as pequenas mudanças e reformas foram rejeitadas em
cido pela experiência, pelo pensamento crítico e o discer¬ nome das transformações radicais e definitivas. Esse abso-
nimento que dele decorre. Na volta, o processo só tem luiismo bloqueou durante longos anos iniciativas táticas dos
164 A AÇÃO PASTORAL DAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 165
IGREJAS
trabalhadores. Os projetos globais em nome das mudanças que é essencial para compreender os processos visíveis e
globais foram contrapostos à gradual construção da alter¬ os processos ocultos da vicia social, com o conhecimento ideo¬
nativa em nome de necessidades urgentes, reais e imediatas lógico, disseminado pelos partidos, pelo qual se orientam.
— táticas. Mas, também, num certo sentido, estratégicas. Na verdade, uma lentidão de aprendizado em face da ra¬
pidez, da profundidade e da direção das mudanças sociais
Pois, tais experiências ressocializaram os trabalhadores,
romperam interpretações e dependências, viabilizaram a e políticas. Mostraram-se dependentes do arsenal de fór¬
criatividade cultural e ideológica, ajudaram a construir um mulas e conceitos ideológicos, mas não científicos, que vêm
novo ponto de vista sobre a vida, sobre a sociedade, sobre das organizações partidárias e sindicais, e pouco adestrados
os outros e sobre eles mesmos. Ainda persistem idéias sobre no manejo do pensamento crítico. Não separam teoria e
o trabalho coletivo como espécie de solução mágica e de¬ prática nem estabeleceram a relação entre teoria e prática.
finitiva para os problemas dos trabalhadores rurais. Em Para eles, a teoria não se enriquece com a (sua) prática
alguns lugares, chegou-se ao extremo de só aceitar a refor¬ nem a (sua) prática com a teoria e a crítica da teoria. Os
ma agrária se a propriedade fosse coletiva, o que a lei não agentes de pastoral não conseguem lidar bem com um dos
viabiliza nem reconhece. Em outros, os trabalhadores co¬ —
aspectos de seu serviço aos pobres o de serem mediado¬
meterem a imprudência de não aceitar reforma nem docu¬ res na elaboração interpretativa e teórica de sua experiên¬
mentos de propriedade em nome do trabalho coletivo (o cia, de sua prática, de sua luta. Como diria Henri Lefebvre,
que quer dizer que, do ponto de vista oficial e desta socie¬ há um desencontro entre o concebido e o vivido. As pa¬
dade, a conquista da terra não foi completada pelo reco¬ lavras e os conceitos não correspondem à prática e à ex¬
nhecimento e a consolidação de um direito). Nem sempre perimentação da prática.
se percebe o coletivo como relativo, que pode dar certo em A assembléia revelou, mais uma vez, as dificuldades teó¬
algumas coisas, mas não necessariamente em outras. Essa ricas (e doutrinárias) dos agentes de pastoral. Os agentes
invenção de uma sociabilidade nova nem sempre é com¬ lidam com idéias que não correspondem à sua prática. E
preendida como experiência da diversidade. No mais das não conseguem fazer a revisão crítica das palavras e idéias
vezes, perde-se no esquematismo das polarizações absolutas a partir do vivido. Na verdade, eles têm uma relação de

e falsas ou coletivismo ou individualismo. Não se leva em
conta a necessidade social de viver a diversidade. Nem se
recusa com o vivido, suas contradições, o senso comum
que o compõe, etc. Recusa em nome de quê? Em nome
leva em conta a criatividade que nela há. da hipótese da revolução, mas não em nome cia revolução, da
O ponto cie vista alternativo emergiu com mais facilida¬ revolução no modo de vida; não em nome de rupturas
de nesta assembléia porque as organizações esgotaram o reais (ou sua possibilidade); não cm nome do que Heller
arsenal de suas fórmulas verbais manipuladoras. O acervo chamou de necessidades radicais nem mesmo em nome
limitado de receitas passadas pelas organizações sindicais das meras necessidades sociais de todos os dias.
e partidárias deixou os agentes de pastoral desarmados Ao mesmo tempo, caíram na armadilha ideológica de
diante das reiteradas queixas dos trabalhadores contra as centrar suas interpretações na categoria limitada de classe
condições de vida em seu conjunto. social, mesmo quando não estão lidando com classes sociais
Esse fato sugere o despreparo teórico dos agentes e a ou com ações, fenômenos e acontecimentos que esgotam
insuficiência de suas orientações ideológicas. Aliás, sugere seu sentido no âmbito das classes ou de uma classe social.
que eles confundem, frequentemente, o conhecimento teórico, Exatamente num momento em que a classe social, enquanto
166 A. AÇÃO PASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 167

