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Mulheres, negras e gestoras:

porque sim!, porque é necessário!


14 mulheres, 14 biografias repletas de complexidades. Este
livro reúne histórias potentes que nos dão a oportunidade de
apropriarmos melhor da nossa História: mineira, brasileira. E
como bem sugere a deputada Andreia de Jesus, pode ser lido de
duas formas: a partir de suas semelhanças ou a partir de suas
especificidades. E são duas formas complementares, pois as
entrevistadas entrelaçam vivências, sentimentos e memórias ao
contexto familiar, social, cultural, político e histórico nos quais elas
viveram e vivem.
As reflexões aqui contadas são fruto de trajetórias pessoais,
sociais e profissionais associadas a um tempo, a um espaço, a um
território. Nesse sentido, os relatos são matéria e nos fazem seguir
do particular ao geral, do micro para o macro, num movimento
sutil, como o das lentes das antigas máquinas fotográficas.
Como disse Lélia Gonzalez, mulher negra e mineira, citada por
algumas entrevistadas, “a emoção, a subjetividade e outras
atribuições dadas ao nosso discurso não implicam na renúncia à
razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais
humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso,
de uma outra razão.”
A cada entrevista somos convidadas a lembrar de nossas próprias
trajetórias e instigadas a pensar em como queremos nosso futuro
e o que fazemos, hoje, para transformar nossa realidade a partir
dessa outra razão.
Por meio de seu grupo interdisciplinar Egedi (Grupo de Estudos
sobre Estado, Gênero e Diversidade), a FJP orgulha-se, portanto,
e enormemente em trazer a público o segundo volume da série
Sempre Vivas, uma coleção de biografias coletivas sobre mulheres,
agora, mulheres negras que ocuparam ou ocupam postos como
gestoras públicas.
Lembrando que, para as organizadoras do livro, registrar é resistir,
e eu acrescentaria, é também reagir.

Carolina Proietti Imura


Diretora de Políticas Públicas da Fundação João Pinheiro
Fonte: Instituto Alzira.
MULHERES, NEGRAS E
GESTORAS:
PORQUE SIM!

Letícia Godinho e Renata Souza-Seidl


Organizadoras

Belo Horizonte
Fundação João Pinheiro | 2021
Governo do Estado de Minas Gerais
Governador | Romeu Zema Neto
Equipe técnica
Vice-Governador | Paulo Eduardo Rocha Brant
Secretária de Estado de Planejamento e Gestão | Luísa Cardoso Barreto Organização e coordenação técnica
Letícia Godinho e Renata Souza-Seidl
Fundação João Pinheiro
Presidente | Helger Marra Lopes Equipe de Pesquisadoras
Vice-Presidente | Mônica Moreira Esteves Bernardi Ana Paula Salej
Jessyka de Jesus Lopes Martins
Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho
Letícia Godinho
Diretora geral | Maria Isabel Araújo Rodrigues
Diretora adjunta | Carla Bronzo Ladeira Maria Clara Souza Mendes
Maria José Nogueira
Diretoria de Políticas Públicas
Marina Alves Amorim
Diretora geral | Carolina Proietti Miura
Matheus Arcelo Fernandes Silva
Coordenador geral | Marcos Arcanjo de Assis
Mônica Costa Silva
Fundação João Pinheiro Nícia Raies
Alameda das Acácias, 70, São Luiz Belo Horizonte – MG. CEP 31275-150 Rosânia Rodrigues de Sousa
Telefones: (31) 3448-9580 e 3448-9581
Renata Souza-Seidl
E-mail: comunicacao@fjp.mg.gov.br
Site: http://www.fjp.mg.gov.br Sérgio Luiz Felix da Silva

Estagiário
M956 Mulheres, negras e gestoras : porque sim! / organizado por Letícia Guilherme dos Reis Leão Costa
Godinho e Renata Souza-Seidl. – Belo Horizonte : Fundação João
Pinheiro, 2021. Coordenação editorial – Série Sempre-Vivas

340 p. : il. + 1 livreto. – (Sempre-vivas ; 2) Marina Alves Amorim, Ana Paula Salej e Letícia Godinho

Projeto Gráfico, Diagramação e Capa


ISBN 978-65-88757-02-4 Agência Braspub e Empreendimentos - Designers: Gabriela Reis / Walyson Gomes

1. Biografia. 2. Negras. I. Godinho, Letícia. II.. Seidl, Renata III. Fundação Grafite utilizado na capa
João Pinheiro. IV. Série. Viber (Minas de Minas Crew)
CDU 92 Revisão e normalização – Coordenação de editoração da Fundação João Pinheiro
CDD 920
Ana Paula da Silva
Deysiane Marques Franco
Ficha catalográfica elaborada por Ana Paula da Silva CRB-6 / 2390
Todos os direitos reservados à Fundação João Pinheiro. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, por Apoio administrativo
qualquer meio, desde que citada a fonte. Gislene Aparecida de Andrade Cruz
Este livro foi impresso com recursos da Emenda Parlamentar n. 43.783 – por indicação da deputada Rayana Maciel Caldeira Alves
estadual Andréia de Jesus / Psol-MG.
Conselho Editorial – Fundação João Pinheiro
Alexandre Queiroz Guimarães Agradecimentos
Bruno Lazzarotti Diniz Costa
Ester Carneiro do Couto
Agradecemos a toda a equipe técnica da Fundação João Pinheiro, especialmente
Fernando Martins Prates
à Ana Paula da Silva, Deysiane Marques Franco, Etianne Costa, Gislene Aparecida de
Leonardo Barbosa de Moraes Andrade Cruz e Rayana Maciel Caldeira Alves, cujo suporte foi fundamental para a reali-
Letícia Godinho de Souza zação desta obra; às pareceristas do Conselho Editorial da Fundação, pela leitura atenta
Marcos Antonio Nunes e comentários valiosos. À equipe da Gabinetona, pelo financiamento e apoio constante.
Maria José Nogueira
A Débora Menezes Alcântara e Michele Lopes da Silva Alves, intelectuais que
Nelson Antonio Quadros Vieira Filho
contribuíram de forma decisiva para nosso aprofundamento teórico, amadurecimento
Olinto José Oliveira Nogueira
de hipóteses e questões de investigação; a Merilane Emanuele Cardoso e Camila Natália
Raimundo de Sousa Leal Filho
Ferreira Teófilo Alves, gestoras públicas que generosamente colaboraram com a discus-
Simone Cristina Dufloth
são do instrumento de pesquisa.

Às Minas de Minas, que cederam gratuitamente o grafite utilizado na capa.

Às mulheres que aceitaram o convite para participar da obra: Cleide Barcelos,


Cleide Hilda de Lima Souza, Daniela Thiffany, Diva Moreira, Elaine Dias, Iara Félix Pires
Viana, Larissa Amorim Borges, Macaé Maria Evaristo, Magda Andrade Neves, Maria do
Carmo Ferreira da Silva, Nila Rodrigues Barbosa, Patrícia Maria de Souza Santana, Xica
da Silva, Yone Gonzaga, assim como à geração de mulheres que as antecederam, cuja luta
reverenciamos e homenageamos.

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sumário
NOTA DE ABERTURA 14
Maria Isabel Araújo Rodrigues e Mônica Moreira Esteves Bernardi

APRESENTAÇÃO 16
Andreia de Jesus

PRÓLOGO 20
Organizadoras

CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO 23
Letícia Godinho, Renata Souza-Seidl e Ana Paula Salej

CAPÍTULO 2
MACAÉ MARIA EVARISTO 41
Macaé Maria Evaristo dos Santos, Renata Souza-Seidl e Letícia Godinho

CAPÍTULO 3
LARISSA AMORIM BORGES 63
Larissa Amorim Borges, Jessyka Martins e Matheus Arcelo Fernandes Silva

CAPÍTULO 4
NILA RODRIGUES BARBOSA 82
Nila Rodrigues Barbosa, Marina Alves Amorim e Mônica de Cássia Costa Silva
CAPÍTULO 5 CAPÍTULO 11
DANIELA TIFFANY 104 ELIANE DIAS 225
Daniela Tiffany do Prado de Carvalho, Leticia Godinho e Renata Souza Seidl Eliane Dias, Rosânia Sousa e Sérgio Luiz Felix da Silva

CAPÍTULO 6 CAPÍTULO 12
PATRÍCIA MARIA DE SOUZA SANTANA 121 XICA DA SILVA 244
Patrícia Maria de Souza Santana, Mônica de Cássia Costa Silva e Marina Alves Amorim Francisca Maria da Silva, Maria Clara Mendes e Ana Paula Salej

CAPÍTULO 7 CAPÍTULO 13
IARA FELIX PIRES VIANA 142 MAGDA ANDRADE NEVES VILAÇA 260
Iara Felix Pires Viana, Matheus Arcelo Fernandes Silva e Jessyka Martins Magda Andrade Neves Vilaça, Jessyka Martins e Maria José Nogueira

CAPÍTULO 8 CAPÍTULO 14
MARIA DO CARMO FERREIRA DA SILVA 163 CLEIDE HILDA DE LIMA SOUZA 281
Maria do Carmo Ferreira da Silva, Leticia Godinho e Renata Souza-Seidl Cleide Hilda de Lima Souza, Maria Clara Souza Mendes e Matheus Arcelo
Fernandes Silva

CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 15
CLEIDE BARCELOS 183
Cleide Barcelos, Sérgio Luiz Felix da Silva e Rosânia Sousa DIVA MOREIRA 297
Diva Moreira, Maria José Nogueira e Jessyka Martins

CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 16
YONE GONZAGA 202 ALGUMAS NOTAS CONCLUSIVAS 318
Yone Maria Gonzaga, Ana Paula Salej e Maria Clara Mendes
Renata Souza-Seidl e Letícia Godinho
Nota de
Abertura
Mulheres, negras e gestoras: porque sim!, é uma obra que Organizada pela Pesquisadora Letícia Godinho e pela Pesquisadora e Especialista
compõe a Série Sempre-Vivas, coleção de biografias coletivas de em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Renata Souza Seidl, a obra gira em torno
mulheres, realizada pelo Grupo de Pesquisa Estado, Gênero e Diversi- da igualdade racial e de gênero, focando no trabalho e trajetória de mulheres negras
dade (Egedi) da Fundação João Pinheiro (FJP). mineiras que ocupam ou ocuparam posições de destaque na administração pública.
Por meio de história oral, a obra mergulha na trajetória de mulheres negras na gestão
Criado em dezembro de 2014, o Egedi marca a transversali-
pública, reconstruindo e analisando seus percursos de vida, lutas e de trabalho na admi-
dade dos trabalhos da FJP ao reunir de forma exitosa pesquisadoras e
nistração pública em Minas Gerais. Aqui deixamos o convite aos leitores e leitoras para
pesquisadores da Escola de Governo, Diretoria de Politicas Públicas e
este instigante e rico mergulho!
Diretoria de Estatística e Informações.

Ana Paula Salej; Jessyka Martins; Letícia Godinho; Maria Clara


Mendes; Maria José Nogueira; Marina Alves Amorim; Matheus Arcelo
Fernandes Silva; Mônica Costa Silva; Nícia Raies Moreira de Souza;
Renata Souza Seidl; Rosânia Rodrigues de Sousa e Sérgio Luiz Felix da
Silva deram vida a esta incrível obra. Com formações diversas e multir-
racial, estas pesquisadoras e pesquisadores conferem uma marca ao
Egedi, que é o seu cuidado com a diversidade e a diferença.

A pesquisa, que deu origem à obra, foi elaborada com o apoio de


emenda parlamentar executada no âmbito do orçamento do Estado
de Minas Gerais, na qual o Egedi conseguiu aprovação em consulta
pública entre 211 iniciativas da sociedade civil e do poder público
nas áreas de Cultura, Direitos Humanos, Educação, Meio Ambiente,
Mobilidade, Políticas Urbanas, Política Habitacional, Políticas Indíge-
nas, Políticas para Comunidades Quilombolas, Políticas para Povos e
Comunidades Tradicionais, Políticas Sociais, Segurança Alimentar e
Nutricional, Promoção da Igualdade de Gênero, Promoção da Igual- Maria Isabel Araújo Rodrigues
dade Racial e Étnica, Saúde e Segurança Cidadã. A consulta pública foi
Diretora da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro
realizada pela Gabinetona, mandato coletivo, aberto e popular repre-
sentado pelas vereadoras Bella Gonçalves e Cida Falabella, pela depu- Mônica Moreira Esteves Bernardi
tada estadual Andréia de Jesus e pela deputada federal Áurea Carolina. Vice-Presidente da Fundação João Pinheiro

14 15
Apresentação
Existem duas formas de ler este livro que você tem em mãos: as
histórias dessas mulheres negras na administração pública podem ser Para nós, estar na administração pública não é apenas um emprego – embora isso
lidas pelo que têm de similar, mas também em suas especificidades. não seja menos importante em um país onde as mulheres negras ainda têm os piores
Suas trajetórias pessoais e profissionais, os pensamentos que elabo- indicadores no mercado de trabalho. Mas estamos falando de uma dedicação ao que é
ram, nos permitem olhar para nossa ancestralidade em comum e para público, ao que beneficia o conjunto da sociedade. Da base da pirâmide onde estamos,
a diversidade com que a elaboramos. Essas duas leituras se comple- nossa visão é holística. Assegurar maior participação das mulheres negras na política
mentam e são igualmente importantes. é uma medida de reparação histórica, promoção da democracia racial e uma forma de
garantir a pluralidade de corpos que historicamente estiveram afastados dos espaços de
Somos irmanadas no enfrentamento de tantas barreiras colo- poder.
cadas pelo machismo e pelo racismo, elementos estruturais da nossa
sociedade. Entre nós, esse reconhecimento sequer precisa de pala- Temos muito em comum, mas não somos iguais – ainda bem! Nas próximas pági-
vras: nos vemos nos olhares umas das outras. Mas é importante que nas, você verá as histórias de vida de 14 mulheres. Mais jovens e mais velhas, com dife-
as palavras existam, como faz esta publicação, para que essa memó- rentes interesses, áreas de formação e perspectivas. Suas histórias se entrelaçam – e a
ria seja registrada e nunca invisibilizada. Com frequência, somos as minha com as delas – mas não se confundem. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi
primeiras. Eu mesma fui a primeira da família a concluir o ensino Adichie fala dos perigos da história única, de se retratar uma população como uma coisa
superior, cheguei à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) só, muitas e muitas vezes. Ela nos lembra que contar histórias é poder. Quando as mulhe-
onde nunca houvera uma deputada negra. Sabemos da responsabili- res aqui presentes assumem suas narrativas, elas tomam de volta um pedaço do poder
dade que isso traz e também da solidão e violência permanente que que nos foi arrancado.
sofremos nesses espaços. As incontáveis práticas de violência política Por tudo isso, é uma honra ter contribuído com a execução deste livro por meio do
de raça e gênero nos colocam barreiras e visam interromper nossas aporte de uma emenda parlamentar impositiva selecionada no edital público “Emenda
trajetórias. Nossos corpos, histórias e símbolos resistem diante do com a Gente” que tem o compromisso de destinar recursos públicos a sujeitos que não
racismo e colonialismo ainda presentes em nossas instituições. Por são prioridades das políticas públicas. Estamos ocupando também os espaços simbó-
isso, construímos redes e nos aquilombamos. Este livro é também um licos, fazendo a reintegração de posse da História. A força do encontro das mulheres
quilombo. nestas páginas certamente moverá ainda mais estruturas!
A Fundação João Pinheiro (FJP) foi muito feliz ao dar visibilidade
às origens e às histórias familiares de cada uma das entrevistadas.
Nossa força e resistência vêm da nossa capacidade de costurar público
e privado, pessoal e político, ancestralidade e transformação. Nossa
atuação tem corpo, é situada, nos opomos aos pretensos universais da
branquitude e da masculinidade. Andréia de Jesus
Deputada Estadual / Psol – Minas Gerais

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18 19
Importante para materializar, ainda que de modo modesto, o reconhecimento e a valorização do
Prólogo enorme impacto da vida e do trabalho dessas mulheres.

Também partimos do suposto de que narrar as experiências vividas por mulheres negras
O presente livro aborda o tema das mulheres negras no seu percurso em cargos de poder contribui para o processo de transformação social de outra forma importante.
de vida, de ascensão social e de trabalho na administração pública. Escrito Ao colocar uma lupa sobre trajetórias de mulheres negras em cargos da gestão pública, o livro
com base em entrevistas realizadas no ano de 2020, com 14 mulheres pretende não apenas ampliar a visibilidade do tema, de uma forma geral. Entendemos que, por
que ocuparam posições de destaque na gestão pública, o livro busca meio da exemplaridade, é possível colocar em marcha alavancas de motivação e acreditação sobre
compartilhar suas histórias particulares de enfrentamento, superação, o campo de possibilidades que emoldura nossas existências; sobre as utopias que temos como
derrotas e conquistas. Partindo dessas trajetórias individuais, o objetivo sociedade.
é construir, ao mesmo tempo, uma biografia coletiva que retrata questões
Importa destacar que a pesquisa que deu origem ao livro foi realizada em Minas Gerais, estado
comuns enfrentadas pelas mulheres negras em sua luta por um lugar na
de onde vêm as mulheres aqui biografadas. Um estado cuja população que excede 21 milhões
administração pública brasileira e, afinal, pela igualdade racial.
de habitantes, multirracial, de maioria negra1 – descendente de africanos vítimas da política
Registrar, rememorar, fazer história é ato de resistência. Às mulheres, escravocrata que foi base de seu desenvolvimento social e econômico. O estado brasileiro que mais
e sobretudo às mulheres negras, tem-se negado sistematicamente o direito importou população africana escravizada, chegando a 560.728 pessoas ao final do século XIX2. A
de escrever e fazer parte da “História” – essa, que pretensamente universal, história de Minas Gerais está, portanto, marcada pelo ciclo da exploração do ouro, do diamante e
foi e é, de fato, escrita a partir de mãos e olhares masculinos, brancos e da economia de agroexportação, que se deu com base no trabalho escravizado da população preta
eurocêntricos. Logo, escrever sobre as trajetórias de lutas e conquistas de nas minas e nas fazendas agrocafeeiras; em específico, na exploração sexual e no trabalho servil
mulheres negras na gestão pública, como as protagonistas dessas histórias, das mulheres dessa população no interior das Casas Grandes. Mas, também, uma história em que
tem como pretensão, também, discutir as marcas da colonialidade, do se manifesta o quilombismo, a resistência e o fortalecimento da identidade e da cultura negra, a
machismo e do racismo que estruturam a sociedade e o Estado brasileiro, partir de uma atuação importante de seus movimentos, incluindo os das mulheres pretas. Esse
incluindo suas formas de intervenção. pano de fundo se encontra evidenciado nas biografias narradas e impacta, de modo notório, as
trajetórias contadas neste livro.
As perguntas que mobilizaram a investigação que deu origem ao livro
foram: Quem são as mulheres negras que estão na administração pública? Em termos metodológicos, o livro constitui uma biografia coletiva, cujo método parte da
Onde estão, que cargos ocupam? Que dificuldades enfrentam para acessar, definição de uma população, a partir de determinados critérios, para se analisar características
manter suas carreiras e ocupar cargos importantes de assessoramento e comuns de sua vivência histórica, por meio de um estudo coletivo de suas vidas. Para tanto,
gestão? De que modo suas trajetórias pessoais e profissionais se relacionam, constrói-se um roteiro biográfico que servirá para investigá-la em sua dinâmica social, privada,
que enfrentamentos tiveram de fazer ao longo de suas vidas e como isso se pública ou ideológica, entre outras3.
reflete no acesso ao Estado e no trabalho que ali desenvolvem? Que ideias
O convite feito às mulheres que compõem esta biografia coletiva buscou expressar a
mobilizam para sustentar ações e projetos no interior da administração
diversidade em termos geracionais e de experiências profissionais e setores de que se ocuparam.
pública? Como se instituem como sujeitas políticas em uma ordem social que
lhes é amplamente desfavorável? Supusemos importante considerar essas
1 São 53,5% de pretos e pardos, segundo dados do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2020).
questões para evidenciar as lutas comuns combatidas por essas mulheres;
2 MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não-exportado-
para que, como sociedade, possamos produzir políticas públicas mais ra. Estudos Econômicos, Instituto de Pesquisas Econômicas USP, v. 13, n. 1, 1983
efetivas para garantir sua participação plena na sociedade e na vida pública. 3 AMORIM, Marina; SALEJ, Ana Paula; GODINHO, Letícia. Projeto editorial Série Sempre-vivas. Belo Horizonte:
FJP, 2016.

20 21
1
Prólogo

Assim, as biografias da obra trazem 14 histórias de mulheres que atuaram e ainda atuam em Letícia Godinho
diferentes âmbitos da gestão pública, como educação, assistência social, cultura, patrimônio, Renata Souza-Seidl
segurança pública, política prisional, prefeitura municipal, assessoramento legislativo, política Ana Paula Salej
para mulheres, igualdade racial e diversidade sexual; e de distintas gerações e lugares de Minas
Gerais, embora a maioria tenha construído percurso de vida e trabalho na capital do estado.

A partir das narrativas de suas próprias histórias, cada um dos capítulos do livro foi escrito,
cujos títulos trazem seus nomes: Macaé Evaristo, Larissa Borges, Nila Rodrigues, Daniela Tiffany,
Patrícia Santana, Iara Viana, Maria do Carmo Ferreira (Cacá), Cleide Barcelos, Yone Gonzaga, Eliane

INTRODUÇÃO
Dias, Xica da Silva, Magda Neves, Cleide Hilda e Diva Moreira. Os textos resultam de uma construção
a muitas mãos, as das biografadas e da equipe de pesquisadoras e pesquisadores, mas cuidando de
manter evidentes as vozes das primeiras. Esperamos, com isso, trazer à tona seu protagonismo e
registrar, como memória viva, tanto a riqueza inerente às suas experiências, bem como a significação
dos acontecimentos narrados tal qual imputada pelas próprias entrevistadas. Também colaborar
com a discussão dos impactos da combinação de raça, classe e gênero no percurso de ascensão das
1. Introdução
mulheres negras às instâncias de poder e de decisão públicas, do racismo estrutural, do caráter
e importância das políticas de igualdade racial, assim como a crítica aos mitos da “democracia Para realizar uma investigação sobre quem são as mulheres
racial” e à “meritocracia” na atuação do Estado. negras que estão no serviço público, mobilizamos nesta pesquisa uma
O projeto foi financiado com recursos oriundos de emenda parlamentar e selecionado a literatura produzida na articulação entre as teorizações das intelec-
partir da chamada pública aberta pela Gabinetona, que visou a orientar a destinação de parte dos tuais e autoras negras e o movimento de mulheres negras e metodo-
recursos das emendas individuais acessadas pelas deputadas Andreia de Jesus e Áurea Carolina logias que pudessem lhes garantir um papel central na elaboração da
(Psol). pesquisa e da obra. A breve recuperação dessa literatura, dos poucos
números existentes que reforçam a persistência de desafios e do
A obra constitui o segundo volume da série Sempre Vivas, uma coleção de biografias coletivas debate que cerca a escolha metodológica, orientada para o fortaleci-
de mulheres projetada pelo Egedi. O grupo, criado em 2014, tornou-se ao longo do tempo cada vez mento da presença das biografadas, são os elementos que a leitora
mais multirracial – o que lhe permitiu discutir, de forma muito mais rica e democrática, ainda que encontra nessa introdução. Ela foi construída de forma a compartilhar
mais desafiadora, os eixos de gênero e raça em sua articulação com a gestão e as políticas públicas. escolhas e sentidos, evidenciando a trajetória de construção da obra.

As organizadoras
1.1. Um breve diálogo com a literatura
Belo Horizonte, fevereiro de 2021.
Embora a presença de mulheres negras no serviço público consti-
#VidasNegrasImportam tua uma pauta posta há muito no campo da política e das organizações
de mulheres negras, trata-se de uma temática ainda pouco trabalhada
na academia. São escassos os espaços encontrados em teses, revistas
científicas e livros para a reflexão sobre as condições em que mulhe-
res negras conseguem acessar, ascender e ocupar lugares de decisão
no interior da administração pública.

22 23
Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

É possível encontrar no feminismo negro uma discussão importante dos fatores e Faz parte das fundações desse esforço teórico, prático e político a articulação das
estruturas que determinam as condições de vida das mulheres negras, sua inserção no dimensões de gênero, raça e classe. As autoras e ativistas negras estariam preocupadas
mundo do trabalho e na vida pública, entre outras questões. Em sua origem, essa litera- em evidenciar não apenas como desigualdades se sobrepõem em camadas calcificadas de
tura busca desnudar as estruturas sociais racistas e sexistas mais amplas, que organizam vulnerabilidade que se somam e predestinam suas experiências de vida; mas mostrar como
e emolduram o cenário dos enfrentamentos cotidianos dessas mulheres e do povo negro essa tripla articulação assumiria formas históricas, complexas e próprias, como no conceito
em geral. de interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Creenshaw (2002). No Brasil, a indissocia-
bilidade dessa tripla opressão teria como origem o processo colonial, que conformaria um
São as contribuições desse campo teórico-prático que também explicam, com efeito,
capitalismo patriarcal-racista dependente, segundo o diagnóstico absolutamente original
a falta de centralidade e a pouca importância atribuída às teorias e discussões trazidas
e preciso de Lélia Gonzalez (1988; 1984).
pelas intelectuais negras, em um país pobre, de maioria negra e feminina. Ele evidencia
por quais mecanismos um regime social amplamente opressor promove o silenciamento Estabelece-se nessa perspectiva, também, a reivindicação crucial da presença – da
sistemático dessa população nos diversos campos do saber – acadêmico, midiático, social experiência vivida, encarnada, seja pessoalmente, seja a de seus pares, na constituição das
e político. Trata-se do epistemicídio de que fala Sueli Carneiro (2019), processo pelo qual ideias e pautas postuladas no movimento e no pensamento feminista negro:
suas perspectivas ou “lugares de fala” são prontamente desmerecidos, ignorados ou supri- Ao reivindicar os diferentes pontos de análises e a afirmação de que um dos objetivos do femi-
midos (Djamila RIBEIRO, 2017)1. nismo negro é marcar o lugar de fala de quem as propõem, percebemos que essa marcação se
torna necessária para entendermos realidades que foram consideradas implícitas dentro da
As bases do pensamento feminista negro se encontram nos primeiros movimentos normatização hegemônica. […] O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder
existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de
de mulheres negras, reunidas pela preocupação em conceber formas de libertação de sua saberes consequente da hierarquia social (RIBEIRO, 2017, p. 32 e 36).
população do cativeiro, da pobreza, da exploração degradante e da coisificação do corpo
negro. Interessadas, além disso, na criação de novas referências teóricas e metodológicas Além das organizações propriamente vinculadas às questões raciais e grupos repre-
para dar conta das realidades próprias das mulheres negras. Por um lado, o feminismo sentativos de mulheres negras, as mulheres negras participam, de modo fundamental, de
“tradicional” não estaria atento às formas de vida e desafios particulares das mulheres outros movimentos significativos da sociedade civil brasileira negra e periférica, como o
negras, dado que fundado sob a perspectiva das mulheres brancas – que, ao se pretender movimento de favelas, os movimentos de trabalhadoras domésticas, as associações comu-
abrangente, acabou assumindo formas até mesmo opressoras. Por outro, também o movi- nitárias, as comunidades religiosas afro-brasileiras, o movimento estudantil, entre outros.
mento negro estaria permeado por uma perspectiva limitada, a do homem negro, que abri- Tais movimentos se encontram presentes no pano de fundo da trajetória das mulheres
ria pouco espaço para o reconhecimento das mulheres dessa população. Assim, diante da participantes desta biografia coletiva, ainda que uma parte das biografadas não esteja
invisibilidade da militância das mulheres negras e o apagamento de suas pautas, caberia ativamente ligada a nenhum deles.
a elas enegrecer a agenda do movimento feminista e generificar a do movimento negro, Contrariando os cenários fixados para essa população, as práticas e pautas do movi-
promovendo a complexificação das suas concepções e práticas políticas (Sueli CARNEIRO, mento de mulheres negras e da teoria feminista negra descortinam o contexto de vida
2003 apud Cristiano RODRIGUES, 2010; ver também Ana Cláudia PEREIRA, 2016; Patrícia dessas mulheres e apontam para temas fundamentais em torno da reflexão sobre seu lugar
Hill COLINS, 2019; Michele SILVA, 2007). Em seu projeto emancipatório: e papel na administração pública – por exemplo, sobre o tema da meritocracia ou sobre o
Denunciam a violência machista dentro do próprio Movimento Negro e demais movimentos processo de elaboração de políticas públicas de igualdade racial e de gênero. Ao ocuparem
sociais, nas relações domésticas, nas disputas internas; quer sejam no emprego, nos movi-
mentos, nos sindicatos e nos partidos. Elas reeducam homens e mulheres negros, brancos, de
de forma gradativa, ainda que muito incipiente, os espaços de formação, trabalho e voca-
outros pertencimentos étnico-raciais, e também elas mesmas (Nilma Lino GOMES, 2017, p 73). lização, as mulheres negras e gestoras enfatizam, na prática e na teoria, as implicações da
ausência de representatividade e a importância de sua garantia, seja na academia, seja no
1 Nota da editoração: Por opção das autoras, a primeira citação de cada referência será feita com nome e sobreno- processo de elaboração e condução das políticas públicas.
me para evidenciar a existência (hoje majoritária) de cientistas mulheres, em um contexto em que se supõe que “o
autor” de um texto científico é sempre um homem.

24 25
Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

1.2. Em que condições as mulheres negras acessam a administração As mulheres negras eram maioria entre as empregadas domésticas com carteira assi-
pública, ascendem e ocupam postos de decisão? nada (63,3%, dentre as trabalhadoras com carteira assinada e 67,7% sem carteira assi-
nada), e entre os trabalhadores familiares auxiliares (34,5%). Em contraposição, eram
As estatísticas disponíveis expressam alguns dos desafios enfrentados pelas mulhe-
minoria entre os empregadores, apenas 9,6% (IBGE, 2019).
res negras no mercado de trabalho. A seguir, o diálogo com alguns dos dados disponíveis,
igualmente escassos. Acerca das tendências que caracterizam especificamente o cenário da administração
pública, uma delas é que as mulheres em geral apresentam maior participação nesse setor.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), do total
No entanto, no setor público federal, o mais bem remunerado, a participação dos homens
da população brasileira, as pessoas negras constituem a maior parte da força de traba-
é maior. As mulheres negras são o grupo com menor participação nesta esfera, represen-
lho no país. Em 2018, eram 57,7 milhões de pessoas, 25,2% a mais do que a população
tando apenas 7,5% do universo de trabalhadoras e trabalhadores, menos da metade de sua
não negra. Em contrapartida, elas formavam cerca de ⅔ de todas as pessoas desocupadas
participação no serviço público de forma geral (Tatiana SILVA; Josenilton SILVA, 2014).
(64,2%) e subutilizadas (66,1%) na força de trabalho, naquele ano.
Os rendimentos no serviço público reproduzem essa hierarquia das ocupações. Nela,
Outros dados informam acerca da maior precarização do mercado trabalho do ponto
os homens brancos se situam no topo, seguidos dos homens negros, das mulheres bran-
de vista das pessoas negras e suas consequências. Em 2018, enquanto 34,6% das pessoas
cas e das mulheres negras. Entre os profissionais com ensino superior, as mulheres negras
brancas ocupadas estavam em ocupações informais, entre as negras, esse percentual atin-
recebem, em média, menos da metade de um profissional branco (40%). Essa desigual-
gia 47,3%. Dos cargos gerenciais, a maioria foi ocupado por pessoas brancas – 68,6% contra
dade encontra explicação não apenas nas discriminações de gênero e raça, mas também
29,9% de negros e pardos (IBGE, 2019).
na forma de inserção na ocupação. As mulheres, especialmente as negras, estão sub-repre-
No caso das mulheres negras, elas constituem o maior grupo étnico da população sentadas dentre as servidoras e servidores com vínculo com a administração, bem como
brasileira, representando 28% dessa; também sua maior força de trabalho. Elas têm uma nas atividades e nos cargos de direção e de maior prestígio (Ana Paula VOLPE et al., 2012).
menor taxa de participação na população economicamente ativa (PEA), maior desocupa- Além disso, cerca de 65% das mulheres negras empregadas no serviço público se encon-
ção e jornada média semanal inferior – todos esses indicativos de posições de trabalho tram na esfera municipal, que tem os piores rendimentos médios.
mais frágeis (Mariana MARCONDES et al., 2013).
No setor público de Minas Gerais, foi possível observar um crescimento do número e
Além do acesso mais precário ao mercado de trabalho, a vulnerabilidade dessa popu- da participação de mulheres e homens negros empregados no período entre 2014 e 2019,
lação se reflete na ocupação de posições de menor prestígio e remuneração. São maioria segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Pnad contínua)2.
entre as trabalhadoras domésticas – quase 60% de todos os trabalhadores nessa posição. Em 2019, as mulheres negras representaram cerca de 35,5% dos trabalhadores do setor
Na realidade, são maioria nos serviços sociais de forma geral, incluindo funções domésti- público de Minas Gerais, o equivalente a 420 mil pessoas; as mulheres brancas constituí-
cas, de saúde e de educação. São posições relacionadas ao “cuidado” e que reforçam o papel ram 25%; os homens negros, 25%, e os homens brancos, 16% dessa população.
“de servir”, destinados às mulheres negras. Além disso, cerca de 13% das mulheres negras
Apesar da representação das mulheres negras no setor público se mostrar alta, quando
ocupadas exercem atividades para o próprio consumo ou sem remuneração (idem).
analisada em termos da distribuição das ocupações, observa-se que, segundo os dados de
Em Minas Gerais, a população negra e parda somou 52,3% da população e represen- 2019 para Minas Gerais, as mulheres negras ocupadas na administração pública estavam
tou a maior taxa de desocupação em 2018, 12,2%. Em contrapartida, as pessoas brancas assim distribuídas: a grande maioria no grupo das profissionais das ciências e intelectuais
apresentaram taxa de 8,3% de desocupação. O rendimento médio da população negra equi-
valeu em 2018 a 65,7% do rendimento médio da população branca, nesse estado (IBGE,
2019).
2 Agradecemos à Nícia Raies, pesquisadora da Fundação João Pinheiro, a realização do levantamento das estatísti-
cas para o estado de Minas Gerais, junto à Pnadc / IBGE.

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Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

(37% de todas as mulheres negras no setor público)3; em seguida, no grupo das técni- integram o repertório de discriminações: o não reconhecimento de sua competência para
cas e profissionais de nível médio (21%); dentre as trabalhadoras do apoio administrativo ocupar determinados postos de trabalho; a ocupação simbólica de um posto de trabalho –
(13,5%) e nas ocupações elementares (11,5%). Apenas 3,8% das mulheres negras ocupa- ou seja, sem poder de decisão ou de funções correspondentes; o recorrente descrédito; a
vam a posição de diretoras e gerentes no serviço público, o equivalente à taxa de homens apropriação da autoria de suas ideias; desvios de função; e assédio moral e sexual.
negros, superior à das mulheres brancas (2,9%) e inferior ao dos homens brancos (4,9%)
Os relatos das pesquisas indicam que sua reação ao racismo institucional que permeia
(IBGE, 2020).
tais contextos passa pelo desenvolvimento de estratégias e de um saber prático; esses,
Em termos de capacidades, a média de anos de estudo das mulheres negras ocupa- muitas vezes, assumem a forma do “comportar-se de acordo com as regras” das quais são
das na administração pública de Minas Gerais (13,6) foi inferior apenas à das mulheres vítimas, para poderem persistir nas organizações. Outras vezes, geram formas de enfren-
brancas (14). Homens brancos e homens negros empregados apresentaram, em média, 13 tamento e influenciam mudanças do ambiente de trabalho.
e 12,2 anos de estudo, respectivamente. Apesar disso, as mulheres negras tiveram o pior
rendimento médio, bem como a pior renda domiciliar per capita. Elas receberam 46% do 1.3. Os desafios metodológicos da pesquisa
rendimento dos homens brancos, 62,5% dos homens negros e 75% das mulheres brancas
Explicitar a metodologia utilizada para concretizar esta obra, que reúne histórias de
(IBGE, 2020).
mulheres negras que ocuparam ou ocupam cargos de relevância na gestão pública, signi-
Dialogando com esses dados, investigações de caráter qualitativo abordam as condi- fica compartilhar a escolha de um caminho para garantir a maior presença das biografadas
ções e experiências no acesso ao trabalho e em seu ambiente, denunciando os persistentes na obra. Essas histórias, que podem assumir formas variadas (Sumaya MORAES, 2009),
obstáculos e discriminações em função da raça, do gênero e da classe. Pesquisas realiza- aqui tomaram a forma de biografias. A partir de testemunhos orais, fomentados por um
das em contextos geográficos distintos apontam muitas convergências nessa relação, o que roteiro pré-definido, as biografias foram redigidas por meio da técnica da transcriação, em
induz à interpretação de que, mesmo em ambientes e contextos diferentes, as mulheres um processo dialógico tecido entre pesquisadoras e biografadas.
negras estão sujeitas a fatores discriminatórios muito similares e, portanto, estruturantes
O uso da história oral e da biografia como método de investigação e os desafios
(Sueli CARNEIRO, 2019; Carmen DIOP, 2011; Irene BROWNE, 2000; J. Camille HALL; Joyce
inerentes à escrita de si são aspectos importantes da pesquisa e, portanto, serão exploradas
EVERETT; Johnnie HAMILTON-MASON, 2012).
abaixo. As peculiaridades inerentes as escolhas metodológicas reforçam a importância da
Essas pesquisas evidenciam fortemente que mulheres negras – ainda que superqua- explicitação dos procedimentos relacionados ao desenvolvimento da pesquisa e do texto
lificadas – sofrem discriminação no acesso ao emprego, em seu status profissional, nas propriamente dito, o que fazemos a seguir. Por fim, tecemos algumas considerações acerca
formas de contratação, além de relatarem constrangimentos cotidianos nas relações de de uma escrita que se pretende feminista e enegrecida, enfim, decolonial. Esperamos com
trabalho. Enfatizam que mulheres negras escolarizadas são sistematicamente discrimina- isso evidenciar como as escolhas realizadas, algumas delas poucos “tradicionais”, buscam
das no trabalho e não desenvolvem as carreiras que poderiam e deveriam desenvolver. Em convergir com a perspectiva assumida por nossa investigação.
termos de precariedade e desemprego, os diplomas não as protegem: sofrem com excesso
de trabalho, com longos períodos de desemprego e estão muito mais propensas à precarie- 1.3.1. A história oral e o uso da biografia na pesquisa social
dade de condições de trabalho e rendimentos. [...] é possível constatar que a história oral é um campo de trabalho e uma metodologia que
[…] se caracteriza pela interdisciplinaridade e pelas muitas possibilidades de emprego, desde
As formas e condições precarizadas de trabalho dificultam ou até mesmo as privam a história política, passando pela história dos movimentos sociais, pela história de trabalha-
da filiação a coletivos trabalhistas (sindicatos e associações), o que dificulta em conse- dores, de instituições, até a história da memória, por exemplo; que ela se insere no campo da
história do tempo presente; que está intimamente ligada às noções de biografia e história de
quência o acesso a direitos (trabalhistas, previdência social, entre outros). Por outro lado, vida; que a fonte oral tem especificidades que a diferenciam de outras fontes históricas (Vere-
na ALBERTI, 1997, p. 18).

3 Esse grupo inclui as professoras de todos os níveis da educação (ensino fundamental, médio e superior).

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Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

A explicação acima de Alberti indica que o uso da história oral é uma metodologia focar nas “características comuns de um grupo de atores na história por meio do estudo
convergente com o objetivo deste livro: uma temática cuja literatura não apenas é bastante coletivo de suas vidas” (Lawrence STONE, 2011, p. 115). Os vários tipos de informações
escassa, mas carece de fontes alternativas disponíveis. O livro busca retratar memórias e sobre as biografadas, justapostos, combinados e examinados (por exemplo, no capítulo que
histórias do tempo presente, e seu forte viés político está evidenciado. encerra o livro) constituem resultados importantes desse tipo de investigação.

A história oral possui íntima relação com o método biográfico. A biografia, assim Do ponto de vista individual, por sua vez, cada capítulo é um registro da singulari-
como a autobiografia e os diários, são gêneros tradicionais do campo literário, compostos dade e potência de cada trajetória narrada. As histórias narradas expressam acontecimen-
por relatos da vida de uma pessoa (ALBERTI 2000), e que se consolidaram como tais a tos únicos, encarnando um tempo vivido. Nesse sentido, disponibilizar essas biografias
partir de meados do século XVIII (Yuri BATISTA, 2018, p. 1). Nas ciências sociais, Sumaya adquire também uma importância político pedagógica, em que se valoriza a expressão das
Moraes (2009) explica que a biografia teve seu uso ampliado como método de investigação vivências e a concretude das experiências individuais, a atitude crítica, reflexiva e inven-
ao longo do século XX, ao ser reconhecida, entre outros fatores, por assegurar a articulação tiva (MORAES, 2009), no contexto de práticas de ensino hegemonicamente ancoradas em
de uma história individual à história social. A incorporação de temas contemporâneos na teorias e ideais “genéricos”, pretensamente universais. A biografia nos desafia a enfren-
pesquisa histórica, a partir da década de 1970, aportou não apenas interesse pela história tar “um outro saber”, segundo Bruce Albert (2015, p. 513), “ao mesmo tempo próximo e
oral, mas valorizou também a biografia (ALBERTI, 2000). Ambos os métodos consideram inacessível”. Impele-nos à reconciliação com o outro, a outra, que são também o não-ge-
as experiências individuais como importantes na compreensão do passado, e são assim nérico, o não-universal e, por isso mesmo, múltiplo. Também com nossas próprias vidas,
ferramentas contundentes de revalorização do papel das sujeitas na história. saberes e memórias.

O ato de interpretar sua própria história é também o de compreender os fatos como 1.3.2. Os dilemas em torno da escrita de si
“colocações e deslocamentos no espaço social” (Pierre BOURDIEU, 1996, p. 190). Elas não
se constituem sozinhas e fazem parte de uma trama de muitas outras histórias. O relato Nos capítulos deste livro, a presença da biografada como primeira coautora e a escrita
pessoal expressa “uma experiência coletiva, uma visão de mundo tornada possível em dada em primeira pessoa pode criar a expectativa de que a obra reúna autobiografias. Essa ques-
sociedade” (MORAES, 2009, p. 2). É por isso que a biografia representa a possibilidade tão remete, com efeito, a uma controvérsia importante, colocada tanto no campo da litera-
de uma teoria da ação social e histórica, que estabelece uma relação entre as dimensões tura quanto das ciências humanas e sociais. São “os bastidores da primeira pessoa”, de que
psicológica e social. Ela garante, a quem se utiliza dessa abordagem, o reconhecimento das trata Philippe Lejeune (1980 apud ALBERT, 2015), entre muitas outras autoras. No caso de
singularidades, sem desconsiderar as dimensões socioculturais (MORAES, 2009). um texto escrito em primeira pessoa, mas em coautoria, quem seria a “verdadeira” autora
do texto? Qual o papel das coautoras, as biógrafas – são transcritoras passivas de memórias
Ao considerar cada sujeita como portadora de um projeto de vida vinculado à histó-
que lhes são transmitidas ou desempenham um papel ativo no processo de rememoração
ria social, o método biográfico também ganha relevância quando se trata de construir ou
e construção da narrativa?
reconstruir a identidade de um grupo. As biografias coletivas concentram características
de determinado grupo, ilustram formas típicas de comportamento. Mesmo caraterísti- Escrito em 1983, As escritas de si, de Michel Foucault busca refletir sobre a autoria em
cas excepcionais ou exclusivas servem para mostrar o que é estrutural e estatisticamente textos como cartas, diários e quaisquer outras formas de registrar ações, pensamentos ou
próprio ao grupo, ao permitir identificar possibilidades latentes da cultura e deduzir, “em sentimentos próprios. Conclui que esses gêneros textuais funcionariam para suas autoras
negativo”, o que seria mais frequente (ALBERTI, 2000, p. 3). como um processo de desabafo ou expurgo de algo que deseja compartilhar. Proporcionam
um maior conhecimento da pessoa sobre si mesma, e uma possibilidade de refletir sobre
Na expectativa de valorizar a contribuição dos relatos pessoais na compreensão de
sua própria personalidade e seu lugar na sociedade (SILVA; MOREIRA, 2016).
elementos comuns à realidade das mulheres biografadas, a presente obra foi concebida
como uma biografia coletiva. Isso significa que os relatos apresentados são importantes em
si, mas também em seu conjunto. Do ponto de vista coletivo, isso significa que é possível

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Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

Mas o autor não trata da escrita em coautoria, em que autoras e personagem de uma Assim, quem assina os capítulos como primeira coautora é a biografada, cada uma
biografia não são necessariamente uma e só pessoa. A esse respeito, a discussão feita por das autoras dos relatos que constituem a fonte concreta desta biografia; sua voz. As biógra-
Pierre Bourdieu sobre o relato de vida nos parece útil. Bourdieu (1996) ressalta que, nesse fas, de cuja iniciativa vem a investigação, comparecem como coautoras – transcriadoras
método, a investigada se coloca à disposição da investigadora, que é quem lhe propõe certa presentes, cuja inexistência não se pretende simular. Esse encontro entre o relato e o cien-
estrutura: por exemplo, uma ordem para a sucessão dos acontecimentos, que nem sempre tífico pode ser considerado como o resultado da organização da memória viva e da disponi-
vão seguir estritamente a ordem cronológica dos eventos narrados; os temas a serem discu- bilidade e confiança das biografadas de seguirem um roteiro construído, a princípio, pelas
tidos e aprofundados, entre outras. biógrafas.

Assim, se no relato de vida “clássico”, pede-se a um informante privilegiado que conte Contudo, tal construção, para ser legítima, precisa obedecer a certos princípios éticos.
sua vida para daí retirar matéria para o texto; em formas alternativas de pesquisa e escrita, O encontro entre biógrafas e biografadas deve estar fundado em uma espécie de “pacto
não se pretende ausentar a redatora ou coautora4. Na verdade, o que caracterizaria as tático”, defendido por Albert (2015), que se erige em resposta à confiança depositada pela
formas biográficas clássicas seria justamente “a ficção de uma ausência de ficção”, ou seja, primeira no desvelar de suas memórias. Assim, deve-se não apenas fazer justiça aos rela-
“a ilusão de um face-a-face sem mediações” entre biografada e leitora, de acordo com Bruce tos em si, mas ao seu sentido político. Em outras palavras, nesse gênero de pesquisa, nós,
Albert (2015, p. 535). pesquisadoras, convertemo-nos em aliadas políticas de nossas interlocutoras, como funda-
mento desse engajamento.
Nessa mesma perspectiva, Alberti (1996) explica a diferença entre autobiografia e
história oral, justificando o uso da coautoria nesse método. Apesar de ambas serem expos- Por fim, se espalhar a palavra – no caso, alheia – implica sempre em transformá-la,
tas na primeira pessoa do biografado: há um conjunto de procedimentos e soluções narrativas que garantem a integridade da
[…] enquanto na autobiografia há apenas um autor, na entrevista de história oral há no mínimo escrita, os quais explicitamos a seguir.
dois autores – o entrevistado e o entrevistador. Assim, mesmo que o entrevistador fale pouco,
para permitir ao entrevistado narrar suas experiências, a entrevista que ele conduz é parte de 1.3.3. Procedimentos metodológicos
seu próprio relato – científico, acadêmico – sobre ações passadas (ALBERTI, 1996, p. 4).

Acerca dos textos que compõem esta biografia coletiva, construímos a compreensão Júlia Matos e Adriana Senna (2011) advertem que, na utilização do método e da fonte
de que autora, narradora e personagem não são uma só. Biógrafas e biografadas estabele- da história oral, deve-se estar atenta à explicitação das opções metodológicas e procedi-
cem um processo de interação dialógica que transformam a obra e lhe dão múltipla autoria. mentais que constituíram a investigação. Os procedimentos fundamentais para a realiza-
Tal construção não resultou simples, mas revela nossa opção por um caminho que, além de ção desta obra dizem respeito à revisão da literatura, à produção do roteiro, à seleção das
valorizar a biografada como mulher preta e protagonista da história que se conta, também biografadas, à realização das entrevistas, ao tratamento dos dados e à produção e análise
pretende evidenciar que a abordagem construída é resultado de uma interação que produz do texto.
uma escrita de si específica, distinta daquela que poderia ter sido construída por si só. Dessas várias etapas, a primeira foi a revisão de textos de autoras brasileiras e estran-
geiras em torno da temática da participação das mulheres negras no mundo do trabalho
e do serviço público, bem como sobre o feminismo negro e os movimentos de mulheres
negras no Brasil. Os encontros regulares de estudos e discussão do Egedi, iniciados em
agosto de 2019, duraram 11 meses e antecederam à construção do roteiro das entrevistas.
4 Se, nos escritos da antiguidade, o anonimato da autora era algo comum e bem-aceito; contemporaneamente, a
necessidade de se demarcar a voz autoral se erige pela necessidade de dar respaldo ao texto. Não se admite que a
proprietária da voz se ausente; ela deve referendar ou sustentar as razões que permeiam sua atividade criadora (BA-
TISTA, 2018, p. 2). Mais do que isso: de acordo com Bourdieu, “a identidade é registrada através do nome próprio, é
o atestado visível para que o indivíduo possa ser reconhecido com um ser social e tenha suas funções na sociedade,
para que de fato sua existência possa ser confirmada” (SILVA; MOREIRA, 2016, p. 14).

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Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

Nesse esforço de estudo e amadurecimento de hipóteses e questões para a investigação, biografadas. Cada dupla ficou responsável por organizar a entrevista, bem como a escrita
foram fundamentais as contribuições de Débora Menezes Alcântara5 e Michele Lopes da da biografia de duas a três mulheres. Foram necessários mais de um encontro, de duas a
Silva Alves6. quatro sessões, dependendo de cada caso. Em horas totais, o corpus reuniu 44 horas de
gravação.
A revisão embasou a construção do roteiro das entrevistas, que abordou as seguin-
tes dimensões: 1. origens, história familiar; 2. trajetória escolar e universitária – desafios, O procedimento seguinte foi a da transcrição dos relatos. Na transcrição da oralidade,
diferenciais e formas de acesso; 3. trajetória profissional – tipos de acesso, experiências o conteúdo gravado foi convertido para a forma textual; a palavra é transportada em seu
e postos ocupados, estratégias, violências simbólicas sofridas e resiliência; 4. formação “estado bruto” (Leandro ALONSO, 2016). Nesse processo, foram preservadas as repetições
da identidade individual e coletiva, políticas públicas de igualdade racial e religiosidade; de palavras, expressões próprias e trejeitos. Resultaram desse esforço quase 700 páginas
5. uma reflexão livre sobre si própria. No processo de discussão do roteiro, as importan- transcritas. Na etapa seguinte, o relato oral gerado a partir da transição literal passa a ser
tes contribuições de Merelane Emanuele Cardoso7 e Camila Natália Ferreira Teófilo Alves8 reorganizado. São retiradas frases sem continuidade discursiva, ou cujo significado não
possibilitaram seu aprofundamento. fosse estritamente necessário ao relato; características do registro oral são suavizadas
para ganhar maior fluidez no registro escrito. No entanto, optamos por preservar algumas
Na etapa seguinte, foram definidos critérios para a seleção das mulheres a serem
marcas de oralidade e buscamos manter o estilo e a voz própria de cada uma delas.
biografadas. Nessa escolha, o que se buscou foi um conjunto diverso em termos geracio-
nais, de experiências profissionais e setores ocupados por elas na administração pública. A primeira versão do texto se consolidou com a transcriação. Essa é a fase em que
Assim, o livro reúne biografias de mulheres que atuaram e ainda atuam em diferentes âmbi- são incorporados os “elementos extratextuais”: é o momento da “operacionalização da
tos da gestão pública: educação, assistência social, cultura, patrimônio, segurança pública, cultura”, da conversão da fala em “linguagem ressignificada” (ALONSO, 2016, p. 17-ss).
política prisional, prefeitura municipal, assessoramento legislativo, política para mulheres, Nesse processo, a partir de um vasto e imenso conjunto de relatos, as redatoras escolhe-
igualdade racial e diversidade sexual. As mulheres pertencem a distintas gerações e são ram os eixos centrais da história a ser contada, em um procedimento central ao método
provenientes de diversos lugares de Minas Gerais, embora a maioria tenha construído seus da história oral, de acordo José Meihy e Fabíola Holanda (2013 apud ALONSO, 2016): o de
percursos de vida e trabalho na capital do estado. apreender as visões, construções narrativas e idealizações, sobressaídas da exposição dos
fatos. Um esforço de seleção e composição, que combina uma preocupação tanto estética
Tendo em vista as medidas de isolamento social implementadas a partir da pandemia
quanto política na produção do texto.
de Covid-19, tivemos que optar por realizar as entrevistas de história oral de modo remoto
(por aplicativo de videochamada). As entrevistas foram gravadas em áudio e vídeo, tendo Fez parte dessa etapa a escolha do que Alonso chama de “tons vitais” da entrevista,
havido prévio conhecimento e autorização por parte das biografadas, e realizadas entre frases escolhidas para serem utilizadas como epígrafes das seções dos capítulos. Esse é um
agosto e setembro de 2020. As 11 pesquisadoras-biógrafas que compuseram a equipe “elemento fundamental na prática de transcriação, porque contribuiu para encontrar os
da pesquisa foram divididas em duplas para a realização dos encontros remotos com as nexos narrativos, os eixos centrais dos documentos construídos e as vinculações temáticas
apresentadas pelos interlocutores” (ALONSO, 2016, p. 16).
5 Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG) e integra o Centro de Estu- Finalmente, importa dizer que buscamos compor a narrativa a partir da abordagem
dos Republicanos (Cerbrás) da UFMG.
epistemológica e metodológica escolhida. As coautoras costuraram a história contada em
6 Professora do Instituto Federal do Piauí (IFPI) – Campus Cocal. Integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e In-
dígenas (NEABI) do IFPI – Cocal; o Programa Ações Afirmativas na UFMG da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG, cada uma das biografias, usando como fios condutores os conteúdos objetivos e subjetivos
entre outros grupos de pesquisa. das trajetórias relatadas, as escolhas, valores e vivências no desenrolar da vida profissional.
7 Assistente social, foi Secretária Municipal de Cidadania Desenvolvimento e Assistência Social do município de Do ponto de vista do conjunto das biografias, buscou-se sistematicidade e harmonia temá-
São João Del-Rey em Minas Gerais.
tica entre os capítulos, mantendo-se, assim, certa coerência na obra e tornando-a capaz
8 Servidora da Defensoria Pública de Minas Gerais, co-idealizadora e coordenadora do projeto Samba das Pretas
em Belo Horizonte.
de confrontar a principal pretensão do livro: reconstruir itinerários de mulheres, negras

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Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

e gestoras públicas, buscando compreender como foram percorridos, em um contexto de Também por isso, procuramos manter a forma da escrita feminista e enegrecida.
luta pelos direitos da população negra. Para tanto, reuniões coletivas foram realizadas em Assim como nas demais expressões sociais, a língua original do colonizador é generificada
vários momentos para a leitura e redação dos textos, buscando resolver dúvidas e dirimir e racializada, ou seja, tradicionalmente excludente. Logo, um traço importante da escrita
incertezas sobre as mensagens a transmitir. deste livro é o uso do feminino para desnaturalizar a ideia do masculino como represen-
tante da neutralidade e dos demais gêneros na linguagem. Sempre que possível, usou-se
As primeiras versões dos textos foram encaminhadas às biografadas para validação.
“a autora”, e não “o autor”; “pessoa”, e não “sujeito”. As referências bibliográficas utilizadas
Em todos os casos, isso implicou em correção de imprecisões e edição de passagens sensí-
são citadas a partir de seus primeiros nomes, e não apenas sobrenomes, para evidenciar a
veis. Em muitos, foi necessária a reconstrução de trechos completos. Essa etapa final tem
existência (hoje majoritária) de cientistas mulheres, em um contexto em que se supõe que
importância fundamental em uma pesquisa como esta, em que se opta por um método
“o autor” de um texto científico é sempre um homem. Do ponto de vista do enegrecimento,
colaborativo e a biografada e primeira autora é, ao mesmo tempo, depoente, agente social
evitamos palavras que pudessem ser negativamente associadas à negritude, ou que são
e “objeto do estudo”.
excludentes por reforçarem o ideal da branquitude (como “esclarecer”).
Produz-se, com isso, uma inversão nos termos da lógica tradicional da pesquisa, em
Não custa voltar aos motes, já triviais, mas que fazem convergir os movimentos e
que as pesquisadas são tomadas como “objeto” do olhar das pesquisadoras. Em vez de
teorias feministas e antirracistas: “o pessoal é político”, “o corpo é político”. “Acusadas” de
simplesmente “colher dados”, fomos sendo reeducadas por aquelas que aceitaram parti-
não serem capazes de formular um pensamento teórico, universal, as mulheres sempre
cipar e escrever conosco. Além disso, acreditamos que assim foi possível evitar um olhar
usaram da estratégia de contar suas histórias pessoais para vocalizar suas perspectivas,
complacente sobre a população negra, predominante na literatura até muito recentemente,
visões de mundo, enfim, dar visibilidade ao corpo que materializa e condiciona suas exis-
evitando o apagamento de seu protagonismo.
tências singulares. Por isso, toda a escrita do livro busca valorizar um ponto de vista pesso-
1.3.4. O método é pessoal, é político e tem corpo: como retratá-lo em uma escrita alizado – daí, mais um motivo para o uso da primeira pessoa, não apenas nos capítulos que
feminista e enegrecida contém as biografias. Isso também ajuda a explicar a inserção de fotos do acervo pessoal
das biografadas.
Eu disse: O meu sonho é escrever! Por fim, no fazer deste livro descobrimos um caminho em que a história oral e a
Responde o branco: ela é louca.
biografia encontram a tradição e o pensamento feminista negro. Aí, a narração de histórias
O que as negras devem fazer…
É ir pro tanque lavar roupa. é fonte primordial de uma memória e sabedoria oral e escrita do povo negro, que também
Carolina Maria de Jesus é estratégia de reflexão, de pedagogia ancestral e política. São, enfim, as “escrevivências”,
de que fala Conceição Evaristo:
No processo da pesquisa, aprendemos como o acesso ao conhecimento não é pura-
Quando usei o termo escrevivência [...] se é um conceito, ele tem como imagem todo um proces-
mente intelectual, mas passa efetivamente pelo corpo. Nesta pesquisa, não atingimos so histórico que as africanas e suas descendentes escravizadas no Brasil passaram. Na verda-
apenas os limites de nossas próprias razões, buscando acessar as das biografadas. Em um de, ele nasce do seguinte: quando eu estou escrevendo e quando outras mulheres negras estão
escrevendo, me vem muito na memória a função das mulheres africanas escravizadas dentro
encontro marcado por uma equipe composta na metade por pessoas brancas e por dois
das casas-grandes, a função que essas mulheres tinham de contar história para adormecer os
homens, não apenas interesse intelectual e convergências teórico-políticas marcaram a da casa grande. A prole era adormecida com as mães pretas contando histórias. Então, eram
interpelação das biografadas. Seja ao confrontar com as ações odiosas da branquitude ou histórias para adormecer. Quando eu digo que os nossos textos tentam borrar essa imagem,
nós não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário, pra acordá-los dos seus
reconhecer irmãs negras nos relatos, o processo foi intensamente movimentado e sentido sonos injustos. E essa escrevivência, ela vai partir, toma como mote de criação, justamente a
por nossas corporeidades. Essa desestabilização, contudo, ajudou a manter viva a atenção vivência. A vivência do ponto de vista pessoal mesmo ou a vivência do ponto de vista coletivo
sobre o objetivo de construir um ponto de vista diverso – e, sobretudo, mais realista – de (EVARISTO, 2017 apud Mariana SOUSA; Maria BARBOSA, 2020).

nossa história.

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Capítulo 1 - Introdução GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata; SALEJ, Ana P.

Assim, nos capítulos que se seguem sobre as trajetórias individuais de vida e de traba- CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v.17, n.49,
lho de mulheres negras na administração pública, não apenas a dimensão profissional é 117-132, 2003.
considerada. As origens familiar e social são apresentadas, mostrando tanto seu papel CARNEIRO, Sueli. Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência. In: CARNEIRO,
formador, ético e político, quanto condicionante do acesso à escolarização – principal mola Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros, 2019.
de ativação de mobilidade social. O contexto de formação escolar e universitária é exposto
e interpretado, ora como fonte de processos de aniquilamento cognitivo e confiança, ora COLINS, Patrícia Hill. Pensamento feminista negro. [São Paulo]: Boitempo, 2019.
como berço de ativismo e reconstituição identitária. Outras dimensões são relatadas: a do CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos de
ativismo, atravessador de toda a trajetória adulta e sobretudo profissional; o das relações discriminação racial relativos ao negro. Estudos feministas, v. 171, n. 1, 2002.
sexuais e românticas, como caminho profundamente tortuoso; a da religião, promotora de
DIOP, Carmen. Les femmes noires diplômées face au poids des représentations et des
um religamento com um passado e com uma herança apagados, mas também de um futuro discriminations en France. Hommes & migrations, Paris, n. 1292, p. 92-102, juil./août.
coletivo. 2011.
Com isso, espera-se contribuir para a discussão sobre a complexa trama desse contrato EVARISTO, Conceição. Estação Plural, TVBRASIL, São Paulo, 2017. Entrevista concedida
de exclusão racial-sexual-classista que as atinge de frente, e potencializar saídas para a a Ellen Oléria, Fernando Oliveira e Mel Gonçalves. Disponível em: https://www.youtube.
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38 39
2
Capítulo 1 - Introdução

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em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2007. Eu nasci em 1965. Um ano depois do golpe, no interior de Minas Gerais,
em São Gonçalo do Pará – um município bem pequeno, de 10 mil habitantes,
SILVA, Sheila dos Santos; MOREIRA, Maria Elisa Rodrigues. Escritas de si e espaço
biográfico ‒ revisão teórico-crítica. 2016. Memento, Três Corações, v. 7, n. 2, 19 p., jul./ com população de maioria branca e bastante conservadora. Minha família é
dez. 2016. uma das poucas famílias negras do município e eram muito pobre.

SILVA, Tatiana Dias; SILVA, Josenilton Marques da. Reserva de vagas para negros em Meus avós tiveram apenas minha mãe. Eram agricultores, trabalhavam
concursos públicos: uma análise a partir do Projeto de Lei 6.738/2013. Brasília, DF: na roça, conseguiram comprar uma pequena fazendinha. A família do meu
Ipea, 2014. (Nota técnica, n.17). pai era do Quilombo do Pimentel, que fica na região de Pedro Leopoldo e
Santa Luzia. Quando vão para Belo Horizonte, vão morar no Pendura Saia,
SOUSA, Mariana Alves; BARBOSA, Maria Valéria. Mulheres negras ocupando espaços por
meio de narrativas e “escrevivências”. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 33, n.2, favela que ficava na região Centro-Sul da cidade. Eles vão passar por todo
jul./dez. 2020. o processo de especulação imobiliária, que tira as famílias negras que
lá moravam, para entrar ali um bairro de classe média alta, que hoje é o
STONE, Lawrence. Prosopografia. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 39, p.115-137, jun.
Cruzeiro. Então, eu vim dessa conjuntura familiar.
2011.
VOLPE, Ana Paula Sampaio et al. Igualdade racial. In: INSTITUTO DE PESQUISA
ECONÔMICA APLICADA. Políticas sociais: acompanhamento e análise: n.20. Brasília, DF:
Ipea, 2012. cap. 8, p. 313-367.
40 41
Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Mãe: mulher não pode depender de homem A infância


Minha mãe, Maria Antônia Cesária Evaristo, é professora formada no Magistério de nível Quando meu pai e minha mãe se casam, vão morar no interior. Minha primeira irmã morreu
médio. Estudou com muita dificuldade. Encontramos uma foto dela na escola primária; é a única muito cedo, antes dos seis meses – éramos cinco filhas, na verdade. E eu vou ser criada no
menina negra da turma. Ela fez o magistério em Pará de Minas, único lugar onde foi aceita – interior. Quando meu pai morreu, eu tinha dez anos e minha irmã caçula, um mês. Então, costumo
porque, naquela época, mesmo que meus avós estivessem pagando seus estudos, algumas escolas dizer que a partir daí eu quebro a minha infância, porque passo a ter que assumir uma série de
não aceitavam pessoas negras. responsabilidades domésticas, em especial o cuidado das minhas irmãs caçulas. Eu tinha uma irmã
com um mês e outra, que tinha que trabalhar. Minha mãe trabalhava, às vezes, de manhã, de tarde e
Minha mãe sempre lutou muito e tinha uma meta para as quatro filhas. Construiu um projeto
de noite, e eu que cuidava. No tempo em que eu não estava na escola, estava cuidando da casa e da
para todas nós: o projeto das filhas estudarem e serem emancipadas. “Mulher não pode depender
irmã caçula. Na adolescência, tinha gente que achava que minha irmã era minha filha.
de homem!’’, era seu pavor. Porque, para meninas negras, principalmente no interior, quando a
mãe ficava viúva e muito pobre, a sociedade também tinha um roteiro pensado: quando meu pai Apesar de muita pobreza, de ter perdido o pai muito cedo, da família ter passado por muita
morreu, muita gente pediu à minha mãe para que nos desse. Mas minha mãe sempre respondeu: dificuldade, mesmo tendo que ajudar na família e trabalhar, a infância no interior nos propiciou
“Não! Não vou dar nenhuma das minhas filhas! Podemos viver de pão e água, mas vamos ficar uma coisa muito legal, que é o encontro, a brincadeira. Como educadora, me incomoda o fato das
juntas”. Dar as filhas para outro cuidar era muito comum. Na verdade, isso se transformaria em crianças de hoje viverem emparedadas, sem possibilidade de expansão – que é uma coisa que vivi
trabalho infantil, um “cuidado’’ em troca de trabalho. plenamente no interior. A gente tinha quintal, tinha rua, tinha praça. Era um lugar muito pobre,
com esgoto a céu aberto, problemas de energia elétrica, de água; mas tinha espaço. Andei de pé no
Minha mãe persistiu muito e nós todas estudamos. Todas têm formação de nível superior,
chão, subi em árvore, pude brincar e me divertir muito.
e duas, mestrado. Cumprimos o roteiro que a minha mãe planejou para nós, de termos nosso
trabalho, sermos donas do nosso nariz, tocar nossa vida. Do meu primeiro casamento eu tenho duas filhas, Mariana e Marina, duas mulheres
maravilhosas. Mariana se formou em Direito e agora faz Letras para não fugir à regra da família de
Pai: militante do movimento negro
ser professora. Marina é intérprete de Língua Brasileira de Sinais e, agora, também faz licenciatura
De certa forma, também seguimos a tradição do meu pai, de ter um engajamento na luta em Letras-Libras. Sobre afetos e relacionamentos eu falo na minha biografia1. Se tem uma coisa
antirracista. Para a gente, esse sempre foi um debate fundamental. Meu pai, Osvaldo Catarino que eu nunca desisti foi do amor. Com meu primeiro namorado, que é um homem negro e pai das
Evaristo, era autodidata, aprendeu várias coisas sozinho: lia muito, pintava e fazia esculturas. minhas filhas, fui casada por 14 anos. Depois nos separamos e me apaixonei de novo várias vezes.
Participou das aulas de artes livres dentro do parque municipal e também chegou a escrever no Atualmente, estou em um relacionamento estável. Meu companheiro, Carlos Tibúrcio Crispim,
Jornal Estado de Minas. conhecido como Marraia, é sambista e não é intelectual de óculos. Coloquei uma regra pra mim:
nunca mais namore intelectual de óculos. Namore gente que gosta de música, de cantar, da noite e
Meu pai foi um homem negro, que, naquela época, vai escrever e fazer várias coisas. Foi
que te valorize como pessoa.
militante do movimento negro em Belo Horizonte, participou da Associação Cultural José do
Patrocínio, uma das primeiras associações negras daqui. Foi muito cedo como pracinha para a II A religiosidade: o sagrado é um aspecto importante e forte, mesmo a
Guerra, onde ficou surdo. Tinha um problema no ouvido por causa das explosões das bombas e há gente querendo negar e abafar
a suposição de que tenha morrido pelas coisas que aconteceram a ele lá.
Nós, as mulheres do meu núcleo familiar, por morarmos no interior vivemos um certo
isolamento da família do meu pai – a cidade ficava a 120 km de Belo Horizonte. E, naquela época,
década de 1960, por causa da pobreza, essa distância espacial era a mesma coisa que se morássemos

1 SILVA, Jailson de Sousa; SILVA, Eliane Sousa. Macaé Evaristo: uma força negra na cena pública. Rio de Janeiro:
Eduniperiferias, 2020.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

na Austrália. Não tinha telefone nem rede social, a gente se via a cada dois anos. Para minha mãe, também essa espiritualidade. Uma força que é inegável. Você pode tentar silenciar, mas ela vai
uma mulher do interior, sair de lá com quatro filhas e viajar para a capital era um acontecimento! emergir, e com força.
Isso dá uma conformação diferente para o nosso núcleo familiar e isso teve um impacto na questão
religiosa. 2. Na escola: a educação como divisor de águas
Por sermos de uma cidade do interior, bastante conservadora, minha mãe e minha avó eram Eu sempre tive boas professoras, elas têm sido minha grande inspiração. Eu me lembro
católicas; portanto, essa foi a base religiosa em que fui criada. Minha avó era muito religiosa, minha de todas as professoras que tive nos anos iniciais do Ensino Fundamental, cada uma com sua
mãe nem tanto; mas ia à missa, sempre contribuiu com as festas da igreja. Somente descobri e peculiaridade. Lembro da professora que me alfabetizou; da minha professora do segundo ano
me reaproximei das religiões afro-brasileiras, do Candomblé e da Umbanda, muito depois de sair primário com quem aprendi tudo que sei de matemática. Da minha mãe, que foi minha professora
da minha cidade natal. Hoje, consigo olhar para trás e enxergar a opressão e o racismo religioso no terceiro ano. Da professora da quarta série que adorava literatura, nos fez ler os livros do
do interior. Consigo ver como as mulheres negras do Candomblé eram vistas na minha cidade. Orígenes Lessa e depois nos levou para conhecer o autor – o máximo para a gente, a coisa mais
Eram como mulheres que você deveria temer, com quem não deveria conversar, nem frequentar chique e maravilhosa! Também na Universidade Católica, cursando Serviço Social, tive mulheres
suas casas. Me lembro de uma senhora chamada Maria Baiana, que andava toda de branco e de maravilhosas como professoras. Todas inspiraram minha atuação, o que penso sobre educação e
turbante, uma mulher bonita e elegante. Não sabia o porquê, mas as pessoas falavam que a gente a forma como a encaro. A educação é, para mim, um divisor de águas, marca fortemente minha
tinha que ter medo dela. trajetória.

Outra história triste da minha cidade, é de uma senhora que foi expulsa por conta do Minha trajetória escolar acompanha a expansão da escola pública, porque quando fiz os anos
adoecimento de uma menina jovem, pertencente a uma família rica da cidade. A menina sofre iniciais do Ensino Fundamental, somente esses eram públicos. Quando fui para a quinta série –
um acometimento, que ninguém sabia dizer o que era, e morre. Então, uma pessoa acusa essa o Ginásio, como era chamado na época – o ensino público ainda não era universalizado. Havia
senhora, uma mulher negra, de ter feito um feitiço e causado a morte da menina. Vários homens as escolas das comunidades, da Rede Cenecista2, uma espécie de cooperativa, em que as famílias
na cidade se reúnem, vão até a casa dessa senhora negra. Ela é tirada da sua casa e vai apanhando pagavam para as crianças estudarem. Quando chego ao quinto ano do ensino fundamental, a
pelas ruas da cidade; eles a obrigam a ir até o cemitério para procurar o feitiço supostamente escola era comunitária. Logo depois os anos finais será estadualizado. Da mesma forma, quando
enterrado, onde acham um terço. A mulher é levada até o trevo da cidade, tiram sua roupa e a chego ao Ensino Médio, ainda não era em uma escola pública, mas da comunidade; estudo um ou
deixam lá, proibindo de voltar à cidade. Essa cena, não me contaram; eu vi, devia ter uns sete dois anos, para depois também se estadualizar. Minha mãe, que era professora, fez parte dessa
anos. Então, consigo compreender o pavor que as pessoas e as famílias negras tinham. Elas tinham história, lutando para a expansão do ensino público na minha cidade. Minha mãe achava que eu
que se desprender! Quando você está numa situação minoritária, tem que abrir mão das suas devia fazer dois cursos no Ensino Médio, que só o Magistério era pouco, já que eu queria continuar
tradições e da sua religiosidade. E, claro, aderir à religião do opressor. Era a única forma de se a estudar depois. Então, fiz o curso técnico em Química, em uma escola privada de Divinópolis; e o
salvar naquela conjuntura. Isso aconteceu em Minas Gerais, na década de 1970, a 120 quilômetros Magistério, na escola noturna, na minha cidade.
de Belo Horizonte.
A vivência escolar do ponto de vista da ausência e da solidão da mulher
Quando a gente fala da religiosidade, tem também muito desse processo de opressão nas negra
nossas vidas. Mas, também, posso dizer que hoje sou mais próxima do Candomblé. Não sou iniciada,
Da mesma forma que minha mãe, a minha vivência escolar foi bastante solitária, do ponto
mas tenho uma filha que é. As novas gerações estão nos reconectando com essa espiritualidade,
de vista da presença negra na escola. A maioria das crianças que frequentava a escola era de
que hoje é forte e presente. A forma como a gente se relaciona com o sagrado é forte, mesmo
querendo negar, abafar. É possível ver no ambiente de outras famílias: minha primeira sogra é
2 A Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (Cnec), fundada por Felipe Tiago Gomes, é uma rede educacio-
católica e super religiosa; mas é benzedeira, foi parteira, e os netos agora começam a manifestar
nal filantrópica, surgida em 1943, para atender crianças e jovens que não possuíam ofertas de estudos pelo poder
público ou não tinham condições financeiras para ingressar em colégios privados, sobretudo em regiões interioriza-
das do país. O modelo envolvia a comunidade na construção do projeto.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

famílias brancas. Ser uma criança negra na escola é difícil. Você vai ser chamado de “cabelo de blogueiras negras que estão construindo uma forma de elaborar essas questões; mas isso não
bombril’’. Para isso, minha mãe tinha uma pedagogia muito própria: ela nos ensinava a fazer existiu para a minha geração.
bullying com as pessoas brancas, como mecanismo de defesa. Falava: “Se te chamarem de ‘cabelo
de bombril’, você chama de ‘macarrão da Santa Casa’”. Eu choro de rir até hoje. “Se te chamarem 3. Fora das fraldas: o início da trajetória profissional,
de ‘nega, fedorenta’, você fala assim: ‘calango da barriga branca’”. A minha mãe ensinava a gente, universitária, pessoal, tudo junto.
nessa ordem: primeiro, a nos protegermos; depois, a como responder: “Você não vai aceitar. Vai
Em 1982, após me formar no Ensino Médio, surge a pressão: eu queria continuar a estudar,
responder na mesma moeda”. Acho que eu posso fazer um livro como o da Márcia Tiburi: em vez
mas tinha uma questão objetiva, ter condição para estudar. Minha mãe não tinha a menor condição
de Como Falar com um Fascista, vou escrever Como as crianças podem se defender do racismo. A
de pagar a faculdade para as quatro filhas. Assim, no ano seguinte, vou participar de vários
gente precisa ensinar às nossas crianças estratégias, mecanismos de resposta a essas situações de
processos seletivos para arrumar um emprego.
racismo, porque na infância isso é terrível, mexe com sua autoestima. No geral, as professoras não
faziam nenhuma intervenção. E quando faziam, diziam assim: “Por que você está achando ruim? Na minha cidade, a oportunidade de emprego que existia era trabalhar em uma fábrica de
Você é nega mesmo!”, legitimando o algoz. É um processo difícil para uma criança operar isso, dar fraldas. Na seleção, dobro fralda pra caramba, mais que muita gente que estava comigo. Mas na
conta de elaborar essas situações. hora de ser escolhida, sou preterida – nem precisa perguntar o porquê. No final desse mesmo ano,
1983, surge um concurso para professor na prefeitura de Belo Horizonte e faço a inscrição. Sou
Depois, na adolescência, surge com muita força outra questão: a da solidão da mulher negra.
aprovada e muito bem classificada. Em março de 1984, sou nomeada e começo a trabalhar como
Ser uma mulher negra, em uma cidade do interior de maioria branca, é não ter a possibilidade
professora da rede municipal de Belo Horizonte, em uma escola no Bairro Tupi, zona norte do
de viver a sua adolescência, tanto do ponto de vista da sua sexualidade, quanto de viver o amor
município. Até me estruturar, vou morar com uma tia; depois, em uma república. Minha meta era:
romântico. Você não encontra pares para exercer isso. Você não será vista como uma pessoa
trabalhar para pagar o cursinho, para poder fazer o vestibular e o curso superior.
“aceitável” do ponto de vista de uma mulher com quem se pode relacionar. O amor romântico, se é
que serve para alguém, não é pensado para nós, não está posto para nós. Eu tinha muitos amigos na A experiência na universidade
adolescência; andava com os homens, mas era uma relação de amizade. E é isso de que lembro. Não
Minha mãe queria que eu fizesse Medicina, era seu grande sonho. Já eu queria fazer Farmácia,
tive uma relação de romance, eu não estava no universo “namorável” para esses meninos. Eu era a
era modinha na minha época. Mas quando chego em Belo Horizonte, vejo que precisaria ter um
amiga legal e divertida. Então, na adolescência, as meninas negras sofrem imensamente com isso;
conhecimento mais sólido e uma vida mais estruturada para disputar uma vaga na Universidade
torna-se um lugar de silenciamento, de ocultação, de sublimação. O ideário de relacionamento na
Federal, em condições de igualdade. Faço o vestibular na UFMG, passo bem na primeira etapa, mas
sociedade brasileira é profundamente marcado por um conceito de heteronormatividade branca. A
não entro para o curso de Farmácia, por uma diferença milimétrica. Então, minha opção era fazer
gente lê milhares de livros na nossa adolescência, indicados pelas escolas, inúmeros são romances.
Serviço Social na PUC3. Ainda bem que eu fiz, fui muito feliz! Tinha muito mais a minha cara.
Quem são os personagens? Não tem uma mulher negra como personagem de romance que seja
amada. Eu era uma leitora compulsiva; li muito na minha adolescência, mas nunca encontrei essa Quando entrei na universidade, em 1985, passo a estudar de manhã e trabalhar à tarde.
mulher nos livros de literatura. Não tinha um filme que tivesse casais negros. Isso na adolescência Naquela época, não tinha metrô; eu pegava um ônibus. Eu chegava cedinho na PUC, estudava até
também contribui para que esse processo seja doloroso. A gente não existe. E quando existe, é 11h30, saía enlouquecida para chegar no Bairro Tupi. Houve época em que eu precisei trabalhar
numa situação de subalternidade e de humilhação constante. no chamado “turno da fome”.

O que se pode encontrar em uma mulher negra é uma grande tentativa, em geral, de Naquele momento, faltava tanta vaga para estudantes nas escolas públicas, que elas tinham
exploração e apropriação do seu corpo. Você vai sofrer assédio, vai ser chamada a se prostituir, a três jornadas diurnas: das 7 às 11, de 11 às 15, e de 15 às 19 horas. O “turno da fome” se chamava
vender seu corpo. Não vai ser reconhecida do ponto de vista da sua humanidade. Hoje, uma parte assim, porque você não tem horário de almoço: começa a trabalhar às 11 e vai até as 15 horas. No
da juventude negra consegue traduzir e falar sobre isso, principalmente nas redes sociais. Muitas
3 Pontifícia Universidade Católica da Minas Gerais.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

geral, a gente trabalhava em dois horários. Foi muita luta para a gente desmontar essa estrutura, e para todo mundo, muita gente ficava sem escola. Era um deficit de vagas absurdo para o Ensino
avançar na construção das escolas nas comunidades. Fundamental.

O ativismo como parte da trajetória Vamos localizar isso do ponto histórico. O desmonte da escravidão no Brasil se faz
penalizando as pessoas que tinham sido escravizadas. Quem teve reparação foram os proprietários,
Meu primeiro contato com o ativismo político vai se dar no interior, no âmbito dos movimentos
os escravizadores. A população negra não teve acesso à reforma agrária, a nenhum tipo de
de igreja, com as Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), as pastorais de juventude e os agentes de
financiamento público e foi proibida de estudar. Decretos ainda da época da monarquia, do final
pastorais negros. Na minha cidade do interior tinha muitos grupos de jovens que me despertaram
do século XIX, proíbem a escolarização de pessoas negras. A primeira Constituição da República
para a política. Ainda na adolescência, ganhei de um amigo um livro maravilhoso que se chama Si
proíbe a escolarização de pessoas negras. Pessoa negra podia estudar só se tivesse mais de 14
me permiten hablar, um livro sobre a história da líder Domitila Barros Chungara, que foi uma líder
anos, no período noturno, e se o professor aceitasse. Então, essa situação permanece até o final do
operária, muito humilde e que trabalhava na mineração. Ela vai travar uma grande luta na Bolívia
século XX. Isso é importante para a gente entender o que é o racismo estrutural, a perversidade
e dedicar toda sua vida à luta pelos direitos das pessoas na mineração e pelas famílias pobres. O
da desmontagem do sistema escravista no Brasil e a maneira como o Estado vai ser, o tempo todo,
livro me marcou profundamente, porque era a história de uma mulher do povo, sobre a luta contra
utilizado de uma forma patrimonialista.
o imperialismo e a organização das mulheres.
Mas no pós-ditadura militar e no pós-Constituição de 1988, que vai ser um marco, não dava
Minha trajetória começa com esse grupo
mais para os governos se omitirem. A constituição estampa o direito à educação; e garante aos povos
de jovens, conhecendo pessoas e acessando
indígenas, uma educação específica e diferenciada. Um pouco antes, ainda no contexto da ditadura
leituras que me traziam uma visão de mundo
militar, da luta pela redemocratização, vou começar a participar de uma série de movimentos. Eram
mais ampla. Do ponto de vista familiar, meu pai
várias as agendas nos territórios, junto às associações de moradores, em que a gente se organizava
era ativista, mas convivi pouco com ele. Depois,
para lutar por melhorias para a comunidade. Na época, participei, por exemplo, dos mutirões
relacionei-me com minha prima, a Conceição
de construção das casas do Jardim Felicidade. Também, de grupos de trabalhadores da área de
Evaristo. Ela conviveu com meu pai na juventude
saúde e da educação. A gente buscava ampliar o acesso à educação, eleger diretor de escola, ter
e me contava muitas coisas sobre ele que eu não
colegiado. As diretoras eram indicadas por políticos, e as poucas vagas que havia nas escolas eram
sabia. E tinha a minha mãe também, professora,
direcionadas para as pessoas que chegavam com o cartão do vereador ou do deputado. Então me
com suas lutas pelas melhorias das escolas da
engajo no movimento popular, tudo ao mesmo tempo: dando aula, estudando na PUC, namorando,
minha cidade e para a gente estudar.
tendo filho, enfim, tudo junto.
Quando venho para Belo Horizonte, me
Na PUC, vou me encontrar não só com o movimento estudantil, mas também com o MNU –
torno professora na periferia, começando a
Movimento Negro Unificado, e o Grucon, que era o Grupo de União e Consciência Negra, do qual
ver milhares de situações de desigualdade de
vou participar. Também vou conhecer os APNs, que eram as Associações de Pastorais Negras,
acesso. Começo a trabalhar, em 1984, na Escola
fortemente organizadas em Belo Horizonte. Esses grupos vão ser muito importantes nesse início
Sebastiana Novais, bairro Tupi, região Norte,
da minha formação, no meu despertar para um olhar para além da trajetória individual, para
um dos menores Índices de Desenvolvimento
a necessidade da gente se engajar nas lutas coletivas. Esses encontros vão se articular à minha
Humano da cidade, onde muitas crianças ainda
atuação comunitária no Bairro 1º de Maio, Tupi e no Jardim Felicidade; no movimento negro da
ficavam sem escola. Quando se fala em dormir
universidade, também me encontro com vários padres Jesuítas que tinham trabalhos de base,
na fila, era literalmente isso ou ficar sem vaga.
Macaé no Conselho dos Secretários Estaduais de Educação,
trabalhos comunitários na mesma região em que eu trabalhava.
A quinta série era a pior; não tinha mesmo
2018.
Crédito: Luiz Rocha

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Nesse contexto, passo a conhecer a luta antirracista de uma maneira mais orgânica. À medida Escola Estadual Edson Pisani, a escola da Vila
que você vai participando, vai discutindo e percebendo que o engajamento no movimento social é Fátima que fica na comunidade do Cafezal, bem
educador. Aqui, lembro do livro da Nilma Lino Gomes4: Movimento Negro Educador. É o movimento lá dentro do aglomerado da Serra6.
que educa, como diria o Paulo Freire; ele nos educa e educa a sociedade, traz à tona esses temas,
Trabalhei também em um dos primeiros
para denunciá-los e forçar a construção de políticas públicas de superação dessas situações.
programas de alfabetização de adultos,
Na PUC me encontro também com a política. Na Faculdade de Serviço Social, conheci o instituído na década de 1990, em Belo Horizonte.
Patrus Ananias5, que foi meu professor. Vou ter contato com vários nomes que lutaram contra a Começou com a alfabetização das mulheres que
ditadura, que estavam envolvidos em um novo cenário político e na construção do Partido dos trabalhavam na varrição de rua pela SLU7. A
Trabalhadores (PT). Vivo toda a efervescência do começo do Partido, as primeiras eleições do PT maioria era analfabeta e a prefeitura resolveu
em Belo Horizonte e o envolvimento com essa pauta. Além disso, é da minha geração do Serviço instituir um programa de alfabetização de
Social que vai emergir todo o debate sobre o Sistema Único de Assistência Social. Sou da geração adultos para elas, o que foi incrível. Significava
que vivenciou o debate, a luta e a construção de várias políticas sociais nos governos do campo alfabetizar uma mulher e ela lhe dizer: “As
democrático e popular, do Partido dos Trabalhadores. pessoas sempre me perguntaram onde era a
rua dos Tupinambás; há anos, eu varro todos os
4. A trajetória profissional: mulher, negra e gestora pública dias a rua dos Tupinambás e não sabia informar.
E, hoje, li a placa Rua dos Tupinambás”. Então,
Minha trajetória tem um diálogo profundo com o meu fazer profissional. Fui traçando meus Foto de Acervo Pessoal. Ano: 2017.
é isso: o direito à educação, à diversidade é o Crédito: Acervo pessoal
caminhos em função das pautas em que acredito. Olho para trás e penso que fui muito feliz, porque
direito a compreender o lugar em que você está.
sempre trabalhei em escolas e projetos com os quais tinha identidade, sintonia, uma proposta
de educação progressista, emancipatória, freiriana. Eu acredito nessa educação e tento levar Outras pautas vão entrando, como a do combate ao racismo na educação. No início dos anos
essa concepção para todos os lugares onde vou. Por isso, cada vez mais, fui fazendo a opção de 1990, nós conseguimos criar o Núcleo de Gênero e Raça dentro da Secretaria de Educação. Talvez
me implicar em projetos dessa natureza, de trabalhar em escolas de periferia, estar perto das essa tenha sido a primeira iniciativa do país, muito antes da Lei 10.6398. Em 1990, Belo Horizonte
comunidades, trabalhar junto às associações comunitárias, mesmo que fosse com uma agenda na constituiu um grupo com as professoras Nilma Lino Gomes, Rosa Vani e eu. Fomos procurar o
escola e outra militante, depois do horário de trabalho, no sábado ou domingo. Miguel Arroyo, que era Secretário Adjunto da Secretaria Municipal de Educação, para dizer a ele
que não era possível trabalhar a Escola Plural sem considerar as desigualdades educacionais
Em 1984, ingressei como professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte.
provocadas pelo racismo que ainda existiam dentro das escolas. E a gente defendeu então que
Trabalho muitos anos como Professora Regente de alfabetização de crianças, jovens e adultos.
dentro da Secretaria de Educação houvesse uma área para pensar essas políticas. Ele nos pede
Depois, assumo alguns lugares de Coordenação Pedagógica em escolas. Fui eleita Diretora da
para fazer um projeto – a proposta de criação de um Núcleo de Gênero e Raça para a educação. E a
gente consegue instituí-lo, pela primeira vez, dentro da Secretaria de Educação.