tal, vem perdendo sua eficácia histórica. À medida que a condições de enfrentar o peso das palavras, da retórica de
classe ganha muitas faces, ao mesmo tempo em que recla¬ assembléias anteriores. De certo modo, na formalização das
ma, também, melhor definição de seus contornos. propostas novas e das prioridades, não conseguiu sustentar
Em nenhum momento os agentes de pastoral, por blo¬ a convicção de que a expressão reforma social é reformista
queio ideológico, conseguiram assumir que sua prática está e não corresponde, portanto, à suposição de que a prática
contraditoriamente referida a várias classes sociais: os cam¬ que desenvolvem é revolucionária (num texto, substituíram
poneses e sua diversidade (e sua autonomia relativa); os “reforma social” por “transformação social”, o que é outra
assalariados e sua diversidade (temporários e permanen¬ coisa, mais vaga, mais escamoteadora).
tes); o trânsito eventual entre essas duas condições (mi¬ Durante os debates iniciais da assembléia, ficou claro
grantes, pequenos proprietários temporariamente assalaria¬ que a proposta de reforma agrária (economicista) derrota¬
dos); a classe média (e suas limitações de compreensão) a da, apareceu na consciência dos trabalhadores, em termos
que pertencem os próprios agentes de pastoral e os pró¬ de um projeto novo de reforma (integral) —a reforma agrá¬
prios agentes sindicais. ria como parte de uma reforma social que deve ser cobrada
Esses desencontros respondem por fantasias que trouxe¬ das classes dominantes, da sociedade (como foi dito, não
ram grandes dificuldades ao trabalho pastoral. A maior tem havido reforma agrária sem participação ou iniciativa
delas, a de um anticapitalismo ingénuo que implica a re¬ das elites). A idéia que circulou (e que não aparece no
cusa dos símbolos do capitalismo (o dinheiro, a mercado¬ documento) é a de que a reforma agrária deve ser conce¬
ria), mais do que na recusa do próprio capitalismo. Esque- bida como reforma social na medida em que sua falta não
cem-se de que o símbolo da coisa tem uma existência penaliza apenas os trabalhadores vítimas da expulsão, do
dependente da própria coisa, de sua vida útil, de seu uso. despejo, da exclusão, da falta de terra para trabalhar. Essa
Os clássicos já haviam mostrado que o dinheiro não é uma falta põe em risco a sociedade inteira. Daí que a ação deva
só e mesma coisa todo o tempo. Em seu movimento, muda ser a de responsabilizar as elites pela penalização que elas
de significado e de função. Nega-se no percurso. Assume impõem a toda a sociedade, na medida em que não assu-
funções opostas entre si. Afirma o capital e afirma o tra¬ mem plenamente a responsabilidade e os deveres do m an¬

balho reproduz um e outro. Não reproduz só o poder,
mas também, como diria Lefebvre, o resíduo do poder,
do político.
Uma comparação entre as diferentes assembléias da
aquilo que não pode ser reduzido ao poder e por ele sub¬ CPT, desde 1975, provavelmente indicaria que cada uma
jugado, e a possibilidade de sua insurreição. O mesmo vale esteve dominada por um tipo de emoção. E, ao mesmo
para a mercadoria, que não é apenas forma, mas contra¬ tempo, que cada uma se ajustou às circunstâncias da con¬
dição e unidade de forma e conteúdo. juntura eclesial e política. Sem que isso tornasse conjuntu¬
Essas dificuldades são dificuldades das circunstâncias rais as demandas sociais e as propostas. Tudo isso parece
que estamos vivendo. Tudo o que sabemos se torna muito indicar que diferentes níveis de urgência e de compreensão
depressa ultrapassado. E as palavras que nos deram segu¬ procuram encontrar-se nessas assembléias. E parece indi-
rança no passado recente ganham um peso enorme e in¬ car, ao mesmo tempo, a força do desencontro. De qualquer
devido. modo, no desencontro e na tentativa do encontro parece
Na hora de formalizar as propostas e interpretações que sugerida a existência de uma perspectiva de onde se podem
foi possível fazer durante os debates, a assembléia não teve vislumbrar essas diferenças, a legalidade própria de cada
168 A AÇÀO PASTORAL DAS IGREJAS RETROCESSO NA REFORMA AGRÁRIA 169