Em 1997, em função da minha experiência como Professora e como Diretora da Escola


4 Pedagoga, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e primeira mulher negra do Brasil a se tornar Municipal Edson Pisani, fui chamada para trabalhar no primeiro programa de implementação de
reitora de uma universidade pública federal, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(Unilab), em 2013. Em 2015-16, foi Ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, no governo
Dilma Rousseff. 6 O Aglomerado da Serra é a maior favela de Minas Gerais, localizada na Zona Sul da capital Belo Horizonte.

5 Professor aposentado da PUC-Minas e político brasileiro. Foi vereador e prefeito de Belo Horizonte, deputado fe- 7 Superintendência de Limpeza Urbana de Belo Horizonte.
deral, Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (governo Lula) e Ministro do Desenvolvimento Agrário 8 A Lei 10639/03 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira, ao incluir no currículo oficial da Rede
do Brasil (governo Dilma Rousseff). de Ensino a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

escolas indígenas de Minas Gerais, com um curso de formação de Magistério para professores Eu vivi a Secadi muitos anos antes dela existir de fato. Do ponto de vista do movimento
e jovens indígenas, selecionados por suas comunidades. Era uma articulação entre a Fundação popular, a gente fez a Marcha dos Zumbis dos Palmares9 e a articulação para a Conferência de
Nacional do Índio, o Instituto Estadual de Florestas, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Durban10; vi o Lula aprovar a Lei 10.639/2003. A Secadi foi criada a partir de uma pressão dos
Secretaria de Estado da Educação. Parte dos formadores do curso eram professores da universidade; movimentos negro, indígenas, movimentos do campo, da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a
mas, quando começaram o curso, sentiram falta de gente com experiência em escola de educação fim de que o Ministro da Educação, na época Cristóvão Buarque, criasse no MEC uma Secretaria
básica. Então, foi montada uma equipe só com esses professores, coordenada pela professora para tratar dessa agenda da diversidade e inclusão. Porque, até então, só tinha a Secretaria de
Lucinha Álvarez, hoje professora da Faculdade de Educação da UFMG. Ela me chama para compor Educação Básica (SEB), no MEC, que cuidava da educação de uma maneira geral; e, como tudo o que
a equipe que iria formar os primeiros professores. é universal – mais ou menos como roupa de tamanho único – não dava conta das especificidades.

A gente já entra no curso “causando”: era uma formação de professores indígenas, e estava na Em 2013, vou me tornar Secretária da Secadi, em um momento muito tenso. A secretaria foi
legislação que devia ser uma experiência específica e diferenciada; mas os professores preparavam criada em 2004, naquela efervescência das políticas de diversidade e de novas narrativas. Mas,
um curso igual para todo mundo. E a gente chegou dizendo: “Olha, mas Xacriabá é Xacriabá, Pataxó em 2013, a Secadi já estava na linha de fogo da agenda conservadora porque fazia políticas para
é Pataxó, Maxakali é Maxakali, Krenak é Krenak. Pode ter uma linha geral, mas a gente precisa diversidade sexual, quilombolas, indígenas, educação de jovens e adultos e combate ao racismo. É
individualizar, de forma que a conversa faça sentido pra cada uma das etnias”. Enfim, iniciei o nesse momento que o Deputado Marco Feliciano vai ser eleito Presidente da Comissão de Direitos
trabalho com a educação escolar indígena e vou seguir militando nesse campo. Já tem pelo menos Humanos da Câmara Federal.
20 anos que estou nessa jornada da educação indígena. Atuei aqui em Minas, na Bahia, no Mato
A experiência de ser gestora em Brasília foi muito importante. É um outro universo ser
Grosso do Sul e no Acre. Trabalhei com os Ticuna no Amazonas. Os cursos começaram a acontecer
gestora municipal e ser gestora nacional, porque são níveis de conflitos, disputas e enfrentamentos
no país inteiro, alguns, por iniciativa da articulação de instituições governamentais; outras, por
de naturezas muito diferentes. Em 2014-2015, Dilma é reeleita Presidente do Brasil. O Cid Gomes
iniciativa do próprio movimento indígena.
assume o Ministério da Educação e me convida para continuar como Secretária, mas também
Em 2003, com o governo Lula, o coordenador desse programa em Minas vai ser chamado recebo o convite do Governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, para ser Secretária de
para montar a primeira coordenadoria para pensar a educação indígena no Ministério da Educação Estado de Educação. Minha opção é voltar para Minas Gerais, porque minha família estava aqui.
(MEC). Então ele me indica para assumir a coordenação e a articulação do programa aqui em Minas No Ministério da Educação, estava uma tensão muito grande com o Congresso, com os grupos
Gerais. Não foi um período fácil, porque lá no governo federal estava entrando o Lula; aqui, no conservadores ganhando musculatura; a gente enfrentou as manifestações de 2013. Mas tinha no
governo estadual, o Aécio. Viam nosso grupo como “todo de esquerda”, “tudo petista”. Aquelas coisas Ministério da Educação um projeto, uma proposta e um pensamento educacional progressista, em
de início de governo. Enfim, o desafio naquele momento era garantir a manutenção do programa sintonia do ponto de vista da construção de uma agenda.
e avançar na criação de uma Licenciatura Intercultural Indígena na UFMG, com o apoio do MEC.
Enfrentamos inúmeras dificuldades, mas conseguimos viabilizar o curso.  Fico nesse programa,
por pelo menos mais uns dois anos, até se iniciar a primeira turma de Graduação em Licenciatura 9 A Marcha Zumbi dos Palmares aconteceu em 20 de novembro de 1995, aniversário de 300 anos da morte de
Intercultural Indígena. Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência escravista e da consciência negra no Brasil. A marcha reuniu 30 mil pes-
soas em Brasília para denunciar o preconceito, o racismo e a ausência de políticas públicas para a população negra
Vou para a Secretaria de Educação, a convite da Professora Maria do Pilar, em 2005, para ser brasileira. Na ocasião, o presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu a marcha e assinou o decreto que instituiu
o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, primeiro passo para o reconhecimento
sua assessora. Depois, vou gerenciar a política educacional, como Secretária Municipal de Educação, das injustiças históricas sofridas pelo povo negro e sua inscrição na agenda política do governo brasileiro. A marcha
de 2009 a 2012. Quando deixo a Secretaria, sou convidada para cuidar da área de educação escolar abriu caminho para que, no ano seguinte, fosse realizado o seminário internacional “Multiculturalismo e racismo:
o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos”1, cujo debate foi central para a posterior
indígena, educação para as relações étnico-raciais e a educação do campo no MEC. Primeiro, atuo
formulação das políticas de ação afirmativa no Brasil.
como diretora dessa área; depois, sou chamada para assumir a Secretaria Nacional de Diversidade
10 A Conferência de Durban foi a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
e Inclusão (Secadi) de 2012 a 2014. Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU, entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001, na cidade de
Durban, África do Sul.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Quando venho para Minas Gerais, também é um momento tenso e uma conjuntura totalmente na burocracia. Porque na burocracia, o racismo e o machismo não estão somente te atingindo;
diferente, um pouco sem identidade. E já chego com uma “pedreira”, o desmonte da Lei 10011. Tenho estão atingindo milhares de pessoas que estão com você. Por exemplo: você faz uma política
que fazer concurso público e nomear professores; ou seja, chego com uma estrutura dissolvida. para comprar kits de literatura para serem colocados nas mochilas dos estudantes, cada um vai
Um esforço imenso. Não posso reclamar, a gente tem que trabalhar, ter resultado, mas foi muito ganhar livros novos no começo do ano. Mas a gente vê gestores que tiram os livros do kit escolar;
difícil. O estado de Minas Gerais vivia uma dificuldade histórica: completamente falido e com uma porque, na cabeça deles, não se dá esses livros novos para as crianças daquela comunidade. Esse
estrutura imensa. A Secretaria de Educação estadual tem um número de funcionários que nos faz é o racismo da estrutura que a gente tenta enfrentar e criar mecanismos para que as crianças não
pensar que deve ser a maior empresa do mundo. E uma estrutura operacional, arcaica, burocrática, sejam privadas dos livros.
morosa e conservadora. Os desafios foram grandes: instaurar uma política de participação, de
Vou dar outro exemplo. Quando se instituíram as Unidades Municipais de Educação Infantil
escuta e de produção de diálogo. Então, na minha gestão como Secretária de Estado de Educação,
(Umeis) em Belo Horizonte, uma política que vinha desde a gestão do Patrus e que era uma inversão
será a primeira vez que vai ter uma indígena coordenando a área de educação indígena dentro
de prioridades: pela primeira vez, fazer unidades escolares bem pensadas para a infância. Mas
da Secretaria; a primeira vez que tem alguém do campo coordenando uma área de educação no
essas escolas vão ser construídas nas periferias, dentro das vilas e favelas. Um primeiro debate,
campo. Essas pessoas vão enfrentar muitos embates, dificuldades e preconceitos. Todo dia foi se
muito forte internamente, foi o da distribuição das vagas. O Grupo de Gênero e Raça teve uma
trabalhando para desconstruir uma relação historicamente muito ruim, agressiva, das estruturas
atuação muito forte para destinar 100% das vagas para as crianças mais pobres. Mas isso virou
centrais das burocracias do estado com as escolas.
um rebuliço; inclusive, com o argumento de que precisava ter classe média na Umei, porque se
Em todos esses lugares, vou ser a primeira secretária negra: racismo e não tivesse diversidade, não teria ensino de qualidade. Ora, cadê as crianças faveladas dentro
racismo estrutural das escolas privadas? As pessoas entendem como o racismo se traduz ali, na hora que você está
desenhando a política, que ele vem disfarçado dos discursos acadêmicos de legitimação. Mas o que
Pessoa negra vai sofrer racismo; toma uma dose todo dia. Então, se eu sofri racismo? Sim.
está ali, na essência, é: “Vão fazer uma escola dessas e colocar lá dentro da favela? E ainda vão dar
Pela invisibilidade, pelo não reconhecimento do meu lugar e também por manifestações explícitas.
100% das vagas para aquelas crianças faveladas?’’.
É preciso falar do racismo junto com o machismo. A gente está falando e os homens passam por
cima da gente. Primeiro você fala, ninguém dá ouvidos. Passa dois minutos, um homem fala e: Outro exemplo: foi feito o concurso público para as professoras dessas escolas. Os primeiros
“Nossa que ideia original!”. Ou a pessoa vem contar para você a ideia que você mesma deu, como aprovados são, em geral, pessoas portadoras de uma melhor formação, que vêm das universidades
se fosse dele, achando o máximo. públicas. Então, as primeiras professoras de educação infantil das Umeis, aprovadas nesse concurso,
são mulheres brancas, que, pela primeira vez, vão para as unidades municipais de educação infantil
Quando eu era Secretária de Educação em Belo Horizonte, o chefe de gabinete, que era
para serem professoras de crianças negras. Nesse contexto, o primeiro grande dilema instaurado
um homem branco, um dia me falou: “Macaé, é tão estranho! Eu não te vejo como mulher”. Fico
foi um drama em relação ao número de luvas que as professoras precisavam usar: “Como vou
pensando no porquê de ele não me ver como mulher: por que uma mulher não podia ser alguém
pegar nessa criança?’’. É óbvio que você precisa de luvas para trocar uma criança. Mas o problema
hierarquicamente superior a ele? Por que era uma mulher negra hierarquicamente superior a ele?
foi tão superdimensionado que foi preciso prover uma infinidade de luvas! A gente não estava
Ou, então, não me via como mulher por que não podia gostar de uma mulher negra? Obviamente, o
vivendo em época de pandemia, não tinha nada.
que ocorre em nível pessoal é pesado. Tento passar por esses espaços e não carregar essa estrutura
violenta para mim. Gosto da leveza, da alegria e de festa, não quero perder minha essência para Sempre houve creches comunitárias e nunca tinha tido esse debate no ambiente educacional.
estar nesses lugares. Mas quando se faz política educacional, o enfrentamento do racismo é Mas era a primeira vez que havia mulheres não negras cuidando de crianças negras. Então, a
situação ganha relevância, porque se tratava de pegar no corpo negro, no cabelo das crianças
negras. Nosso cabelo e nossa pele eram tidos como coisas sujas. É esse nível de enfrentamento,
11 A Lei Complementar Estadual 100/2007 admitiu quase 100 mil servidores sem cargos públicos, dos quais cerca
que acontece quando a gente está fazendo as políticas públicas, que me atinou. A gente precisa
de oitenta mil sem a observância de concurso público. Em 2014, um ano antes do início do governo Pimentel, ela foi
considerada parcialmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade
4.876, tornando nulo o provimento de cargo efetivo.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

fazer uma reprogramação para não entrar em depressão. E, às vezes, a gente entra mesmo; adoece, A questão das cotas e o lugar das pessoas negras na paisagem
porque é muito duro.
Vivi, na faculdade, o fato de ser a única mulher negra em uma turma de Serviço Social. Entrei
Vou falar de mais um fato. No Ministério da Educação, na Secadi, criamos um programa na universidade em um momento que o curso superior ainda era para pouquíssimas pessoas
estratégico para viabilizar uma ligação Brasil/África, uma articulação com vários países africanos. negras. E a universidade pública, um universo mais excludente ainda. Na minha turma da manhã,
Eu participei de um grande encontro com vários ministros e gestores de países africanos, reitores não tinha outras pessoas negras, eu era a única. A maioria das meninas negras, quando conseguiam
de universidades africanas. Nessa conjuntura, a Secadi e os movimentos populares estavam entrar na universidade, só conseguiam estudar à noite, pelo mesmo motivo pelo qual passo depois
reivindicando a instituição de um programa de desenvolvimento acadêmico para estudantes a estudar à noite: preciso trabalhar, de manhã e de tarde, e tenho filhas para criar. Nos últimos
negros. Havia uma avaliação e grande pressão, do movimento negro, afirmando que as regras do dois semestres, já casada e com filhas, quando passo para a turma da noite, aí sim vou ter colegas
programa Ciências Sem Fronteiras excluíam um número significativo de estudantes negros. Então, negras.
a gente estava batalhando para instituir um outro programa, de aperfeiçoamento acadêmico, para
Então, penso na minha própria situação. Lá atrás, se houvesse um sistema de cotas,
possibilitar a mobilidade estudantil para os estudantes negros, pardos, indígenas, que tinha que
possivelmente eu teria tido acesso ao curso de Farmácia. Quando fiz o curso superior, não se falava
ser articulado com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e, em
em cotas. Quem sempre teve essa agenda e colocou a educação em um lugar muito importante para
alguma medida, com a Secretaria de Educação Superior (Sesu). E a gente da Secadi encontrou uma
a emancipação da população negra foi o movimento negro. Desde a Frente Negra até o Movimento
grande resistência em outros setores do Ministério da Educação.
Negro Unificado (MNU), o Coletivo de Educadores Negros (Coen) - e vários grupos dos quais a
Eu participava dessa agenda com os reitores, ao longo de alguns dias, na Bahia. Fechamos gente participa, a agenda da educação é prioritária e sempre teve esse reconhecimento12.
apoios e acordos bilaterais. A ideia era fazer um grande guarda-chuva para toda a agenda do
No final das contas, quando a gente compara a nota de corte entre cotistas e não cotistas,
Ministério da Educação com os países africanos. Um dos pontos que a gente queria era viabilizar
a diferença é muito pequena. E o resultado na saída, ou seja, do ponto de vista da aprendizagem
parcerias em projetos de formação e pesquisa, articulando as universidades de países africanos
ao longo do curso e da competência dessas pessoas, mostra que a diferença desaparece. Então,
com universidades brasileiras. Era esse um dos eixos do programa.
o vestibular existe para criar um funil, para segregar. A ideia de meritocracia é um discurso
Na volta para Brasília, no caminho até o aeroporto, todos dentro de uma van, um dos construído na desmontagem do sistema escravista para legitimar o patrimonialismo institucional
eminentes do alto escalão conta uma piada super racista. Eu e o diretor da área de educação do – a apropriação do Estado por determinados grupos. As pessoas não põem na balança o esforço
campo e indígena éramos as duas únicas pessoas negras nessa van, onde tinha todo o alto escalão individual. Quando você compara a trajetória de um estudante de rede privada e um estudante da
do governo, todos brancos. E uma das pessoas com quem a gente estava “brigando’’ por causa rede pública, do ponto de vista do esforço individual, isolando-o, fazendo grupos de controle em
do programa para estudantes negros na pós graduação, conta a piada racista. Alguém faz um relação às condições adicionais que um e outro tem, quem tem mérito é o aluno da rede pública.
comentário e ele fala: “Parece que você não é daqui”. Na África do Sul, tem uma piada muito comum Ele é quem tem mérito, porque consegue subverter todos os percalços do caminho.
dos estádios de futebol. Na época do apartheid, os brancos assistiam ao futebol nas arquibancadas
Então, para mim, as políticas de cotas e as ações afirmativas são uma questão de justiça social.
e os negros, debaixo dessas arquibancadas. Então, tinha um cara, que não era da África do Sul, doido
pra fazer xixi. Outro cara fala para ele: você pode fazer aqui embaixo mesmo. E disse: “Bem se vê Quando se está falando de políticas públicas voltadas para a população negra, a gente
que você não é daqui. Porque quem é daqui escolhe um negro para poder urinar, e você urinou em precisa pensar do ponto de vista sistêmico, intervir no conjunto: investir e ter financiamento para
vários”. Eu me lembro que, nessa época, falei com esse diretor que trabalhava comigo: ’’Olha, essa creche e para pré-escola; ampliar o tempo das crianças em atividades educativas; ter renda digna
piada vai custar esse programa’’. Essa pessoa vai assinar o decreto instituindo o programa para
os jovens negros na universidade. E o programa saiu. Teve gente que chegou a ir para o exterior
12 A Frente Negra Brasileira (FNB) foi um movimento negro brasileiro, fundado em 16 de setembro de 1931, e
financiado por esse programa. Toda vez que eu conto essa piada, eu choro. Falar de racismo é isso.
reconhecido como partido político em 1936 até o golpe de 1937. O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em
1978, é considerado um marco do ativismo negro brasileiro, pois assinala sua retomada após ter sido desmantelado
pela ditadura militar; é até hoje uma das entidades mais importantes do país.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

para as famílias, para que elas possam suportar e manter suas crianças fora do trabalho infantil, a doceira, a baiana que vende a cocada, a que vende o angu, o tropeiro, o acarajé. Sempre foi uma
frequentando as escolas. E a gente tem que ter cotas nas instituições de ensino superior públicas, forma de sobrevivência e, inclusive, de luta por emancipação, porque não só trabalhavam, mas
nos institutos federais, na Fundação João Pinheiro – que, do contrário, seria um curso para jovens muitas vezes usavam esse recurso para ajudar a comprar a alforria de outras pessoas que estavam
brancos, de classe média alta, que teriam lugar cativo no serviço público do Estado de Minas Gerais. escravizadas.

Então, esse debate é também sobre o lugar das pessoas negras na “paisagem”. Temos que ter No movimento negro, as mulheres vão trazer o debate do machismo dos homens negros,
o direito a nos ver na paisagem. Não é possível que as pessoas achem natural chegar em um país porque o movimento negro também padecia dessa discussão. Os homens negros não deixam de
como o Brasil, com 52% da população negra, entrar em um restaurante e não ter nenhuma pessoa ser machistas. Então, as mulheres negras vão dizer que a nossa luta tem que ser interseccional.
negra. Não é possível chegar a uma empresa e, da portaria até o chefe, não ter nenhuma pessoa Também não adianta lutar pelos direitos das mulheres e não compreender o genocídio dos
negra. Como as pessoas não se incomodam? A gente precisa de mais ações. Durante 500 anos, só homens negros; ou não compreender que no feminicídio das mulheres negras, elas são mortas
entraram pessoas brancas. A gente não está pedindo 500 anos do contrário. Defendo políticas principalmente por seus companheiros, homens negros.
afirmativas, porque nosso país se estruturou sobre uma desigualdade planejada. Sobre a exclusão
Não dá para a gente não entender que mulheres brancas, muitas vezes, usam o seu lugar de
e a hierarquização de uma parte das pessoas, para que outras pudessem acumular as riquezas.
privilégio para excluir as mulheres negras. Por exemplo, nas relações de trabalho, muitas vezes
Eu era secretária da Secadi no momento em que aprovamos a Lei de Cotas e pude trabalhar serão privilegiadas ao ocupar determinadas vagas e postos. Outra questão é a do lugar das mulheres
fortemente em sua implementação. Em 2013, criamos o programa Bolsa Permanência para garantir negras no trabalho doméstico. Quem, durante anos, garantiu que mulheres brancas pudessem
que estudantes pretos, pardos, indígenas, quilombolas, pudessem se manter na universidade, estar no mercado de trabalho? Mulheres negras que ficavam dentro de suas casas, cuidando de
para dar condições mínimas para esse estudante estar na universidade. Um jovem quilombola seus filhos, muitas vezes sem condição de criar os próprios. Outro dia, fiz uma live com o Mestre
que entra em um curso de Odontologia, em uma universidade federal não tem o que comer, onde de Capoeira Saúva, aqui da região metropolitana de BH. Ele contou que sua mãe era empregada
dormir, onde morar. doméstica: “Macaé, durante toda a minha infância, nunca passei nenhum Aniversário e nenhum
Natal com a minha mãe porque ela era empregada doméstica. Em todos os meus Aniversários,
Precisamos de ação afirmativa e não podemos reduzi-las às cotas. Cotas são importantíssimas,
ela estava trabalhando. E não era liberada no dia do Natal porque tinha que limpar a casa em que
mas têm que vir subsidiadas com uma série de outras ações, inclusive apoio emocional para esses
trabalhava para fazer o Natal para os filhos dessa senhora. Ela nunca pôde passar o Natal com os
jovens, dentro e fora das instituições. A primeira turma de cotistas das universidades brasileiras
próprios filhos”.
foi massacrada dentro das instituições. Se o movimento social não tivesse capacidade de auto-
organização, para dar suporte para a juventude negra, o racismo teria destruído emocionalmente Os homens negros
essas pessoas. E a burocracia tem uma grande capacidade de reproduzir e estabelecer mecanismos
Uma das últimas coisas que escrevo na minha biografia é essa preocupação que também
de exclusão.
tenho em relação aos homens negros, o lugar que eles têm hoje. Primeiro, pensar do ponto
Interseccionalidade e feminismo de vista do extermínio da juventude negra, de seus corpos: são os homens negros que estão
sendo completamente massacrados. Do ponto de vista das trajetórias, vejo que nós, mulheres,
Todas essas pautas são interseccionais: não tem jeito de eu tratar de uma questão etnorracial
conseguimos fazer uma jornada acadêmica em maior número: há muito mais mulheres do que
e não entender o que é a pauta de uma mulher negra. As mulheres negras foram as primeiras a
homens negros bem-sucedidos academicamente. Associado a isso, tem a discussão que a gente
chamar a atenção para isto: nas nossas pautas a gente vive um duplo processo de exclusão. Porque o
tem feito sobre as masculinidades e o lugar delas, e me preocupo com os homens negros nesse
movimento feminista – precisamos dizer, o movimento tradicional branco – está muito distante da
sentido. De certa forma, hoje eles ocupam um “não lugar”. Não tem um lugar para esses homens.
agenda da mulher negra. Quando as feministas brancas estavam lutando para ir para o mercado de
Isso também acaba sendo traduzido nessa violência enorme que as mulheres negras vivem, pois
trabalho, as mulheres negras já trabalhavam há muito tempo, na maioria das vezes, em condições
são esses quem mais violentam as mulheres negras. Se a gente pensar do ponto de vista dos dados
horríveis de subemprego. São as mulheres negras que trabalhavam, e ainda trabalham, na rua: era
sobre o feminicídio no Brasil, ele diminui entre mulheres brancas e aumenta entre mulheres

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo EVARISTO, Macaé; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

negras. Então, esses lugares da masculinidade negra e os lugares na sociedade que os homensos só’. Pô, gente, eu toquei no Oriente Médio. Uma
homens negros atualmente ocupam, ou não ocupam; é um tema que a gente precisa olhar, cuidar, mulher preta da periferia! Eu tive um hit, você
destacar, pesquisar e entender melhor. sabe o que que é isso? De onde eu vim, ter um
hit que toca em tudo quanto é lugar do mundo é
Descobri-me mulher negra desde quando nasci
uma coisa impensável!”. E aí, ela diz isso: “Sabe
Venho de uma família que se identifica como negra. Eu, junto com minha mãe, também o que fiz com isso, gente? Reformei a casa da
participei de encontros do movimento negro com mulheres negras de outras gerações, como a Dona minha avó”. Então, quando penso nas mulheres
Efigênia Pimenta, a Conceição Leal de Uberaba, a Diva Moreira de Belo Horizonte. Tem um grupo negras, falo que revolucionaram. A Lélia
de mulheres negras em Minas Gerais, da geração da minha mãe, mais idosas, que se articulavam, Gonzales disse: “Uma sobe e puxa a outra”. E a
faziam encontros, pressionavam os governos para ter políticas. Então, tenho uma origem que faz Ângela Davis diz que quando uma mulher negra
esse debate. Entretanto, o que eu acho que é mais difícil na nossa trajetória é a gente lidar ou dar se movimenta, toda a estrutura da sociedade se
conta de externalizar o sofrimento produzido pelo racismo. movimenta. Eu acredito nisso. Hoje a gente está
vivendo um momento em que a rede social nos
Tem um livro que se chama Tornar-se Negro13. A autora fala do tornar-se negro no sentido
deu uma arma bastante poderosa, apesar de
de você ir assumindo, se reconhecendo cada vez mais na sua negritude. Mas também assumindo o
ter um monte de defeito, que é a capacidade de
compromisso de uma atuação, no sentido de usar nosso corpo e nossa voz para dizer como é duro
nos articularmos para além do nosso território
esse processo. Não vou dizer que para mim foi diferente.
restrito.
Hoje, é importante esse ativismo, todo esse movimento de falar que as mulheres negras
Por exemplo, hoje discuto educação,
podem estar onde quiserem, que a gente precisa abrir espaços, que precisa de espaço de poder e
relações raciais em tudo quanto é lugar do
de representatividade. É uma luta no campo simbólico, que se dá no simbólico, mas quer repercutir
Brasil. Nós, mulheres negras, nos encontramos
nas estruturas materiais. Por isso a gente faz uma luta que é com o corpo, com a pele e com uma
em diferentes lugares e temos feito um
estética, porque a gente quer desconstruir uma cultura política que não nos enxerga, que não nos
movimento de somar, de fortalecermos umas às
quer na paisagem.
outras e os bons projetos. De reforçar práticas
As virtudes e pontos fortes das mulheres negras para ir revertendo e contrapondo um discurso
que também é muito forte. Então, é necessário
Gosto de prestar atenção no que está acontecendo no mundo e nas coisas que as mulheres
criar um movimento, uma força, para além
falam. A ‘’filósofa’’ Jojô Todinho fala assim: “Qualquer tentativa de negação de racismo aqui no
desses lugares, que se institui pela constituição
Brasil, diante da minha pessoa, ela acaba”. Ela fala assim: “Por quê? Porque eu sou uma mulher
de redes e pelo nosso ativismo, pela nossa ação
negra, tenho o peito grande, sou gorda, falo palavrão, entendeu?” Ela vai elencar uma série de
civil.
características para falar como a presença dela desconcerta e, ao mesmo tempo, denuncia o
racismo que a gente tem aqui no Brasil. Esses dias, andei prestando atenção tentando dialogar
com essa figura que é uma mulher suburbana, que não tinha nada, que vai se fazer sozinha, a
partir do funk. Ela fala: “As pessoas ficam me questionando, ‘a Jojô Todinho, mulher de um sucesso Macaé em atuação na Câmara Municipal de
Belo Horizonte. Fevereiro de 2021.
Crédito: Bernardo Dias / Acervo CMBH.
13 Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (Ed. Graal, RJ-
1983), de Neusa Santos Souza, foi um marco nos estudos psicanalíticos e sociológicos acerca da identidade negra
brasileira.

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Capítulo 2 - Macaé Maria Evaristo

Uma mensagem e um motivo para ser lembrada Larissa Amorim Borges


Jessyka Martins
Eu tenho uma marca: falo que sou geneticamente feliz. E no meu livro, explico essa questão
Matheus Arcelo Fernandes Silva
da felicidade, a relação disso com a religiosidade, com o samba, o Congado, o Candomblé. É a ideia
dos Erês, que são os orixás crianças, que conseguem tudo de uma maneira muito feliz e muito
alegre. Terminei meu livro assim: “Penso que estou ajudando as novas gerações a descobrir, a
aprender e aprendendo com elas. O que é lindo, embora sofrido. Mas acima de tudo eu sou feliz. A
alegria dos Erês me mantém viva”.

Quero ser lembrada como uma mulher feliz. Não de uma felicidade ingênua, mas de uma

LARISSA
mulher que viveu muitas dores, muitas esperanças e que mantém a alegria como uma pulsão para
ficar de pé e enfrentar os desafios. E que fez da educação e do combate ao racismo a sua agenda
prioritária.

AMORIM BORGES
Quero ser lembrada, também, de uma maneira muito afetiva pelas pessoas. Gosto de dizer
que fui Secretária em diferentes espaços da gestão e que tenho a felicidade de poder voltar a
eles. Às vezes, é muito difícil ocupar um cargo na gestão pública e poder voltar aos lugares, ser
bem recebida. Em qualquer desses espaços, os funcionários têm um carinho enorme por mim,
reconhecem meu trabalho. Isso diz, para mim, de uma tentativa de trazer para esses lugares da
política um olhar sobre a humanidade das pessoas e de possibilitar a construção de projetos 1. A minha história começa antes de mim
coletivos.
A minha história começa antes de mim, porque tem a ver com as
minhas ancestrais. Das minhas origens mais antigas de que tenho notícia
e reverencio, por parte da minha mãe Maria Oldete Amorim, me lembro:
da minha tataravó Lia, que era indígena, do norte de Minas, que por amor
decidiu sair da aldeia para viver com um homem quilombola. Lia foi mãe de
Dindinha Patu (Patrocínia) e avó de minha avó Genoveva Rosa de Amorim,
que teve como território de vida e sonhos as margens do Rio Trinta e do Rio
Mocambo, em Claros dos Poções1. Já do lado do meu pai, José Evangelista
Borges, a pessoa mais antiga de que eu tenho notícia e reverencio é minha
tataravó: Maria Segunda, que é de origem portuguesa. Essa família veio da
região de São José dos Ferros para Belo Horizonte no final da década de
1940. Minha avó, Maria Trindade, foi uma das primeiras moradoras do Alto
Vera Cruz2. No Alto, ela pariu Zico, Márcia, Regina, Marta Antônio do Espírito
Santo, Roberto, Ronaldo, Paulo Sérgio (Gugu) e Raquel.

1 Município localizado no Norte de Minas Gerais.


2 Bairro da região leste da capital Belo Horizonte.

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Capítulo 3 - Larissa Amorim Borges BORGES, Larissa A.; MARTINS, Jessyka; SILVA, Matheus A. F.

Minha mãe, Maria Odete Amorim Borges, chegou em Belo Horizonte com sete anos. Ela vinha A rua era meu alívio: violência doméstica e a aproximação com o
de uma família muito pobre, que vivenciava a questão da seca, e minha avó, Genoveva Rosa de movimento negro
Amorim, mandava as filhas para trabalhar em casa de família. Ela tentava protegê-las da violência,
Apesar de haver muito amor, carinho e cuidado ao meu redor durante a infância e adolescência,
da fome. A partir dessa dinâmica, minha mãe veio primeiro, por ser a filha mais velha. Depois
silenciada e presente, a violência doméstica que acompanhou minha família por várias gerações
vieram as outras irmãs, Maria Livanete, Maria Arlete, Maria Margareth, Maria Elizete. Os filhos do
também estava lá. Ainda não compreendo a complexidade da ausência de palavras e da explosão
sexo masculino, João de Deus, Américo, Toni, Alexandre, saíram da lavoura para a construção civil.
de sentimentos que se materializava em agressões. Em consequência do racismo e do machismo,
Quando minha mãe chegou na capital, foi trabalhar em uma casa de uma família bem rica, várias gerações da nossa família foram profundamente feridas por agressões físicas e simbólicas.
que tinha muitos filhos e boa parte das terras de Belo Horizonte; ela era pequena e tinha que fazer Herdeiro do que se passou antes, meu avô, João Borges, tinha um tronco no meio da casa. Ele
o serviço todo. Enquanto limpava a biblioteca, se encantou com os livros e com nove anos ela amarrava meus tios neste tronco para bater. Era espancamento e tortura cotidiana. Estamos nos
aprendeu a ler sozinha, naquele contato com os livros. Quando ela entrou para a escola, já sabia curando deste passado. Nosso desejo é compartilhar outras vivências e deixar heranças de amor e
ler. Continuando os estudos, fez o segundo grau, formou em técnica de enfermagem e trabalhou emancipação para as gerações presentes e futuras.
até recentemente no Pronto Socorro do João XXIII3. Meus pais estudaram no colégio Loyola, em um
Meus pais avançaram em relação às gerações anteriores, mas a violência doméstica esteve
projeto de educação para jovens e adultos (EJA). Eles trabalhavam de dia e estudavam à noite. Se
muito presente em nosso núcleo familiar. Vivenciamos graves violências durante anos, sem
conheceram lá e depois se casaram.
falar sobre ela. Só na adolescência, quando minha Tia Elizete veio conversar, nos encorajou,
Sou a primeira filha de três irmãs: eu, a Lorena e a Laiara. Lorena já tem três filhos, o João, o demonstrando que algo deveria e poderia ser feito. Foi aí que a gente conseguiu dialogar e tomar
Ryan, que são adolescentes e agora, mais recentemente, o Luís. E eu tenho o Enzo e a Elis. uma atitude, mas foram muitos anos de agressão, uma violência silenciada.

Nasci em Belo Horizonte em 15 de julho de 1981. Antes de eu nascer, quando minha mãe Meu pai não é de beber, então não era por causa de alcoolismo. Tinha a ver com a pobreza
estava grávida de sete meses, ela e meu pai foram para uma festa. Na volta, pegaram uma carona simbólica e com a incapacidade de lidar com as situações, então eu não sei nomear, de fato, do
e bateram o carro. Minha mãe teve traumatismo de bacia, craniano e os médicos disseram que se que se tratava. Mas eu sei que não era por conta de alcoolismo, só para deixar destacado, porque
o bebê nascesse, seria com problema. Nasci sem problema nenhum, muito saudável e estou aqui muitas vezes as pessoas vão justificar a violência doméstica em função do consumo de álcool ou de
até hoje. Cheguei ao mundo bem pequena, minha avó Maria conta que eu cabia na palma da mão alguma droga; mas isso não se aplica no caso da minha família.
dela – mas ela tem uma palma bem grande.
Nesse sentido, quando minha tia falou que
Sempre tive uma relação muito próxima com essa avó, Maria Trindade, porque ela cuidava aquilo que a gente vivia era violência, a gente
muito de mim para minha mãe trabalhar. Minhas tias e tios sempre ajudando, estando perto. Tive começou a pensar quem poderia ajudar e como
uma infância rodeada de tios e primos, sou a primeira neta por parte de pai e segunda neta por a gente ia fazer. Eu tinha participado de um
parte de mãe. Antes de mim, tem um primo que considero como irmão, que é o Bruno Rafael projeto chamado “Criança negra, criança linda”,
Amorim, e a gente se dá superbem. Sempre fui a primeira menina dos dois lados, cercada de todas onde me contaram uma história da capoeira,
as atenções, mimos e carinhos. Minha infância foi muito isso, brincar no terreiro, na casa de vó. dos escravos que tinham usado a capoeira para
se libertar e eu falei: “descobri, achei a solução,
vou entrar na capoeira e vou colocar as minhas
irmãs, que ninguém vai bater na nossa cara
nunca mais”.

3 O Hospital João XXIII é um hospital público estadual de pronto socorro, localizado em Belo Horizonte. Larissa em Manifestação do dia 8 de Março, logo após
a posse do Conselho Estadual da Mulher, em 2017.
64 Crédito: Acervo Pessoal
Capítulo 3 - Larissa Amorim Borges BORGES, Larissa A.; MARTINS, Jessyka; SILVA, Matheus A. F.

A partir daí, arrumei um emprego de distribuir panfleto de campanha eleitoral no Partido Seja qual for sua condição atual, é possível mudar a realidade para uma vida livre de violência e
dos Trabalhadores para arrumar dinheiro e comprar um tênis para entrar na capoeira. Com o repleta de prosperidade e amor.
salário, comprei o tênis e, na primeira aula, o professor falou: “tira o tênis”. Fiquei espantada,
A Laiara arrumou emprego de atendente numa pizzaria, ela ganhava 17 centavos por hora
porque não sabia que não precisava; já tinha visto roda de capoeira em algum lugar, acelerava
de trabalho. Em um mês ela foi atrás, arrumou fiador, alugou apartamento e levou as coisas dela.
meu coração, mas eu não sabia que não precisava de tênis. Essa primeira aula me ensinou, que
Depois, a gente pegou minhas coisas também, que cabiam dentro de uma caixa de televisão. Essa
muitas vezes estabelecemos condições que atrasam e/ou dificultam a superação de situações de
mudança aconteceu no início do mês de novembro de 2005; minha mãe não deu conta de ir com a
violência, opressão e ausência de amor.
gente e fomos viver a nossa vida.
Nós três entramos na capoeira e foi muito bom. Mas foi desafiador, porque assim que a
Quando mudamos, uma amiga da Laiara foi morar com a gente. Dividíamos o aluguel e as
gente começou a rodar perna, a briga lá em casa ficou mais complicada. Começamos a não aceitar,
contas. Tudo que tínhamos eram 120 reais. Com este dinheiro compramos um fogão usado, uma
passivamente, a violência. Passamos a revidar as agressões. E ele ficou ainda mais agressivo.
geladeira velha, dessas bem antigas; com os dez reais de troco, compramos três cadeirinhas.
Traçamos estratégias para quando a situação esquentasse. E chegamos em um ponto de pensar
Compramos um tapete a prestação, Lorena deu de presente umas panelas e minha mãe fez umas
em matar meu pai.
almofadas.
No ápice deste processo, conhecemos mulheres do movimento de mulheres negras, Graça
Tínhamos três copos, três pratos, três colheres e muitos sonhos. Foi muito libertador para
Saboia e Denise Pacheco4, que demonstraram que não era assim, que não se resolve a violência
gente poder fazer essa mudança. Era um período, também, em que eu estava estudando, fazendo a
com mais violência. E foi a Vanessa Beco que me apresentou o Hip Hop e o Feminismo Negro. Com
faculdade, meu curso demorou muitos anos para acabar. Como não tinha dinheiro, fazia um semestre
o apoio delas percebemos que tinham que ter outros caminhos.
e trancava o outro, e eu fui vivendo de estágios e oficinas. Neste período, pude me dedicar muito
Neste período, a Lorena engravidou, casou e teve o João, aos 16 anos. Agora, meu sobrinho para o desenvolvimento das ações da organização de Mulheres Negras Ativas e outros projetos
já está com 19. Um ano depois de ter o João, ela teve o Ryan, que está com 17. Os dois foram muito dentro da cultura hip hop, como o Atitude de Mulher e o Hip Hop Chama. Foi uma fase muito legal,
amados e desejados desde o primeiro instante. E mudaram muito nossas vidas. Lorena mudou em que pude militar muito e me desenvolver artisticamente como MC na cultura hip hop; também
para um apartamento no mesmo bairro. Eu e a Laiara ficamos, continuamos a viver com meus pude experimentar a arte da palhaçaria, a dança afro e também conheci outros lugares do Brasil e
pais. Fui me envolvendo cada vez mais com os movimentos sociais eu comecei a ficar cada vez mais do mundo, levada pela militância.
na rua e menos em casa. A rua era meu alívio, eu ia em casa só quando não tinha jeito. Era uma
Depois que a gente saiu de casa, meu pai espancou minha mãe e ela saiu de casa levada pelo
maneira de lutar um pouco contra o que me oprimia em casa; como eu não dava conta de fazer o
Samu5. Nesse caso, a gente teve que intervir e chamar a polícia. Depois disso, ela ficou com a gente
enfrentamento ali, eu fazia onde eu podia. A gente falava para minha mãe separar, mas isso não
um tempo, mas decidiu voltar para casa em que morava com meu pai. Eles estão juntos até hoje. Os
fazia sentido para ela. Então, decidimos ir embora.
dois estão felizes do jeito deles, mas foi muito desafiador, entender e aceitar.
A violência não é a principal parte da minha história, não. Mas sinto que é importante falar
Nessa época, conheci a Suely Virgínia. Terapeuta floral que trabalha na perspectiva junguiana,
sobre isso, porque ficamos silenciadas por muitos anos e falar cura, liberta. Quero que outras
ela é incrível e acompanha nossa família até hoje. Ela foi me ajudando a tentar compreender essa
mulheres saibam que isso pode acontecer com qualquer uma de nós, em qualquer momento de
história de outra forma. É a história da minha mãe e ela pode fazer as escolhas dela. Na minha
nossas vidas. Mas a violência não nos define. Quero que saibam e sintam que é possível superar.
história, eu faço minhas escolhas e o que eu quiser. O apoio da Suely tem sido muito libertador,
ajudou-me bastante a lidar com isso. Eu fiquei muitos anos sem falar com meu pai. Agora a gente
já conversa, temos construído uma outra relação.
4 Graça Saboia foi gestora de políticas para mulheres e de promoção da igualdade racial no município de Belo
Horizonte. Foi militante da Juventude Operária Católica (JOC) e da Secretaria de Combate ao Racismo do PT. Denise
Pacheco é gestora de políticas de saúde e promoção da igualdade racial com atuação municipal, estadual e federal e
no PT. 5 Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.

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Capítulo 3 - Larissa Amorim Borges BORGES, Larissa A.; MARTINS, Jessyka; SILVA, Matheus A. F.

Para além dessas questões, o período da juventude foi ótimo, participei do Fórum Social 2. Da rainha da pipoca ao doutorado: a escolarização
Mundial, conferências, colaborei para organizar eventos nacionais, internacionais, locais e dediquei-
me muito ao processo de formação. Essa construção do feminismo negro foi muito positiva e Minha mãe sempre achou muito importante a gente estudar. Ela sempre diz: “São as mulheres
libertadora. A partir daí, pensei, a gente tinha que espalhar essa palavra: “todo mundo precisa é que vão mudar o mundo”. Por isso, ela sempre procurou boas escolas, na medida do possível.
conhecer isso”. Então, fui me dedicando a isto: a colaborar para fazer as pessoas conhecerem essa Antes, jardim de infância era só particular, então ela faz um esforço para a gente entrar na escolinha
coisa que me salvou, que poderia ser útil a outras mulheres. Tanto pensando no movimento negro bem cedo. Lembro que se chamava Pequeno Príncipe e tinha uma roda gigante. Toda quinta-feira,
quanto na questão do feminismo. Minha juventude foi uma dedicação às outras mulheres negras, era dia da roda gigante. Também me lembro que tinha muita árvore frutífera no quintal.
à arte e ao combate ao racismo.
Essa escolinha era muito boa, mas foi lá que vivi a primeira situação de racismo em escola. Teve
Relações pessoais um evento da Rosa Juvenil e eu não pude ser a rosa, tive que ser um das dezenas de margaridas. Eu
queria ser a rosa e não podia, porque tinha que ser uma menina mais clara. Depois, teve a Rainha
Sempre que a situação de violência ocorria em casa, a minha relação com as pessoas,
da Pipoca e minha família vendeu muitos votos, mas quando chegou lá na hora da apuração, uma
namorados, ficantes, tornava-se um caos. Quando eu arranjava um namorado, minha avó, Dona
outra menina estava ganhando, porque a diretora havia feito mais cartelas de votos para a família
Genoveva, chegava a rir. Porque eu contava para ela: “vó, conheci um namorado bonito até, mas eu
dela. Então, Meu Tio Américo, que trabalhava na construção civil, pegou todo o dinheiro que ele
falei com ele e não sei se ele vai voltar”. E eu tinha falado: “olha, eu não aceito violência física de
tinha e falou: “Não, minha sobrinha que vai ser a rainha da pipoca, faz mais cartelas aí que eu vou
forma alguma. Se em algum momento você levantar a mão para mim, tentar me agredir de alguma
comprar todos os votos”. Comprou todas as cartelas e aí eu fui a Rainha da Pipoca! Pretinha, e
forma, eu te mato! Estou te avisando para a gente começar a brincadeira sem ninguém enganar
Rainha da Pipoca! Lembro até hoje que a minha mãe fez um vestido vermelhinho, um chapeuzinho
ninguém. Então, eu te mato se, em algum momento, você tentar me agredir”.
todo colado de pipoca e lá fui eu.
E não era uma brincadeira, era sério. A vivência da violência cria barreiras para as relações,
Depois do jardim, eu estudei em escola pública, a Escola Estadual Getúlio Vargas, na maior
deixa marcas que a gente vai aprendendo a curar com a vida. Então, com muita terapia, boas
parte do tempo; na terceira série, morei um tempo com minha avó Maria e nessa época estudava
amizades e terreiro estou aos poucos curando essa ferida. Levei um tempo para entender que cada
na Escola Estadual Necésio Tavares, no Alto Vera Cruz. Eu ia para a escola com umas roupinhas
pessoa é uma, as escolhas que meu pai e minha mãe fizeram não são as minhas escolhas.
arrumadinhas, cabelo arrumadinho. Minha tia Márcia fazia trancinha no meu cabelo ou cachinhos.
Minha juventude foi ótima! Namorei bastante com pessoas muito legais, e outras nem tanto, No começo, minha mãe teve que fazer preguinha no uniforme para mim, porque eu era muito
mas todas, inclusive eu, em algum momento tiveram atitudes “que é melhor nem comentar”. Pensei magrinha, e ela achava que eu não ficava bem. E, então, ela mesma fez uma sainha de preguinha,
em constituir família várias vezes, mas não rolou. Eu acho que vários fatores influenciam essa e ela mesma costurou a minha mochila com um pano que ganhou no hospital. Eu adorava aquela
construção da afetividade das mulheres negras, e eu não casei. Só que mais recentemente, por mochila que ela mesma tinha feito.
volta de 2010, fui morar com o Daniel em Brasília. Decidimos ter filhos, acabamos nos separando
Ainda quando estava no Pequeno Príncipe, a diretora da escola era negra, tia Sônia. No
e agora eu namoro com a Kelma.
Getúlio, tive a tia Neide, que era minha professora no primeiro ano, que é negra. A gente sempre
Hoje, eu estou muito feliz, super sapa bi, que era uma coisa que eu não imaginava. Tinha se encontra. Quando entrei no doutorado, fui atrás dela: “Tia Neide, entrei no doutorado”. E foi
certeza que eu era hétero; mas, um dia, quando distraí das normas de gênero, me apaixonei por muito bom poder dar esse retorno, foi a professora que me ensinou a ler, a gente até hoje tem uma
uma mulher negra incrível que também se chama Larissa. Nossa história não foi muito longa. Mas relação; é a minha vizinha, mora aqui perto. Sempre que ela encontra a minha mãe ou meu pai,
abriu um outro universo de possibilidades e potências na minha existência. Desde então, tenho me pergunta sobre mim.
conhecido mais e experimentado a vida de formas mais intensas, mais profundas e mais prazerosas.
Também tive uma professora negra que se chamava Luci, ela morava aqui no bairro, muito
O amor entre as mulheres é transformador.
especial. Teve uma vez que arrumei uma briga na aula da Luci, porque tinha uma menina, Ana
Paula, que também era negra, e ela acabava comigo. Aí, um dia ela, me perturbou tanto – eu não

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vou lembrar a agressão especificamente, mas era uma agressão que me doía muito –, tanto, que gente nunca conversou, mas não tinham outras pessoas negras na escola. Somada a essa falta de
eu voei em cima dela, arranquei o cabelo dela e foi uma coisa horrorosa. Todo mundo ficou muito pessoas negras, tinham várias piadas e várias atitudes racistas e machistas, e eu não entendia;
assustado, porque eu não sou de brigar. Mas a violência que se repetia insistentemente, que percebia e sentia, mas não sabia nomear. Eu me perguntava: “Porque no Nilton Rocha eu conseguia
ninguém via nem resolvia, me fez explodir. conversar com todo mundo, relacionar-me com todo mundo, e na escola particular eu não estava
conseguindo conversar com ninguém?” Só tive uma amiga e uma colega nesta escola, que também
Depois, eu tive também a Dona Norma, outra professora negra muito legal. Ela morava aqui
eram discriminadas por outros marcadores.
pertinho, agora ela está com problema de saúde e não mora mais aqui no bairro. Essas pessoas
eram referências importantes. Não conversavam com a gente sobre questão racial, mas a presença Nesse período, eu alisava os cabelos e eles começaram a cair. Com isso, minha mãe me levou
delas fazia uma diferença para a gente se sentir confortável e pertencente nos espaços. para cortar o cabelo. Só que a pessoa que cortou, fez uma coisa que deixou ainda mais estranho.
Depois do corte, fui para a aula. Cheguei na escola e o melhor professor foi o primeiro a fazer piada
Teve um período na escola também, logo depois que a gente entrou para a capoeira, que eu
do meu cabelo, e foi devastador. Após o episódio, saí da aula e raspei a cabeça. Fiquei muito tempo
e a minha irmã Lorena resolvemos criar um grupo de consciência negra. A gente foi pedir ajuda
usando o cabelo raspado. Nesse período, eu aprofundei a minha inserção no movimento negro e
com o pessoal da Pastoral do Negro (APN) e montamos um grupo, Kilombo. Foi nesse período
fui entender mais sobre o que estava pegando, sobre o que era o racismo mesmo.
que conhecemos o pessoal do Movimento Negro Unificado (MNU). A Ângela, do MNU, trabalhava
aqui no meu bairro e foi um dos primeiros contatos que a gente teve com o movimento negro. Era Depois, eu fui fazer um estágio na Coordenadoria Municipal de Assuntos da Comunidade
uma época em que estava tendo muito racismo na escola e a gente queria fazer alguma coisa. Esse Negra (Comacon). Já nesse processo de envolvimento com o movimento negro, quando eu passei
movimento durou pouco tempo, mas foi importante ter conseguido fazer algo, a “Juntas na escola no vestibular, estávamos organizando o Encontro da Juventude Negra e Favelada no Alto do Vera
contra o racismo”, quando agente ainda não tinha isso previsto nas diretrizes nacionais. Cruz. Realizamos o evento durante o dia, à noite dormimos todos na casa da minha avó e fomos
juntos fazer a prova da PUC6. No segundo dia, cada um foi para a sua casa e eu acabei saindo
Já no segundo grau, eu fui para a Nilton Rocha, que é uma escola estadual no bairro 1º de Maio.
atrasada.
E foi maravilhoso, porque lá a gente montou grêmio. Havia uma professora negra maravilhosa que
dava aula de literatura. Ela fazia um amigo-oculto literário muito incrível. Foi nesse amigo-oculto Quando cheguei no metrô, pensei: “Não dá mais tempo”. Eu nem ia descer do vagão, mas
que veio o meu primeiro amor. Trocando cartas no amigo-oculto literário eu me apaixonei por depois eu desci do metrô lá no bairro Coração Eucarístico. Subi devagar, pensando: “O que eu vou
um menino, o amigo negro, o Fábio e ele também se apaixonou por mim. Minha amiga Andreia falar para minha mãe, sobre essa prova?”. Mas quando eu cheguei na esquina, a porta estava aberta
Peterson que nos ajudou. Foi tão lindo! e o moço falou: “Corre, corre que dá tempo, corre!”. E aí eu fui correndo, desesperada e consegui
entrar e fazer a prova. Só que nem olhei o resultado, porque eu achei que eu não ia passar. E mesmo
Ainda teve a experiência do grêmio. Foi uma vivência muito legal na escola, com amigos e
se eu passasse, também eu não iria poder pagar.
uma interação muito boa. Depois desse período, eu tinha escrito uma redação dizendo que eu
queria ser hacker. Quando minha mãe viu isso, passou a buscar alternativas para me dar essa Foi aí que um amigo meu do partido, o Wagão, me ligou e falou: “Parabéns, Larissa!”. Respondi:
possibilidade. Ela arrumou outro emprego no Hospital Odilon Behrens para poder pagar a minha “Obrigada, mas você errou a data, o meu aniversário não é hoje”. E ele: “Não, não é isso não, você
escola. Era um período em que o meu pai estava desempregado, então ela era responsável pela passou no vestibular, você não viu?”. Fiquei espantada: “Eu passei no vestibular?”. Ele tinha visto
renda toda da família. O salário dela era praticamente todo para pagar escola. o resultado no jornal, na época era publicado. Não tinha tanta internet igual tem agora. E eu tinha
passado no vestibular, em Psicologia. Com isso, a minha mãe pegou dinheiro emprestado e tudo o
Com isso, eu fiz os dois últimos anos do segundo grau em um colégio técnico particular com
que tinha e pagou a matrícula. Depois, a gente foi se virando para eu conseguir estudar.
formação em informática gerencial. E foi muito impactante para mim, porque nesse período eu
comecei a viver muitas situações de racismo. Lá tinha uma professora negra, também de literatura. Quando decidi pela Psicologia, estava na área de Tecnologia, fazia sites e programação –
Mas, além dela, de mim e do porteiro, tinha um aluno negro na escola. Lembro que me sentia estava nessa área. Mas a partir das reflexões do movimento negro, sempre somos convidados a
mais aliviada na hora do recreio, porque ficava lá em cima olhando esse menino lá embaixo. A
6 Pontifícia Universidade Católica.

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Capítulo 3 - Larissa Amorim Borges BORGES, Larissa A.; MARTINS, Jessyka; SILVA, Matheus A. F.

pensar assim: “Qual área de estudo é fundamental e estratégica?”. Então, a gente tem que estudar e aí se abre um vão, com a minha família segurando o arranjo de flores da cerimônia, que fica lá
sempre, precisa estudar o máximo que puder. E não só o estudo formal, mas também outras buscas embaixo do palco. Eles pegaram aquele negócio e levaram lá para mim de presente. E, então, eu fui
de conhecimento. Acessar a universidade e outros espaços, pensando em quais lugares a gente a que ganhei mais flores na minha formatura.
pode ser útil, do ponto de vista do debate racial. Nesse sentido, fui pensar em que lugares que eu
E isso foi muito especial, porque eles estiveram comigo em momentos muito importantes
gostaria de contribuir e nas áreas que eu sentia afinidade, que eram Psicologia e Ciências Sociais,
da minha formação. Lembro-me que eu não conseguia gente para fazer trabalho junto comigo.
e eu não encontrei muitas referências negras.
Assim, teve um trabalho de que recordo, que fiquei muito revoltada. Era, inclusive, sobre trabalho
Nesse processo de escolha, inclusive, eu fui em campus conversar com os alunos para saber doméstico. Aí fizemos eu, minha mãe e a minha avó. Sentamos e fizemos o trabalho juntas, porque
como eram os cursos e acabei optando pela psicologia. Depois que entrei, que fiquei conhecendo eu não tinha grupo e elas falaram: “A gente faz o trabalho com você”. E elas fizeram e foi muito
as referências negras na área, como a Neuza Souza Santos, que é a autora do Tornar-se Negro – especial, a minha família me apoiou muito, apesar da confusão, das brigas e das tretas.
não a conheci pessoalmente, mas conheci o trabalho dela – e também o trabalho do professor
Já no mestrado, foi o momento em que eu falei assim: “Eu já fiz tanta coisa, eu preciso
José Thiago Reis Filho, que é um professor da PUC no campus São Gabriel, que trabalhava com as
pensar um pouco sobre esse trajeto”. E no doutorado está sendo desafiador desenvolver, por
questões da Psicanálise.
causa da articulação prática cotidiana entre maternidade, pandemia, desemprego, tratamento de
Além das poucas referências negras, decidi entrar na Psicologia, porque achei que seria endometriose e depressão... Então, eu estou um pouco devagar. Mas já combinei com a orientadora
muito importante para o enfrentamento ao racismo e suas sequelas. Eu senti que precisa pensar um prazo para finalizar em março do ano que vem. Aí eu não sei se com a pandemia a gente vai
nessa área a partir desse pensamento e do enfrentamento ao racismo, a partir da perspectiva das ter um período a mais, mas eu vou terminar, quero concluir e fazer um negócio bem-feito! Estou
pessoas negras, e é por isso que eu vim para a Psicologia. estudando Mulheres Negras em Espaços de Poder na América Latina. Temos muito a pesquisar
neste tema.
Durante a faculdade, o racismo apertou. Porque, de fato, tem esse recorte de classe e raça. Com
isso, eu estava quase desistindo, quando alguém me falou para não desistir e procurar a professora 3. Entre a militância e a gestão: a construção da trajetória
Márcia Mansur. E aí eu fui lá, falei com ela que estava muito difícil a relação com os colegas, com
profissional
os professores, que eu não estava me sentindo pertencente àquele espaço, que eu não estava me
sentindo acolhida. Depois dessa conversa, ela me ajudou a fazer a transferência para o campus da Como comecei a contar anteriormente, sempre fui muito dedicada na militância, atuante
PUC no São Gabriel e organizar a grade do curso. Tinham algumas pessoas que eu já conhecia do na pauta da juventude, dos direitos da criança e do adolescente. Por estar ativa nessas pautas,
movimento social que estudavam lá, e isso foi facilitado. Facilitando assim a minha presença lá, eu primeiro eu fui convidada para trabalhar na Coordenadoria da Juventude. Quando a Coordenadoria
consegui estudar e formar. Foram muitos anos de luta. Depois, resolvi entrar no mestrado. de Juventude em Belo Horizonte foi criada, foi a minha primeira experiência de gestão pública. Já
Quando eu me formei, havia acabado de fazer a minha iniciação no terreiro. Só que na tinha feito estágio na Coordenadoria de Igualdade Racial, mas era um estágio mais voltado para
colação de grau, eu não podia ficar com a cabeça destampada. Então, eu fui com meu chapeuzinho Programa SOS Racismo, que consistia em realizar o atendimento e o encaminhamento dos casos
branquinho e fiquei lá. Na época, não sabia fazer turbante direito. Foi uma experiência muito de racismo, que ocorriam na cidade e essa política foi muito importante.
interessante, porque minha família nunca tinha ido à formatura de alguém em uma faculdade, Por estar mais envolvida no âmbito da militância, durante muito tempo eu relutei em entrar
porque ninguém tinha formado ainda. Então, a gente não sabia como seria, o que é que levava, com para a gestão. Porque a gente sempre tinha uma percepção de que se entrou para a gestão é pelego
que roupa ia, essas coisas. Mas foi todo mundo, foi minha avó, minhas tias, meus primos. – a pessoa se vendeu. Mas eu já tinha feito tudo o que eu podia para combater o racismo e o
Todo mundo que pôde ir, foi. E quando separa as letras, para o pessoal receber o abraço das machismo na militância, e a coisa que eu nunca tinha tentado era continuar essa luta a partir da
famílias, eu corri lá para a minha letra; todo mundo recebendo flores, só que a minha família não gestão pública. Decidi que seria interessante tentar a luta a partir desse outro lugar.
sabia como funcionavam as coisas e nada de aparecer. De repente, eu escuto um zum, zum, zum,

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Percebi que é um lugar diferente da militância, que exige um conhecimento técnico, O assédio moral
conhecimento político, exige articulação e, também, uma sagacidade de integrar vários saberes e
Além dos desafios de gestão, a questão do assédio moral no trabalho permeou muito
limites. Essa decisão foi se consolidando ao pensar: “Com a bagagem que eu tenho do movimento
essa vivência. Inclusive, foi no momento em que eu tive muitas pessoas brancas sobre a minha
social pode ajudar a traduzir nossas demandas em políticas públicas? Eu posso mesmo colaborar
coordenação. Algumas, logo que eu cheguei, já foram embora. Por exemplo, o pessoal formado aí
nessa tradução?”. Sinto que foi muito positivo esse caminho.
na escola8 não quis ficar. E então, a gente ficou só com uma formada e as outras foram para outras
Depois da experiência na política municipal de juventude, fui convidada para trabalhar áreas. Elas disseram que não era por questão racial, que elas tinham outras questões. Mas, para
em Brasília, no plano Juventude Viva. Fui atuar na Secretaria Nacional de Juventude. Depois, fui mim, foi muito sintomática a saída dessas pessoas. Ao mesmo tempo, a equipe era composta por
para a Seppir, com ações afirmativas. Após engravidar, recebi um convite para trabalhar aqui na uma subsecretária e duas superintendentes que não aceitavam meu comando. E tinha o aval do
Subsecretaria de Política das Mulheres.Quando eu saí, fui para a Gabinetona7. Agora estou em casa, secretário, com questões partidárias.
com as crianças, para terminar minha tese de doutorado.
Com isso, muitas vezes, os combinados que a gente fazia com a equipe não eram respeitados.
Falando um pouco mais da minha experiência como subsecretária, focamos na questão do Teve uma reunião em que eu convoquei a equipe toda: “Gente, quem tiver algum compromisso
comitê de gênero e raça. Não conseguimos institucionalizar na época, precisava de um decreto do marcado, eu preciso de todo mundo aqui, porque é planejamento estratégico, é muito importante”.
governador, que a gente não conseguiu. Recebemos muito apoio da deputada Marília Campos, que E uma servidora simplesmente marcou uma outra coisa e foi. Eu questionei: “Cadê fulana? Fulana,
foi incisiva no cuidado com essa pauta e mandou recursos para alguns projetos e ações importantes, precisamos de você aqui”. Quando falei isso, ela me desrespeitou no WhatsApp da secretaria.
como a Casa Tina Martins e projetos de promoção da autonomia das mulheres. A gente teve Quando recorri ao secretário, ele tirou o corpo fora. E quando fui aplicar uma advertência, ela não
projeto de formação de pedreiras, bombeiras, eletricistas, bombeiras hidráulicas. E, também, teve quis assinar. Mudaram-na para outra área e ficou por isso mesmo.
o curso de formação – as mulheres nos presídios aprendiam a fazer marcenaria, aprendiam a fazer
Vivi vários atravessamentos desse tipo, mas eu também tive pessoas parceiras, que toparam
brinquedos, para poder ter uma renda quando saíssem. A ideia era gerar uma rede de distribuição
e se dispuseram a estar comigo e fazer um trabalho sério. A gente fez um planejamento estratégico,
desses brinquedos e oferecer, para elas, as ferramentas para quando elas saíssem da unidade.
desenhou cada passo, não conseguimos fazer tudo o que planejamos, mas ter esse mapa foi
Além disso, conseguimos fazer algumas fundamental para conseguir seguir. Fui fazendo o que era possível, porque sem vontade política, a
campanhas publicitárias, dizendo que o Estado política pública não avança. E a minha percepção é de que, como o projeto estava indo bem, ficando
tem um compromisso com a diversidade das tão bem organizado, eles ficaram com medo de a gente aparecer mais que a própria secretaria.
mulheres. Não só mulher branca e hétero, mas Porque a nossa subsecretaria tinha um planejamento estratégico, conseguia apresentar relatório
também as lésbicas, negras, jovens, meninas, a de gestão, relatório de atividades mensais, conseguia ter um diálogo com a sociedade – o que a
mulher do campo, da cidade, da terceira idade. própria secretaria não tinha.
O objetivo era pensar na complexidade dessas
Em vez de colar junto, eles começaram a abafar. Por exemplo, a gente não podia usar os
vivências e que pensar que o Estado precisa
mecanismos de comunicação da secretaria, sempre tinham impedimentos. Coisas simples ficamos
dar resposta para todas elas. Então foi uma
tentando formalizar durante a gestão inteira, como o Comitê de Promoção da Igualdade de
experiência muito difícil e desafiadora.
Gênero e Raça, que era um decreto do governador. Eu, como subsecretária, não podia ir e pedir
Larissa em frente ao Palácio da Liberdade, após evento do Governo do Estado de Minas Gerais, enquanto era Subsecretária de ao governador para assinar, mas o secretário poderia. E eu tenho certeza que esse documento
Políticas para as Mulheres.
Crédito: Acervo Pessoal
nunca saiu da secretaria. São coisas que a gente vai vivendo na gestão, atravessamentos que estão
presentes na gestão pública. Mas eu considero que foi uma experiência muito saudável e positiva.
7 Projeto de ocupação cidadã da política institucional, que reúne diferentes mandatos parlamentares em um man-
dato coletivo, com ações e estratégias compartilhadas; e inclui dezenas de ativistas, trabalhadoras e pesquisadoras
em diálogo e cooperação. 8 Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro.

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Capítulo 3 - Larissa Amorim Borges BORGES, Larissa A.; MARTINS, Jessyka; SILVA, Matheus A. F.

Os aprendizados 4. Estou chegando de bonde: construção da identidade


Nesse percurso da minha trajetória profissional, entrei muito jovem e agora eu não sou individual e coletiva
jovem mais. Eu entrei Larissa de dread e saí Larissa careca. Isso é uma coisa importante, abrindo
Quando penso na construção da minha
um parêntese: eu fiz o dread em 2005, assim que eu saí da casa da minha mãe, foi antes do 20
identidade, acho que a nossa sensibilidade é um
de novembro de 2005. E eu tive esse dread até agora, 15 de julho de 2020, quando eu cortei. Foi
ponto forte. Porque a gente acaba tendo muito
um símbolo muito importante para mim, da resistência, dessa identidade feminina, dessa luta
que desenvolver a capacidade para fazer leitura
feminista, dessa oportunidade que a gente tem de construir e fazer aquilo que sonha, que acredita.
dos ambientes, das situações. Desde pequena, em
Quando eu entrei para a gestão pública, estava cheia de sonhos, muita disposição e energia casa você é a princesinha da família, mas chega
de vida. Vontade de fazer dar certo e um desejo de estudar e de conhecer as coisas. Então, nesses na escola é aquela violência toda. Você precisa
espaços, eu sempre buscava alternativas e foi muito positivo. Mas eu cansei, a gente vê muitas entender o que está acontecendo e se posicionar a
coisas feias estando do lado da gestão. Acho que é um ponto importante da construção humana, partir do que você leu naquela situação. Então, tem
que as pessoas às vezes acessam uma migalha de poder e já demonstram monstros horrorosos. essas urgências da vida, da gente conseguir fazer a
A gente vai conhecendo as pessoas por um outro lado. Tanto as que tem poder, tanto as que não leitura das situações, da conjuntura, da realidade.
tem poder. Temos a oportunidade de ver um lado bonito, mas também o lado feio das pessoas, das E, com isso, você acaba também sendo obrigada a
relações. Eu fiquei muito impactada de ver a parte feia, mas eu não vi só parte feia. ser forte na maioria das vezes, mas não perdemos
nossa sensibilidade por isso. Somos bem sensíveis,
Eu estou no Psol9 desde 2019, mas eu comecei a frequentar o PT com 16 anos. Conheço e
temos nossas fragilidades e eu acho que a mulher
entendo que se a branquitude do partido não tivesse operado tanto, se as masculinidades tóxicas Larissa em um dos muitos momentos de diálogo
negra tem uma capacidade de se reinventar. A gente
do partido não tivessem operado tanto, a gente poderia ter avançado muito mais na construção de vivenciados em defesa das mulheres e da população
tanto reinventa a vida quanto se reinventa. Isso é negra.
muitas políticas públicas. Inclusive, as políticas da promoção de igualdade racial, a de igualdade
muito potente, é uma das nossas maiores forças. Crédito: Acervo Pessoal
das mulheres. Por mais que elas tenham avançado nesse período do que em qualquer outra gestão,
avançaram pouco diante do que poderiam ter sido se tivessem orçamento e prioridade política, Temos o nosso cabelo, que às vezes está em uma trança, às vezes em um dread, às vezes é um
por exemplo. blackpower, tem muitas possibilidades. A gente cria muitas alternativas mesmo onde a maioria das
pessoas não vê potência, não vê beleza. A gente é essa beleza, cria essa beleza, gera essa potência.
Eu sinto que precisamos recuperar o nosso fôlego para poder criar um outro ciclo virtuoso.
Acho que um dos nossos pontos fortes, também, é a nossa ancestralidade. Eu acho que a gente
Porque este em que estamos vivendo, agora, é tóxico, é extremamente deletério, mas também
é herdeira de muitas tecnologias, saberes, metodologias. Trazemos em nosso DNA a herança de
demonstra as fragilidades das construções que a gente tinha feito. Eram muito boas, demoramos
tantas mulheres que tiveram que se reinventar. Que reinventaram a vida e conseguiram superar
muitos anos para fazer, mas que não demoraram nem seis meses para desfazer, a maioria delas.
opressões. E antes disso, a gente é herdeira do legado que é anterior ao processo de colonização,
Como que a gente pode construir políticas públicas que vão ter uma continuidade, uma vida a gente é herdeira de rainhas, imperatrizes, mulheres que governaram muitos povos, muito antes
mais longa do que as que a gente construiu no período anterior? Por mais impactante que tenha das mulheres no Ocidente. Saímos para trabalhar fora, quando já governavam vários Impérios.
sido qualquer uma das políticas, não houve dificuldade para desfazer. Então, o meu momento é Então, tem uma outra relação com o mundo.
este de reflexão mesmo, de pensar em que rumos a gente vai dar para essa política, para essas
Outro dia, estava pensando nisso. Se não tivéssemos que enfrentar o racismo, como a
gestões. E para as nossas relações políticas e as nossas questões, porque não pode ser só isso.
nossa vida estaria melhor, porque iríamos gastar energia com outras coisas. Mas antes de fazer
qualquer outra coisa, nós precisamos enfrentar o racismo para sobreviver, enfrentar o machismo
9 Partido Socialismo e Liberdade.
para sobreviver. Além de todas as coisas, a gente precisa antes garantir que sobrevivamos, tanto

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Capítulo 3 - Larissa Amorim Borges BORGES, Larissa A.; MARTINS, Jessyka; SILVA, Matheus A. F.

materialmente quanto simbolicamente. Porque tem uma violência simbólica que tenta me destruir inimaginável. Agora, estou nessa vivência, namorando uma mulher e minha filha está cantando
o tempo inteiro, então você tem que lidar com isso tudo para, depois, fazer outras coisas. As essa possibilidade desde pequena.
pessoas brancas já partem para fazer outras coisas. Quando eles chegam na corrida, a gente já está
Na hora eu achei lindo, mas eu também pensei que, dependendo das pessoas que estivessem
cansado. Por isso que há tanta desigualdade. Se não tivéssemos que enfrentar tanta desigualdade,
ali naquele momento, ela poderia ser reprimida. Como uma coisa ingênua, que é um desejo
estaríamos em outro patamar.
simples, pode se tornar um alvo, um gatilho para uma série de opressões. Hoje, temos que proteger
O enfrentamento ao racismo e estimular as crianças, e a gente mesmo, a sonhar e a criar escudos, ao mesmo tempo, para que
não sejamos atacados pelos nossos sonhos, pelas possibilidades que criamos.
Eu acho que tem várias possibilidades para o enfrentamento ao racismo. Uma é matar todos
os brancos, mas fazendo isso a gente ainda teria que lidar com esse imaginário cultural que ainda Acho que é importante a gente celebrar nossa chegada, mas também referenciar quem veio
está em todas as pessoas. Ainda que a gente eliminasse todos os homens brancos, teríamos, por antes. Muitas vezes, chegamos nos lugares achando que somos as primeiras, mas se a gente for
muito tempo, as consequências e impactos dessa vivência. Então, essa é uma opção possível, mas ela procurar nas memórias que foram apagadas, alguma pessoa negra passou por ali antes. Quando
não é das mais legais, acho que nós não queremos fazer isso. Temos alternativas mais inteligentes eu entrei na Psicologia, eu conheci Neusa Souza Santos, Zé Tiago, Virgínia Bicudo10 e outras figuras
que as deles. É possível criar um mundo em que caiba todo mundo. Mas é preciso inventar coisas que já estavam, e aí, entre essas, conheci Lucinha do Amma Psique11. Ela é uma linda, uma pessoa
que a gente não inventou e pensar em coisas que a gente não pensou. muito maravilhosa que trabalha com o combate ao racismo institucional. Sobretudo no meu
período em Brasília, ela fez toda diferença. Eu pedia ajuda, contava o que tinha acontecido, que
Acho que as próximas gerações vão dar conta de pensar isso. As atuais estão fazendo tudo
não estava entendendo. Aí a gente tentava, juntas, fazer a leitura, quando acontecia algo que me
que podem para acabar com o racismo. No meu caso, por exemplo, ministrei oficinas, cantei rap,
incomodava e eu não estava sabendo o que era. Íamos juntas tentando identificar e nomear o que
dei palestras, fui para a gestão pública, tive filho, várias coisas – e, ainda assim, não foi suficiente.
estava acontecendo, as pessoas envolvidas, para trocar as estratégias. Então, Lucinha foi e é uma
Mas são contribuições! E eu acho que também precisa que outras pessoas comecem a contribuir
pessoa muito importante na minha trajetória. Até antes da gestão, já fazíamos coisas juntas.
com essa luta, sobretudo as pessoas brancas, porque elas não têm contribuído. Elas criaram toda
essa dinâmica de violência racial e de gênero, porque o capitalismo moderno se alimenta disso, A Sueli Virgínia também. Conheci Sueli quando fiz uma palestra e ela assistiu. Ela tem um
estrutura-se nisso e elas continuam se beneficiando disso. trabalho muito lindo sobre os sentimentos. Trabalha com os florais a partir da perspectiva junguiana.
Ela tem um trabalho autoral, estudos que foi desenvolvendo na relação dela com as comunidades
A gente precisa de contribuições cotidianas de todas as pessoas, porque tem a ver com as
quilombolas e outras populações negras. Ela é uma pessoa importante. Tem a questão do terreiro
macrorrelações, as grandes estruturas; mas também tem a ver com as microrrelações, com a nossa
também, sempre importante. Quando eu tenho uma decisão para tomar, pergunto para os meus
postura do dia a dia. É uma grande combinação de sujeitos, sonhos, elementos. Outra coisa, é que
ancestrais que caminho seguir. “É desse lado, desse jeito, é dessa forma?” Então, muitas vezes, eu
a gente precisa sonhar mais. Gastar mais tempo de nossas vidas imaginando esse mundo sem
sinto que isso não vem. E quando não vem, eu tenho uma dúvida, eu vou consultar, porque mesmo
racismo, sem machismo, sem opressão, para se sentir nesse lugar. Porque a gente precisa construir
que eu ache que o caminho seja esse, acho importante ter esse respaldo com quem veio antes.
esse repertório intelectual, cultural, afetivo, de um mundo sem violência, sem opressão. Precisamos
e podemos construir esse imaginário para que se torne real. Acho, primeiro, que surgem as coisas Tive muitas parcerias, pessoas que dificultaram meu caminho, mas outras que – Nossa
no nosso imaginário, sonhos e desejos. Depois, materializamos isso na vida, no mundo. Senhora! – foram um presente em minha trajetória, tanto em ensinamento quanto de parceria.

Não estamos tendo tempo nem de sonhar, de tanto que temos que enfrentar o racismo, o
machismo e a violência de gênero toda hora. E a violência lesbofóbica toda hora. Esses dias, a 10 Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) foi pioneira no debate de estudos raciais no campo clínico, e também uma
minha filha Elis, que está com dois anos, pediu para cantar parabéns para ela. Na hora do “com das pessoas mais importantes na disseminação da Psicanálise no Brasil. Sua dissertação, Atitudes Raciais de Pretos
e Mulatos em São Paulo, de 1942, foi o primeiro estudo sobre o tema defendido no país que debate a existência do
quem será”, ela disse que ia casar com a vizinha, uma amiguinha dela. Para mim, isso era uma coisa preconceito racial mesmo com a diminuição das diferenças sociais.
11 Instituto criado em 1995 por um grupo de psicólogas que busca o enfrentamento do racismo tanto pela via polí-
tica quanto pela prática clínica.

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Capítulo 3 - Larissa Amorim Borges BORGES, Larissa A.; MARTINS, Jessyka; SILVA, Matheus A. F.

Áurea Carolina12 é uma que sempre me abre portas. Às vezes, o pessoal convida e ela não pode, ou da mudança de gestão. Agora ela não está mais, mas ela ficou e também foi uma parceira muito
pode e acha legal, ela me chama para ir também, e se não pode me diz: “vai lá!”. A Vanessa Beco 13
incrível, de se dedicar a essa pauta, de colaborar para que a gente entendesse que ela era a pessoa
é uma pessoa que me orienta sempre. É uma inspiração. Foi a primeira que falou comigo sobre que estava lá há mais tempo no governo do estado; ela já era servidora e tinha entrado em várias
feminismo negro. Me apresentou Lélia Gonzalez14 e Luiza Bairros15. Uma vez, fui fazer uma oficina secretarias. Ela foi dando dicas, mostrando caminho. Também pedi ajuda a muita gente, na época
lá na Bahia, só para conhecer a Luiza Bairros. Aí, o pessoal me chamou para dar oficina e eu disse: da gestão do estado. Por exemplo, fui atrás da Ana Paula Salej e do Max Melquiades, da Fundação
“vou até de graça”. Era com a equipe dela e foi muito massa. Foi o primeiro contato que eu tive com João Pinheiro, pedindo ajuda.
Luiza Bairros. A gente se reencontrou e trabalhou juntas em Brasília, mas o primeiro encontro com
Após experienciar todo esse suporte, quando chego e tem pessoas negras no espaço, minha
ela foi assim: “vou lá porque preciso conhecer ela”, e foi sensacional.
postura é sempre de tentar acolher e ouvir a todas as pessoas. Fico feliz quando chego em algum
Fui conhecendo muita gente legal nesse percurso, gente que me apoia, em quem posso lugar pela primeira vez e quero que todo mundo possa chegar também. Quero chegar aos espaços
confiar. A Geíse Pinheiro Cunha é maravilhosa, agora está no interior da Bahia. A gente se conheceu e ter outras pessoas negras se sentindo confortáveis ali. Às vezes, as pessoas negras e se sentem
quando eu entrei no mestrado. Uma pessoa que tem uma capacidade de leitura, uma capacidade como intrusos. As pessoas brancas tentam nos tratar da pior forma possível, com desrespeito,
crítica, uma generosidade. E a gente foi fazendo parcerias. Lá em Brasília, também conheci a Petra, deslealdade, intriga, é uma coisa horrorosa.
uma pessoa que já trabalhava na gestão. Tinha acompanhado vários ministros e várias ministras
Precisamos ter esse cuidado com as pessoas, elas têm defeitos, qualidades, seus desejos,
e nos tornamos superamigas. Eu fui encontrando muitos amigos e muitos parceiros no caminho.
também têm suas frustrações. Cabe à gestão tentar harmonizar todos esses elementos. Porque
E isso fez toda diferença. Nos momentos mais difíceis, eu encontrei gente legal, nossa! Gente que
o coração da gestão pública precisa ser a garantia dos direitos das pessoas reais, que trabalham
pode estender a mão, sabe?
na gestão e que não trabalham na gestão. A pessoa vem para o trabalho e ela traz o conhecimento
É isso, a gente tem referência e também vai se tornando referência, é uma troca. Oferecemos técnico, político, mas ela também carrega o problema que está na casa dela, os preconceitos que
e a gente recebe. Às vezes, de onde você menos espera, vem. Na experiência aqui do estado, herdou, as convicções que construiu ao longo da vida. Muitas vezes, o desafio é tentar harmonizar,
especificamente, teve duas pessoas fundamentais. A Eliane Dias16, a gente se conhecia de vista do fazer com que quem você é colabore para uma construção que nós combinamos, pactuamos, que
movimento LGBTQIA+ e a gente foi se conectando, na época eu nem era sapatão. Foi uma parceria, vamos fazer juntos.
um reencontro de almas. E a Andrea de Socorro Luiz17, ela foi a pessoa que ficou na pasta, depois
Isso é um grande desafio, porque nem sempre as pessoas estão dispostas ou sabem trabalhar
a partir dos pactos. Tem gente que só sabe trabalhar com: “Fulano mandou e eu obedeço, mas eu
12 Áurea Carolina de Freitas e Silva é uma política brasileira, integrante do Psol, cientista social e mestra em Ciên- só obedeço a fulano”, que é branco, que é homem, que é rico, que é da elite. Pensam: “Gente pobre
cia Política. Foi vereadora de Belo Horizonte/MG em 2016, e é deputada federal desde 2018.
eu também não obedeço”. Precisamos refletir sobre como a gente constrói uma outra relação de
13 Vanessa Beco é servidora pública da área de educação, ativista do movimento negro, feminista e da cultura hip
hop em Belo Horizonte. Integrante do coletivo Negras Ativas e do Fórum das Juventudes da Grande BH. poder. E essa coisa de chegar nos espaços e desconstruir a ideia de ser o negro único. É falar:
14 Lélia Gonzalez (1935 – 1994) foi uma importante intelectual negra e ativista, nascida em Belo Horizonte. “estou chegando de bonde”. Por mais que outras pessoas fisicamente não estejam aqui comigo no
Graduada em História e Filosofia, mestra em Comunicação e doutora Antropologia Social, foi professora da PUC-RJ, momento, eu sei quantas trouxas de roupa minha avó lavava no rio Arrudas para eu conseguir fazer
pioneira nos estudos que articularam gênero, raça e classe. Escreveu os livros Festas populares no Brasil e Lugar de
minha faculdade. Quantos ônibus lotados minha mãe pegou para eu conseguir acabar de estudar.
negro (com Carlos Hasenbalg), entre outros inúmeros ensaios e artigos.
15 Luiza Helena de Bairros (1953-2016) foi ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Com isso, se fisicamente naquele momento eu sou a primeira ou estou sozinha,
Racial do Brasil entre 2011 e 2014. Graduada em Administração, mestra em Ciências Sociais pela Universidade Fede-
ral da Bahia (UFBA) e doutora em Sociologia pela Michigan State University, além de atuar na administração pública,
energeticamente, estruturalmente, eu estou acompanhada de uma multidão. A gente sabe o tanto
trabalhou junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), PUC-RJ e UFBA. Organizadora de de sangue que foi derramado para gente conseguir estar aqui respirando plenamente. Não é nunca
diversos livros e autora de artigos sobretudo sobre a condição das mulheres negras. uma construção individual, precisamos chegar nos espaços e permanecer neles com dignidade.
16 Biografada também nesta obra.
17 Atua no serviço público estadual e esteve à frente da Coordenadoria Estadual de Política para as Mulheres,
entre 2018 e 2019.

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BARBOSA, Nila Rodrigues; AMORIM, Marina Alves; SILVA, Mônica C. C.

Nila Rodrigues Barbosa Rose, minha amiga. “Você é preta! Não adianta você alisar esse cabelo, não. Você é igual a Rose”. Eu
Marina Alves Amorim assustei com aquilo e danei a chorar. Mas eu chorava muito: molhei o rosto todo, a camisa, caíram
Mônica de Cássia Costa Silva lágrimas na mesa. Então, foi nesse momento que a minha ficha caiu. Nunca mais, naquela escola,
eu fui uma menina branca.

O pessoal que estava assentado no meu grupo ficou com os olhos arregalados. Mas, em geral,
as pessoas riram, deram gargalhadas altas, diante do que o Marcílio fez comigo. Eu, chorando,
chorando, olhei para a professora, e ela não fez nada! Ficou parada, olhando também, sem lugar.
Eu pensei: “Gente, ninguém vai me salvar dessa situação?” Porque eu não sabia lidar com ela. Aí, a

NILA
minha amiga Rose levantou e disse: “Marcílio, põe uma coisa na sua cabeça: eu não sou a preta aí
que você falou, eu sou preta queimadinha pelos raios solares; e você não tem nada de cor!” Então,
ele parou e voltou para o lugar dele. Foi a Rose que me levou para o banheiro, que me ajudou a me
recompor e que me disse: “Não fica preocupada com isso não. Sempre acontece comigo. Acontece

RODRIGUES
todo dia”.

Quando cheguei à universidade, em 1984, eu me apaixonei por um poeta maravilhoso, um


estudante do Curso de Letras que fazia o Ciclo Básico comigo. E eu achei que, porque me apaixonei,
tinha que ignorar que, visivelmente, ele era gay. Eu me apaixonei por essa pessoa linda, que fazia

BARBOSA
poesias e músicas românticas, inclusive, para mim. A gente começou a conversar muito. Quando
ele falou que era poeta, eu falei: “Ah, quero ler tudo!” Ele ficou feliz. Acho que tudo que ele escrevia,
trazia para eu ler. Ele fez música e poesia para mim. A minha paixão só foi aumentando, obviamente.
Ele que me apresentou os restaurantes universitários. O lugar onde eu trabalhava nessa época, uma
loja de piscina na Avenida Professor Moraes, tinha outra saída ampla para o quarteirão fechado
1. Ser mulher negra da Rua Cláudio Manuel. O poeta era office boy. Ele sentava no chão, em frente a porta da Cláudio
Manuel, e ficava lá sentado me esperando para almoçar. Aquela beldade ficava lá sentada, olhando
Eu me identifico como mulher negra, e o que me fez ser uma foi o
para mim, esperando eu sair para almoçarmos. Por que que eu estou falando desse cara? Logo
racismo. Na escola, foi lá que me disseram que eu não era branca. Tenho
vocês vão entender.
essa cena muito nítida na minha mente, desde o dia em que ela aconteceu.
Eu entrei para a Escola Polivalente, com meu cabelinho alisado, o uniforme Cidinha da Silva, também estudante do curso de História da Fafich1, conseguiu uma bolsa
passadíssimo e tal. Eu estava no sexto ano. No Polivalente, as carteiras eram de pesquisa em um projeto do Nepem2, coordenado pela Silvana Coser. Cidinha me ligou, então,
colocadas em grupos. Era aula de português, a professora era uma mulher dizendo que queria falar comigo, se ela podia ir no lugar em que eu trabalhava. Eu já trabalhava
ultrafrágil – fisicamente, na postura, em se colocar como professora. Ela se na Prefeitura nessa época. Eu perguntei para o meu chefe; ele falou que podia. Conversando com
chamava Graça. Um playboy chamado Marcílio se levantou da carteira e foi Cidinha, ela me disse que a conversa era sobre mulheres negras na universidade. Aí, eu perguntei:
em direção ao meu grupo. Ele tocou em mim, no meu cabelo; levantou o meu “Ué, Cidinha, eu não sou negra. O que eu tenho a ver com isso?”. Ela respondeu: “Ok, Nila, você não
cabelo, como se eu não fosse nada. Aí, o Marcílio falou: “Quem você acha é negra, mas posso fazer uma entrevista com você? Eu tô precisando fazer as entrevistas”. Eu disse
que você é? Você nunca vai ser uma de nós!”. E ele foi apontando as pessoas
brancas. Ele continuou, em seguida: “Você é igual a ela!” E apontou para a 1 Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
2 Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Fafich/UFMG.

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Capítulo 4 - Nila Rodrigues Barbosa BARBOSA, Nila Rodrigues; AMORIM, Marina Alves; SILVA, Mônica C. C.

que tudo bem, então. Ela armou, é lógico, né? Cidinha me via como uma mulher negra, e eu não me Então, eu sou uma mulher negra. Mas quem é essa mulher negra? É aquela mulher não-
via. Ao fim e ao cabo, era isso. Ela fez as perguntas. Ela perguntou sobre a família, perguntou a cor. branca, criada pela família como sendo branca, mas que não é tratada como branca pelos brancos.
Eu respondi: “Meu pai é branco, minha mãe é branca, todo mundo é branco”. Daí, chegou no meu
avô. Não tinha como eu falar que ele era branco. Meu avô materno não era branco; ele era preto. 2. Os pais e a irmã
Cidinha: “Ah, tá. Então, tem umas pessoas pretas na família?”. Eu: “Tem, claro que tem!”.
Eu nasci no dia 12 de fevereiro de 1961. Estou com 59 anos hoje. Sou filha de um pedreiro
Mais adiante, Cidinha me perguntou: “Você já se apaixonou por alguém?”. Eu respondi: chamado Nicanor Rodrigues Barbosa, que morreu há uns quatro anos, e de Nilza Alves Barbosa.
“Claro, Cidinha! Lógico que sim! Lá na faculdade, você sabe, eu me apaixonei pelo poeta, desde Eu os considero negros, mas eles nunca se posicionaram assim. A minha mãe e o meu pai, na
que eu o conheci”. Cidinha: “Você acha que ele é uma pessoa branca?”. Eu: “É. Ele é uma pessoa verdade, não se julgavam negros. Pior, eles eram racistas. O cabelo, por exemplo, eu não conseguia
branca”. Porque ele é branco mesmo. Cidinha: “Por que você acha que você nunca namorou com convencer a minha mãe de que eu não queria alisar. Então, eu silenciava, o cabelo era esticado, eu
ele?”. Eu: “Acho que eu não namorei, primeiro, porque ele é um pouco indeciso”. Cidinha: “Mas você ficava com aqueles machucados na cabeça.
já saiu com o poeta para algum lugar?”. Eu: “Não”. Cidinha: “Tipo assim, barzinho, essas coisas,
Por isso que, quando fui percebida como negra na escola, eu não tinha os elementos para
você já saiu com ele?”. Eu: “Não”. A gente saía da faculdade, ia a pé para o Centro, e cada um tomava
assumir essa identidade. Foi o racismo que me fez ser uma mulher negra. A mãe que eu tive, essa
o seu ônibus. Dávamos umas voltas na Savassi, saindo da Fafich, comíamos um hambúrguer em
que vivia me separando dos negros, evitando mesmo que eu estabelecesse relações mais íntimas
trailers que ainda existiam na Savassi naquela época, e íamos embora. Cidinha: “Mas ele nunca
com pessoas negras, logicamente, ela ia alisar o meu cabelo, ela ia me fazer as roupas mais bonitas,
te chamou para sair? Ele não sai?”. Eu: “Ele já falou de festa de aniversário, de clube”. Cidinha:
e ela ia tentar comprar para mim sapatos caros, exatamente para eu me diferenciar dos negros, ao
“Então, por que você acha que ele nunca te convidou para sair? Você cogitaria pensar que, talvez,
me distanciar de algo que os identificava naquela época: a pobreza.
ele nunca tivesse te convidado para os passeios por que os lugares onde ele vai não é frequentado
por pessoas negras?”. Aí, veio a cena do Marcílio, lá na escola, dizendo que eu não era branca. É Meus pais moravam em Belo Horizonte, mas quase na divisa com Contagem, no Bairro das
lógico que ela viu a mudança no meu rosto. Eu: “Não, eu nunca pensei nisso. Mas ele é muito meu Indústrias, do lado da fábrica da Mannesmann. Era um bairro operário, que estava se iniciando, na
amigo!”. Cidinha: “Amigos saem, divertem-se”. Realmente, ele nunca havia saído comigo para lugar periferia da cidade. Era uma favelinha mesmo. A maioria das pessoas que morava lá, inicialmente,
nenhum, e ele falava das saídas com os amigos, das baladas. Eu disse: “Eu não consigo responder trabalhava na construção da Mannesmann. Eram pedreiros, carpinteiros etc. Depois, passou a
isso”. Cidinha falou assim: “Eu sei. E essa é a última pergunta”. Depois, ela falou: “Olha, você é uma ser o bairro das pessoas que trabalhavam na Mannesmann: mecânicos, eletricistas, o pessoal das
mulher negra. Você precisa conviver com isso. Não é ruim ser uma pessoa negra. Só é difícil”. Foi caçambas, quem trabalhava com os fornos. Meu pai conseguiu comprar um lote nesse bairro e fazer
Cidinha que falou de forma amável, amorosa, solidária e feminista que tudo que eu era, as coisas a casa. Quando eu nasci, já tinha o lote, a casa estava começada, era um barracão de três cômodos.
que eu fazia, o tanto que eu estudava, o tanto que eu trabalhei desde os 14 anos, essas coisas todas,
Eu sempre achei aquele lugar um bairro cinza. Nunca quis trabalhar ali, nem continuar
era porque eu sou negra. Porque as minhas condições não foram iguais, foram piores. Foi muito
morando ali. Eu sempre quis sair daquele lugar. E eu, finalmente, consegui, mas quando já tinha
difícil para ela também, como deve ter sido para Rose, a minha amiga da escola.
38 anos. Minha mãe desenhou uma trajetória de estudo para as filhas, mas não planejou a nossa
Depois, é lógico que a gente teve uma ou duas conversas sobre isso novamente. E eu fui saída do Bairro das Indústrias, embora nem eu, nem a minha irmã, tenhamos cumprido o destino
conversando com ela, fui me percebendo, sem crise, sem violência, que eu poderia me olhar no de continuar lá. Porque aquele é o lugar da minha mãe, tanto que até hoje ela mora lá. Ela não quer
espelho e me ver como uma pessoa bonita. Isso a Rose, minha amiga da escola, sempre teve. Ela sair dali, e ela nunca vai querer isso. Afinal, é a casa dela. Ela enfrentou fila para pegar empréstimo
nunca andou curvada, era altiva. Mesmo quando não tinha o que responder, a resposta dela calava para a construção. Meu pai construiu a casa, e ela ajudou na construção.
as pessoas brancas. Ela sabia o que era e vivia o que era, mas esse não era o meu caso – até então.
Meu pai trabalhava demais, muito mesmo. Eram 14, 15 horas de trabalho por dia, de segunda
A partir daí, comecei, realmente, a encarar essa questão de ser uma mulher negra, com os seus
a domingo. Minha mãe trabalhava demais também para o ajudar. Teve uma época na vida do meu
percalços.
pai em que ele precisou ser tudo que estava dentro da capacidade dele. Então, ele era pedreiro,

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Capítulo 4 - Nila Rodrigues Barbosa BARBOSA, Nila Rodrigues; AMORIM, Marina Alves; SILVA, Mônica C. C.

carpinteiro, cisterneiro, bombeiro hidráulico. Não gostava de fazer acabamento em obra, mas, ideia para ser levada ao Orçamento Participativo. Nesse processo de construção, nós fizemos
quando precisava de um dinheiro extra, ele pegava esse tipo de serviço. E minha mãe ajudava em oficinas. Um oficineiro que era expert em confecção de bonecos foi dar uma dessas oficinas, e eu o
tudo. Meu pai sempre foi doido para parar de trabalhar para os outros e passar a trabalhar por acompanhava. Eu ia duas vezes por semana acompanhar essa oficina, à noite. Eu saia da Lagoa do
conta própria. No início da década de 1980, ele conseguiu isso, virou construtor. Antes de eu e Nado e ia para o Bairro Urca, perto do Portão 2 do Zoológico. A oficina durou três meses e, quando
minha irmã começarmos a trabalhar, vivíamos do dinheiro que ele ganhava como pedreiro. acabou, fomos comemorar. Uma liderança do bairro, que fez a oficina conosco, convidou a mim
e ao oficineiro para tomar uma cerveja e comer alguma coisa. Fomos com essa liderança, a noiva
Na minha família, eu sou a primogênita e tenho uma irmã mais nova. Desnecessário dizer
dele, eu e o oficineiro. Lá pelas tantas, passa uma pessoa com uma mochila nas costas. Era um cara
que sou a filha revoltada, insubordinada e egoísta da família. Eu sempre fui muito difícil, mas é
preto lindo. Eu achei. Ele estava subindo a rua, cabisbaixo, quando a noiva da liderança olha e diz:
legal ser assim. Minha irmã é um ano mais nova do que eu. É advogada bem-sucedida, trabalha na
“É o Preto!”. A liderança levantou e gritou: “Preto, vem cá? Vem tomar uma cerveja com a gente?”.
Prefeitura de Belo Horizonte. Ela é uma pessoa muito boa. Todo mundo gosta dela. Sofreu muito
O cara era irmão dele. A conversa caminhou, e, pouco tempo depois, a gente começou a namorar.
preconceito, mas preconceito mesmo, porque nasceu com o lábio leporino. Viver nas décadas de
Namoro vai, namoro vem, eu fiquei grávida quatro meses depois.
1960 e 1970, como menina e moça de periferia, foi difícil. A gente cresceu muito unida. Eu diria
mais: nós somos cúmplices. Hoje, ela ainda me ajuda muito com os meus filhos. Aí, eu precisei levá-lo em casa. Não queria fazer isso, desejava que tudo ficasse entre nós, mas
eu fiquei grávida, e, uma vez assim, era a minha chance de sair de casa. Meus pais não poderiam
3. O ex-companheiro e os filhos ir contra os seus próprios princípios. Afinal, eles eram muito católicos. Mas eu não ia casar, né? Eu
nunca pensei em casar. Eu só pensei em estar com ele, não somente porque ele era muito bonito,
Quando consegui sair do Bairro das Indústrias, eu já tinha trinta e oito anos. Consegui me
porque ele era 12 anos mais jovem, e porque a gente tinha um relacionamento sexual muito
mudar porque fiquei grávida, depois de quatro meses de namoro. Eu consegui me desvencilhar
interessante. Eu sei que não foi nada de anormal, para a minha família, o fato de eu começar a
daquele laço de amor que me prendia, quando consegui vislumbrar outra coisa. Eu casei. Quer
falar em sair de casa e tal, já que eu estava esperando um filho. Esse foi um momento em que o pai
dizer, na verdade, eu costumo falar que eu não casei, sabe? Porque eu era amasiada. Uma união
dos meus filhos foi solidário comigo. Eu falei com ele: “Eu preciso sair de casa. Essa é uma ótima
sempre instável, mas, eventualmente, muito amorosa. Eu pude contar com a solidariedade do pai
chance! Eu não quero parar de trabalhar, e não quero que a minha mãe cuide dos meus filhos.
dos meus filhos, muitas vezes.
Qual é a minha ideia? Eu vou falar para os meus pais que nós vamos morar juntos, eu vou arrumar
Hoje, sou solteira. Mas o casamento durou até muito. Esse não era um casamento que ia durar. um lugar, a gente vai e pronto. Se você não quiser ficar, não faz mal, eu fico”. Porque era um laço
Dando um jeito de sair de casa e mudar a vida, eu aprontei esse casamento. Então, é compreensível de amor. Como que eu ia largar minha mãe, essa mulher que me preparou para ser uma mulher
que ele não durasse muito. Durou até demais, na verdade, porque, quando eu me separei, meu independente, mas para eu ficar junto dela, naquele lugar? Então, eu me desvencilhar desse laço de
menino já tinha 18 anos e minha menina, 14. Estava bom, né? Não foi uma relação que o pai dos amor foi a maior epopeia da minha vida. E eu devo isso a duas pessoas: ao meu filho e ao pai dele.
meus filhos optou por ter. Eu sou uma mulher mais velha do que ele, e era bem mais espertinha. Esse homem preto, que tinha, inclusive, o apelido de Preto – porque é o mais escuro da família.
Primeiro, ele não escolheu ter filho. Depois, ele não escolheu casar, amasiar, seja o que for; e ele
O único lugar que eu arrumei e que eu conseguia pagar o aluguel foi no Jaraguá. Era um
não escolheu sair de casa.
desses prédios esquisitos que tinha lá no bairro e já não tem mais. Então, era um prédio feio; o
O cara com quem eu me casei era office boy e eu trabalhava na Lagoa do Nado. Tinha uma prédio mais feio do Jaraguá era esse. Tinha um bar debaixo do apartamento, que funcionava até de
diretoria e duas chefias que atuavam, uma, para dentro da Lagoa do Nado e, outra, para fora. Isso madrugada. Ele pintou o chão do apartamento de amarelo ovo. Eu comprei as mobílias e pagava o
no momento em que aconteceu a descentralização da cultura em Belo Horizonte, para áreas fora aluguel. Ele foi ficando! O Sandro foi crescendo e o Preto foi sendo pai. Depois, eu quis mudar do
do Centro, reconhecidas pelo fazer cultural, no Governo do Patrus Ananias. Foi por meio da Lagoa Jaraguá, quis ter a minha casa. A minha irmã me emprestou o dinheiro. Aí, nós fomos procurar casa.
do Nado, por exemplo, que nasceu o Centro Cultural São Bernardo e o Centro Cultural da Pampulha. Ele achava um saco e que aquele lugar em que morávamos estava muito bom. Mas eu não gostava
Eu passei a trabalhar na Lagoa do Nado, para a descentralização, em um determinado momento. de lá. Eu sei que foi uma sorte achar algo pertinho de onde eu trabalhava, pertinho da Lagoa do
Então, eu atuei para a criação do Centro Cultural da Pampulha, quando ele começou a ser uma Nado. Então, nós viemos morar onde eu moro até hoje, mas a gente já não estava muito bem. Eu

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sempre agi muito igual à minha mãe, nesse amasiamento que eu tive. Eu mandava, decidia, não Americanas, eu fui terminar o 2º grau no Colégio Brasileiro, na Avenida Paraná. Também era uma
perguntava. Eu nunca discutia e ele foi a reboque. Isso não segura um relacionamento duradouro. escola particular, mas a gente não pagava a mensalidade integral por ter bolsa.

Agora, a maternidade sempre foi desejada por mim. Eu sempre achei as mães interessantes, Com a intenção de ingressar no ensino superior, eu fiz cursinho extensivo no Colégio Promove,
que a maternidade era um troço legal. Então, eu sempre tive na minha cabeça que eu ia ser mãe. na Rua São Paulo. Quando eu e minha irmã fomos para o cursinho, algumas pessoas falavam assim:
Nunca aconteceu, até esse momento. Também nunca havia acontecido uma intimidade sexual, “Olha, isso não é para gente igual nós, que nascemos nesse bairro. A gente tem que trabalhar.
antes de eu conhecer o pai dos meus filhos. Então, o relacionamento sexual aconteceu com esse Tal pessoa ganha muito bem, trabalha na padaria. Eu parei de estudar. Cê vai fazer vestibular?!”.
cara preto, e, quatro meses depois, eu fiquei grávida. Eu tenho dois filhos, o Sandro e a Luíza. A Quando falavam para a minha mãe, entrava por um ouvido e saía pelo outro. Eu acho que ela nem
Luíza, minha filha caçula, é a mulher que, desde que nasceu, sabe que pode mandar, se ela quiser. E escutava, na verdade. Já eu, pensava: “Por que não é para nós? De que nós vocês estão falando? Eu
o Sandro, meu menino, desde que nasceu, também, sabe que a liberdade é essencial. não sou igual a esse povo, e eu vou sair daqui”. Conseguimos uma bolsa de estudos. Minha mãe
ficou sabendo desse cursinho. Tinha uma prova e a gente fez. Conseguimos um desconto de 60%.
4. A trajetória escolar e acadêmica A gente tinha que trabalhar para pagar os 40%.

Minha mãe nunca me ensinou a lavar, passar, cozinhar, e também não me ensinou uma coisa Eu não sabia qual curso escolher e fui conversar com o Rubinho, que era, na época, o diretor
que ela fazia muito bem: costurar. Mas ela sempre falava: “Você tem que estudar!”. Ela fazia questão do Promove. Vendo meu incômodo diante da resistência das pessoas frente ao meu projeto de
e, por isso, fazia questão de assumir todo o resto sozinha. E era uma época em que estudar era ingressar na universidade, ele me falou do Curso de História e de Sociologia. Eu optei pela História.
difícil, principalmente, em um bairro operário. Então, a minha mãe é daquelas que saía de casa Quando eu falei com os meus pais que eu ia prestar vestibular para esse curso, eles fizeram uma
uma hora da madrugada para enfrentar fila até de manhã, com a intenção de conseguir uma vaga cara! Perguntaram: “Mas História? O que é um curso desse? Você vai contar histórias para os
em uma boa escola pública e fazer a matrícula. Ela sempre procurava a melhor escola. Depois, se outros?”. E concluíram: “Nila não tem jeito mesmo!”. Eu sou a filha revoltada, maldosa, que não
não conseguia, procurava a segunda melhor, e ia diminuindo o nível da escola. Minha mãe sempre tem respeito pelos pais e pelos mais velhos, né? Foi recentemente, quando eu lancei o livro sobre
enfrentou essas coisas para a gente estudar. os quilombolas, que a minha mãe disse: “Legal”. Mas o meu pai morreu pensando assim: “Ela
fez História, trabalha na área da cultura”. Quando perguntavam para ele, dizia: “Ela trabalha na
Já o meu pai, nunca se preocupou tanto com a nossa formação. Houve um momento em que
Secretaria da Cultura, ela fez História”. O importante sempre foi a filha advogada. A minha mãe tem
ele falou assim para a minha mãe: “Se essas meninas virarem alguma coisa, é mérito seu; mas, se
um certo orgulho. Ela tem os meus dois livros lá na casa dela: “Eu vou ler o seu livro! Ele é muito
essas meninas não forem nada, é mérito seu também”. Meu pai achava que eu podia casar ou ter
interessante!”. Ela diz que vai ler, mas já faz um bom tempo que eles estão lá.
começado a passar uma roupa para fora cedo. Quando a minha irmã passou no vestibular de Direito
na PUC3, é que a conversa do meu pai mudou. Ele passou a achar os estudos algo muito importante Eu prestei vestibular para História na UFMG5 e passei para a segunda entrada. Eu passei na
também. Afinal, pedreiro com filha advogada? Ele se achou o máximo! Continuou trabalhando e fez primeira prova que fiz, depois de ter feito um ano de cursinho. Olhei umas dez vezes aquela lista de
o que estava ao alcance dele para ela se formar. aprovados afixada lá na Reitoria, para ver se eu tinha passado, e eu tinha conseguido mesmo. E não
ia pagar nada. Então, ia dar para eu fazer o meu curso. Eu estava trabalhando, já na loja de piscinas.
Eu comecei a estudar na Escola Dom Bosco. Era um colégio de freiras. Fiquei lá pouco tempo,
Ia entrar de aviso prévio, estava prestes a ficar desempregada, mas eu não estava nem ligando, pois
não sei se nem um ano inteiro. Depois, estudei até concluir a chamada 4ª série na Escola Estadual
eu queria muito ir para a faculdade.
Diogo de Vasconcelos. Em seguida, fui para a Escola Polivalente, lá na região do Barreiro. Depois,
o então 2º grau, eu cursei em um colégio que se chamava AEC4, uma escola particular localizada É preciso dizer que o meu primeiro título é o bacharelado. Gente, foi uma confusão para eu
na Rua Curitiba. A gente pagava alguma coisa, mas tinha bolsa. Por fim, já trabalhando nas Lojas e a Marcelina, minha colega e amiga, fazermos esse bacharelado. Uma briga nojenta! Queríamos
fazer o bacharelado e fomos nos matricular. Aí, falaram: “Vocês não podem fazer”. Eu perguntei:

3 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.


4 Colégio da Associação dos Empregados do Comércio. 5 Universidade Federal de Minas Gerais.

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“Como assim, não podemos fazer?”. E responderam: “Vocês não podem fazer porque entraram na 5. A Formação Étnico-Racial
segunda entrada. Quem entra na segunda vai ser professor; quem entra na primeira entrada vai
ser pesquisador”. Eu perguntei novamente: “Onde está escrito que quem entra na segunda entrada Eu não aprendi nada sobre África na escola, nem no denominado 2º grau. Eu não lembro da
não pode fazer bacharelado?”. E responderam: “Não está escrito, mas é assim”. A Marcelina, então, África ser sequer mencionada, nem mesmo o Egito. Então, comecei a construir o meu conhecimento
falou: “Se não está escrito, não é assim! Você faz a nossa matrícula agora, senão vou chamar a sobre África apenas na universidade.
polícia!” Resultado: fizeram a matrícula, mas os professores questionavam: “Por que vocês estão
Primeiro, veio a Disciplina História Antiga, eu não me lembro se no primeiro ou no segundo
cursando essa disciplina? Vocês não são da turma da noite?” A gente respondia: “Sim, somos, mas
período. Eu fui aluna do professor Daniel Vale Ribeiro. Foi aí que eu ouvi falar do Egito pela
nós queremos ser pesquisadoras”. Teve quem disse assim para mim, por exemplo: “Ah, mas você
primeira vez. Acho que na Disciplina História Contemporânea 2, já no final do Curso de História,
não pode ser pesquisadora. Porque você não teve bolsa de iniciação científica, não foi monitora”.
com a Professora Vera7, eu retomei o estudo da África. Essa professora propôs, também, uma
É porque eu sou de uma época em que as universidades ainda eram habitadas pelas elites, e essas
disciplina optativa focada em África e Ásia. Nesse caso, a aula era no sábado e tinha pouquíssimos
pessoas é que pegavam monitoria, bolsa de pesquisa etc. O pessoal da noite não tinha vez, e eu
estudantes, de 8 a 12 pessoas. Como o conteúdo era muito grande, parte dele foi trabalhado em
estudava à noite. Tanto que, quando eu comecei a trabalhar na Prefeitura, eu pedi para ser à tarde,
uma pesquisa. Ela orientou que escolhêssemos entre África e Ásia. Eu, obviamente, escolhi a África
a fim de poder estudar de manhã e entrar no circuito. Mas, mesmo assim, eu tentei, tentei, e não
porque eu queria estudar a questão do tráfico de escravizados. Quando esse assunto aparecia no
consegui nada.
curso, era em História Econômica, e eu não gostava da perspectiva teórica utilizada. Era o final da
Depois de concluir a graduação, fiquei um período sem estudar, trabalhando na área de década de 1980, uma mudança teórico-metodológica muito grande estava em curso. Começava
patrimônio e história. Depois, fiz uma especialização em estudos africanos e afro-brasileiros, na a se falar, aqui, em História dos Vencidos, História das Mentalidades, e eu me interessava muito
PUC Minas, onde ganhei uma bolsa. Em seguida, eu tentei o mestrado na UFBA6, passei em segundo por essas novas perspectivas. Eu tinha cursado, também, a Disciplina História de Minas, com a
lugar e fiz. Agora, falta o doutorado! Professora Maria Auxiliadora de Faria. Então, avaliei que eu tinha que fazer aquela optativa, porque
estava faltando alguma peça no meu quebra-cabeça. A questão dos Congados e dos Reinados, que
O meu mestrado foi feito em uma contingência difícil. Eu estava casada, com os filhos
perpassam história de Minas Gerais e Belo Horizonte, fala de protagonismo de escravizados. Eu
pequenos, passei na UFBA e falei: “Ah, eu vou fazer!”. O pai dos meus meninos disse: “Não, tudo
precisava esmiuçar isso, eu havia visto somente por alto.
bem, pode ir.” Mas eu não tinha pedido para ir, né? Eu só comuniquei que ia, e que a minha mãe
ia ajudar. A partir de então, o nosso relacionamento não foi mais o mesmo. Eu lá em Salvador, Eu lembro que não tinha, na biblioteca da Fafich, nada muito interessante sobre a África,
sozinha, vindo para cá quando dava. Então, foi barra ficar lá sem os meninos, e foi barra para ele na época. A Professora Vera sugeriu que eu entrevistasse um africano que estava estudando no
ficar aqui com os meninos também. A minha mãe deu a maior força durante o mestrado. Ela saía Instituto Santo Inácio. Era na Pampulha, eu morava no Bairro das Indústrias e estudava no Santo
de casa, todos os dias, e vinha para a minha casa para ficar com os meninos. E só saia daqui quando Antônio, mas eu fui. Essa pessoa me apresentou vários livros. Mas eram livros em inglês, em francês;
o pai das crianças voltava do serviço. Ele trabalhava 8 horas por dia, de terça a domingo. Ele era nem em espanhol estava traduzido ainda. Como eu conseguia ler alguma coisa de francês, eu fiz o
porteiro do Zoológico, nessa época. No final de semana, a minha irmã e a minha comadre também trabalho aproveitando parte do que ele me apresentou. Foi nessa disciplina, fazendo o trabalho,
pegavam as crianças. Então, os filhos ficaram, assim, sendo jogados de um lado para o outro. Até que entendi a ligação da África com o Brasil, em geral, e, especificamente, com Minas Gerais. Foi
hoje, eles falam como se tivessem sido abandonos pela mãe. Parece que ficaram traumatizados, aí que eu percebi que havia um caminho possível de pesquisa que fugia da questão do tráfico de
embora eles, agora, estejam bem. mercadoria humana. Mas se eu conseguia compreender que, alguma coisa, esses africanos fizeram,
vindo para cá, eu ainda não conseguia sistematizar, nessa altura, o que esse pessoal fez, de fato.

Algumas pessoas e alguns autores foram muito importantes na minha formação étnico-
racial. Eu não trabalhei diretamente com a Lígia Estanislau, mas ela foi a primeira pessoa com

6 Universidade Federal da Bahia. 7 Nila não se recorda do sobrenome dessa professora.

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quem eu convivi que escrevia, para um público mais amplo, a partir do seu lugar de mulher
negra. Quando a Lígia encarou a cultura belo-horizontina em uma perspectiva negra, ela abriu
os meus olhos para as minhas próprias interrogações, durante toda a minha formação, durante
toda a minha vida. Foi com ela que eu entendi que eu poderia trabalhar com isso. Trata-se de uma
socióloga, professora da UFMG, que foi trabalhar na Prefeitura de Belo Horizonte. E ela expõe a
Belo Horizonte negra do patrimônio cultural para todo mundo. Belo Horizonte foi fundada por
pessoas negras. O Estado manda fazer, e as pessoas negras é que vêm construir. O planejamento
da cidade é, então, implodido. As pessoas negras que construíram Belo Horizonte foram morar na
periferia, mas vinham construir, vender as hortaliças, fazer trabalhos diversos, visitar. E elas não
vieram construir a cidade para os brancos e sumiram; elas deixaram marcas na cidade, e, assim,
elas ficaram por aqui. Eu lia os relatórios que a Lígia escrevia.

Lembro de discursos e de conversas de Marcos Cardoso, dentro da própria Secretaria


Municipal de Cultura, quando ele foi trabalhar lá, na década de 1990. Jorge dos Anjos é um artista
que eu vi pela primeira vez pelos olhos de Marcos Cardoso. O Congado, eu acho que é muito
importante citar. Eu sinto por Dona Isabel Casemira um carinho muito grande. Ela falou coisas
muito interessantes, quando a gente organizou o Tricentenário de Zumbi. Ressaltou a importância
de Nossa Senhora do Rosário, e eu percebi o quanto a Santa era deles, do Reinado, do Congado.
Lançamento dos livros de Lori Figueiró em Belo Horizonte, no auditório da Escola de Design da UEMG.
“Essa é nossa, dos pretos!” Como uma virgem branca pode ser falada assim?
Crédito: Lori Figueiró
Outra pessoa que foi muito importante: Erisvaldo Santos. No curso de especialização que fiz
na PUC, eu comecei a ler, sistematicamente, autores negros, e também encontrei autores negros.
Eu fui criada como uma menina branca. Minhas bonecas eram loiras. Na época, não tinha
Erisvaldo foi meu professor. Ele é babalorixá. Foi ele que me disse que a presença dos negros
boneca preta, e, se tivesse, meus pais não teriam comprado. Quando eu me deparo com o racismo é
na História do Brasil deve ser vista na perspectiva da reinvenção. Como assim, reinvenção?! Os
que eu comecei a desconfiar de tudo isso. Quando parei de alisar o cabelo, é que já tinha autoestima
negros vieram sem nada para cá. Chegaram aqui e tiveram que se reinventar. E eles continuam se
suficiente para enfrentar o racismo. O que eu entendi do que o Erisvaldo defende é que, se você não
reinventando, a cada vez que nasce um. Aí, eu comecei a ler Erisvaldo Santos.
se reinventar como pessoa negra, você não vai sair do lugar de subalternidade, você vai ser sempre
Eu conheci Joseph Ki-Zerbo8 naquela pesquisa que eu fiz na faculdade, por meio do africano um coitadinho para você mesmo. Racismo, então, não é para a gente ficar no lugar, racismo é para
que estava no ISI9 e eu entrevistei, nos anos 1980. Mas, depois de concluído o trabalho, eu deixei ser enfrentado. “E você (no caso, eu) vai enfrentar o racismo como?” Erisvaldo me fez compreender
esse autor de lado. Nesse curso, retomei-o e conheci outros autores muito interessantes. Há um isso a partir de mim, da minha vivência, da minha reinvenção e da minha produção. Eu não sou
texto do Ki-Zerbo que trabalha qual a História da África deve ser contada, e por quem essa história uma daquelas pessoas que viviam na África. Eu sou desse lugar de violência, de desmerecimento
deve ser contada. Quando você vai fazer a história negra de Belo Horizonte ou dar uma perspectiva da humanidade das pessoas negras, que é o racismo.
negra para a história de Belo Horizonte, que é o que eu faço, por mais que você trabalhe com autores
ocidentais e brancos, você parte da sua perspectiva, ou seja, da sua reinvenção como pessoa negra.

8 Ki-Zerbo (1922-2006) foi um historiador e político de Burkina-Faso. Publicou A História da África Negra e
editou o Volume I da História Geral da África, publicada pela Unesco.
9 Instituto Santo Inácio.

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Outra coisa que eu descobri naquele curso: Conceição Evaristo10. Becos da Memória é a uns dois anos, mais ou menos. Mesmo depois que eu concluí o estágio, continuei trabalhando
história de Belo Horizonte, na década de 1960, 1970. Ela fala das mulheres brancas que não lavam recebendo pela Prefeitura.
as suas toalhinhas sujas de menstruação. Não é à toa que a minha mãe nunca me ensinou a lavar
Na Fundação Tancredo Neves, na prática, eu era auxiliar de pesquisa. Eu trabalhei com o
roupa, embora fosse racista. Quando eu leio esse livro, eu penso assim: “Nossa, ainda bem que
acervo de jornal, o acervo de fax e telex, organizei muita coisa. Foi criado, nessa época, o Memorial
a minha mãe não me ensinou a lavar e a passar roupa!”. São as minúcias do racismo, algo que é
Tancredo Neves, em São João del Rey. Eu também trabalhei na separação de acervo para a
entranhado nas nossas vidas, nas nossas veias.
inauguração desse memorial. Com o fim do convênio entre a Fundação e a Prefeitura, eu retornei
E eu descobri a Conceição Evaristo no momento em que eu trabalhava no Museu Abílio para a Prefeitura.
Barreto, discutindo patrimônio cultural com o José Neves Bittencourt. Ou seja, no momento em
Como havia trabalhado com o orçamento municipal, eu procurei pela pessoa que trabalhava
que eu estou discutindo a verdade em patrimônio cultural, que é o que o José Neves representa. Ele
com o orçamento da Secretaria de Cultura, em uma tentativa de conseguir trabalhar nessa
se propôs ao diálogo. Será que eu sou a única pessoa que enxergou que o Abílio Barreto era racista?
secretaria. Foi assim que eu descobri que estavam criando o Arquivo da Cidade de Belo Horizonte,
Ninguém cita isso, pelo menos.
e procurando pessoal para trabalhar lá. Eu cheguei até a Norma de Góes Monteiro, que estava à
6. A trajetória profissional na Prefeitura de Belo Horizonte frente da iniciativa. Era o início do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH): o arquivo
ocupava uma sala, mal tinha mesa de trabalho para todo mundo; eram só dois computadores, um
Eu trabalhei 30 anos na Prefeitura de Belo Horizonte. Quando entrei na PBH, eu já estava na para a diretora e outro para o restante das pessoas. Quando a Norma pegou o meu currículo e viu
universidade – e eu sabia muito bem que eu iria ser uma historiadora. a minha formação, observou a minha formação e que eu trabalhava na Fundação Tancredo Neves.
Ela falou assim: “É uma pena que você chegou aqui só agora. Senão, eu tinha lhe dado a Chefia de
Comecei trabalhando na Secretaria de Planejamento, em 1987, dando graças a Deus de não ter
Serviço de Pesquisa e Informação. Porque a pessoa que ocupou a vaga não tem a formação que
ido parar na Secretaria de Administração, na Secretaria de Fazenda. A Secretaria de Planejamento
você tem. Então, você vai assumir a Chefia da Seção de Pesquisa”. Eu voltei para a Prefeitura como
era minúscula, na época, com muitos cargos de chefia. Eu trabalhava com o orçamento municipal,
Chefe de Seção. Acima de mim, tinha a Chefe de Serviço, depois, a Diretora do Arquivo.
que estava sob a responsabilidade de um departamento ainda mais minúsculo. Eu era a única
pessoa que não tinha um cargo de chefia naquele departamento. Antes do estágio probatório Em 1997, Belo Horizonte não tinha história sistematizada, a não ser aquela escrita pelo Abílio
acabar, eu já tinha deixado a Secretaria de Planejamento. Não fiquei lá nem dois anos. Barreto. Era o centenário da cidade. Na UFMG, estavam desenvolvendo vários estudos sobre Belo
Horizonte. No arquivo, a gente foi tentando buscar a documentação para reconstruir a história da
Eu me mobilizei e consegui ser colocada pela Prefeitura à disposição da Fundação Tancredo
cidade.
Neves, na qual já era estagiária. O meu cargo na administração municipal era de 6 horas. Então, eu
trabalhava meio período. No contraturno, fazia estágio na Fundação Tancredo Neves. Na verdade, Ao mesmo tempo, era o Governo Patrus Ananias. Em termos de preservação de patrimônio
eu havia sido selecionada para uma vaga de estágio na Fundação João Pinheiro, mas a FJP me cultural, até então, mesmo que se preservasse alguma coisa, o que não era ocupado por empresários,
emprestou para a Fundação Tancredo Neves11, no âmbito de um convênio do Governo do Estado. era ocupado por pessoas orientadas para não dar prejuízo ao empresariado. Isso mudou. Trata-se
Como a Fundação Tancredo Neves também tinha um convênio com a Prefeitura para a cessão de do tempo em que o Patrimônio Cultural era dirigido por Lígia Estanislau, em que a Secretaria de
pessoal, conseguindo a autorização da Prefeitura, eu poderia trabalhar lá o dia inteiro, meio período Cultura estava sob a gestão de Antonieta Cunha. Marcos Cardoso, uma pessoa que é uma referência
como estagiária e meio período como servidora cedida. Isso terminou acontecendo. Trabalhei lá do movimento negro em Belo Horizonte, trabalhava na Secretaria de Cultura, nessa época, com a
Ação Cultural. Foi a Ação Cultural da Secretaria de Cultura, junto com o Centro Cultural Lagoa do
Nado, que promoveu a descentralização cultural. Aí, emerge uma perspectiva da cidade que incluía
10 Importante escritora negra nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1946; doutora em Literatura Compa- os negros.
rada.
11 Entidade privada e sem fins lucrativos, criada em 1987 com o objetivo de preservar a memória e o legado políti-
co de Tancredo Neves .

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No recém-criado arquivo da cidade, inicialmente, a ideia era fazer um arquivo administrativo O que é a Lagoa do Nado? Ela surgiu de um movimento de jovens de classe média que
em uma concepção mais ampliada, que abarcasse toda a história da cidade, mas sob o ponto de queriam preservar uma antiga fazenda, que foi de um dos prefeitos de Belo Horizonte, o Américo
vista da administração oficial. Para isso, era preciso construir uma linha do tempo para a percepção Renné Gianetti. Esses jovens tinham uma força de movimento muito grande. Tanto tinham que eles
do processo histórico-administrativo da cidade. Fui incumbida de pensar em um projeto para o fizeram o parque acontecer; um espaço municipal na Região Norte de Belo Horizonte, com 300
arquivo que tentasse construir essa linha do tempo para Belo Horizonte. mil metros quadrados. Quando a Lagoa do Nado se transforma em um parque municipal, ela tem
que se abrir para a comunidade. Administrativamente, junto ao parque, é criado o Centro Cultural
Quando a Norma montou a primeira equipe do APCBH12, ela trouxe gente do Arquivo Nacional
Inter-regional Lagoa do Nado. Eu cheguei quando ocorreu essa abertura. Os dois equipamentos
para dar aulas para a gente. Teoricamente, esse lugar foi importante para mim. Trabalhávamos
estão localizados na Zona Norte, mas têm intercâmbios com outras regiões da cidade. Com Alto
com a teoria mais atualizada de arquivo. Do ponto de vista da formação, foi muito interessante.
Vera Cruz e com o Barreiro, por exemplo. Com o São Bernardo, que foi um posto de policiamento
Inclusive, eu fiz um curso de especialização em organização de arquivo. Esse curso aconteceu na
ostensivo. Ali, pessoas eram torturadas; ali, faziam as pessoas confessarem. Quando o São Bernardo
Universidade Federal de Juiz de Fora. Era todo final de semana, de sexta a sábado. Foi um curso
deixou de ser isso, foram cantores e contadores de história que ocuparam o espaço. Na esmagadora
pago pela Prefeitura.
maioria, negros.
Eu saí do arquivo, porque eu não me dei bem com uma pessoa que a Norma levou para
Houve uma Reforma Administrativa na Prefeitura no ano de 2000. Isso acabou com vários
trabalhar lá. Quando isso aconteceu, Ligia Estanislau já estava doente, e fora do Patrimônio
cargos; um deles era o meu. Foi quando eu saí da Lagoa do Nado e fiquei muito mal. Na verdade,
Municipal. Esse lugar estava sendo ocupado por Leonardo Castriota, que estava trabalhando nos
houve uma mudança de Governo. Ela significou, por um lado, uma mudança ideológica e, por
dossiês de algumas regiões da cidade, e a gente estava atuando nessa frente. O Dossiê Lagoinha,
outro, uma mudança estrutural. Nesse processo, na minha avaliação, não foi só o pessoal que foi
por exemplo, é dessa época. E o que são aquelas pessoas da Lagoinha? O que são aqueles blocos
negociado, foi também a política. A política de descentralização cultural da Prefeitura, por exemplo,
carnavalescos? O que é a cultura daquele lugar? O momento em que o Dossiê Lagoinha está em
foi drasticamente negociada. A Lagoa do Nado continuou trabalhando, a duras penas, e esse
desenvolvimento é o mesmo em que eu estou de saída do Arquivo.
Departamento de Ação Cultural da Secretaria de Cultura, que atuava junto com a Lagoa do Nado,
Quando eu decidi sair, um geógrafo que trabalhava comigo me falou de uma vaga no Parque perdeu status e sobreviveu por puro suor de quem trabalhava no lugar. Bancar a descentralização
Lagoa do Nado. Ele me colocou em contato com a diretora na época, Abilde Carneiro. E eu terminei cultural, depois de 2000, foi barra pesada. Eu saí da Lagoa do Nado, então, em um momento bem
indo trabalhar lá, ocupando um cargo do mesmo nível do que o que eu ocupava no Arquivo: triste, bem deprê mesmo.
Chefe de Seção de Formação Cultural. Eu cuidava da atividade cultural da Lagoa do Nado – shows,
Eu fui para a Regional Pampulha, sem cargo comissionado, como assistente administrativo,
oficinas, exposições. Era responsável por tudo isso. As festas da Lagoa do Nado duravam três
que era o cargo que, na origem, eu ocupava na Prefeitura. Trabalhava no recém-criado Departamento
dias, e eram deliciosas. Tinha uma Associação que representava o movimento de preservação do
de Cultura da Regional, que surgiu com essa reforma administrativa que eu mencionei. Esse
lugar, o pessoal que ficava fiscalizando a atuação da Prefeitura. Eu que cuidava, também, dessa
departamento durou pouco tempo.
relação com a comunidade. Depois, quando a pessoa que era Chefe de Serviço saiu, ou seja, quando
a pessoa que era minha chefe direta saiu, eu me tornei Chefe de Serviço. Aí, passei a trabalhar Nessa altura, uma pessoa com quem eu tinha trabalhado na Fundação Tancredo Neves e no
para a descentralização cultural da cidade, na criação do Centro Cultural da Pampulha. O Centro Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte era professora da Rede Municipal de Belo Horizonte,
Cultural São Bernardo já tinha sido criado nessa época. Venhamos e convenhamos, uma coisa é e estava cedida para o Museu Histórico Abílio Barreto. Ela me indicou para a Thaís Pimentel, que
conversar com o povo e ver quais são as demandas das pessoas para a gestão municipal. Outra, é dirigia o museu. Eu fui trabalhar no Abílio Barreto, e fiquei lá um tempão. Foi no museu que eu
você construir teoricamente esse caminho, porque você tem que subsidiar a política pública. conheci a Marina Amorim, o José Neves Bittencourt, o Thiago Costa, um monte de gente. Havia um
movimento de formação, muito parecido com aquele que eu conheci no Arquivo da Cidade.

José Neves propiciava muita leitura e discussão. Para eu ser a historiadora que eu sou, foi
fundamental. Quem é o José? Ele é um cara de museu, do Museu Histórico Nacional, que estava
12 Arquivo público da cidade de Belo Horizonte.

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Capítulo 4 - Nila Rodrigues Barbosa BARBOSA, Nila Rodrigues; AMORIM, Marina Alves; SILVA, Mônica C. C.

trabalhando no Museu Abílio Barreto cedido. Ele escrevia e publicava. Trata-se de uma referência na Bahia. Eu tinha férias prêmio e férias anuais acumuladas, além de crédito no banco de horas.
no campo. Eu devo a ele uma formação na área de museologia, e um aprimoramento da minha Eu juntei tudo isso e fui para Salvador fazer o meu mestrado. Mas eu atravessava uma situação
formação na área de história e patrimônio. Foi a partir desse encontro que eu passei a publicar muito difícil, naquele momento, profissionalmente. Inclusive, eu perdi uma amizade de 25 anos,
textos teóricos. Eu entendo que esse meu aprendizado, da época que eu trabalhava no Abílio, foi a por conta do que aconteceu. Foi trágica a coisa. Quando eu passei no mestrado, foi a minha sorte.
coroação da minha formação em política pública, ocorrida dentro da Prefeitura também. Então, de Senão, acho que eu tinha era saído da Prefeitura. Voltando da Bahia, esse Diretor do Museu Abílio
fato, o encontro com o José Neves foi muito importante para mim. Ele me fez ler e discutir muito. Barreto, com quem eu havia me indisposto, havia se tornado Presidente da Fundação Municipal
A cada briga nossa, e a gente brigava bastante, eu saía com pelo menos dois livros. Ele deu livros de Cultura. Então, eu voltei para o Museu, mas não foi possível ficar lá. Aliás, não foi possível ficar
da biblioteca dele para mim. Foi esse processo que me fez uma pessoa com uma boa capacidade em nenhum lugar da Fundação. Eu fui parar no Departamento de Recursos Humanos da Regional
teórica. E eu comecei a escrever e não parei, desde então. Escrevíamos demais dentro do museu e Pampulha. Foi horrível a minha saída da Cultura, eu chorei bastante.
para certas revistas, como os Anais do Museu Histórico Nacional.
Quando eu trabalhava na Regional Pampulha, foi criada a Coordenadoria de Igualdade Racial,
Eu chamei a atenção do José Neves, porque discordei dele. Ele foi colocado ali para trazer o na Secretaria de Políticas Sociais. E essa coordenadoria criou o Grupo Gestor de Igualdade Racial,
melhor de uma teoria sobre o museu para o Abílio Barreto. Mas, uma vez, ele falou: “Essas coisas nas Regionais. Cada Regional tinha um responsável. Na Regional Pampulha, cada departamento
que você fala não têm sentido. Belo Horizonte é uma cidade republicana, e essa questão dos negros deveria ter uma pessoa nesse grupo, coordenado pela Rosane Pires. Eu fui indicada para ser a
não existe aqui”. Eu disse: “Claro que tem essa questão de negros em Belo Horizonte! Saia do representante do Departamento de Recursos Humanos. Esse tal Grupo Gestor de Igualdade Racial
Museu e vá a pé até o Centro. O que você verá são mulheres negras saindo das casas dos patrões da Regional Pampulha, do qual eu participei, foi muito bom. A gente conseguiu fazer discussões
para ir para própria casa. Eu vejo todas elas, algumas conversam comigo como se eu fosse também e coisas interessantes. Era muito ruim trabalhar com recursos humanos, eu não gostava de fazer
alguém que tivesse trabalhando em uma dessas casas, em um desses apartamentos. É claro que isso – eu cuidava do vale-transporte dos servidores etc.. Mas eram muito boas as reuniões e as
tem a questão negra na cidade! É lógico que tem essa questão negra!”. Isso foi pouco tempo antes atividades do Grupo Gestor.
de ele conseguir bancar que eu montasse a exposição Uma Questão de Raça: o negro no Museu da
A Diretora de Recursos Humanos na Regional Pampulha me falou de uma seleção da Fundação
Cidade”. Então, eu chamei a atenção do José porque eu discordava dele. E eu o convenci que aquilo
Municipal de Cultura para o Centro Cultural Venda Nova: “Acontecem umas reuniões de gestão na
que eu estava pensando estava certo, ou pelo menos merecia ser verificado teoricamente.
Prefeitura, e tem uma pessoa da Fundação de Cultura que eu gosto muito. Essa pessoa lhe conhece,
A minha exposição deu muito o que falar, inclusive, dentro do próprio museu. Houve muito e ela disse que está tendo seleção para gestão de centro culturais e que seria interessante que você
problema, para ser mais exata. Hoje em dia é que algumas pessoas começam a assimilar o que se candidatasse. Parece que, agora, estão buscando alguém para o Centro Cultural Venda Nova.
eu trouxe. Isso foi na época em que a Thaís Pimentel ainda era a diretora. Mas eu era aquilo que Estão recebendo os currículos”. Nessa altura, a Fundação já estava sob nova gestão, aquele cara
destoava, entendeu? Porque tinha consciência de que eu era uma mulher negra. E tinha consciência com quem eu havia me desentendido já tinha saído de lá. E estavam buscando alguém justamente
de que eu era uma mulher negra historiadora. O museu não trazia essa questão da representação para atuar em Venda Nova. A história de Venda Nova é caríssima para mim!
dos negros na cidade. Aquela exposição que eu fiz expôs isso. E é uma mulher negra que fez aquela
A Sílvia Esteves, companheira de Lena13, era diretora dos centros culturais. E Edilaine Carneiro,
exposição.
que eu conheci como pesquisadora no acervo do Arquivo Público Mineiro, também tinha um cargo
Eu saí do Abílio Barreto porque eu passei no mestrado. Bem, na verdade, na época, eu estava no Planejamento na Fundação Municipal de Cultura. Eu me candidatei para a vaga de gestora do
coordenando o grupo responsável por conceber uma nova exposição permanente para o casarão Centro Cultural Venda Nova, e foram elas que me entrevistaram. Fizeram uma entrevista, até dura,
museu. A ideia era trabalhar o advento da nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, trazendo sobre a minha carreira na Prefeitura, a questão da história e do planejamento. Uma semana depois,
as narrativas do lugar à época da construção e da fundação da cidade, mas também as contradições disseram que eu havia sido selecionada, que só dependia da liberação da minha chefe para eu
dessas narrativas. Eu tive problemas com o então diretor da instituição, conflitos graves dos quais
eu não gosto nem de lembrar. Dessa maneira, eu saí de lá porque tinha sido aprovada no mestrado,
13 Regina Helena Alves da Silva, professora aposentada do Departamento de História da Fafich/ UFMG.

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Capítulo 4 - Nila Rodrigues Barbosa BARBOSA, Nila Rodrigues; AMORIM, Marina Alves; SILVA, Mônica C. C.

assumir o posto. Ela me liberou e fui trabalhar como gestora em Venda Nova, em janeiro de 2012. estabelecer cortes no orçamento, cortavam sempre na pasta dela. Ela precisou bancar a política
E foi massa, superinteressante! com a Secretaria de Educação, com os outros. Ela bancou essa política, muitas vezes, sem
orçamento, estando presente em eventos, em palestras, em discussões. Além disso, ela foi colocada
Claro, tive muitos problemas. Com a equipe, para começar. Havia uma pessoa que achava
no posto pelo Márcio Lacerda, depois de ter passado pela Secretaria de Governo do seu Governo.
que tinha que ser a coordenadora, porque era concursada da Fundação, arte-educadora e jogava
Então, de um lado, ela teve que enfrentar o Movimento Fora Lacerda e, de outro, que lidar com o
capoeira. Com ela, enfrentei problemas muito sérios. Teve também um furto. Levaram um monte
afastamento do próprio movimento negro. Porque o movimento não participou dessa gestão e
de equipamento do Projeto Arena da Cultura. Tive que fazer boletim de ocorrência policial,
poucos dialogavam com ela. Quem estava lá, na gestão da coordenadoria, até tinha o respeito do
depoimentos na Corregedoria da Prefeitura, essas coisas todas. Mas, mesmo assim, foi muito
movimento, mas não tinha o seu apoio. Tanto que o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade
interessante. Quando aquele ex-diretor do Museu Abílio Barreto passou a ocupar a Fundação
Racial, nesse período, foi seu aguerrido combatente.
Municipal de Cultura novamente, eu perdi o meu cargo e saí do Centro Cultural Venda Nova.
Depois, apesar da mudança de Governo, eu continuei na Coordenadoria de Promoção da
De volta à Prefeitura como Assistente Administrativo na Área de Recursos Humanos, agora na
Igualdade Racial sem cargo, até me tornar servidora do conselho. No Conselho Municipal de
área central da administração municipal, eu fazia o atendimento geral dos servidores, a abertura
Promoção da Igualdade Racial, eu fiquei até me aposentar. Nessa época, ele estava mal. Eu o
de processos. Todos os servidores da Prefeitura passavam por ali, em algum momento. Eu atendia,
mantive na marra, para ser sincera. Teve uma eleição e eu que recebi e mantive contato direto
durante as minhas seis horas de trabalho. Fui para esse lugar achando que era o pior do mundo. E
com os novos conselheiros para que eles bancassem a política, quando não tinha política em nível
não era, porque dava para fazer muita coisa para o povo, povinho mesmo. A maioria, era gente preta
da coordenadoria, porque demorou para que a nova gestora fosse indicada. Então, atividades,
que trabalhava como auxiliar de serviço, assistente administrativo, ou seja, nos piores cargos da
seminários, tudo que esse conselho promoveu, eu banquei com apoio dos novos conselheiros,
Prefeitura, e precisava melhorar o salário em alguma coisa, mas não tinha o mínimo de informação
porque a política tinha que continuar acontecendo.
sobre os seus direitos como servidor. Foi muito interessante no final das contas.

Depois, eu fui para Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial, como Assistente 7. Uma leitura da história da administração municipal em
Administrativo. Uma pessoa da Gerência de Relações Étnico-raciais da Secretaria de Educação Belo Horizonte
ouviu falar de mim, quando eu ainda trabalhava no Museu Abílio Barreto. Ela sabia da minha
Especialização em Estudos Africanos e Afrobrasileiros porque ela conhecia Erisvaldo, e eu fui Quando o PT14 assume a Presidência da República, o partido contava com o apoio dos negros,
orientanda de monografia de Erisvaldo. Foi ele que falou com ela que eu trabalhava na Prefeitura. no País como um todo. Há, então, um compromisso do Lula, desde a campanha eleitoral, e ele não
Aí, essa pessoa me indicou para a coordenadoria, considerando que, ela estando na educação, eu pode deixar de cumprir esse compromisso. Quando ele cria a Secretaria Especial de Políticas de
seria alguém com quem ela poderia dialogar lá dentro, para além da própria coordenadora. Promoção da Igualdade Racial, a Seppir, é importantíssimo. Mas tudo isso já estava acontecendo
em Belo Horizonte, desde 1998. Foi na Gestão Célio de Castro, depois da Gestão Patrus Ananias,
Coincidentemente, foi quando o livro meu Quilombolas ficou pronto. O pessoal da editora que foi construída a Secretaria Especial de Assuntos para a Comunidade Negra. A Diva Moreira
falou que poderia me entregar o livro no Centro. Aí, entregaram na Coordenadoria de Promoção dirigiu essa secretaria. Marcos Cardoso foi trabalhar lá; outras pessoas negras militantes da
da Igualdade Racial e eu fui trazendo aos poucos para casa. Quando a Diretora viu o livro, ela se cidade, também. Quando Lula assume o compromisso e o honra, o que ele faz na esfera federal
interessou por mim. A vice, que também era do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade já estava acontecendo em Belo Horizonte. BH é pioneira, em política de promoção da igualdade
Racial, teve um problema de saúde. Eu assumi o posto. Primeiro, o cargo era de gestão, Gestor racial. Essa secretaria, na verdade, ficou mais como uma ideia. Porque ela, depois da morte do
2; depois, o cargo passou a ser de assessoria, Assessor 1, também em função de uma reforma prefeito, virou uma seção; depois, virou uma coordenadoria; e, agora, voltou a ser uma diretoria.
administrativa. Então, a secretaria desceu de nível, mas, além dos negros, passou a abarcar também os indígenas
Essa mulher com quem eu trabalhei, quando fui para a coordenadoria, sofria com racismo e os ciganos.
explícito, na secretaria que abrigava a coordenadoria, para começar. E, obviamente, na hora de
14 Partido dos Trabalhadores.

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Eu não cheguei a ir trabalhar nessa secretaria quando ela surgiu porque, a meu ver, tinha a um ato heroico e que aconteceu com a articulação dos órgãos. Eu cheguei na Coordenadoria de
ver com o movimento negro atuante na cidade. E eu nunca fui do movimento. O meu perfil sempre Promoção da Igualdade Racial, na Gestão Márcio Lacerda. Trabalhava com uma mulher negra, que
foi outro. Eu não sou da ação política, nunca fui. E eu não tive a formação política que essas pessoas sofria racismo explícito – não tinha nada de implícito. E a Coordenadora atuava de forma muito
tiveram, na luta diária. Porque eu não sou uma pessoa preta. Então, por exemplo, eu não passei por articulada com a pessoa do núcleo étnico-racial da Secretaria de Educação. Eu também acompanhei
muita coisa que eu via o Marcos Cardoso passar, no Curso de Filosofia, quando eu estava fazendo esse movimento, então.
a graduação na Fafich. A exclusão que ele sofreu foi, certamente, muito maior do que a que eu
Eu não tive uma formação que me permitisse entender que foi a luta do movimento negro o
sofri. Ele era um homem preto periférico. Quando eu fui trabalhar na Lagoa do Nado, a política
que garantiu que eu tivesse condições de poder me assumir sem ser linchada, sem ser xingada e
de promoção da igualdade racial estava na pauta, mas o central era construção de uma política
menosprezada. Eu custei a entender isso. Porque, se eu tinha autoestima suficiente para enfrentar
pública de cultura. A verdade é que, para que a promoção da igualdade racial aconteça, você tem
o racismo, é graças à luta do movimento negro, inclusive dessa cidade, da qual eu não participei.
que criar condições para que ela seja efetivada em todos os níveis do Governo. E é isso que a gente
Então, eu usufrui de algumas das vitórias dessa militância. Da mesma forma, se, quando do advento
fazia, também, na Lagoa do Nado.
das leis 10.639/03 e 11.645/08, Belo Horizonte tem terreno para isso, é por conta do movimento
Da mesma forma, quando a Lei 10.639/03 negro. O movimento negro foi construindo, na cidade, e ocupou o Governo. A Secretaria da Diva,
e a Lei 11.645/08 acontecem no âmbito por exemplo, é verdade, teve lá seus problemas, críticas podem sempre ser feitas aos montes.
federal, a Secretaria Municipal de Educação já Mas ela aconteceu e implantou a política, isso é inegável. Mesmo com todos os desmerecimentos
tem alguma experiência. É por isso que Belo que essa política sofreu e sofre, ela persistiu e persiste. Isso é central. Outro ponto: as leis que eu
Horizonte é uma das cidades em que essa lei mencionei chegaram tarde para mim, mas não chegaram tarde para os meus filhos, nem para as
encontrou chão propício e foi se disseminando, outras crianças que eu vi aos montes nos centros culturais de Belo Horizonte.
mesmo com todos os problemas. O que eu quero
Para concluir, os centros culturais, de certa forma, precisam ser encarados como o esteio dessa
dizer é que essa cidade já tinha uma política de
política, pois é isso que eles são. Os meninos que frequentavam esses centros, lá atrás, eram alunos
igualdade racial, muito antes da política federal
das escolas públicas. Quando passa a ser obrigatório o ensino da história e da cultura africana e
ser uma realidade. Ela foi pioneira, e alimentou
afro-brasileira nas escolas, eles estavam já, pelo menos, concluindo o Ensino Fundamental. Então,
a Gestão do PT em Brasília, por um lado; e,
a nova legislação chegou tarde para eles também, mas eles viveram os centros culturais, puderam
por outro, é por isso que as iniciativas federais
fortalecer a sua identidade étnico-racial. O boom dos centros culturais foi a partir de 1999 e, antes
frutificaram aqui.
disso, já havia ação cultural na cidade, promovida pela Prefeitura, para valorizar a cultura negra. A
Na educação, especificamente, teve que política cultural em Belo Horizonte, dessa forma, pode ser considerada como a origem da política
ser de forma heroica? Teve. Teve que contar de igualdade racial na cidade. Porque, aqui, a cultura popular da cidade negra, é muito negra. E a
muito com a agência municipal de igualdade cultura popular é o foco da política cultural, que foi construída em Belo Horizonte, nos anos 1990.
racial? Teve. Porque, quando os gestores estão
em um nível muito baixo, não é fácil bancar
uma política para todos os níveis de Governo.
Essa era a realidade na Secretaria Municipal
de Educação. Para chegar lá na ponta, isto é,
no aluno preto da escola pública municipal, foi

Lançamento dos livros de Nila Rodrigues em Araçuaí/MG.


Crédito: Lori Figueiró

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CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Daniela Tiffany do Prado de Carvalho Sou filha única de uma mulher negra e de um homem branco. Isso é algo importante da
Leticia Godinho minha trajetória, porque o lugar da mestiçagem me confundiu, muito, sobre a relevância da pauta
Renata Souza Seidl racial em minha vida.

A avó: contraditória e fascinante!


Minha avó materna se casou três vezes, com dois homens negros e um homem branco, e
foi esse homem branco que criou minha mãe e seus irmãos, em um total de oito filhos. Ela teve
experiências de vida muito difíceis com os dois primeiros maridos e quando se casa com esse
homem branco, ele vira uma referência muito importante de ascensão social e de uma vida sem

DANIELA
violência. Então, essa questão do embranquecimento é muito presente na minha família: está
vinculado tanto a uma melhora de vida, quanto à questão de viver sem violência. Minha avó
prescrevia para as filhas se casarem com homens brancos, reforçando que os homens negros
seriam absolutamente prejudiciais.

TIFFANY
Minha avó era uma pessoa contraditória e fascinante! Porque ao mesmo tempo em que ela
era super “quadrada”, às vezes machista e racista, em outros aspectos da vida, tinha práticas muito
avançadas. Minha avó foi fazer curso de Direito com 54 anos de idade. Meu tio a desafiou; mas,
mesmo assim, ela fez o vestibular, e passou, junto com ele e a minha tia mais velha. O primeiro
1. Origens lugar em que advogou foi no Leprosário, na época, muito mobilizada que estava com essas causas.
Então, ela tinha umas práticas muito interessantes, de uma mulher que questionou, a vida inteira, o
Eu nasci em Belo Horizonte. Mas só nasci. Minha mãe morava em Ouro
fato de não poder estudar, de não poder estar nos espaços públicos. Era algo que ela queria muito.
Preto, meu pai é de lá. Minha mãe dava aula no Polivalente, em Ouro Preto, e
E tinha certo ressentimento mesmo, de muito nova ter sido obrigada a se casar. Então, ela também
veio para BH só para que eu nascesse. Morei em Ouro Preto até os sete anos.
ensinou para as filhas que fossem independentes, ensinou o valor de fazerem concurso público, de
De Ouro Preto, me mudei para Conselheiro Lafaiete, eu e minha mãe fomos
terem o próprio dinheiro e de não dependerem dos homens. Fui criada com essa perspectiva: de
morar com a minha avó. Depois, moramos em Juiz de Fora; com doze anos,
que elas eram as protagonistas, e os homens, coadjuvantes.
voltei para Belo Horizonte, onde estou desde então.

Sou filha única. Até os três anos, meu pai morava com a gente. Ouro
Minha mãe e meu pai: referência e perda
Preto era um lugar muito bom para crescer, eu ficava muito solta. Era um Minha mãe se separou do meu pai quando eu era muito nova, eu tinha três anos. Por causa
ambiente protegido, todo mundo me conhecia, e conhecia minha mãe. Ela do incentivo da minha avó a minha mãe fez faculdade de Letras, foi professora e depois, também
conta que, com seis anos de idade, eu era “guia turístico”. Ia para a praça fez Direito. Portanto, para mim, estudar sempre foi uma coisa muito enfatizada. Lembro-me que na
conversar com turistas; ficava ouvindo os guias falando casos e histórias e infância eu tinha muitos livros. Minha mãe contava que começava a ler pra mim, depois cansava;
ia aprendendo. Morava no Bairro Antônio Dias, perto da mina do Chico Rei; não queria ficar lendo historinha, então me incentivou a ler muito cedo. Ler e estudar sempre foi
então, eu levava o povo da praça para a mina, para contar a história do Chico uma coisa muito natural para mim e acho que foi um grande diferencial, pois nunca tive dúvida de
Rei. A dona da mina gostou da minha iniciativa e me dava uns trocados para que ia fazer um curso superior.
incentivar.
Por mais que eu me identifique com a trajetória das mulheres da minha família, sempre quis
ter a minha trajetória. Por exemplo, minha mãe se recusou várias vezes a ocupar espaço de direção

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Capítulo 5 - Daniela Tiffany CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

na escola, falava que ia perder a liberdade. Ela queria ter a possibilidade de questionar – e era 2. A escolarização
considerada muito briguenta. Por isso, teve muitas dificuldades. Quando foi dar aula do Colégio
Estadual Central, sofreu várias formas de discriminação racial, e por mais que fosse uma mulher de O motivo de a gente sair de Ouro Preto, é que, como fui alfabetizada mais cedo, entrei para
muitos enfrentamentos, sempre se recusou a estar nesse espaço da gestão – mais formal, da linha o grupo escolar achando tudo muito atrasado, não queria ficar na escola. E fugia. Minha mãe
frente. Isso trouxe muito desgaste e, ao mesmo tempo, muitas perdas financeiras. começou a ficar preocupada, falava que eu era muito respondona, então resolveu me mudar para
a casa da minha avó, para que ela me pusesse disciplina. Mas foi uma infância muito boa! De soltar
Eu, por outro lado, falava: “Não. Quero estar no espaço que decide”. Sempre tive esse perfil.
pipa, de brincar muito. De ser uma criança! Era muito bom... mas até esse momento, quando virou
Na escola, por exemplo, fui líder de turma em quase todos os anos; fui presidente da comissão de
um problema, uma coisa conflituosa. Mas ser uma criança esperta me ajudou a ter confiança. Por
formatura; muita nessa coisa nesse sentido. Na faculdade, passei na UFMG, em um momento em
exemplo, eu mudei muito de escola, mas essa confiança me ajudava a chegar nas escolas novas.
que ainda não tinha as cotas raciais. Entrei no vestibular de 1999, minha turma tinha 32 alunos, e
Nunca fui uma criança travada, inibida, eu sabia que eu ia dar conta das coisas! Saber que era boa
apenas 4 eram negros (sendo que uma era de Cabo Verde). E eram alunos muito bem de vida, de
aluna, que dava conta dos exercícios, sempre foi uma ferramenta que me ajudou a chegar.
forma geral, com poder aquisitivo muito alto. Quando a gente começou a organizar a formatura,
queriam fazer uma festa supercara, que ia excluir todo mundo que não tinha condição de pagar. Mesmo com todas as dificuldades que a gente tinha para estudar, minha mãe sempre que
Fiquei muito indignada com aquilo e fiz um movimento! Mudamos a composição da comissão, para pôde tentou me colocar em escola particular. Mas depois acontecia que não tinha jeito de pagar,
todo mundo poder participar, com preço justo. Virei presidenta da comissão de formatura. Uma aquela coisa toda. Por isso, mudei muito de escola ao longo da vida estudantil, mas sempre com
amiga falava: “Essa é a melhor configuração: uma presidenta que é pobre e o povo que organiza, essa perspectiva de que eu ia fazer faculdade. Acho que isso fez toda a diferença. Fico relembrando
rico”. Então, eu sempre fui muito movida por isso. E acho que é resultado desse acúmulo de coisas. as pessoas com quem eu convivia, que tinham como horizonte se formar no segundo grau, no
máximo. E para mim, não era o suficiente.
A família da minha mãe é uma referência
muito forte para mim, porque perdi meu pai A faculdade: Para além de Freud, Skinner e Lacan
muito cedo. Meu pai foi assassinado. Quando
eu ainda tinha oito meses, foi preso, por alguns Quando meu pai morreu, foi a primeira vez que pensei em fazer Psicologia. Na época, queria
anos, e isso me marcou muito. Acho, inclusive, trabalhar com dependentes químicos, aquela coisa de salvar os outros. Lembro que, na missa de
que algumas escolhas profissionais têm a ver sétimo dia do meu pai, ouvi na igreja um depoimento de uma mulher que tinha perdido o pai,
com isso. E quando eu tinha dezesseis anos, também assassinado. Ela resolveu visitar um homem preso lá na Nelson Hungria1, se apresentar
ele foi assassinado; se envolveu numa briga. E para ele e falar aquelas coisas... assim, de filme. Lembro que chorei muito com essa história. Ela
é algo interessante, mas também contraditório: conta que, depois que foi embora, recebeu uma carta dele se desculpando; falando do que tinha
porque se, por um lado, era valor para a feito e o quanto a visita dela fez ele repensar. Ele já tinha matado algumas pessoas, mas, com a
família da minha mãe um homem branco de visita dela, pensou no que tinha feito pela primeira vez. Um tempo depois, ele morreu. E ela leu
olho claro; para a família do meu pai, casar-se essa carta, que me marcou muito. Fiquei com isso de “cadeia” na minha cabeça, era uma coisa que
com uma mulher negra era praticamente uma me interessava muito.
contaminação. Então, apesar de a minha mãe
O primeiro vestibular que fiz, logo que saí do terceiro ano de uma escola pública, foi para
ser uma pessoa que trabalhava, de ter uma vida
Direito – porque lá em casa muita gente fez Direito. Mas depois fiz um ano de cursinho e, no último
muito organizada, o fato dela não ter grana, não
minuto, resolvi fazer Psicologia. O pessoal ficou meio decepcionado, achava que era uma perda de
ter determinado status, enfim, era mal visto
potencial: “Para que você vai ser psicóloga? Você é advogada!”. Essa coisa do status e tudo mais.
pela família do meu pai. Eu ficava nesse lugar
Daniela e sua minha mãe, Graça. Ouro Preto, 1981.
meio estranho. Crédito: Acervo Pessoal 1 Unidade prisional localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais.

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Capítulo 5 - Daniela Tiffany CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Fui fazer faculdade. Eu questionava a perspectiva clínica na Psicologia para mim – de estar Em um ambiente embranquecido
com uma pessoa dentro de um consultório, discutindo questões da vida. Por mais significativo
Até o período da faculdade, eu me relacionava principalmente com pessoas brancas. Morei
que isso fosse, queria pensar como as pessoas chegavam a determinados espaços, como pensar
com um colega de turma que era branco. Eu reproduzia toda aquela lógica, sem saber que isso
em políticas que atendessem a muita gente. Sempre pensei muito no contexto. Até os estágios
tinha a ver com várias questões a respeito da miscigenação e do racismo introjetado. Era uma
que fiz tinham a ver com isso. Era no Morro das Pedras2; ou era atendendo gente que vinha com
perspectiva de que eu era uma mulher universitária, que meus pares eram homens que também
algumas questões sociais e que não eram “a neurose da neurose”. Era para pensar como a gente
estavam cursando um curso superior e eram predominantemente brancos. Estava num ambiente
pode mudar uma lógica, um sistema que produz determinados sofrimentos. Acho que é um pouco
muito, muito embranquecido. Mas também eu não enxergava os homens negros da forma como hoje.
esse o motivo desse percurso, uma inquietação muito grande. O curso em si, me atendia pouco;
Moro atualmente com meu companheiro, ele é negro. E isso tem a ver com meu amadurecimento
então, fui fazer estágio fora, iniciação científica, vários projetos de extensão, para tentar entender
sobre a questão.
como a Psicologia poderia me ajudar para além daquilo que me estava sendo apresentado, para
além do Freud, do Skinner e do Lacan. E foi muito bom, acho que fez uma grande diferença uma A universidade melhorou muito, mas eu não atribuía nada do que passei ao atravessamento
formação que extrapolava um pouco o currículo. racial, como tenho consciência agora. Fiz anos de terapia. Toda a minha autoconfiança, que tive
da infância até os 07 anos, foi se perdendo na adolescência, principalmente no início da idade
Fui a primeira da minha família a fazer uma faculdade pública, eu tive essa sorte. Na época,
adulta. Eu era muito insegura em relação a minha aparência. O “ser boa aluna” foi virando, na
tinha que ser universidade pública mesmo. Não tinha Fies3; a universidade particular era muito
adolescência, um problema: eu já não era a aluna esperta, era nerd. Era a aluna feinha que tira nota
distante para mim. Entrei na UFMG em 1999 e não havia cotas ainda. Na verdade, participei desse
boa. Isso prejudicava muito minha autoestima. Eu não sabia me arrumar, não tinha isso de uma
debate na UFMG, do início das conversas mais efetivas sobre o tema. Na minha sala, éramos 4
valorização da beleza negra.
alunos negros, sem nenhum debate racial, durante todo o meu curso, muito diferente do que é
hoje: a universidade não fazia esse debate; a Psicologia era basicamente clínica. O cabelo era um problema; aí, alisava o cabelo. A forma do seu corpo era um problema. Tudo
era problema. E ficava muito ali desejando ser escolhida por alguém. Não eu escolhendo, não eu
Nesse contexto da universidade, tudo era muito desigual. Minha turma tinha muita gente
participando ativamente. Depois de fazer muita terapia, mesmo com muitas terapeutas engajadas
com muito dinheiro, muita grana mesmo. Me lembro que, no primeiro semestre, algumas alunas
em questões sociais, até 28 anos de idade, nunca tinha dado a importância da pauta racial à minha
da minha turma estavam indignadas com o banheiro da Fafich: “Eu devia ir pra uma universidade
vida. Várias questões que sentia, que vivia, poderiam ser denominadas como efeito do racismo. Eu
privada, porque essa aqui é nojenta..”. E eu achava ótimo até o fedor da universidade! Era uma coisa
achava que era da minha personalidade, da minha baixa autoestima.
muito intrigante viver essa realidade. Às vezes, quando ia em festa na casa de colega, o apartamento
da pessoa era um andar inteiro no Mangabeiras4. Eu falava: “Gente, de onde vem esse povo?”. Mas, Eu tinha um amigo na universidade, o Cristiano Rodrigues, que falava que queria ser doutor.
por outro lado, também foi muito bom me situar nesse contexto. Eu não entendia o que era ser doutor. Quando entrei para a faculdade, não sabia que existia
mestrado e doutorado. Minha questão era formar rápido e começar a trabalhar, porque sempre
A universidade foi um divisor de águas na minha vida. Lógico que me incomodavam, às
tive muita consciência de que o que vivia já era muito, em termos de poder. Só comecei a trabalhar
vezes, algumas precariedades, mas estar numa faculdade pública era a coisa mais fenomenal do
depois de formada, e isso no mundo em que vivia era muito privilégio. Não podia falar assim: “Vou
mundo. Não queria luxo nenhum! Fui bolsista da FUMP; era considerada “carente nível dois” - isso
sair, formar, fazer um mestrado”. E o Cris era alguém muito impressionante para mim, porque foi a
é horrível, não é? Mas tinha todos os benefícios do bandejão e recebia uma ajuda de custo.
primeira pessoa negra que eu ouvi na vida dizendo que queria ser doutor.

Quando fui fazer o curso de Especialização na Fundação João Pinheiro, em Segurança Pública
e Justiça Criminal, com aquele tanto de polícia, foi muito bom. E o professor Eduardo Batittuci foi
2 Região (favela) de Belo Horizonte de alta vulnerabilidade social. muito importante, porque foi meu orientador e a primeira pessoa quem me falou: “Acho que você
3 Política de financiamento estudantil, do governo federal, para o ensino superior. devia fazer um mestrado”. E eu respondo: “Mas como? O que é isso? Para quê?” Mas eu cismo muito
4 Bairro de alto poder aquisitivo da cidade de Belo Horizonte.

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Capítulo 5 - Daniela Tiffany CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

com dar aula, quero dar aula, então resolvi que ia fazer um mestrado. Depois dessa especialização, intervenção, mudança de diretoria, a situação estava supertensa. Um dia a diretora me chamou
voltei a fazer disciplina isolada com a professora Sandra Azeredo. Mas aí já queria outro referencial, e falou: “Olha, quero te dar uma orientação, para você não andar sozinha na unidade, porque as
não queria um curso só com Foucault; queria a mulherada preta para ser minha referência teórica. presas estão muito descontentes com a troca de funcionária. A pessoa que você substituiu era
muito querida, então toma cuidado”. E eu: “Não vou ficar aqui intimidada, não. Vim para realizar
3. Trajetória profissional meu (pretensioso) sonho de transformar sua unidade”. E aí, no final do ano, a gente fez uma festa
de Natal e eu desci para o pátio, sozinha com as presas, e não quis que a segurança entrasse junto.
Eu me formei e permaneci um tempo sem saber onde ia trabalhar, o que ia fazer. Tentei ficar
A diretora quase surtou. Falei: “Ou eu fico aqui dentro, junto com elas, ou não tem jeito. Não tem
um tempo no consultório, mas não me adaptei. Então teve um processo seletivo do Instituto Elo5,
jeito de não ter respeito.”
para trabalhar com uma política voltada a pessoas egressas do sistema prisional. Ninguém fez
um processo seletivo mais feliz do que eu! Eu amava, era apaixonada com cadeia – um trem mais Isso era muito importante para mim. Trabalhava 14 horas por dia. Mas foi passando o tempo e
maluco! Fiz o processo seletivo, mas não entrei de primeira. fui percebendo que não era mais possível. Primeiro, fui percebendo que estava num contexto muito
complicado, em que a realidade estava muito além de poder fazer uma política legal para aquelas
Demorei a conseguir trabalho, mas depois que entrei, tive três promoções em três anos.
mulheres. Então, comecei a ficar desgostosa, mas muito inquieta também. Recebi uma proposta
Eu havia entrado para a política de prevenção à criminalidade, no governo do estado, no final de
para assumir outro trabalho, ia ficar longe de cadeia. Estava, também, um pouco intoxicada com
2005. Fui trabalhar com os egressos do sistema prisional em Ribeirão das Neves. Minha mãe ficou
essa que era uma pauta meio universal na minha vida. E fui fazer outra coisa.
desesperada: “Minha filha não tem jeito! Fez Psicologia e depois vai trabalhar com preso!”. Mas
sempre fui muito insistente, queria aquilo mesmo. Como era uma conquista muito importante, me Assumi a coordenação de Recursos Humanos de uma Organização da Sociedade Civil de
dedicava muito além do solicitado. Era uma técnica apaixonada: eu ia, conhecia a cadeia, lia muito... Interesse Público (Oscip), ao mesmo tempo em que, muito inquieta, queria voltar a estudar, mas
Eu sempre fui assim, ávida por esmiuçar o problema e resolvê-lo na fonte. Em pouco tempo, virei também precisava elaborar essa questão prisional. A sensação que eu tinha era de que estava
uma referência como técnica. muito imersa nela. Queria sair, mas não podia simplesmente não fazer nada com aquilo tudo que
tinha vivido. Trabalhar na Piep7 foi algo que me deu também uma sensação de privilégio: porque
Depois, mudei de Centro de Prevenção6, virei supervisora desse programa – tudo muito
pouca gente teve a oportunidade de estar lá, vivenciando o cotidiano de uma unidade prisional.
rápido, em três anos. Mas ficava muito inquieta de não ter uma experiência dentro do sistema
Era algo que eu queria muito e me trouxe uma experiência diferenciada sobre uma realidade pouco
prisional. Para mim, não adiantava ficar do lado de fora da penitenciária tentando conseguir
conhecida.
carteira de identidade para o preso quando saía; queria resolver lá dentro. Então, como fazer?
Então fiz o projeto do Mestrado na UFMG, com a Cláudia Mayorga, uma pessoa que já tinha
Foi nesse momento que fiz o curso de Especialização na Fundação João Pinheiro. Quando
sido minha professora na graduação, de quem tinha uma boa referência. Na época, eu já tinha
concluí, em 2008, me candidatei para uma vaga para trabalhar no Complexo Penitenciário Feminino
saído da Oscip e voltado para o governo do estado, trabalhando como gerente da política de penas
Estêvão Pinto, para Diretora de Atendimento e Ressocialização. Eu tinha 28 anos de idade e uma
alternativas, dentro da política de prevenção.
enorme vontade de trabalhar lá, mas nem imaginava o que era o dia a dia de uma unidade prisional.
Mas eu era tão apaixonada por aquilo, que as pessoas acreditavam comigo que seria possível. Ascensão profissional e racismo: Tornar-se negra
Lembro que comecei em outubro e a diretora que estava lá na época ficou apavorada: “Quem Na minha trajetória profissional, tive três promoções em três anos. Comecei como técnica,
mandou para cá essa menina? O povo está ficando louco”. A unidade estava passando por uma depois virei supervisora e depois diretora. Foi tudo muito rápido. E comecei, nesse movimento
de ascensão, a viver muitos conflitos. As pessoas falavam que eu era muito brava, que era muito
nervosa, muito isso, muito aquilo. Assim: “Você é competente, mas...” e eu não entendia o que era
5 Organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que à época era responsável pela execução da política de
prevenção à criminalidade no âmbito estadual. aquilo. Então comecei a ler livro de gestão, de como evitar conflitos, aquelas coisas de autoajuda. E
6 Centro de Prevenção à Criminalidade – unidade de referência operacional da execução da política de prevenção,
no âmbito estadual. 7 Nome por que é conhecido Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte.

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Capítulo 5 - Daniela Tiffany CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

continuava sem entender. Foi quando assumi o cargo no RH da Oscip, depois que deixei a Diretoria trabalhando num projeto social, porque resolveu trabalhar na periferia. As pessoas achavam por si
da Estevão Pinto. só que ela já estava fazendo muita coisa. Eu, por outro lado, me empenhava muito para coordenar
bem um programa complicado e com poucos recursos. E, às vezes, tinham uns conflitos brabos! Eu
Quando assumi, ocupei o lugar de uma mulher branca. Quando foram dar a notícia para ela,
tinha esses embates, porque tinha a sensação de que estava ali fazendo um exercício enorme de
na minha frente, para que me passasse o trabalho, ela me olhou de um jeito... do tipo: “Não acredito
conteúdo, que era isso que eu tinha. Em todos os espaços que eu cheguei, sem falsa modéstia, foi
que é você que vai me substituir”. Acho que ficou ofendida. A maneira como essa mulher me olhou
porque estudei, corri atrás, me dediquei. Mas via muita gente sendo promovida com muito menos
deu uma sensação muito literal desta questão: de que vários dos conflitos e do mal-estar que eu
critérios e exigências. Principalmente, pessoas brancas, nem sempre tão comprometidas com as
vivia tinham a ver com estar ocupando lugares que não atribuíam a mim. Que as pessoas não
complexidades do trabalho.
queriam estar subordinadas a mim. Algumas falavam que era pela cara de novinha, isso e aquilo.
Mas a questão racial começou a me pegar. Eu queria que elas entrassem numa cadeia, que sentissem o cheiro fétido das celas;
entendessem de onde as pessoas estão vindo, para não virem com soluções simplistas. Por
Estava muito mal, destroçada, quando meu companheiro na época, que estava fazendo uma
exemplo: quando alguém morria na política de egresso, eu fazia o programa parar: “Por que que
matéria na UFMG, leu um livro da Neusa Santos Souza, “Tornar-se Negro”. Disse: “Dani, você tem
morreu? Quem é essa pessoa? Em que a gente falhou?” E as pessoas falavam: “ Ah, morreu porque
que ler!”. Li o livro numa sentada e fiquei muito mal. Chorei tanto, tanto, tanto... porque pensei:
estava envolvido.” É lógico que estava envolvido! Senão, não tinha chegado para gente. Mas eu
como não tinha me dado conta desse ideal da branquitude? Porque o que ia acontecendo, era que
estava falando dos meus, e eles, dos outros. Eu era muito brava nessa época; depois, fui ficando
em cada cargo que eu assumia, ia fazendo todo um esforço de alisar mais o cabelo, de ir de salto
mais estratégica, principalmente ao entender quais brigas comprar.
alto, de me vestir de “quase executiva”. Ia tentando usar esses artifícios para poder ser alguém
respeitável. E quanto mais ia fazendo isso, mais fui entendendo que ia ficando uma caricatura, uma Quando cheguei a supervisora do programa de egressos, e teve uma possibilidade anterior
imitação de alguma coisa que eu não era. de me tornar diretora, a superintendente me falou: “Dani, acho que você tem todas competências
técnicas para assumir este cargo, mas você tem um temperamento muito difícil". Aí vem aquela
Quando entendi, fez muita diferença, mas foi um sofrimento. A vontade que tinha era de
conversa que odeio sobre “forma e conteúdo”: "O que você coloca é muito bom, mas a forma como
voltar em todas as minhas terapeutas e perguntar: “Por que a gente nunca chegou a esse ponto?”.
você coloca, não é”. Então, esperei cinco anos, mais ou menos, para voltar e assumir a diretoria
Isso mudou completamente a minha trajetória. Pedi demissão desse trabalho, depois de um tempo,
do programa. Tinha que saber manejar minha força, senão poderia muito facilmente ficar
e voltei para a universidade, para cursar a matéria dessa professora. Fui ler vorazmente todas as
estigmatizada. Até porque, muitas vezes, eu era a única negra. Na hora em que sentavam à mesa os
escritoras negras que podia e isso foi mudando minha percepção sobre várias temáticas.
diretores, coordenadores, e todos mais, eu era a única.
Inclusive, uma crítica que se faz muito a quem é miscigenado, como eu, é: “Nunca tive que
Devastação
me tornar negra. Nunca tive esse privilégio de me tornar negra, porque enfrento o racismo desde
sempre”. Eu vivia vários atravessamentos pelo racismo. E posso dizer que tive que ir mesmo criando No meio do processo seletivo para o mestrado, entre a escrita do projeto e as provas, descobri
essa consciência do que significava ser negra. Por mais que entendesse que era uma questão na que estava com câncer de mama. E estava me separando. “Meu Deus, como vou fazer isso?”. Descobri
minha vida, nomear que era racismo o que me atravessava, que precisava fazer o enfrentamento, em outubro, fui conversar com a Cláudia, minha orientadora, e ela falou: “Não desiste; vai para a
foi uma construção muito tardia para mim. Me causou muito sofrimento não nomear essas coisas, entrevista, depois a gente pensa como faz”. Lembro que eu fui ao médico e tinha que começar a
porque as trazia para dentro de mim, duvidava de mim, achava que tinha que me superar e assim quimioterapia: “A única condição que tenho é que quero ir para a entrevista com cabelo”. Então, ele
por diante. fez um cálculo: eram catorze dias para o cabelo começar a cair, mais ou menos.