nível. Basicamente, parece que cada tipo de prática revela maniqueísmo do nós absoluto e do outro absoluto, o classifi-
e denuncia que a realidade social é constituída, na verdade, <acionismo superficial, pode dar a segurança precária de

por diferentes realidades dependendo da posição social
de quem vive (e sofre) cada uma.
uma interpretação das coisas centrada num nós fechado e
auto-suficiente.
Nos discursos da CPT há sempre necessidade, sobretudo Por aí vale a pena refletir sobre o papel do assessor e
nas assembléias, de distinguir a fala sobre a realidade da fala do seu trabalho intelectual com esses grupos: o que pensa
que é interpretação da realidade. E quase sempre o pressu¬ do intelectual esse tipo de militante? Como vê e percebe
posto é o de que a “realidade” é mais verdadeira do que o seu trabalho? O que é o trabalho intelectual para ele?
a sua interpretação. Ou, no mínimo, mais legítima. A “rea¬ O assessor é o interlocutor que ajuda a interpretar ob¬
lidade”, por sua vez, aparece, no primeiro plano, como o jetivamente os acontecimentos, as alterações na condição
relato de casos, acontecimentos, experiências. Por aí se bus¬ do trabalho pastoral, os equívocos. O assessor só o é na
ca o vivido, quase sempre confundido com o relatado. Não reflexão crítica sobre o trabalho pastoral. Ele tem de ser
se conseguiu, ainda, incorporar a idéia de que o con-vivido necessariamente o outro, o agente ativo da pedagogia do
com o diferente, com as instâncias ocultas do real (com o outro, do que sai de si mesmo para se ver melhor, inteiro.
que não é imediatamente realidade), é também vivido, ex¬ Ele não é nem justificado r nem absolvedor de moribundos.
perimentado, interpretado (e sofrido!). Seu trabalho intelectual só tem sentido enquanto o corpo
A história das assembléias da CPT tem sido uma história está vivo, dotado de necessidade de consciência. Por isso mesmo,
de busca das mediações ocultas que dão sentido aos casos o assessor não orienta, não define rumos. Deve fazê-lo quem tem
— uma espécie de cimento que emenda a fratura da dis¬
persão e do desencontro entre os própios casos. A busca
consciência do que faz.

do sentido do fragmento é a diretriz que ajuda a entender


um dos aspectos do serviço pastoral.
Nesse quadro, o desencontro mencionado antes revela-se
na crítica à linguagem supostamente abstrata, ao teórico.
Ao mesmo tempo em que se busca sentido, recusa-se a
função e as peculiaridades do conhecimento que dá sentido
a essa busca de sentido.
E possível que por trás dessa ambiguidade haja o temor
de que se perca o sentido daquilo que já tem um sentido
próprio. E que a diluição da prática em esquemas mais
amplos de significação, represente perda de controle e alie¬
nação da própria verdade em favor da verdade “do outro”,
daquele que interpreta.
Por aí talvez se possa entender o maniqueísmo conceituai
e o corporativismo que nele se apoia. Enfim, a dificuldade
para utilizar o pensamento como um instrumento criativo
e flexível no entendimento da diversidade do social. O

i
|< >SÍ\ DE SOUZA MARTINS 171
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da Vida Cotidiana, na mesma Universidade, de que se tornou italiana: Non C’è Teira da Coltivare Quest 'Estate, trad, de Piera Feloj
Professor Associado. Foi Mellon Visiting Professor da Universidade Galli, Vecchio Faggio Editore, Chieti, 1988].
da Flórida (EUA), em 1981. Foi o terceiro brasileiro eleito pro¬ 10. A Reforma Agrária e os Limites da Democracia na “Nova República ”
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bridge (Reino Unido), que ocupou no ano acadêmico de
movimentos sociais do campo), Editora Hucitec, São Paulo, 1989.
1993/94. Em Cambridge, foi, também, eleito fellow do Trinity
Hall College. Em 1993, recebeu do CNPq (Conselho Nacional 12. Subúrbio (Vida cotidiana e História no subúrbio da cidade de São
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da SBPC (Socie¬ Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha),
dade Brasileira para o Progresso da Ciência) o Prémio “Érico Co-edição Editora I lucitec/Prefeitura de São Caetano do Sul (SP),
Vannucci Mendes ” pelo conjunto de sua obra. Recebeu, ainda, o 1992 [Prémio Jabuti 1993 de Ciências Humanas, da Câmara Brasileira