Eu tinha um chefe, gosto muito dele, é meu amigo hoje; mas ele me matava de raiva. Por Fiz a entrevista e passei no mestrado. E logo nesse momento, me convidaram para ser
exemplo, quando eu era diretora do Programa de Inclusão de Egressos, tinha uma gestora, Diretora do Programa de Egressos (Presp), que era o programa de que já tinha sido supervisora.
branquinha, advogada, que usava scarpin, daquelas meninas que o povo acha lindo estar Então, eu estava com um diagnóstico de câncer, uma aprovação no mestrado e a Diretoria de um

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Capítulo 5 - Daniela Tiffany CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Programa no qual queria muito trabalhar. Foi um momento maluco da vida, mas muito interessante Neste momento, tive muitas conversas com a minha mãe, conversas difíceis. Quando fiquei
também. Porque eu já estava, junto com tudo isso, cheia de leituras das mulheres negras, fazendo doente, minha mãe se sentiu culpada. Porque durante meu cursinho pré-vestibular, estudava lá de
o processo de transição capilar. Assim: vou fazer uma mudança progressiva na vida. E veio tudo de manhã e à tarde, e não tinha grana para almoçar todo dia na rua. Então, eu levava as coisas e minha
uma vez. Devastou tudo. Eu me separei, mudei de casa, troquei de trabalho, fui fazer o mestrado. mãe fazia muito hambúrguer para comer no intervalo – e minha mãe ficou com uma culpa enorme.
E já que não tinha cabelo, comecei a usar turbante. Falo que eu morri e voltei, nesse processo Pensou que eu tinha tido câncer porque comia hambúrguer demais. Um dia falou isso muito sentida
inteiro. E o mestrado foi muito esse processo de cura, de encontro comigo e com as mulheres com para mim. “Não, mãe, não foi isso. São outras questões!” E aí a gente teve um momento de falar
as quais eu estava conversando para fazer a dissertação. A sensação que eu tinha era de “quero das nossas dores, dela falar das dores dela. No fundo, tinha a ver com a sensação de que ela não
viver”. E viver uma vida muito diferente, com outras questões. Foi um processo fortalecedor. E o podia prover tudo o que queria. Ela tentou me dar o máximo, mas se pudesse, facilitaria ainda mais
resultado, a escrita, as entrevistas... foi uma maneira d’eu me ressignificar; de entender qual era a alguma coisa para mim. Foi um momento de encontro muito profundo nosso, em vários aspectos.
minha linguagem, qual era a história que queria contar, qual era o meu processo. Acho que foi um
Minha família vem com várias histórias de negação da questão racial. Minha avó se casou três
momento de cobrar uma autoria minha, um protagonismo na minha vida. “Quero ter a narrativa
vezes e tinha uma espiritualidade muito forte. Ela já foi da umbanda. Foi da umbanda muitos anos,
da minha história, até do pior que me acontece. Eu quero ser uma narrativa!” Essa perspectiva
mas também, em determinado momento da vida, atribuiu às religiões de matriz africana todos os
de saber como ia contar minha história me ajudou a ser muito respeitosa com a maneira como
preconceitos. Em uma perspectiva de ter certa ascensão social, negou isso. Me lembro de, muito
as mulheres contavam as histórias delas. Estava interessada no que elas falavam; nos silêncios –
pequenininha, de na casa dela ter sempre Preto Velho, Menina de Angola. Mas isso virou meio que
como elas me revelavam ou omitiam coisas.
um tabu. Um recurso que a gente usa, mas que não apresenta. Uma coisa meio ambígua mesmo.
4. Identidade e ancestralidade Sempre fui muito intuitiva, minha avó sempre falava. Quando era pequena, era metida a ler a
sorte dos outros, e o povo falava que eu acertava. Então, esse algo místico sempre esteve presente.
Rasga tudo e começa de novo!
Mas fiz todo o rito da religião católica: batizado, primeira comunhão e crisma. E na faculdade,
O que fez muita diferença para mim foi conseguir ampliar meu arcabouço para nomear as minhas inquietações se juntavam à inquietação relacionada à espiritualidade. Então fui em tudo:
coisas de uma maneira política, e não introjetá-las. Sempre pensava que era uma questão ou de do Ayahuasca até a Igreja Evangélica. Budismo. Seicho-no-ie. Ia caçando as religiões, até que
adequação ou de personalidade. O câncer foi o exemplo máximo disso: “Minha filha, para de tentar encontrei.
se adequar no mundo. Está errado! Você vai morrer tentando e não vai dar certo. Rasga tudo e
Em 2005, tive uma mentoria espiritual forte, uma pessoa que me ajudou muito e ela atendia
começa de novo!”. Não foi à toa. Essa metáfora, de saber que matou boa parte das células do seu
incorporada. Fiquei com ela uns 5 anos e foi uma figura muito importante na minha vida. Depois
corpo e que a partir daí fez sangue novo – foi isso. Matar esse fantasma, exorcizar.
que ela morreu, fui buscar uma casa, tendo essa experiência nas casas de umbanda, até que
Junto com isso, veio a religião também. Ao mesmo tempo que eu ia para o médico, ia para a encontrei a casa do Pai Ricardo de Moura no CCPJO8. Batizei e entrei formalmente para a religião.
macumba. E a macumba falava: “Não, minha filha, é isso mesmo. É uma questão ancestral, vamos
Quando batizei, tive que ficar certo tempo usando só branco, Ojá na cabeça, ficar de Guia, de
rever isso tudo”. Eu chegava no médico e ele falava: “Não acredito; o efeito da quimioterapia demora
Contraegum9, um monte de coisas. E lá vou eu para Assembleia Legislativa, onde trabalho, toda
quatro dias nas pessoas. Por que em você dura dois?”. Respondia: “Porque fui lá no terreiro e fiz
parafernada de coisas. Para mim não teve nada melhor, mas se fosse há um tempo, talvez sentiria
uma macumba”.
constrangimento. Hoje me dá uma satisfação e orgulho de falar: “Eu posso estar nesse espaço.
Fui buscando meus caminhos e as respostas. E é também uma resposta política essa busca Mereço estar neste espaço e não quero esconder nada”. Mas também entendo que é um privilégio,
das religiões de matriz africana, da ancestralidade, da cura e de entender essa dor. Tive um câncer
na mama esquerda, entendi que essa dor era ancestral, vinha das mulheres da minha família que
8 Pai Ricardo de Moura coordena a Associação de Resistência Cultural Afro-brasileira “Casa de Caridade Pai Jacob
tinham problemas no útero. O sistema reprodutivo sempre dança quando são muitas as violências.
do Oriente” (CCPJO), que atua desde 1966 no complexo da Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte.
9 Ojá, guia e contregum: utilitários que fazem parte do ritual de batismo do Candomblé.

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Capítulo 5 - Daniela Tiffany CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

pois se tivesse outra formação, se eu fosse caixa de banco, não poderia fazer isso. Posso me aqui, a senhora não vai encontrar o registro, o nome dessas pessoas. Só tem da família que era
expressar de determinadas formas hoje, porque ocupo lugares privilegiados, senão não poderia. E dona da fazenda”. Minha avó começou a passar mal, quis ir embora.
não poderia sequer ir com uma conta dos meus guias para o trabalho.
Então, você não saber de onde veio, porque, como veio, é o apagamento de uma história. Por
A religião como força, compromisso com uma comunidade, com algo que isso, a religião também é algo, nesse sentido, para além de uma fé. É algo que te conecta com uma
vai além de mim dimensão daquilo que não conheço, mas tenho certeza que é meu.

Por outro lado, também começo a fazer 5. Feminismo e feminismo negro


certo uso disso. Quero estar nesse espaço como
uma mulher negra de umbanda. E aí percebo Custei a me nomear feminista.
que é um movimento muito inverso daquele
Na faculdade mesmo, lia as feministas clássicas, pois fiz estágio na Delegacia de Mulheres,
que eu tinha de querer ser comum, de pensar:
trabalhando com violência contra a mulher, por um ano. Então, a gente usava muito esse referencial
“Qual é a roupa que a chefe de RH usa? Então
das feministas, que abordavam a temática da violência contra as mulheres. Mas não me identificava
vou comprar essa roupa, para poder dizer que
com elas de jeito algum. “O que que essas mulheres estão falando?”. Essa teoria da divisão sexual
estou pertencente”. Hoje, é muito mais como
do mercado de trabalho, eu não sabia fazer o contraponto, mas não me identificava com ela. Então,
eu quero me apresentar. Então, a religião é um
não acho que sou uma feminista, de uma maneira geral, não. O que estão trazendo, teorizando sobre
recurso muito importante, que ressignificou
a violência, não me ajudava em nada quando entrava na sala para atender mulheres que estavam
várias coisas. Significa força, compromisso com
apanhando, com situações muito complicadas. Eu tinha até com uma certa antipatia. Lembro de
uma comunidade, com algo que vai além de
uma professora, a Karin Ellen Von Smigay, uma das grandes referências no feminismo até fora do
mim.
Brasil; tinha muitas discussões com ela em sala de aula, porque para mim não fazia muito sentido.
Uma vez resolvemos ir atrás das pessoas
Fui me identificando primeiro a partir da literatura. Ao ler Conceição Evaristo, Toni Morrison,
que tinham o sobrenome Prado, porque a gente
Alice Walker... Lembro que quando li “O Olho Mais Azul”, falei: “gente, ela está perto de mim!”. Fui
só tem até o registro da avó da minha mãe. Ela
lendo mulheres que falavam de uma complexidade, dos atravessamentos de gênero e raça, e da
ficou sabendo que sua bisavó havia sido criada
relação com os homens negros também. É como se eu fosse descobrindo a minha comunidade.
em uma certa fazenda, então a família inteira
Aí descobri bell hooks, parece que eu sou amiga da bell hooks! E ela tem uma escrita que não é
foi para esse lugar, no interior de São Paulo,
rebuscada por academicismos, é supercriticada por falar da experiência dela o tempo todo. Mas
para entender de onde vieram essas pessoas.
quando fala, eu penso: “é isso!” O conceito de ser insubmissa é tão interessante, me deu uma série
Entramos no museu do local, onde tinha a
de recursos que, aí, me fizeram aproximar de um feminismo, que é o feminismo negro. Mas também
referência à família Prado. Minha avó estava
não acho que o feminismo negro seja universal. Tem que existir o feminismo negro e tudo o mais!
super contente e feliz: “vou achar quem foram
os meus ancestrais, os meus antepassados”. Mas Isso tem a ver com a questão dos coletivos. Meu percurso sempre foi muito solitário, e ao
só tinham pessoas brancas no registro. O guia do fazer uma autocrítica, fui tentar entrar em coletivos. Mas é uma dificuldade muito grande para eu
museu explicou: “Não, minha senhora, quando ficar. Fui percebendo que a minha participação oficial em alguns coletivos me colocavam diante
os escravos foram libertos, muitos acabaram de alguns compromissos que eu não estava querendo assumir. Uma certa prescrição de ser assim,
ficando com o sobrenome das fazendas de onde de comprar briga com determinadas coisas, ou então fazer defesas cegas de coisas que não estava
Daniela e seu companheiro, Caio. Festa dos Pretos Velhos.
Belo Horizonte, 2019. vieram, para ter referência da fazenda. Mas a fim de fazer. Por exemplo, a gente não poder denunciar os homens do nosso coletivo que estão
Crédito: Acervo Pessoal

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Capítulo 5 - Daniela Tiffany CARVALHO, Daniela T. P.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

sendo machistas, “porque a polícia já criminaliza esses homens, o mundo já criminaliza esses No início, foi um tormento. Era desconhecida no contexto político-partidário e muitas
homens, então nós mulheres negras não podemos criminalizar”. Mas os caras estão surfando na pessoas não entendiam porque a Marília tinha me escolhido. Eu era uma forasteira. Tenho muito
onda de fazer o que querem e bem entendem! Não, não vou. Então, tem o uso que é feito desses respeito pela Marília nesse aspecto, porque não cheguei com sobrenome, com retaguarda, mas
espaços de militância, e que se é chamado por uma coesão grupal, que muitas vezes não te permite pela recomendação de uma colega que conhecia o meu trabalho. Foi uma oportunidade muito
fazer os enfrentamentos que se tem que fazer. boa, de participar dos movimentos mais organizados, mas de não estar em nenhum, ao mesmo
tempo. Transitar por eles me fez muito bem, ainda que representando um mandato. Sou assessora
Um outro exemplo: as candidaturas negras. Quero apoiar as candidaturas, principalmente
da Marília, mas as pessoas me reconhecem pelo meu nome. É a Daniela Tiffany. Fui conseguindo
das mulheres negras, mas não pode ser um fechamento natural, automático. Às vezes, você não se
transitar por diferentes grupos, tanto no movimento negro como no de mulheres. E para além
identifica com as posturas ou propostas.
deles também.
Cooptada por uma mulher branca?
O sentido do trabalho é servir e fazer diferença na vida das pessoas
Hoje assessoro uma deputada que não é negra, mas consigo estabelecer com ela uma boa
Acho que ainda não fiz nada na vida. Tenho a sensação de que estou em treinamento. Tenho
relação de trabalho e reconhecimento. Por outro lado, nem sempre consigo com uma mulher negra,
essa exigência grande comigo de fazer mais. Por exemplo, onde estou hoje é um lugar de que
que estou querendo apoiar, que considere relevante o que estou sugerindo ou falando. Considero
gosto, aprendo, mas não é meu espaço de protagonismo. Não estou nesse espaço de poder. Tenho
isso pouco proveitoso, quando poderíamos nos fortalecer ainda mais.
satisfação pelas coisas que fiz, pela capacidade de contribuir e influenciar, mas anseio pelo que
Hoje, no Legislativo, fico feliz com a possibilidade de transitar, de ter conhecido várias ainda posso fazer. Quero aprender mais e usar toda a minha experiência para fazer algo que ainda
mulheres de diferentes lugares e coletivos, ter ampliado um pouco minha perspectiva do que é o nem imagino. Quero estar pronta para alguma coisa que vá fazer diferença na vida de pessoas,
feminismo. De participar do movimento do parto humanizado, ao mesmo tempo, estar discutindo de pessoas anônimas. Quando era mais nova, achava que seriam coisas grandes. Hoje não, talvez
a ocupação das mulheres, as mulheres na mineração. Diferentes pautas, vários olhares, lugares – é sejam menores, mas que eu tenha a sensação de que impactou a vida de alguém. Na gestão pública
uma das coisas mais ricas do trabalho de assessoria parlamentar. mesmo, porque queria que em algum momento pudesse fazer algo que meu trabalho fosse mais
significativo do que a minha pessoa. Esse é o diferencial do que é servir, do serviço público.
Vim de uma lógica do Poder Executivo, em que me especializei muito em um assunto. E no
trabalho parlamentar, fui entendo que existem vários feminismos, várias formas de pensar. Que as Em algum momento, ser uma referência - isso é uma vaidade que eu tenho. Mas se num
mulheres organizadas lá em Santa Maria do Suaçuí, a partir de uma questão local, relacionada ao determinado lugar alguém falar: “Aqui foi realizado um trabalho que ajudou alguém e tal”, e
hospital, criaram um coletivo de mulheres para disputar a eleição; e agora tem uma candidata a ninguém nem souber que fui eu que fiz; mas se o trabalho estiver ali, vou me sentir satisfeita.
vereadora em uma cidade extremamente machista. Elas não tem nenhuma referência de leitura, do
que é o feminino branco, o feminismo negro; desconhecem conceitos elaborados e violências que 6. Mulher negra: Resistência e imortalidade
estão descritas na Lei Maria da Penha. Mas essas mulheres fazem um enfrentamento na vida real
A descoberta do racismo é muito dolorosa. Na hora que falei que o nome disso é racismo, foi
que tem muita riqueza! E a gente precisa reconhecer isso. Porque, muitas vezes, a gente é muito
uma dor tão profunda que parecia que eu não ia mais parar de doer. Meu corpo inteiro doía. Essa
arrogante; centralizado e está em um lugar em que se sente no direito de nomear a experiência das
dor maldita, não nomeada, é uma dor que te atravessa, te deixa impotente. Você tenta comunicar e
pessoas e qualificá-las.
não consegue dizer o que é. Ao mesmo tempo que foi a coisa mais difícil, me deu uma sensação de
Eu nunca tinha visto Marília Campos na minha vida; ela também não me conhecia. Estava muita força, como se eu tivesse entrado numa corrente de resistência: se sobrevivo a isso, sobrevivo
querendo uma coisa diferente, tinha acabado de defender o mestrado, então fui conversar com a muita coisa. É uma dor tão forte, que te deixa menos temerosa à dor. E te dá uma sensação de que
a Marília. Foi uma conversa muito honesta: “Nunca trabalhei no Legislativo, mas essa é a minha tem que seguir adiante. Não tem escolha.
proposta. Se você quiser, quero aprender, estou querendo mudar de área”.

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6
Capítulo 5 - Daniela Tiffany

“O que você tem que fazer daqui para frente?” Penso na minha filha. E que não vou conseguir Patrícia Maria de Souza Santana
poupar de algumas dores. Então, como comunicar para ela que vai doer? E como dar para ela esses Mônica de Cássia Costa Silva
recursos? Marina Alves Amorim

Assim eu vejo as mulheres do meu terreiro, por exemplo. Você vai conversar com elas e estão
sangrando, perderam alguém, a vida está difícil. Mas é para fazer alguma coisa? Então vamos fazer.
E fazer bem-feito, pelos outros. Então, um ponto forte das mulheres negras é entender que o que
não te mata, o que não te destrói, te fortalece. Não é com todas as mulheres negras, não é uma
questão universal, mas é o espírito, está para além de nós. Minha mãe me fala uma coisa muito

PATRíCIA MARIA
bonita: “Vamos, minha filha, está doendo, mas levanta, vai fazer. Não quero nem saber, vai dar um
jeito”.

Apesar de ser muito cuidadosa no que é prático da vida, minha mãe é durona, nunca foi
muito de adular. Mas foi interessante quando ficou sabendo que eu estava grávida. Um dia virou

DE SOUZA
para mim e disse assim: “Ser avó é a melhor coisa que existe. Por que quando a gente é mãe, tem
medo. E quando é avó, a gente tem a sensação de que fica imortal”. Que a gente imortaliza! É ela
falando dessa coisa, dessa sensação de ancestralidade pela chegada da neta.

SANTANA
Se minha filha vivenciar um mundo menos opressivo; com mais chance do que eu de fazer
determinadas escolhas; de ter acesso a determinadas coisas que sinto muito não ter descoberto
mais cedo... Se a Joana tiver os horizontes mais alargados, a luta da minha avó valeu a pena, a luta
da minha mãe valeu a pena. Então, é essa a perspectiva de que não se encerra em mim; de que eu
estou fazendo para um outro que vai colher daqui a duas gerações. Acho isso um ponto forte das
mulheres negras.
1. História familiar e pessoal
Consigo pegar aspectos que poderiam ter
sido elementos de grande derrota na minha Pais e irmãos
vida, de grande fraqueza e falar: “Não! Vou fazer Eu nasci em Belo Horizonte, no dia 17 de dezembro de 1964. Foi no
alguma coisa com isso e vai render algum fruto”. Hospital São Francisco, no bairro Concórdia, onde morei durante parte da
Aprendi isso com as mulheres lá de casa, vendo minha vida. Minha mãe conta que chovia muito no dia do meu nascimento,
a história de vida da minha mãe e da minha avó. faltou luz e era dia de jogo do Atlético. Não tinha médico, quem fez meu
São mulheres que podiam ter se dobrado muito parto foi uma parteira – ainda tinha essa prática de ter parteira no hospital.
antes, e continuaram. Cabe a mim, ir mais além.
Meus pais são vivos até hoje, graças a Deus. A minha mãe nasceu em
1938. Ela é filha de um pai retirante nordestino, que veio do interior de
Pernambuco no pau de arara. Naquela época, nas grandes secas do Nordeste,
as famílias tinham o hábito de doar os filhos para outras famílias, para
Palestra sobre mulheres e poder. Barbacena, 2018.
tentar garantir a sua sobrevivência. Meu avô não aceitou aquela situação e
Crédito: Acervo Pessoal

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Capítulo 6 - Patrícia Maria de Souza Santana SANTANA, Patrícia M. S.; SILVA, Mônica C. C.; AMORIM, Marina Alves.

acabou fugindo, bem rapazinho. Foi andando por vários lugares até chegar aqui em Minas Gerais. Minha outra irmã, a gente fala que é a mais inteligente da casa, é professora da PUC1. Muito
Primeiro, chegou em Nova Lima e foi trabalhar na Mina de Morro Velho. Depois, veio para Belo dedicada aos estudos, estudou no Cefet2, uma escola que foi construída para atender filhos
Horizonte. Ele trabalhou como carcereiro e aprendeu a ler com os presos. Então, entrou para o de operários, mas cuja seleção foi ficando tão difícil que as pessoas tinham que pagar curso
Corpo de Bombeiros e ficou até se aposentar. Minha mãe conviveu pouco com a minha avó, que preparatório. Minha avó pagou este curso para ela entrar e foi uma vitória muito grande para a
faleceu quando ela tinha 7 anos. nossa família.

Minha mãe, hoje aposentada, estudou até o quarto ano “de grupo”, como se dizia antigamente. O meu irmão teve uma trajetória escolar diferente. Era um menino inteligente, brincava
Ela era dona de casa, teve quatro filhos. Durante muito tempo, para complementar a renda, lavava demais e, por questões que não sabíamos muito bem, demorou para concluir o ensino fundamental.
roupa, fazia faxina. Depois de um período, minha mãe viu que não dava para sobreviver assim e Começou a trabalhar muito cedo como office boy e se casou muito cedo também. Mais tarde, fez o
resolveu trabalhar fora. Naquela época, isso era tabu. Meu pai não gostava, chegou a dizer que isso curso superior e se formou em Geografia e atualmente é professor da rede pública.
era humilhação. Mas ela enfrentou tudo e foi trabalhar. A partir daí, houve uma mudança nas nossas
Meu pai teve um relacionamento com uma moça de Montes Claros e teve duas filhas. Ela veio a
vidas. Não que ela tivesse ganhado muito dinheiro, mas isso criou um outro tipo de mentalidade.
falecer quando as meninas eram pequenas. Minha mãe ficou com a menor, que tinha 5 anos. Minha
Minha mãe nos incentivou muito a não depender de ninguém. Ela falava: “Não dependam de
avó paterna ficou com a mais velha, de 8. Foi um período difícil, porque elas não se adaptavam, não
ninguém, muito menos dos homens para sobreviver, para comprar um shampoo, um absorvente.
estudaram. A mais nova ficou um tempo sumida e só recentemente reapareceu.
Então, estude, faça um concurso público”. A presença dela, nesse sentido, é muito forte, para mim
e para meus irmãos também. Minha mãe tem o modo dela: é uma pessoa que não gosta muito de Marido e filhos
ler, mas tem essa sabedoria da vida que foi construindo. Ela falava que queria ter sido cantora. E
Sou casada e conheci meu marido em uma reunião do Grupo de União e Consciência Negra,
quando éramos crianças, a gente ensaiava teatro, cantava as cantigas da infância dela.
uma história meio inusitada. Ele era frei franciscano e fazia parte do grupo dos agentes pastorais
Meu pai nasceu em 1937. Ficou órfão de pai muito cedo, com apenas dois anos. Aos 11, já negros. Ainda estava no convento quando começamos a namorar. Por causa de uma divergência
era arrimo de família e ajudava minha avó a sustentar a casa. Ele trabalhou como serralheiro e se política interna, ele e os outros noviços saíram do convento. Depois de uns dois anos de namoro,
aposentou muito tarde, com mais de 70 anos. Meu pai também só estudou até o quarto ano “de resolvemos morar juntos. Eu tinha 24 anos e ele, 27. Casamos dois anos depois, tanto no civil
grupo”, mas gostava muito de ler. Lia livros e jornais todos os dias, inclusive aos domingos. Naquela quanto no religioso. Ele é professor e um homem negro. Estudou Filosofia e História na PUC e
época, tinha o Jornal Diário da Tarde e, aos finais de semana, o Estado de Minas, que líamos juntos. leciona na rede pública. Tivemos dois filhos: um menino e uma menina.
Ele é um dos responsáveis pelo meu hábito de leitura. Falava uma coisa da qual eu nunca me
Meu filho Victor nasceu em 1992. Ele mora em Franca, interior de São Paulo. Quando estava
esqueci: que se pudesse, teria estudado Geografia. Até hoje, ele lê muito e tem um conhecimento
terminando o ensino médio profissionalizante na área tecnológica, disse que não queria seguir
do mundo, uma posição política que construiu por si próprio.
esse o caminho e foi fazer Medicina. Ele foi aprovado em 2015 em uma universidade municipal de
Somos quatro irmãos: três mulheres e um homem. E mais duas irmãs fora do casamento dos São Paulo – Uni Facef. Ele iria se formar neste ano de 2020, mas com a pandemia só se formará no
meus pais. Eu sou a terceira filha. Depois de mim, tem o irmão caçula. ano que vem. Da turma dele, é um dos poucos estudantes negros. Entraram 4 e só continuam 3, em
uma turma de muitos estudantes. Ele está seguindo o sonho, persistindo e, no ano que vem, vou
A minha irmã mais velha é formada em Letras. Ela foi a responsável por uma série de coisas
ter um filho médico. O Victor não é muito da militância. Seu envolvimento fora da universidade
na nossa vida, porque foi a primeira a começar a trabalhar, em um cargo público. Ela era datilógrafa,
tem a ver com o fato de ser espírita. Sempre participou das atividades da casa espírita, do coral,
fez concurso e trabalhou na já extinta Delegacia Regional do Ministério da Educação, e contribuiu
da mocidade e, mesmo em Franca, continua seguindo a religião. Ele tem uma visão social muito
muito financeiramente para as despesas da casa. A vida era muito difícil. A gente não passava fome,
grande, sabe da importância e do significado de ser um futuro médico negro.
mas era uma família muito pobre. Ela introduziu em nossas vidas as coisas culturais, como teatro
e shows.
1 Pontifícia Universidade Católica.
2 Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

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A minha filha Maíra nasceu em 1999. Sempre muito esperta, inteligente, curiosa com as avó, minha madrinha, que era benzedeira, no Dia de Cosme e Damião, fazia saquinhos de doce para
coisas. Também escolheu o curso do ensino superior que ela queria. Ela sempre gostou da área distribuir. Era uma rede de solidariedade muito forte, que tem muito a ver com a cultura do bairro
internacional e fez Relações Internacionais na UFMG. Mas, no terceiro período, descobriu que não também.
era o curso que queria. Então, foi estudar para fazer outro vestibular. Hoje, ela cursa Design Gráfico
No Concórdia, tem um catolicismo meio popular, de cultivar os santos populares. Mas na
na UEMG3. Fez militância no movimento estudantil, é do movimento negro feminista. Atualmente,
questão religiosa, não tivemos a influência afro-brasileira do bairro. Fomos todos criados na
a Maíra faz uma militância diferente, não tão engajada, em um grupo específico.
tradição católica. Fizemos a primeira comunhão, depois crisma, essas coisas todas. Minha mãe
A construção da identidade a partir do território: o bairro Concórdia era “filha de Maria”, meu pai era “coroinha”6 de igreja. Mas tinha preconceito. Mesmo sendo uma
família negra, tinha aquela ignorância de nos manter distantes da religião de matriz africana,
Meus pais são do Concórdia, um bairro operário com forte presença da cultura negra. É
que seria o Candomblé. A gente intuía que tinha familiares que faziam parte da Umbanda, mas
um pouco a história da minha avó paterna, nascida em 1912, que saiu da favela Barroquinha, na
era muito silenciado. Cresci sem essa influência e, depois de adulta, ressenti-me de não ter tido
Barroca, no entorno da Avenida do Contorno. Nos processos de construção de Belo Horizonte,
tanto contato, em um bairro com essa tradição tão forte. Eu me ressinto um pouco, porque acho
não era permitido ter favela no cinturão da Contorno. Então, a família da minha avó, que já era
que ficou faltando um pedaço. Se eu tivesse um pouco dessa criação dentro do Candomblé, da
mocinha, foi transferida para o Concórdia. Naquele tempo, era considerado longe, distante, mas
própria Umbanda, do que tinha no bairro, talvez eu me sentiria mais completa. Mas não foi assim,
hoje é bem perto do Centro. Ela falava que o bairro era pasto da cavalaria. Era tudo difícil, as
o caminho foi todo católico.
pessoas tinham que andar muito para chegar aos lugares onde trabalhavam. Mas foi lá que eles
ficaram, constituíram-se e organizaram-se. A minha mãe também é do Concórdia, mas do outro A construção da identidade a partir das referências: a influência da
lado, porque é uma região bem grande. família e das artistas negras
Como era um bairro de pessoas negras, a presença e a convivência com essa cultura eram A formação da minha identidade negra vem desde criança. Sempre tive muito incentivo em
muito fortes. A gente participava das festividades da cultura afro, do congado4. Saíam sempre as casa, muitos elogios a mim, aos meus cabelos. Minha mãe fazia penteados, tranças, cachos. Minha
guardas no mês de maio e acompanhávamos do portão, participávamos, subíamos a rua para ver. tia, já falecida, foi uma grande referência. Uma mulher negra muito bonita, que andava muito bem
E o boi, que existe até hoje? A gente adorava brincar! Ao mesmo tempo, corríamos com medo. arrumada. Minha madrinha ouvia muita música negra, Tim Maia, Martinho da Vila, Jorge Ben e
Acompanhávamos todas as celebrações no terreiro da Dona Cassimira, antes de ser da Dona os cantores americanos. Sempre que tinha festa na casa dela, chegavam aquelas mulheres negras
Isabel5. Ficava em uma rua logo após a nossa. que pareciam de cinema, de cabelo black, com aquelas batas. Elas nos influenciaram, apesar de
não termos muita noção dessa influência. Aquela estética bonita, afirmativa e as músicas ficaram
Na minha rua, a gente contava nos dedos o número de pessoas brancas. O jeito solidário das
guardadas na minha memória.
famílias foi muito marcante em nossas vidas. Antigamente, as pessoas passavam muita dificuldade
mesmo, faltava água, comida, muita coisa, mas as famílias se ajudavam, existia uma rede de Quando criança, cortava e alisava o cabelo. Não podia ter cabelão com trança, porque falavam
solidariedade muito grande, uma luta diária para sobreviver. Lembro muito da minha mãe, minha que não era bom. Tacava alisante, rolinho, ferro quente, henê7, tudo que você imaginar, para o
cabelo ficar arrumado – e cabelo arrumado era alisado. Já adolescente, a minha irmã mais velha
3 Universidade do Estado de Minas Gerais. resolveu assumir o cabelo crespo. Quando saiu toda a química do cabelo, eu me lembro dela
4 Congado. É uma mistura das festas trazidas pelos africanos escravizados com a religiosidade cristã colonial. Suas falando de como gostou de tomar banho, lavar o cabelo e sair ao ar livre, sentindo o vento bater
origens remontam a um rito africano, no qual os súditos faziam um Cortejo aos Reis Congos, a fim de agradecer os nele molhado. Cabelo molhado? Nem pensar naquela época! Tinha que estar esticado, alisado. Eu
seus governantes.
também decidi parar de alisar o cabelo. Aos 15 anos, comecei eu mesma a fazer umas tranças. Aos
5 O Reinado Treze de Maio é um dos mais tradicionais representantes da tradição do Reinado, na cidade de Belo
Horizonte e no estado de Minas Gerais. Sua história remonta ao ano de 1944, no Bairro Concórdia, com a fundação
da “Guarda de Moçambique Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário” pela Preta Véia Maria Cassimira das Dôres,
ou Vovó Cassimira. Sua filha, Isabel Casimiro das Dores Gasparino, foi Rainha Conga de Minas Gerais e vice-presiden- 6 Ritos e atividades da tradição da igreja católica.
te da guarda. Fonte: https://santaterezatem.com.br/2018/05/11/festa-do-reinado-13-de-maio-de-n-s-do-rosario/ 7 Produto cosmético capaz de colorir e alisar o cabelo a partir de processo químico.

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16 anos, já fui me modificando. Aos 17, tinha conseguido tirar toda química e deixá-lo crespo. Esse 2. Trajetória Escolar
foi o primeiro movimento. E, curiosamente, quem mais falou e tripudiou do nosso cabelo crespo
foram as pessoas da família, não os colegas da escola. A gente chegava na casa da minha vó e os Meus pais sempre nos incentivaram a estudar. Diziam que não podiam dar nada, mas que
vizinhos falavam: “Uai, vocês não vão arrumar o cabelo mais não? O cabelo de vocês era tão bonito”. garantiriam que continuaríamos estudando. Meu pai comprava material escolar e sabe Deus como
E eu respondia: “Ué, mas tá arrumado!”. fazia para pagar. Naquela época, no início da década de 1970, tinha que comprar tudo: livros e
cadernos. Não existia esse programa de distribuição de material escolar, tal como hoje. Minha mãe
Eu e minhas irmãs paramos de alisar e íamos ao salão black para fazer cortes diferentes.
matriculou a gente no pré-primário, em uma escolinha no bairro que funcionava dentro de uma
Começamos a gostar e não nos víamos mais de cabelo alisado. Pouco depois, comecei a participar do
igreja metodista. Lá havia uma espécie de pátio, duas salinhas, uns brinquedinhos. Pagavam uma
movimento negro e encontrei um espaço de reafirmação de tudo aquilo que já estávamos vivendo
mensalidade, mas era irrisória. A professora morava no bairro, era muito carinhosa e atenciosa.
sozinhas. Tinham as tranças, os coques para cima e tive a possibilidade de ser assim também. Nas
Não havia preocupação com a alfabetização como hoje, em que se ensina as crianças a lerem muito
oficinas, a gente conversava muito sobre autoestima e a importância de se assumir como é.
precocemente. Era socialização, brincadeira, desenho, tudo muito gostoso.
No início da década de 1980 começaram as campanhas para o censo demográfico. Nele, a
Como eu era muito independente, ia sozinha para escola. A aula começava 13h05 e às 12
população negra não aparecia, porque não se declarava. Havia uma campanha nossa, do Movimento
horas eu já estava na porta da escola. Minha mãe não interferia para falar: “Ó tá muito cedo para
Nacional: “Declare sua cor, não esconda sua raça para o censo do IBGE”. E começou o processo das
você ir”. Eu achava que tinha que sair cedo de casa, porque não gostava de chegar atrasada. Dá para
pessoas se afirmarem como pretas ou pardas – levou anos para começar essa autodeclaração.
ter uma ideia do tanto que eu gostava de estudar.
A Clara Nunes teve um papel fundamental na minha vida e na construção da minha identidade
Nos primeiros anos do ensino fundamental, estudei na Escola Estadual Benjamin Guimarães,
negra, principalmente quando ela voltou da África, toda diferente esteticamente. Deixou o cabelo
que também ficava no bairro. Era um pouco mais longe, mas também ia sozinha e chegava cedo. Eu
crespo e começou a cantar músicas mais ligadas às referências das religiões de matriz africana. A
adorava estudar, nunca faltava. Não lembro de ter faltado até a terceira série, pois mesmo doente
Zezé Motta também foi uma inspiração quando fez aquela novela como par romântico do Marcos
eu ia para a escola. Aprendi a ler cedo, fui uma das primeiras da turma a aprender, gostava de ler
Paulo, e houve uma grande rejeição. A gente ouvia no ônibus “como pode o Marcos Paulo beijar
histórias. Escrevi uma redação que participou de um concurso da Secretaria de Educação e foi
aquela macaca?”. A gente não interferia, mas sentia aquele peso e ficava com uma indignação muito
grande. Teve a Sandra de Sá, que foi classificada em um festival com músicas que falavam de questões
raciais. A gente começou a ver como eram bonitas aquelas mulheres. Começamos a nos inspirar
nas pessoas de dentro da própria militância, que eram lideranças, artistas. Eram referências na
questão da estética e a gente começou a se vestir e a se produzir de uma forma diferente. Mais
coloridas, com tecidos africanos, brincos e colares – que sempre gostei muito. A estética também é
política. Eu não tinha a consciência da estética enquanto política, mas era isso de se mostrar como
é, com orgulho, sem vergonha. Era um movimento político. Quem contribuiu muito no início foi
minha própria irmã e o movimento negro em si. Minha irmã mais velha começou a conviver com
alguns colegas que faziam essa discussão racial. Os filmes, os livros. A escola contribuiu zero, muito
pouco, teve pequena participação nesse processo.

Primeiro Ano na escola do


bairro Concórdia.
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publicada em uma revista. Não tivemos acesso a essa revista, mas nunca me esqueci disso. Eu Éramos poucos estudantes negros, mesmo no noturno. Apesar de ter um pouco mais de
adorava a professora da primeira série. Era uma professora branca, que recebia todas as crianças negros, a maioria era branco. Ainda não havia a democratização do ensino, em que todos têm
na porta da sala e dava um beijo e um abraço. Mas, na quarta série, tive uma professora de que não acesso à escola pública. Era preciso fazer uma prova de seleção para ser admitido, então a maioria
gostava, houve muito conflito com ela. Não externalizado, porque naquela época eu não abria a não era de meninos negros. Tive uns dois professores negros nessa escola. No ensino fundamental
boca, era muito quieta, calada, tinha medo de ser chamada à atenção, mas achava ela brava, muito como um todo, foram quatro professores negros. E até hoje eu me lembro de todos, porque eles
ruim, xingava as crianças e puxava as orelhas. acabam sendo a referência para mim.

Em 1976, aos 11 anos, eu fui para a Escola Estadual Olegário Maciel, no centro da cidade. No ensino médio, eu fiz prova de seleção no Estadual Central e no Instituto de Educação,
Minha mãe pediu para minha irmã mais velha me levar um dia. Ela me levou, mas não me buscou e pensando em cursar magistério. Passei no Estadual Central, e voltei para o turno diurno. Foi uma
disse: “Você viu o caminho e agora vai voltar sozinha”. Acho que essa foi a forma que a minha mãe experiência muito rica e bacana, porque o Estadual Central era a escola da liberdade. Lá circulava
encontrou de a gente crescer independente. Lembro que fiquei um pouco perdida, dei uma volta uma outra cultura, mais engajada politicamente, apesar de ser ditadura. Tinha cultura, tinha
danada para voltar para casa. auditório, levavam peças de teatro, shows, palestras, biblioteca muito rica, a convivência com
colegas de diversos lugares, porque vinham pessoas do interior estudar em Belo Horizonte. Tudo
Era o período da ditadura militar, portanto a escola era administrada por militares. Mas foi
muito diferente.
uma experiência boa. Eu me lembro da professora Isabel, de Práticas Industriais, que era muito
atenciosa. Os alunos costumavam ser invisíveis na sala de aula, principalmente os negros. Era No ensino médio, o gargalo de estudantes negros ficou ainda pior. Para se ter ideia, no
praticamente impossível haver algo mais próximo com professor, mas essa professora Isabel tinha primeiro ano havia no máximo seis estudantes negros. No segundo, uns três. E no terceiro, uns três
uma relação muito carinhosa comigo. Também me lembro de outra professora à qual tinha uma também. Hoje, a gente faz essa reflexão sobre a juventude negra e como isso é um reflexo desde
admiração muito grande, de Português, negra e casada com um interventor da escola. Ela foi a lá de trás. Eles começavam a trabalhar muito cedo e não chegavam ao ensino médio. O racismo ali
responsável pelo meu gosto pela leitura, incentivava-me a ler. presente, expulsando estudantes negros, interrompendo sua escolarização.

Quando fiz 13 anos, fui transferida equivocadamente para o turno da noite. Não era para Essa fase foi rica, de fortalecimento, de vontade de entrar na faculdade. Quando eu estava no
estar à noite com 13 anos de idade, era para estar de manhã. Cheguei à escola e não vi o meu terceiro ano, havia a possibilidade de fazer teste vocacional. Eram vários encontros com estagiários
nome na lista do turno da manhã. Minha mãe foi à escola, mas não deram muita explicação. Então, de Psicologia, até traçar um perfil de qual seria a tendência para fazer a faculdade. E para mim deu
descobri que meu nome estava no turno da noite. A aula acabava às 23 horas. Uma menina de 13 tudo área de Humanas: Serviço Social, Letras, Direito e História.
anos andar naquele baixo Centro era perigoso, mas eu continuei. Minha mãe trabalhava fora, meu
Eu resolvi fazer História. Prestei o vestibular e fui aprovada na UFMG. Estudei no prédio antigo
irmão era muito pequeno e eu decidi ficar à noite mesmo para ajudar a cuidar dele e fazer as coisas
da Fafich8, no bairro Santo Antônio. Foi outro mundo que se abriu, outra realidade completamente
em casa, mesmo sendo muito jovem.
diferente, outras cabeças, vivências, outras coisas. Nessa época, eu já morava no Bairro São Gabriel.
No turno da noite, estudavam as pessoas que reiteradamente repetiam de ano, o que não era Minha família já tinha se mudado para lá quando eu tinha oito anos, mas eu fiquei com a minha
meu caso. Convivi com estudantes mais velhos que eu, com uma outra cultura, todos completamente avó no bairro Concórdia até os 11 anos, quando me mudei para o São Gabriel, um bairro de difícil
diferentes do que era comum no diurno. A maioria fumava, matava aula e eu era aquela mesma acesso; e eu já estava no curso superior, no período noturno, muito pesado e difícil. Tinha que
menina quieta e calada. Acabei me tornando um destaque na sala, porque os alunos não estavam trabalhar de dia para pagar os xerox e as passagens.
nem aí e eu sempre gostei de estudar. Tirava as melhores notas e fazia tudo. Virei a referência.
Chegar à universidade foi um divisor de águas para mim, devido a tudo que ela proporcionou e
Acho que, por causa disso, eu não sofri tanto com a discriminação racial dos colegas nesse período.
eu aproveitava tudo: debates, cursos e fui monitora de Sociologia do ciclo básico, uma oportunidade
Eles me respeitavam, porque eu era calada, tímida, tirava notas boas e, sempre que precisavam, eu
acadêmica boa. Depois, engajei-me no projeto de educação para adultos na Faculdade de Engenharia,
estava lá para ajudar.

8 Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

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tinha bolsas também, tudo para complementar a renda. Apesar de vários colegas falarem que Eu fiz parte de algumas organizações do movimento negro. Já professora, iniciei um
queriam fazer pesquisa, eu tinha tudo muito definido para mim. Queria fazer licenciatura, ser engajamento muito forte na educação para as relações raciais. Nos anos 1990, começamos um
professora de escola pública. Essa era a forma de dar uma contribuição e ter um engajamento grupo de educadoras negras e a constituição do Centro de Referência da Cultura Negra, uma
social mais forte. Identifiquei-me bastante com a área da pedagogia, da educação, participei com organização que já não existe mais. Paralelo a isso, eu fazia parte do N’zinga Coletivo de Mulheres
muito vigor, gostava de tudo. Negras, que tem mais de 30 anos. Existe até hoje, mas acabei me desligando depois de um tempo.
E hoje, integro a Rede de Mulheres Negras de Minas Gerais, que é um movimento que vem, desde
3. Engajamento político e militância 2015, com a Marcha Nacional das Mulheres Negras. Em 2018, aconteceu uma rearticulação dessa
rede aqui em Minas Gerais, a partir de Belo Horizonte, com vários encontros e reuniões, e em
Meu engajamento político começou em 1981, no Estadual Central. Eu já tinha um envolvimento
setembro conseguimos fazer o Encontro Estadual de Mulheres Negras de Minas Gerais. Neste ano
com as pastorais dentro da igreja católica, que mantinham uma forma de diferente atuar. Era a época
de 2020, com a pandemia, a rede se congrega mais virtualmente. É uma rede que integra outras
das Comunidades Eclesiais de Base, da Teologia da Libertação. Fui pendendo para essa versão mais
organizações de mulheres negras do Estado.
politizada das pastorais, fui da Pastoral da Juventude e depois da Pastoral Universitária. Os grupos
de jovens tinham esse caráter da convivência. E como eu descobri que, a partir desses grupos, eu Dentro da universidade, eu faço parte do Programas Ações Afirmativas na UFMG. A minha
podia fazer parte de movimentos mais políticos, eu saí um pouco da questão religiosa e tendi às trajetória acadêmica, inclusive o mestrado e o doutorado, foi feita na UFMG, na Faculdade de
questões políticas. Devo muito da minha formação política a esses grupos da igreja. Com 16 anos, Educação, onde está localizado o Programas Ações Afirmativas. Não é uma organização do
eu fiz curso sobre desemprego com o Eduardo Suplicy9, na Igreja São José. Eu ia para as discussões movimento negro, mas é uma organização muito forte e potente dentro da universidade.
sobre Política e Igreja, Fé e Política, movimento que existe até hoje, em que se discutiam todas as
tendências políticas no Brasil e a importância da vinculação da igreja com a política. Eu participava 4. Trajetória Profissional
dos seminários, cursos e comecei a fazer essa leitura sobre política.
Em 1986, eu havia feito um concurso federal e comecei a trabalhar no extinto Inamps10. Era
Entrei para a universidade em 1984; em 1987, então, eu comecei o engajamento com um cargo com salário baixo, mas tinha plano de saúde, auxílio-creche, benefícios que me fizeram
o movimento negro. Eu fazia parte do Centro de Estudos Históricos, uma espécie de Diretório ficar durante 10 anos por lá. Eu trabalhava 6 horas no Inamps e comecei a lecionar no período
Acadêmico. Faltava um ano para o centenário da abolição e começamos a conversar sobre o que noturno, em 1989, ano seguinte à minha formatura. Era uma escola municipal em Betim. Era muito
poderíamos organizar para as comemorações. Fizemos, junto com um professor de Antropologia, difícil, porque era longe, no período noturno, eu demorava para chegar em casa. Até tentei fazer
um seminário chamado “O Negro na História, Racismo e Ensino”. Esse professor ajudou a convidar o bacharelado logo que me formei na licenciatura, mas não consegui conciliar, porque já estava
pessoas que eram referências no Brasil. Então, comecei a frequentar o Grupo União e Consciência casada, dando aula, trabalhando.
Negra (Grucon). Fui convidá-los para o seminário e nunca mais saí, e ali iniciei a minha militância
Foi uma primeira experiência nesse sentido, porque eu já tinha trabalhado por três anos
no movimento negro.
com educação de adultos e era muito diferente. Ensinei a adolescentes que tinham uma trajetória
Foi fundamental na minha vida, eu passei a ter uma outra visão da História, de mim mesma, escolar de muita dificuldade. Senti um impacto. Mas fui criando um know how para ser professora
da importância dessa discussão. Abriu outro portal de engajamento. Foi lá que tive contato com de adolescentes, o que não é fácil sem a ajuda das pessoas. Eu ia tentando. Às vezes dava certo,
várias lideranças que são referências para mim e são meus amigos até hoje. Eu tinha 22 anos, era outras não. Penso que deveria haver outra forma de receber professores que estão iniciando a
estudante de História e foi muito importante. carreira.

Em 1990, eu entrei para a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Eu fiz um concurso logo
que me formei na faculdade e fui chamada. Comecei em uma na Escola Municipal localizada no

9 Política brasileiro, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), do qual é um dos fundadores; economista e pro-
fessor universitário. Foi senador e atualmente é vereador da cidade de São Paulo. 10 O Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).

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Bairro Céu Azul. Também no período noturno, e estava ocorrendo o processo da primeira eleição “Como uma mãe de cinco filhos iria dar conta de ser diretora de uma escola?”. A gente perdeu e foi
direta para a direção da escola. Foi aí que consegui fazer um engajamento muito grande com uma um processo bem traumático, mas que me ensinou muitas coisas.
das pessoas que iria se candidatar e ela tinha um projeto muito bacana para a escola. Comecei
Na chapa vencedora, a nova diretora que iria assumir acabou desistindo. Precisavam fazer
a me engajar politicamente com a educação pública. Havia muitas discussões sobre projetos e
uma recomposição e indicar alguém para assumir como vice-diretora. E indicaram o meu nome. Eu
políticas pedagógicas. Mas não foi uma fase fácil, porque quando a gente está começando, leciona
já tinha toda proposta de ter uma escola mais voltada para as questões sociais, para as condições
as disciplinas que estão “sobrando” na escola. Naquela época, ainda havia a disciplina de Moral e
dos estudantes, que eram muito difíceis, a tentativa de implantar alguns projetos institucionais
Cívica e de OSPB (Organização Social e Política Brasileira). E eu era professora de Moral e Cívica,
para discutir identidade negra e racismo.
OSPB e História do ensino fundamental, do ensino médio científico e do ensino médio magistério.
Era muita complexidade para uma professora iniciante. Eu tinha 25 anos, para vocês terem uma Passados dois anos como vice-diretora, eu me candidatei a diretora, fui eleita e fiquei mais
ideia. dois anos. Entre vice-diretora e diretora, foram quatro anos só nessa escola, na gestão. Uma escola
pública, com pouco recurso financeiro. Foi um momento complicado, mas nós conseguimos projetos
Mas fui aprendendo, conversando muito com os próprios estudantes, às vezes eles mesmos
muito importantes. Demos um acolhimento maior para os estudantes, pensamos na inclusão, na
sentavam e conversavam, faziam críticas: “Olha, tem que melhorar isso e mudar aquilo”. Sofri
democratização das possibilidades de participação. Por exemplo, naquela época até para fazer
muito, pensei até em desistir, mas segui em frente e consegui fazer algumas coisas importantes.
excursões a gente tinha que pagar para aqueles alunos que não tinham condições financeiras. Hoje
Quando meu filho nasceu, em 1992, eu tive que sair dessa escola e ir para outra no período em dia, isso mudou. Mas naquela época a gente tinha que dar um jeito. A gestão teve essa marca,
diurno, também na região de Venda Nova. Nessa, eu consegui fazer um trabalho mais efetivo, essa proposta de abranger o maior número possível de estudantes, de tentar não excluir ninguém.
talvez por ter sido uma das melhores experiências profissionais como professora que tive na vida.
Em 2001, quando eu fui para o mestrado, pedi licença de um dos meus cargos e, no outro, fui
Acompanhei um grupo de alunos da 5° a 8° série que era mais ativo. Mantemos um vínculo até
trabalhar na Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Era um projeto de formação de
hoje, foi uma experiência muito importante. Eles já estão com trinta e tantos anos. Nessa escola,
professoras que trabalhavam em creches, para garantir que elas tivessem certificação em Educação
eu era professora de História e consegui trabalhar um pouco as temáticas de racismo, consciência
Infantil. Fiquei por três anos e, depois, a convite da equipe da Secretaria, fui coordenar o Núcleo de
negra e todas essas discussões que eu sempre tinha tentado fazer antes. Atuei na coordenação de
Relações Étnico-Raciais e de Gênero. Isso foi em 2004, já tinha um ano que a lei 10.639/0311 tinha
área de Geografia e História, que foi uma experiência muito boa também.
sido promulgada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Eu resolvi me candidatar à diretoria da escola, junto com outra colega, uma professora negra.
Havia uma movimentação nacional para a efetivação dessa lei. Eu fiquei quatro anos
Foi um processo bem difícil, a gente sofreu racismo e toda forma de preconceito e discriminação.
na coordenação do núcleo. Era uma frente ampla, de muitos trabalhos, de muitas ações e,
Essa colega, que se candidatou comigo, até o fato de ela ter cinco filhos foi levado para os debates:
principalmente, com muito investimento na formação de professores na temática: garantia de
material pedagógico para ser distribuído nas escolas; organização de espaços de discussão e
formação, tanto de estudantes, quanto de professores; tentativa de fixar a discussão e a temática
racial dentro da política pedagógica da Secretaria de Educação; de enfrentamento ao próprio
racismo institucional presente ali, naquele espaço; discussões mais amplas com a população negra
e com os movimentos da cidade.

Logo em seguida a essa experiência da Secretaria de Educação, ao final de 2007, eu recebi


um convite da Regional Norte para assumir, junto com outra colega, a direção da Escola Municipal
Florestan Fernandes. A escola havia sofrido um processo de intervenção e a direção foi afastada.
Aula-oficina sobre relações raciais. Belo Horizonte,2005.
Crédito: Acervo Pessoal 11 Estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica.

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Capítulo 6 - Patrícia Maria de Souza Santana SANTANA, Patrícia M. S.; SILVA, Mônica C. C.; AMORIM, Marina Alves.

Fiquei na direção dessa escola por quatro anos. Também não foi fácil, era um local muito marcado muitas das pessoas que deveriam estar lá, presentes, não estavam. Entendemos que o trabalho ia
pelos problemas na gestão. Havia um grupo de professores muito instável, que não ficava na ser muito maior do que o que estávamos fazendo.
escola. A maioria dos estudantes eram negros, com famílias chefiadas por mulheres, a maioria
Nesse momento, começamos a aprofundar mais sobre o racismo institucional. Iniciamos uma
beneficiária do Bolsa-Família e com o entorno muito marcado pela violência. Era complexo. Foram
formação de gestores dentro da Secretaria de Educação, voltada para a temática racial. Fizemos
muitos enfrentamentos e vários desafios. Durante essa gestão, implementamos, a partir de 2008,
um planejamento, uma formação bem organizada, para sensibilizar os gestores que estavam na
um projeto institucional na temática étnico-racial e promoção da igualdade racial. Um projeto que
Secretaria de Educação, nas nove regionais que estavam à frente das diretorias pedagógicas de
teve reconhecimento nacional e recebeu várias premiações.
educação, equipes de formadores que estavam nos centros de formação dos professores. Montamos
Depois que acabou essa experiência, eu não quis me candidatar ao cargo novamente. Voltei um planejamento para formar, sensibilizar com conteúdo, com teoria e com possibilidades práticas
para a sala de aula e estou nela até hoje. Eu me aposentei de um cargo e atualmente estou como para poder enfrentar o racismo. Firmamos um acordo com a Secretaria para realizar a formação
Coordenadora do Programa de Escola Integrada, que iniciou em 2018 e terminará neste ano de em um formato de curso, com toda uma proposição de enfrentamento ao racismo institucional.
2020. Eu voltei para a sala de aula de 2012 até 2017. Essa é a minha trajetória na Prefeitura de Seguimos, mas enfrentávamos muitas situações em que o racismo se revelava de forma velada.
Belo Horizonte.
Outra situação foi com relação a um projeto que elaborei, porque naquele período havia
Enfrentamento do preconceito, racismo e machismo no ambiente muito recurso vindo do MEC, do FNDE12, destinado às Secretarias para a promoção de cursos mais
profissional consistentes, com carga horária maior. Eu elaborei um projeto de formação para professores e
bibliotecários da rede municipal, uma formação com carga horária de mais de 120 horas. Estava
Na minha trajetória profissional, o primeiro contato foi com o machismo. Eu comecei a
tudo certo, passou por todos os trâmites. No MEC, estava praticamente aprovado e uma pessoa
lecionar relativamente nova. E quando eu comecei a dar aula no período noturno, os meus alunos
responsável pelo projeto me ligava insistentemente dizendo: “olha, está tendo problemas na questão
tinham uma idade muito próxima à minha. Foi preciso aprender a lidar com toda aquela questão
do orçamento, tem que pedir a pessoa responsável por isso para poder rever”. Eu respondia: “Mas
do assédio. O racismo, eu enfrentei muito de perto quando comecei a lecionar na segunda escola
a gente já pediu”. Aí, dizia: “Você tem um dia para resolver isso, senão vai perder o projeto”. Depois
da prefeitura, em Venda Nova. Como eu era muito propositiva e fazia de tudo para realizar alguns
descobri que a pessoa responsável por isso não tinha dado a mínima atenção. Tinha passado vários
projetos, percebia um clima que tinha a ver com a minha insistência de realizar projetos na temática
outros projetos de outras áreas e outras temáticas e o nosso estava lá, empacado. Eu tive que fazer
racial. Mas nada tão explicitado assim, algo que a gente lê nas entrelinhas. O que eu considero ser
uma pressão interna muito grande, contatar pessoas para conseguir desencalhar, vamos dizer
uma particularidade do nosso racismo. Mas quando eu fui para a Secretaria de Educação com a
assim, esse projeto, resolver o problema que tinha sido apontado pelo MEC e conseguir realizar o
proposta de pensar em um projeto para a implementação da lei 10.639/03, aí eu senti o racismo
curso.
mais forte e presente. O que não é só das pessoas, mas da instituição em si. Como o racismo
institucional está instaurado, eram frequentes os boicotes às atividades que a gente fazia. O racismo não é explícito. Eu até preferia que fosse, porque a gente enfrentaria mais
diretamente. Mas são esses meandros, melindres, coisas que ficam nas entrelinhas e que nos
Uma das primeiras ações amplas, abertas, voltadas para as cidades, com os professores das
prejudicam muito. E era muito recorrente por parte de algumas gerências, em um nível hierárquico
escolas, foi a Primeira Mostra de Literatura Afro-Brasileira, em 2004. Construímos essa mostra
superior, falarem: “Ah, vocês só falam disso, só falam em racismo, querem ver racismo em tudo.
a muitas mãos e conseguimos organizar uma programação muito bonita, que congregava os
Tudo de vocês é isso”.
professores e os alunos. Convidamos escritores do Brasil inteiro, ilustradores, com realização
de debates, palestras, filmes, oficinas e tudo que vocês poderiam imaginar. Mas percebi, nos dias Depois, enfrentei uma situação muito emblemática, porque uma das coisas que conduzimos
que iam se seguindo na programação, uma defasagem muito grande no número de participantes. como política pública foi a composição de um conjunto de obras teóricas e literárias chamadas
Quando nos reunimos para fazer a avaliação, constatamos que houve boicote na divulgação por de Kit de Literatura Africana e Afro-brasileira, a partir de 2004. Começou com uns 20 títulos, foi
parte de pessoas e equipes que ficaram com a função de fazer a divulgação, de incentivar as escolas
a participarem. Fomos percebendo que as pessoas deixavam para divulgar em cima da hora, e
12 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

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Capítulo 6 - Patrícia Maria de Souza Santana SANTANA, Patrícia M. S.; SILVA, Mônica C. C.; AMORIM, Marina Alves.

aumentando, até que em um dos últimos que eu participei tinham mais de 120 títulos, enviados falasse: “Não, a gente não vai instaurar a censura aqui no nosso Estado, então esse livro fica. Não
para todas as escolas da rede. Tem duas questões interessantes sobre esse kit: a primeira, é que eles vamos mexer com isso”. Mas foi tudo muito tenso, porque foi como se todo o projeto em torno
chegavam em muitas escolas e as diretoras falavam que queriam devolver, porque as professoras do que o livro representava, o que estava por trás de toda uma política de implementação da lei
delas não iriam ler aquele tipo de material. Ou ficavam empoeirando em um canto das salas das 10.639/03 fosse uma posição minha. Não foi um assumir institucional da Secretaria da Educação.
direções, sendo que o lugar deles deveriam ser as bibliotecas, com toda orientação para que as Eu, Patrícia, tive que fazer um enfrentamento praticamente sozinha naquele momento.
bibliotecárias dessem visibilidade aos kits. Descobrimos que muitos ficavam encaixotados. E a outra
É o que chamamos de racismo, primeiro em instância estrutural; mas tem essa outra instância,
questão foi com relação ao livro Manual de sobrevivência do negro no Brasil, de Maurício Pestana.
que é o racismo institucional. E que se mostra muito forte, emblemático e recorrente. No momento
Era cheio de quadrinhos, de desenhos e em uma das páginas, ele aborda a violência policial. Uma
das definições das políticas pedagógicas, a gente queria aprofundar na questão da alfabetização,
professora de uma das escolas denunciou o livro como desrespeitoso à Polícia Militar.
e na secretaria havia todo um investimento nesse setor. Dizíamos: “Se olharmos as pesquisas, a
Começou todo um processo de embate com a Polícia Militar, e ninguém queria assumir maioria que não está alfabetizada são meninos negros, então essa discussão tem que entrar”. E aí
aquela discussão. Como se tratava de uma política da Secretaria de Educação, quem deveria fazer eles já colocavam de lado: “Ah! Vocês veem racismo em tudo, tudo tem que colocar”.
uma conversa, seria quem estava em uma instância superior. No fim, eu tive que fazer a discussão.
Eu ia tentando estratégias para enfrentar o racismo institucional. Uma delas, era conquistar
Primeiro, fizemos uma reunião interna com um grupo que discutia a violência nas escolas e tinha
pessoas-chave dentro de outros núcleos, como o de Alfabetização, Juventude, Meio Ambiente etc.
uma relação mais estreita com a polícia. Era uma política da Secretaria de Educação. Eles disseram:
E essas pessoas se tornavam um pouco as defensoras dessa discussão, dentro dos seus núcleos.
“Pois é, a questão com esse livro está atrapalhando a relação que estamos construindo com a
Mas eu ouso fazer uma avaliação que se esse racismo institucional tivesse sido enfrentado com
polícia, que estava correndo muito bem, uma relação amigável”. Eu respondi: “independentemente
mais profundidade, hoje, em Belo Horizonte, teríamos caminhado muito mais. Porque, parece, há
de vocês estarem com essa proximidade, é um fato real. A polícia é responsável pela violência
uma situação que vai e volta. E problemas recorrentes, principalmente na questão da equidade,
racial também. A gente tem casos historicamente comprovados de violência explícita da polícia
que são muito difíceis de enfrentar. Existe uma desigualdade educacional enorme, que atinge os
por motivação racial”.
estudantes negros e brancos diferentemente. Mas foi um processo desafiador, quase pioneiro. Um
Fizemos essa discussão interna, foi muito tenso e eu percebi que, naquele grupo, eu não grupo anterior já tinha uma experiência, uma oportunidade de avançar. E quando começou esse
teria apoio. Então fomos, juntamente com uma representante da Secretaria de Educação, fazer projeto do Núcleo de Relações Étnico-Raciais e de Gênero, nós fomos com uma equipe grande,
uma conversa com um tenente coronel da Polícia Militar, na Praça da Liberdade. Eu sabia que a disposta e investindo muito, mas o racismo institucional impediu um avanço maior. Os meninos
pessoa que me acompanhava não falaria nada, e a discussão ficou toda comigo. Foi uma coisa! negros continuam sendo os mais prejudicados, o racismo nas relações interpessoais continua
Não sei de onde eu tirei força. Mas, em nenhum momento, eu abri mão da minha posição, apesar sendo recorrente, inclusive na relação professor e aluno, e as dificuldades de algumas escolas em
de estar à frente da alta patente da polícia. Isso é muito intimidador. Ele todo paramentado, com assumir um projeto institucional como está previsto em lei.
aquelas medalhas, em um ambiente que é aquela coisa toda disciplinar da polícia, e eu expus toda
A implantação de um projeto referência na promoção da igualdade
a minha posição. Falei que o livro abordava a questão da violência policial e que eles deveriam
racial nas escolas de Belo Horizonte: o legado
concordar que, historicamente, a polícia tinha uma contribuição muito forte nesse processo do
racismo, por reproduzir e produzir essa violência, tendo como alvo, principalmente, as pessoas Na segunda escola em que fui diretora, a vice-diretora também era negra. Quando entramos
negras, a juventude negra. Já, naquela época, há 15 anos, fazia-se essa discussão. para nos apresentar, escutamos: “Olha, duas diretoras negras”, em um tom depreciativo. E foi isso
também que acabou nos estimulando a criar o projeto institucional na escola, em 2008, para a
Foi muito intenso, porque havia até uma posição de retirar os livros das escolas. Mas, ao
promoção da igualdade racial, que atualmente é um projeto referência não só em Belo Horizonte,
mesmo tempo, além de ter feito aquela conversa, eu fiz uma articulação nacional. Disparei e-mail
como no Brasil. Mas, também, eu vi estranhamento da nossa presença ali dentro. Ter duas diretoras
para todo mundo, para o Ministério da Justiça, para todas as organizações do movimento negro,
negras é pouco comum ainda, infelizmente. Apesar de serem cargos que não têm altos salários, nem
expondo a situação. Houve uma articulação extramunicipal que fez com que o governador na época
prestígio, ainda são ocupados por pessoas brancas. A gente conseguiu institucionalizar, na escola,

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um projeto voltado para as relações raciais e para a promoção da igualdade racial. Eu deixei o fizer de novo essa pesquisa que eu fiz nas escolas de Belo Horizonte, há mais ou menos vinte anos,
cargo de direção em 2011. Nós estamos em 2020 e esse projeto continua, mesmo já tendo passado eu penso que o resultado vai ser o mesmo. Só de ver nos seminários, nos relatos de experiências,
por mais três gestões diferentes. como o protagonismo das professoras negras é forte. É um legado que elas deixam, uma marca. E
isso tem que se tornar conhecimento, inclusive para que essas experiências possam se transformar
Eu tenho muito orgulho de ter conseguido aprimorar esse projeto, que é feito durante o ano
em conteúdo para os projetos de formação, que estão lá nas universidades, na formação continuada.
inteiro, não em uma data específica. Que todos os estudantes participam, todos os professores
O que nos leva a ter uma política, ou uma ação de sucesso, no enfrentamento das questões raciais
realizam, a comunidade se engaja. O projeto foi premiado. Só na época da minha gestão, ele
dentro das escolas. E que esses projetos tenham significados políticos amplos, que não sejam
recebeu dois prêmios: um na categoria Professor, em 2010, e outro na categoria Gestão. E, ainda,
restritos ao individual, que tenham repercussões sociais. Não é para a gente desistir. É para lutar
recebeu um selo da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, em 2011, como escola
por esses projetos de mundo mais justo, melhor e menos desigual. E que sejam colocados em
que promove a igualdade racial. Foi a única escola que recebeu este selo em Minas Gerais. Ganhou,
prática.
também, o selo “BH Sem Racismo”, da prefeitura de Belo Horizonte, por várias vezes. É um projeto
que tem vários filmes produzidos sobre ele. Houve cobertura do Canal Futura, da TV Minas, rádios, 5. Ser mulher negra: uma vida dedicada à luta antirracista
publicações em revista e um artigo publicado na revista eletrônica da ABPN – Associação Brasileira
Como as mulheres negras lidam com seus desafios? Primeiro, é se reconhecendo como
de Pesquisadores e Pesquisadoras Negras.
capaz, como potente de realizar e produzir coisas. Mesmo que a nossa família não diga, o mundo
E tem o retorno positivo dos estudantes. De vez em quando, a gente tem contato com os à nossa volta nos diz o contrário. Eu acho que, ainda hoje, persiste essa mentalidade, embora com
estudantes da época. Eles me falam como foi importante, como os impactou. Eu acho que esse é alguns avanços. Mas a minha geração teve que enfrentá-la, mesmo tendo um pouquinho mais de
o meu maior orgulho. Não os prêmios, mas o reconhecimento dos estudantes, que começaram a oportunidade que a geração da minha mãe, por exemplo. Não estou falando nem de sonho, mas dos
descobrir sua identidade racial e a se posicionar a partir das experiências que viveram naquele projetos que temos em mente, de vida e de carreira profissional. É um encontro da gente mesmo,
período. Isso não é pouca coisa! Eu tenho um depoimento de uma ex-aluna que se formou em de nos descobrir. E é um processo que não se dá da noite para o dia. Até hoje, estou nesse processo,
Nutrição recentemente e ela disse como os projetos da escola influenciaram na definição de sua tenho dificuldade de me reconhecer em alguns lugares, tenho dificuldade de me reconhecer como
carreira, no processo de se assumir negra, de assumir a estética negra e de ter um posicionamento uma intelectual negra, uma escritora negra. E isso vai sendo construído em um diálogo interno,
quanto a questões raciais. A gente também instituiu um concurso de cabelo crespo e cacheado, há íntimo e na relação com outras mulheres, que vêm trazendo essas pautas. Pensadoras que só
cinco anos. Várias estudantes trazem depoimentos sobre o processo de assumir o cabelo crespo, a agora estão sendo traduzidas no Brasil, como a bell hooks13, que fala que as mulheres negras são
partir do concurso. Os professores também falam como foi marcante na experiência profissional e intelectuais por si só, mesmo não sendo no saber acadêmico, mas no próprio saber de sobrevivência
de vida, como o projeto os influenciou a fazer esse trabalho em outras escolas nas quais trabalham. e manutenção da vida. É um pensamento intelectual, inclusive. Isso demorou muito para chegar
Apesar de todos os desafios, porque quando a gente conta é bonito, mas o processo foi muito até nós. Penso que as próximas gerações vão poder se beneficiar muito.
desafiador. Então, eu penso que o mais bacana disso tudo é marcar a vida das pessoas.
Segundo, são as oportunidades que não são dadas. A minha família foi uma exceção dentro
O protagonismo e a força das mulheres negras na educação do meu bairro, pelo fato de meus irmãos e eu termos conseguido fazer o curso superior. Não é só
porque a gente batalhou, pois as oportunidades são muito desiguais. E para os outros colegas,
As pesquisas vão revelando que as temáticas raciais chegam às escolas por meio da atuação
amigos de bairro e de caminhada, de trajetória, a vida foi muito diferente. As barreiras sociais e
das pessoas negras. E, mesmo que se torne um projeto institucional, são originadas pelas pessoas
negras. Colegas negros e negras têm histórias semelhantes à minha e isso faz uma diferença
enorme. Inclusive, o meu mestrado foi sobre a trajetória de professoras negras e como essas 13 bell hooks nasceu em 1952 em Hopkinsville, uma cidade rural do estado de Kentucky, no sul dos Estados
Unidos. Formou-se em literatura inglesa na Universidade de Stanford, fez mestrado na Universidade de Wisconsin
trajetórias impulsionam as professoras a ter posicionamento frente à discussão racial, tanto nos e doutorado na Universidade da Califórnia. Seus principais estudos estão dirigidos à discussão sobre raça, gênero
relacionamentos pessoais quanto nos profissionais. De serem as primeiras a provocarem essa e classe e às relações sociais opressivas, com ênfase em temas como arte, história, feminismo, educação e mídia de
massas. É autora de mais de trinta livros de vários gêneros, como crítica cultural, teoria, memórias, poesia e infantil.
discussão e esses movimentos em suas escolas. Eu acredito nessa força, sim! E eu acredito, que se
Fonte: https://editoraelefante.com.br/quem-e-bell-hooks

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raciais são várias. E isso vale tanto para o homem quanto para a mulher – mas acho que para a posição importante dentro da sociedade em
mulher são mais fortes. Eu descobri formas e estratégias para driblar o acúmulo de jornada. Se que a gente vive, trazendo uma contribuição
eu fosse pensar, eu não teria feito mestrado, doutorado, nada disso. Quando eu fiz estes cursos, para o grupo do qual fazemos parte, para a
já estava mais velha. Terminei o mestrado com 39 anos e o doutorado com 50. Quando eu fiz nossa população.
o mestrado, meus filhos eram pequenos, só tive dispensa de um horário. No outro continuei
Eu gosto muito do exemplo de uma
trabalhando, foi muito difícil, não tive bolsa. Para as mulheres, é muito difícil. E para as mulheres
professora do Rio de Janeiro, Giovana Xavier,
negras, é ainda mais. Ter que conciliar as tarefas e esse acúmulo de trabalho, isso é um grande
da UFRJ14. Ela fala que a gente sempre trata
desafio. Só querendo fazer mesmo que a gente consegue terminar.
as pensadoras negras como exceção. E cada
As ações afirmativas estão beneficiando algumas gerações. As gerações posteriores à minha vez que elas vão se revelando, a gente chega
já garantiram as vagas e as bolsas, e espero que essa política continue por mais algum tempo. Ela à conclusão que há uma constelação dessas
será reavaliada em breve, mas é fundamental ter políticas de ações afirmativas para os grupos mais pensadoras, não é uma ou outra. Quanto mais
discriminados no Brasil, especialmente a população negra e indígena. Outra coisa muito desafiadora se pesquisa, mais se descobre essas mulheres
para mim e para várias mulheres negras da minha geração é o fato de o meio acadêmico ser muito negras de destaque. Ao longo de séculos,
masculino. Principalmente no curso de História, você via poucas mulheres seguindo a trajetória de surgiram mulheres importantíssimas que
fazer um mestrado. Eu demorei para fazer mestrado, porque achava que não tinha condições, que deram contribuições enormes. Isso também
eu não tinha competência, que esse negócio não era para mim. Quando eu via uma pessoa fazendo é muito reconfortante. Fazer parte dessa
mestrado, achava uma coisa do outro mundo. Claro que a área da educação é predominantemente constelação de mulheres que está fazendo a
feminina, mas quanto maiores as exigências acadêmicas, ela vai se tornando mais masculina. Acho diferença, que estão se movendo, mesmo que
que isso é um desafio muito grande. seja um pouquinho. A gente fala: “Não move a
estrutura, mas balança um pouquinho”.
E a questão de a gente fazer as pazes com a gente mesmo. De se assumir no processo.
Como mulher negra, inteligente, que pode, que tem condição, capacidade, repertório, conteúdo e E eu gostaria de ser lembrada como uma
argumento. E, para complementar, eu penso que o que tem nos ajudado é essa coisa do coletivo. Não professora negra que dedicou a vida a toda à
dá para ficar no campo do individual. Quando você tem possibilidade de discutir coletivamente, discussão racial e por toda a minha trajetória, Diretora da Escola Municipal Florestan Fernandes.
fica menos difícil. Não é que deixa de ser difícil não, só fica menos difícil. Esse agrupamento e que começou muito cedo. Por uma vida de Belo Horizonte, 2008.
movimentos de mulheres, as formas de se reunir, de conversar e até desabafar, de qualificar todo entrega e também de muito envolvimento. Crédito: Wanderson Carlos da Silva Ferreira Oliveira

esse contexto com reflexões das experiências e as reflexões teóricas também, faz muita diferença Quero ser lembrada como a professora negra
e tem que ser ampliado. Cada vez mais, grupos de mulheres de todas as idades vêm surgindo e se que se envolveu e dedicou uma vida às questões
organizando. Antes, em Belo Horizonte, dava para contar nos dedos quantos movimentos existiam. de justiça racial e de luta antirracista.
Hoje, tem uma infinidade deles, protagonizados por jovens negras que se organizam em grupos de
estudos e de discussão, em movimentos políticos, não apenas no meio acadêmico, mas nos bairros,
nas comunidades. Tem as mulheres quilombolas e as mulheres indígenas, que estão se organizando
para trazer essas discussões para a pauta. E as inspirações, como eu falei, na adolescência a gente
se inspirava nas artistas, hoje em dia a gente se inspira, também, nessas mulheres que chegaram
antes e que estão aí, representando muito bem todo esse esforço e esses legados, que nos fazem
14 Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Formada em história,
pensar: “É possível chegar lá e ter uma posição”. Não no sentido de posição econômica, mas uma mestra (UFF), doutora (Unicamp) e pós-doutora (New York University).

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7
VIANA, Iara F. P.; SILVA, Matheus A. F.; MARTINS, Jessyka.

Iara Felix Pires Viana conseguia conceituar isso. Meu pai tinha o quarto ano de grupo escolar, mas era um engenheiro, na
Matheus Arcelo Fernandes Silva prática. Lidava com as obras e com os engenheiros, fazendo os cálculos para eles, inclusive. Hoje,
Jessyka Martins tenho consciência de que o racismo e a branquitude, ao operarem em conjunto, lançam venenos
mortais sobre a construção da identidade negra e tentam limitar, imobilizar os indivíduos negros,
principalmente as crianças e as mulheres.

Quando eu tinha cerca de nove anos de idade, com as grandes enchentes que tiveram em Belo
Horizonte, a nossa casa, com as nossas coisas, foram todas embora. Nós não perdemos ninguém da
família, mas perdemos tudo. Fomos para um abrigo e, de lá, fomos conduzidos a morar no conjunto

IARA FELIX
habitacional Morro Alto, em Vespasiano, zona norte de Belo Horizonte. Esse processo representou
uma mudança muito drástica, porque a enchente aconteceu em dezembro de 1982 e, em janeiro
de 1983, a gente já estava morando no Morro Alto. Tivemos que nos adaptar a essa nova realidade,
começar do zero. Mas meu pai nunca trabalhou conosco essa questão da perda e ou da desistência,

PIRES VIANA
eu acho que isso me acompanhou durante minha vida inteira.

Ao relembrar a escolha de meu nome, meu pai sempre falava dele como uma potência
muito grande. Ele achava que, enquanto menina – e, nesse sentido, olhando para o sujeito e as
masculinidades do meu pai – ele pensava: “é menina, ela precisa ter um nome forte e guerreira:
rainha das águas”. E água é algo que ninguém freia, então ele não queria que nada nem ninguém me
freasse nesse mundo. Queria que eu passasse, nem que fosse por cima, que eu desse vários saltos
nas barreiras da vida.

A história da minha mãe dá um livro


1. Iara, rainha das águas: origem familiar Minha mãe é uma mulher muito sofrida, ela não conheceu pai e mãe. Ela é órfã e veio de Baixo
Guandu, no Espírito Santo, para Belo Horizonte, aos seis anos de idade. Doada, por um padre, a
Eu sou a caçula de oito irmãos homens e venho de uma família muito uma família da elite belo-horizontina, que vivia na Avenida Augusto de Lima e eram um dos donos
humilde. Morávamos na favela do Perrella, no bairro Santa Tereza, em do Iate clube. Antes, ela vivia nos fundos de uma igreja, num orfanato masculino. Ela se recorda
Belo Horizonte, que tem uma geografia muito peculiar e onde, de alguma que morava no fundo dessa igreja com uma senhora, que chamava de mãe, e era essa senhora
forma, a gente conseguiu lidar com aquele cenário de precariedade e alta quem limpava a igreja, ou seja, era a faxineira. Lembra também que o padre ia todas as noites nesse
vulnerabilidade. A minha família, especialmente meu pai, mas a minha quartinho e a abençoava, dava um beijo nessa mãe dela e ia dormir.
mãe também, era muito engajada no quesito conhecimento, reforçando a
Já em Belo Horizonte, colocaram a minha mãe num colégio interno. Acreditavam que
necessidade de estudar. E, muito marcadamente, verbalizado com relação à
trouxeram a menina do interior e que ela precisava ser educada. Minha mãe sai desse colégio
cor da pele. Meu pai não dizia com todas as letras sobre a questão do racismo,
interno com 15 anos, já com um pretendente para se casar. Foi o primeiro casamento, não era
ou do racismo estrutural, mas ele dizia: “Você precisa se achar bonita e você
o meu pai ainda. Sofre muito com esse primeiro marido: 15 anos de idade, recém-saída de um
precisa estudar. Porque você precisa ser melhor do que qualquer pessoa. A
colégio interno, com um pretendente que ela nem namorou – não tinha como dar certo. Contudo,
concorrência está dada e você será muito cobrada”. Ele estava tentando me
antes de se separar, ela teve quatro filhos. Ao se separar, o marido e a sogra exigem que ela deixe
dizer que eu ia enfrentar uma série de racismos ao longo da vida, mas não

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Capítulo 7 - Iara Felix Pires Viana VIANA, Iara F. P.; SILVA, Matheus A. F.; MARTINS, Jessyka.

os filhos com eles, sob a alegação de que ela não teria onde ficar. Minha mãe sempre diz que o erro responde: “Não, não estou precisando de nada. Estou aqui marcando uma consulta. O senhor tá
dela foi ter saído de casa naquela noite, para ir morar na casa de uma patroa, onde ela repetiu o precisando de uma consulta? Eu posso vender o meu lugar”. Então, ele perguntou se ela estava
ciclo – era doméstica, faxineira, assim como sua suposta mãe do abrigo. Nas idas e vindas para morando na rua com as crianças, e minha mãe já ficou com medo, com receio de perder seus filhos
visitar os filhos, com todos os conflitos postos e estratégias para não rever o ex marido, ela conhece pela segunda vez; mas ele a acalmou e disse que só queria ajudar, só precisava saber como. E desse
um segundo marido, o Senhor Bené, que ainda não é o meu pai. encontro de cinco minutos nasce um grande amor.

Nesse segundo casamento, o ciclo de violência se intensifica e ela volta a sofrer muita violência A partir daí, meu pai se separou de um casamento já comprometido e, de fato, abraça a minha
doméstica, principalmente após o terceiro filho desse relacionamento. Neste momento, em que ela mãe. Foram 24 horas para organizar um barracão que comportasse minha mãe com os três filhos
já estava ameaçada de morte, em meio a vários boletins de ocorrência; o companheiro sempre que estavam com ela na rua. Minha mãe conta que ela não sentia cheiro de coisa nova há muitos dias,
alcoolizado, ora na cadeia, ora em casa; ela decide fugir. Sai de casa com todos os filhos e a roupa do quando ele chegou com um fogão, quatro talheres, quatro pratos, quatro copos e uma cesta básica,
corpo, em uma madrugada, enquanto ele dormia, e vai para a rua. Ela ficava em frente ao hospital para organizar minimamente a subsistência deles nesse novo lar. Eles se apaixonam e se casam.
da Santa Casa, como se estivesse marcando uma consulta na fila; as pessoas chegavam para marcar Com ela, meu pai teve a mim e um irmão, Edson Viana, hoje já falecido. E assim foi um casamento
consulta e ela vendia o lugar na fila e tinha assim garantido um dinheirinho para tomar um café e que durou para vida. Hoje, já não temos mais meu pai, a diferença de idade deles era muito grande,
dar um pão para os meus irmãos. mas não parecia quando estavam juntos. Eu lembro como se fosse hoje: um romantismo danado
em casa; nos domingos, fazendo almoço para a gente, uma musiquinha sempre rolando, o amor
Nesse período, meu pai, o Sr. José Viana, que era casado e morava na Serra, quando ia trabalhar,
no ar o tempo inteiro. E, com isso, a minha mãe nunca mais viveu esse cenário de perdas, de dor e
passava em frente à Santa Casa todos os dias; minha mãe, muito bonita, por sinal, chamou a atenção
de violência, e ela começou a perceber que era possível ser gente, ser mulher e como uma mulher
dele, acho que por vários motivos. Vendo ela com as crianças ali, todos os dias, ele resolveu parar
devia ser tratada.
e perguntar: “Está tudo bem com senhora, está precisando de alguma coisa?”. E minha mãe, séria,
A gente tentou por algum tempo identificar a família dela. Meu pai viajou com ela algumas
Iara com sua mãe, Elizabeth, em seu casamento com Rosane Pires. vezes para Baixo Guandu e descobriram que o padre era o pai dela. E a mãe era de fato aquela
Crédito: Acervo Pessoal senhora que limpava a igreja; mas como o padre Alonso era uma pessoa muito forte em Baixo
Guandu, muito considerado religiosamente, pediu muito, quando a minha mãe chegou, que a gente
não levasse adiante aquela história. Mas que ele sabia de fato qual era a relação que os unia e qual
foi a relação que os separou.

Eu quase sempre trago num primeiro plano o meu pai, quando vou narrar a minha história.
Justamente porque ele chega em um cenário para a vida da minha mãe como se fosse o grande
príncipe encantado, munido de um escudo protetor para todas as mazelas e violências que ela
tinha sofrido até a chegada dele. E isso foi muito transparente na nossa família. Falávamos disso:
esconder os problemas não era permitido. Era preciso narrar as dificuldades, justamente para
conseguir saneá-las. Isso meu pai colocava muito em pauta, nos almoços de domingo ou nas
sessões espíritas que ele fazia em nossa casa.

Acho que é por isso que ele sempre aparece em primeiro plano. Contudo, a relação de força
e de luta estabelecida é desta mulher que eu trago, da minha mãe, nossa matriarca, hoje com 76
anos. A minha necessidade de pular, saltar os obstáculos que a vida nos impõe, seja por ser mulher,
mulher negra, de periferia, advém da minha mãe. Mesmo porque, considerando todos os cenários

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Capítulo 7 - Iara Felix Pires Viana VIANA, Iara F. P.; SILVA, Matheus A. F.; MARTINS, Jessyka.

de privilégios do mundo masculino, querendo ou não, meu pai também estava neste lugar. Por momento. Mas eu acho que não dei muita atenção para isso. Talvez, com meu olhar “masculino”,
mais cuidadoso e sempre muito amoroso que tenha sido, ainda assim, ele falava a partir desse não prestei atenção no significado daqueles olhares. A sensibilidade veio da Rosane, que, ao final
lugar que o constituiu enquanto homem, negro. da reunião, perguntou sobre mim para a minha secretária, Flávia Tambor.

A construção das relações pessoais Como o Movimento Social Negro era muito ligado à própria secretária, a Rosane tinha o
telefone pessoal da professora Macaé. E, duas semanas depois, num dia em que a gente estava
A minha iniciação, o meu aprendizado era com os meus pares – os meus irmãos em casa. E
indo para uma reunião com o Governador, no carro oficial, a secretária recebe uma ligação, atende
como a liberdade sempre foi posta para todos nós, a gente podia ser o que a gente quisesse, desde
e, olhando para mim, responde ao telefone e sorri. Ela começa a conversar com essa pessoa, que
a mais tenra idade. Nesse contexto, chega uma fase da minha vida, ainda muito jovem, em que me
até então eu nem imaginava quem fosse. Era Rosane Pires, e ela perguntou sobre mim, sobre a
identifico como lésbica. Eu tinha 12 anos e trato isso no seio familiar com muita naturalidade,
minha orientação sexual e, a partir dali, eu passei a desconfiar que aqueles olhares significaram
me recordo como se fosse hoje. Meus irmãos levavam as namoradas em casa e eu já tinha uma
um flerte. A secretária Macaé passa meu contato a ela e a gente começa a conversar sobre trabalho,
namoradinha na escola; um belo dia, próximo ao meu aniversário, eu falei assim: “Olha, eu quero
a campanha Afroconsciência, que minha superintendência lançaria à época.
trazer a minha namorada aqui em casa”. Foi um susto, a minha mãe fez uma cara de maior espanto
e meu pai, visivelmente muito tranquilo, naturalizando aquele processo, diz: “Então traz a sua Isso vai ficando tão forte, que, em um ano, a gente se casa, com a certeza de que foi o encontro
amiga aí”. do século. Nosso casamento se tornou um ato político, foi um grande evento, no qual estavam
a ministra Nilma Lino Gomes, que foi nossa madrinha de casamento; a própria Macaé e tantas
Respondi estrategicamente: “Vou trazer a minha amiga”. E a apresentei para minha mãe
outras mulheres do movimento social negro e LGBTQI, que nos fortaleceu na caminhada enquanto
como minha amiga, já que meu pai disse que era a minha amiga. Mas eu já tinha dito que não era.
mulheres negras e lésbicas. Um casamento de fato bem marcante, cuja cerimônia, em 21 de maio,
E ficou demarcada essa fase, essa idade em que eu me declaro formalmente. Nunca me relacionei
foi ao ar livre, celebrada por nossa mãe de Santo Glória D’Oxum, com direito a muitas folhagens de
com homens; minha identidade de gênero ia se constituindo e meus amigos, escola, familiares iam
aprendendo a não mais questionar quem era a Iara. Esse relacionamento, ainda imaturo, claro, não Família Pires Viana completa: Iara, Àile, Ayala Vitória e Rosane.
vai para frente e de fato nos tornamos amigas. Crédito: Acervo Pessoal

Já na finalização do ensino fundamental, adentrando o ensino médio, eu me apaixono por


minha professora de educação física e é o meu primeiro relacionamento, de fato, com uma mulher.
E essa relação durou cerca de seis anos e, com todo o ritual, ela foi à minha casa, eu fui à casa
dos pais dela, assim como meus irmãos faziam e eram orientados pelo meu pai. Depois de um
certo tempo, meu pai disse para minha mãe: “Mulher, a gente não tem que ficar com grilo com
isso. O pecado é odiar; amar não é pecado, seja em qualquer situação”. Mas a minha mãe ficava
muito preocupada com as violências externas postas, questões que meu pai não conseguia ver – ou
acreditava que me blindaria a vida toda.

Vivi intensamente minha adolescência e amadureci, conheci outras pessoas. Mas foi
recentemente, há cerca de sete anos, que eu conheci Rosane Pires – minha companheira – em uma
reunião de trabalho na Cidade Administrativa. Eu estava na ponta da mesa com a Secretária de
Estado de Educação, à época, Macaé Evaristo, assessorando-a. Era uma reunião com o Movimento
Social Negro de Minas Gerais, do qual a Rosane Pires fazia parte. Era uma mesa grande, com quase
quarenta pessoas, eu num extremo e ela, na outra ponta. Nossos olhares se cruzaram ali naquele

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mariôs, tapete dourado e ambiente aromatizado, tudo nos moldes e preceitos do Candomblé, que dado com a Rosane, com a minha filha e o meu filho, por exemplo, eu ainda sinto um certo incômodo.
é a nossa religião. Se eu estou num terreiro de Candomblé isso não acontece. Os olhares são outros; na verdade, nem
existem olhares. Então, é onde a gente se sente mais à vontade para estar, para se conectar com a
Quando nos conhecemos, uma das coisas que nos conectaram foram nossos desejos em
nossa ancestralidade e com a nossa história.
comum. Eu sempre tive desejo de ter uma filha e a Rosane também, que já tem um filho, Àile Pires,
que hoje é nosso filho. Com isso, decidimos que, após o casamento, entraríamos na fila de adoção. 2. Escolarização
E a maternidade foi um ponto crucial inclusive para minha mãe olhar para a Rosane de forma
diferente da que ela olhava para os meus outros relacionamentos. Porque ela, minha mãe, esperava Quando fomos para o conjunto Morro Alto, ficamos de novo à margem, antes do Ribeirão
netos, para que fechássemos o ciclo de nossa família Viana; mas certamente não sabia como me Arrudas, agora de um município elitista: Vespasiano. E meu pai sempre teve uma análise muito
cobrar isso. A relação da minha mãe com a chegada da nossa filha Ayala é algo mágico, porque ela interessante dessa conjuntura. Ele analisava o espaço, como as coisas aconteciam e fazia muitas
tem vários netos e bisnetos, que somam mais de vinte; mas com a chegada da Ayala, é como se ela leituras políticas, mesmo sem ter estudo, mas com um letramento de resistência muito próprio.
tivesse fechado o ciclo da família dela. Ela, a matriarca, com os filhos, netos e bisnetos, a geração E com isso passou a liderar associações comunitárias, brigando para ter uma escola no bairro,
não vai parar ali. A minha filha, hoje com onze anos, fala: “A minha melhor amiga é a minha vó com uma infraestrutura adequada próxima às nossas casas. Por cerca de seis meses, toda a
Beth”. É a pessoa para quem ela liga, quer contar os segredos, segredos que às vezes ela nem quer população do Conjunto Morro Alto fica sem estudar. Com essa pressão da associação, rapidamente
contar para mim ou Rosane. a administração municipal instala salas de aulas aleatórias para dar uma resposta à associação
comunitária.
Religiosidade
Com isso, eu volto para os estudos, três dos meus irmãos também e a gente vai caminhando
Quando me aproximo da Rosane, a gente se casa no Candomblé, e a Mãe Glória, que faz nosso
até a construção da Escola Estadual Deputado Renato Azeredo. Essa foi a primeira identidade que
casamento, é a Mãe de Santo de um terreiro de Candomblé Banto, em Santa Luzia. Na verdade, a
eu tive com uma escola grande, no conjunto Morro Alto. Fomos criando ali laços muito fortes com
gente percebe o quanto as coisas já estavam conectadas, o quanto a ancestralidade já nos mostrava
o território, como um todo que vai se fortalecendo e crescendo, e a gente nesse meio, sabendo que
isso. Meu pai teve um Terreiro de Umbanda no Bairro Serra antes de conhecer minha mãe. Depois
seria nós por nós mesmos. Na escola, eu era muito ativa, participava de grêmios, jogos, duelos de
que ele se encontram, em função da separação, da saída da sua casa e as circunstâncias, ele dá
danças e tinha uma postura de muito reivindicar. E isso chama atenção da diretora da escola; à
uma pausa. Mas ele retoma os trabalhos em nossa casa, já no Conjunto Morro Alto, com sessões
época, a professora Edith Bueri Nassif, que era uma advogada da elite de Vespasiano, que estava
espíritas – eu inclusive amava participar de todos os rituais. Quando eu conheço a Mãe Glória e as
fazendo a gestão dessa escola no conjunto Morro Alto. E acho que até no sentido de tentar controlar
pessoas da Casa, percebo que tinha ali várias Filhas de Santo do meu pai, ou seja, Mães de Santo que
um pouco as minhas intervenções na escola, ela fala assim: “Se você passar no vestibular, você vai
também tinham sido iniciadas por ele. E essas pessoas me reconhecem e lembram desse período
dar aula nessa escola”.
de quando meu pai tinha o terreiro. Então, é como se a gente se tornasse um único Quilombo.
Ao escutar isso, encarei e optei por tratar o convite como mais um desafio. Estudei muito
E esse é o caminho que tenho trilhado; mas eu vivi também todo o cenário católico, devido
para o vestibular, sem qualquer possibilidade de cursinho e sem informações sobre o processo
à influência da minha mãe do colégio interno de freira. Então, todos lá em casa fizeram a primeira
de entrada em uma universidade. Fazia perguntas, muitas perguntas para os meus professores
comunhão e crismaram. Independente disso, com meu pai, a religião de Matriz Africana foi sempre
e assim fui aprovada no vestibular, em 1996, no IGC da UFMG1. Escolhi Geografia, porque eu tive
muito forte. E aqui, eu, Rosane e nossos filhos, a gente de fato comunga do Candomblé, nosso
uma professora da disciplina, Maione Lauar, por quem acho que desenvolvi uma paixão platônica
casamento foi feito nesse lugar. A Ayala, quando chegou para gente, também foi batizada lá e sua
em função do quanto ela conseguia nos fazer viajar para além dos muros da escola. Ela dava aula
madrinha é a Preta Velha de Moçambique. Apresentamos também para ela o que é a bíblia, o que
acreditando na gente, acreditando em nosso percurso, o que não acontecia com todos os nossos
é a igreja católica, e certamente ela será livre para fazer as suas escolhas religiosas. Mas confesso
professores. Era a única professora que saía com a gente do espaço da sala de aula. As aulas no
que é no candomblé que eu, minha esposa e filhos sentimos de fato um acolhimento, liberdade e
respeito. Ser quem somos dentro de um templo. Quando eu entro numa igreja católica, de braço
1 Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais.

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pátio, com essa professora, parecia nos tirar do bairro durante os cinquenta minutos de aula, eu 3. A trajetória profissional: eu comecei a dar aulas e não
achava aquilo fantástico. E o conteúdo me chamava muito atenção, pelo viés geopolítico e social
parei mais
que carregava; então foi o curso que eu me apaixonei e me encantei.

Ao me preparar, não tive cursinho, acesso à internet; não era como hoje, não tive nada. Tive Depois dessa primeira experiência na Escola Estadual Deputado Renato Azeredo, não paro
que me debruçar por cerca de três meses, estudando com xerox, apostila de cursinho, pedindo mais. Antes de prestar um concurso público para o magistério, lecionei em diferentes escolas da
emprestado um ou outro livro. E tinha que passar na universidade federal, porque não tinha como periferia da zona norte. Essas realidades distintas começam a me incomodar, somadas a uma
pagar. Encarei o desafio e lá estava meu nome na primeira chamada. Depois de ter passado, bato na série de questões administrativas da escola. Como exemplo, vivenciava momentos na sala dos
porta do gabinete da diretora da escola e digo que havia passado no vestibular. Ela me respondeu: professores com o diretor ou o vice-diretor, que falavam: “Chegou essa ordem aqui da Secretaria
“Então, você começa a dar aula na próxima semana”. de Estado de Educação”, e eu questionava: “Pôxa, mas a gente também é secretaria, não dá para
opinar nessas coisas, nessas tomadas de decisões? É sempre assim? De cima para baixo?” Essas
Fiquei apreensiva, deu frio na barriga, mas eu olhei para o financeiro naquele momento. provocações na hora do recreio com o vice-diretor, com o diretor, me fizeram acreditar que eu
Jovem, precisando de grana, para pagar até o xerox da universidade, era importante pegar umas devia subir um pouquinho mais e tentar a vice-direção dessa escola. E fui procurar saber como
aulas. Mas ela me colocou de cara no ensino médio. Comecei a dar aula para os meus colegas, funcionavam os trâmites para as eleições em escolas públicas. Mas depois recuava, pensava: “ Não,
afinal, tinha amigos em todo o ensino médio. E foi desafiador demais; mas, ao mesmo tempo, como vou continuar na sala de aula, que é onde eu tenho contato com gente, com os estudantes”.
ela sempre dizia e disse inclusive no dia da formatura: “Iara, você deu uma virada de chave na
Escola Estadual Deputado Renato Azeredo. Nós tínhamos professores mais velhos e você era a Enquanto isso, ainda à margem, morando no Conjunto Morro Alto, era aguçada pela grande
jovem, era a jovenzinha do rolê, naquela época com a linguagem e engajamento que os estudantes Escola Estadual Machado de Assis, que se localizava no centro da cidade. Era incômodo histórico
precisavam”. nunca ter tido a oportunidade de entrar nela. Eu ficava curiosa e me perguntando, por que uma
escola, que era pública, era tão diferente em termos estruturais da escola do conjunto do Morro
A minha linguagem com os meninos era outra; mas percebi também que eu tinha que assumir Alto? Se fazíamos parte da mesma rede, com profissionais tão potentes, por que essa diferença? É
uma postura diferente. Era amiga deles, mas estava professora, e tentei alinhar esse discurso à geográfica, é periférica, é segregação de novo? Decidi que queria romper essa barreira e dar aula
parceria estabelecida, que é o que eu chamo até hoje de os grandes combinados, que foi um grande nessa escola para entender como funcionava.
aprendizado para a vida. Eu não li isso em livro nenhum, mas foi o possível para iniciar a minha
carreira no cenário educacional. E só se entrava nessa escola por meio de concurso. Então, eu tinha que esperar um concurso
surgir e passar em primeiro lugar, porque só tinha uma vaga para essa escola. E assim o fiz, passei
Então, a minha carreira se inicia como professora, como uma possibilidade naquele momento em primeiro lugar e assumi. Em 2005, entro para o quadro efetivo da Escola Estadual Machado
e que, na verdade, vou amadurecendo. Me apaixono por essa proposta, porque descubro que é de Assis de cabeça erguida, nomeada para o cargo de professora de Geografia do ensino médio.
possível fazer diferente. É possível atingir as pessoas e modificar cursos na vida dessas pessoas. Lembro como se fosse hoje. Meu primeiro dia, a diretora Iris Martinha Salomão me recebeu, viu a
Porque foi isso que meus pais fizeram por mim. Poderiam ter feito qualquer outra coisa, inclusive papelada, me apresentou o quadro de horário, as turmas e me conduziu para aquele lugar: a sala
serem omissos. A gente tinha perdido tudo; certamente, eles poderiam ter outras prioridades, mas dos professores, que é um mundo à parte.
não. Com educação, a gente vai mudando o curso da vida, inclusive o nosso. O curso do Ribeirão
Arrudas mudou o curso de nossa vida. A educação vai mudar também o seu curso de vida nesse Na hora em que entro na sala dos professores, todos os olhares para mim. O sentimento
cenário. foi de grandes interrogações; questionavam que corpo estranho era esse que chegava na escola.
Ali todos se conheciam de muitos anos. Eram professoras que se tratavam assim: “Ah, você é da
família dos Fonseca, você é da família dos Viana, você é da família dos Iças”. Só sobrenomes. Ou
seja, Vespasiano, apesar de muito perto de Belo Horizonte, tem uma lógica do coronelismo e dessa
relação. Para mim, era como se eu não tivesse uma identidade, já que eu não estava vindo de

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nenhum desses lugares que constituiu Vespasiano. E, é claro, com os meus demais marcadores: pessoas que já tinham experiência na administração escolar; uma delas inclusive era vice conosco
mulher, lésbica, negra, periférica e moradora do conjunto Morro Alto. Pronto. É como se tivesse no turno da noite. A gente concorreu e ganhou com muitos votos dos estudantes. Quando venço
caído uma bomba em cima da Escola Estadual Machado de Assis. essas eleições, é um grande boom em Vespasiano, porque saiu no jornalzinho da cidade, interior
mesmo, e começam as ligações para saber quem é, quais são as mudanças, a política, quais são os
E com todo o traquejo adquirido na vida e na escola Renato Azeredo, quando eu levo essa
projetos político-pedagógicos para aquela escola.
experiência para o Machado de Assis, nas tratativas com os jovens, meus colegas professores e
direção começam a perceber que vários estudantes, que não eram meus alunos, queriam estar na O medo de mudar todo um contexto cultural em função de uma nova carinha e preta que
minha aula. Certamente, porque eu me sentia muito à vontade em escutar primeiro para depois aparece naquele lugar foi latente. Todos os quadros de fotos das direções anteriores no Machado
começar uma aula. Talvez, ali, nem dava uma aula de geografia propriamente dita, mas ia tratar da de Assis – uma escola antiga, que tem cerca de 60 anos –, são de pessoas brancas. Começa com uma
geografia humana, que era lidar com a função social da escola, de fato. “Professora, fiquei invocado série de homens, homens, homens... depois tem as mulheres no cenário do magistério, mas todas
e destruí meu videogame todo”. ”Você ficou invocado e quebrou o seu videogame, mas era com o brancas; e hoje tem o meu rosto lá, bonitinho, pretinho. É o único.
jogo mesmo que você se irritou ou tá com raiva de outra coisa?” “Ah, vamos conversar depois um
Eu assumo esse lugar da gestão já sabendo que, em uma escola daquele tamanho, eu tenho
pouquinho professora?” Então, essa cumplicidade e esse afeto foi tomando uma proporção muito
que me articular com o prefeito, com o vice-prefeito, com a secretária municipal. Um diretor de uma
grande com o público atendido ali.
escola estadual desse porte tem que fazer todas essas articulações, reuniões, negociar calendário
A chegada à gestão escolar, verificar os recursos que estão sendo repassados do estado para o município, a questão
do transporte e da alimentação, assim como se atentar para as diferentes realidades. E nessas
De uma certa forma, na hora em que eu fui percebendo que estava mais tranquila essa relação
tratativas eu fui adquirindo experiência de gestão e vivenciando-as.
com o grupo de professores e recebendo as mesmas demandas que vinham de cima para baixo, eu
pensei: “Já cheguei até a Escola Machado de Assis, mas deixa eu subir um pouco mais e ver como Minha primeira atuação foi questionar: não podíamos mais continuar concebendo a Escola
funciona o administrativo da educação de perto”. Conversei com a diretora atual e falei que queria Estadual Machado de Assis como uma escola privada. E eu precisava comunicar à população
me candidatar para a vice-direção, no turno no qual eu trabalhava. A gente tinha cerca de 2700 vespasianense, que elas podiam bater na porta da Escola e perguntar se há vaga. E que o seu filho
matrículas e um corpo de servidores gigantesco; ela viu como uma estratégia me convidar para poderia se matricular naquela escola. Com isso, as turmas começaram a mudar de cor. Eu tinha
ocupar este lugar. Ou seja, uma diretora histórica daquela escola, na verdade, concede a minha um cenário alto de pessoas brancas na escola e, a partir dessa reorganização e comunicação à
participação na gestão, sabendo, que se eu organizasse uma chapa e saísse sozinha como diretora, sociedade, comecei a receber estudante até do conjunto Morro Alto na Escola Machado de Assis.
talvez ela não conseguisse se reeleger. A escola aspirava um clima de mudanças.
Nesta caminhada, administrando uma escola daquele tamanho, eu recebia muitas demandas
Então, ela agiu estrategicamente; mas eu também precisava da chancela dela para iniciar esse diretamente do gabinete da Superintendência e até da Secretária Estadual de Educação, mas com
processo. Tudo isso com muita transparência. Vencemos, não teve nem outra chapa para concorrer, poucas orientações e diretrizes do que tinha que ser feito. E isso me incomodava muito. Acabava
porque já sabiam que a gente ia ganhar. Eu fico como vice-diretora por três mandatos seguidos, que a gente se sentia um pouco solitária; na escola, eu tinha que dar conta de todo esse pacote
oito anos. E no terceiro mandato, já entendendo um pouco mais as manobras da Secretaria de ou desistia. E desistir, jamais! Foi então que percebi que eu precisava enfrentar um novo desafio:
Educação, o jogo político, as mudanças de gestões de governo e como isso afeta as políticas públicas comecei a pleitear uma vaga para trabalhar no administrativo da Secretaria de Estado de Educação.
no campo educacional, falei: “Gente, vou ser diretora dessa escola para alcançar as reuniões de Fiz um outro concurso para Analista Educacional em 2013 e, nesse mesmo período, eu retomo à
gabinete”. A vice-diretora não participava delas, apenas o diretor. Então, eu recebia as informações academia entrando para o mestrado interdisciplinar em Estudos do Lazer, Cultura e Educação, na
que a diretora trazia para mim e muitas vezes eu me perguntava, “será que ela questionou isso”? UFMG.

Dito isso, fiz a mesma conversa com ela, transparente, e disse que queria assumir a direção. No mestrado, claro, eu fui estudar mulheres negras no baile funk. Sempre gostei muito
Ela ficou meio receosa, mas percebeu que eu estava decidida no que faria. Montei uma chapa com de dançar e questionava muito a ausência de infraestrutura para o exercício das sociabilidades

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juvenis, principalmente para as meninas e mulheres. Assim, fui pesquisar exatamente esse público, pública e de ter tido acesso a essa formação nessa época. Eu teria feito Administração Pública, mas
os bailes funk proibidões de Belo Horizonte e, é óbvio, meu locus de pesquisa foi o Morro Alto, não eu não sabia da existência desse curso. E, é claro, não saberia mesmo. No circuito de que eu fazia
tinha que ser diferente. Eu tinha que falar deste lugar. parte, não tinha como saber.

Nesse contexto, saio da direção da escola após o término do mandato, deixo meu cargo Eu precisava saber sobre administração pública e ter “maldade” política. Não só para
como professora no Machado de Assis e tomo posse em um segundo cargo público – o de descobrir o que eu precisava, mas também para fazer caminhar políticas públicas. E aí assumi essa
analista educacional, na Cidade Administrativa. Eu fiz o concurso especificamente para a Cidade diretoria, fiz um planejamento, um plano de trabalho com diretrizes. E começo, então, a entender
Administrativa, porque meu interesse era mesmo atuar na Superintendência de Modalidades e um pouco mais dos documentos administrativos, dos trâmites e fluxos. A superintendente, à época,
Temáticas Especiais de Ensino. me chama pelo meu Lattes3, olha basicamente para o tema trabalhado, para a desenvoltura que eu
tive na escola, para as cartas de apresentação que eu tinha. E, mesmo sabendo que eu não tinha
Estudei o organograma da Secretaria, sabia quantas diretorias tinham, quantas
experiência necessária para assumir um cargo comissionado dentro da Cidade Administrativa, eu
superintendências e quem estava à frente delas. Foi quase um georreferenciamento de toda a
tive que correr atrás disso. O carro andando e eu trocando a roda ao mesmo tempo. E entendendo
equipe. E aí, para a posse, tem um fluxo; você escolhe o horário em que vai trabalhar e eles dão
que a rede não era a escola no conjunto Morro Alto ou a Escola Machado de Assis. Que a rede era
uma olhada no seu currículo. Como eu já estava no mestrado, trabalhando esse viés da Geografia
3664 escolas, mais de 200 mil servidores, 1,7 milhão de estudantes.
Humana e Social, eles me apontam a vaga dentro da Diretoria de Modalidades e Temáticas
Especiais, dentro da Superintendência da Modalidade e Temáticas. Quando chego nessa Diretoria, Eu pensei, “isso é o mundo” e com uma diversidade gigantesca de atendimento. Tem o norte
a Superintende me fala o quanto gostou do meu perfil e, numa segunda reunião que a gente teve, de Minas muito diferente do sul de Minas. Tem regiões periféricas no colar metropolitano, que se
apresentei alguns pontos e experiências que eu tinha das escolas em que passei: “Nossa, mas eu diferenciam muito. Uma escola na favela do Cafezal é completamente diferente de uma escola da
acho que, com a experiência que você tem de gestão, seria muito bom você assumir essa diretoria”. favela da Pedreira Padro Lopes, em Belo Horizonte. Ou seja, tinha que ter esse mapeamento, olhar
Eu levei um susto, porque à época era o acompanhamento do Programa Escola Viva Comunidade para a parte prática e burocrática do administrativo. E, ao mesmo tempo, lidar com a luta ali dentro,
Ativa, o que significava administrar cerca de 1200 escolas em 47 regionais de ensino, olhando bem por permanência, por política pública de estado. Eram coisas que pensei: “Vai ser impossível casar
de perto, trabalhando quase de mão dada com esses diretores. Aceitei o convite e o desafio! isso tudo? Não tem jeito! Como faço isso?”.

Esse foi o primeiro desafio no administrativo da Secretaria de Estado. Olhando para mim, Foi preciso ir fazendo um miniexército, retomando alguns saberes, a mesma estratégia que
visivelmente, eu sou de esquerda. Não tem jeito. Mas isso aconteceu ao chegar em uma gestão que adotei na Escola Machado de Assis. Fui convencendo pessoas de que era possível fazer diferente,
não é de esquerda. Me lembro, como se fosse hoje, de uma conversa que tive com uma amiga e ser um bom gestor, um bom administrador público, mas com sensibilidade. Não precisaríamos
hoje minha comadre, Daniela Tiffany2, que é importante ter muito jogo de cintura, mesmo sem ter ser apenas números e planilhas para mostrar que éramos administradores. Dava para fazer as
cintura, para viver entre uma gestão e outra, compreendendo o que são demandas técnicas e o que duas coisas, e sem romantizar. Olhar para realidade e para os números, trabalhar com indicadores.
são demandas políticas. Caso contrário, a cabeça da gente é facilmente cortada. Mas importante ter esse olhar, inclusive, porque sempre chega o momento em que você tem que
escolher bem e essa escolha deve ser coletiva.
Foi difícil. Até então, eu estava em campos de gestão muito confortáveis para mim. Na
escola, estava conduzindo um grupo de pessoas, que resolveu “dar uma oportunidade à novata”. Fiquei nessa diretoria e foi muito bom, uma experiência muito importante para mim.
Estava trocando com eles, mas, ao mesmo tempo, imersa em uma rede de desconfianças sobre o Então, a gente passa por uma troca de gestão. Professora Macaé Evaristo, mulher negra, assume
meu potencial profissional, mesmo tendo o controle total. Agora era diferente, eu tinha pessoas a Secretaria Estadual de Educação e eu sou convidada a assumir essa Superintendência, pelo
hierarquicamente acima, que poderiam impedir qualquer tipo de atuação; então fui percebendo trabalho desenvolvido na diretoria. Ela queria alguém efetivo e não alguém indicado. Aumentou
que precisava atuar de outra forma. Mas eu tinha muita curiosidade de entender a administração substancialmente o meu trabalho e a minha responsabilidade. Eu tinha cerca de 70 pessoas para

2 Gestora pública também biografada nesta obra. 3 Currículo oficial do Ministério da Educação.

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coordenar internamente na secretaria, mais as 47 Superintendências Regionais de Ensino do outro desafio estava por vir, porque eu tinha que provar que essa alteração faria diferença positiva
estado, com cerca de quase 15 pessoas em cada uma delas. Ou seja, era um grupo considerável. nos resultados educacionais.

No processo, percebi que tinham pessoas muito potentes com discussões fora da secretaria. Então, montei uma equipe, construí um grupo de trabalho para acompanhar o Ideb dessas
Mas, dentro da secretaria, parecia que elas vestiam o uniforme, colocava o crachá e: “aqui eu sou escolas, para saber, de fato, se quando eu tenho uma unidade escolar com professores quilombolas,
servidor”. E, assim, a motivação naquele lugar era baixa. Quando eu pergunto para a secretária servidores da cantina, da secretaria, da direção da escola, essa identidade fortalece o aprendizado?
Macaé se de fato eu teria autonomia para dar uma reorganizada na equipe ou para conduzir E os resultados de Ideb de fato melhoram? Não deu outra, o engajamento foi tanto que os números
algumas pautas que até então eu não tinha visto na Secretaria Estadual de Educação, já com meus subiram absurdamente. Inclusive de matrículas na Educação de Jovens e Adultos. Então, a gente
quase 15 anos de escola, ela disse: “Tem sim. Basta fazer a proposta, apresentar aqui no setor de teve escolas quilombolas que tiveram resultados de Ideb mais altos que escolas urbanas e isso não
planejamento e a gente vai validando as ações e vendo os recursos”. é pouca coisa no campo simbólico e no campo do direito à educação.

Assim, comecei a trabalhar de perto com as modalidades, com a educação escolar quilombola, Isso me trouxe uma segurança administrativa e, é claro, acercado lugar que eu hierarquicamente
educação escolar do campo, educação escolar indígena, educação de jovens e adultos e fui ocupava. Afinal, eu apresentei uma entrega, pensada com a minha equipe. E era isso que importava,
percebendo que não conhecia a rede de educação de Minas Gerais. Esse público sempre esteve aqui, uma entrega com resultado positivo. O governador ou secretária poderiam anunciar naquele
mas a gente nunca falou deles aqui nas escolas urbanas. Por quê? Porque, de fato, algumas políticas momento: “As escolas podem optar por fortalecer a sua identidade, que está regulada por decreto,
nem os alcançavam. Eles não tinham os marcos regulatórios estaduais que poderiam garantir as e assim conseguem aumentar o Ideb”. Até o texto da manchete já estava pronto.
suas especificidades, ou seja, precisávamos de provocar o governo para a elaboração de políticas
Isso foi com um grande empenho da equipe; a gente precisava dar um destaque para essa
públicas “de Estado” e não de governo. Para que qualquer governo que passar por aqui não mudar
equipe, que cuidava das modalidades de ensino, mas não era vista. Era invisível, assim como eram
o curso do rio ou deixá-lo secar. Acho que essa foi uma entrada interessante, nesse momento que
essas escolas. Isso me fortaleceu enquanto rede dentro da própria secretaria e nas 47 regionais
eu tinha uma maior maturidade profissional. Consegui perceber que tinha que abalar um pouco as
de ensino. As regionais, que tinham essas escolas que subiram o Ideb, foram vistas até no jornal
estruturas, mas, ao mesmo tempo, não só no viés da militância, tinha que mostrar algo de concreto.
da cidade. Então, foi uma organização, um planejamento em cadeia, com resultado positivo para
Seria instituir marcos regulatórios que ficariam para sempre. Um deles, que eu tenho muito vários segmentos. E aí eu fui gostando disso: “Pôxa, esse negócio de gestão em rede é bacana,
orgulho de lembrar, foi instituir decretos e resoluções específicas, e escrever o texto da lei que hein?” Eu não podia ficar só na escola, mesmo.
colocou professores indígenas e professores quilombolas nas escolas. Você quer dar aula no
Na gestão atual, vem um novo formato, um governo novo, uma nova secretária que não era de
quilombo porque você acha legal, ótimo; mas a prioridade do professor para atuar nessa escola se
Minas; na reunião de posse desta secretaria, estavam lá os superintendentes da gestão anterior e
torna prioritariamente de direito dos sujeitos quilombolas.
ela pede para ouvir cada um de nós. Foi bem interessante, porque foi uma reunião que eu adentrei
E, com isso, a gente conseguiu instituir um marco regulatório e temos cerca de 88% de apreensiva. Era tudo muito novo, a gente saindo de um governo de esquerda e entrando num
professores quilombolas atuando nas escolas quilombolas hoje. Indígenas, 100%. Isso fez uma governo de direita, liberal. Mas como eu já tinha aprendido lá atrás com a Daniela Tiffany, de que
alteração no plano material e imaterial das mais de 500 comunidades quilombolas do nosso a gente tinha que passar pelas gestões enquanto administradores e ser estratégico – continuar
estado. Deu um certo reboliço à época, porque tinham servidores que estavam nessa escola há fazendo as entregas pautando da forma que fosse possível para que as coisas acontecessem –, dei
muito tempo, mas a professora Macaé bancou. Muitas queixas, do tipo: “Veio essa lei do nada meu jeito.
e quer tirar a gente daqui?”. Eu tive que construir uma narrativa: “Não estamos tirando o seu
Entrei com esse aprendizado para essa reunião, falei um pouco o que era a minha pasta. Eu
direito, você vai ter sua vaga garantida em outra escola. Mas essa mudança, especificamente, é
fui a única para quem a secretária, Júlia Santana, fez uma pergunta: “Qual o seu maior medo nessa
importante que aconteça”. Esse movimento histórico, de negação, silenciamento e o próprio
mudança?”. Eu falei: “o meu maior medo é ter de novo o que eu encontrei aqui quando cheguei,
racismo institucional não permitiam a criação da identidade dessas escolas. Esse fortalecimento
ausência de políticas públicas para esses segmentos populacionais, que parecem e são tratados
da comunidade conduzindo um espaço de poder, que é a escola, tem feito muita diferença. E aí, um

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Capítulo 7 - Iara Felix Pires Viana VIANA, Iara F. P.; SILVA, Matheus A. F.; MARTINS, Jessyka.

como uma minoria, mas quando você olha os números educacionais, vê que são maioria”. Encerrei Discriminações sofridas
a minha fala ali. Na semana seguinte, ela me chamou no gabinete e me fez a proposta, falando que a
Na Cidade Administrativa, logo quando assumi o cargo da Superintendência de Modalidades
minha visão estratégica era importante e que ela teria alguns enfrentamentos também para dentro
e Temáticas, eu tinha várias agendas, recebia muitas autoridades e, em algumas delas, o racismo
do governo nesse campo das minorias, das políticas educacionais; mas que eu tinha uma forma
foi latente. Eu e a equipe já tínhamos um combinado: quando todos estiverem na sala, a minha
muito suave de tratar as lutas, que na verdade não afastava as pessoas, mas sim, agregava.
secretária me chamava para dar início a reunião, sempre foi assim. Mesmo porque as nossas reuniões
Com isso, ela me fez a proposta: “Eu quero que você seja Assessora Chefe da Subsecretaria de têm sempre um volume grande de gestores. Quando eu chego na sala, vou para a mesa para fazer a
Desenvolvimento da Educação Básica”. A Subsecretaria de Educação Básica é o coração da Secretaria abertura da reunião e uma pessoa pergunta: “Que horas vamos começar? A Superintendente virá?”.
em termos de política, de realização da política pública, do monitoramento. Fiquei surpresa com Mesmo estando escrito na pauta o nome Iara Viana, no e-mail do convite: “Iara Félix Pires Viana,
a proposta, afinal, minha superintendência teve grande visibilidade e eu era um “rosto” da gestão Superintendente de Modalidades e Temáticas convida para a reunião...”; eu chego, me apresento,
passada. Mesmo ciente dos desafios, eu aceitei. Conversei muito com a subsecretária, que já era meu nome é Iara Viana, sou Superintendente…, e vem a pergunta: “Ah, a Superintendente não vai
uma colega de trabalho e que foi chamada para assumir esse lugar temporariamente, porque vir?”. Eram perguntas recorrentes, materializando o racismo institucional.
esperávamos alguém que viria do processo seletivo do Transforma Minas4. Acabou que a gente
Outro exemplo também recorrente, é quando vou fazer uma fala institucional, uma palestra
deu tão certo que a secretária dispensou o Transforma Minas e permanecemos nesta dupla, de
ou a abertura de uma formação e digo: “Estou aqui na mesa hoje representando a Secretária de
importante atuação, com um corpo de 200 servidores extremamente competentes na Subsecretaria
Estado de Educação...”. Quando eu termino a minha fala, as pessoas têm a necessidade de vir até
de Desenvolvimento da Educação Básica.
mim para dizer: “Nossa, como você fala bem, que bacana, eu fiquei encantada de ouvir você falar”.
Os desafios que me atravessam são de várias ordens. Eu sou uma mulher interseccionada, É como se a expectativa fosse tão baixa, que qualquer frase que eu falasse certinha já seria uma
sou uma negra e uma lésbica. E conversei sobre isso ao aceitar o cargo. Também confesso que eu grande novidade. Então, a gente se torna “a estrela do momento”, mas com esse viés racista. É
cheguei a pensar assim: “Será que é porque eles querem ter uma ‘cota’ lá no gabinete?” Cheguei a assim: “É tão impressionante você estar neste lugar e ainda falar bem”. Como se isso não pudessem
pensar isso. Mas não era, e a Secretária Júlia Sant’Anna me deixou tranquila. De fato, ela tinha feito caminhar junto a cor da pele, o gênero e ainda falar bem. Isso é inaceitável aos olhos racistas.
um mapeamento das pessoas e foi distribuindo de forma estratégica as posições em sua gestão, as
Esses dois momentos se repetem desde quando eu acesso os altos cargos de gestão. Exceto
que ela achava que funcionariam bem. A gente tem algumas questões políticas postas, é claro, mas
na escola, quando fui diretora. Mas quando eu adentrei a Cidade Administrativa nesses cargos
tem funcionado; o mais importante, permanece, há escuta.
mais altos, isso foi e é recorrente. Tratamos disso em alguns momentos dentro da equipe, porque
No campo profissional, para mim está sendo uma experiência interessante, porque é a quando ela começou a perceber isso, havia um certo incômodo. “Será que a gente avisa as pessoas
primeira vez que vivo de perto uma gestão política que não é a que eu tenha afinidade. Descobri antes? Será que a gente organiza para a Iara Viana não passar por isso?”. Eu orientei a equipe: “Não
que não ter afinidade política não pode inviabilizar a atuação de um servidor público. Retirar dá para silenciar. Não dá para chegar lá e dar um jeitinho: ‘gente, a Superintendente é uma mulher,
a lente romântica sobre as minhas ideologias partidárias foi um crescimento: “Olha, tem coisa uma mulher negra, então, não façam pergunta do tipo, ‘a Superintentende vai chegar ou não vai
interessante acontecendo. Tem uma organização estratégica com definições claras bem bacanas. chegar’”. Isso inviabiliza a causa, esconde o problema e vai ficar parecendo que está tudo bem e
Assim, acho que estou pronta para as mudanças que vierem, eu consigo fazer isso hoje”. Coisa que, estaria sedimentando o mito da democracia racial. Quando, na verdade, a pergunta vai ficar na
talvez, com imaturidade profissional, eu não conseguiria fazer. cabeça das pessoas, nos mesmos moldes.

4 Processo seletivo adotado pela gestão do governo Zema, iniciado em 2019, para ocupação de cargos de gestão e
assessoramento.

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Capítulo 7 - Iara Felix Pires Viana VIANA, Iara F. P.; SILVA, Matheus A. F.; MARTINS, Jessyka.

4. Os caminhos que trilhei até aqui: a construção da feministas negras. E o quanto esse referencial
bibliográfico me fez muita falta. Eu queria, na
identidade individual e coletiva
verdade, ter lido, em épocas anteriores, histórias
Chego a sentir dor física, quando eu falo do que foi preciso abrir mão. Porque é preciso abrir como a minha, por exemplo. Para que eu pudesse
mão para estar no lugar onde estou, no campo da gestão. De algumas coisas, inclusive de alguns ter exemplos a serem seguidos, para que eu
valores, talvez. Tem aprendizados, nesse cenário, mas tem dores também. É um mundo muito me sentisse um pouco mais amparada, não me
solitário, porque na hora que você sai do coletivo, do movimento, dessa base, é como se deixasse sentir sozinha. Se eu não tenho esse amparo,
de pertencer àquele grupo: “Ah, você é uma privilegiada agora”. É tão forte falar disso, quando você se não sou amparada bibliograficamente, não
faz parte de um coletivo, você está lutando para que as pessoas saiam daquele lugar e alcancem consigo avançar nos argumentos. É como se a
outro, inverter, mudar de lugar na pirâmide social. gente tivesse dificuldade de defender uma tese.
E essa dificuldade enfraquece a perspectiva de
Então, você acaba abrindo mão de algumas coisas. Inicialmente, estar em coletivos de luta, porque é pelo convencimento, não tem
movimentos negros era um valor importante para mim. Hoje percebo que onde eu estou consigo outra forma. Eu preciso deixar negritado que
fazer muito mais para este coletivo. Se eu tivesse que abrir mão do cargo de gestão para permanecer existe uma diferença entre brancos e negros,
na base, eu não conseguiria minimamente incomodar as estruturas. Mas não é 100% do movimento e que é essa diferença que precisa ser visível
que pensa assim. Tem uma parte significativa que concorda comigo e fala: “Iara, vai, independente e respeitada. Não há uma luta por igualdade,
de qualquer coisa, acho que você tem que aceitar o convite, você tem que estar, continue nos ninguém quer ser igual a ninguém. É pela
representando e nos auxiliando nesse processo, é mais importante que você esteja lá. Que pessoas diferença que a gente precisa lutar. Mas, para
assim estejam lá”. E tem aqueles que vão continuar acreditando que você embranqueceu, inclusive. comprovar isso, eu preciso de ciência, de um
É como se destruísse todo aquele período que você caminhou junto e é muito difícil continuar referencial bibliográfico, que ampare essas
dizendo para essas pessoas que, ainda assim, estamos juntos. Talvez mais junto agora, porque se eu discussões e que não estão nos referenciais
não estiver lá, não adianta, esse gabinete não vai conversar com a base. Não serão as passeatas na canonizados.
Praça Sete que vão propor, reescrever as alterações nos parágrafos, alíneas e incisos das resoluções
e decretos das políticas públicas. E é a narrativa da mulher negra que
traz isso para gente; porque é a partir dessa
Nesse sentido, da construção da Iara Viana que sou hoje, fica demarcada uma transição de construção coletiva que vão se mostrando os
entrada; eu sabia que teria desafios, mas não que seriam tão dolorosos. Mas são dores necessárias. fatos históricos, a vida real. Vou fazer uma
Olho para mim hoje com uma maturidade muito maior e mais segura para falar disso, inclusive, comparação que parece que está fora, mas
porque eu evitava. No meu Lattes está: “Iara Viana, Movimento Social Negro de Minas Gerais”. Eu não está. E não serei romântica. Por exemplo,
evitava falar disso, porque pensava que não pertencia mais a um coletivo. Mas não é, eu continuo Frantz Fanon, em Peles Negras, Máscaras
sendo parte dele. Mesmo porque o que chega primeiro é a minha cor da pele. Eu chego primeiro Brancas. Fanon, um homem negro martinicano,
com a minha cor; antes de abrir a boca, eu sou mulher negra. Querendo ou não, ainda sou desse ao escrever sobre as mulheres negras, continua
coletivo e o represento onde estou. Então, entro frágil e me fortaleço no processo. A duras penas.
Elaborando e reelaborando estratégias, diariamente. Basicamente, todos os dias uma estratégia.

Vivemos um racismo epistêmico, eu acho que ele é um dos mais graves. É por isso que só Iara na abertura da Caminhada pela Igualdade Racial, em
agora, há muito pouco tempo, que se consegue conceber a importância e a potência das narrativas 2016, na Cidade Administrativa de Minas Gerais.
Crédito: Acervo Pessoal

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Capítulo 7 - Iara Felix Pires Viana

sendo homem. Tirei dele o recorte racial, porque ele vai falar da mulher com a masculinidade que Maria do Carmo Ferreira da Silva
o atravessa. E é onde Fanon, que foi um excelente escritor e estudioso das relações étnico raciais, Leticia Godinho
que nos ensina muito sobre essas questões raciais, escorrega. Vale a pena essa leitura! Renata Souza-Seidl

Meu grande desejo era que, de fato, a gente conseguisse romper com o silenciamento
dessa discussão nas escolas e nos gabinetes, romper o racismo epistêmico, que esse referencial
bibliográfico estivesse disponível a todos e a gente conseguisse fazer a leitura crítica de todos eles.
Os sinais de apagamento da produção negra são evidentes. É raro que as bibliografias indiquem
mulheres ou pessoas negras.

MARIA DO CARMO
Que a gente conseguisse fazer uma leitura para além das escrituras, como diz Paulo
Freire. Que as pessoas conseguissem perceber as nuances arquitetadas pelo racismo. Enquanto
educadora, é tentar desconstruir a formação dessas pessoas. E é um processo mais difícil esse o do
convencimento, porque precisamos ter elementos consubstanciais para tal.

Um legado que eu gostaria de deixar seria uma educação que respeitasse e compreendesse
a diversidade de verdade. Ter mais pessoas negras e não negras, defendendo a luta antirracista,
com argumentos científicos, para desvelar uma pedagogia das ausências e assim, introjetar isso
FERREIRA DA
SILVA
tudo como um ato político emancipatório. E, por último, parafraseando um trecho do poema de
Cristiane Sobral5, quero deixar provocações, reflexões para nossas jovens, com gritos latentes de
“não mais lavar os seus pratos!”. Deve ser paradigmático o anseio por liberdade, por denunciar
a opressão de classe, de raça e de gênero. Do mesmo modo que somos rechaçadas toda vez que
assumimos papéis que para nós não foram pensados, desejo que essa naturalização seja varrida e
que mais meninas e mulheres negras ocupem os lugares de poder. 1. Origens: uma família de retirantes
No campo social e afetivo, desejo ter a minha família socialmente construída. E legitimada
A minha origem é do norte de Minas Gerais, Montes Claros, conhecida,
judicialmente. Temos uma certidão de casamento, uma certidão da nossa filha Ayala Vitória Pires
na década de 1950, como a princesinha do Norte de Minas Gerais; lá passei
Viana e do Àile Pires, com as duas mães, o meu nome e o nome da minha esposa, os avós maternos;
a minha primeira infância, até os 4 anos de idade. Meu pai é de Coração de
foi muito significativo para os nossos filhos esse registro. Então, eu acho que verbalizar esse direito
Jesus, bem próximo a Montes Claros, e minha mãe de Pirapora, também no
e publicizá-lo como fizemos – se tornou até filme, Encontro das Águas6 – foi e é fundamental.
norte de Minas.

Uma parte de meus avós trabalhava em fazendas, em Pirapora, região


de Montes Claros. Eu me lembro que a maioria dessas fazendas era dos
Paculdinos, e que inclusive, um deles, era padrinho do meu irmão mais velho.
5 Teatróloga e poetisa negra, foi a primeira atriz negra graduada em Interpretação Teatral pela Universidade de
Brasília. Estudou teatro no SESC do Rio de Janeiro, em 1989; montou a peça Acorda Brasil, em 1990. Atuou em diver- Nós temos fotos de minha avó quando trabalhava ainda nessas fazendas,
sos espetáculos teatrais e no cinema. É mestra em Artes (UnB), tendo publicado inúmeros artigos e livros. Foi crítica com lenços estilizados na cabeça. Eram aqueles lenços que amarrava no
teatral da revista Tablado e é membro da Academia de Letras do Brasil - seção DF.
estilo africano, e ela bem negra, azulada, olhos verdes, aquele verde-escuro.
6 O documentário Encontro das Águas tem a direção do Mestre Negroativo, foi realizado por Flávia dos Santos e
Zaíra Pires, produzido por Divindade Cultural e teve o patrocínio da Avon.

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Capítulo 8 - Maria do Carmo Ferreira da Silva SILVA, Maria do Carmo F.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Segundo alguns dos nossos antepassados, o pessoal mais ligado à minha avó veio da África. pessoal mais da zona rural mesmo e alguns peões e retirantes; da parte mais jovem, hoje, alguns
Antigamente, as pessoas tinham o hábito de andar muito descalças. E me lembro dela também no já cursaram universidade, como eu. E alguns primos e sobrinhos, como dentista, médico, geógrafo,
pilão, também temos fotos. Com ela, aprendi a pilar arroz. Ainda do lado da minha vó – não sei se professor, biólogo, matemático e historiador e relações humanas.
o bisavô ou o tataravô – o chamávamos de vovô Felipe. Ele veio de Portugal e, por isso, a gente tem
Meu pai trabalhou, um tempo grande, com exibição de filmes. Ele era operador cinematográfico,
o sobrenome Silva.
então ele andou muito nessas regiões de Minas Gerais, principalmente norte e nordeste de Minas.
Do lado do meu pai, a matriz é indígena; minha bisavó foi apanhada no laço e, ali na região, Tanto é que eu aprendi com ele a fazer reparo nas películas; antigamente, os filmes, para serem
todos eles eram tidos como bugres1. Minhas primas e primos que moram em Montes Claros são exibidos, tinham que ter duas, três máquinas, pois na hora que uma cortava a fita, a gente tinha
negros, mulatos, com cabelo escorridinho. Em Pirapora muitos eram conhecidos ou chamados de que dar sequência. Eu me lembro que essa operação era feita com gilete e o durex. Naquela época,
“Roxinhos. Agora, na quinta geração, vieram alguns com a pele mais clara ou a pele mais escura, não era mais o cinema mudo, já tinha fala, já tinha gravação. Aprendi isso com ele, e aí, vim a tomar
com o cabelo escorrido e, outras vezes, com os olhos mais claros. É a miscigenação, que era e gosto por obras cinematográficas. A gente começou também a curtir um pouco de cinema junto
sempre foi muito comum, principalmente nessa região da Bahia e norte de Minas. com meu pai. Morando em Belo Horizonte, às vezes, quando minha mãe tinha que fazer alguma
coisa, ele nos levava para o trabalho. Minha mãe sempre foi do lar, já lavou muita roupa para fora,
A minha família se mudou para Belo
fazia comidas de encomendas, e sempre nos levava também.
Horizonte nos anos 1950, muito em decorrência,
já naquela época, de você ir para cidade grande Nós, na época, éramos três irmãos nascidos em Montes Claros e outras duas irmãs nascidas
tentar a sorte, e sair do período de seca. Na em Belo Horizonte. Aí, em Belo Horizonte, a gente começou a estudar. Foi onde eu fiz o primário.
época, eu tinha 4 anos de idade. Mas eu ainda
A capital Belo Horizonte, palco da infância e dos primeiros anos de
tenho parentes tanto em Pirapora quanto em
estudos
Montes Claros, e na região do entorno, próxima
à região de Francisco Sá e Grão Mogol e também Quando a gente veio de Montes Claros para Belo Horizonte, meu pai trabalhava em uma
São Paulo, Brasília e Portugal. Procuramos companhia de cinema. Como ele era considerado comerciário, eu fiz o Jardim de infância no Sesc2.
manter uma boa relação familiar, apesar da Então a gente tinha um Jardim de infância, que era até ali na Rua Padre Rolim, próximo à Avenida
distância física. Eu tenho tios ainda vivos do Brasil. Depois, eu e meu irmão mais velho fizemos o primário no grupo escolar Dom Pedro II, em
lado paterno. Do lado materno, não tenho mais frente à Faculdade de Ciências Médicas. Ainda me lembro o nome da nossa professora de religião
nenhum tio ou tia vivos, somente primos. Pode da época, a Dona Esperança.
ser que tenha, mas é aquela questão, às vezes o
Nesse período, a gente precisava ajudar na família, cada um tinha que fazer alguma coisa. Eu
pessoal saía para tentar a vida noutros lugares.
ajudava a tomar conta de um bebê, filho da minha primeira professora do primário que era vizinho
Como uma tia minha, irmã mais velha da minha
nosso, e a família era de Raul Soares. Então, eu ajudei a tomar conta do filho da minha professora
mãe, que foi para Brasília e a gente nunca teve Maria no dia da sua primeira posse, com sua mãe, Lucy.
Colégio Nazareth. Araçuaí, janeiro de 1997. do primário. Eu já estava na faixa de sete para oito anos; o jardim de infância, eu me lembro, foi
notícias dela. Essa minha tia, que é dada como
Crédito: Acervo Pessoal com 5, 6 anos.
desaparecida, tinha os olhos cor de folha seca
e era chamada de tia Preta. Então, a minha Fiz catecismo na Igreja Santa Efigênia, próxima ali do quartel do BG3. Onde hoje é aquela
família é um pouco disso aí: os antigos eram o área hospitalar, ali tinha uma grande praça, a praça 13 de Maio, onde a gente ia todos os dias para

1 Bugre é uma denominação depreciativa dada a indígenas, por serem considerados não cristãos, não civilizados 2 Serviço Social do Comércio.
pelos colonizadores europeus. 3 Batalhão de Guerra, unidade do exército brasileiro.

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Capítulo 8 - Maria do Carmo Ferreira da Silva SILVA, Maria do Carmo F.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

brincar. Quando não era lá, era na praça do BG, onde inclusive tinha uns balancinhos para a gente No mesmo bairro, nossa “igreja” era debaixo de uma árvore, era nossa capelinha de Santo
brincar e também no Parque Municipal. A primeira comunhão foi na igreja da Boa Viagem. A minha Antônio, onde a gente fazia de tudo ali: bingo, concurso para poder arranjar dinheiro para construir
infância, até os anos 1960, 1965, eu passei aí nessa região. a igreja e tal. E era um bairro onde todo mundo se conhecia, pelo menos as famílias mais antigas.
Quando chegava semana santa e natal, até as comidas eram trocadas, divididas. O que um fazia de
Quando a gente saiu de Montes Claros para ir para BH, nós moramos por um tempo no bairro
diferente, sempre levava para o outro, e até as compras eram coletivas. Quando o Ceasa8 foi criado,
São Lucas, também, na região da Santa Casa, com a madrinha do meu irmão. Ela era farmacêutica
a gente pegava aquele ônibus da Ressaca; ficava olhando a hora que o ônibus ia passar lá em cima
e funcionária pública e nos acolheu por muito tempo em Belo Horizonte. Aí a gente se mudou para
na BR, de onde a gente morava, e falava: “Lá vem o ônibus!”. Aí corria todo mundo com sacos,
um barracão que era nosso. Em época de chuva, todo mundo tinha que se juntar numa cama só,
carrinho, tipo carrinho de pedreiro, que a gente levava – porque, como era tudo muito longe, muito
para poder fugir das goteiras. Mas no tempo de calor era bom, porque você ficava olhando a lua e
difícil, você fazia a compra para o mês. E aí você juntava, para ficar mais barato para todo mundo.
as estrelas. A partir de 1965, a gente conseguiu comprar a casa onde a família mora até hoje, que
Por exemplo, comprávamos um saco de laranja, depois a gente chegava e fazia as divisões, cada
é ali entre o Glória e o Alípio de Melo, no bairro São Salvador. Ela foi reformada, já, várias vezes.
um pagava aquilo que realmente iria consumir. Então, tinha muita coisa boa, mas também muito
Mesmo em Belo Horizonte, a gente teve que ir buscar água em mina. Onde hoje é o Alípio de sofrimento, como a questão da água, que não tinha, nem esgoto. Porque, às vezes, dizem assim:
Melo, na época era uma grande fazenda, onde a gente pegava lenha. Eu me lembro que eu sabia “Moro na capital”. Mas a gente na capital sofre muito. A gente vê isso, inclusive nos noticiários.
fazer o feixe de lenha, mas na hora de amarrar, não tinha força. Ali onde é o shopping Contagem, era Ainda tem muita gente que sofre com a questão da falta d’água, da falta de esgoto, de saneamento,
tudo fazenda de gado, Contagem das Abóboras. Na região existiam muitas famílias congadeiras4 e apesar de todos os avanços.
folias de reis5.
A nossa família hoje, em Belo Horizonte, já não temos mais nosso pai e nossa mãe. Somos três
A mina onde a gente buscava água para beber e lavar a roupa era na região da Ressaca, ficava irmãos, apenas, meu irmão mais novo, a minha irmã caçula, que também já está com 60 anos, que
a quase 10 km de onde a gente morava. E era uma festa nesse período, a vizinhança toda se juntava, é a “capitalense”9 da família, e eu; e mais duas sobrinhas. A minha irmã e o meu irmão mais velho
tinha dia certo para as mulheres irem lavar roupa. Aí você fazia a rodia6. Com as bacias na cabeça, ia se casaram, e cada um deles tem uma filha só. Solteiros temos eu e o meu irmão do meio. E a casa é
com a trouxa de roupa; tinha que levar comida, água e fazia aquela festa. Eu falo festa, porque tudo a mesma desde os anos 1960. A caçula da família Deus levou prematuramente com 3 dias de vida.
para criança é motivo de festa! Na hora de comer era a melhor parte. Eu já comi muito de marmita, Minha mãe vivia lavando roupa pelas casas e pegava muita friagem na época da gravidez.
e acho que dividir marmita é a melhor coisa que tem, porque um come um pouco da comida
A vida escolar e o racismo: sonhos de infância que foram sofrendo
do outro. Quando a gente era pequena, tinha as gamelas, da nossa herança de matriz africana e
retaliações
indígena; nas gamelas punha-se a comida e as avós faziam capitão7. Tinha gente que dizia assim: ai,
que nojo! Mas as avós faziam capitão para dar para gente e quando a gente já sabia comer sozinho, Eu terminei o primeiro grau no grupo escolar São Salvador, no bairro Glória, onde meu irmão
tinha as colheres; as mães davam a colher para cada um e dividia a comida na gamela. mais novo também estudou. A minha irmã caçula já estudou no Colégio Polivalente. Naquela época,
a gente fazia o exame de admissão; os pobres tinham que passar por esse processo e você tinha que
estudar muito, porque senão não conseguia as bolsas de estudos. Então desde aquela época, você
4 Congadeiras são as pessoas que dançam e organizam a manifestação cultural do Congado. É uma mistura das
tinha que provar que era bom. E, às vezes, a gente não tinha o dinheiro para poder fazer as provas;
festas trazidas pelos africanos escravizados com a religiosidade cristã colonial. Suas origens remontam a um rito
africano, no qual os súditos faziam um Cortejo aos Reis Congos, a fim de agradecer os seus governantes. às vezes, tinha professores que, quando você se destacava um pouco, te ajudavam nesse sentido.
5 A folia de Reis ou Reisada é uma manifestação festiva, católica, comemorativa da festa religiosa da Epifania do Eu me lembro do meu irmão caçula querer fazer a prova e chorar, porque não tinha como a gente
Senhor, que celebra a Adoração dos Reis Magos ao nascimento de Jesus. Nesse festejo, os participantes visitam as ca- pagar. Eu fiz, depois até do científico, com a ajuda de uma professora, que a gente chamava de Gugu,
sas de porta em porta com sua cantoria, lembrando a viagem dos Reis Magos ao menino Jesus. Tem origem histórica
egípcia, e foi adotada na Europa pelos romanos. Maria de Lourdes, que morava em frente. Uma professora negra, que era pianista já naquela época,
6 Apoio feito de tecido ou cipó do mato para a cabeça, escorando feixe de lenha ou bacia com roupas.
7 Forma de amassar a comida com as mãos dando formato de um pequeno bolo, que era dado para as crianças 8 Ceasa - Centrais de Abastecimento de Minas Gerais S.A.
comerem. 9 Nascida em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais.

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Capítulo 8 - Maria do Carmo Ferreira da Silva SILVA, Maria do Carmo F.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

nos anos 1960. Foi graças a ela que eu consegui fazer o meu exame de admissão, e aí fui seguindo. É era muito pequena, ou porque as mãos eram pequenas, que não dava para eu tocar piano, que
sempre uma história assim, de um ajudar o outro, alguém vê uma forma de te ajudar. E me lembro piano era caro, e que balé era só para os filhos de quem podia. Eram coisas assim, que você fala:
que, ao passar para o científico, quando fiz o curso técnico de práticas comerciais, eu ia muito nas são sonhos de infância e que depois, ao longo da vida, você vai vendo o significado desses sonhos
rádios para poder pedir livros, na rádio Inconfidência e na Itatiaia. Nossa, era caro o livro de física ou dessas ações; que você foi tendo retaliações ao longo da vida. Quando são coisas ditas por
da Beatriz Alvarenga! Tinha aqueles livros que você não dava conta nunca de comprar; então ia crianças são “coisas de criança”, é tranquilo. A questão é quando vem dos mais velhos para com os
lá para o Sebo, no Amadeu, ali na rua Tamoios, ou na Galeria do Ouvidor, para poder comprar. E a menores, sem a menor preocupação, para de te deixar no seu lugar, te falar: “olha, esse aqui não
gente sempre fazia trabalho em grupo, juntava os que menos podiam e comprava os livros. Cada é o seu lugar”. É aí que você tem amigos de infância que são amigos ricos e brancos, e que tem os
um dava um pouquinho. Quando chegava o final do ano, a gente sorteava o livro, para quem saísse, amiguinhos pobres e negros. E aí você vai buscando conquistar ou vai provar que você pode estar
saiu. Mas era uma forma da gente se auto ajudar para estudar. Eu nunca fui de ficar muito quieta, naquele lugar sim.
sempre batalhei, como tantos colegas da minha época, a gente corria muito atrás, era literalmente
correr atrás do prejuízo. Se você quisesse vencer, tinha que ter alguém que fosse com sua cara 2. Trajetória universitária: dois cursos superiores, o
ou alguém que descobrisse que você tinha talento, vamos assim dizer. Aquela questão mesmo da trabalho paralelo e outras experiências
empatia. E a gente precisou de muita ajuda para poder estudar. Tanto é que apenas eu, entre os
Através do emprego do meu pai, que foi também muitos anos jornaleiro do Diário de Minas,
irmãos, consegui fazer o curso superior.
eu consegui bolsa de estudo para fazer o científico integrado. Eu fui fazer um curso no colégio Vila
A minha experiência de racismo nesses espaços não é muito diferente. A gente sofria bullying Rica, no bairro Sion, onde já tinha curso preparatório para o vestibular, que era o Promove. Logo
já lá naquela época. Onde tem o ser humano, estão as relações, as confusões, e qual é o menino de em seguida, eu passei no vestibular, fiz um ano de matemática na Fafi-BH11 e depois fui para a PUC
escola que fica quieto quando vê que o outro é diferente? É também muito daquilo que eles vivem Minas12, antigamente, a Universidade Católica de Minas Gerais.
em casa. Muitas vezes, chegava em casa chorando, mas você tinha que aprender, e os pais eram
Por sinal, eu fiz 2 cursos superiores. Já aqui no Vale do Jequitinhonha, eu fiz Direito em Teófilo
educadores no sentido literal da palavra. A gente era educado naquela época a não levar nada para
Otoni. Era aquela saga de sair daqui de Araçuaí no final de semana para Teófilo Otoni no meio da
casa que não fosse seu, a não levar desaforo. Então a gente também ajudava a fazer bullying com
semana, e voltar no sábado. Eu fiz Direito, muito por necessidade, já nos anos 1970, de entender
os outros. Chamavam a gente de “perna de saracura”, porque as pernas eram muito fininhas; ou
todo aquele processo de “desconstrução de cidadania”, do nosso povo. Foi quando começou
“grilo”, “bonequinha preta”, “sai pra lá, mosquito!”, “cabelo de pixaim”, e por aí afora. Aí, às vezes,
a efervescência das Comunidades Eclesiais de Base e de se lutar pelos direitos, da garantia dos
na hora da comida, quando tinha as sopas e vinham brancas, a gente falava que era “macarrão da
direitos das pessoas, principalmente os mais excluídos, e principalmente da zona rural. Então, a
Santa Casa”. Era famosa, para quem lanchava na escola, que era pobre – quem tinha mais condição
gente tinha a necessidade de conhecer um pouco mais. Então Direito, na época com esse intuito,
não precisava do lanche da escola, levavam os próprios lanches. Aí, quando tinha algum colega
de conhecer um pouco mais a realidade, de saber lidar com as leis e discutir um pouco com mais
branco, o pessoal ficava dizendo: “olha o ‘macarrão da Santa Casa’”.
profundidade a questão dos problemas que a gente vivia. Eu amo a profissão que escolhi, que é
Para nós era um orgulho muito grande quando comia o pão com carne moída, pão com Serviço Social. Por mais conflitante e por mais que seja uma profissão em que você não fica “rica”,
“mortandela”, tomava Crush10. Era chique, eram coisas que você nem tinha todo dia em casa, só mas você se realiza enquanto ser humano, enquanto pessoa, enquanto cidadã.
quando era aniversário. Essas coisas de criança que a gente tem uma boa lembrança. Nesse sentido,
Como eu pagava a faculdade naquela época? Era tudo pago. A gente tinha alguns serviços, que
era assim também inclusive na questão do racismo, porque era uma coisa muito pura, coisa de
a PUC sempre teve, para atender o aluno mais necessitado. Mas o meu rendimento era tão baixo, tão
criança; mas quando você vai crescendo, vai vendo que não é bem assim, aí é diferente.
baixo, que nem se encaixava nos critérios para receber os apoios. Então tinha que estudar como?
É depois que você percebe que a forma de tratamento tem um significado, por exemplo, eu
era doida para fazer balé e tocar piano. Aí eu recebi toda justificativa para desistir: porque eu
11 Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (Fafi-BH).
10 Marca de refrigerante. 12 Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas ou PUC-MG).

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Capítulo 8 - Maria do Carmo Ferreira da Silva SILVA, Maria do Carmo F.; GODINHO, Letícia; SOUZA-SEIDL, Renata.

Tomando empréstimo no banco. Os nossos colegas também me ajudaram muito, vários deles me Foi aí que caiu como uma luva para nós que trabalhávamos e estudávamos o projeto Rondon14,
avalizavam para poder pegar empréstimo no banco, porque já conheciam a nossa história. porque a gente tirava um mês de férias no trabalho e ia fazer o estágio. Era a forma que a gente
tinha de garantir o emprego e o cumprimento das horas de estágio obrigatório. Então, como nada
O que eu aprendi na Fafi-BH serviu de base pra PUC. A gente também encontrou lá pessoas
é por acaso, eu vim parar aqui no Vale do Jequitinhonha, fazendo projeto Rondon.
que nos ajudavam. Até, assim, ajudavam levando roupa: eu já usei muita roupa dos outros, sem
nenhuma vergonha. A roupa que eu tinha era a que ganhava para poder ir para faculdade. Às vezes, Foi aí que eu recebi logo a proposta da Cáritas Diocesana15 para trabalhar aqui no Vale do
dividia o lanche. Então, me descobriram indo a pé, e falaram: “não, nós vamos ajudar você a ir Jequitinhonha. Então, mais uma vez, nessa vinda pra cá, esses mesmos colegas de trabalho da
de ônibus”. Eu me transferindo para a PUC; já tinha passado, também, num processo seletivo do Coordenadoria de Serviços Sociais Urbanos, me ajudaram a fazer o enxoval para eu vir. Até hoje
Estado, e essas pessoas me ajudaram. Eu fiz a faculdade de Serviço Social e, na época, era a única tenho coisas desse enxoval. Com isso, quero falar das coisas acontecem na vida da gente: você não
negra da turma. é sozinho, ou o “eu sozinho”, ele pode, mas ele pode muito pouco. Agora, coletivamente falando, a
gente pode muito mais.
3. Trajetória profissional e caminhada na militância politica
A gente sempre trabalhou com aquela convicção de que você não “trabalhava para”, você
Antes de eu ir para a faculdade, por necessidade, eu estava decidida a ir para o corte de cana “trabalhava com e pelas pessoas”, em determinadas situações. A gente levava muito a sério a
em São Paulo, onde a gente tem vários conhecidos. Naquele negócio de “vai ou não vai”, eu acabei questão das teorias; então tinha um tal de Gramsci que mexia com a cabeça da gente, e que era
fazendo um processo seletivo no Estado, na antiga Secretaria de Estado do Trabalho, Ação Social importante a questão do “intelectual orgânico”. Então, eu comecei a trabalhar com a questão das
e Desportos. Tudo funcionava ali na praça da Liberdade. Uma tia minha trabalhava lá, ela falou: associações comunitárias rurais, com as associações de bairro. Como eu trabalhava ligada à igreja,
“Vai ter vaga lá, você podia fazer. Não vai para São Paulo, não”. E acabou que passei. A prova incluía com a Cáritas, a gente trabalhava muito também a questão da juventude, mulheres e crianças,
datilografia, aí eu fiz datilografia pela UMES – BH, a União Municipal dos Estudantes Secundaristas clubes de mães e creches. Na época, a igreja tinha feito a opção preferencial pelos pobres, então
de Belo Horizonte, que tinha uma escolinha de datilografia que funcionava ali no Edifício Maletta13. tinha toda a questão das comunidades rurais, é quando começa a surgir a CPT, a Comissão Pastoral
Quando eu fui fazer a seleção nos anos 1970, eu passei em primeiro lugar. Depois, eu trabalhei no da Terra, a Comissão da Juventude, a Pastoral da Criança. E aí, a gente dava apoio também aos
curso de supletivo Champagnat, na rua Curitiba. Aí eu me tornei uma das datilógrafas da Secretaria movimentos sindicais. Então, diga-se de passagem, a igreja teve um papel muito significativo na
Estadual. Graças a essa entrada na Secretaria, pela minha seleção, já fui trabalhar inicialmente vida do nosso povo, no Brasil como um todo, mas em especial nessa região. E, principalmente,
no gabinete do Secretário, ajudando a Chefe de Gabinete. E quando tinha os trabalhos sigilosos, quando começam as primeiras organizações para formar os sindicatos, é também pela ação da
vinha sempre para a gente fazê-los. E, algumas vezes, a gente trabalhava tanto, que passava a igreja. Então, a gente assessorava sindicato, e de certa forma, nos anos 1970, 1980, começa a surgir
noite trabalhando e eu já ia direto para a faculdade de manhã. Quando a secretária precisava de o PT. A gente ajudou nessa construção, como todo bom intelectual orgânico, que via a necessidade
alguém para ajudar, e não tinha auxiliar, eu me oferecia para ficar lá e ia aprendendo o serviço. Eu e a importância da transformação das pessoas, e que via a situação que o povo vivia naquela época.
me lembro que depois fui trabalhar como coordenadora de Centros Sociais e Urbanos, dentro da Mas a gente fazia isso mais pela causa, não só pelo entusiasmo, mas pela vontade e necessidade da
diretoria da Assistência Social, mexendo exatamente com essas questões das pessoas inseridas das população que era de extrema pobreza e injustiças sociais (muitas famílias agregadas que quando
comunidades. Então, minha convivência com o social é desde o início dos anos 1970.

Na época de fazer estágio, foi um problema: como é que você ia trabalhar 8 horas por dia e
14 Projeto de extensão do Ministério da Defesa, para instituições de ensino superior. Os extensionistas desenvol-
ainda tinha que fazer estágio? O estágio nem sempre era remunerado, então a gente optava por vem ações para a produção de benefícios para as comunidades, sobretudo relacionadas à melhoria do bem-estar
fazer estágio aos sábados, mas os que tinham no sábado, geralmente eram nos hospitais, sob a social e a capacitação da gestão pública. Tem como objetivo também consolidar no estudante universitário brasileiro
o sentido de responsabilidade social, coletiva, em prol da cidadania, do desenvolvimento e da defesa dos interesses
forma de plantão. Então é uma área em que eu também tenho muita identidade, a área da saúde.
nacionais, e proporcionar-lhe conhecimento sobre a realidade brasileira.
15 A Cáritas Brasileira foi fundada em 1956, a partir da ação de Dom Helder Caâara, então Secretário-Geral da Con-
13 O Conjunto Arcângelo Maletta é um edifício histórico localizado no centro de Belo Horizonte, construído sobre ferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Promove ações de solidariedade voltadas ao atendimento a comuni-
o Grande Hotel, no ano de 1957. dades afetadas por desastres socioambientais ou em situação de vulnerabilidade.

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saíam de suas terras, saíam sem direito algum e doentes). Era um compromisso você ajudar, e sem Então, chega esse momento em que você fica entre a cruz e a espada e você tem que ceder
aquela preocupação de ser protagonista. aos anseios do momento. No momento de selar a identidade com o povo do lugar, com o povo local,
de trabalhar os compromissos, teve aquele discurso: “você não é desse lugar, você é de fora”. Aí a
Quando fazia estágio, você ficava 30 dias; depois podia se inscrever novamente, e eu
gente começa também a ter que recompor o pensamento, o jeito de ser, de fazer e de ver o mundo,
continuei a vir aqui mais vezes. Porque logo em seguida, eu fiz a cadeira16 de Monitoramento do
e começa a se perceber não como cidadão de um lugar, mas do mundo. E é do lugar onde você está
departamento do Serviço Social aqui. Então, eu vinha praticamente uma vez por mês aqui para
nesses momentos, aí percebe que você tem direito de escolher e de estar onde lhe aprouver. Você
acompanhar as nossas colegas, também estagiárias. Essa ligação foi ficando mais forte, e também
percebe que, por mais que não tenha o nascimento geográfico, tem a identidade que foi construída.
por causa da igreja, que sempre teve um papel significativo na área social em todos os lugares, seja
E começa a querer entender o que é ser brasileiro. Ser brasileiro é isso. Então, quando vêm falar
com a questão das primeiras creches, os primeiros hospitais e primeiras escolas de formação.
comigo que eu não sou daqui, falo: “Eu estou no Brasil, sou brasileira e o território brasileiro é
Então, com esses projetos, em que eu fiquei fazendo parte da Cáritas, foram 113 projetos imenso, e se é aqui nesse lugar que eu resolvo minha vida, que eu pago meus impostos, que é onde
realizados, a maioria deles voltados para a questão da agricultura, sobretudo sobre a questão da eu me relaciono enquanto cidadã de direito e de fato… Hoje eu tenho o título de cidadã honorária,
água na região. Já naquela época eu não me via morando aqui definitivamente e por isso até os anos que me foi concedido – mas precisaria dela para provar que eu tenho direito a ter direitos? Então,
1990, eu nunca tive a preocupação de mudar o meu título. Sempre tinha um motivo voltar para isso gera todo um filosofar e refazer de pensamentos, de conceitos e preconceitos. Então, ao invés
casa, em Belo Horizonte, para ver os amigos, para ver os parentes. Você não larga da noite para o colocarem em mim o sentimento de inércia, de não pertença, a gente trabalhou isso pelo lado
dia uma parte de você. Mas aí chega um momento em que você tem que deixar uma parte de você. E positivo e chamou as pessoas para começar a ter outro olhar, outro pensamento, outra maneira de
conversando com as pessoas, o pessoal vinha falando: “Você tem que se candidatar, a senhora tem ver. São tantas as pessoas que agem como se não fossem do lugar, e que usa o lugar em benefício
que nos ajudar nisso”. Mas, até os anos 1980, eu ainda consegui fazer algumas recusas. próprio…!

Nos anos 1980, a gente fez a nossa primeira construção, tivemos o nosso primeiro vereador Em 1992, nós fizemos a disputa para a prefeitura, com 4 candidatos e não fomos eleitos.
pelo Partido dos Trabalhadores em Padre Paraíso, Zé Gomes. Depois, aqui em Araçuaí, o Manoel Porém, há quem diga, que nós tínhamos vencido as eleições, só que não havíamos levado, porque
Pinheiro, da Comunidade das Tesouras, que deixou como legado a nossa tribuna popular, que ainda imperava na época o coronelismo e os acordos, e a gente não tinha muita experiência de
existe até hoje na câmara. Depois, vem Itinga, que foi nossa primeira cidade a ter um prefeito pelo controle nas eleições. A gente tinha notícias de urnas que subiam e desciam por cordas no prédio do
partido, meu colega de trabalho Solano de Barros, que trabalhou comigo aqui na escola. fórum, de título retido para as pessoas pegarem depois das eleições e de benefícios acordados, até
na mesa se mudava voto, na hora mesmo da conferência. Nós convivemos na época com jagunços,
4. Ascensão profissional e superação coisas que nem se ouve mais; já teve tiroteio na cidade, forjado por pessoas para nos intimidar, sem
contar questão de bombas que eram atiradas em nossos quintais.
A primeira disputa para a Prefeitura de Araçuaí (MG)
A partir de 1990 eu me lancei como candidata a prefeita aqui em Araçuaí. Uma história muito
A primeira prefeita, mulher e negra, na princesinha do Vale do
rica de significados. Nós não tínhamos fundo partidário como tem hoje, a gente vendia porco, ovos,
Jequitinhonha: as faces do racismo e machismo na vida pública
tinha gente que dava duas ou três dúzias de ovos para poder fazer a caixinha. A gente tinha a Da segunda vez que disputamos Prefeitura, já tínhamos adquirido um pouco mais de
participação de toda a militância. Quem eram os militantes? Eram os trabalhadores, trabalhadoras, experiência. Então foi forte o controle junto aos fiscais, e os partidos tinham representantes que
a exemplo dos professores; tinha o povo da cultura, que já naquela época, nos apoiava com os se revezavam dia e noite, enquanto estivessem ali. No dia de contar os votos, o juiz fez a seguinte
movimentos culturais, shows, e os forrós nos comícios. Então a gente tinha o maior prazer nisso observação: “Qualquer tentativa de mudança na vontade do povo, eu mudo vocês, daqui, para
tudo, e cada um que ajudou, não pensava no que iria ganhar lá na frente, sempre pensava na cadeia”. O local estava lotado de pessoas querendo saber a resposta. Cada urna apurada, as pessoas
melhoria para todos da comunidade. entravam em euforia! Já perto do final, eu praticamente consagrada, o juiz me aconselhou a sair
junto com a polícia, porque não tinha como conter o povo. Nesse período todo, a gente sofreu
16 Termo usado, na época, para se referir a uma disciplina do curso de graduação.

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muitas tentativas de agressões físicas, mas a agressão moral e psicológica foi pior e constante. A crianças, para que nos apedrejassem. Teve muito de dizer que “lugar de negro é na senzala”, que
gente respondia com trabalho, que era coletivo, e buscando o máximo de transparência possível. “lugar de mulher é na cama, na cozinha”. Todos esses conceitos e preconceitos enraizados em nossa
A gente adotou o orçamento participativo, adotamos um método de prestação de contas “literal” - sociedade, afloraram nesse período e, principalmente, pelas famílias tradicionais, com exceções.
colocamos em praça pública, usamos a parede do Mercado para fazer isso. Também não adiantava Sempre perguntavam: “cadê o prefeito?” E quando viam, era um “toco preto”, como eles diziam.
colocar aquela prestação de contas burocrática para quem não sabia ler e escrever. Então, a gente Também falavam que eu só tomaria posse se não houvesse homem na cidade – foi necessário
tentou mostrar aquilo que é técnico na linguagem do povo. chamar o reforço policial.

Recebi dez processos da oposição, irresponsáveis, e que se arrastaram por um longo período. Eu me lembro de um comício que ficou até histórico, na praça do mercado, acho que foi um
Por causa dos símbolos, da própria cultura política do Brasil, não se consegue negros na política, dos últimos. Recorri à imagem de nossa senhora Aparecida: “Não vim aqui por querer; nós, negros,
principalmente do sexo feminino, que vem do povão, de movimento de igreja e principalmente não estamos aqui por querer, fomos trazidos para cá afinal! Se lugar de negro é na senzala, aqui no
de partido de esquerda. A gente chegou a denunciar. Há processos de racismo que a gente deu Brasil a gente não pode dizer isso. Sei de uma negra que muitos brancos, na hora do aperto, apelam
entrada; mas, na época, a “percepção” das autoridades era de que não se configurava racismo. para ela, nossa senhora Aparecida”, como forma de neutralizar aquelas violências, pelo fato da sua
Aí era mais fácil colocar como calúnia, ou arquivar, deixar quieto. Mas teve até o incitamento de simbolização como uma santidade negra. A questão é ocupar espaços que tradicionalmente não
são espaços destinados a nós, sejamos mulheres, negros, indígenas, crentes de determinada fé.
Entrada para Sessão Solene com a Banda Marista de Araçuaí. Maria do Carmo ao centro, ladeada pelo Presidente Lula
à direita; pelo Vice-Prefeito de Angra dos Reis, José Antônio Martins Santana, à esquerda; e pelo Prefeito Luiz Sérgio, na Isso vai nos fazendo maiores e nos fortalecendo.
retaguarda.
Crédito: Acervo Pessoal
Os meninos de Araçuaí ganham o país
O fato de Araçuaí estar no centro do Vale do Jequitinhonha, no polígono da seca e ser a
cidade de maior expressão, fez os olhares se voltarem para nós. Na época de uma das grandes
secas, a gente necessitou de algumas cestas básicas. Uma das parcerias importantes que a gente
teve aqui, num primeiro momento, foi com a Natura. Tínhamos o projeto Ser Criança, com o Tião
Rocha como coordenador. Com o apoio da Natura, nós ensaiamos com os meninos umas músicas,
e no Natal, fomos para São Paulo, na fábrica da empresa, para poder agradecer. O impacto foi tão
grande que daí surgiu o coral “Meninos de Araçuaí”, que rodou o Brasil afora, e estão aí, há mais
de 20 anos. Hoje totalmente independentes do poder público local, mas parceiros. A gente sempre
acreditou nesses projetos, em que as pessoas se apropriam daquilo que lhes é oferecido, e depois
se tornam protagonistas da sua própria história. Hoje o projeto já está na sétima geração e através
de recursos do mesmo foi criado o cinema Meninos de Araçuaí e a Cooperativa Dedo de Gente, onde
eles produzem muita coisa na área de mídia e artesanato.

Uma vez, terminada a gestão dos dois mandatos em Araçuaí, ajudamos na eleição do nosso
vice para a sucessão. Eu me dediquei a projetos regionais e políticas do nível federal que aconteciam
na região. Sempre me fiz presente como filiada e companheira em todas as disputas eleitorais da
região durante esses mais de 30 anos no Partido dos Trabalhadores.

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A experiência no Governo Federal O grande desafio de ser mulher na política, é de continuar sendo você mesma, vivendo tudo
isso, sem perder a sua essência. As influências externas positivas e negativas interferem no seu dia
Eu fui convidada pela nossa primeira ex-Ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, para
a dia. Mas de que forma que você pode continuar sendo mulher?
compor os quadros da Seppir, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Foi uma experiência ímpar para mim poder contribuir, no nível nacional, com a conquista do As cotas na política de ação afirmativa
respeito e do direito da nossa população afrobrasileira. Então foram momentos singulares, como,
Realmente foi o boom dentro das políticas públicas no que diz respeito às questões afirmativas.
por exemplo, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, que ficou mais de 10 anos paralisado
As cotas estão aí hoje para nos levar a refletir inclusive sobre o nosso passado recente no Brasil,
no congresso, assim como, a questão do Estatuto do Índio, também sem avanço por mais de 20
em que existiam cotas; mas não eram direcionadas pra negros e excluídos, e sempre foram aceitas
anos. A questão emblemática das nossas trabalhadoras domésticas: a maioria da nossa população
naturalmente. Que eram as cotas para os filhos de fazendeiros, inclusive nas universidades, nos
feminina está nessa categoria e não eram reconhecidas enquanto trabalhadoras sujeitas de direito
principais postos, por serem considerados enquanto tal. E que a eles eram reservados alguns
e de fato. Foram lutas árduas, muito embora a gente saiba da resistência que ainda tem hoje, ao
lugares, e ninguém nunca reclamou disso. E era de acordo com o número de cabeças de boi.
registro das nossas trabalhadoras. Mas também, a inserção delas na vida política do nosso Brasil,
da participação nas associações, nos sindicatos; da sua integração às universidades, que naquele As cotas colocaram o nosso mundo acadêmico e profissional em xeque. A nossa academia,
momento também estava se abrindo para os seus filhos. Mas principalmente pelo reconhecimento que sempre foi tida como espaço da excelência, começa a ser questionada. Porque se este lugar é de
de sua dignidade como trabalhadoras que trabalharam a vida inteira ajudando na construção de excelência e é universal, onde está a maioria dos brasileiros e brasileiras? A academia tem também
muitas famílias, não tendo uma casa para morar, uma escola ou creche para os seus filhos. Não tendo o desafio constante que é contribuir com o seu pensamento, com a sua ciência, para gerar vida com
os mesmos direitos trabalhistas que os demais trabalhadores; ou seja, não sendo reconhecidas qualidade para o povo. Então, será que o que é produzido pela academia, vai ter uma aplicabilidade
enquanto profissionais. de fato na construção de vida digna para as pessoas? Ou de tirar as pessoas de situações difíceis?
Aí a gente muda a pergunta: A academia está preparada para isso? Quem são as pessoas que estão
Teve o momento da Lei Maria da Penha, como isso mexe com cada uma de nós! A gente
na academia? Então essa é uma discussão que tem que perpassar a questão da gestão pública.
sabe das histórias das nossas avós, das nossas bisas, das nossas mães e tias, sobrinhas, amigas,
colegas e anônimas. E sabemos também o significado disso. Eu estava ali, frente a frente, com a Aqueles que sempre defenderam a supremacia branca, colocaram as cotas como uma coisa
Maria da Penha no dia em que o Lula sancionou a lei, quanta emoção e orgulho. Outro momento negativa, uma mancha no espaço mais nobre da academia. E começou a gerar discussões contrárias,
muito importante que eu registro, foi quando a gente trabalhou no projeto que reconhecia as controversas e confusas na cabeça das pessoas. É isso que vai para a sociedade. O importante
nossas parteiras tradicionais, enquanto profissão; e da resistência inclusive de parte da academia é você ver que as cotas são um instrumento que está sendo colocado à disposição de pessoas
nesse sentido! Impacta a gente saber que, por exemplo, aqui no Vale do Jequitinhonha, nós temos da sociedade para se equiparar condições. E também para corrigir distorções. Seja na oferta de
mulheres parteiras, que com o seu saber, trouxeram ao mundo milhares de vidas vivas. Como essa produtos, na oferta de benefícios, que sempre eram canalizados para um mesmo público. As cotas
pessoa não pode ser considerada como sábia, como cidadã de direito e, que de fato contribui para vêm para tentar inserir esse equilíbrio, inclusive no mundo do trabalho. Existe representatividade
a sociedade brasileira, ainda mais num país carente de cuidados médicos? Essas pessoas estão negra e social na escala de comando das grandes empresas e indústrias e até mesmo nas estatais?
atuando e vem suprindo uma necessidade da população que é inclusive dever do Estado. E no mundo político?