Prémio “Visconde de Cairu” 1977 (Menção Honrosa), do Instituto do Livro].
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/

Essa contradição nos persegue. E


impossível entender o Brasil sem levar
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zo (ed), Constraints on Development in Brazil: Economy, Society and
se renova a cada momento. Somos o
Institutions, Macmillan, London (no prelo).
que o autor define como sociedade de
c) Antologias história lenta.
Este livro trata da difícil combina¬
1. (Em colaboração com Marialice Mencarini Foracchi) Sociologia e So¬ ção que faz com que setores da so¬
ciedade (Leituras de Introdução à Sociologia), [l.a edição: 1977], ciedade historicamente marcados pela
16.a tiragem, LTC Editora, Rio de Janeiro, 1994.
2. Introdução Crítica à Sociologia Rural, [la. edição: 1981 1, Editora Hu-
tradição conservadora, como a Igreja,
citec, 2.a edição, São Paulo, 1986. tenham se tornado ativos protagonistas
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1983. profundas. E que setores da sociedade
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São Paulo, 1993 [Trad, italiana: Linfanzia Negata, Vecchio Faggio
organizados cm partidos de esquerda
Editore, Chieti Scalo (Itália), 1991]. ou de centro-esquerda tenham assu¬
5. A Aventura Intelectual, de Henri Lefebvre, Editora Hucitec, São Paulo mido a missão conservadora de fazer
(no prelo). da ordem o princípio regulador do pro¬
gresso e do passado o tempo regulador
d) Publicações avulsas
do possível e do futuro. Em A Chegada
1. Agriculture and Industry in Brazil: Two Studies, Working papers no. 27, do Estranho, o autor deste livro já havia
Centre of Latin American Studies, University of Cambridge, 1977. assinalado que a nossa sociedade com¬
9. A Escravidão em São Caetano (1598-1871), Co-edição da Associação bina a portentosa fachada barroca com
Cultural Recreativa e Esportiva Luís Gama, do Sindicato dos Traba¬
a modesta e precária estrutura de taipa
lhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de São Cae¬
tano do Sul e do CEDI
— Centro Ecuménico de Documentação e
Informação, São Caetano do Sul (SP), 1988, 28 pp.
socada ou de pau-a-pique. Somos uma
sociedade barroca, dominada pelos
3. A Escravidão em São Bernardo, na Colónia e no Império, Cocdição da adornos da aparência. Os pobres vo¬
Pastoral do Negro —Quilombo Regional do ABC e do CEDI —Centro
tam nos ricos e nos conservadores. Os
Ecuménico dc Documentação e Informação, São Bernardo do Cam¬
po (SP), 1988, 46 p. ricos e cultos votam na esquerda e
pelas transformações radicais.

Capa: Estúdio Hucitec


Ilustração da capa: Jean Baptiste Debret, “Um
funcionário a passeio com sua família”

d
T

E impossível entender o Brasil sem levar em conta a contrail i


ção que nos persegue: a combinação de moderno e tradicional
que freia o nosso desenvolvimento social e político e que se
renova a cada momento. Somos uma sociedade de história
lenta. Essa difícil combinação faz com que setores da sociedade
historicamente marcados pela tradição conservadora, como a
Igreja, tenham se tornado ativos protagonistas da revolução e
das mudanças sociais profundas. E que setores da sociedade
organizados em partidos de esquerda ou de centro-esquerd..
tenham assumido a missão conservadora de fazer da ordem
princípio regulador do progresso e do passado o tempo regul
dor do possível e do futuro. Somos uma sociedade barroc
dominada pelos adornos da aparência.
**
i

ISBN 85-271 -02MO

9 788527 10.

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