Estou me lembrando desses projetos, porque eles têm um significado muito grande no Brasil Agora, como isso não é politicamente conveniente, porque se mexe em privilégios, então foi
inteiro. Na hora que a gente chega nos nossos lugares, aí a preocupação é como tornar isso uma camuflado e sempre colocado como uma oferta, que na verdade é uma conquista.
realidade nas nossas pequenas e médias cidades, que é a realidade da maioria dos municípios Entendo muito a nossa senadora Benedita da Silva, quando, anos atrás, foi uma das primeiras
brasileiros. São projetos que foram importantes para mim no sentido de mexerem comigo enquanto a sair em defesa das cotas. Ela sabia do que estava falando. Não é o ideal, mas neste momento
ser humano, enquanto pessoa, enquanto cidadã, enquanto agente pública. Porque a gente não do Brasil, das condições políticas que temos, nessas condições estruturantes, tem que ter uma
separa essas coisas. saída para esta situação. Então as cotas são um instrumento necessário e temporário. E não estou

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querendo dizer que vai acabar logo, não. Porque tem caminhadas que a gente caminha uma vida A gente tem uma convivência muito tranquila nesse sentido, de inclusive se fortalecer uns com os
inteira até atingirmos o ideal. O ideal é aquilo que é justo. outros nas respectivas religiões, quando necessário – é uma questão harmônica. A gente amava
acompanhar a Folia de Reis!
É lei hoje no Brasil, a Lei 10.639/2003, a Lei 11.645/2008, as várias resoluções da ONU, nós
temos aí a convenção 169 da OIT, que trata das questões das comunidades tradicionais. Por que Mas a gente também teve oportunidade de conhecer outros cultos, a minha madrinha era
é tão difícil para as pessoas entenderem que existe a jurisprudência sobre isso? Por que elas não descendente de franceses, chamava-se Sophia, mãe da madrinha Minerva que era kardecista. Aí a
podem acontecer de fato? gente foi tendo contato com outro lado da espiritualidade. E a minha relação com as religiões de
matriz africana é algo natural. A minha família, por exemplo, tem um costume de Montes Claros
Quem é a velha política? A velha política são eles, que não querem deixar que o povo brasileiro
que a gente lembra ainda muito, que se falava assim: “os caboclinhos, cadê os caboclinhos?”. Tem
assuma a sua história. E a história é dinâmica. Hoje é você, amanhã é outro de forma respeitosa. E os
um bairro onde moram uns caboclinhos, é um grupo que desfila com vestimentas indígenas, ao
nossos jovens, a academia tem uma responsabilidade nisso, as escolas têm uma responsabilidade
som de violão, viola e rabeca.
nisso também. Quando eu digo responsabilidade, é no sentido de que, desde de criança, assim
como nas comunidades tradicionais, o conhecimento deve ser repassado dos mais antigos para os A primeira loja em que trabalhei era a loja Abre Gira, uma loja que vendia artigos religiosos
mais novos. De forma a mostrar aos nossos mais novos que eles não devem ter vergonha de serem em Belo Horizonte, no comércio do povão mesmo, ali na rua Caetés, próximo à Praça da Estação.
o que são hoje, do seu passado, e que continuem defendendo bandeiras. Depois por um tempo, eu estive secretária na Federação Espírita Umbandista de Minas Gerais. A
madrinha Minerva era secretária lá de forma voluntária. Quando ficou mais velha, ela me levava
De volta para Araçuaí e para a política
para ajudar no trabalho, e eu fazia as atas das reuniões. Porque naquela época havia um rigor muito
Eu me aposentei em 2012, pelo INSS. Nesse período, eu estava em Brasília, e aí retornei de grande com as religiões de matriz africana; hoje, apesar da chamada “democracia”, da abertura, a
novo ao Vale. Eu não sou aposentada politicamente falando, porque para mim a política não é gente tem um preconceito, que às vezes se dá com mais intensidade e com muita violência. Então,
profissão, mas é uma prestação de serviços à população, uma missão. Então, mesmo tendo passado tinha o rigor do próprio Estado. Por exemplo, era exigido das casas ou dos templos de Umbanda,
oito anos pela prefeitura de Araçuaí, me achei no direito de não fazer aquilo que se chama de que fizessem mensalmente relatório ou ata das atividades, e você tinha que mandar isso para a
“política antiga”, mas de ser e estar política, no sentido literal da palavra, de ser agente político. polícia. Então, eu ajudava, fiz várias atas nesse sentido, cada templo, cada terreiro tinha que ter
Não se aposentando pelo cargo. o seu livro de atas e aquilo tinha que ter a abertura e a finalização passada pela polícia, na época,
pela polícia Federal, se não me engano. Você tinha que ter autorização do delegado para funcionar,
Então vim parar aqui, onde estou até hoje, quando achei que iria voltar para cuidar só de mim
isto era uma condição.
e da minha família. Tem gente que fala assim, que até abusa: “Ah, porque você não é casada, você
não tem filho, então você está por conta!”. Não, a gente não está por conta, a gente também tem o Então, tem todo esse conhecimento que eu adquiri e essa ligação, que mais tarde, já nos anos
direito de estar e ser feliz. Quando a gente veio da universidade, veio com todo aquele gás que te de 2005 em diante, quando eu fiz parte da Seppir, Secretaria Especial de Políticas para Promoção
fazia pensar no seguinte: “eu vou casar com a comunidade”. Então foi assim o meu casamento com da Igualdade Racial do governo Lula, enquanto Diretora para Comunidades Tradicionais. Depois
a comunidade, ele durou mais do que eu pensei. Quando me dei conta, eu já tinha mais de 30 anos enquanto Secretária-Adjunta e também Gerente do FIPIR – Fórum Intergovernamental de Políticas
de vida no meio deste povo, que não é por acaso, nem para mim, nem com certeza, nem para as de Igualdade Racial – fui tomando mais conhecimento. Conheci várias dessas pessoas que faziam
pessoas com as quais a gente está no dia a dia. parte do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e aí estavam todas as religiões de
matriz africana e todas as comunidades tradicionais representadas, em especial os indígenas,
Religião e ancestralidade
ciganos, os quilombolas, árabes, judeus e diversas representações.
Minha família é católica, principalmente a da época em que já morávamos na cidade; quando
vivíamos na zona rural até que não muito. Mas, na minha família, nós temos hoje, uma parte que é
evangélica (mais o pessoal que mora em São Paulo), uma parte espírita e a maior parte é católica.

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6. Feminismo negro e os enfrentamentos da mulher negra No caso de nós, mulheres negras, em especial, que vivem a questão da violência doméstica, a
gente sabe de casos terríveis. Essa mulher nem sempre vai denunciar, por vários motivos, seja pela
Eu acredito, que o nosso dia a dia é marcado por esse confronto diário. Toda vez que você questão do acesso, pela questão de onde vive, pela questão financeira e pelo fato do companheiro
chegar diante de um espelho, você vai ver a sua imagem tal qual ela é. As vezes não vai conseguir também ser negro na maioria das vezes e portanto estará mais exposto à violência também.
retratar como está por dentro, não naquele dia e hora, mas dependendo do dia, consegue ver isso Muitas vezes parece ser muito simples para nós, mas para quem vive essa situação não é. Ela sai
nitidamente. Ao se olhar no espelho, você tem que procurar verificar se a imagem que você vê no daqui, e em meio metro já está encontrando com as pessoas ou com a pessoa que a violentou. Na
espelho é você realmente, é o que você gostaria de ver. É claro que hoje aos 66 anos, eu tenho uma cidade grande, com os instrumentos que existem como delegacia de mulheres, casa Benvinda em
tranquilidade para isso; eu não diria a mesma coisa se estivesse nos meus 15 anos, que é quando Belo Horizonte, a gente tem mais oportunidades, inclusive de preservar as pessoas, oferecer uma
começa todo o embate, seja não só pela questão da negritude ou pelo fato de ser mulher, mas a garantia de sair da sua casa, com a sua criança e seus mais velhos. Mas, na cidade pequena, ela vai
cultura que já começa a agir sobre você. para onde? Pois lá todo mundo conhece, todo mundo sabe o nome, sobrenome e endereço.

Eu me lembro de uma vez, de 8 para 10 anos, no momento que você começa a modificar o E na pandemia, aumentou? Aumentou em termos de números estatísticos, mas na verdade,
corpo, eu estava brincando com meus irmãos no quarteirão de casa, e aí passa um menino maior e não é que só aumentou, é que se evidenciou, estatisticamente falando. Outra questão é a da violência
falou assim: “Você sabe que você tem uma joia? Quero essa joinha para mim”. Depois, de outra vez a contra o homem negro, ela é pública e notória.
gente começou a perceber que eram as famosas cantadas, traduzidas na linguagem de hoje. Depois
Eu me lembro também de uma amiga, viramos amigas por uma circunstância da vida, nos
a gente lembra de outros momentos, quando eu já fazia o básico, uma vez até coloquei para minha
anos 1980. Fomos para um encontro de mulheres cristãs na política, que foi em Guayaquil, no
mãe: “mãe, eu não quero mais que a senhora me peça para ir em tal lugar para conversar com tal
Equador. Eu me lembro que ela fez uma fala sobre a situação da mulher negra no Maranhão: “Eu
pessoa”. Porque eu tive experiência negativa com esta pessoa na minha pré-adolescência. Quando
conheço mulheres negras que hoje tem medo de engravidar e não querem engravidar, para não
uma criança ou uma adolescente sente medo, ele muitas vezes é capaz de várias ações e reações.
sofrerem, para não verem seus filhos sofrerem, porque ela vê outras sofrendo ou que já tenham
Eu me lembro que a gente pegou um táxi, a gente ia na mesma direção, eu estava com umas sacolas
passado por isso”.
na mão, tinha espaço no carro e a pessoa veio e não ficou no espaço que lhe cabia. E o motorista de
táxi, vendo tudo e não fez nada. E quando a pessoa percebeu que eu queria descer do carro, ela me E também tem a questão da nossa aculturação, que sempre foi tida como uma política para
deu, como se fosse uma compensação, um pacote de uma fruta. Toda vez que eu como dessa fruta, destruir a nossa identidade, no sentido de dizer que o negro é feio. Eu olho no espelho e não vejo
faço essa associação e não tenho aquele tesão para essa fruta. isso em mim, nem em várias pessoas da minha família, e colegas. Mas aí tem o padrão global de
beleza, dessa beleza dada pelo fenótipo. Então realmente as pessoas que são desprovidas dessa
E isso continua acontecendo até hoje com todas nós mulheres, principalmente pelo fato de
beleza, tira dela o direito à dignidade de ser feliz, de viver com dignidade entre as pessoas?
historicamente ser concebido que toda mulher negra tem obrigação de estar à disposição de quem
quer que seja. Então, muitas vezes o olhar que se tem para conosco não é um olhar de companheiro, Então, eu creio que uma coisa que a gente tem que trabalhar muito para não perder o senso de
de companheira; a primeira impressão é essa, que nós somos objetos de cama e mesa. A gente pode que a diversidade existe, e que tem o seu propósito. E qual é a sua relação ou a sua responsabilidade
observar isso, tanto com relação as pessoas que estão mais próximas a você, na vida partidária nisso tudo? Todas essas questões, como a do feminicídio, da prostituição, da gravidez precoce,
mesmo, ou distantes. quando a gente começa a olhar, se não por foco nas coisas, você morre doido. Então eu acho que
esses assuntos não podem estar fora das discussões diárias. Nós não podemos negá-los.
Também tem colegas nossos que às vezes se colocam em sua postura machista: “é o macho
que está dizendo, é o superior que está dizendo”. Isso a gente tem no cotidiano da gente. É por
isso que a gente abraçou essa causa do combate à violência às mulheres, às crianças, aos mais
vulneráveis, porque são situações que envolvem pessoas indefesas, que estão no nosso dia a dia.

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Capítulo 8 - Maria do Carmo Ferreira da Silva

A força da mulher negra Cleide Barcelos


Sérgio Luiz Felix da Silva
A força da mulher vem dessa faculdade que a mulher tem de perceber o mundo de uma
Rosânia Sousa
forma muito própria. E de se refazer, vem aí o exemplo da fênix. Assim como uma fênix, por mais
atribulações e tribulações, nas quais ela vem a ser submetida, ela sempre vai se refazer. Esse olhar
que a gente tem para frente, com base no que os nossos antepassados viveram.

Você tem uma origem. Você sabe da sua origem. E há estudiosos que dizem que, é claro, que
não é você que escolhe de onde vir, onde estar, há toda uma concertação. Na nossa composição,
nós somos místicos também. Então eu acho que a gente tira força disso. E nada melhor do que o

CLEIDE
aprendizado nu e cru para você se posicionar. Ou seja, esses tapas que você leva, essas bofetadas,
essa energia negativa que tentam te colocar. Com isso tudo você aprende e apreende. E aí cabe a
você procurar esse discernimento, por conta própria.

7. Como gostaria de ser lembrada


Gostaria de ser lembrada como uma pessoa
que sabe que, pela profissão que escolheu, pela
condição de vida que tem, seja vida familiar,
BARCELOS
seja vida social, pelas oportunidades que teve,
pelas que não teve e que pode escolher o que 1. Infância e Adolescência: criação
fazer, o que continuar. A pessoa que a cada dia
percebe, já dizia o filósofo, o grande Sócrates, Eu sou Cleide, tenente coronel da Polícia Militar de Minas Gerais.
que pouco sabe. Eu sou uma dessas pessoas que Tenho três irmãos, sendo duas mulheres e um homem. Sou a mais velha. O
sei que ainda tenho muito que aprender. E que meu pai é sargento da Polícia Militar de Minas Gerais e está na reserva há
enquanto tiver ânimo, vou ter essa disposição mais de dez anos. Minha mãe se formou em magistério para trabalhar como
de aprender mais. E se me deixarem, eu quero professora. Ela exerceu a atividade durante algum tempo, mas tão logo se
continuar contribuindo. casou com meu pai e parou de trabalhar, passou a se dedicar às tarefas da
casa.
Eu não quero jamais impor nada a
ninguém, porque a vida não é feita de imposição. A profissão de professor é um sacerdócio. Hoje, eu dou aulas e
A gente sabe a história de tudo aquilo que foi percebo que muito da gente fica nas pessoas com quem a gente tem contato,
imposto. E dos resultados dessa imposição. principalmente com aquelas que querem realmente aprender. Ao longo
da minha trajetória, tive inúmeros professores que realmente deixaram
uma marca muito grande na minha vida, pessoas que eram dedicadas,
compromissadas, que procuravam ensinar para gente da melhor maneira
possível, não só as matérias pelas quais eles eram responsáveis como sobre
Maria avaliando e discutindo com operário da prefeitura
planta de obra no município. Araçuaí, 1998. outros aspectos da vida.
Crédito: Acervo Pessoal
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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

Minha infância e a de meus irmãos foi muito alegre, apesar das dificuldades financeiras. Por Enfim, a gente cumpria toda uma escala de tarefas. Eu, por exemplo, quando estava responsável
diversas vezes, minha mãe precisou fazer comida no fogão de lenha por não ter dinheiro para por lavar roupas, preferia levantar às 5 horas da manhã, de forma que às 7 horas as roupas já
comprar gás. Às vezes, até mesmo para ir à escola. Por isso, eu levantava cedo, cinco ou cinco e estavam no varal. E olha que, naquela época, lavar roupas não era com máquina de lavar. Era no
meia da manhã, para poder cozinhar cará ou mandioca. Eram alimentos mais baratos com os quais tanque. A primeira máquina de lavar que a gente comprou foi depois que eu passei no concurso
nos alimentávamos para poder ir estudar. e comecei a trabalhar. Eu e meu irmão, que trabalhava desde os 16 anos de idade, juntamos e
compramos, à prestação, uma máquina de lavar para nossa mãe. Eu já estava com 19 anos. Até
Em que pesem todas as dificuldades, minha infância e adolescência foram períodos muito
então, a gente lavava e torcia roupa no tanque e depois estendia no varal de arame farpado.
bons de estar com meus irmãos, pela educação que nossa mãe e nosso pai nos deram. Na época, a
gente achava ruim, mas hoje que a gente tem filho, a visão mudou totalmente. Às vezes, a gente brincava com nossa mãe argumentando: “Ah mãe! E a senhora vai fazer o
quê?”, tentando colocar o nome dela na escala também. Mas quem estava em período de formação
Minha mãe sempre nos ensinou a sermos fraternos, a dividir as coisas uns com os outros.
éramos nós, quem precisava aprender as coisas éramos nós. E hoje, todos os quatro sabem fazer
Ensinou também, desde pequenos, a fazer todas as atividades da casa. Ela sempre falava com a
tudo dentro de casa.
gente que, em sua falta, deveríamos dar conta de fazer tudo. E recomendava: “Vocês, mulheres, vão
estudar, vão arrumar um emprego, porque no dia em que vocês se casarem e o homem levantar a Nossos pais não permitiam que fôssemos sozinhos a festas nos finais de semana. No caso de
mão para bater em vocês, mandem ele ‘sair vazado’, mandem ele embora, porque vocês conseguem minha irmã mais nova, por exemplo, mesmo quando já tinha 18 anos, meu pai continuava a levá-la
sobreviver sozinhas, não precisam dele”. E completava: “Perdeu o respeito, mandem embora!”. e buscá-la no ponto de ônibus quando ela ia e voltava da escola.
Hoje, eu falo com ela: “Mãe, eu estou trabalhando com prevenção à violência doméstica e sempre
Nós, quando jovens, não conseguíamos perceber a importância desse tipo de preocupação.
lembro do que a senhora falava com a gente”.
A gente acha que nossos pais querem tirar nossa liberdade. Mas, hoje, eu agradeço muito a eles.
À medida que a gente foi crescendo, ela nos ensinava a dividir as tarefas. Tínhamos que Foi graças a isso que todos os quatro irmãos conseguiram vencer de alguma forma, conseguiram
arrumar a casa, fazer o café da manhã, o almoço, o jantar, lavar roupas, limpar o quintal etc. Existia constituir suas famílias. Enfim, isso nos moldou de tal forma, que procuro educar meu filho do
uma escala. Desde pequenos, nos habituamos, sobretudo eu e meu irmão que é militar, com as mesmo modo. Hoje, todos nós valorizamos os ensinamentos que nossos pais nos deram.
escalas de serviços. Em uma semana, um era responsável pelo café da manhã, o outro pelo almoço,
Outra questão na qual minha mãe era sempre incisiva era a questão racial. Para ela, isso conta
um pelo jantar, o outro por lavar roupa, limpar o lote etc. Assim, todos nós tínhamos tarefas,
muito. Ela falava com a gente que o negro precisa se sobressair, e da maneira correta, seja nos
sabíamos fazer alguma coisa, inclusive o meu irmão.
estudos, seja no trabalho. Precisa se destacar no que faz. E acredito que isso foi muito importante
Teve um vizinho que falou para minha mãe que meu irmão se tornaria homossexual porque para a nossa formação. Ela sempre se posicionou dessa forma, procurando nos ensinar, talvez por
ele só ficava no meio de mulheres. Olha a mente tacanha dessas pessoas, achando que isso muda causa de sua história de vida, sobre as coisas que ela vivenciou. Assim, ela sempre falava para a
a natureza da pessoa. Pensam que homem não tem que fazer certas coisas, principalmente tarefas gente: “Olha, vocês precisam se destacar onde vocês estiverem. Não por vaidade, mas porque vocês
domésticas. têm uma entrega”.

Na realidade, aprender fazer todo tipo de trabalho doméstico foi muito bom para o meu irmão
porque, quando passou no concurso da Polícia Militar1, ele teve que morar fora, em Ipatinga. E ele
não teve dificuldades, pois sabia fazer de tudo. Ele sabia cozinhar, lavar, passar roupas. Certamente,
a única dificuldade foi a distância do restante da família. A esposa dele, minha cunhada, às vezes
Comemoração da formatura em Psicologia da irmã mais
ri muito disso. No resguardo das duas filhas deles, meu irmão fazia tudo dentro de casa, lavava, nova, Cleliane. Marido Joaldo; filho Daniel; pais José Teodoro
e Maria Geralda; irmãos Cleiderson, Clélia e Cleliane;
passava, cozinhava. E assim, ela pôde cumprir o resguardo de forma tranquila.
cunhados Jailda, Célia e César; enteada Caroline e sobrinhas
Cecília e Alice.
1 Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG). Crédito: Acervo Pessoal

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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

Meu pai, por sua vez, por ter sido policial, sempre nos orientou muito, ensinou muito sobre Até mesmo na época da Academia de
o que fazer, como fazer, como conversar com as pessoas, como ter um poder de resiliência para Polícia, havia um colega que, pelo fato de eu ser
enfrentar as situações às quais iriamos vivenciar o tempo todo. muito magra, achava que eu não ia dar conta. Ele
pensava que eu não ia aguentar os quatro anos
Quanto à religião, em que pese não irem à igreja regularmente, meus pais se declaram
de Curso de Formação de Oficiais (CFO). Mas
católicos. Quando nova, eu costumava ir à igreja sozinha aos domingos. Já bem mais velha, quando
ele não falou isso comigo durante o curso, falou
fui trabalhar em Venda Nova, visitei uma igreja evangélica e me converti. Posteriormente, passei a
muito tempo depois para uma amiga minha.
frequentar a Igreja Batista Central de Venda Nova. Em minha casa, apenas eu frequento essa igreja,
A questão da compleição física gerava uma
há 17 anos. Essa experiência foi um marco na minha vida, porque o Senhor precisa ser colocado
desconfiança muito grande nas pessoas quanto
no centro de todos os nossos quereres, de toda nossa vontade. Nós não somos perfeitos, erramos
a minha capacidade, ou não, de conseguir as
o tempo todo, mas até a admissão desses erros é pré-requisito básico para que Ele possa agir nas
coisas. Mas, glória a Deus, deu tudo certo.
nossas vidas. É a partir do momento que a gente reconhece que não sabe nada, que a gente não
tem o poder sobre todas as coisas, que a gente reconhece que o poder é todo dele, que ele tem essa Eu cursei a quinta série em uma escola
primazia em nossas vidas! no bairro São Benedito. A sexta série, cursei
em escola particular. Por causa do valor da
2. Trajetória escolar mensalidade, não foi possível continuar. A
sétima e a oitava séries, estudei na mesma
Eu fiz o pré-escolar durante três anos, mas como eu faço aniversário em maio, precisei fazer
escola que meu irmão. Para ir até essa escola,
o terceiro período duas vezes. Depois fiz do primeiro ao quarto ano em uma escola do bairro
tínhamos que andar a pé, uma hora para ir, uma
Jaqueline. Nessa época, eu já sofria com bullying por ser muito magra. Além disso, minha mãe fazia
hora para voltar. A gente não tinha dinheiro
tranças no cabelo. E o pessoal ficava zoando de minhas tranças, fazendo gracinhas.
para pagar passagens. Minha mãe conta que se
Eu me sentia deslocada pelo fato de ser muito magra. Hoje, diferentemente, tento emagrecer, preocupava se a gente ia dar conta de fazer o
mas não é fácil! Eu era muito magra, muito mesmo! Eu me sentia deslocada e as pessoas, trajeto. Afinal, eu era muito alta e muito magra.
principalmente os colegas de escola, sempre zoavam: “Olívia Palito!”. E colocavam um monte de Pesava menos de 50 kg. Um dia, ela chegou a
apelidos, faziam um monte de brincadeiras. Isso gerou em mim um complexo tão grande, que por fazer um teste e foi com a gente. Enfim, nunca
anos eu não usava short, nem bermuda, nem saia, porque eu ficava extremamente estressada com deixamos de ir à escola, nem por causa de
a minha canela, achava muito fina. intempérie. Se a chuva pegasse a gente no meio
do caminho, por exemplo, não parávamos, Cleide com o uniforme da 2ª série.
Na adolescência, eu me estressava muito mesmo. Tinha um rapaz que estudava na mesma
continuávamos mesmo debaixo de chuva. Crédito: Acervo Pessoal
escola que eu e que às vezes ia para a porta da minha casa para fazer esse tipo de brincadeira. Então
isso me incomodou durante muito tempo. Hoje, eu vejo que isso me incomodou, porque permiti. O Ensino Médio foi cursado integralmente no Colégio Tiradentes2, Anexo Minas Caixa.
Assim, se eu tiver que ir à praia, usar um biquíni, por exemplo, eu não devo nada para ninguém! Foi Quando eu ingressei, ele havia sido inaugurado há pouco tempo e era próximo da nossa casa.
assim que o Senhor me fez, e eu não tenho que me preocupar com isso. Mas a adolescência foi uma Continuávamos indo e voltando a pé da escola. O tempo de caminhada era menor, uns 40 a 50
fase em que isso me machucou bastante. Às vezes, as crianças, e até mesmo os adolescentes, fazem minutos.
esse tipo de brincadeira uns com os outros porque não têm a dimensão dessas coisas.

2 Instituição de ensino, pública e militar, administrada pela PMMG, que tem várias unidades em cidades do estado
de Minas Gerais. Seu objetivo é oferecer educação escolar aos militares e seus dependentes.

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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

E eu sempre gostei muito de estudar. Nunca tive dificuldades para aprender as matérias, Na época, por dificuldades financeiras, imaginava que não daria para fazer um curso superior.
para fazer as provas. Minha mãe costuma lembrar que quando eu cursava a sétima e a oitava série, Eu precisava trabalhar, ajudar meus pais e irmãos, e fazer um curso superior ia me dificultar muito
ocorreram períodos de greve na escola. E, nessa oportunidade, eu ficava em casa estudando. Se nesse sentido. Estudar seria incompatível com a necessidade de trabalhar. Nós não tínhamos
hoje as crianças têm computador, joguinhos, celulares, um monte de coisas, à época, nos períodos dinheiro para fazer inscrições para o vestibular. Mas aconteceu que uma tia por parte de mãe
de greve, eu estudava. Pegava os livros, fazia os exercícios, adiantava a matéria. Quando voltavam emprestou o dinheiro para o meu pai fazer minha inscrição, tanto no concurso da polícia quanto
as aulas, eu já tinha feito todos os exercícios, tudo estava copiado nos cadernos. Essa era uma no concurso da força aérea. Ao mesmo tempo, uma professora de matemática, sabendo de nossas
época muito boa, mais tranquila, e eu conseguia canalizar os esforços para o estudo. condições financeiras, fez uma vaquinha e comprou o manual do candidato e me deu. Ela não só
comprou o manual do candidato, como fez minha inscrição.
Na sétima e oitava série, tive uma professora de História que percebeu meu gosto por
leitura. Então, ela pediu que eu lesse um livro e desse uma palestra para a turma. E eu achei aquilo E, ao final, eu consegui passar tanto no CFO quanto no vestibular de Matemática da
maravilhoso, porque foi um incentivo muito grande para poder ampliar minha visão. No Ensino Universidade Federal de Minas (UFMG). Passei na primeira e segunda etapas. O curioso foi que
Médio, também tive outras professoras que acabaram virando referência. o dia da última prova da segunda etapa do vestibular da UFMG, prova de Física, coincidiu com o
dia da última fase do CFO, o dia da entrevista. Não me recordo se a prova começava às 7h ou 8h
A infância e a adolescência são fases em que você pode ser influenciado de diversas formas.
da manhã, certo é que às 10h eu tinha que estar na Academia da Polícia Militar de Minas Gerais
Quando você tem uma pessoa correta que te direciona, ajuda muito. E isso contribuiu muito para
(APMMG) para me submeter à entrevista com os oficiais. Na época, havia uma entrevista com os
minha formação. Então, praticamente todos os professores contribuíram de alguma forma para
oficiais para poder ingressar no CFO.
que eu pudesse ser o que eu sou hoje. Sou muito grata a todos eles, porque a gente via a dificuldade
deles também para poder trabalhar, principalmente em escola pública, onde a correria era muito Então, o que fiz? Quando entrei para fazer a prova, falei com meu pai: “pai, o senhor faz
grande. Mas eles superaram todas essas dificuldades para poder, realmente, nos ensinar da melhor o seguinte: fica com o táxi na porta da faculdade. Eu vou começar a fazer a prova e farei o que
forma possível. Foi uma experiência muito boa. À exceção da questão do bullying de alguns colegas, for possível. Quando der o horário, eu entrego a prova, saio, entro no táxi e a gente vai para a
o período do Ensino Médio foi uma experiência maravilhosa. Academia”. Foi o que fiz.

No Colégio Tiradentes, uma escola pública, não havia greves – nem outros problemas que, Quando saiu o resultado da segunda etapa, saiu também o resultado do CFO. Eu passei nos
às vezes, existem em outras instituições públicas. Sempre tive um bom rendimento na escola, mas dois. Foi um período que minha mãe ficou muito emocionada. Eu acho que até hoje ela guarda o
cheguei a perder média em Inglês. Minha mãe, até hoje, brinca comigo por isso: “Essa menina jornal em que saiu a lista de aprovados. Só que eu não pude fazer o curso superior de matemática
chorou!”. Chorei mesmo! Quis fazer a recuperação para tirar a nota vermelha do meu histórico, na UFMG naquela época, porque no CFO, o primeiro ano de internato é obrigatório. E não era
mas não deu. Fiz a recuperação, recuperei a nota, mas a vermelha não foi tirada. Está lá no meu possível fazer a matrícula na UFMG e trancar imediatamente. Então, tive que escolher. E eu escolhi
histórico. A única nota vermelha da minha vida está lá. Na época, fiz um propósito: pegava o livro o CFO. Imaginava que tentaria outro curso superior em outra oportunidade, e foi o que aconteceu.
de inglês, traduzia ele todo, fazia todos os exercícios. Quando os professores chegavam na sala, eu
O CFO, que durava quatro anos, tinha inúmeras matérias de Direito. Essas matérias são
já tinha feito os exercícios há muito tempo.
reconhecidas pela Universidade Cruzeiro do Sul, o que abre a possibilidade de obtenção de novo
No terceiro ano, quando conclui o ensino médio, desejei fazer as provas para o Curso de título. O curso é à distância (EaD) e, glória a Deus, eu acabei me formando em Direito. Não pretendo
Formação de Oficiais (CFO) e para a Academia da Força Aérea (AFA). Eu sempre tive vontade de
entrar para a Polícia Militar. Não sei o que chamava a minha atenção. Talvez o fato de meu pai ser
militar. Mas ele nunca impôs isso, nem incentivou, nem desmotivou. Ele deixou por minha livre
escolha, assim como em relação a meus irmãos.

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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

atuar na área, mas é um conhecimento extremamente necessário para a execução das minhas Eu já tinha sido promovida a capitão e estava doida para voltar a trabalhar na rua. O Batalhão
atividades. Depois dessas graduações, conclui duas especializações, que são o Cesp e o Cegesp3. tinha três companhias, e duas eram de responsabilidade territorial. Então, em determinada época,
o comandante da unidade estava fazendo alguns remanejamentos e eu imaginei que poderia ser
O Cegesp que cursei foi com concurso. Eu passei no concurso e fiz o curso em 2017. Além
contemplada. Não fui! Pensei: “Oh, Senhor, não fui eu, e agora? Vou ficar aqui. Mas, glória a Deus,
disso, tenho um MBA pela Estácio de Sá, em Gestão Estratégica de Pessoas; uma especialização em
vamos seguir em frente”. Até que o comandante da unidade me chamou e falou: “Olha, você vai
Ciências Militares, pela Universidade Cruzeiro do Sul; e, estou fazendo um curso sobre violência
comandar a Companhia Tático Móvel”4. E eu fiquei surpresa. Não tinha outra mulher que tivesse
doméstica.
comandado uma companhia do tático móvel. Aliás, oficial mulher não tinha nenhuma no Tático
3. Trajetória profissional Móvel naquela época. E eu pensei: “Um presente de Deus.”

Aceitei e foi uma experiência maravilhosa. No Tático Móvel, talvez pelo fato de eu já estar no
Quando entrei para o CFO, um dos objetivos que eu tinha era tirar boas notas para poder
batalhão há tanto tempo, não enfrentei as mesmas dificuldades de quando era aspirante. Como
escolher para onde ir. Na Polícia Militar de Minas Gerais, a designação para uma determinada
aspirante, em alguns momentos, tive dificuldades com alguns policiais que eram mais antigos de
cidade é de acordo com sua colocação. Isso, no meu entendimento, é espetacular porque você é
polícia. Às vezes, se eu falava alguma coisa, alguns olhavam para mim por cima, e eu sentia que era
valorizado pela sua entrega. O meu objetivo era ficar em Belo Horizonte.
não só pela pouca experiência como pelo fato de eu ser mulher. Só que mal sabiam eles que meu
Mas eu morava em Santa Luzia e a Academia de Polícia é no Prado. E, se eu tivesse que pegar pai já tinha me ensinado muita coisa. Às vezes, eu ia tentar corrigir, fazer alguma coisa. Tinha, o
ônibus todos os dias para ir e voltar para a Academia, isso prejudicaria meus horários de estudo. tempo todo, que me impor. Mas não de uma maneira autoritária. Dizia: “Olha meu filho, você vai
Eu não conseguiria estudar, não conseguiria fazer todas as atividades, não conseguiria me dedicar fazer isso aqui é por causa disso, disso e disso”. O desafio era não só ser firme como, ao mesmo
da forma como eu gostaria. E, se meu objetivo era conseguir a classificação para ter o direito de tempo, conseguir harmonizar todo o ambiente de modo que as pessoas realmente fizessem aquilo
escolher para onde ir, tinha que me dedicar aos estudos. Sabendo dessas dificuldades, minha opção que era necessário, para cumprirmos nossa missão da melhor maneira possível.
foi, mesmo após o período de internato, ficar os quatro anos alojada na Academia. E foi o que fiz.
Nesse início como aspirante, um dos desafios, senão o maior, foi quebrar esse paradigma:
Eu queria ir para o 13º. Batalhão de Polícia Militar (13º. BPM). Essa era minha primeira a dúvida de algumas pessoas quanto à minha capacidade, em função de ser nova e mulher. Às
opção. Eu tinha muito carinho pelo 13º BPM, porque meu pai serviu lá por 15 anos. Nessa unidade vezes, eu ia falar alguma coisa com o militar e ele desdenhava... Por exemplo, era obrigatório usar o
tinham só duas vagas e eu consegui uma delas com a classificação obtida no CFO. Designada para colete. Então, eu alertava: “Gente, não pode sair para o turno sem o colete”. Então, teve uma vez que
o 13º. Batalhão, cheguei a trabalhar com meu pai por uns dois ou três anos. Nessa experiência, ele um militar virou para mim e disse: “Ah, senhora! Mas eu era da Rotam5 e um colega morreu do meu
me orientou muito. lado com um tiro na cabeça”. Certamente, em outra situação, dependendo de quem estivesse no
comando, ele não questionaria. Na realidade, são testes que as pessoas vão fazendo para verificar
No 13º BPM, sempre atuei na atividade operacional, na coordenação do policiamento
qual vai ser sua reação, seu posicionamento. Igual a crianças. Você fala com ela: ‘Não faz isso!’ Aí
do turno, sempre na rua em contato com os militares. Fiquei lá, na atividade operacional, por
ela faz e vai olhando, vai dando um passinho, repetindo, para ver até onde ela pode ir, até onde você
aproximadamente 9 anos. Depois, fui designada para o então criado 49º BPM. Fui trabalhar na
vai tolerar ou não. Assim, esse foi um dos principais desafios.
comunicação organizacional do batalhão. Fiquei nessa atividade por aproximadamente 10 meses.
Mas eu sempre gostei da atividade operacional, de ficar na rua.

3 O Cesp (Curso de Especialização em Segurança Pública) e o Cegesp (Curso de Especialização em Gestão Estraté- 4 Tático Móvel é a unidade policial militar (companhia) com objetivo/esforço de recobrimento e intensificação do
gica de Segurança Pública) são cursos de especialização lato sensu destinados a oficiais intermediários (capitães) e policiamento de responsabilidade territorial. Ela têm como missão básica atuar na repressão à criminalidade violen-
superiores (majores e tenentes-coronéis), respectivamente. Durante muito tempo, a participação nesses cursos de- ta na área da respectiva unidade em apoio às companhias especializadas. Destina-se ao atendimento de ocorrências
pendia de aprovação em concurso interno à PMMG. A partir de 2006, aboliu-se o concurso e adotou-se o critério da caracterizadas como crimes violentos.
convocação. Em 2016 ocorre outra alteração em favor do concurso. Ambos os cursos são pré-requisito para ascensão 5 Rotam: a Ronda Tática Metropolitana é definida pela PMMG como uma força policial especializada, de reação,
na carreira. que pode ser acionadas pelo comando-geral em situações consideradas de “grave violação da ordem pública”.

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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

Houve uma ocasião, por exemplo, em que fazíamos uma abordagem em uma zona quente de Parabéns pelo seu serviço.” Eu ficava surpresa: “Como é que pode um negócio desses!”. Enfim, as
criminalidade. Então, pelo fato de você ser mulher, há o entendimento de que você não conseguirá pessoas vão ensinando muito para a gente. Isso quando a gente está disposta a aprender. Enfim,
assumir uma postura firme. Às vezes, as pessoas olham meio que pensando: “E essa mulher aí? acabou sendo muito rico.
Não dá conta de nada não, não vai conseguir fazer nada.” Então, essa quebra de paradigmas, desse
Trabalhei em vários eventos e, na realidade, algumas vezes as coisas não deram tão certo.
tipo de visão inicial, foi um desafio que tive de enfrentar. Eu era recém-saída da Academia, sem
Cheguei a errar o nome de autoridades, aconteceu de a bandeira sumir na hora de entregá-la
experiência profissional, não conhecia os comandados e eles não me conheciam. Angariar esse
à autoridade, etc. Mas tudo isso contribuiu muito para a minha formação. Antes eu achava que
respeito, fazer com que reconhecessem minha capacidade e soubessem o que é que eu poderia ou
deveria ter tudo sob controle, tudo que acontecia ao meu redor. E acabei aprendendo que não,
não fazer e como fazer, levou tempo.
não só não tenho como não é possível ter controle de tudo. Eu preciso aprender a coordenar bem
Mas essa dificuldade que tive em muitas oportunidades durante o aspirantado não foi a as coisas. E saber que em algum momento alguma coisa pode dar errado. Eu preciso aprender a
mesma dificuldade que enfrentei quando fui comandar o Tático Móvel. Eu não caí de paraquedas conviver com a possibilidade do erro, mas não posso ficar focada nele. Preciso olhar as coisas boas
no Tático, já tinha uma história de vida, conhecimento e experiência. Assim, muitos militares que que aconteceram também. Às vezes, durante uma solenidade, nós do cerimonial percebíamos que
estavam lá me acolheram muito bem. A gente conseguia aliar tanto a parte profissional quanto a alguma coisa tinha saído errado, mas quando acabava o pessoal dizia: “Nossa, mas que solenidade
parte de gestão de recursos humanos. Trabalhávamos com os militares a questão do temperamento, espetacular!” E eu pensava assim: “Mal sabem vocês! Houve erros”. Enfim, Deus me ensinou muito
do relacionamento interpessoal, aspectos da vida particular deles, tentávamos ajudar da melhor durante esse período, foi um período maravilhoso.
forma possível naquilo que eles precisavam. Foi uma experiência maravilhosa. Ao fim, foram dois
Com a criação da Diretoria de Comunicação Organizacional (DCO), meu marido brincou
anos maravilhosos de trabalho, dois anos com metas batidas sucessivamente, em uma harmonia
muito comigo destacando que eu chegava nos lugares e as unidades se separavam. Quando cheguei
muito grande na equipe de trabalho.
no 13º BPM, uma parte virou 49º. BPM. Quando cheguei no Estado-Maior, na PM 5, foi criada a
Em 2013, fiz a primeira especialização pela Polícia. Na época, eu tinha pedido a Deus: “Senhor, DCO. Mas aí eu brincava: “Calma gente! É tudo para nosso crescimento”. E na medida em que as
eu vou me formar no curso e eu quero que o Senhor me mande para onde acha que eu devo ir”. E mudanças estão aí até hoje, significa que as decisões foram extremamente acertadas.
quando a gente ora e pede a Deus assim, do fundo do coração, fica aquela esperança de que Ele vai
Quando fui para a DCO, tornei-me responsável pela comunicação interna da PMMG. Como
fazer aquilo que você quer. E eu achava, realmente, que talvez eu fosse voltar para o Tático para
era uma diretoria nova, tivemos que construir toda a doutrina de comunicação organizacional. O
executar as mesmas atividades.
primeiro diretor que trabalhou com a gente na época era uma pessoa maravilhosa. Ele conseguiu
Mas quando conclui o curso, fui designada para trabalhar na área de comunicação da PMMG. conduzir todo esse trabalho. Sou muito grata a ele porque se foi um período em que eu trabalhei
Só que, dessa vez, no cerimonial. E esse foi outro desafio. Imaginei: “Gente, e agora? Como é muito, foi também o período em que recebi as duas maiores comendas da PMMG. Isso foi fruto do
que eu vou fazer? Era como se eu estivesse entrando para a polícia de novo, em uma atividade trabalho executado na diretoria, reconhecimento desse trabalho.
totalmente diferente. Eu teria que aprender tudo de novo. Até o uniforme era diferente. Se numa
Permaneci nessa Diretoria até 2017. No final deste ano, eu recebi outro presente: fui
função operacional, eu andava de coturno, agora eu tinha que andar com sapato e farda social. E as
designada para comandar, à época, a Companhia de Polícia Militar Independente de Prevenção à
atividades? Eram totalmente diferentes. Mas foi uma experiência maravilhosa também, foi muito
Violência Doméstica que, em 2020, tornou-se Primeira Companhia. Só soube desse presente pela
boa, porque eu tive a oportunidade de conhecer outras pessoas que me ensinaram muito.
publicação. Foi uma surpresa muito grande. Fiquei muito feliz. Um serviço apaixonante. Saí da DCO
Alguns colegas brincavam comigo e falavam assim: “Se você errar no cerimonial, você vai e vim para a Companhia de Polícia Militar Independente de Prevenção à Violência Doméstica.
errar com as maiores autoridades da Polícia Militar, com mais ninguém”. E eu falava: “Ótimo, você
Enfim, quando penso nessa questão profissional, gosto sempre de ensinar a meu filho que
tá me ajudando demais. Que incentivo!” Mas, felizmente, essas autoridades me ensinaram muito.
tudo que a gente faz é preciso que seja feito como se a gente tivesse fazendo para Deus. A gente
Às vezes, eu ficava estressada, chateada com alguma coisa que saiu errado em alguma solenidade.
precisa fazer da melhor forma possível porque nós vamos ser recompensados uma hora ou outra
Então, eu chegava para eles para falar sobre a solenidade e eles falavam assim: “Muito obrigada!

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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

por aquilo. E, muitas vezes, a gente não precisa associar essa recompensa a algo que é palpável: reconhecimento das pessoas, pela entrega, por aquilo que eu apresentava e como consequência
“Ah, você fez isso, você vai receber a medalha tal; você fez aquilo, você vai receber a promoção tal”. direta dos concursos que eu fazia. Sempre fui muito respeitada dentro da instituição.
Não! Às vezes, o retorno que a gente vai receber é em outra área.
Quanto aos desafios, estão principalmente relacionados às diferentes formas de gestão
Meu pai, por exemplo, sempre falou comigo que uma coisa que toca muito o coração dele é ou trabalho ao longo de sua carreira. Trabalhei, por dez meses, na comunicação organizacional.
chegar lá no 13º BPM e as pessoas o cumprimentarem. Ele fala que as amizades e as marcas que Depois, dois anos na Companhia Tático Móvel. Após isso, na comunicação interna da polícia. E
você deixa na vida das pessoas são muito importantes. E não que ele não tenha que ter tomado o maior desafio era aprender trafegar entre todos esses diferentes universos. A comunicação
alguma atitude contra alguma pessoa. Não! Você só precisa ser justo, ser correto. Ao mesmo tempo, organizacional de unidade de execução operacional tem uma forma de gestão e prioridades
precisa deixar uma marca na vida das pessoas. E essa marca do profissionalismo, da entrega, da diferentes. O comando da companhia tático móvel tem outras prioridades. Eu precisava ter todas
dedicação, da preocupação, é uma marca extremamente importante, porque isso vai fazer com que as orientações do comando da unidade e traduzi-las para os militares de uma forma que fosse
essa pessoa possa crescer e evoluir. possível, que os objetivos fossem alcançados. A gente precisa ter a devida inteligência emocional
para poder aprender a receber as informações e passá-las da melhor forma possível, de modo que
Voltando aos cursos, quando estava em vias de fazer o concurso para o Cegesp, eu era major
as pessoas realmente possam compreender aquilo que está sendo pedido. A gente só vai conseguir
recém-promovida, e via no curso como uma oportunidade. Refleti, conversei com meu marido:
isso através da legitimidade. Vamos quebrando aquela visão inicial das pessoas de duvidar da
“Olha, será que faço ou não o concurso? O que você acha?”. À época, eu estava na Diretoria de
nossa capacidade.
Comunicação. Meu marido respondeu: “Se eu fosse você, faria esse concurso. Se for de Deus e se for
sua hora, você vai passar. Você se dedica, estuda e, se for a sua hora, você vai passar. Se não for, você Na comunicação interna, eu já era oficial superior, major. O grande desafio foi o desdobramento
tenta de novo depois. Mas você não sabe o dia de amanhã, então tenta!”. Então me decidi, estudei, do plano estratégico da Polícia Militar e a criação dos planos setoriais das diretorias. Parte do
me dediquei aos estudos, fiz o concurso e passei. E, mais uma vez, compreendi que se Deus abrir desafio foi me adaptar a uma nova linguagem. Mas Deus preparou tudo muito bem, porque eu fui
uma porta, passa por ela, porque você não vai saber quando é que essa porta vai abrir novamente. fazendo vários cursos na área de gestão. Fiz o curso de Gestão Estratégica, Gestão por Processo,
Você não sabe se ela vai se abrir novamente. Eu fiz a prova do concurso, passei. “Glória a Deus!” Gestão Estratégica de Pessoas, Gestão do Conhecimento. Eu realmente consegui juntar tudo isso e
harmonizar todo esse conhecimento de modo a aplicá-lo adequadamente. Necessitávamos aplicar
Na turma do Cegesp tinham vários militares que tinham formado em anos diferentes, o que
da forma mais acertada possível. E hoje, eu agradeço muito a Deus, agradeço a todos os meus
tornou a experiência muito rica, muito boa. É muito bom quando você reúne, em uma mesma sala,
comandantes que me permitiram fazer todos esses cursos.
profissionais de diferentes gerações, com visões diferentes, com formas diferentes de pensar. Foi
um curso em que a gente teve a oportunidade de aprender muito, de compartilhar muito uns com Quando eu assumi a Companhia Independente de Prevenção à Violência Doméstica, tive a
os outros. E eu consegui ser a terceira colocada da turma. Interessante que essa colocação ocorreu oportunidade de aplicar isso tudo, de conseguir fazer o mapeamento do processo, do protocolo.
tanto no Cesp quanto no Cegesp. Nos dois cursos, eu consegui ser a terceira colocada na formatura. Para poder atualizar o protocolo de prevenção à violência doméstica, nós mapeamos tudo. Se eu
Foi muito bom! não tivesse feito os cursos que fiz anteriormente, eu não saberia como fazer, teria que pedir a
outra pessoa. Mas eu mesmo sentei para mapear os processos no “Bizagi”6, buscar a efetivação
Enfim, em toda a minha carreira eu me pautei por tentar fazer o melhor, tentar trabalhar da
da gestão do conhecimento. Eu falava com meus comandados assim: “Cadê os documentos, cadê
melhor forma possível. Às vezes não da forma como eu gostaria. Afinal, eu me cobro muito. Mas
a história, cadê a origem da prevenção da violência doméstica?”. Não tem! Então, a gente precisa
já melhorei muito em relação a isso. Sempre queria poder fazer mais, ir além. A gente precisa
atuar dentro de uma área da gestão do conhecimento. Precisamos ter isso aqui de forma que quem
aprender a respeitar o momento correto das coisas acontecerem, e isso a vida vai te ensinando.
vier na sequência tenha conhecimento do funcionamento de tudo, no tempo mais curto possível,
Quanto ao sentimento de alguma diferenciação na minha trajetória pelo fato de eu ser para encaminhar os aperfeiçoamentos que vislumbrar.
mulher e negra, eu não senti nada dentro da instituição. Na PMMG, tudo que eu consegui foi pelo

6 Programa para modelar processos.

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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

Assim, cada um desses cursos, cada uma dessas oportunidades me ajudou de alguma forma fomos nos adaptando ao longo da vida para poder realmente dar as melhores condições de estudo
na trajetória. Ou seja, a gente não pode ficar parada, a gente precisa aproveitar as oportunidades para ele. Precisávamos estar ao lado dele, pois não adianta a gente depois que o menino já está
que se apresentam. Esses talvez tenham sido os maiores desafios que eu tenho enfrentado. grande querer corrigir as coisas. Isso é um processo. Nós precisamos estar juntos com a criança
no caminho, ensinando a ela aquilo que nós achamos importante e aquilo que Deus revela para a
Trajetória profissional e maternidade
gente como importante.
Sempre que a mulher toma a decisão de se tornar mãe, ela precisa pesar muito quais serão
Felizmente, tanto meu filho quanto meu marido têm uma sensibilidade muito grande e me
as consequências. Eu tive que fazer várias adaptações. Tanto eu quanto meu marido. Para nós,
apoiam nas diversas situações. Nós nos apoiamos mutuamente. Quando meu marido fez um curso
tudo foi sempre muito planejado. Até nos casarmos, namoramos por dois anos e meio. Até porque,
de formação de sargentos, em 2011, eu ficava com nosso filho. Ele era novinho. Eu ficava com ele
minha mãe falou que não existe noivado “ad eternum” na casa dela. Então, tinha que resolver logo.
para meu marido estudar. Dizia ao meu marido: “Você vai estudar. Deixa que eu cuido dele”. Em
Após casados, fizemos opção por não ter filhos por três anos. A gente precisava ter esse momento
2013, quando fui fazer minha especialização, ele ficou com nosso filho para que eu pudesse estudar.
do casal, viajar juntos, fazer algumas coisas juntos, consolidar nossa casa. A gente comprou a casa
Ele me incentivou a fazer o curso de Direito e me incentivou nas outras especializações. Então, nós
antes do casamento. Quando mudamos para ela, já estava tudo mobiliado.
estamos juntos no mesmo objetivo e a gente aprendeu a abrir mão, a renunciar a determinadas
Eu era tenente quando decidimos tentar um filho. Trabalhava na atividade de execução coisas para que a família crescesse, para que ela permanecesse. E hoje, pelas mãos de Deus, temos
operacional, diretamente na rua. Durante a gravidez, fui trabalhar administrativamente. Entrei uma família saudável.
em licença-maternidade. Quando retornei, criaram o 49º BPM. É por isso que falo da questão da
A família é a nossa base. A gente precisa planejar muito bem todas as nossas ações, conversar
adaptação. Tudo tem que ser pensado, bem planejado.
muito. Não é o homem, o marido, superior à esposa, ou a esposa superior ao marido. Todos os dois
Tanto eu quanto meu marido trabalhávamos na atividade operacional e a gente procurava estão juntos debaixo de uma mesma missão. Assim entendo submissão. Não é um ser subserviente
trabalhar na mesma escala, mas não nos mesmos horários. Não tinha como trabalhar nos mesmos ao outro, a submissão é os dois sob uma mesma missão. Assim, precisamos trabalhar juntos para
horários. Então, eu trabalhava de 15 às 23 horas e ele pegava das 17 horas às 3 horas da manhã. que as coisas evoluam, cresçam. Porque se um pender para um lado e o outro pender para o outro,
Dessa forma, tinha um período em que nenhum dos dois estava em casa para poder ficar com fatalmente tudo vai ruir. Por isso, minha família é maravilhosa.
meu menino. Assim, eu saia de casa bem mais cedo, deixava meu filho na casa da minha cunhada.
Depois, quando saia do serviço às 23 horas, ia buscá-lo. 4. Gênero, raça e classe
Às vezes, quando a gente fala de dificuldade e problemas que a gente enfrentou, muitas Ser mulher negra? O que significa? Vou usar, como exemplo, a questão do cabelo. Cada uma
pessoas pensam assim: “Não, você é tenente-coronel da polícia! Você está numa boa posição! Foi usa o cabelo da forma como quiser. Então, nós temos mulheres negras e brancas que também
muito mais fácil para você!”. Mas não foi, gente! Não foi, não! fazem progressiva no cabelo para que o cabelo fique mais liso. Eu, em boa parte da minha vida,
relaxei meu cabelo. Mas, hoje eu me pergunto: “Gente, por que eu relaxava o cabelo? Era para ficar
Eu saía do serviço, pegava ele, bebezinho ainda, colocava na cadeirinha e voltava para casa.
mais fácil de cuidar porque eu não sabia lidar com meu cabelo afro? Com a maturidade, passei a
Meu marido só chegava em casa às 3h da manhã. Isso quando ele não ficava até mais tarde. Ele era
pensar da seguinte forma: “Vou mudar! Vou deixar meu cabelo natural”. Eu ficava me limitando das
do Gepar7. Às vezes, eu acordava às 5 horas da manhã e: “Gente! Cadê João?” Eu ligava para ele:
coisas, agredindo meu cabelo. Afinal, isso é uma forma de agressão. E por quê? Por que não posso
“O que aconteceu?”. “Ah, eu ‘estou agarrado’ numa ocorrência. Daqui a pouco eu chego aí! Então,
deixar meu cabelo natural?
a gente precisou fazer essa construção, de estarmos aliados no cuidado de nosso filho. Ele é uma
graça de menino, gosta de estudar. Ele ama Matemática. Parece que isso é de família. Enfim, nós Com essa mudança, observei, também, que isso mudou a forma das pessoas me verem. Achei
isso muito interessante e muito legal. Às vezes, eu chego, principalmente em alguma reunião, e as
7 Gepar (Grupamento Especialização de Policiamento em Áreas de Risco) é um grupamento policial militar voltado pessoas comentam: “Nossa, que legal! Seu cabelo está lindo!”.
para a “prevenção e a repressão qualificada aos crimes violentos e promoção social em áreas de risco”. Seu objetivo é
reduzir os índices criminais dessas áreas e traçar estratégias para reduzir o envolvimento com a prática de crimes.

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Capítulo 9 - Cleide Barcelos BARCELOS, Cleide; SILVA, Sérgio F.; SOUSA, Rosânia

Isso tem a ver com a forma com que nos identificamos. Eu não posso falar que não existam, Minha mãe sempre falou com a gente: “Olha, o Brasil tem uma dívida com a população negra,
ou que não possam existir dificuldades para as outras pessoas no geral por serem mulheres, por porque nos tirou de nossas casas e nos trouxe para um novo lugar”. E, assim que houve a abolição
serem negras. Cada um vai falar da sua vivência, daquilo que experimentou, daquilo que viveu. Eu da escravatura, não houve uma reestruturação da nossa sociedade de modo a absorver essa mão
me valorizo muito, eu sou negra, sou mulher e aonde eu chego ou que eu precise me apresentar, de obra, que foi negligenciada ao longo da história. E a gente ainda não conseguiu que houvesse
vejo nas outras pessoas um respeito, um reconhecimento muito grande. uma intervenção que fosse específica para igualar as coisas, igualar a situação, igualar em termos
de oportunidades.
Sobre a ausência de mulheres nos espaços de poder, sinto competência para falar de minha
experiência, da instituição em que atuo da qual conheço os critérios utilizados para a escolha Eu acho que o ideal seria dar a todos as mesmas condições de disputar vagas no mercado,
das pessoas, para execução das atividades. Na Polícia Militar, hoje, temos uma coronel mulher seja no setor público ou no setor privado e não necessitar de medidas compensatórias. Assim,
responsável pela diretoria de finanças da polícia militar. E temos, também, outras mulheres que por mais que tenhamos as cotas hoje, precisamos refletir sobre o porquê serem necessárias. O
estão atuando em outras áreas da PMMG. negro, invariavelmente, está na escola pública e não tem acesso a uma educação de qualidade, em
que pese termos escolas públicas boas. Assim, por que eu vou agir na consequência, se posso agir
Com relação a ser mulher negra, especificamente dentro da PMMG, eu me vejo como um
na causa e evitar problemas futuros? Então, eu preciso aprender a trabalhar nas causas, e assim
exemplo de que se nós nos dedicarmos, se nos aplicarmos naquilo que estamos fazendo, entregando
vamos dar condições iguais de oportunidade para todas as pessoas. Essa é a minha visão.
os melhores resultados dentro daquilo que é possível, nós vamos alcançar os nossos objetivos.
Essa aplicação vai ser reconhecida de alguma forma, mas isso eu posso falar do universo da PMMG. Em síntese: não temos as mesmas condições para poder enfrentar os desafios. Quando falo
Eu não tenho como falar dentro das outras instituições, porque aqui os critérios eles são mais de condições, falo de educação, de formação. Nós, negros, pobres e mulheres, invariavelmente, não
objetivos. Comigo, até hoje, foi dessa forma. temos oportunidades de ter um ensino de qualidade, uma formação de qualidade, para competir
em pé de igualdade com pessoas que tiveram essas condições, a vagas no mercado de trabalho.
O que destaco é que muitas vezes as pessoas não discutem essa questão de ser mulher e ser
É essa limitação na formação e na qualificação que prejudica e muito no momento de disputa
negra. Elas destacam, muito, o fato de ser uma oficial casada com uma praça. É curioso o que pode
em um concurso público, de uma vaga de emprego. Assim, o que a gente precisa é trabalhar na
chamar a atenção das pessoas. Em alguns casos, pode-se entender isso como um reconhecimento.
uniformização dessas oportunidades, de realmente buscar a qualificação de todas as pessoas, uma
Há pessoas que destacam isso: “Olha, você mulher negra nessa posição”. Mas eu gosto de destacar
melhor qualificação, um ensino que realmente seja efetivo para que todos nós no momento de uma
para elas: “Dediquem-se, entreguem-se, trabalhe com profissionalismo porque as coisas vão
análise, que deve ser objetiva e não subjetiva, realmente tenhamos condições de concorrer a essas
acontecer, uma hora ou outra elas vão acontecer. E nós somos capazes, todas nós somos capazes.
vagas em pé de igualdade.
Então, por mais que as forças externas a nós tentem nos fazer desanimar, tentem nos fazer parar,
tentem nos diminuir de alguma forma, nós precisamos buscar em tudo força para poder enfrentar Mito da democracia racial
situações adversas, para nos tornarmos cada vez melhores e fazer com que a nossa história nos
No caso da prevenção à violência doméstica, por várias vezes nos perguntam: são mais vítimas
fortaleça e a outras pessoas, para que elas possam vencer também. Então assim, me vejo hoje
negras ou são mais vítimas brancas que aparecem para vocês? A nossa seleção como ela é feita
mulher negra e bem-sucedida.
sobre os casos mais graves e reincidentes não favorece esse recorte. Atendemos mulheres brancas
Políticas de cotas do mesmo jeito que atendemos mulheres negras. O que inicialmente vai aparecer para gente, no
momento da triagem, são as histórias que são retratadas através do boletim de ocorrência. Então,
Hoje eu estou aqui não por que essa vaga foi designada para mulheres negras dentro da
do mesmo jeito que a gente atende pessoas do bairro Buritis, a gente atende nos aglomerados,
PMMG. Eu cheguei aqui com ajuda de muitas pessoas, com certeza, principalmente de meus
porque as histórias é que vão contar a real necessidade de intervenção.
familiares, mas por ter aprendido muita coisa, por ter feito entregas, por ter feito algo, por ter
conquistado esse lugar. Eu acredito muito na dedicação e na força do trabalho, e hoje eu me vejo Para nós, da área de segurança pública, as situações são sempre muito difíceis sob esse
como uma mulher negra bem-sucedida, casada, com filho. aspecto. Eu, por exemplo, já vi casos de policiais serem acusados de racismo, porque abordaram

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uma pessoa negra, sendo que a guarnição era composta só por policiais negros. Como? A farda 5. Uma mensagem, um legado
embranqueceu esse policial? A pessoa foi selecionada pela cor de sua pele?
Espero ser lembrada como uma mulher
Quando a gente fala da questão do encarceramento, já me fizeram esta pergunta: por que
negra que conseguiu enfrentar diversos desafios,
a nossa população carcerária é majoritariamente negra? Eu questiono se essa seria a pergunta
muitos problemas, vários obstáculos ao longo
correta. Vamos pensar nos fatos que levaram essas pessoas a serem encarceradas. As perguntas
da vida, mas que não desistiu, continuou em
normalmente são: Por que elas estão lá? O fato que levou essas pessoas ao encarceramento, ele
frente. Eu gostaria de ser lembrada como uma
ocorreu ou não ocorreu? Elas são autoras de roubo, furto, homicídio ou não? Elas cometeram, ou
pessoa que acredita que com profissionalismo,
não, algum crime? “Ah, ok! Elas cometeram um crime”.
dedicação e, principalmente, fé, é possível
Mas essas perguntas não levam ao cerne da questão: o que levou essas pessoas a cometerem vencer, seguir em frente, alcançar nossos
esse crime? Falta de oportunidade, falta de caráter, problemas de formação. Como podemos mudar objetivos. Talvez não da forma como a gente
isso? As pessoas encarceradas são oriundas de aglomerados e não foram alcançados pelo Estado, gostaria, mas da forma que é melhor para nós
sendo submetidas a uma situação de fragilidade. De que forma que a criminalidade entrou em suas naquele momento.
realidades? Ou são pessoas que tiveram todas as oportunidades e fizeram suas escolhas? Percebo
Gostaria, ainda, de deixar uma mensagem
que o envolvimento com a criminalidade, e o consequente encarceramento, são consequências
para que as pessoas acreditassem em si,
de um conjunto de fatores que nós precisamos atacar para colhermos frutos diferentes. Se atuar
principalmente acreditassem em Deus. Que
somente na superfície, eu não vou chegar a lugar nenhum. Eu preciso saber qual que é a origem,
tudo aquilo que fizerem, façam como se fosse
o que está fazendo esse gelo surgir, o que está solidificando essa água? Aí sim, eu vou conseguir
para Deus. Não fiquem esperando elogios
resolver o problema.
dos outros, não fiquem esperando parabéns.
Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras Porque aquilo que o ser humano vai poder fazer
por você é somente isso: parabéns, obrigada
Muitas vezes, lidar com determinados problemas implica tomar medidas, criar legislações
pelo seu serviço. Mas a recompensa que Deus
específicas. Por exemplo, a falta de respeito e a violência generalizada do homem para com a
vai dar a você por aquilo que você está fazendo
mulher demandou que se criasse a Lei Maria da Penha. Não se trata de uma lei só para mulheres.
vai além do seu ambiente profissional, alcança
Mas uma lei que aponta para algo óbvio – o que as pessoas, a sociedade, diga-se, principalmente os
sua vida pessoal, alcança todas as áreas da sua
homens, não conseguem enxergar.
vida. Se tiver que estudar, estude; se tiver que
É o mesmo com a questão da cultura afro. Ela deveria ter sido inserida nas escolas há muito trabalhar, trabalhe; levante cedo, corra atrás,
tempo. Mas não somente ela, também a cultura indígena. Ou seja, todas as outras culturas que busque realmente trabalhar com todos os
fazem parte da construção do nosso saber, da nossa identidade. Afinal, se eu não sei de onde vim, instrumentos que estão à sua disposição para
não consigo identificar quem sou, onde eu estou e não consigo estabelecer para aonde eu quero ir. conseguir alcançar seus objetivos. E acredite,
As culturas afro, indígena, europeia fazem parte da construção da identidade brasileira. E firmemente, que você vai alcançar. Você vai
todos precisam conhecer a fundo sobre isso. Precisamos valorizar uns aos outros e o entendimento conseguir.
mútuo, o conhecimento da história e da cultura do outro. É o que vai possibilitar esse respeito. O Tenente Coronel Cleide Barcelos, Comandante da 1ª
Companhia de Polícia Militar Independente de Prevenção à
conhecimento e o discernimento ampliam horizontes e são antídotos contra o preconceito. Violência Doméstica.
Crédito: Acervo Pessoal

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GONZAGA, Yone M.; SALEJ, Ana P.; MENDES, Maria C.

Yone Maria Gonzaga aos 17 anos –, ela trabalhava em uma fábrica de pregos e o patrão falou: “olha, quem casa tem que
Ana Paula Salej ter casa”. Então, ele a incentivou a comprar um lote na região onde ela já morava. Assim, adquiriu
Maria Clara Mendes esse lote onde reside até hoje. Eu e todos os meus irmãos nascemos e fomos criados no bairro
Ipanema, em Belo Horizonte.

A presença dos meus pais em mim


Minha família é tranquila, de mãe muito
próxima, extremamente rígida. Eu entendo
o peso de ter que criar bem seis filhos. Tinha

YONE
um grande medo das filhas engravidarem e dos
filhos mexerem com maconha. Falava: “Eu não
quero ter filho maconheiro” - isso era pesado
na época. Ela insistia: “A gente tem o trabalho

GONZAGA
e a palavra”. Então, coisas como honestidade,
verdade, ser muito sincero no que se fala, minha
mãe sempre cobrou muito. Dizia, também, que
o estudo era uma possibilidade. A minha mãe
trabalhou em várias coisas. Foi doméstica
1. Minha origem por muito tempo, foi vendedora de verduras,
trabalhou em um restaurante. Quando eu já
Meu nome completo é Yone Maria Gonzaga. As pessoas me chamam de
estava no Ensino Fundamental, minha mãe
Yone Gonzaga. Nos processos de colonização, uma das coisas que os nossos
tinha estudado até a terceira série, no interior.
perderam foram os nomes. Aqui no Brasil viraram: a Maria do fazendeiro X,
Foi só quando eu já estava na juventude que
a Francisca do fazendeiro Y. Apesar dos “nossos nomes” serem os “nossos
ela voltou a estudar. Na época do meu Ensino
nomes coloniais”, a gente precisa se afirmar com nome e sobrenome, como
Médio, passou em um concurso da Universidade
dizia Lélia Gonzalez. Então, eu sou Yone Gonzaga, membro de uma grande
Federal de Minas Gerais (UFMG) para o cargo
família negra: pai, mãe e seis filhos, contando comigo. Manoel Raymundo Gonzaga e Margarida Aparecida
de Auxiliar Operacional de Serviços Diversos. Gonzaga (in memorian) ao final da graduação
Meus pais são do interior de Minas. Meu pai, Manoel Raymundo Conseguiu ter um emprego público que deu da filha Yone Maria Gonzaga.
Gonzaga, é da cidade de Curvelo. A minha mãe, Margarida Aparecida Gonzaga, uma melhor sustentação financeira para nossa Crédito: Acervo Pessoal
é de uma cidade chamada Rio Espera, perto de Conselheiro Lafaiete. Ambos família. Após ingressar na UFMG, resolveu
vieram para Belo Horizonte na adolescência e se conheceram aqui. Minha estudar. Fez o curso de Auxiliar de Enfermagem
mãe havia perdido a mãe aos 5 anos de idade. Aos 13, quando perdeu o pai, e depois o curso de Técnico de Enfermagem.
ela e a minha tia, sua irmã mais velha, resolveram vir para Belo Horizonte Com isso, pode ter uma mobilidade na carreira
trazendo os irmãos. Logo que chegou, minha mãe foi morar na região do de técnica administrativa na universidade
bairro Ipanema/Frei Eustáquio, perto da Igreja Dom Bosco. Meu pai também e, quando se aposentou, ocupava o cargo de
morava mais ou menos na região. Quando foi se casar – casou muito cedo, Auxiliar de Enfermagem.

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Capítulo 10 - Yone Gonzaga GONZAGA, Yone M.; SALEJ, Ana P.; MENDES, Maria C.

Meu pai era pedreiro, trabalhava na construção civil. Analfabeto, não tinha essa dimensão me dei bem nas disciplinas, tanto de português quanto de matemática. Queria viajar, sonhava com
formal da escolaridade. Eu digo formal, porque ele sempre foi muito sábio. Lidou com todo mundo, viagem; sem essa oportunidade, acho que eu viajava pelos livros.
era muito tranquilo de lidar, de conversar com todos. Embora ele não soubesse Durkheim, Marx
No Ensino Médio, estudei no Imaco1 e eu era apaixonada por aquela escola que me
e tal, ele tinha a leitura e o conhecimento da vida, da oralidade, da tradição. Assim, ele dava conta
possibilitava transitar por outros lugares. Lá, eu fiz o curso técnico em Contabilidade. Ao final
de transitar em todos os meios. Como diz minha mãe, era muito mais tranquilo com a vida. Isso
do 3º ano, eu ia fazer vestibular, mas não tinha muita referência de cursos. Adolescente negra, eu
fez ele ter uma presença diferente na história da gente. Ele faleceu em 2014 e a lembrança que
não era estimulada a pensar nesse ingresso em universidade, no curso que iria fazer. Não, eu não
temos dele é de alguém que assobiava, que cantava. Com os netos, então, aí que ele deslanchava
tinha esse estímulo e nenhuma referência familiar. Então, quando li o caderno para o vestibular no
com as brincadeiras, as risadas, danças e tal. Com a gente, filho, não era tanto assim. Ele sempre
qual vinha a ementa de cada curso e quais universidades que ofereciam o quê, sabia que na PUC2
dançou conosco, mas com os netos dançou muito mais. A minha mãe falava: “Na família do seu pai,
e outras universidades privadas eu não podia entrar, porque eu não tinha dinheiro; eu teria que
se cair um garfo vira samba”. Hoje, com mais de 80 anos, minha mãe está adoentada. De vez em
entrar na UFMG. Aí, vi que o curso de Letras tinha muitas coisas que eu gostava (sempre gostei
quando, para provocar risada dela, eu jogo o garfo no chão. Eu vou todos os dias cuidar dela. Aí eu
de Literatura) e ainda tinha possibilidade de ter aulas à noite (eu tinha que trabalhar, não tinha
canto, faço barulho, ponho música. Eu gosto de brincar, de rir e de dançar. Ela fala assim: “Chegou a
condição de ficar estudando o dia inteiro). Foi meu primeiro e único vestibular, aos 18 anos, e eu
barulhenta”. Para ela, essa é a dimensão que era do meu pai e não dela. Eu acho que carrego muito
passei.
da presença dos dois, a seriedade da minha mãe para as coisas que eu pego para fazer e a leveza
do meu pai. Em 1981, ingressei na UFMG. Comecei estudando à noite e fui abrindo caminhos. Na
universidade, era tudo muito diferente do que eu vivia. Nessa época, tinha o 1º período chamado
Tenho um irmão e uma irmã mais velhos e três irmãos mais novos. Sou a terceira filha. Nossa
de “período básico”, que reunia as disciplinas das ciências sociais e a das ciências humanas, e as
vizinhança sempre foi bem tranquila e com uma relação muito boa. Como minha mãe era uma
pessoas desses cursos estudavam na Fafich, na rua Carangola. Para mim, foi muito interessante e
pessoa muito rígida, não permitia que a gente fosse para a casa dos vizinhos. Já os vizinhos, podiam
desafiador, porque, como eu disse, eu gostava de ler, mas Durkheim, Marx, Weber era um tipo de
ir todos para a nossa casa, então acolhíamos um monte de colegas no quintal para brincar, chupar
leitura que eu não tinha. O ciclo básico, com essa mistura, foi um momento de desafio e de nova
frutas, coisas assim. Eu tenho muitas lembranças de uma infância materialmente pobre, mas rica
ampliação de possibilidades. Em seguida, fui para as disciplinas próprias do curso de Letras, o que
de contatos. A gente não tinha televisão em casa. Assistíamos à televisão na casa da vizinha. Era
não era mais tão desafiador, pois eram disciplinas de Literatura, de que eu gostava muito. Eu me
muito interessante. Na casa dela, a sala era muito ampla, a televisão ficava lá no canto da sala
saía muito bem nelas. As minhas relações durante a graduação foram bastantes limitadas, já que
apinhada de gente. A vizinhança toda ia para a casa dela.
eu tinha horário a cumprir no trabalho. Não tenho amigas da época de graduação, meu contato
2. Os estudos com meus colegas se dava quase que estritamente em sala de aula.

Eu sempre quis estudar, fiz a graduação e logo depois a especialização em Gestão de Pessoas,
O meu irmão mais velho não se viu muito nos estudos. Ele acabou tendo de ajudar
também na UFMG. Mas eu sempre fiz um monte de coisas ao mesmo tempo. Quando eu terminei a
financeiramente a família, pois eram muitos filhos. A minha irmã teve vários problemas de saúde
graduação, tive atividades profissionais concomitantes. Ocupei o cargo de professora na Educação
quando pequena. Isso afetou muito as possibilidades dela, só depois de adulta concluiu o Ensino
Básica nas Redes Estadual de Minas Gerais e Rede Municipal de Belo Horizonte) concomitante ao
Fundamental. Eu sou a terceira filha, então eu consegui sair desse lugar e ter a possibilidade de
cargo de Assistente em Administração na UFMG. Além disso, aos 33 anos eu me casei. Em 1997, tive
estudar.
meu primeiro filho, Vitor Gonzaga, e o segundo, Tomás Gonzaga, em 2002. Com filhos pequenos,
Lembro-me que ainda, muito pequena eu já pegava as cartilhas da minha irmã, que é um tive que fazer uma opção e deixar uma de minhas atividades profissionais. Mesmo assim, logo
ano e meio mais velha e estava no Ensino Fundamental aprendendo a ler com dificuldades. Eu já ingressei na atividade sindical. Por isso não fiz o mestrado tão rapidamente.
lia. Assim, quando ingressei na primeira série, já sabia ler. Recordo-me de as professoras dizerem:
“Uai, você já lê!”. Muitas lembranças minhas têm a ver com a escola. Sempre fui muito estudiosa e 1 Escola municipal, que, na ocasião, ficava dentro do parque municipal; hoje funciona na Rua Gonçalves Dias.
2 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, uma universidade privada.

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Capítulo 10 - Yone Gonzaga GONZAGA, Yone M.; SALEJ, Ana P.; MENDES, Maria C.

Mestrado: colaborando para o letramento racial identitário de uma mas quando eu consegui categorizar essa forma de discriminação, passamos a trabalhar isso, a
categoria profissional pensar nas políticas afirmativas. Acho que o meu trabalho deu subsídios para esse movimento.

Em 2006, eu comecei a atuar no Programa Ações Afirmativas na UFMG, que era coordenado Doutorado: refletindo sobre a gestão da diversidade étnico racial
pela professora Nilma Lino Gomes. Participei de duas pesquisas coordenadas pela professora Inês
Eu finalizei o mestrado em 2011. Em 2012, participei da seleção para o doutorado, que
Assunção de Castro Teixeira: “Memórias e percursos de estudantes negros e negras na UFMG” e
comecei em 2013 com o objetivo de pensar a gestão da diversidade étnico-racial na UFMG. Meu
“Memórias e percursos de professores negros e negras na UFMG”. Quando ingressei no mestrado,
interesse era saber se a gestão da universidade mudou com a presença de um maior número
em 2009, quis pesquisar as memórias e percursos dos trabalhadores técnicos administrativos
de estudantes negros. De novo, a questão do racismo institucional acabou aparecendo muito
negros. Se a universidade tem um tripé – docentes, discentes e técnicos – faltava estudar uma
fortemente no doutorado. A gente vai observar que a universidade não se prepara para dar conta
dessas bases. Essa foi a minha questão para o mestrado. Fui orientada pela professora Nilma Lino
dessa presença negra, ela reage à presença dos estudantes negros. Os estudantes negros têm
Gomes, que já era uma sumidade na época.
uma demanda maior por políticas de permanência. Então, a universidade “corre atrás” e provê
Mas, no meio do caminho, tinham algumas pedras! Não havia informações institucionais sobre determinadas coisas. Com isso, quero dizer, que ela não se programa para atender as demandas
pertencimento étnico-racial dos trabalhadores da universidade, então um dos primeiros desafios desses corpos, porque não foi pensada para receber esses sujeitos. Por exemplo, é mais comum
para minha pesquisa foi construir essa base. Quando fui para o trabalho de campo, uma coisa que entre os estudantes negros que logo ao começar precisem e precisa ter acesso imediato ao vale
apareceu de forma muito intensa foi o questionamento dos trabalhadores brancos. Indagavam para almoçar. A universidade foi pensada por brancos para atender brancos.
porque eu queria dialogar só com os negros. Na universidade, havia outro tipo de discriminação,
Uma outra observação sobre a questão das cotas é que assim como a universidade não se
a discriminação docente-técnico. Infelizmente, o técnico tem um lugar de subcidadania dentro da
programa para atender os estudantes, também não se programa para formar seus trabalhadores
universidade. Acabei aplicando o questionário para pessoas de todos os pertencimentos raciais. A
(docentes e técnicos) para atuar profissionalmente com esses sujeitos que chegam na instituição.
fala das pessoas brancas, que também se sentiam discriminadas, apareceu com tanta frequência
Uma coisa é você falar sobre a negritude, outra coisa é você falar com competência técnica sobre as
que a professora Nilma disse: “Nós não vamos poder desprezar esse dado, vamos ter que trabalhar
relações étnicos raciais no Brasil, porque as pessoas acham que podem falar qualquer coisa sobre
com os brancos também”. Assim, minha pesquisa deixou de ser unicamente sobre os trabalhadores
a questão racial, que não precisa se formar. A universidade pactua com esse pensamento ao não
negros e passou a ser sobre os trabalhadores técnicos-administrativos3, as relações raciais e a
preparar político-afirmativamente os seus trabalhadores para lidar com a questão racial.
invisibilidade ativamente produzida.
O desafio de estar em um lugar que os meus não acessaram
Pensar na categoria técnicos-administrativos era pensar nas relações entre brancos e
negros dos mais diversos cargos, nas hierarquias, na invisibilidade ativamente produzida, tanto Na minha família, tanto paterna quanto materna, nós somos muitos primos. Na minha
para os brancos quanto para os negros. Lembra da máxima: “manda quem pode, obedece quem geração, fui a primeira pessoa a ingressar na universidade. A primeira a fazer graduação, a tirar
tem juízo”? Os técnicos tinham que obedecer. Mas havia ainda uma diferença nesse processo, os carteira de motorista, a entrar na pós-graduação, a primeira, primeira, primeira! Isso acaba sendo
técnicos negros eram muito mais descriminados. Além de serem técnicos, eram negros. Acho que uma marca que eu carrego, para bem e para o mal.
esse processo foi interessante, porque muitos trabalhadores se reconheceram na minha pesquisa. Minhas conquistas eram vitórias para meus pais, mas também para a família. Quando me
O sindicato se apropriou muito dessa categoria da invisibilidade e do meu texto para pensar e formei no Ensino Médio, o Imaco tinha a colação de grau e uma missa de formatura. Lembro da
ampliar o seu próprio posicionamento em relação às políticas afirmativas. Gosto muito desse meu família toda lá. Pelo menos um de cada família foi para a minha formatura. Na graduação, da mesma
trabalho porque, de certo modo, foi uma forma de letramento racial-identitário de uma categoria forma. No mestrado e no doutorado, o núcleo familiar mais próximo estava lá junto comigo. Para
profissional de trabalhadores. As pessoas falavam da forma como eram tratadas pelos docentes, minha família, sempre foi motivo de muita alegria ver uma filha, sobrinha chegar nesse lugar de
doutora. Papai falava assim: “Minha filha vai ser doutora”, mas ele infelizmente já tinha falecido
quando defendi minha tese de doutorado em 2017. A minha mãe esteve em todos esses momentos.
3 Esse é o nome da categoria profissional estudada.

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Como ela trabalhava na UFMG, era comum ter pessoas falando que os filhos haviam entrado na Na UFMG, ao sair do Hospital das Clínicas, eu fui para a Pró-Reitoria de Recursos Humanos
universidade. Para ela, era um orgulho responder que a filha também tinha conquistado esse assessorar a Comissão Permanente de Pessoal Técnico-Administrativo (CPPTA). Trabalhei lá por
espaço. dois anos e fui em seguida para a Divisão de Recursos Humanos, que era a área central de recursos
humanos (RH) da universidade. Fiquei por vários anos e cheguei a ser coordenadora da área de
Algumas pessoas na família, às vezes, não entendem o tanto que eu insisto para buscarem
avaliação por um período. Por fim, fui coordenar a área de gestão de pessoas da Faculdade de
na educação uma possibilidade diferente. As primas da minha geração se casaram com 18, 20
Odontologia. Nos 14 anos em que fiquei, fui chefe. Como os cargos que ocupei na universidade
anos. Aos 40, já estavam todas sendo avós. Tiveram filhos muito novas e as filhas tiveram a
eram administrativos, eles não eram vistos com relevância dentro da universidade. Lá, os cargos
mesma trajetória das mães. Não quero dizer que a maternidade não seja uma coisa bacana, mas
vão sendo ocupados pela pessoa que executa bem suas funções. Acho que por isso cheguei a esses
eu penso que é preciso se estruturar para ser mãe, para ser pai. Ter um emprego, uma profissão,
cargos.
ter o mínimo para oferecer para a criança. À medida que eu ia colocando isso para as minhas
primas e depois para as filhas das minhas primas, nem todos entendiam. Não compreendiam a Eu ampliei minha atividade sindical no início dos anos 2000. Fui coordenadora de políticas
necessidade de construção de outras possibilidades para as mulheres. Minha irmã e meus irmãos sociais do Sindicato dos Trabalhadores nas Instituições Federais de Ensino (Sindifes/BH) por algum
não fizeram um curso superior, então sempre foi um desafio de estar em um lugar que os meus tempo. Quando entrei na universidade, o plano de carreira dos trabalhadores técnicos era da década
não acessaram. Eu tinha que conseguir dar conta da gramática da universidade, do vocabulário e de 1980. O processo de discussão do plano de carreiras na universidade vinha sendo gestado ao
todas as possibilidades que estar na universidade oferecem e, ao mesmo tempo, eu não poderia longo de décadas. Com a chegada do Lula ao governo, a aprovação de um novo plano de carreiras
esquecer de onde vinha. É por isso que brinco que é para o bem e para o mal, porque isso exige se tornou uma coisa mais palpável. Em 2005, foi formada uma Comissão Nacional para discutir o
muito de mim até hoje. Há uma outra coisa, ser doutora: são poucas as mulheres doutoras, poucas novo plano e eu integrei essa comissão, ia a Brasília e participava dos congressos da Federação de
mulheres negras doutoras. Eu estou entre as poucas mulheres negras doutoras, lidar com isso é Sindicatos dos Trabalhadores das Universidades Brasileiras (Fasubra)4. Na UFMG também havia
um permanente desafio. uma comissão que discutia o plano de carreira dos trabalhadores técnicos da universidade e eu
fui eleita pelos trabalhadores técnicos para representá-los. Atuei como subcoordenadora dessa
3. Trajetória profissional comissão. Quando meu nome saía no boletim da universidade, minha mãe gostava, comentavam
com ela: “eu vi o nome da sua filha”, a filha da Margarida.
Aos 9 anos, eu já ajudava minha mãe. Ela tinha uma barraquinha de vender legumes e
verduras e eu ficava nessa barraca. A gente achava que tinha obrigação de ajudar. Sempre assumi Eu trabalhei também como docente em cursos de extensão da universidade. Fui professora
a responsabilidade educacional dos meus irmãos mais novos. Minha mãe trabalhava, não tinha no curso de Políticas de Promoção da Igualdade Racial na Escola5, no curso de Formação de
como ir às reuniões de escola, então eu ia, ensinava o dever de casa, levava ao pediatra e para Tutores do Juventude Vida e em cursos de capacitação promovidos pela PRORH6, nesse último
tomar vacina. São lembranças de uma infância de muita responsabilidade. caso atuei por muito tempo como professora formadora na área de Português Instrumental para
os trabalhadores técnico-administrativos. A experiência docente nos cursos de extensão e de
Quando eu estava no Ensino Médio, minha mãe ainda trabalhava em um restaurante. Estagiei
capacitação da universidade também foi muito interessante. Agora eu sou professora contratada
na Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), no setor responsável pelo Código de Posturas. Da PBH fui
na Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso), onde oriento estudantes de Mestrado
trabalhar em um escritório de contabilidade, onde fiquei até iniciar a universidade.
do Curso Estado, Gobierno y Políticas Públicas.
Na época em que comecei o Ensino Superior, passei no concurso da UFMG para o cargo
de técnico-administrativo. Fui designada para atuar no Hospital das Clínicas da UFMG. Quando
terminei a graduação, tornei-me professora da Educação Básica. Mantive o trabalho concomitante 4 O ano de 2004 foi de grande mobilização e vitórias para a Federação. Depois de uma greve que durou aproxima-
ao da universidade por 12 anos. Ao ter o meu primeiro filho, saí da educação básica. Meu salário damente 90 dias, a categoria conquistou o Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos das Ifes - Institui-
ções Federais de Ensino Superior, instituído pela Lei nº 11.091/2005.
nessa atividade era menor, então eu tive que fazer uma opção, e optei por continuar na universidade.
5 Um projeto da Uniafro em parceria com as universidades.
6 A Pró-reitoria de Recursos Humanos da UFMG oferece aos trabalhadores uma série de formações.

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Em 2016, fui liberada pela Faculdade de Odontologia para a assumir o cargo de Superintendente Geografia e o professor de História, porque havia aprendido na militância no movimento negro essa
de Políticas Afirmativas na Subsecretaria de Promoção da Igualdade Racial (SUPIR), da Secretaria necessidade. Outra coisa interessante é que alguns estudantes nunca tinham ido ao centro de Belo
de Direitos Humanos, Participação e Cidadania do Estado de Minas Gerais (Sedpac), onde fiquei Horizonte. Fizemos excursão ao campus da UFMG, já que eu também trabalhava na universidade.
até o final do mandato do governador Fernando Pimentel. Voltei para a UFMG e logo me aposentei Os levei para ver os prédios, conhecer a reitoria e entender o que era, conhecer a faculdade de
em 2019. Letras, onde eu tinha estudado, e a biblioteca. Essa experiência de conhecer outro espaço, outra
possibilidade, nunca tinha acontecido na minha vivência como estudante, por isso sempre pensei
Hoje eu tenho uma microempresa de consultoria de relações étnicas, raciais e gênero. O
em proporcionar isso para meus alunos.
trabalho com formação de gestores tem sido uma das nossas atividades. O meu desejo de trabalhar
com gestores e gestoras é justamente para produzir uma mudança institucional. Por isso tenho me Eu fiz outro concurso para rede municipal de Belo Horizonte, onde trabalhei por cinco,
especializado muito nessa área. Ela tem aspectos do conhecimento técnico, da relação política, da seis anos. Em uma escola na região noroeste, Escola Municipal Padre Edeimar Massote. Nesse
relação dialógica com os vários movimentos sociais. Alguns gestores ficam engessados em suas período eu encontrei um grupo de professores que já tinham uma ação mais voltada para a
salas produzindo as legislações e orientações, sem desenvolver o diálogo com o seu entorno. relação étnico-racial, um pensamento mais aberto para educação. Era um grupo mais da esquerda
de uma militância política. Nossa escola era referência na prefeitura de Belo Horizonte. Vários
A atividade de docência na educação básica, um período de muito
professores depois dali foram ser formadores no Centro de Aperfeiçoamento de Professores da
aprendizado
rede municipal. Considero que aí pude aperfeiçoar minhas atividades na docência, porque eu já
Logo que me graduei, passei em um concurso da rede de ensino estadual e fui trabalhar em tinha passado por um letramento na escola estadual. Ao saírmos da faculdade encontramos uma
uma escola pequena no bairro de Venda Nova, E.E. Professora Maria Coutinho, que estava iniciando gramática do cotidiano, da sala de aula, que a gente não aprende, que o dia-a-dia vai nos ensinar.
o processo de ampliação. Atuei lá como professora de português, por seis anos. Acompanhei a Nessa escola a experiência foi muito mais proveitosa, no sentido da percepção do que eu poderia
criação da quinta, sexta, sétima e oitava séries do primeiro grau dos alunos daquela época. Nessa fazer, como dialogar com outras instâncias educacionais fora da escola, como o teatro, o cinema,
região da periferia de Belo Horizonte, as famílias tinham migrado de outras cidades do interior. As a rede de bibliotecas. Essa escola possibilitava tudo isso e, como professora de Português, eu me
crianças vinham de Santa Luzia, Sete Lagoas, da região metropolitana; para eles, estar em Venda apropriava dessas possibilidades. Assim, os 12 anos na educação básica foram um período de
Nova fazia diferença. Era uma ascensão: “eu sai lá de Santa Luzia e agora estou aqui em Venda muita aprendizagem.
Nova”. Então, os estudantes e as estudantes tinham uma referência extremamente positiva em
O desafio da gestão na Faculdade de Odontologia
relação à escola em Belo Horizonte.
A Faculdade de Odontologia funcionava na Cidade Jardim e nos anos 2000 foi transferida para
Nessa escola as famílias estabeleceram uma relação muito próxima e como nessa região não
o Campus Pampulha. Quando eu cheguei, fui bem acolhida pelos meus colegas técnicos, muitos já
havia muitas possibilidades de lazer, aos sábados, na escola, jogavam vôlei, futebol. Tivemos um
me conheciam por causa da atuação sindical, mas tive uma rejeição muito grande dos docentes.
casal de professores que deram práticas agrícolas e eles fizeram uma horta. Assim, além de ir
Além disso, a presença de pessoas brancas em lugares de mando era muito maior. Estavam
para brincar nos pátios da escola, nos sábados os alunos também regavam essa horta. Assim foi
acostumados a fazer as coisas do jeito que eles queriam. Na gestão de pessoal, uma parte grande
se criando uma aproximação, fortalecendo vínculos e a rede de proteção da escola. Hoje, a gente
das atividades eram normatizadas e muitos não gostavam, achavam que eu que queria mandar e
observa violências, invasões em escolas. Nos anos em que eu trabalhei lá, não havia essa história
não que aquela era a norma. A leitura que eu fazia desse comportamento era que, como eram em
de depredação da escola. A comunidade, como participante da escola, via esse como um espaço de
sua maioria homens, brancos e ricos, sempre mandaram. De repente, chega uma mulher, negra e
possibilidades.
pobre para mandar.
Também foi aí que comecei a introduzir a questão étnica racial nas minhas aulas de Português,
trabalhando com alguns textos e músicas. Ainda não havia uma legislação sobre a inserção do
tema nos currículos, mas eu já o inseria em um trabalho bastante articulado com a professora de

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A pessoa que me antecedeu tinha um olhar mais cartorial – abrir o processo, encaminhar, de políticas para todos esses segmentos era um desafio, porque até então eu não conhecia o
preencher o formulário. Eu queria olhar para além dos processos, por exemplo, dar atenção para funcionamento da máquina administrativa estatal do poder executivo. Para isso, precisei correr
as pessoas que estavam insatisfeitas em determinados setores. Resolver essas outras questões era atrás de outros conhecimentos, leituras e de pessoas para pensar projetos, pensar a relação com
prioritário para mim. O plano de carreira era muito recente e falava sobre a possibilidade de os a Assembleia Legislativa, a relação entre secretarias. Nossa política de promoção da igualdade
técnicos também terem melhoria salarial quando fizessem cursos. Então eu tinha muito interesse racial era uma política transversal e intersetorial. Compreender isso e perceber onde e com quem
em possibilitar que os técnicos fizessem os cursos. De certa forma, esse meu interesse quebrou poderíamos dialogar para efetivar uma política de promoção da igualdade racial foi um desafio.
uma lógica que existia na unidade, pois os técnicos chegavam lá às 8 horas da manhã e trabalhavam
A segunda ordem de desafios estava relacionada ao racismo institucional. Até então,
até 5 horas da tarde para atender às necessidades dos alunos e docentes. A partir do momento que
não havia uma subsecretaria ou uma superintendência que tivesse a política de promoção
esses técnicos passaram a sair para fazer um curso no RH central ou na faculdade, ficou evidente
da igualdade racial pensada como política pública. Quando dizíamos: “eu sou da Secretaria de
que os docentes não estavam acostumados a dialogar com os técnicos e compreender que eles
Direitos Humanos”, as pessoas tinham uma noção, ainda que vaga; mas quando falávamos: “eu sou
tinham direitos. Esse início foi desafiador. Depois, as pessoas foram aprendendo que há uma lei
da Subsecretaria de Igualdade Racial”, a pessoa já torcia o nariz. Vinham com aqueles discursos
que fala dessas possibilidades para os técnicos e das responsabilidades profissionais. Consegui
construídos de igualdade, em uma lógica de exclusão das diferenças, como se todo mundo fosse
ir mostrando que, à medida que o técnico aprendia mais, dava melhor retorno no trabalho que
igual e não precisássemos de uma subsecretaria específica para negro. Além disso, as pessoas não
desenvolvia.
compreendem a questão racial para vários sujeitos, elas só pensam no negro e na negra.
Acho que, por isso, ao sair da Odontologia, muitos docentes falaram “vou sentir muito
Os desafios colocados pelo racismo institucional foram muito intensos. Fazer as pessoas
sua falta”. Eu já tinha conseguido uma organização do trabalho e uma compreensão da inserção
entenderem que nós precisamos de uma política afirmativa porque ela trabalha na lógica da
dos trabalhadores como participantes do que se produzia na Odontologia. Eu sempre dizia que
reparação, na lógica da garantia dos direitos humanos, que esses sujeitos são humanos e que
Odontologia não pode só tratar de dente, ela é uma unidade vinculada à saúde. Ter essa compreensão
indicadores sociais mostram a desigualdade a que essas populações estão sujeitas. Esse discurso
maior, de que a pessoa não é só boca, mas um todo, faz parte de uma coisa mais ampla, a saúde,
precisava ser reiterado inúmeras vezes durante o dia.
o SUS. Houve gente que foi fazer graduação na Odontologia, Serviço Social, cursos de Gestão em
Saúde, entre outros, a partir desse diálogo que eu vinha promovendo sobre as possibilidades que Além disso, a nossa articulação ela se dava internamente dentro da secretaria. Então
o plano de carreira oferecia e do que era a Odontologia no contexto da universidade. compreender o que se dava dentro de outra secretaria, por exemplo, quais os recursos e as políticas
aquela secretaria já tinha e que poderiam ser transversalizados pela questão da igualdade racial,
Compreendendo o funcionamento de uma outra máquina pública
não era fácil. Para isso, nós criamos o Fórum Intergovernamental de Políticas de Promoção da
Eu fui indicada para o cargo de Superintendente de Políticas Afirmativas na Subsecretaria de Igualdade Racial, convidamos todas as secretarias para participar expondo seu objetivo. Assim,
Igualdade Racial (Subir), da Secretaria de Direitos Humanos, Participação e Cidadania do Estado fomos localizando em que lugar havia políticas já desenhadas em que a gente poderia atuar para
de Minas Gerais (Sedpac) quando essa secretaria foi criada, na gestão do governador Fernando promover a igualdade racial. Por exemplo, uma secretaria tinha um programa que trabalhava com
Pimentel, do Partido dos Trabalhadores (PT). A secretaria era coordenada por Nilmário Miranda. hortas comunitárias, aí mostrávamos que em um quilombo havia uma hortinha que poderia ser
Havia o desejo de que a subsecretaria fizesse articulação com a esfera federal que era coordenada potencializada ampliando as possibilidades de consumo próprio, mas também as possibilidades
pela professora Nilma Lino Gomes, Ministra da Seppir. econômicas daquele coletivo – isso é fazer uma política afirmativa. Ter essa leitura, conseguir
sensibilizar quem estava em outra secretaria de que aquele quilombola é um sujeito de direito,
Costumo dizer que o desafio da secretaria era de duas ordens. A primeira era compreender
e que o investimento em uma política afirmativa ali traria retornos significativos tanto para esse
o funcionamento dessa máquina pública muito diferente. Como superintendente de políticas
sujeito como para o Estado era desafiador e muito interessante e me possibilitou ir conhecendo a
afirmativas, eu tinha que dar respostas, tinha que pensar políticas para atender aos segmentos
estrutura por dentro.
tendo como premissa a gestão étnico-racial, já que nós trabalhávamos não só com negros, mas
também com indígenas, ciganos, comunidades tradicionais, ribeirinhos. Pensar possibilidades

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Foram muitos aprendizados. Em algumas secretarias tivemos muitos retornos de gestores instituições de ensino em que o programa divulgado eram as melhores, o grupo de estagiários
que diziam: “nunca fomos indagados/orientados a pensar dessa forma”, a pensar sobre esses era muito homogêneo, jovens brancos e brancas. Insistimos: se o banco é de desenvolvimento,
sujeitos a partir dessa lógica. A política pública muitas vezes é pensada no território: “o território ele tem que ter uma política afirmativa. Aí eles abriram a possibilidade de inscrição para outras
x tem um número maior de pobres, então temos que ter cisternas na política de saneamento, para faculdades. Em um dos debates que fizemos sobre política afirmativa, uma moça negra que morava
esse pessoal”. Nunca pensavam naqueles sujeitos como sujeitos negros ou como sujeitos negros em Ribeirão das Neves e fazia o curso de Administração em uma faculdade particular, contou
empobrecidos por causa de passado histórico de escravização, de colonização. Por que tem mais que quando viu a chamada de inscrição para o estágio nunca tinha pensado na possibilidade de
territórios quilombolas no norte de Minas? Esses sujeitos saíram dos litorais e adentraram o atuar no BDMG. Antes de se inscrever, pensou mil vezes, aí foi conversar com uma professora que
território para que pudessem ter possibilidades de vida. Pensar isso histórica e politicamente foi falou: “inscreva-se, o não você já tem, você pode ter o sim”. E ela teve o sim. Negra, de Ribeirão das
algo novo. Neves, em uma faculdade pequena, em que ela tinha entrado graças à bolsa que conseguiu pelo
Prouni. Essa moça já adulta tinha uma filhinha que deixava com a mãe para poder trabalhar e
Um projeto da Subir que eu gostaria de
pagar os estudos, entre outras coisas. Ela contou que ser estagiária no BDMG possibilitou ter uma
destacar é o Programa Pró-Equidade de Gênero
remuneração melhor, assim poder pagar uma pessoa para ficar com a bebezinha um período e não
e Raça, no qual trabalhamos com Rede Minas,
sobrecarregar a mãe. As políticas afirmativas alteram a engrenagem e saber que essas alterações
Copasa, Cemig, BDMG e Codemig, na esfera
na engrenagem também são resultado de seu trabalho e esforço é muito legal.
estadual, e os Correios, da esfera federal. Foi
muito interessante quando fomos conversar Por fim, estar na secretaria me possibilitou conhecer os quilombos fora da região metropolitana
no BDMG. Uma das coisas que a gente afirmava de Belo Horizonte – os territórios indígenas, os ciganos e assim saber e falar de uma realidade que
era necessidade de ter condições diferenciadas vai muito além do que se ouve.
de financiamento para esses grupos que
constituem um coletivo mais empobrecido 4. Reflexões
da nossa realidade mineira. Sendo o BDMG
Minha construção identitária
um banco que pensa no desenvolvimento, era
importante agregar esses sujeitos e considerar Minha construção identitária já vem desde sempre. Por tudo que o racismo produziu,
suas especificidades. A primeira vez que discriminação e medo, na minha casa a minha mãe falava: “vocês são pessoas negras, têm que saber
falamos isso o pessoal arregalou olhos, como aonde vão, com quem vão, porque com as pessoas negras o peso [da violência policial] é maior”. Ela
se dissessem: “Que coisa é essa? Quem é essa nos orientou, principalmente os meus irmãos, homens negros. Assim, a gente sempre se entendeu
louca? ”. negro. A militância foi me ajudando a compreender politicamente essa forma de estar no mundo.
Não porque eu fosse pior, mas porque havia a pressão do racismo, havia uma hierarquização.
Outro caso interessante no BDMG é que
contávamos com uma equipe muito bacana Eu só fui fazer uma leitura racial de como a sociedade nos tratava de forma diferente na
de parcerias dentro do programa. Ao falarmos juventude. Na minha época, quem se destacava em Matemática era o tal da escola. Eu era esse
do projeto de estágio que era oferecido para destaque em Matemática. Na minha turma de primeira a quarta série tinha um menino que também
a PUC e para a UFMG, alertamos que, como as era excelente em todas as disciplinas, mas ele tinha uma coisa diferente, a mãe dele era professora.
Minha mãe tinha estudado no interior, não tinha tido oportunidades educacionais. Assim, no dia
Em homenagem aos 70 anos de Sueli Carneiro, filósofa, da entrega do diploma na quarta série, ele recebeu uma medalha de honra ao mérito e eu estranhei
ativista do Movimento Negro Brasileiro e do Movimento de eu não ter recebido uma medalha também; as notas dele eram iguais as minhas, senti não ter
Mulheres Negras. Junho de 2020.
recebido. Minha foto da quarta série com o diploma não foi com a minha professora. Eu tirei foto
Crédito: Acervo Pessoal

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Capítulo 10 - Yone Gonzaga GONZAGA, Yone M.; SALEJ, Ana P.; MENDES, Maria C.

com uma professora da terceira série, que era uma pessoa que sempre me valorizava. Essas coisas Inserção da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos
são marcantes. Eu só fui perceber esse fato como uma questão racial, como uma discriminação
Eu gosto de pensar que a Lei 10.639/2003 que institui a obrigatoriedade da inserção de
sofrida por estudantes negros, a partir da militância no movimento social e depois, enquanto
história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos como resultado da luta da militância
pesquisadora, quando fui investigar as várias violências raciais sofridas pelas crianças negras na
negra. Quando a gente pensa o Teatro Experimental do Negro, nos damos conta que Abdias do
escola.
Nascimento e Guerreiro Ramos já falavam da necessidade de trazer os elementos culturais das
Eu descobri o movimento negro, na adolescência. A bibliotecária do colégio onde eu estudava africanidades para as escolas. Os movimentos negros foram gestando essas possibilidades. Eu
sempre me via lendo, eu ia muito à biblioteca, um dia ela me perguntou: “por que você não entra tenho uma carta em minha casa, de 1989, agendando uma reunião do movimento negro para
para o grupo de jovens?”. Assim, comecei a participar do grupo de jovens na igreja católica. Em um discutir a questão racial na educação. A gente já pensava em educação étnico-racial, embora não
dos encontros de formação, um dos formadores falou de um grupo de consciência negra, fiquei nomeasse assim. O movimento negro questionava a ausência dos negros nos livros didáticos e nas
interessada em saber. Ele era seminarista, deixou o telefone para a gente ligar para ele, mas só disciplinas.
podia ligar em um determinado horário. Aí eu ligava naquele horário, de ficha, as fichas caíam e eu
A lei é fundamental, mas as diretrizes curriculares precisam também ser conhecidas.
não conseguia conversar direito. Ele então me convidou para uma reunião. Eu fui a essa reunião e
Conhecer as diretrizes e como aplicá-las em todos os níveis de ensino é fundamental. A lei tem
partir daí a outras, assim comecei a participar do Grupo de União e Consciência Negra (Grucon).
potencialidades que precisam ser mais exploradas. Obviamente que se implementada de fato
Um grupo que tinha expressão em nível nacional. Ele era organizado em 13 estados do Brasil e
negras e negros terão um fortalecimento, porque suas matrizes serão valorizadas. Infelizmente,
se articulava muito com o Movimento Negro Unificado (MNU), participei de muitas atividades
ela não tem sido implementada como precisaria e tem vários discursos que justificam isso. Tem
conjuntas em Belo Horizonte. Isso me possibilitou conhecimento político, ampliação de horizontes
professores que falam até hoje: “Não sei o que fazer para implementar”. Por que não agem como
– tive inclusive a possibilidade de viajar. Conheci de fato o movimento negro em torno dos 22. Essa
no caso de outras legislações, onde são proativos? O que está por trás dessa passividade? Tem
militância também abriu portas para mim. Hoje, faço parte da Rede de Mulheres Negras de Minas
professor que fala assim: “Eu não trabalho a lei, porque não tenho material”. Não preciso criar um
Gerais. Iniciamos em 2015 organizando a marcha nacional. Em 2018, realizamos a Marcha das
material, eu preciso ser crítico ao material que tem na sala de aula. Isso de não saber ou de não ter
Mulheres Negras. A marcha é manifestação de um processo contínuo de reflexão e articulação.
material para implementação da lei faz parte do discurso racista.
A cosmovisão africana
Quando meus filhos estavam na educação básica, os professores muitas vezes dialogavam
Com a militância também tive um contato maior com as religiões de matriz africana. Minha de uma forma muito caricatural ou só falavam sobre o negro na cultura, na dança, na música e no
mãe era católica, então fomos criados na igreja católica. Sei que meu avô, pai do meu pai, era católico, futebol. Não mostravam a verdade, o negro construiu nosso país. Os meus filhos já sabiam disso,
vicentino e teve um terreiro de umbanda. Mas minha mãe não permitia que fôssemos à casa do mas nem todo o mundo tem essa oportunidade de ter uma mãe que dialoga com eles sobre a
meu avô nessas ocasiões. Meu avô era muito conhecido no bairro, lá sempre fomos os netos do José questão.
Júlio. No meu bairro tinha Congado e a gente conhecia todo mundo, mas não participava. Quando
Na primeira infância, meus filhos estudaram em escolas municipais. Mesmo antes da
saíam pelas ruas, passavam pela nossa porta. Na militância conheci a Comunidade dos Arturos,
aprovação da lei, a rede municipal já tinha um núcleo de formação étnico-racial. Na PBH, essa
com que tenho uma afinidade muito grande, uma amizade. Lá fui Rainha Festeira em 2007.
disputa já estava posta na Secretaria Municipal de Educação. Patrícia Santana, Maria do Carmo
Aprendi que para as religiões de matriz africana não há essa cisão das coisas, tudo é uma Galdino, Fátima Gomes, Mara Evaristo e sua irmã Macaé Evaristo formavam um núcleo de pessoas
construção. São vários os caminhos. Muita gente fala que não entende uma pessoa que vai, por que pensavam as relações sociais na educação, que também eram da militância. Uma das primeiras
exemplo, no Congado e vai também no Candomblé. Isso é possível porque as religiões de matriz coisas que esse núcleo propôs e a prefeitura encampou foi a elaboração de um kit literário. Nesse
africana não são uma caixinha fechada, você pode ter a possibilidade de ser isso e aquilo. A kit eram colocados livros escritos por pessoas negras ou que trouxessem a temática étnico-racial.
cosmovisão africana te possibilita isso. Como tudo é construção e há vários deuses você não precisa Assim, meus filhos tiveram a oportunidade de fazer essas leituras, assim como outras crianças que
ficar limitado a um espaço ou a uma religião. estavam na rede municipal na época.

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Capítulo 10 - Yone Gonzaga GONZAGA, Yone M.; SALEJ, Ana P.; MENDES, Maria C.

A luta pelas políticas afirmativas (cotas) na universidade Como já disse, há uma entrada muito maior de estudantes negras e negros, mas esses
estudantes se deparam com o racismo institucional. Ainda é grande a ausência de temas voltados
Eu fui uma das pessoas que lutou pelas cotas. Participei da Marcha Zumbi dos Palmares
para a questão racial nos cursos. A leitura que eu faço hoje é que, apesar de termos as disciplinas de
em 1995, de passeatas em Belo Horizonte, da mobilização dentro da UFMG. A universidade não
literatura portuguesa e literatura brasileira, as questões raciais não estavam presentes na minha
implementou cotas enquanto não virou lei. A nossa luta na universidade foi muito intensa, mas o
graduação. Cruz e Sousa, Machado de Assis e tantos outros não eram destacados como autores
racismo institucional fez com que a universidade não fizesse essa opção. Quem me sensibilizou e
negros ou autoras negras.
me politizou para a defesa das cotas também foi o movimento negro, não foi a universidade. Foi no
movimento negro que eu comecei a compreender a ausência de corpos negros na universidade, A ausência dos conhecimentos negros nos currículos ainda persiste. Desde 2003, temos a lei
nesse lugar da produção do conhecimento. Comecei a trabalhar muito cedo na universidade e em 10.639/2003, que fala da obrigatoriedade da inserção de história e cultura africana e afro-brasileira
uma unidade da UFMG que tinha muitos negros, o Hospital das Clínicas. Mas ali os negros ocupavam, nos currículos e, no entanto, a universidade, que é uma instituição formadora de profissionais
e ainda hoje ocupam, lugares determinados: atividades da infraestrutura, do restaurante, do continua sem essa referência. Em algumas áreas, há um pouco mais dessa inserção temática, mas
serviço de nutrição, de lavandeira, do serviço de enfermagem e outros. Quero dizer: há uma massa em outras não. Por exemplo, na graduação da Faculdade de Educação, onde fiz o mestrado e o
de profissionais negros, mas quem os comandam, em geral, são profissionais brancos. Essa leitura doutorado, ainda não há uma disciplina específica de história da cultura africana e afro-brasileira.
racial de lugares ocupacionais, eu comecei a fazer no movimento negro.
A academia e a militância
Quando o debate de cotas veio trazido pelos movimentos sociais, logo comecei a fazer esse
Eu geralmente indago a forma com a questão da militância é apresentada pela academia.
debate também na universidade. Já compreendia que os trabalhadores negros da universidade
Acho que há um desejo de hierarquizar conhecimentos, distinguindo conhecimento e prática,
estavam em trabalhos mais precarizados dentro do organograma institucional. Percebia a ausência
conhecimento e saber. Entendo que a academia usa dessa forma dicotômica para hierarquizar.
de professoras e professores negros, uma cisão evidente entre estudantes e professores brancos e
Gosto muito do livro O Movimento Negro Educador, da professora Nilma Lino Gomes. Nele ela fala
técnicos negros. Isso fez também com que eu me engajasse nos diálogos pela aprovação das cotas.
muito dessa possibilidade de educação e de reeducação que os movimentos negros trazem para a
No final de 2008, a UFMG aprovou a política de bônus, eu participei desse debate. Em seguida sociedade brasileira. Não só para o campo acadêmico, mas para a sociedade.
integrei a Comissão de Acompanhamento da Inclusão Social (Cais), durante todo o tempo que ela
Tanto no mestrado como no doutorado fui perguntada nas bancas se os temas que eu trazia
existiu. A universidade criou uma política de inclusão social, não uma política de cotas. É inegável
não estavam unicamente relacionados à minha militância. Quando eu entrei para o mestrado, eu
que a partir da lei 12.711/20127, houve uma inserção muito maior de estudantes negros na
queria falar sobre os trabalhadores técnicos, eu era do sindicato, a militância estava ali, mas a
universidade, em que pese ela ser uma lei social. Gosto de dar esse destaque, porque muitas vezes,
militância faz parte da minha vida. Não tem como dissociar a Yone militante e a pesquisadora.
as pessoas esquecem que essa é uma lei de cotas sociais. A nossa demanda enquanto movimento
Porque a Yone pesquisadora se construiu também a partir dessa militância; foi a militância que
negro era por cotas raciais, cotas para estudantes negros. Na lei em vigor, os negros são beneficiados
ampliou concepções, percepções, valores, em uma instância política e que me deu os conhecimentos
em uma segunda ou terceira instância, têm que ser negros e pobres, ao passo que a proposta de
que eu tenho para indagar inclusive a academia. Penso que a militância e a resistência por nós
cotas raciais era pensada para uma reparação histórica, seria para negros, independente de recorte
mulheres negras periféricas nos ajuda ter um olhar diferenciado na gestão e na sala de aula. Não
social.
tenho como fugir da minha corporeidade, da minha ancestralidade, isso está presente em mim.

O racismo na gestão pública


7 A lei nº12.711, de 29 de agosto de 2012 dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições
federais de ensino técnico de nível médio. As instituições federais de educação superior reservarão, em cada concur- Em todos os lugares a questão racial é uma barreira. Essa coisa de ser chamada de “criolo”, de
so seletivo para ingresso nos cursos de graduação, o percentual mínimo de 50% de suas vagas para estudantes que
tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. No preenchimento destas vagas, 50% deverão “macaco”, acontece com todos os negros e as negras. Vivemos em uma sociedade que é racista e que
ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita e nega o racismo. Essa estória de que no Brasil o racismo é velado é discurso; ele é escancaradíssimo!
também preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiên-
Por exemplo, eu, uma mulher negra, quando chegava na secretaria, só podia ser da pasta da
cia (BRASIL, Lei nº12.711, de 29 de agosto de 2012).

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Capítulo 10 - Yone Gonzaga GONZAGA, Yone M.; SALEJ, Ana P.; MENDES, Maria C.

igualdade racial. Não pensavam que eu estava lá por competência técnica, mas sim porque era filiada Superintendente”, o pessoal olha de cima em baixo, olha a cor e olha o cabelo. Não tem jeito, esses
a partido. As pessoas também estranhavam muitíssimo quando eu falava que eu fazia doutorado, dois marcadores eles estão presentes o tempo inteiro.
algumas pessoas levavam um susto: “o quê, você faz doutorado?”. Conheci mulheres brancas que
Éramos cinco mulheres negras, de pele preta, na Subsecretaria de Igualdade Racial. Na
estavam superintendentes há 14, 15 anos, uma vida construída como Superintendentes; mas que
Subsecretaria de Políticas para as Mulheres tinham outras quatro. Duas colegas usavam dread. As
não entendiam quase nada sobre o funcionamento da secretaria em que estavam lotadas. Eu sabia
vezes coincidia das demais irem de cabelo solto e as pessoas ao passar pelos corredores do nosso
da necessidade de pensar a política, a transversalidade, a intersetorialidade; mas como isso se
andar, na Cidade Administrativa, olhavam. Superintendente, negra e com o cabelo black é muita
efetiva no cotidiano, eu fui dialogar. Ao falar disso com essas Superintendentes, elas retrucavam:
transgressão para as mentes colonizadas. É um modelo que destoa da ideia concebida de gestora:
“Nossa, nunca pensei nisso”. Nunca foi exigido delas pensar nisso, porque eram mulheres brancas,
cabelo liso, salto alto, maquiagem. A gente tinha um outro perfil. Esse nosso perfil foi um processo
loiras, olho azul.
de ensinamento para as pessoas brancas, de que mulher negra também pode ser gestora.
O cabelo e a cor da pele são uma marca
No Programa Equidade de Gênero e Raça, tivemos vários diálogos durante os períodos em
Nessa coisa de cabelo, eu passei por tudo! Na infância, a nossa mãe trançava os nossos cabelos. que se discutia a elaboração de políticas para as mulheres. Eu falava com uma colega que atuava
Eu ia para a escola com o cabelo trançado. Lembro que os meninos puxavam minhas tranças. com gênero da necessidade de articular gênero e raça. Essa articulação enfrenta desafios o tempo
Quando entramos na adolescência tem aquela coisa de ficar bonita, sair à noite e precisamos ficar inteiro. Eu, enquanto uma mulher, uma sujeita afirmada como negra, que me posiciono, acabo
com o cabelo apresentável. Esse “apresentável” era o cabelo alisado. Então minha mãe alisava sendo assustadora para algumas pessoas.
nosso cabelo. Hoje eu entendo que era uma estratégia dela, para deixar as filhas apresentáveis aos
Sobretudo nesse ano eleitoral, é importante pensar a mulher negra e o espaço de poder.
olhos da sociedade racista. Eu sempre tive aversão por essas coisas. Sábado era o dia da tortura,
Algumas mulheres assumem esses espaços que a gente chama de poder, mas na realidade elas
a gente tinha que arrumar a casa de manhã, fazer as atividades, para de tarde ir para o salão para
assumem um espaço que até então era interdito às mulheres negras por causa do racismo, mas
arrumar – alisar – o cabelo e poder sair para dançar a noite. Tinha pelo menos a dança. Eu alisei
não necessariamente esses espaços são espaços de poder. A professora Nilma ocupou a Secretaria
meu cabelo até os 22, 23 anos.
da Presidência de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), depois o Ministério das Mulheres,
Quando fui para militância descobri que meu cabelo crespo, meu cabelo afro, era também uma da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. A Benedita da Silva vereadora, vice-governadora,
ferramenta de apresentação dessa minha identidade. Encontrei algumas pessoas que já estavam governadora, senadora, deputada estadual e deputada federal, a primeira mulher que ocupa esses
no processo das tranças, aí migrei para elas. Lembro-me que quando eu comecei a trançar o cabelo, espaços todos. Gente, é muito pouco! Temos algumas na vereança, muito poucas deputadas aqui
na minha família falavam: “nossa que cabelo é esse?”. Usei o cabelo trançadinho em um coquinho em Minas. Na esfera federal, pouquíssimas.
por muito tempo. A militância passou por outro momento de corte de cabelo, quadradinho, e
Na gestão pública, as mulheres assumem geralmente aquelas secretarias que são mais
também cortei o cabelo assim. Depois, assumi meu cabelo crespo e solto. O cabelo alto, black, foi
voltadas para trabalhar com coletividades, quer dizer, só a esfera de cuidado acaba sendo destinada
mais desafiador. O black faz parte da composição da beleza negra, mas é um processo doloroso,
às mulheres – a Assistência Social, a Educação e algumas vezes a Saúde. São poucas as mulheres que
porque a gente é o tempo inteiro estigmatizada, discriminada e violentada por causa do cabelo.
assumem Secretaria de Planejamento, de Economia, essas são áreas tidas como mais masculinas.
Os olhares falam muito. Por exemplo, ao chegar e me apresentar como Superintendente, A gente precisa compreender que, em geral, esses lugares de poder ocupado pelas negras têm um
havia pessoas que me olhavam de cima a baixo várias vezes. Falavam: “Ah, Superintendente!”. Eu poder muito limitado. São espaços com poucos recursos e o poder está muito ligado à questão
me perguntava: “Ah, por quê? Já sei, não precisa dizer, o olhar já disse”. Uma das coisas que marcam econômica, ao orçamento. Os espaços ocupados representavam avanços? Sim! Mas nessa trajetória
na gestão é a questão da corporeidade negra. Se você pensar em mulheres negras na gestão, vai ver de mulheres negras a gente ainda precisa indagar que tipo de poder a gente tem.
algumas pardas. Quando a pessoa é parda, ainda tem um grau de passibilidade. Comigo não tem
isso, eu sou preta. E com uma gestora preta, é outra coisa. Quando a gente chega e falam “essa é a

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Capítulo 10 - Yone Gonzaga GONZAGA, Yone M.; SALEJ, Ana P.; MENDES, Maria C.

O letramento racial é fundamental reproduzir processos machistas. Eu tenho uma boa referência da minha mãe, ela falava com meus
irmãos: “O que você não quer para você, não queira para os outros”. Também falava com meus
O letramento racial e a formação de gestores são fundamentais. Há dificuldade de compreender
irmãos: “O que você não quer que aconteça com suas irmãs e suas primas, não faça com a filha
que negro pode falar de outras coisas que não só a questão racial. Quando eu estou falando de
dos outros”. E eu tento dizer isso para meus filhos. Passar para eles a importância do respeito e
questão racial, estou falando da vida, então estou falando de tudo. Quando falo que os negros e
do diálogo. Outra coisa é criar filhos homens negros. Aí há a dimensão do racismo estrutural, que
as negras têm os piores indicadores sociais, estou falando de economia. Se falo que os negros e
o tempo inteiro abala as mães de meninos negros. Quando você fala dessa presença do racismo,
negras não foram trazidos da África, eles foram traficados da África, eu falo uma questão histórica
da hierarquização das relações, sinto que esse processo de educar filhos negros é a coisa mais
e política. Os negros são partícipes da construção da nação brasileira. Para mim, a reeducação
perversa para as mulheres negras. O racismo mostra para ela o tempo inteiro que ele é um jovem
para as relações étnico-raciais é um compromisso ético e político, fundamental para que a gente
negro. Que o cabelo dele é um símbolo, um alvo. Meu filho tem a pele-alvo. Alvo da discriminação,
consiga compreender a necessidade das políticas afirmativas enquanto uma política reparatória.
dos olhares, da violência policial, da interpretação. Se ele estiver correndo, pode ser suspeito, pode
Quando eu trabalhava na Subsecretaria, participamos da disciplina Projeto Aplicado com ser parado, a bala pode feri-lo. Para as mães negras, não tem coisa que dói mais. Criar um filho,
a professora Aparecida Shikida, na Fundação João Pinheiro. Falávamos muito com os estudantes homem ou mulher, uma pessoa negra nesta sociedade racista é violentíssimo.
sobre a necessidade deles se tornarem gestores capazes de ler a pauta racial como uma questão
É ter que falar com seu filho: “não sai sem documento”, “se a polícia te parar, fala baixo”, “me
estrutural. Pensar nesses sujeitos como sujeitos de direitos. É muito bacana a potencialidade que
fala tudo o que vocês vão fazer”, “não levante os braços”. Meu filho tem quase dois metros de altura,
essas reflexões tiveram e tem. Tomara que elas deem conta de hoje estar dentro da gestão e pensar
usa dread, é afirmadíssimo, tem um discurso político na ponta da língua. É meu filho e filho do
isso. Também participei do debate das cotas na FJP.
pai que ele tem, que são duas pessoas politizadas, militantes. Falar para ele: “Se te pararem fica
Na nossa consultoria, eu e uma outra amiga parceira temos trabalhado a discussão do papel calado” é uma violência, e mais uma violência comigo, com a história que eu construí.
das pessoas brancas na questão racial. O racismo foi produzido por pessoas brancas, a construção
O grande desafio para as mulheres negras
social e política do racismo é branca. A questão da atuação antirracista passa pelo branco perceber
as dimensões raciais, perceber os privilégios brancos, perceber que ele tem que estar nessa luta, Acho que o grande desafio para as mulheres negras é ter a possibilidade de viver com
porque os seus antepassados estiveram no processo de criação de tudo. As pessoas brancas têm dignidade. Ainda tem uma maioria de mulheres negras que não tem o que comer, que não chegam
que se haver com os processos de desconstrução e de enfrentamento do racismo e pensar políticas, à escola ou que são agredidas, porque são negras. A trajetória educacional é interrompida, e isso
pois o racismo estrutural impede o funcionamento da sociedade, tanto para branco quanto para vai refletir na sua saúde psíquica, emocional. Vai refletir nas possibilidades de trabalho. O grande
negro. O racismo é ruim para todo mundo. desafio que os racismos nos impõem cotidianamente.

Criar filhos homens e criar filhos homens negros Falam que as nossas vidas negras importam. Elas precisam importar em todas as dimensões,
principalmente na possibilidade da gente poder viver como ser humano. Quando se fala das
A conciliação da maternidade e do trabalho foi até tranquila para mim, diante de tantas
dimensões dos direitos humanos, o primeiro é o direito à vida, que tem sido negado cotidianamente.
experiências que eu vejo por aí. Mas só foi tranquila, porque eu sempre tive um suporte muito
São várias as formas de nos matar, nos matar pelo silenciamento, pelo apagamento de nossas
grande da minha família. Meu filho mais velho e minha sobrinha nasceram com meses de diferença,
histórias, pelo descrédito das nossas palavras.
eram os primeiros netos, primeiros sobrinhos, então houve uma presença intensa da minha mãe
e da minha irmã. Depois vieram os outros e a presença também foi muito afetiva. Eu tive muitas
mulheres no entorno ajudando nesse processo de educar. A educação dos meus filhos se deve
muito a essa presença da minha irmã; ela não tem filhos, mas os meus filhos são meio filhos dela.

Na criação dos meus filhos, destaco duas dimensões. A primeira, de criar filhos homens; e
a segunda, de criar filhos homens negros. Criar filhos homens exige da mulher, o esforço de não

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11
Capítulo 10 - Yone Gonzaga

5. Pensando nas minhas construções Eliane Dias


Rosânia Sousa
A gente não para e pensa nas construções Sérgio Luiz Felix da Silva
que vai fazendo. Vai fazendo, mas não tem tempo
para ter isso tudo organizado, sintetizado,
refletido. As urgências da vida não dão tempo
para a gente refletir. Sempre que eu fiz algo, não
pensava em deixar legado.

ELIANE
A educação sempre esteve presente na
minha vida, foi o que me construiu. Eu acho que
sou lembrada como uma professora, embora
não tenha chegado a ser professora em uma

DIAS
universidade federal, mas alguns estudantes
me veem nesse lugar.

Eu gostaria de ser lembrada como alguém


que esteve no processo de luta, de construção
histórica, social e política para que as pessoas
negras tivessem oportunidades. Penso na luta
1. Minhas Origens
pelas cotas, na luta por moradia, na luta por
representação política… na luta pelas cotas Sou Eliane Dias, nascida em Corinto, interior de Minas Gerais. Corinto
que eu fiz na UFMG, tanto na graduação como é uma cidade que foi muito conhecida na época da Rede Federal Ferroviária
na pós-graduação; depois na luta pelas cotas Sociedade Anônima (RFFSA), antes de sua privatização. Corinto era uma
na Fundação João Pinheiro. Eram coisas que cidade rica, não somente por esses trabalhos com a ferrovia, mas também
apareceram no cenário para mim e que eu fui por causa da exploração do cristal. O quartzo branco, que apesar de mais
fazendo, porque achava importante, necessário, escasso devido a alta exploração, ainda é uma fonte de renda que alimenta
estratégico. Hoje, ao olhar isso de fora, pode- muitos na cidade. Eu venho dessa cidade que tem um povo muito acolhedor
se pensar assim: “é um baita de um avanço”. e criativo. Minha família é negra, ex-moradora da roça, da Roça do Brejo
O que significa para a Fundação João Pinheiro distrito de Curvelo, somos pessoas simples. Meu pai foi vaqueiro; minha mãe
ter estudantes negros? Penso na sementinha, lavadeira, doméstica, cozinheira e também cuidava e utilizava das pequenas
Palestrando sobre a importância da inclusão da diversidade
racial nas empresas. Programa Pró Equidade Gênero e nas conversas com os alunos na disciplina da plantações para alimentar a família. Saímos da roça e fomos morar em
Raça desenvolvido quando atuava como Superintendente Aparecida Shikida. Hoje tem uma disciplina
de Políticas Afirmativas na Secretaria de Estado de Direitos Corinto, que permanece com seus quase 25 mil habitantes.
Humanos. Sebrae/MG, 2017. formal. São coisas que a gente foi semeando e
Crédito: Acervo Pessoal vai vendo alguns frutinhos agora. Por mais que a cidade tenha maioria negra, o poder está concentrado
na mão dos brancos, na mão dos homens. Não tem essa discussão de pauta
racial e, com isso, a gente vai ficando ali naquele lugar de subalternidade,

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Capítulo 11 - Eliane Dias DIAS, Eliane; SOUSA, Rosânia; SILVA, Sérgio F.

de opressão. Isso caracterizou nossa transição da saída da roça e chegada à cidade, uma família nossa felicidade, é porque a minha mãe, Venina, a dona Preta foi, sobretudo, um guia para a gente.
simples, de trabalhadores, pobre e em busca de dias melhores. Não é clichê, eu reconheço demais o tanto que ela foi e é importante para mim. Por isso, sempre
que eu puder trazer essa mulher preta para estar do meu lado, junto comigo, eu vou trazer, como
Com muita luta, meus pais compraram uma casa. Meu pai precisou trabalhar em serviços
estou fazendo agora.
insalubres, como metalúrgicas, siderúrgicas e postos de gasolina. A Companhia Minera de Metais
“roubo”, mais ou menos, 14 anos da convivência da gente, dos filhos com meu pai, porque era Na minha casa, somos quatro mulheres e quatro homens, um total de oito filhos. Tenho
o recurso que a gente tinha na época. Minha mãe foi lavadeira de roupa, passadeira, doméstica, doze sobrinhos, sempre perco a conta e preciso falar os nomes na ordem para ter certeza: Saulo
ficou por muito tempo cuidando dos filhos, cumprindo de forma muito louvável a função de nos Rafael, Anna Carolina, Victória, Lucas, Victor, Tamires, JR (Junior), Túlio Henrique, Pedro, Andrew.
alimentar, de nos orientar, de nos colocar na escola. Tem um momento que atravessou muito a A Antonella (Tontom) é a primeira bisneta da minha mãe e do meu pai. Em outubro de 2020,
nossa família, e muito a mim também, que foi um período de muitas dificuldades nas relações. Meus chegou mais uma lindeza para a família, a Helena (Leninha). Moramos em três cidades distintas
pais vivenciaram a conjuntura muito difícil após a ditadura, de falta de trabalho, falta de recursos, e a maior parte da família está em Corinto: minha mãe Venina de Moura Filha (dona Preta), meu
de tensões e medos. Isso gerava muitas preocupações e conflitos na família, não foi saudável para a pai Antônio Dias Evangelista (Fogão), meus irmãos Antônio Dias, Aparecida Dias, Warley Elbert
relação dos meus pais. Eles lutaram e caminharam juntos por mais de 30 anos. Hoje, já separados, e Ueriston Bruno. Tenho um irmão, o Ueniton César que mora com sua família em Itaúna. E aqui
permanecem sendo meus exemplos, meus guias, meus velhos, meus ancestrais! em Belo Horizonte, moram os demais: minha irmã Matilde Aparecida e filhos, a Denise Dias, eu, e
alguns primos e tias. Importante registrar as cunhadas que fecham com esse clã, a Valderês, Diana,
Minha mãe tem 70 anos e meu pai tem 80, eles se casaram em dezembro de 1966. Minha mãe
Carla, Walesca e Denise.
tinha 16 anos e meu pai, 26. Em 1968, veio a primeira filha. Em 1969, veio outro filho. Em 1970, veio
mais uma. Em 1972, a outra. Não sei o que minha mãe fez, como é que ela se posicionou, mas ela Eu não sou mais a jovem daquela época,
deu um intervalo maior entre as gestações para que, então, eu nascesse em 20 de outubro de 1977. então tenho orgulho de me posicionar nesse
E justamente nesse período em que as mulheres estavam pelo mundo, lutando pelo movimento lugar, de falar das minhas origens, de uma
feminista, ainda branco, mas organizado, lutando pelos direitos das mulheres; só muito tempo família preta, trabalhadora, simples e cheia
depois é que minha mãe conheceu os primeiros métodos anticoncepcionais. Ela foi direto para o de ginga. Eu, que já vi minha mãe carregando
processo da laqueadura, no nascimento do último filho, há 33 anos. É um processo extremo, que trouxas de roupa na cabeça para lavar e passar,
também pode ser usado para ceifar a população negra, diante da ausência de políticas de saúde. que já atravessou a cidade para poder comprar
Mas foi o que deu para fazer. sacas de arroz mais baratas, porque não
tínhamos dinheiro o suficiente para comprar
A minha mãe é o meu primeiro e meu maior grande exemplo de luta, coragem e feminismo.
no supermercado, emociono-me lembrando
Se eu estou aqui, neste momento, foi porque eu tive a minha mãe para falar: “você não vai depender
desses e de tantos outros momentos. Lembro
de homens e nem de ninguém”. Então, todas as minhas irmãs são essas mulheres independentes,
das vezes que ia comprar uma única garrafa
que não dependem de outras pessoas, que tem suas profissões. Uma é pedagoga e professora, as
de Baré1 no final de semana. Essa garrafa, de
outras duas atuam na saúde como técnicas de enfermagem nas redes pública, privada e seguem
um litro, era dividida com os quase oito filhos
seus caminhos com muita coragem e determinação. Meu pai estava ali como provedor, quem
na época, mais a mãe e o pai. Apesar das lutas,
gerava a maior parte dos recursos financeiros, mas era minha mãe que nos orientava de forma Em sentido anti-horário: Eliane, aos 5 anos de idade (1982),
eu me sentia feliz, tenho saudade da minha no colo da irmã Matilde, à esquerda. No colo da mãe, Venina, o
mais presente. Então, obviamente, não é só pela questão do cordão umbilical, mas porque essa irmão Warley. Ao lado, o pai Antônio. Os demais irmãos, atrás,
infância!
foi a pessoa. Ou seja, não só mãe, ela foi a mulher que nos orientou, que nos colocou para frente. de pé: Denise, Antônio e Aparecida.
De alguma forma, se a gente não foi para caminhos ruins, se estamos todos ainda convivendo em Crédito: Acervo Pessoal

sociedade, trabalhando, cuidando das nossas famílias, vivendo esses conflitos todos e buscando
1 Guaraná Baré.

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Capítulo 11 - Eliane Dias DIAS, Eliane; SOUSA, Rosânia; SILVA, Sérgio F.

2. Religião e ancestralidade Afro Angola Janga, quilombo que fez morada em mim. Através da música, das heranças africanas e
dos tambores, encontrei outro lugar de força e axé!
Falando um pouco de religião, não tem como negar que meu primeiro acesso à religião foi
dentro da igreja católica. Fui batizada, fiz primeira comunhão, participei de cursinho, que nem sei
3. Trajetória escolar e a descoberta da sexualidade
se existe ainda, mas era uma reunião dos jovens, e fiz a crisma. Mas neste momento, interessa falar
Todos nós fomos muito bem orientados por minha mãe e meu pai para que estudássemos
que hoje, conectada no movimento negro, percebo que, mesmo sendo iniciada dentro da igreja
para melhorar de vida. Todos concluímos o segundo grau, com exceção de um irmão. Eu fui a
católica, já fazia macumbas. A gente já estava conectado com outras religiões, como o espiritismo.
primeira a ter acesso à universidade, fui a primeira a ter curso superior. Infelizmente, depois de
Quantas vezes a minha mãe me levou para as reuniões do sábado de manhã, do grupo espírita Alan
mim, somente mais uma, dos oito irmãos, concluiu o superior. Eu sou formada em Gestão Pública
Kardec, porque ali a gente podia ouvir uma palavra, receber um passe; podíamos receber, também,
e estou fazendo uma pós-graduação em Poder Legislativo e Políticas Públicas. Uma das memórias
o alimento físico, a comida, a sopa, o mingau e, principalmente, o alimento espiritual. Então, eu
mais antigas que tenho é, justamente, da escola, talvez com cinco ou seis anos. Chamávamos
também sou muito grata não só por ter sido acolhida por essa religião, mas também porque eu a
de pré-escola na época, antes do primeiro ano. Eu cheguei para estudar e queria sentar com os
carrego, até hoje, em vários outros momentos.
meninos, eu achava que era mais interessante estar ali com eles. Lembro que a professora me tirou
Tanto na minha juventude quanto na fase adulta, eu tive acesso ao espiritismo, que me da mesa dos meninos e me colocou na mesa das meninas. É óbvio que acatei. Também é óbvio
confortou e me acolheu. Porém, foi há poucos anos, cerca de quatro, que tive contato com o que fiquei chateada. Não entendi, mas vivia ali querendo estar naquele lugar de convivência, com
candomblé, com a minha mãe Mametu de Munhadê, que é a dona Efigênia, do Kilombo Manzo. A aquela forma de brincar, de fazer; mas eu não podia, não me deixavam ser livre. Tudo era muito
partir dessa conexão é que eu me encontro de fato, porque reconheço e vivo a minha ancestralidade. opressor, muito machista, muito separatista. Menina usa rosa, menino usa azul, meninas separadas
É saber que quando a minha mãe queimava incenso em casa, aqueles defumadores para poder de meninos. Que complicado isso.
aliviar o ambiente, ela estava fazendo macumba também. Ela estava trazendo as origens africanas,
Na terceira ou quarta série, mais ou menos, eu vivi alguns momentos em que não me
os orixás para dentro de casa para nos proteger e guiar. Quando ela levava a gente para ser benzida,
sentia incluída, momentos de exclusão, quietude, timidez, medo. Mas de muita admiração aos
e eu lembro desses momentos, eu sentava no colo da vó, ela virava meu pé para cima e batia com
professores, sobretudo à professora Gildete, uma mulher negra, gorda. Com ela, eu me sentia bem
o chinelo na mão, passava arruda no corpo, evocava espíritos de luz, santos e toda energia da
à vontade, gostava da forma que ela dava aula de Português. Talvez, porque, de alguma forma, eu
natureza para nos curar. Isso é ancestralidade, isso é candomblé, isso é umbanda, isso é origem
me reconhecesse nela. Nunca tinha parado para pensar nisso, por que de todos os professores, que
africana, é coisa de preto e de preta.
não eram muitos, eu gostava mais da professora Gildete. Tive, ainda bem, a oportunidade de dizer
Neste momento, já na casa dos 40 anos, consigo entender a minha trajetória pela igreja isso para ela já em uma fase adulta de mais consciência. Entendo que há aí um pouco da questão da
católica, pelas igrejas protestantes como a Batista da Lagoinha e outras – que eu vou me recusar a representatividade, da importância da gente se ver. Por isso, acontecia essa confiança, esse bem-
dizer quais foram, porque eu tenho vergonha, porque são igrejas neoliberais com líderes políticos estar, essa maior participação nas aulas de Português com ela, professora negra. É isso, eu me via
que estão hoje no poder matando o nosso povo preto. Então, eu vou me ater a essa iniciação na nela de alguma forma.
católica. A gente ainda permanece, minha família como um todo, conectado com o catolicismo.
Na quinta e na sexta séries, eu fazia aula de Educação para o Lar. Era péssimo! Olha, eu não
Mas todas nós, principalmente as mulheres, tivemos passagem, conexão com o espiritismo. Eu não
tinha consciência política. Que coisa horrível aprender a cozinhar e costurar. Eu queria estar lá
perco esse lugar. É no meu terreiro, com a minha mãe, que me encontro. Eu não sou iniciada, mas
fora brincando de bola, soltando pipa. Na minha casa, minha mãe permitia, dava essa liberdade de
a chamo de mãe, ligo e ela me dá a bênção. É muito bom ter a minha mãe ancestral e a minha mãe
soltar pipa, jogava bolinha de gude, brincava de bola com os meus vizinhos da rua. (Eu lembro só
biológica no mesmo lugar de afeto, de preocupação, de cuidado e acolhimento. Sempre irei ouvi-las
que, uma vez, eu queria muito uma botinha da Xuxa, mas ainda bem que eu não ganhei). Ademais,
e sempre vou carregá-las comigo, porque eu entendo e reconheço de onde venho. Nesse campo da
eu estava sempre muito envolvida com o quintal da minha mãe, que sempre foi cheio de muitas
religião, sinto-me extremamente contemplada. E hoje é um sábado de Iemanjá, sábado da nossa
mãe. A força ancestral também encontro nos cortejos de rua, feitos junto ao meu povo do Bloco

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Capítulo 11 - Eliane Dias DIAS, Eliane; SOUSA, Rosânia; SILVA, Sérgio F.

frutas e de plantas, árvores diversas. Sempre busco esses cheiros e lembranças quando estou lá. O em que eu precisava respirar mais e cuidar um pouco mais da minha mente. Aí fui estudar na cidade
primeiro lugar que vou sempre é o quintal, porque esse lugar me fortalece. vizinha, onde eu paguei um curso por um determinado período, depois obtive uma bolsa. Estudei
por, mais ou menos, um ano lá. Então, retornei para minha cidade, fechei o meu curso de segundo
A partir da quinta e sexta séries, eu já estava mais envolvida com as questões da orientação
grau no Colégio Cristo Rei. Nesse período, já estava trabalhando na prefeitura municipal. Fiz parte
sexual. Me vi atraída por uma mulher, por uma igual e “tá de boa”. Pronto e acabou, sou sapatão.
da equipe da Secretaria de Assistência Social na área de organização de seminários, conferências,
Mas precisei de algumas sessões de terapia no posto de saúde para dar conta das lesbofobias do
reuniões, cursos de qualificação profissional e outras atividades. Também tive a honra e o presente
dia a dia. Tem toda uma trajetória aí, principalmente quando você não tem orientação sexual como
de trabalhar com alunos e alunas em escola da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
algo prioritário na escola e quando seus pais não têm como te trazer isso. Dentro da escola, eu
(Apae). Aprendi muito com todos eles.
vivi um pouco esse processo da opressão, do machismo e da própria lesbofobia. Eu não era tão
feminina quanto as outras meninas. Não sou uma mulher feminina, não uso vestido, por exemplo. Um pouco depois, vim para Belo Horizonte.
A última vez que eu usei um vestido foi na minha formatura de quarta série, lembro como se fosse Eu não consegui estudar logo na chegada, por
hoje, gostei do vestido. Mas só tive quatro! O que eu usei em uma foto aos seis meses de idade, mais causa da militância. Retomei os estudos em 2007,
ou menos; depois outro, com seis anos. Todas as fotos que eu tenho aos seis ou sete anos, mais no UniBH. Havia começado a militar em 2004
ou menos, eram com esse mesmo vestido. E tinham os vestidos que eu usei na minha primeira aqui em Belo Horizonte, na Associação Lésbica
comunhão e o da formatura da quarta série. Mas por eu não ser essa mulher padrão – já não era de Minas (Além) e escolhi meu curso a partir
branca, não era loira, não tinha o olho verde e ainda usava calça jeans, bermuda e camiseta – aí foi desse lugar. Na Além, eu era uma voluntária
mais difícil. Nesse período, minhas questões eram muito dar conta daquelas responsabilidades de muito apaixonada com a causa, fazíamos muito
passar de ano, aprender algo e manter a sanidade. barulho para chamar a atenção das autoridades
para nossas demandas. Fazíamos oficinas de
Com 15 anos, fui indicada a melhor goleira de handebol da escola, isso foi em 1992, estudava
batuque com tambores reciclados, palestras,
no Polivalente. Ah, eu tenho duas medalhas: uma de “melhor goleira de handebol de 1992”
rodas de conversa, seminários, cursos, eventos
e a outra de “melhor associação comunitária do ano de 2000”, que presidi. Fui presidenta da
diversos que evidenciavam a pauta das
Associação Comunitária do Bairro Maciel (Acobam) por dois mandatos seguidos, outro momento
mulheres lésbicas e visibilizavam a necessidade
muito importante para mim como uma iniciação muito bem-sucedida na militância. Gratidão aos
de políticas públicas específicas para atender
mais velhos que acreditaram que seria possível essa jornada, juntos. Em parceria com a prefeitura
às nossas especificidades no campo da saúde,
da cidade, construímos banheiros, reformamos casas, fizemos campanhas de conscientização,
segurança e educação principalmente. Também
realizamos eventos para aquisição de fundos para construção de sede própria, por exemplo! Eu
fazíamos distribuição de material informativo
acho que esses processos foram, para mim, como um combustível, pois eu sempre era a liderança
e de camisinhas para a saúde e prevenção da
de turma, apesar de ter levado algumas bombas na escola. Eu não tenho vergonha de dizer isso,
população LGBT e profissionais do sexo que
não dei conta de passar direto, naquela época, de aprender o que precisava, por questões diversas
atendiam no baixo meretrício de BH, ou seja,
que me atravessavam: a própria orientação, a família, o próprio racismo.
nos hotéis. Nesse momento, queria mudar
No primeiro ano, eu já era liderança de turma. Fiz o técnico em Contabilidade. Ainda tenho minha vida e a vida das pessoas que estavam
lembranças daquela época, das coisas que fizemos juntos. E essa movimentação na sociedade, em perto de mim, queria construir algo para o Eliane Dias fazendo fala, em trio elétrico, na Parada LGBT de
Belo Horizonte. 2017.
uma cidade pequena, onde todo mundo se conhecia, também me proporcionou outros lugares. Fui mundo. Então, vi no curso de Gestão Pública
Crédito: Acervo Pessoal
aprendendo, enfrentando os desafios e galgando outros espaços a partir dessa formação. Estudei em uma possibilidade, de conhecer a máquina
escola pública durante toda minha vida, estadual e municipal. Chegou um determinado momento pública, entender por onde passa o dinheiro,

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Capítulo 11 - Eliane Dias DIAS, Eliane; SOUSA, Rosânia; SILVA, Sérgio F.

como as coisas são constituídas. No decorrer do curso, fui convidada por um professor para ser 4. Militância e trabalho
gestora de seu escritório de advocacia especializado em direito do servidor público. Essa foi outra
grande experiência profissional que durou cerca de quatro anos. A militância é um motor que me tira da cama todos os dias, é o que me motiva e traz
movimento. Tudo que eu faço é político, tudo que eu faço é de enfrentamento às opressões, tudo
Cheguei ao Centro Universitário de Belo Horizonte e, naquela época, ainda não estava tão
que eu faço tem relação com a luta.
difundida a política do ProUni e do Enem2. Entrei para o Laboratório de Políticas Públicas, como
estagiária, e consegui um pouco mais de flexibilização para pagamento das minhas mensalidades. Aos 15 anos, eu já ia para rua entregar santinho de propaganda eleitoral nas portas das
Eu paguei todas as mensalidades dos anos que eu estudei. Mas considero indiscutível que a casas. Eu também cheguei a fazer programas na Rádio Cidade de Corinto no início dos anos 1990.
política de cotas é extremamente necessária, é uma reparação mínima que, em minha opinião, já Lembro que toquei Cyndi Lauper no meu primeiro programa. Era influência americana, o capital
está ameaçada na atual conjuntura. Nesta semana, minha namorada e companheira, a psicanalista na vida da gente. Graças a Deus, hoje eu vou tocar Clara Nunes, Jorge Ben Jor, Tim Maia, Mariene de
Cristiane Ribeiro, deu uma entrevista ao jornal O Tempo. A pauta do programa era sobre o racismo. Castro, Leci Brandão, Elza Soares, vou buscar grandes nomes, principalmente nomes de mulheres
Um dos ouvintes fez a seguinte colocação: “política de cotas é errada, não é necessária, isso excluí”. pretas para colocar no meu programa de rádio. Trabalhei por alguns anos na Rádio Cidade de
Vou usar as palavras dela, porque ilustra muito bem: “é só olhar para um curso de Medicina em Corinto com figuras únicas, como a querida Fátima Lopes. Esse período inicial dos anos 1990
qualquer universidade do Brasil que você vai ver que 99,9% dos alunos são brancos, e olhar para o era quando o Skank começava a aparecer para o mundo, eles até fizeram um show lá. Depois, fui
sistema prisional ou para o sistema socioeducativo, para ver ali só pretos e pardos”. Tem um curso buscar outras experiências. E, nesse outro momento, já como liderança da turma de Contabilidade,
de Medicina com mensalidades caríssimas e aí que é que não tem preto mesmo. Quem é que morre no segundo, terceiro ano, eu já era mais dona de mim, já tinha mais consciência política e fazia
hoje pela violência do estado? Mais de 70% são negros, a grande maioria são homens, isso tudo os enfrentamentos de outro lugar. Sabia que era sapatão, que era preta e que tinha condição de
tem conexão. Na política de extermínio, se mata mais os meninos para não ter mais a presença estar em lugares diferentes. Então, vamos embora fazer as festas, desfiles, shows com DJ, fazer a
de pretos. Nos números da violência, as mortes de homens são muito maiores, e assim é tirada a primeira exposição de arte contemporânea da cidade. Eu tinha 18 para 19 anos, saí até na televisão
possibilidade de mais pessoas negras nascerem. de Curvelo. No meu coquetel, da exposição de arte contemporânea, tinha até caipirinha, era outro
nível. Eu já era uma pessoa com mais consciência. Eu já sabia que tinha direitos, poderia não saber
Eu participei de uma banca de avaliação das cotas, no campo federal, e você tinha ali gente
detalhadamente quais eram, mas sabia que existia um negócio chamado artigo quinto e sexto da
branca dizendo que era preta. As pessoas ainda usam do argumento: a minha mãe ou a minha avó
Constituição de 19883 e sabia que aquele era o documento maior que eu tinha para me orientar.
era preta, o meu avô era preto. Mas, segundo a política de cotas, é a pessoa que está sendo avaliada,
não o avô ou a avó. Era ele que estava sendo avaliado, que é branco e o rosto cheio de sarda, cabelo Por volta de 2000-2001, eu cheguei em Belo Horizonte, para trabalhar como produtora cultural
claro e nariz fino. Então, ainda enfrentamos essas dificuldades; além da necessidade de ampliação de uma banda chamada “Junke Box”, que tem hoje na liderança uma das principais cabeças do
das políticas afirmativas, ainda tem muita gente que fica tentando roubar isso da gente. “Volta Dilma”, do comitê “Anula o impeachment”, que é a cantora Malu Aires. Trabalhei inicialmente
em Belo Horizonte com essa cantora. Depois, passei para outros trabalhos subalternos, como de
telemarketing, que é um lugar que causa muito adoecimento mental.

Foi nessa chegada aqui em Belo Horizonte, a partir dos movimentos sociais das lutas de rua e
de uma edição da parada LGBT de Belo Horizonte, no ano 2000, que eu comecei a me conectar com
o movimento LGBT. E me conectei com as pautas feministas, com a marcha mundial das mulheres,
passei por alguns caminhos e cheguei ao movimento negro, ao N’zinga, Coletivo de Mulheres Negras,
2 O Programa Universidade para Todos (Prouni) do Ministério da Educação, que oferece bolsas de estudo, integrais sendo que em paralelo já havia criado junto a outras companheiras a Rede Afro LGBT de MG, em
e parciais em instituições particulares de educação superior, para estudantes que tenham renda familiar mensal, per
capita, de até 1,5 salário mínimo. Já o Enem é Exame Nacional do Ensino Médio, que avalia o desempenho escolar
2013, a Rede de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de MG, em 2015, e a Rede de Mulheres Negras de
dos estudantes ao término da educação básica e é utilizado como mecanismo de acesso à educação superior, por
meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). 3 Artigos que tratam dos direitos e garantias fundamentais.

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Minas Gerais, também em 2015. E permaneço nesses lugares entendendo que isso é importante a IV Conferência Nacional das Mulheres, antes do golpe. Nós havíamos colocado cerca de 50 mil
para ampliar os diálogos e sair das caixinhas. Fui do extinto, pelo desgoverno Bolsonaro, Conselho mulheres negras em Brasília. Foi o grande momento, antes do golpe, do movimento social nas
Nacional de Combate à Discriminação LGBT/CNCD. Atualmente, represento os pretos LGBTs junto ruas, de reivindicações, de denúncias; e nós fomos hostilizadas pela direita neoliberal em frente
com a companheira Rhany no Conselho Municipal da Promoção da Igualdade Racial/COMPIR-BH. ao Congresso Nacional. A marcha das mulheres negras foi em novembro de 2015 e a presidenta
Dilma saiu em maio de 2016.
No processo de transição da militância, percebi que o movimento LGBT estava muito limitado,
apesar de que a gente já tinha feito uma série de lutas, várias paradas, várias movimentações, O ano de 2016 passou com uma certa apatia, paralisação. Um momento, espiritualmente
marchas em Brasília. Em 2011, teve a conquista da união estável. Também já tínhamos feito uma falando, muito complicado, porque houve certa paralisia do movimento, na minha opinião. Mas a
série de conferências, fóruns e várias campanhas que já tinham avançado um pouco. Eu comecei gente não sabia o que estava acontecendo ao certo, ainda tentávamos entender o cenário político.
a buscar outros lugares para entender melhor o meu próprio lugar. Porque eu não sou só uma
Então, só conseguimos voltar a fazer grandes movimentações em 2018, quando retomamos
mulher, eu não sou só lésbica, tem uma série de coisas que me atravessam.
essa conversa nacionalmente com mais força. Em 2018, a Plataforma de Reforma do Sistema Político,
Em 2014, participei de um evento no Mercado Novo. Na época, era um espaço cultural com que é puxada desde 2004, voltou a se articular. E concluímos, em setembro, grandes encontros de
características bem negras, várias intervenções artísticas culturais negras de periferia, de favela, mulheres negras, novamente. Em setembro, fizemos um Encontro Estadual de Mulheres Negras
do plano cultural de Belo Horizonte. Ali tinha, em uma das salas, a sede do N’zinga, que é o Coletivo com 150 mulheres, em Belo Horizonte, em que atualizamos uma série de reivindicações e de
de Mulheres Negras de MG. Então, participando desse evento com a Benilda Brito, fundadora e questões inegociáveis, em uma série de denúncias diante do fato de que Marielle Franco já tinha
ex-coordenadora do N’zinga, eu pensei: “Tenho que estar aqui, eu tenho que estar neste lugar”. E sido brutalmente assassinada, em março de 2018. Nesse período, tinha acontecido também o
Benilda me chamou para ajudar a construir a Marcha das Mulheres Negras de 2015, que foi uma Fórum Social Mundial em Salvador. O ano de 2018 foi emblemático nesse sentido, porque, assim
grande movimentação política nos estados e no país. A gente colocou cerca de 1.200 mulheres como em 2016 e 2017, também houve ali uma série de “paralisias”, e não sabíamos muito bem
na rua, em um 13 de maio, uma quarta-feira, dia de Xangô e Iansã. Aquilo ali mudou totalmente para onde ia aquela coisa toda, com a perda cotidiana de direitos. Marielle Franco é brutalmente
o time da militância para mim, porque não eram só mulheres, eram mulheres negras, de terreiro, assassinada e planta-se uma semente a partir daí, com várias mulheres começando a se envolver
de ocupações, dos interiores, do Vale do Aço, Ouro Preto, Rota da Lama, mulheres jovens, artistas, com a plataforma política, várias pessoas que estavam recolhidas voltando às lutas.
indígenas, estudantes, universitárias e LGBTs.
E aí tem a ver com a ancestralidade. Porque, em algum momento, eu me recolhi, fiquei quieta,
Minha mãe, a mãe Muiandê, mãe Efigênia ou Mameto de Muiãdê, a liderança matriarca do parada. Às vezes, você não consegue seguir na luta, que pode ser solitária, mas é também ancestral.
Kilombo Manzo, foi ela que entregou, nas mãos do Secretário de Governo, esse homem branco Observar o que está acontecendo à volta, se conectar com outras mulheres que também vão
que estava ali representando o governador da época, naquele dia, uma série de reivindicações do caminhar com você e que vão, a partir dessa religião, fazer uma leitura do cenário. Chegamos em
movimento negro. Nada é por acaso, não é? A gente já tinha feito Conferência de Igualdade Racial; 2018 com essa consciência e realizamos o primeiro grande ato nacional pós-golpe, pós-Bolsonaro,
então, aquele documento era uma reivindicação legítima e com pontos inegociáveis, extremamente que foi um encontro com 3 mil mulheres negras em Goiânia, nos dias 6, 7, 8 e 9 de dezembro de
necessários para o povo preto do estado, como o combate ao genocídio da juventude negra e do 2018. É um recorte muito interessante que podemos trabalhar. Não são todas mulheres negras
povo preto, a defesa das cotas, trabalho, enfim, uma série de coisas. de candomblé, de umbanda, conectadas com religião de matriz africana. São também mulheres
evangélicas, protestantes, católicas, católicas pelos direitos de decidir, mulheres espíritas,
A partir daí, eu continuei cada vez mais conectada com o movimento negro. Participei da
juventudes, mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais, quilombolas, ribeirinhas, da floresta e
criação da Rede de Mulheres Negras de MG, que conecta mulheres negras de várias partes do
das águas, entre outras. Mulheres diversas, que podem estar ou não conectadas com a religião
estado, inclusive candidatas nas eleições de 2020. Mulheres diversas que estão construindo a luta
de matriz africana, mas, sobretudo, estarão conectadas pela luta contra o racismo, machismos,
nos seus territórios e que estão conectadas a partir dessa rede. E a gente dialoga nacionalmente,
LGBTfobias e todas as formas de opressão. Então, reunir cerca de 50 mil mulheres marchando em
não só com movimento LGBT, feminista, mas também com esse movimento negro aquilombador.
Temos feito, desde 2015, uma série de avaliações políticas. Estava acontecendo, naquela época,

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Brasília antes do golpe, 3 mil mulheres reunidas em Goiânia, muita luta, com muita dificuldade, setores de comunicação, com secretários, as superintendências, com as outras subsecretarias,
com muitas questões, isso não é qualquer coisa. nessa tentativa de trazer a parceria para a prática. Nossa subsecretária à época, Larissa Borges, e
hoje, amiga, bem sabe das lutas que travamos. Mas também sabemos das vitórias.
Então, a gente chegou a 2018 com essa certeza, de que as mulheres negras são as que vão
alterar a estrutura de fato. Se isso acontecer um dia, vai ser a partir desse lugar, das mulheres Conseguimos executar algumas campanhas. Eu fiquei também feliz, um tempo depois, de
negras trazendo essa riqueza da nossa ancestralidade. Entendemos que muito do que está aí na ver que saíram campanhas de algumas Secretarias, como a de Esportes, por exemplo, colocando
sociedade, das tecnologias, de processos construídos e usados até mesmo pelos nossos opressores, a mulher negra em evidência nos seus materiais. Os servidores da Sedpac foram exonerados em
é riqueza nossa, são dos nossos antepassados, vindos de África. Como é que Zumbi e Dandara4 janeiro de 2019 e depois ela deixou de existir. Mas algumas coisas permanecem impregnadas nas
conseguem juntar cerca de 30 mil pessoas em quilombos, escondidos na floresta?! A gente precisa pessoas e nas ideias. Eu sei que é uma luta, porque dentro da estrutura que temos hoje há uma série
olhar para esses lugares que o nosso povo construiu. Não precisamos inventar a roda, precisamos de questões contra as quais você não vai bater de frente por motivos diversos. Mas é importante
reconhecer isso, que nós giramos a roda há séculos. comemorar as pequenas vitórias.

Então, quando se elege deputadas pretas em Minas Gerais, depois de 300 anos desse Acho que um dos grandes produtos que tivemos, para além de conseguir colocar o Ônibus
gigantesco estado, e eleva o fenômeno Áurea Carolina a vereadora mais votada de BH; a deputada Lilás para rodar, foi ter cerca de mil mulheres participando da Conferência Estadual de Políticas
5

federal com a quinta maior votação do estado em 2018 – foram cerca de 162 mil votos; e a traz para as Mulheres. E quase 3 mil jovens na Conferência de Juventude e na Conferência de LGBTs, que
para a candidatura para prefeita de Belo Horizonte, estamos dizendo ao mundo que nós também foi um sucesso. Além das outras conferências realizadas em 2015. Conseguimos fazer o diálogo com
podemos e queremos estar nos espaços de poder para definir a política! a sociedade, extremamente importante, para manter esses lugares de participação com a presença
do povo. Ele vai alimentando as esperanças, favorecendo a formação política, proporcionando que
5. Ser gestora e mulher negra as pessoas se conectem a você e também se indignem. Eu, na minha indignação, essa revolta é meu
combustível para me acordar de manhã sabendo que eu preciso cumprir algumas coisas.
Cheguei para compor uma equipe do governo do Estado de Minas em 2015. Em março de
2015, foi criada a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania Mas o principal produto que conseguimos entregar na SPM/Sedpac foi o Plano Decenal
(Sedpac). Eu cheguei em julho de 2015 para ocupar o cargo de Diretora de Articulação Institucional Estadual de Políticas para as Mulheres 2019/2029, que fizemos em parceria com a Fundação João
da Subsecretaria de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM). A Sedpac tinha cinco braços, cinco Pinheiro e com várias outras mãos mineiras. Saber que esse plano ainda é um orientador para
subsecretarias: juventude; promoção e defesa dos direitos humanos; igualdade racial; participação atuação da Coordenadoria de Mulheres da Sedese me deixa muito feliz. O Plano é um documento
social; mulheres. Foi um período de muito aprendizado, diálogo, tanto com pessoas progressistas legítimo, construído de forma democrática, em vários momentos com a sociedade. Momentos
quanto com pessoas não progressistas. Foi possível perceber a necessidade de que aquele governo, presenciais com as mulheres e com uma grande preocupação de não ser algo impossível, mas,
mesmo sendo de esquerda, tinha de adentrar nas raízes do estado para poder fazer discussões sim, uma ferramenta de trabalho diário. E tem muita representatividade – por exemplo, você vê
necessárias sobre os direitos humanos. Você não pode construir políticas públicas sem ter alguns várias vezes a palavra “lésbica”, a palavra “bissexual”, a palavra “transexual”. Então, você avança na
entendimentos; logo foi possível perceber que dentro da articulação institucional da SPM, e também caminhada, porque o Plano traduz a diversidade, as identidades, as especificidades das mulheres
da própria Sedpac, havia um caminho longo para conseguir sensibilizar as pessoas, principalmente mineiras.
quem estava ali à frente da constituição das políticas, assessorias de planejamento e os próprios
A experiência de quase quatro anos na SPM foi muito produtiva; mas também houve certa
servidores de carreira. Trabalhamos por esse caminho de sensibilizar, de dialogar muito com
frustração, porque não se executa política pública sem recurso. Aí, você vê que não basta ter
somente vontade política. Hoje estou como assessora na Gabinetona, no lugar de outros irmãos e
4 Líderes do quilombo de Palmares, maior quilombo que existiu na América Latina. Foi construído ao final do
século XVI na Capitania de Pernambuco (estava situado em uma região onde hoje é o estado de Alagoas) e chegou a
reunir cerca de 30 mil habitantes. Foi um dos grandes símbolos da resistência das pessoas escravizadas no Brasil. Foi 5 Iniciativa que tem como objetivo prestar atendimento, amparo e instrução às mulheres que sofrem e, caso neces-
destruído em 1694. sário, realizar o encaminhamento para a rede de atendimento.

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irmãs, e diante de uma série de milhões de brasileiros que estão sem trabalho – também por causa muito grande hoje, para muita gente, não só pela questão racial, pela questão da orientação, das
da pandemia que nos assola todos esses dias. LGBTfobias de cada dia.

6. Racismo e ausência nos espaços de poder Acho que é extremamente necessário ter mais pessoas negras, mais mulheres negras e mais
mulheres nos espaços de poder. Temos um índice em torno de 10%, nos espaços legislativos, não
No campo da gestão pública, de forma direta, não me lembro de ter sofrido racismo ou mais, infelizmente. No exemplo de Minas Gerais: entre 77 deputados, há somente 10 mulheres,
LGBTfobia. Até porque, teoricamente falando, você está ali junto com os seus, com a galera que está sendo que depois de 300 anos você tem três negras apenas. Foi preciso 300 anos para se ter
na área dos direitos humanos, todos progressistas, vindos das lutas indígena, negra, feminista, de três negras como deputadas, olha que coisa absurda. É revoltante. Eu acho que precisamos dar
pessoa com deficiência, LGBT, juventude, diversa. Você parte do pressuposto que está todo mundo continuidade e ampliar uma série de ações políticas e sociais. Assim, quem sabe, teremos boas
dentro do mesmo barco. Mas transitar naquela Cidade Administrativa, na hora do almoço, na hora surpresas nas eleições futuras, nas eleições municipais, mais mulheres e mais mulheres negras se
do lanche, de ir para um outro lugar, é muito difícil. Porque, por exemplo, já cheguei sabendo: “você vendo na possibilidade de ocupar outros lugares, de representar sua comunidade, seu território,
tem que estar sempre muito bem vestida aqui, porque as pessoas observam muito”. Eu falei: “Ih! abraçar uma pauta em específico ou transitar por vários lugares, com propriedade para poder fazer
Danou”. Não vou abrir mão do meu tênis, da minha sandália, das minhas camisetas de militância, isso sem medo. Acho que a gente pode ter surpresas boas até mesmo em campanhas coletivas. E
eu nunca me preocupei com isso, nunca andei rasgada. Uai! Eu sou uma mulher preta militante, até mesmo, com a presença de outros homens, de homens negros. A gente tem aqui, em 2020, as
eu não vou vestir minhas camisetas de luta? Mas o olhar das pessoas é sempre algo que marca campanhas coletivas do Psol e o Núcleo de Negros e Negras do Psol, por exemplo, trazendo várias
muito. Talvez, esse olhar pode ter sido o mais visível que eu tenha percebido. Te olham por uma lideranças, algo em torno de 15 pessoas, com candidaturas coletivas em várias cidades, como Juiz
série de motivos, podem te olhar com admiração, com desejo; mas também te olham condenando, de Fora, Uberlândia, Sarzedo e BH.
questionando, apontando e, às vezes, querendo te expulsar do seu lugar ou te agredir.
Embora a gente possa ter bons resultados para esta eleição de 2022, acho que vai demorar
Já na rua, sim, fui vítima de racismo, várias vezes. Passou, uma vez, um cara de carro, ele ali muito tempo para a gente ver uma mulher presidenta de novo, porque o trabalho que a direita
dentro protegido, me mandou pentear o cabelo. Já fui chamada de “sapatão” na rua como forma de fez de criminalização da própria política, dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda,
agressão. Dentro de lojas, é sempre muito desconfortante... Tem algumas formas de se comportar especificamente o PT, e principalmente a criminalização da mulher, infelizmente foi muito bem
nesses lugares, que é não ficar pegando muito em coisas pequenas, manter sua mão sempre visível. feito.
É muito difícil, muito mesmo, porque a sensação é que a qualquer momento você vai ser acusada
Mas, em suma é isso: um número muito baixo de mulheres, e mulheres negras, nesse espaço
de algo que não fez.
de poder, não só no legislativo, mas principalmente no executivo. O próprio cenário do estado de
Hoje, em 2020, a gente caminha em um momento de pandemia, de governo neoliberal, Minas: a maior parte das mulheres está na área de educação, em superintendências de educação
fascista, genocida, momento em que continuam aumentando as mortes da população negra, das e dentro das salas de aula; e nessas secretarias que também são um lugar de cuidado, como a área
mulheres negras. Não dá para somente para fazer, é preciso pensar, olhar para o passado. Mas é de saúde. Mas elaborando, tomando conta do dinheiro, em espaços de decisão, há um número
preciso, também, valorizar e reconhecer os lugares pelos quais que já passamos, que os nossos baixíssimo de mulheres, com certeza. Eu tive acesso a alguns números em 2016/2017, e é realmente
pais, avós, nossos antepassados já passaram, para avançar. Eu não vou nem falar da questão do baixíssimo o número de mulheres nos espaços do alto escalão. Se essas mulheres podem ter dupla,
dinheiro como obstáculo, porque a ausência de recursos sempre é um obstáculo para a família tripla jornada, por que elas não podem ser presidentas do país, da câmara, do senado? Se eu tomo
trabalhadora, pobre, negra. Mas nos vermos como sujeitos de direito, capazes, com condição de conta das finanças da casa, o que é tão difícil principalmente com pouco recurso, eu não posso
estar em outros lugares. Acreditar nisso já adianta um caminho. Fui uma jovem que já pensou em gerenciar outro lugar? A gente pode, nós somos capazes, sim!
não mais existir; e não passei fome, não morei em barraco de lona, não fui estuprada, mas as outras
violências que sofri me fizeram ter vontade de não mais viver. Eu acho que ficar bem é um desafio

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7. Identidade Negra É uma perspectiva de renascimento mesmo, porque, aí, ninguém mais vai te tirar. Vão te
chamar de “macaca”, vão mandar você pentear o cabelo, aquilo vai te chocar, vai te doer, mas você
Sou uma mulher preta, lésbica, sapatão. A minha descoberta, acho que foi lenta. Não quero vai processar de um jeito diferente, porque sua autoestima não será abalada. Você vai querer lutar
que a minha sobrinha Tamires ou o Junior levem 35 anos para descobrir a identidade negra deles, por seus direitos, que aquela pessoa entenda que não é assim e vai tomar medidas legais para se
mas eu levei um tempo para poder perceber isso. A questão da estética, por exemplo, sempre esteve defender do racismo. Quando a gente é olhada pelas pessoas de forma atravessada, essas pessoas
mais conectada com a questão da orientação. Eu usei pouco vestido, andava de bicicleta – nunca é que têm medo de irem para o lugar de subalternidade. Medo de você, mulher negra e homem
teve transporte coletivo, ainda não tem, na minha cidade. Então foi bicicleta, moto e carro o tempo negro de poder ancestral. Quanto mais fortalecida for a nossa identidade, mais nos vemos nos
inteiro. A minha estética foi sempre masculinizada, porque eu também não tinha essa constituição lugares que são nossos também. E para que possamos ampliar a pauta, a discussão, é melhor que
da identidade. E a cidade é quente, então eu andava muito de bermuda, calça e camiseta mesmo, ocupemos outros espaços, que a gente consiga ter mais igualdade social.
garrafinha de água do lado.
8. O feminismo negro
E eu sempre tive esse contato muito grande com a natureza. Agradeço de novo à minha mãe,
minha ancestral. Porque a terra, que é um grande elemento para mim, e esse contato com o cerrado, O feminismo negro é muito necessário, porque faz uma série de contrapontos. Ele reconhece
com mato, foi muito importante para eu poder chegar aqui. Sempre arrumo um jeito para mexer a importância da luta das mulheres brancas, as lutas anteriores, o direito ao voto, as lutas iniciadas.
com as plantas, ampliar os vasos de plantas e cuidar do jardim vertical, feito por mim mesma e por Mas também critica, porque as mulheres negras já estavam na luta mesmo antes desse movimento
minha companheira no início da pandemia de Covid-19. branco se organizar. As mulheres negras já estavam enfrentando as senzalas e as casas grandes,
os estupros dos coronéis e dos patrões, já estavam cuidando dos seus na senzala e ajudando nos
Aqui em Belo Horizonte, um pouco depois de minha chegada, com meus amigos, que também
processos de resistência, haja vista que Zumbi não existiria sem Dandara. Dandara também tem
estavam nessa construção da identidade e de seus lugares, fui me percebendo, identificando meus
influência na revolução dos quilombos, na organização dos escravizados.
lugares e enfrentando as LGBTfobias e racismos, assim como meus amigos vindos de outros
interiores. Quando as mulheres brancas vão para rua lutar pelo direito ao voto, as mulheres negras
estavam nas casas delas tomando conta dos seus filhos, das casas, da comida. Então, elas tinham
E aí, em um determinado momento, eu me deixo ser experimento dos projetos de cortes
suporte e a gente já estava nessa luta sem suporte algum. As mulheres negras já estavam fazendo
de cabelo deles. Primeiro, o Giovanni. Posteriormente, do Weverson. Eles cortaram meu cabelo
esse enfrentamento aqui no Brasil desde o início, desde que o nosso povo foi sequestrado e trazido
de um jeito que eu me percebo melhor. Disse a eles: “Poxa, é isso!” Aquele ambiente se tornou
para cá para sermos escravizados.
um ambiente de autocuidado. O autocuidado pode vir de tantos lugares, mas não tem nada
melhor do que estar com os seus, com as pessoas que você confia para ser você mesma e dar um E tem o olhar para a questão indígena também. Estamos caminhando lado a lado com as
passo à frente. É esse cabelo black power minha identidade. Então, de lá para cá, eu só uso minha mulheres indígenas, que também estão sempre juntas na luta das negras. As mulheres do campo,
cabeleira solta, esvoaçante e natural. Penso que chegar nesse ponto de entendimento com o cabelo da floresta, na sua maioria, são negras. Mulheres que estão mais afastadas dos rincões e que não
foi extremamente importante para me fortalecer. Eu vejo várias pessoas fazendo o processo da têm nenhuma delegacia por perto para denunciar uma situação de violência, e vai viver naquele
transição, cabelo cheio de química, cortando curtinho, eu acho isso muito bonito. Porque, para lugar podendo até morrer pelo feminicídio. São pouquíssimas delegacias de mulheres e outras
mim, é aquela história da fênix. Em um dado momento, na mitologia, ela renasce das cinzas. Mas estruturas que compõem uma rede de proteção e apoio. E quando tem, às vezes chegam e são
ela é a águia que, em um determinado momento, vai despelar toda, perder todas as suas penas, extremamente mal atendidas; são olhadas como culpadas, não são consideradas como as vítimas:
ficar totalmente nua, da mesma forma que veio ao mundo. Ela fica sem nada e renasce. Não sei “O que é que você fez para o seu marido te bater?”.
em qual momento isso acontece, mas acho que nesse processo de construção de identidade, a
O racismo deveria ser uma bandeira de toda e qualquer luta. Se o racismo não for visto como
transição do cabelo é quando você se olha no espelho e fica contente com aquilo que vê.
algo que precisa ser combatido de fato, porque as mazelas que a gente vive hoje estão passando por
esse lugar, não adianta muito. Uma coisa muito importante, e que discutimos muito, é justamente

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Capítulo 11 - Eliane Dias DIAS, Eliane; SOUSA, Rosânia; SILVA, Sérgio F.

a matança da juventude negra, da população negra como um todo. Tem um projeto muito bonito construindo, estar em equilíbrio com mente, corpo e alma é revolucionário. Parece muito clichê,
chamado Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, inspirado no samba de Adoniram mas é essa paz interna, o equilíbrio, que tem feito a diferença para mim, para eu poder seguir meu
Barbosa. É um projeto idealizado por Benilda Paiva Brito, do N’zinga. Hoje, é um projeto executado dia, para não ter medo de pedir desculpas porque errei ou de agradecer quando receber algo de
por outra organização que ela coordena que é o Odara, Instituto da Mulher Negra, que fica em alguém. Para acordar no outro dia sabendo que é mais uma oportunidade única que tenho para
Salvador. Esse projeto foi lançado em Belo Horizonte em 2017. Tentamos colocá-lo em prática aqui, poder viver melhor, ser melhor e aproveitar cada suspiro do dia e sendo feliz. Acho que é uma
o que ainda não deu certo; mas ele acontece em algumas periferias com alto índice de violência busca ser uma mulher melhor para mim e para o mundo, isso tudo reflete no bem viver. Poder
e letalidade juvenil em Salvador, como o Cabula. E ele parte dessa premissa de que a mãe não olhar para si e saber o que é preciso mudar, o que é preciso melhorar, é um negócio que eu busco. É
dorme enquanto ele não chegar, porque o filho da mulher preta, quando sai, não sabe se vai voltar. fabuloso se conhecer! Eu quero ser agradável com as pessoas nas diversas jornadas da vida, quero
A mulher preta quando sai, também não sabe se vai voltar. O filho pode ser vítima da violência do aproximá-las e não afastá-las.
Estado, de guerra de facções, da milícia, de um monte de coisas. Esse ponto do enfrentamento do
Desejo ser vista como uma pessoa que
genocídio da juventude negra é o principal.
deixou marcada na história não as coisas
Outra coisa que a gente tem discutido muito, desde 2015, é ter mais mulheres negras no materiais, mas as que de fato importam e
poder, entendendo que a mudança que precisamos depende de colocar as mulheres em outro lugar preenchem a alma, o espírito. Ser lembrada pelo
na pirâmide social. As mudanças para a dignidade das mulheres negras vão partir das próprias afeto, sentimentos, boas energias, pelas trocas,
mulheres negras. Mas, para isso acontecer, precisamos alcançar para esses outros lugares. Tivemos pelo abraço, pelo respeito, cuidado, tipo assim:
vários momentos de formação com mulheres que queriam ser candidatas a vereadoras ou prefeitas “nossa, que saudade daquela preta, que saudade
no pleito de 2020. Nós fizemos um levantamento para identificar quem eram essas candidaturas de sambar e ir para a balada com ela, saudades
negras no estado. E vamos fazer essas campanhas coletivas sem dinheiro, ajudando ali e aqui, na daquelas conversas nossas, daquelas trocas e
base do aquilombamento, com a comunidade reunida e trabalhando coletivamente. risadas, do companheirismo, do caminhar junto,
de confabular com ela e sonhar com um mundo
9. Ser uma pessoa melhor possível e melhor para todas as pretas e todos os
pretos”. Ser lembrada com alegria e esperança, e
Queria ser lembrada como uma pessoa que, diante das muitas adversidades que o sistema
não com a tristeza que traz sofrimento, apenas.
e a vida trouxeram, caminhou por lugares positivos de aprendizado e evolução. E que contribuiu
Saber que contribuí e que dei o que podia dar,
para melhorar a realidade de algumas pessoas à minha volta. Ajudar a cuidar dos meus pais, cuidar
sem medo dos apontamentos ou cobranças.
dos meus irmãos, sobrinhos, dos meus amigues e dos que estão mais perto me deixa feliz. É bom
Estou bem com isso, tenho boas sensações com
saber que, de alguma forma, influenciei na vida de alguém, e que esse alguém também poderá, em
essa possibilidade de memória boa dos meus. É
algum momento, influenciar positivamente a vida de outro. Acho que a influência que podemos
isso! Estou feliz, em paz. Gratidão!
ter, de forma efetiva, é mesmo com as pessoas que estão por perto; que isso vai reverberar para
o mundo a partir de nossa base. Então, eu queria que as pessoas pudessem se lembrar de mim
como uma camarada, uma companheira, que lutou acreditando nos seus ideais e na força coletiva
e organizada do povo. Que aprendeu a olhar para si e a cuidar de si primeiro para ter condições de
cuidar dos outros. Que buscou ficar bem, que foi amiga e parceira de verdade dos seus.

Não tenho pretensão de ter um nome em uma placa na rua ou em uma obra, quero outras
Eliane Dias no trabalho na Assembleia Legislativa de Minas
coisas para minha vida e memória. Quero que sintam que estar em paz com aquilo que você está Gerais. Praça da Assembleia. Belo Horizonte, 2020.
Crédito: Mayara Laila.

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12
SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

Francisca Maria da Silva Considero minha família uma mistura de negro com Puri1. Os meus pais falavam que o bisavô
Maria Clara Mendes da minha mãe era índio, que a sua descendência é oriunda de um casal de índios “pegados no laço”
Ana Paula Salej e domesticados. Logo, temos esse parentesco bem forte com os indígenas. A família da minha mãe
tinha o cabelo liso. Minha mãe era negra com o cabelo totalmente liso. É uma pena que não há
fotos daquela época, na roça não tínhamos foto. Já do lado da família do meu pai parece que teve
jagunço. Meu pai era negro afro. Eu puxei o lado do meu pai. No meu documento, eu sou negra.

Meu pai trabalhava a meia ou a terça2. Como meeiro de tudo que produzia, metade era
do dono da terra. Já quando trabalhou na fazenda de uns japoneses, dividia: duas partes para o

XICA DA
dono da terra e uma parte para nossa família. A gente plantava feijão, lavoura de café, arroz. Não
comprávamos muita coisa não. Era um lugar de muita fartura, tinha galinha, porco, muita fruta. A
gente comia fruta no pé, pegava a melancia e a rachava com a pedra, comia um pedaço e jogava
fora. Ia no pé de banana, sacudia, pegava as que estavam mais madurinhas. Minha mãe costurava e

SILVA
cozinhava. Fazia muita quitanda num forno grandão... A maior parte do que a gente fazia, adoçava
com rapadura, já que não tinha açúcar. Ela era uma excelente cozinheira, ainda tenho uma vaga
lembrança de alguns bolos e broas que ela fazia. Como a gente tinha porco, era ela que matava e
limpava, fazia sabão com a banha. Todos os dias bem cedo meus irmãos colocavam pra cozinhar
abóbora, inhame rosa e banana verde para alimentar os porcos. Parte desse cozido era o nosso café
1. Família e ancestralidade da manhã, colocávamos melaço e comíamos. Ainda hoje brinco: “Sou forte, porque fui tratada com
comida dos porcos!”.
Eu sou Francisca Maria da Silva. Acho que toda Francisca quando nasce
Lembro do dia que eu não comi canjiquinha. Meu pai me deu uma surra de correia de
é Chica; no meu caso, eu sou a Xica com X. Tive 12 irmãos, sou uma das filhas
caminhão, porque eu não gostava de canjiquinha com frango. Minha mãe ficou curando as minhas
mais novas, hoje somos sete. Eu nasci em 1964, numa casa de pau a pique
feridas por mais de um mês. Hoje eu adoro canjiquinha. Quando meu pai teve úlcera, teve que
em Laranjeiras, distrito rural do município de Ipanema, região do Vale do
“cortar o bucho” e quase morreu, ficou no hospital uns seis meses; também foi ela quem cuidou
Rio Doce, em Minas Gerais.
dele e dos filhos. Mesmo sendo uma analfabeta de ler e escrever tinha um saber popular inabalável.
Minha mãe, Juventina Maria da Silva, casou-se com 14 anos. Conheceu Minha mãe era tudo para gente, era nosso alicerce.
meu pai quando ele foi levar um corte de pano para dar para minha tia em
Meu pai ia à cidade de três em três meses e aí comprava chinelo, conga, alpercata3. Quando
pedido de casamento, mas meus avós falaram pra ele: “Tem que casar com
voltava era uma alegria, porque ele sempre trazia aquela casquinha de sorvete com maria mole
essa aqui, que é mais nova... ela é muito regateira, se ela casar vai quietar”.
e bala Chita. Ele colocava a gente em fila e pedia para cada filho abrir a mão. Cada um de nós
Logo ela ficou noiva e rapidamente se casou. Minha mãe foi lavradora,
recebia um tanto de bala na mão; assim, quem tinha a mão maior recebia mais balas, quem tinha a
costureira, parteira e benzedeira. Meu pai, Gabriel Anselmo da Silva, além
de lavrador, era também barbeiro. Nenhum dos dois sabia ler ou escrever.
1 Os Puri são um grupo indígena brasileiro, pertencente ao tronco linguístico Macro-jê, de habitação originária nos
quatro estados da região sudeste do Brasil: Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.
2 Nessa prática, o agricultor trabalha em terras de outra pessoa e reparte o rendimento da plantação com o pro-
prietário – geralmente metade ou a terça parte.
3 Conga ou alpercata / alpargata: tipo de sapato (tênis) muito usados na época.

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Capítulo 12 - Xica da Silva SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

mão pequena recebia menos. A gente partia as balas em cinco pedaços enrolava em uma folha de conseguiu estudar. Eu tenho boas recordações da escola. Gostava muito de ler romances – Machado
bananeira e ficava quase 3 meses chupando aquela bala melada, cheia de formiga. de Assis, Cora Coralina, Oswaldo França Júnior.

Éramos uma família católica, eu me lembro das festas de Congado, Nossa Senhora Aparecida, Em 1982, houve uma história muito triste que abalou a nossa família. Após esse episódio,
da Folia de Reis. Inclusive, eu já carreguei a bandeira do Congado. Na época da Folia de Reis, às eu vim para Belo Horizonte, aos 18 anos, para encontrar com a minha irmã, que já morava na
vezes, os “santos” ficavam lá em casa, depois os foliões pegavam e levavam para outras casas. cidade. Em 1983, em pleno dia das mães, minha mãe faleceu, acho que tinha 49 anos. Morando em
Minha mãe também fazia aquelas festas de dia das crianças, de Nossa Senhora Aparecida. Então, Belo Horizonte, eu nem consegui ver minha mãe viva. A morte dela foi um mistério. Falaram que
participávamos ativamente dessas festividades da religiosidade popular. Todas as minhas irmãs ela estava ótima, de repente passou mal, foi hospitalizada, teve uma parada cardíaca fulminante.
têm Maria no nome; eu me chamo Francisca por causa da minha avó. No lado dos irmãos, tem José, Vários adultos que chegaram ao mundo através das mãos dela prestaram homenagem. Hoje meu
Jorge, Antônio... a bíblia toda está lá em casa. pai também já é falecido.

A ida para Ipatinga 2. O início de uma vida de trabalho


No final de 1971, meu pai comprou um lote e mudamos para o bairro Betânia, no município
Com seis, sete anos me lembro que a gente acordava às 4h da manhã para ir para o engenho
de Ipatinga. Saímos da roça e viemos morar em um terreno pequeno de 360 metros. Vivi lá durante
de cana-de-açúcar. Já guiei muito boi na roça. Até os dez, onze anos guiava os bois cheios de cana
uns 10 anos. Quando nós chegamos não havia uma casa construída, minha mãe fincou alguns
para levar pro engenho pra gente trabalhar. Quando o feijão secava, nós, as mulheres, batíamos o
pedaços de pau no chão, colocou uma lona preta e entramos debaixo daquela lona. Vivemos desta
feijão com aquelas varas compridas que não quebram – vara de marmelo – e separávamos a palha
maneira mais ou menos uns três, quatro meses. A massa de cimento, os tijolos, tudo foi carregado
dos grãos. Com o arroz era da mesma forma. Já o café, primeiro tinha que preparar o terreiro, um
pela minha mãe.
espaço grande que a gente passava uma mistura de estrume de boi com argila branca para selar
Quando chegamos em Ipatinga, ninguém trabalhava e logo começamos a procurar trabalho. o chão. Ali a gente espalhava o café para secar, usando um rodo enorme. Depois de seco, a gente
Pouco tempo depois, meus irmãos conseguiram trabalhar em uma das empreiteiras da Companhia socava o café no pilão, torrava no fogão de lenha e socava de novo. A gente tomava café com garapa,
Usiminas, naquela época era mais fácil. O que conseguiu uma colocação melhor foi o meu irmão o caldo da cana. Houve uma época em que a gente plantava amendoim preto, tínhamos que fazer
Antônio, com um emprego de soldador e com salário um pouco maior. Os outros irmãos trabalhavam isso assobiando para não comer. Se comêssemos meu pai batia na gente. Aquele amendoim era de
como serventes, o que hoje eles chamam de serviços gerais. plantar, era o do patrão, era do dono da terra.

Na cidade, minha mãe entristeceu. Não havia aquela fartura, não tinha terra para plantar. Além de trabalhar na roça, eu e minhas irmãs trabalhávamos como babás dos filhos dos
Ela ia para a porta da Usiminas em busca de roupa para lavar. Foi meio que o fim para ela, mas patrões. Eles mandavam um “cavaleiro” que dizia: “Dona Juventina, hoje nós queremos uma das
ela tentava nos passar sua fortaleza. Minha mãe é meu exemplo de superação, nos ensinou que é suas filhas para ficar com o filho do fazendeiro”. Eu era uma dessas filhas. Essa função de cuidar
preciso ser forte diante das adversidades. dos filhos do patrão não era vista como um trabalho, eles chamavam a gente para brincar com os
filhos mais novos. Trabalhar era o trabalho na roça, no engenho, na capina, mexer com o café no
Eu fui à escola pela primeira vez em Laranjeiras, mas não sabia contar, nem ler ou escrever. Foi
terreiro.
em Ipatinga que eu frequentei de fato a escola. Ficamos eu, minha irmã do meio e meu irmão Luís
na mesma sala. Eu e minha irmã nos saímos bem, mas meu irmão Luís não conseguia acompanhar Quando mudamos para Ipatinga, eu fui trabalhar como babá e também como arrumadeira.
direito as aulas e a situação piorou, porque ele ainda respondeu a professora. Minha mãe foi à sala Eu me lembro que sempre comíamos após os patrões e também não sentávamos à mesa. Para
de aula e deu uma surra nele na frente de todo mundo. Minhas irmãs ficaram com muita vergonha nós, era destinado o angu com feijão. Hoje eu amo angu. Quando tinha um prato diferente, esse
e acabaram abandonando a escola. A princípio, ficamos na escola somente eu e meu irmão, depois prato não era servido para a gente. Se estávamos na sala, erámos “convidados” a nos retirar. E se
ele desistiu e fiquei eu. De todos os meus irmãos, eu fui a única que continuou indo para Ipatinga e a patroa pedia para comprar um sorvete para o filho dela, para nós era um picolé. Trabalhei em
mais de uma casa de família e, do mesmo modo, não me davam valor e era muito mal remunerada.

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Capítulo 12 - Xica da Silva SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

Eu me desdobrava para conciliar o trabalho nas 3. Marcas do patriarcado


casas de família com os estudos, mas eu não
conseguia parar no trabalho, pois as patroas Em Belo Horizonte, conheci meu ex-marido, o homem que eu achava que seria meu eterno
não queriam me deixar estudar. companheiro, amigo e amante. Ele era administrador do condomínio em que eu trabalhava como
cozinheira, em um dos apartamentos. Logo a gente estava morando juntos. Eu tinha 24 anos e não
Em Belo Horizonte, comecei a trabalhar
sabia que estava indo para o lugar que quase me tirou a vida. A minha história já tinha marcas do
fazendo faxina, mas não dei conta. O meu
patriarcado. Vim de um espaço em que a violência era visível.
primeiro emprego fixo foi no bairro Santo
Antônio como faxineira e arrumadeira. Conheci Eu e minhas duas irmãs dormíamos no quarto dos meus pais e assistimos a vida inteira
pessoas boas que me ensinaram o ofício, mas minha mãe sendo estuprada e espancada pelo meu pai. A gente viu isso até meus irmãos crescerem
eu não gostava de arrumar a casa, eu gostava e o enfrentarem no braço. Ainda tinham as traições. Meu pai teve um filho fora do casamento e
mesmo era de cozinhar. O meu sonho era fazer minha mãe foi madrinha dele. Portanto, crescemos num ambiente em que a violência era bastante
um curso na área de Gastronomia! Eu tinha o vivenciada. Contam que, no início do casamento, minha mãe foi à casa dos meus avós e falou que
saber popular, aprendi com minha mãe, que era não gostaria de viver com aquele homem. Aí, meus avós falaram: “Sua lata está cheia? Você está
uma excelente cozinheira. passando fome?” Ela respondeu que não. Minha mãe retornou para a casa, era aguentar ou aguentar.

Pensei em começar a estudar, mas logo No engenho, o patrão queria vir passar a mão na gente, nos assediar. Um dia, eu peguei um
consegui fazer um curso gratuito na área pedaço grande de cana e falei: “Vem que eu te dou uma ‘canada’ na cabeça”. Nós erámos a escória,
de alimentação e arranjei um emprego. Fui eles podiam fazer tudo o que queriam.
trabalhar como “freezeira”: a cada dia, abastecia
Em Ipatinga, no meu primeiro “emprego” como babá fui assediada pelo patrão. Ele gostava
os freezers das casas. Com isso, comecei a viajar
muito de ovo mexido e, sempre, quando eu ia prepará-lo, ele chegava e tentava me agarrar por
para Vitória, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio
trás. Após 6 meses eu contei para minha mãe e disse que não gostaria de trabalhar mais lá. Ela me
Grande do Sul. Eu conheço boa parte do Brasil.
aconselhou: “Olha, coloca uma panela de gordura, deixa ela esquentar e quando ele vier queima
Com 23 anos, uma família me contratou como
a mão dele e fala com a mulher dele”. Eu segui o seu conselho, mas a esposa do meu patrão não
cozinheira. Fui “a empregada que é quase da
acreditou em mim e disse que eu era a culpada, que eu dava em cima dele. Acabei saindo do
família”, que sai com os patrões aos domingos,
emprego.
almoça junto, mas que era a negra que estava
no meio dos brancos. Quando chegava visita, eu Com meu companheiro, os processos violentos e as agressões começaram quando minha
sabia que eu era a empregada. Um dia, eu dei filha mais velha, Paula, tinha apenas um ano, hoje ela está com 30. Como eu não podia sair de
um presente para a minha patroa e ela falou: casa, assistia muito um programa de culinária, chamado Note e Anote, com a Ana Maria Braga. Eu
“Eu vou levar lá para a roça, porque o povo da escrevia muitas receitas do programa e algumas eu mesma criava. Ele queimava todas. O pouco
roça gosta”. Eu havia dado o presente para ela, que consegui salvar foram algumas receitas que enterrei no quintal de casa. Eu não notava as
mas acabou indo para os empregados. Tem essa agressões; quando eu ia para o hospital toda machucada, falava que eu havia caído da escada,
Xica da Silva grávida da sua filha Paloma Gabriela, 1992. mesma cena no filme Que horas ela volta. da cadeira, bati a cabeça no botijão de gás. Fui espancada, tive 88 pontos no rosto e nos olhos,
Crédito: Acervo Pessoal sofri dois abortos, dei luz a um natimorto e tive dois ataques cardíacos. Vivi dez anos em cárcere
privado e, desse cárcere, consegui sair após oito denúncias de violência doméstica.

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Capítulo 12 - Xica da Silva SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

Em 1999, passei pelo Centro Especializado de Atendimento à Mulher – Benvinda – e depois 4. Da economia solidária à gestão pública
fui abrigada na Casa de Acolhimento Sempre Viva, em Belo Horizonte. Em 2000, consegui me
separar do meu ex-companheiro e fui viver minha vida com as minhas três filhas, Paula Gabriela, Em 1999, consegui fazer o curso de Chefe de Cozinha pelo SENAC, que na época aceitou
Paloma Gabriela e Karine Gabriela. Mas ele não aceitava a separação e, entre idas e vindas, jogou inscrição de quem não tinha ensino fundamental nem médio completo. O curso abriu muitas
o carro comigo e minhas filhas na ponte da Lagoa da Pampulha. Nesta tentativa de homicídio, portas para mim, já que eu tinha o saber prático, mas não tinha o certificado.
cortei o rosto todo e meus olhos foram lesionados. Fiquei internada no Hospital João XXIII e passei
Entre 2000 a 2003, nos serviços e programas da rede de proteção de enfrentamento à
por duas cirurgias plásticas no rosto. No hospital, tive um encontro comigo: “Que homem é esse
violência contra a mulher, fiquei conhecendo a Economia Solidária. Aí começa a minha trajetória
que eu amo, que me maltrata, mas que diz que me ama também e que eu sou a melhor mulher do
como empreendedora e o aumento da minha autoestima. Participei de um grupo de convivência de
mundo?”. Ali passei a me enxergar e a me amar, agradeci por eu não ter morrido. Quando eu me
mulheres vítimas de violência doméstica. Neste grupo, a gente contava as nossas histórias e pensava
olhei no espelho, vi que o meu rosto estava todo cortado. Freddy Krueger era mais bonito do que
como nos apoiar para vivermos longe do agressor, visto que muitas de nós ainda continuávamos
eu, nem eu mesma tinha coragem de me olhar.
sendo perseguidas. Engraçado esse termo, agressor!
No processo de separação, passamos dificuldades financeiras. Quando eu e minhas filhas
Participávamos de oficinas de geração de trabalho e renda na Coordenadoria dos Direitos
íamos para a Santa Casa ou o Hospital João XXIII para a consulta com o oftalmologista e com outros
das Mulheres de Belo Horizonte – Condim/PBH. Em 10 de junho de 2003, dia do meu aniversário,
especialistas, geralmente não tínhamos um centavo no bolso. Na época de manga, nós ficávamos
formamos o grupo “Trem Bom”. O grupo atuava na área de Gastronomia, produzíamos alimentos a
embaixo daquelas mangueiras que ficam na rua do hospital para conseguirmos nos alimentar, já
partir de doações. Nós ganhávamos caixas de tomate, pimentão, abobrinha. Uma parte ficava para
que as vezes a consulta era de manhã e à tarde. Em 2003, no momento em que estavam ocorrendo
a gente comer, outra a gente doava e com a terceira parte produzíamos conservas para vender,
muitas campanhas de denúncia de violência contra a mulher, a TV Record me descobriu. Me
que aprendi a fazer assistindo aqueles programas de culinária na TV. Além de serem alimentos
descobriu, porque eu retirei o pano do rosto e falei: “Não vou me esconder mais de ninguém. Por
saudáveis, gerávamos renda com aquilo que sobrava e que não queríamos jogar fora. Mas, logo
que eu vou viver presa, sem poder falar? Eu sei que ele não vai me dar sossego, então eu vou falar!”
de início, percebemos que o “Trem Bom” não vendia muito, logo resolvemos mudar o nome para
E foi justamente quando eu decidi falar, que ele me deixou em paz!
“Amigos de Xica”.
Logo, as ONG’s me descobriram e eu comecei a ser convidada para dar palestras e falar sobre
Naquela época, tinha a Agenda 21, voltada para o combate à miséria e a pobreza, aí consegui
a minha história. Não recebia remuneração para isso, mas adquiri muita autoestima, conhecimento
ministrar algumas oficinas de reaproveitamento de alimentos em escolas municipais no interior
e inspiração. Eu viajei para São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Argentina, Paraguai, sem
do estado: Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas, Timóteo, Coronel Fabriciano, uma parte
contar a participação em videoconferências. A Cáritas Brasileira, Regional Minas Gerais – Belo
da região do Vale do Jequitinhonha e também leste de Minas Gerais. A maioria das pessoas não
Horizonte, sempre me ajudou muito e continua sendo uma importante parceira. Muitas de minhas
sabem o que fazer com cascas, sementes e outros restos, isso tudo vai para o lixo. Estão jogando o
viagens foram possíveis por causa do apoio deles. Essa fase foi muito importante, porque ali eu
melhor fora... essas partes têm grande teor de nutrição e eu fui mostrar isso para as comunidades.
comecei a ir para o mundo e consegui tirar de dentro de mim as mágoas, tristezas, rancores.
Meu primeiro emprego no setor público, não lembro bem quando foi. Um vereador havia me
Eu falo para as minhas amigas que quando a gente tem coragem de colocar para fora dá um
dado uma cesta básica e eu falei com ele: “Eu não quero uma cesta básica, eu quero um emprego”.
alívio, sabe?! Dá uma leveza na gente, porque quanto mais você fica com as coisas “entaladas”,
Logo consegui um emprego na Prefeitura Municipal de Ribeirão de Neves como Ajudante de
guardadas na garganta, é pior. Quando você consegue falar, tirar esse nó, é muito bom. Por isso eu
Serviços Escolares. A minha função era preparar os alimentos para os alunos da rede pública
conto a minha história; ao ajudar quem ouve também estou me ajudando. Tenho certeza que há
municipal. Os alimentos eram preparados em uma única panela. Eu e uma assistente social
muitas mulheres que são espancadas a vida toda. A gente não pode deixar essas coisas caírem no
falamos: “Vamos mudar isso!”. Aquelas crianças participavam do Programa de Erradicação do
esquecimento. Digo que sempre podem contar comigo. Eu acho que isso é muito importante!
Trabalho Infantil (Peti), já viviam em situação de extrema vulnerabilidade, de situações de abuso
e exploração, de famílias desajustadas e sem acesso a uma alimentação de qualidade. Como eu era

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Capítulo 12 - Xica da Silva SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

uma mulher obesa e tinha pressão alta, tive um ataque cardíaco e me afastei do cargo. Consegui Em 2012, fui convidada novamente a candidatar-me para “tapar buraco”, desta vez como
ficar no emprego somente um ano e pouco. vereadora. Do mesmo modo, também não fiz campanha e tive só 133 votos. Mais uma vez fiquei
na lista de suplentes. Não tinha trabalho fixo, a minha remuneração vinha do Buffet Amigos de
No final de 2009, eu retornei à prefeitura de Ribeirão das Neves para trabalhar como Gerente
Xica, que, em 2013, conseguiu ter aprovado um projeto no Instituto Consulado da Mulher5. Com o
de Segurança Alimentar, depois de me candidatar pela primeira vez para vereadora em 2008 pelo
financiamento, compramos freezer, geladeira, fogão, micro-ondas e utensílios que impulsionaram
Partido Socialista Brasileiro – PSB. Tinha saído uma emenda parlamentar para a construção de
os trabalhos do empreendimento. Neste ano, fiquei por conta do buffet.
uma cozinha comunitária para os cidadãos do município terem acesso a uma alimentação de
qualidade e a uma cozinha-escola. Quando eu fui convidada a estar neste espaço, eu tinha receio Em 2014, saí novamente como candidata a deputada federal pelo PSB. Eduardo Campos havia
de não dar conta, por não ter muita leitura e baixa visão. Assim sendo, eu precisava de uma boa se comovido com a minha história. Ele me disse: “Xica, você é uma das que vai comigo, onde eu
equipe técnica. Não imaginava que não podia contar com isso. colocar o meu calcanhar, você coloca seu dedão”. Eu acreditei nas promessas, mas Eduardo Campos
acabou falecendo. Quando eu fui conversar com a coordenação estadual do partido, o presidente
Foi muito difícil me adaptar, pois o poder público é muito cruel. Eu sou muito proativa, enxergo
falou: “Tudo que o Eduardo Campos prometeu para você foi para cova com ele”. Consegui 2.392
anos-luz à frente, eu venho com o problema e também com a solução. Colocava os problemas
votos em 119 cidades, mas não consegui vencer as eleições, fui suplente pela terceira vez. Continuei
embaixo do braço e ia direto despachar com o Prefeito, não sabia lidar com toda aquela hierarquia.
no buffet de 2014 até 2016.
Logo o Secretário um dia falou: “Infelizmente, não dá para trabalhar com a Xica, ela não dialoga
com a gente, vai direto no Prefeito e ele acaba assinando tudo”. O Prefeito acabou me chamando Em maio de 2016, fui convidada a assumir um cargo na Secretaria Municipal de Relações
e disse: “Deixa de ser boba, você é hipertensa, teve ataque cardíaco, vai cuidar da sua saúde”. Em Institucionais na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. A minha função era auxiliar nos processos
2009, recebia R$1.500,00; na época, era muito dinheiro, mas achei melhor sair do que aceitar a de mobilização e de diálogo com as pessoas do interior e na organização de eventos. Eu me lembro
proposta que me fizeram. da minha contribuição em um evento da Associação Mineira de Municípios (AMM), conseguimos
reunir 680 prefeitos em uma reunião. Eu trabalhava na assessoria do Prefeito Márcio Lacerda.
Em 2010, havia muita campanha para que as mulheres saíssem como candidatas. Fui
Eu costumo brincar que a “razão social” conta muito, não era a Xica que estava ali, era o Márcio
convidada a candidatar-me por causa da minha história. Achei que conseguiria ganhar e que ia
Lacerda. Quando eu dizia: “Boa tarde, nós somos da assessoria do Prefeito Márcio Lacerda”, o povo
criar muitas emendas e mudar a situação. Por isso, acabei sendo candidata a deputada federal.
só faltava colocar um tapete vermelho para a gente passar, serviam até café na xícara de porcelana.
Pensei que o processo era fácil e que teria muitos votos. Doce ilusão! Assim que eu fiz o registro
Fiquei no cargo durante seis meses.
não tive nenhuma ajuda e também não fiz campanha. Vim para dentro de casa, cruzei os braços,
mas, mesmo assim, tive 1084 votos, que não foram suficientes para me eleger, fiquei na lista de Em 2017, quando entrou o Kalil, ele chamou todo mundo e falou: “Está todo mundo
suplente4. Voltei para minha vida normal! exonerado”. Achei que eu estava exonerada, mas só depois soube que, quando ele viu o meu perfil,
não me exonerou. Me mandaram um e-mail, mas eu acabei não vendo. Em Ribeirão das Neves, a
Após o período eleitoral, me convidaram para voltar para o cargo, mas não aceitei. Fiquei um
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Cidadania, responsável pela área de Assistência
tempo sem trabalhar no poder público. Dois deputados me procuraram e disseram: “Xica, você
Social, me convidou para trabalhar na pasta e eu fiquei trabalhando na Prefeitura de lá, sem saber
tem que retornar para Neves para executar a emenda”. Respondi: “Voltar para não fazer nada? Isso
que eu ainda estava nomeada na Prefeitura de Belo Horizonte.
não é da minha índole. Eu já estou com problemas cardíacos e vou acabar morrendo do coração”.
Eles me pediram para indicar alguém para o cargo e acabei indicando minha filha, Paula Gabriela. Fui convidada para duas gerências: a Gerência de Proteção Básica, a Gerência de Economia
Ela ficou lá até 2012, mas não houve a construção do Restaurante Popular nem das cozinhas Solidária e Inclusão Produtiva e a Gerência de Segurança Alimentar e Nutricional – Banco de
comunitárias. Com a mudança de gestão, minha filha acabou sendo exonerada. Alimentos. Dessas gerências, eu tinha experiência na economia solidária e inclusão produtiva,

5 Ação social da marca Cônsul. O instituto tem por objetivo incentivar o empreendedorismo feminino oferecendo
assessoria na gestão de micro negócios e capacitações para que as mulheres empreendam de forma eficiente. Fonte:
4 Essa foi a segunda eleição que se candidatou, sempre como candidata do PSB – Partido Socialista Brasileiro. https://consuladodamulher.org.br/consuladodamulher/

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Capítulo 12 - Xica da Silva SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

mas quando eu olhei para a segurança alimentar, pensei: “Eu deixei isso no meio do caminho”. trabalho com a remuneração de R$1.800,00 e depois o Prefeito aumentou o meu salário, passando
A proposta inicial era ficar 101 dias como voluntária no período de transição do governo, para para R$3.200,00 devido ao reconhecimento do trabalho que estava sendo desenvolvido. Isso gerou
depois ser nomeada. Quando fui ver a situação da Gerência de Segurança Alimentar, descobri que muita polêmica dentro da Prefeitura.
nada havia sido executado, daqueles projetos da gerência de 2009. Como isso pode acontecer em
Ribeirão das Neves, que era conhecida pelos presídios, pela cidade que passa fome, “a
uma cidade que tem mais de 4.500 pessoas passando fome?
cidade das trevas”, passou a ser noticiada pela Rede Minas, Globo, Record, Jornal o Tempo e até no
Nessa gestão, eu tinha carta branca Jornal Super, destacando os avanços na política de segurança alimentar. O Banco de Alimentos do
com a Secretária, não precisava passar município virou referência para a região metropolitana.
pelo Secretário-Adjunto, além de ter acesso
Fizemos um bom trabalho na Gerência de Segurança Alimentar e Nutricional e esse trabalho
facilitado com o Ministério Público. Então,
foi feito em equipe, da colaboração de cada funcionário: assistentes sociais, equipe administrativa,
eu pegava meus papéis e ia direto em quem
nutricionista e os próprios colaboradores que carregavam as caixas de alimentos. Agradeço,
podia assinar. Após três meses, surgiu uma
principalmente ao assistente social e ao motorista do Banco de Alimentos, Senhor Canarinho, pois
oportunidade de ir à Brasília e descobrimos que
às vezes o caminhão não tinha diesel e ele falava assim: “Vamos dar um jeito”. Tirávamos dinheiro
havia um recurso do Programa de Aquisição de
do bolso e íamos buscar quatro toneladas de alimentos em Formiga; o excedente nós mandávamos
Alimentos (PAA) para o município e o cadastro
aos outros bancos de alimentos e vice-versa. A Gerência foi o espaço de conquista de um sonho e o
de 105 agricultores familiares. Assinamos
nosso trabalho alcançou 100% de aprovação.
um convênio para comprarmos alimentos
produzidos pela agricultura familiar. Logo, a Quando deixei a Gerência, fui convidada a assumir a Assessoria de Políticas Públicas
Gerência de Segurança Alimentar começou para Mulheres. Esta assessoria estava vinculada ao Gabinete do Prefeito. Assumi a pasta sem
a alavancar. Montamos uma boa equipe de infraestrutura e equipe técnica. Disponibilizaram uma sala pequena, cadeira quebrada e uma mesa
trabalho e recebíamos no início uns 600 quilos que tinha que escorar na parede. Dentro da sala, quando chovia, molhava tudo. A minha função era
de alimentos perecíveis. Em junho de 2019, mobilizar as mulheres do município e reverter o quadro político-partidário. No período em que eu
já eram umas 22 toneladas. Participamos da fiquei à frente da pasta, consegui fazer um seminário sobre o tema. As estruturas organizacionais
montagem da Rede Metropolitana de Banco hierárquicas eram bastante difíceis de lidar, quando havia qualquer problema de relacionamento,
de Alimentos. Além de comprar alimentos alguns funcionários iam direto ao Prefeito e falavam que eu não conseguiria gerir a pasta. Quando
dos agricultores familiares de Ribeirão das você chega na administração pública, eles falam com você assim: “Cego, você vai caminhar neste
Neves e de mais cinco municípios, montava túnel e vai encontrar uma luz”. Mas eles se esquecem que no meio do caminho tem uma canaleta,
a “cesta verde”. Assim, todas as famílias que um buraco e, se você não abaixar a cabeça, certamente baterá a cabeça no ferro. Eles não falam
eram atendidas pelo Centro de Referência de Visita de Xica da Silva, Gerente do Banco de Alimentos, à isso, só mandam você ir.
horta comunitária no município de Formiga, em 2018.
Assistência Social (Cras), recebiam a cesta
Crédito: Acervo Pessoal Após essa experiência na Assessoria de Políticas Pública para Mulheres, comecei a trabalhar
básica e também a cesta verde.
de forma voluntária no apoio às candidaturas de mulheres, pois acredito que é importante cada
Também passei muitas dificuldades na Gerência de Segurança Alimentar e Nutricional – vez mais mulheres ocuparem esses espaços. Em Ribeirão das Neves, entre os 580 candidatos
Banco de Alimentos. Como aquele recurso de 2009, oriundo da emenda parlamentar, não pôde ser da base aliada do Prefeito, há 35 mulheres, sendo que uma encontra-se no mandato e a outra
reconduzido à pasta, porque a equipe do planejamento perdeu o prazo e o prefeito não assinou é vereadora. Algumas delas se candidatam apenas para composição numérica. Minha função é
no tempo adequado, voltamos à estaca zero no projeto de construção das cozinhas comunitárias. orientá-las; assim estou tendo a oportunidade de fazer com todas o que não fizeram comigo. A
Além disso, alguns vereadores me viam com olhos de discriminação e desprezo. Iniciei o meu maioria dessas mulheres são negras. Uma delas me disse: “Eu vou fazer escova progressiva para

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Capítulo 12 - Xica da Silva SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

tirar foto na campanha, porque é mais bonito”. Eu perguntei: “Mas você se sente bonita com o seu Assim, quando eu vejo essas mulheres se maquiando e passando a se valorizar, eu fico
cabelo assim?”. Ela respondeu que sim. Falei: “Logo, tire a foto do jeito que é o seu cabelo”. Uma muito feliz. Inclusive, no dia 30 de outubro, o projeto finalizou e me bateu uma angústia. Oh meu
outra também trouxe a mesma questão: “Na comunidade eu sou assim, gosto do meu cabelo preso, Deus, o que eu vou fazer para essas mulheres continuarem se encontrando? Há mulheres que
mas acho que tenho que mudar para parecer mais bonita e arrumada”. Na hora de tirar a foto, trabalham na agricultura familiar, professoras, mães com filhos no sistema penitenciário, outras
perguntaram para ela: “Mas você não vai soltar o cabelo?”. Ela respondeu: “Eu não, é assim que o que começaram a conversar com as pessoas, porque não tinham coragem de abrir a boca. Essas
povo me vê, então vou tirar a foto do jeito que eu estou agora”. O processo de empoderamento faz mulheres se encontram na minha casa, a minha varanda comporta umas 25.
parte do trabalho.
Por um lado, eu me sinto realizada em ser espelho para elas, fonte de acolhimento; mas,
Infelizmente, o cabelo foi e é sempre algo problemático para mulheres negras. Sempre por outro lado, eu me sinto frustrada quando eu não consigo ajudar. Um dia eu escutei de um
nos disseram que o nosso cabelo é ruim, feio e inadequado. Meu cabelo é bem crespo, mas por deputado a seguinte frase: “Xica, você é igual enxurrada, você traz tudo para o seu lado, inclusive
praticidade sempre usei química e faço a tal da “chapinha”. Estou tentando não usar mais química o lixo”. Escutar esse tipo de coisa me deixa muito triste, mas é o que me dá força para continuar e
no cabelo, não porque não pode, mas porque agride bastante o couro cabeludo. E quem disse que não parar. Como falar para essas mulheres coisas do tipo: “Por que não pega um balaio de bolo e
só porque eu sou negra tenho que usar o meu cabelo afro? O meu cabelo não me define. vai vender na rua para gerar renda?”. Muitas vezes essa mulher não tem nem um fogão de quatro
bocas nem alimentos para cozinhar para os seus filhos.
Atualmente, o buffet Amigos de Xica está com as atividades um pouco paradas devido à
pandemia. No momento, faço parte do “Movimenta Mulheres”, projeto em parceria com a União 5. Preconceito e discriminação
Europeia – Agenda 2030, que tem o objetivo de qualificar 20 mulheres para geração de trabalho
e renda. Este projeto foi escrito junto com a ONG Moradia e Cidadania para o buffet comprar Quando eu estava na administração pública, percebia, principalmente das pessoas que
equipamentos e realizar oficinas de qualificação profissional. As participantes têm histórico de ocupavam cargos de destaque, olhares tortos. Ouvia frases nos corredores: “Nossa, o que esta
violência doméstica e a ideia é contribuir para que, por meio do acolhimento, rodas de conversa mulher está fazendo aqui? Essa mulher é louca? Ela não tem ‘papa’ na língua, será que em uma
e de oficinas de qualificação profissional, elas consigam, cada uma a seu tempo, se movimentar. reunião ela vai saber se comportar?”. Em muitos momentos, eu tive que me moldar e colocar salto
Muitas me procuram buscando orientação de como sair da situação de violência, ajudar a mãe, alto. A cada momento em que eu escutava frases como essas, eu me erguia um pouco mais, eu
a irmã, a amiga ou a filha. Às vezes, algumas mulheres me procuram pedindo cesta básica e eu brinco que até chute na bunda me manda para frente.
respondo, do mesmo modo que eu respondi lá atrás para o vereador: “Você quer é um trabalho,
Se eu fosse denunciar a quantidade de situações de racismo ou injúria racial que eu sofri
não é?”. Em alguns momentos, coincide termos algum evento contratado, logo eu pergunto: “O
durante a minha trajetória de vida e de trabalho, talvez hoje eu estivesse andando de jatinho de
que você sabe fazer? Limpar o chão, cortar uma verdura, lavar louças?”. E é engraçado, algumas
tanto de dinheiro que eu teria ganhado desse povo. Se eu fosse levar a sério tudo que eu já escutei
dizem saber somente limpar o chão ou lavar vasilha, mas com o passar do tempo percebemos que
e senti em relação ao racismo, provavelmente teria caído em depressão, como já caí muitas vezes.
ela sabe fazer um bolo, um doce, montar uma salada, tirar as fotos e publicá-las nas redes sociais.
Houve um período, quando eu saí da Prefeitura Municipal de Ribeirão das Neves em 2012-2013,
Outro dia eu acolhi por 30 dias uma menina sem pai e deficiente visual.
que eu fiquei três meses no escuro, sem sair de casa, pentear o cabelo e conversar com as pessoas.
Escutar e valorizar são práticas fundamentais no processo de acolhimento dessas mulheres.
Lembro que em 2013 eu não me maquiava nem me olhava no espelho, até hoje eu tenho um
É tão pouco o que elas precisam! Às vezes, é um abraço, uma conversa, uma influência. Em alguns
pouco de receio. Nesse ano, o pessoal do Instituto Consulado da Mulher me levou para Joinville
momentos, eu me sinto constrangida e agradecida ao escutar os seus depoimentos: “Agradeço a
para eu colocar a prótese no meu olho. Quando eu me olhei no espelho e vi que o meu olho não
Deus e à Xica”; “No dia em que a Xica foi lá em casa eu havia arrumado uma corda para tentar me
era mais fundo e que haviam dois olhos, eu me empoderei. Quando o meu olho era atrofiado era
matar”; “Na minha casa não tinha feijão, olha como eu era antes e olha como eu estou agora”; “Meu
pior, na maioria dos lugares em que eu passava, eu escutava: “Coitadinha, deixa ela passar, ela
filho está trabalhando em tal lugar”; “Eu quero trabalhar com você”.
não enxerga, ela é cega”. E eu só olhava para o chão, minha cabeça estava sempre voltada para o
chão. Hoje, mesmo enxergando somente 16% eu uso salto alto e olho para cima. E eu tenho que

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Capítulo 12 - Xica da Silva SILVA, Francisca M; MENDES, Maria C.; SALEJ, Ana P.

olhar para cima, porque se você chega nos lugares olhando só para baixo as pessoas te pisam e te Além do racismo, há a desigualdade de gênero, uma vez que os homens sempre estiveram no
massacram. poder, sempre mandaram. Nós, mulheres, ainda não sentimos a força que temos. Somos 52% da
população e por que não ganhamos as eleições? Porque a gente ainda vota em homens. Precisamos
Eu sinto mais discriminação em relação à minha deficiência visual. Quando nós abrimos o
ser mais atrevidas a entrar no mundo da política e parar de falar: “Não vou entrar na política
empreendimento Amigos de Xica, as pessoas falavam: “Coitadinha, vamos comprar dela, ela não
partidária, porque é sujo”. Mas enquanto não entrarmos no jogo para mudarmos essa realidade, o
enxerga”. No início eu chorava muito, entrava em depressão, depois eu falei: “Quer saber, deixa
poder continuará sendo exercido pelos homens. Temos que ser protagonistas, ao invés de ficar a
eles comprarem por piedade”. Quando os clientes passaram a comprar, começaram a perceber
vida toda batendo palmas e continência para os homens.
que os meus produtos eram de qualidade. Eu comecei a trabalhar internamente as agressões que
eu sofria direta e indiretamente. Eu enxergo pouco, mas escuto muito bem, tenho uma excelente 6. Sonhos, perspectivas e valorização do caminho trilhado
percepção do mundo e das pessoas. Na minha opinião, ser rotulada como deficiente é pior do que
sofrer discriminação racial ou ser simples. Eu tenho como sonho ter um espaço de convivência, uma cozinha comunitária para que
pudéssemos acolher mulheres e capacitá-las para que sejam protagonistas de si mesmas. Eu fecho
De fato, eu percebo que a ausência de mulheres negras em cargos de poder e de decisão
os olhos e imagino um espaço amplo, uma mesa bem grande debaixo de uma árvore, em frente a
ocorre por causa ao racismo. A sociedade nos enxerga somente nos bastidores – na cozinha, como
uma rua onde qualquer um que passa pode tomar um copo d’água e comer um pedaço de pão ou
benzedeira, na assistência social e nas funções de cuidado e de limpeza. Você vai às Secretarias de
uma fruta. A comida, a cozinha aproxima as pessoas e abre portas e perspectivas. Em todos lugares
governo, dificilmente você vê negros em setores como planejamento e finanças. De dez pessoas em
que eu vou, gosto de levar uma garrafa de café, um bolo, um biscoito e em todo lugar terá alguém
funções burocráticas ou de chefia, somente uma é negra. Na minha primeira equipe, por exemplo,
com fome ou precisando de uma boa conversa.
dos dez funcionários da Gerência de Segurança Alimentar, somente eu era negra. Na segunda, acho
que já eram seis pessoas negras em dez. Eu gostaria de ser lembrada como a Xica: mulher, negra, mãe de três filhas, avó e amiga.
Como mensagem, gostaria de falar com cada mulher, que antes de amar alguém, ame a si própria.
Eu sou uma mulher negra e acho que as dificuldades de negros e negras ocuparem espaços
Faça uma escuta atenta de si mesma. Às vezes, a gente espera muito do outro, mas sem saber o
de poder são devidas ao racismo estrutural e ao patriarcado. Historicamente, nós não tivemos as
que de fato queremos. A mudança sempre precisa partir de nós mesmas, é preciso que ela ocorra
mesmas oportunidades de estudar e de nos qualificar profissionalmente como os brancos. Tenho,
primeiramente em cada uma de nós.
como exemplo, a minha família e pessoas negras próximas a mim que não conseguiram estudar,
porque trabalhavam na roça, lugares em que não havia muito estudo. E, quando tinha, com certeza, Aniversário da filha Paula Gabriela. Da esquerda para direita, as filhas Paula Gabriela, Paloma Gabriela e Karine Gabriela. 2020.
Crédito: Acervo Pessoal
era destinado para homens brancos. Assim sendo, não conseguimos ter as mesmas oportunidades
que os nossos patrões brancos.

Eu tive a oportunidade de continuar os estudos somente após adulta. Em 2018, fiz o Encceja
Ensino Fundamental e, em 2019, finalizei o ensino médio e fui aprovada no vestibular da UNA em
Gastronomia, mas ainda não tive condições de me matricular. Recentemente, cursei Informática
Básica e pretendo posteriormente fazer Informática Avançada e estudar Inglês. Eu respeito muito
os acadêmicos, eu ainda vou fazer uma faculdade. A academia vem para organizar as palavras, mas
eu nunca vou deixar de ser a Xica da roça, que fala “soncê” e “ocê”. Não é um certificado que eu vou
colocar debaixo do braço que vai me dizer quem eu sou. O diploma não vai mudar o meu caráter
nem minha índole.

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NEVES, Magda A.; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

Magda Andrade Neves Vilaça rebatia: “Mas, engraçado, meu pai era preto!”. Antes, eu não entendia muito isso, esse racismo,
Jessyka Martins várias referências da minha mãe e da minha avó dizendo da minha bisavó, do quanto ela era
Maria José Nogueira preconceituosa em relação ao tom de pele. Só depois fui criar essa incógnita. Sobre o racismo da
minha avó, a percepção foi minha mesma, de que das minhas primas que se casavam com homens
negros a minha avó não gostava. Ela falava abertamente que os bisnetos dela iam nascer todos
pretinhos e isso parecia uma insatisfação para ela.

A minha avó materna ficou viúva aos 31 anos de idade, com quatro filhos – um tinha alguns
meses e veio a óbito. O marido dela morreu na Mina de Morro Velho, provavelmente de fibrose

MAGDA
pulmonar, por conta do pó da mina. Então, a minha avó ficou com os três filhos e foi trabalhar em
casa de família, na casa de uns franceses, em Caeté. A minha avó trabalhou na casa dessa família
por mais de 30 anos. Essa minha avó materna morreu com quase 100 anos, em 2017.

Os meus avós por parte de pai morreram já há algum tempo. E a referência que eu tenho é

ANDRADE
de todos eles muito admiráveis. Mas meu avô paterno é uma referência muito forte na minha vida,
ele era uma pessoa extremamente doce, chamava todo mundo de “bem”. Onde tinha um grupo de
pessoas, de jovens, adultos, velhos, ele estava lá no meio. Chegava e dizia: “Ei moçada!”. Quando
meu avô morreu, seu sepultamento estava marcado para as 5 horas da tarde, mas ele foi sepultado

NEVES VILAÇA
quase às 8 horas da noite. A casa ficou lotada, a Igreja também, a capela do cemitério. O padre não
conseguia realizar a missa de corpo presente. Daí resolveu fazer na beira da sepultura mesmo. Foi
sepultado com os holofotes do cemitério ligados. Ele era uma pessoa muito doce, muito querida.

A minha avó paterna é uma mestiça, descendente do povo que foi escravizado e de alguma
1. História familiar e pessoal: ancestralidade e etnia indígena. Eu acho estranho falar descendente de escravo! A gente é descendente de um
a ausência de um sobrenome. povo livre que foi escravizado e de índios. E o meu avô paterno é descendente direto do povo
escravizado. Eles são de Cláudio, Minas Gerais. A cidade foi formada a partir de um quilombo, no
Eu tenho muito orgulho da minha ancestralidade. Então, vou contar ribeirão Cláudio.
um pouco da família da minha mãe e um pouco da família do meu pai a partir
Eles tiveram 18 filhos, dos quais 13 sobreviveram. Meu avô, além de trabalhar na roça, era
da minha memória e do que ouvi quando criança. A minha bisavó materna
calceteiro. Você conhece essa profissão? Eram aquelas pessoas que calçavam as ruas com pedra.
era descendente de portuguesa, muito branca, de olhos azuis e racista. E eu
Meu pai é o segundo dentre esses filhos. Estudou só até o ensino fundamental incompleto. Desde
não sei por qual motivo ela se casou com um negro. E aí nasceu a minha avó.
criança trabalhava na roça com meus avós e seus irmãos. Com 17 anos, trabalhava nas pequenas
A minha avó foi uma mulher de pele clara e de cabelos crespos, racista, e
fundições da cidade, e foi aí que ele saiu de casa para tentar a vida fora. Teve uma vida muito difícil,
também, não sei por qual razão, casou-se com outro negro. Então, nasceu a
dormiu na rua. Foi pra Caeté morar com alguns tios e tentar arrumar um emprego. Lá ele começou
minha mãe, também de pele clara e cabelos crespos. Eu não conheci a minha
a trabalhar na Companhia Ferro Brasileiro e conheceu a minha mãe. Eles se casaram em Caeté,
bisavó. A minha mãe conta que muitas vezes ela ria e brincava, porque meu
ganharam meu irmão mais velho, o Ricardo, que agora tem 54 anos. Eu tenho 46, o Eduardo está
pai também é negro. Falava assim: “Ah, se sua avó visse seu pai ela ia falar
com 40, a Marina com 37. Quando eu tinha 23 anos de idade, a minha mãe adotou a Daniela, nós a
muito mal, porque era preto e andava de chinelo de dedo”. E minha avó
adotamos com três dias de nascida. A chegada dela foi uma alegria imensa.

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Capítulo 13 - Magda Andrade Neves Vilaça NEVES, Magda A.; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

Meu pai trabalhou algum tempo nessa companhia, depois foi para São Paulo com a minha Eu lembro a partir do momento que a
mãe e começou a trabalhar em uma empresa chamada Ottis como auxiliar de montagem de gente veio para Minas Gerais. A gente foi morar
elevadores. Depois de cinco anos, ele se transferiu para uma outra empresa, chamada Elevadores em um bairro em Belo Horizonte, chamado
Schindler do Brasil, uma empresa suíça. E no tempo em que ele estava em São Paulo, teve uma Pirajá, ali perto do trevo de Sabará, depois do
úlcera muito forte. O médico disse que só faria a cirurgia se meu pai prometesse que se mudaria de bairro São Paulo. Lembro da minha mãe fazendo
lá, porque aquilo não era lugar para ele e assim a cirurgia não ia resolver. Nessa época, eu já tinha chá de bonecas com as mães das coleguinhas
nascido (1974). Em 1979, ele pediu demissão. Mas empresa não o demitiu, preferiu transferir ele vizinhas. Meu pai comprou um terreno em
pra Belo Horizonte. Então, trabalhou mais 30 anos nessa empresa e saiu de lá como supervisor de Contagem e construiu a nossa casa. Aí, a gente
montagem. Quando saiu, a vaga foi ocupada por um engenheiro formado, porque o conhecimento mudou para Contagem. Lembro do nascimento
do meu pai era todo prático. Desde então a gente mora em Contagem. do meu irmão Eduardo e do nascimento da
Marina.
Meu nome, meu sobrenome, uma frustação, um sonho.
Lembro também que eu fui alfabetizada
O meu sobrenome me causa uma certa frustração. A história do meu nome é a seguinte:
duas vezes, porque a minha mãe ia me colocar
quando meu pai foi para a companhia Ferro Brasileiro, ele trabalhava com um pessoal descendente
direto na primeira série, mas só podia ser
de francês e alemão, e a filha de um desses donos se chamava Magda. Meu pai achava esse nome
matriculado quem faz aniversário até 30 de abril,
bonito. Quando eu nasci, ele pediu para minha mãe colocar esse nome e ela aceitou. Achei ótimo,
e eu faço em 19 de maio. Assim, eu não pude ser
porque a minha mãe queria que eu me chamasse Francislaine, então, achei que fiquei “’no lucro”.
matriculada, e minha mãe achou por bem me
Eu gosto!
colocar no pré-primário. Fui alfabetizada pelo
E o meu sobrenome? Quando o meu pai foi registrado, houve um equívoco do cartório; o método fônico. Depois, quando entrei na escola
meu avô se chamava José Neves Vilaça, então o nome correto do meu pai teria que ser José Neves formal, fui alfabetizada de novo pelo método
Vilaça Filho. Não sei o porquê de o cartório ter colocado José Neves Filho. Algumas vezes, já fiz a silábico.
juntada de documentos para poder acrescentar o Vilaça no meu nome, porque para mim esse é o
Até hoje, tenho contato com meus colegas
sobrenome do meu avô, sabe? E por conta de contingências da vida, ainda não tive oportunidade
de infância, de escola. A minha trajetória
de colocar, mas é um sonho. Eu quero acrescentar o sobrenome Vilaça no meu nome.
educacional foi muito marcante em termos de
Vilaça, sobrenome que guarda lembranças muito especiais: a infância amizade e eu trago muitas delas até hoje. Foi
Magda aos 2 anos de idade, em São Paulo.
de Magda Neves, neste livro “Magda Andrade Neves Vilaça”, nossa uma infância tranquila. Nunca tive nenhum Crédito: Acervo Pessoal
homenagem. episódio de violência doméstica nem histórico
de abuso. Eu passava as minhas férias de início
Nasci em São Paulo, vivi lá até os 5 anos de idade, eu não tenho muita lembrança dessa fase.
de ano, desde criança, em Cláudio. E as férias E a gente não faz distinção de quem é primo
Eu lembro de coisas que a minha mãe fala, que repercutem até hoje. Ela disse que eu desmamei
de julho, em Caeté. Sempre tive muito contato primeiro, quem é primo segundo, é tudo primo.
com dez meses de idade e nunca peguei mamadeira, não bebi leite no copo, não tinha nada que me
com meus familiares. Por parte de pai, tenho As esposas dos primos, os maridos das primas,
fizesse tomar leite. Até hoje é assim, eu não gosto de leite, de derivado do leite, não gosto de queijo,
mais de 50 primos de primeiro grau. Eu tenho é todo mundo primo. A família da minha mãe é
de iogurte, sorvete... Uma vez me perderam, eu “fugi” de casa com 3 anos e pouco, fiquei perdida lá
primos que já são avós; então, só de primos, menor, ela só tem dois irmãos, então deve ter
na cidade e aí me acharam numa casinha próxima com as filhas de alguém. Mas, de São Paulo, eu
tios, tias, filhos dos primos e netos dos primos, por volta de 12 primos, mais ou menos, e eu
não tenho muita lembrança.
deve ter aí umas 170 pessoas, mais ou menos. nunca perdi o contato com eles.

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Capítulo 13 - Magda Andrade Neves Vilaça NEVES, Magda A.; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

Magda Neves Vilaça fala de família, racismo e machismo eu entendi o que é responsabilidade. Eu não poderia trair a confiança, não poderia ser ingrata com
a educação que meu pai me deu.
Eu não senti muito o racismo, porque o bairro onde eu morava não era um bairro de pessoas
brancas, nem de classe média. Então, eu convivia entre iguais. Até eu sair literalmente para o Infância e adolescência: amigos, festas, o pai leitor e a política.
mundo, não tive essa noção do racismo. E quando eu viajava, estava sempre com os meus primos
Eu fui uma adolescente precoce, porque meu irmão é oito anos mais velho que eu e os meus
e nós somos todos iguais. Então, na infância, eu não sofria, não tinha consciência dessa questão.
primos também têm a mesma faixa etária. Os meus irmãos e os meus primos eram Dj’s, tocavam em
A minha família era patriarcal mesmo e machista. Mas não é um machismo convicto, é um clubes lá em Caeté, onde eu ia com as minhas primas que eram dois anos mais velhas que eu. Em
machismo estrutural. Minha mãe é do lar, sempre foi. E o meu pai sempre trabalhou fora para Caeté, a gente ia no clube Ferro Brasileiro, que era o clube da Companhia, predominantemente para
o sustento da casa. Então, era aquele pai que chegava e a janta tinha que estar pronta, a casa pretos e pobres, que eram os funcionários do chão de fábrica. E algumas vezes a gente conseguia
arrumada. Não se envolvia, por exemplo, nas nossas questões escolares, nas tarefas de casa. Isso ir para o Clube dos Funcionários, que era um clube destinado aos funcionários administrativos
tudo estava a cargo da minha mãe. O que ficava a cargo do meu pai é aquela coisa bem tradicional da empresa. E em Claudio tinha uma danceteria que era o Automóvel Clube, ligada ao Rotary.
de fazer as compras do mês, pagar a conta de água, luz, telefone, cuidar do carro. Comprar roupa, Um dos meus tios trabalhava na portaria e a gente também entrava e participava de toda a noite
sapato, pagar o curso, quando necessário. Mas não tinha nenhum envolvimento com as tarefas claudiense...
domésticas e coisas afins, porque “isso não é coisa de homem”. Meu pai tinha bem separado o que
Meu pai sempre foi um leitor de jornal, muito crítico e eu puxei isso dele. Desde cedo, eu lia
é para homem e o que é para mulher. Mas, em momento nenhum, ele me criou para o casamento. A
muito. Eu lia as crônicas do Caderno Feminino do Jornal Estado de Minas e “plagiava” nas minhas
vida toda ele tentou pagar uma boa escola, embora ele não entendesse muito bem o que significava
redações escolares. Acompanhei o movimento das Diretas Já, a morte do Tancredo, os diversos
uma boa escola.
planos econômicos (Sarney, Bresser, Real, etc). Com 15 anos, muito por influência, acompanhei o
Eu lembro de um episódio que pra mim foi muito emblemático: eu tinha uns quinze anos, início da redemocratização do país e me envolvi na política. Comecei a trabalhar com política, era
mais ou menos, e tinha passado férias na casa dos meus avós. E a gente, os primos, uma turma cabo eleitoral e fazia campanha. Depois fui “cara-pintada”. Então, na minha adolescência, tinha
toda da mesma idade, todos adolescentes, tinha combinado de acampar na beira do rio em julho. essa questão de vivenciar as coisas próprias da adolescência, ir pra clube, danceteria, namorar;
Isso era janeiro. E eu passei o semestre inteiro juntando mesada, sem lanchar, fazendo uma série mas também tinha muita coisa voltada para o estudo e esse envolvimento nas questões políticas.
de coisas para poder ir acampar. E a minha mãe, que é muito mais machista que meu pai, começou
Onde é o Inferno?
a encrencar: “Não, você não vai. É muito menino junto”. Então, quando chegou o mês de junho,
eu comecei a ficar apertada, precisava dar satisfação aos meus colegas. Precisava arrumar mais Eu nasci de uma família católica de pai e mãe. Meu problema com a religião começou no
dinheiro e falar com meu pai. E a minha mãe fazendo toda aquela pressão. Meu pai chegou do batismo. O padre não queria me batizar em Cláudio, onde moravam meus padrinhos, dizendo que
trabalho e eu tomei coragem: “Pai, eu preciso de um dinheiro; eu combinei com uns meninos lá nada garantia que já não tinha sido batizada em São Paulo. Meu pai ficou nervoso, perguntou por
de Cláudio de ir para a beira do rio, agora no mês de julho. A gente vai ficar uns dias lá”. Meu pai que iria me batizar duas vezes. O padre disse então que faria o batismo em consideração ao meu
falou simplesmente: “Tá.” - sem muita cerimônia. Aí a minha mãe falou: “Você vai deixar ela solta, avô, “que era conhecido, gente muito devota”. Eu fiz a primeira comunhão porque fui obrigada,
sozinha, com esse bando de adolescentes na beira do rio? Pode acontecer alguma coisa e a sua mãe porque minha mãe me botou no catecismo.
(no caso, minha avó), sua família toda vai falar”. Meu pai sentou, parou, ficou pensativo e falou: A religião para mim é muito complicada, traz alguns ressentimentos. Eu sempre fui muito
“Engraçado, eu levanto todos os dias cedo para trabalhar. Eu trabalho, pago as contas, compro curiosa e muito questionadora. Lembro-me do primeiro embate que eu tive quando fui fazer
comida, pago escola, compro material de escola, ninguém nunca veio aqui me perguntar se eu catecismo. Fui perguntar ao padre onde era o inferno: “Olha, lá em cima não é, porque é o espaço
precisava de alguma ajuda para sustentar os meus filhos. Então, por que as pessoas têm que se e tal. Embaixo também não é, porque existe a crosta terrestre. Onde é o inferno, então?”. E o padre,
achar no direito de interferir na educação deles?”. Lembro disso, e percebo que foi a partir daí que educadíssimo, falou: “Cê tá curiosa por quê? Você está querendo saber, já está querendo ir para lá?”.
Isso para mim foi... ah não! Já fiquei rebelde com aquilo. Abandonei a igreja depois dessa resposta

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Capítulo 13 - Magda Andrade Neves Vilaça NEVES, Magda A.; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

singela do padre. Quando eu estava com cerca de 15 anos, uma amiga de infância me chamou para brasileiros abraçamos uma religião que não tem nada a ver com as nossas origens? A gente tem o
crismar e eu fui, muito pelo embalo do grupo de jovens. Então, fui crismada na igreja católica. catolicismo que veio dos colonizadores europeus; tem as religiões de matriz africana, que vieram
dos povos africanos; tem o xamanismo, que veio dos índios. E eu não consigo entender como o
Logo depois disso, meu irmão se casou com uma moça evangélica e arrebatou a família toda
protestantismo se instalou com tanta força aqui no Brasil. A gente não tem nenhum histórico
com esse discurso. E a gente começou a frequentar a religião evangélica. Era uma coisa estranha,
anglo-saxão que justifique.
eu cheguei a casar em uma igreja evangélica, mais por questão de conveniência do que de ser
frequentadora mesmo. Mas eu achava que tinha uma coisa muito estranha, e achava que era 2. Escolarização, universidade, desafios, diferencial, acesso.
comigo, que eu tinha problema com as igrejas, com as religiões.
Eu era leitora, mas também era rebelde; sempre fui muito inquieta e muito encrenqueira.
Continuei me denominando “sem religião”, sem nada. Na igreja evangélica, eu comecei a
confrontar o que eu lia com o que era falado, vi que também não dava. Comecei a frequentar a Fiz o ensino infantil em uma escola particular. Depois, fui da primeira à quarta série em escola
doutrina espírita, ia a algumas palestras. Entretanto, comecei a perguntar coisas que começaram pública. Quando eu estava na quinta série, inaugurou uma escola estadual próxima à minha casa e
a incomodar, então parei de ir. Eu lembro que tinha aula de religião na escola, mas era muito mais minha mãe me trocou de escola. Não foi bom. Eu lembro que eles davam umas cartelas para vender
voltada ao catolicismo. A gente não conhecia as religiões. Era uma espécie de doutrinação também. voto na festa junina e eu não vendia, não conseguia entender que estava vendendo alguma coisa.
Cheguei à conclusão que meu problema é com as instituições. Então, eu tenho problema com a Para mim, era como se eu estivesse pedindo esmola. Era uma coisa estranha a do vender votos,
instituição religiosa, aliás, com quase todas as instituições. Me dei por satisfeita com a conclusão não entrava na minha cabeça. Quando chegava o dia, eu pedia ao meu pai o dinheiro e entregava
de que a minha relação com o sagrado não dependeria de nenhuma intermediação. a folha. Aí teve um ano que eu pedi ao meu pai o dinheiro e ele falou: “Ó, é a última vez que vou te
dar. No ano que vem você não precisa vir com esse negócio”. Isso ficou na minha cabeça, pensei:
Eu sempre tive uma admiração muito grande com as religiões de matriz africana, mas
“Nossa, como vou fazer se meu pai não me der mais o dinheiro?”. E nem sei se ele tinha falado
sempre via como manifestação cultural. Eu tive muito contato com as festas ligadas às religiões
sério ou não. No outro ano, a escola entregou as folhas e eu não peguei. Estava na quinta série.
de matriz africana, dos ritos que tinham nas igrejas do Rosário. Até hoje eu acho lindíssimas as
E hoje eu entendo que eu fui assediada pelos professores, porque todo dia na aula eles falavam
manifestações: a Folia de Reis, o Congado. Na rua da minha casa tinha um centro de Candomblé e
que tinha um aluno que não ajudava a escola, que não pegava as coisas para vender e essa aluna
eu ia em todas as celebrações. Eu me sentia parte daquilo ali, mas muito mais culturalmente, do
era eu. Um dia, a professora estava falando isso e eu respondi: “Quer saber, eu não sou obrigada a
que religiosamente. Eu me sentia bem, gostava, meus olhos enchiam de ver aquilo, mas ainda não
pedir esmola para vocês fazerem festa no final do ano”. Por que eu fui fazer isso? Chamaram minha
estava ligado a uma questão de fé. Não mediava a minha relação com o sagrado.
mãe na escola, falaram com ela que eu deveria ter escutado aquilo em casa, porque eu não tinha
Até que uma amiga minha me chamou para ir a um ritual Xamânico, com a ministração do capacidade suficiente para formular uma resposta dessas. Minha mãe falou: “Não, ela tem sim.
Ayahuasca1. Aí eu fui, passei a fazer uso da Ayahuasca e acho que entendi um pouco que o que Eu nem sabia que estava tendo esse negócio”. Quando chegou o final do ano, compraram umas
gritava em mim, em termos de religiosidade. Em termos da relação com o sagrado, isso tinha muito coisas para a escola, umas caixas de som e mandaram me chamar meio que para afrontar, sabe?
mais a ver com a ancestralidade da minha avó, que era mestiça com índio, do que com a minha Falaram: “Isso aqui é o que é feito com o dinheiro dos votos que vocês vendem”. E eu falei: “Vocês
descendência africana. Desde então, eu frequento rituais xamânicos de trabalhos individuais. não fizeram mais do que a obrigação de vocês”. Aí, dessa vez, não teve jeito, eu fui convidada a me
retirar da escola. Fui para uma outra escola pública, municipal, onde fiz até a oitava série.
Um dos meus primeiros trabalhos acadêmicos de filosofia foi sobre as religiões. Eu estudei,
fiz trabalho com mais de 20 páginas de pesquisa, porque queria entender. Fui entender as origens Quando eu terminei o ano nessa outra escola, meu pai resolveu me colocar em escola
do catolicismo, do protestantismo, das testemunhas de Jeová. Tive contato com o xamanismo, mas particular, em que meu irmão já tinha estudado. Chamava Colégio Brasileiro. Fiz o primeiro ano
sem muita consciência do que era. Hoje, tenho uma certa aversão à igreja evangélica. Como nós de Ensino Básico. No segundo ano, comecei a fazer Processamento de Dados e não gostei. Passei
para Administração, não gostei. Fui para Contabilidade, não gostei. Quando fui mudar de curso
1 Chá feito a partir de uma mistura de ervas amazônicas, utilizado em rituais religiosos dos povos originários pela quarta vez, a pedagoga chamou meu pai e falou que não tinha mais condições de mudar,
brasileiros.

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porque já estava no meio do ano e eu já tinha três vezes. Nesse restante de ano, eu saí da escola e para corrigir um deficit histórico, uma dívida
comecei a trabalhar, aos 17 anos, na Emoreira Perfumaria. No ano seguinte, eu descobri que queria histórica. Eu acho que é muito importante e
fazer Magistério, aí entrei para a Fundação de Ensino de Contagem, a Funec. Quando eu estava necessário. É uma tentativa de resgate social
no terceiro ano do Magistério, briguei com o diretor da escola por conta de questões políticas, daquilo que ficou, que produziu a subcidadania
faltando dois meses para formar. Saí de novo da escola e fiquei algum tempo fora, mas continuei no Brasil, principalmente a de pretos. Porque a
trabalhando. Fui da Emoreia para o Extra. Depois, para uma empresa de envasamento plástico – e gente tem, também, políticas afirmativas para
lá eu conheci o racismo. Então, casei e resolvi retomar novamente o magistério. Só que quando eu homossexuais, para mulheres, para deficientes.
retomei o curso, tinha passado a duração para quatro anos, então tive que fazer o terceiro ano todo
Quando formei, fui destaque acadêmico
de novo e o quarto.
e ganhei uma pós-graduação em Psicanálise e
Eu tinha um ano de casada, quando conheci outra pessoa e resolvi me separar para viver com Saúde Mental, na minha área mesmo. Formei-
ela. Falei para o meu pai: “Pai, vou separar”. E lendo jornal ele estava, lendo jornal ele continuou. me em setembro, e em janeiro eu comecei a
Eu fiquei na dúvida se tinha ouvido ou não. Falei novamente: “Pai, você escutou o que eu falei?”. Ele trabalhar no Cras3. Em maio de 2008, passei
abaixou o jornal e disse: “Eu sabia, porque você não foi feita para casar”. E voltou a ler o jornal dele no concurso para trabalho no estado e fiz
de novo. Embora o relacionamento dos meus pais tenha sido um relacionamento extremamente outra Especialização na PUC, que o estado
tradicional – é, ainda, pois eles têm 55 anos de casados –, acho que pelo fato do meu pai trabalhar pagou. Em 2013, fiz pós-graduação em Direitos
fora, de ter viajado muito, dele ter convivido com muitas pessoas, acho que ele via em mim um Humanos, Criminologia e Segurança Pública,
ideal de realização de mulher, como as mulheres fortes que ele conhecia; como, por exemplo, a que terminou em 2015. De 2016 em diante,
Magda, filha do antigo chefe dele. eu fui fazendo matérias isoladas de mestrado
no Cefet4 e na Fundação João Pinheiro. Eu fiz
Em 2001, passei no vestibular para Psicologia no Centro Universitário Newton Paiva e foi
duas na Fundação e uma no Cefet. E em julho
uma novela, não tinha nem dinheiro para fazer matrícula. Se alguém me perguntar hoje como
do ano passado (2019), eu passei no Mestrado
eu paguei os cinco anos de curso, não sei explicar. Por um bom tempo, durante a faculdade, eu
da Universidade Estadual de Minas Gerais, em
fui representante de turma. Então, eu marcava semana de provas “dia sim” e “dia não”. Aí, no
Segurança Pública e Cidadania; mas, por conta
“dia não”, eu dava aula para os meus colegas da matéria da prova do dia seguinte. Eu lembro que
da pandemia, paralisou e retomou agora no
eu cobrava dez, quinze reais por aluno. Tinha dia que tinha dezoito, vinte alunos para dar aula
final de julho de 2020.
particular. Então, eu lembro que, em uma semana, eu conseguia dinheiro para pagar a matrícula e
uma mensalidade. Depois, eu ia enrolando e fazendo uma confusão para pagar. E de tanto dar aula
Em 2006, Magda e seus pais, fotografados na cerimônia de
para os meus colegas, eu estudava muito, fazia trabalho, revisão de textos, colocava trabalhos nas sua colação grau no curso de Psicologia.
normas da ABNT, um monte de coisa. Crédito: Acervo Pessoal

Na época em que eu entrei na faculdade, não existiam as cotas, só tinha o Fies2. Mas eu não
consegui o Fies. Com relação às políticas afirmativas, elas são importantíssimas! Acho que o Brasil
tem uma dívida histórica com a população negra. Não é por acaso que a gente tem – eu trabalho
no sistema prisional – 85% da população carcerária preta, pobre e analfabeta. Grande parte
3 Centro de Referência de Assistência Social (Cras) é uma unidade pública da política de assistência social, de base
dos moradores das periferias, também. Toda política afirmativa, não só a política de cotas, vem local, integrante do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Os Cras estão localizados em áreas com altos índices
de vulnerabilidades e risco social.
2 Política do governo federal brasileiro de concessão de financiamento a estudantes de cursos superiores. 4 Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

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Magda Neves Vilaça e sua primeira vivência de racismo no trabalho Era Seds (Defesa Social), e não Sedese (Desenvolvimento Social)
Eu tinha uma amiga de infância que trabalhava em uma empresa de envasamento de Um dia, uma amiga me ligou e falou assim: “Magda, você está me devendo 60 reais”. Eu
plástico e ela falava muito bem dessa empresa, que tinha ótimas condições de trabalho. Ela foi falei: “De quê?”. Ela: “Eu fiz sua inscrição no concurso”. “Concurso de quê?”. “Ah, não sei não. Para
promovida e me indicou para ocupar o lugar dela. Quando fui fazer a entrevista, o pessoal do RH mexer com uns meninos infratores”. Como eu já trabalhava no Cras e, na época da faculdade, tinha
me achou muito competente do ponto de vista da comunicação, da agilidade, do conhecimento. trabalhado no PAI PJ7; já tinha feito estágio durante três anos no Hospital Psiquiátrico Galba Veloso;
Mas os donos da empresa eram descendentes de alemães e era uma empresa familiar. Não tinha no Instituto Raul Soares, de saúde mental; no Cersam8 Oeste e na antiga Febem9, estava acostumada
nenhum representante da empresa quando eu fui contratada, eles estavam fazendo uma viagem com essa área social e não me importei muito. Quando ela falou “Seds”10, eu entendi “Sedese11”. Eu
pela Europa. Quando voltaram, foi muito nítido o incômodo do dono em me ver como secretária não estava muito inspirada para fazer o concurso, porque sempre tive uma relação de amor e ódio
na recepção. com o serviço público. Até então, só tinha trabalhado por contrato e tinha muitos atravessamentos
políticos. E aí fui, fiz a prova e só fui saber onde ia trabalhar no dia da posse. No dia, cheguei lá e
Nem ele nem a esposa dele esconderam isso hora nenhuma. Chegou um momento que aquilo
descobri que não era Secretaria de Estado e Desenvolvimento Social. Era a Secretaria de Estado de
ficou tão insuportável para eles, que em questão de meses eu fui promovida. O objetivo era me tirar
Defesa Social – e que eu ia trabalhar nas penitenciárias.
da frente da empresa, da recepção, receber as pessoas. Aí me mandaram para o departamento
financeiro. Mas aquilo trouxe um incômodo tão grande, que ficou um clima muito estranho. Nem Eu fiz esse concurso de treze vagas, passei em terceiro lugar e eu queria muito trabalhar
dois meses depois, demitiram-me. próximo à minha casa, mas não foi possível. Porque quem ficou em segundo lugar escolheu a única
penitenciária que tinha em Contagem, que era a Nelson Hungria. Então, eu tomei posse no presídio
3. Trajetória no Serviço Público Inspetor José Martinho Drummond, em Ribeirão das Neves. Trabalhei lá de novembro de 2008 até
novembro de 2011, quando terminou meu estágio probatório. Depois de ter sofrido um episódio
Magda Neves: Professora.
severo de assédio moral, fui transferida para a unidade prisonal Nelson Hungria.
No ano 2000, eu comecei a trabalhar na prefeitura como professora. Até hoje, eu tenho uma
Eu sofri muito quando eu entrei para a segurança pública, porque é um ambiente
relação de amor e ódio com o serviço público.
extremamente machista, hostil e aversivo. E eu, muito questionadora, muito ativista de direitos
Eu dei aula por cerca de 15 anos. Ensinei em todos os níveis de ensino, do ensino infantil humanos. A segurança pública, ainda hoje, não é lugar para mulheres, muito menos para mulheres
ao pós-médio, que são os cursos técnicos. Eu comecei quando estava fazendo Magistério, dando que questionam. Por causa da defesa das condições humanas e da defesa dos ideais feministas, fui
aulas na educação infantil. Depois de formada, fui trabalhar na prefeitura, por contrato, no ensino assediada. Eu não consegui, nos primeiros anos, me adaptar à realidade do sistema carcerário. A
fundamental e na educação de jovens adultos - EJA. Depois que eu passei para a Psicologia, fui primeira coisa que fiz quando eu entrei para o sistema carcerário foi adoecer. Eu não conseguia
aprovada em processo seletivo da Funec. Então, eu costumo dizer que fui cria da Funec. Trabalhei sair para trabalhar em um lugar onde acontecia uma série de violações dos direitos humanos. Eu
com muitos daqueles que foram meus professores, dando aula para o ensino médio de Filosofia me sentia impotente e não tinha condições nem de questionar o que acontecia. Isso gerou muitos
e Sociologia e para os cursos técnicos de Informática, Enfermagem, Patologia, Química, Química conflitos, meu estágio probatório foi muito traumático.
Industrial e Segurança do Trabalho. Nos cursos técnicos que a instituição oferecia, eu dava aula
de Relações Interpessoais e de Psicologia. Dei aula no Pronatec5, e também no pós-médio de
Mineralogia da Cecon6. Mesmo depois que eu passei no concurso do estado para a segurança 7  Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator, do Tribunal de
pública, eu continuei dando aula na Funec à noite. Justiça.
8 Centro de Referência em Saúde Mental, equipamento da rede pública municipal.

5 Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego criado pelo governo federal em 2011. 9 Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, extinta no final dos anos 1990.

6 Centro Educacional Conceição Ferreira, estabelecimento de ensino superior e técnico privado, de Belo Horizon- 10 Secretaria Estadual de Defesa Social, voltada para a pasta da segurança pública.
te.a Nunes 11 Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social.

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Eu fui transferida para a Penitenciária Nelson Hungria, por um acordo. Não havia mais novembro, a unidade sofreu uma nova intervenção e o Diretor Geral foi retirado. Chegou outro e aí
condições de continuar lá no outro presídio, diante de tantos conflitos que eu gerei com os meus eu me deparei novamente com questões relacionadas ao racismo e ao machismo.
questionamentos. Então, vim pra Nelson Hungria em 2011, para trabalhar com um gestor que
Esse Diretor que chegou me fez um convite para continuar como diretora, mas recusei, porque
eu já conhecia, o Danúnzio, que em 2009 tinha sido um diretor interventor lá na José Martinho
não o conhecia e eu acredito que a gente só deve trabalhar com quem conhece, independente
Drummond. A gente criou uma simpatia um pelo outro, ele gostava do meu trabalho. Eu também
de ideologias, até para se proteger. A partir dessa recusa, ele passou a me perseguir, assediar
tinha uma admiração por ele, pela forma como ele conduzia o trato com os presos. Ele não abria
moralmente. Tive episódios, por exemplo, de ele entrar na minha sala com dois homens do GIR13,
mão da disciplina, de determinadas práticas, mas a gente conseguia conviver um respeitando o
que é o grupo de intervenção rápida, armados. Fazia piadinhas, dizia que eu era uma preta do
outro e ele entendia o meu trabalho.
nariz empinado, do cabelo curtinho e do nariz empinado. Nos bastidores, me chamava de Michael
Pouco tempo depois, houve uma troca na Diretoria de Ressocialização, que era a diretoria à Jackson. Fez de tudo para me transferir da unidade. Na época, o Secretário Adjunto, que sabia de
qual eu me reportava diretamente. Uma assistente social passou a ser minha diretora, a Judsônia, toda a situação, se recusava a fazer a minha transferência. Eu também não queria sair de lá. Eu
que eu também já conhecia, ela também mora aqui em Contagem. Ela trabalhava comigo em trabalhava a 15 quilômetros da minha casa. Quando esse Secretário Adjunto saiu do cargo, ele
Ribeirão das Neves, íamos juntas. E ela conhecia meu modo de pensar, minha forma de trabalhar, conseguiu me transferir; me mandou de volta para a José Martinho Drummond. Tive que travar
então não tive grandes problemas na Nelson Hungria, como eu tive na Drummond – e eu também uma luta no Estado; eu entrei com um processo de assédio moral na Controladoria Geral do Estado
já estava mais adaptada ao Estado. e consegui voltar. Ele me transferiu em julho, em outubro foi a audiência e eu consegui voltar no
final de novembro.
Na Nelson Hungria, eu tinha um campo maior de atuação. Comecei a fazer um trabalho
com os servidores, para além do meu trabalho com o preso: atendimentos emergenciais com os Foi um período muito difícil, inclusive o período em que eu estava na gestão. É muito difícil
servidores em situação de sofrimento, de surtos e atendimentos emergenciais. Começou a correr para os agentes penitenciários lidarem com uma mulher como chefe. Foi muito desgastante, eu
o “boca-a-boca”. Socorre um aqui, apaga outro incêndio ali. Um dia, você chega e tem um servidor aprendi muito sobre gestão e segurança pública, mas também vi que é muito difícil, para a mulher,
com uma arma apontada na cabeça tentando suicídio. Outro dia, um servidor com uma faca na ocupar um lugar de gestão em um ambiente predominantemente masculino. Eu tinha toda uma
mão dizendo que vai tirar espírito dos presos do PCC12 dentro do pavilhão. Então, começaram a preparação com o que era exigido para o cargo: a formação, as pós graduações necessárias, as
acontecer uma série de eventos de sofrimento mental emergente, alguns casos de suicídio, outros outras disciplinas que eu tinha feito no mestrado voltadas para gestão. E a experiência também;
de alcoolismo, eu fui intervindo, direcionando para a área da Saúde do Servidor. Informalmente, em 2016, eu já tinha oito anos de serviço público na área da segurança pública. E já conhecia a
eu acabei virando uma referência em atendimento ao servidor dentro da unidade. É um complexo unidade, o fluxo do trabalho, os presos, participava ativamente. Então, a gestão em si, os processos
penitenciário, uma unidade muito grande; na época, deveria ter uns 650 servidores. administrativos, eles não configuraram um desafio. Desafio mesmo foi lidar com as questões de
gênero inerentes ao ambiente da segurança pública. Fui substituída na Direção, à época, por um
Em 2016, a Judsônia, que era Diretora de Ressocialização, saiu da unidade e o diretor me
agente penitenciário sem formação alguma. Mas ele era um homem.
convidou para entrar no lugar dela. Mas é uma coisa muito interessante, porque esse convite
veio muito permeado por uma falta de opção. Eles reconheciam a minha capacidade, mas tinham O que a Magda calou? O que foi preciso silenciar?
problema com a minha autoafirmação, com os meus questionamentos e com a forma de me
Eu aprendi a me calar. Agora, agora que eu aprendi. Acho que é a maturidade, também, tanto
posicionar diante das questões arbitrárias da segurança, das atitudes. Então, durante um período,
no serviço quanto a da idade. Ela vai trazendo para a gente uma consciência mais estratégica na
de abril a novembro de 2016, eu fiquei como Diretora Interina – houve algumas questões políticas
forma de lidar com as questões e a gestão da coisa pública. No início, era um ímpeto muito grande,
e eles não me nomearam. Eu fiz todo o papel da diretoria, lidando com as parcerias de trabalho,
acho que próprio até da juventude, essa coisa de querer fazer acontecer, de ser para ontem. Hoje,
organizando fluxo de trabalho da unidade, fazendo todas as questões pertinentes à função; mas
eu me sinto mais voltada para as questões acadêmicas, de casar a academia com a prática; e muito
havia questões políticas, dentro da Secretaria de Defesa Social, que impediam essa nomeação. Em

12 Primeiro Comando da Capital, organização ilegal atuante no Brasil e também no exterior. 13 Grupo de intervenção de risco.

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mais estratégica, de fazer uma leitura estratégica da realidade antes de agir, comparando com toda a diferença na gestão e na construção de políticas para essas pessoas. Quando você conhece
aquilo que eu vejo na academia, nas pesquisas, nas leituras que eu faço. e sabe de onde essas pessoas vêm, você consegue dialogar com as famílias e com os presos. Eles
veem uma confiança e uma reciprocidade, não sentem que quem está ali é apenas uma figura de
Eu aprendi muito a observar. E a fazer a leitura da realidade institucional. Muitas coisas
autoridade, mas alguém que não está distante deles.
aconteceram no Estado e na instituição; a Nelson Hungria, toda hora, está no noticiário, e
infelizmente de uma forma negativa. E durante o período de 2017 para cá, a gente já passou por A mulher, seja negra ou não, dentro da segurança pública, toma um choque, principalmente
seis gestores. O interessante é que depois que eu saí desse cargo, ele nunca mais foi ocupado por quando entra em uma unidade prisional pela primeira vez. A impressão que eu tenho é que as
uma mulher – não só esse, como todos os outros cargos dentro da instituição. E nunca mais foi pessoas (os homens) olham para a gente como se a gente fosse um bife. Eles não olham para a gente
ocupado por pessoas com uma vivência acadêmica ou uma formação sólida. Fui aprendendo que pela habilidade, pela competência, pelo trabalho. É uma mulher, é “comível”. É muito machismo.
existem questões na administração pública que são tão eminentemente políticas, que se abre mão Eu acho isso muito sofrível. Com relação à mulher negra, é ainda pior. É uma luta diária, desde a
do conhecimento técnico, muitas vezes, por aspectos políticos. Como venho acompanhando esse hora em que a gente abre o portão para sair de casa até a hora que volta. Uma mulher preta, que
histórico desde 2011, consigo perceber uma relação direta entre a precariedade do trabalho e o trabalha, estuda, dirige o próprio carro, que vai a todos os lugares, que não tem filho – eu tenho
nível das trocas de gestões que vieram acontecendo ao longo dos anos. uma série de coisas fora do padrão que incomoda as pessoas. Mas eu passo mais tempo no meu
local de trabalho do que em casa. Agora isso já está mais tranquilo, mas não é fácil. Sobre gênero,
Meritocracia? E o peso do gênero e da cor da pele?
sou uma mulher livre. Assumo uma sexualidade diversa, que também incomoda as pessoas. É
Quando eu trabalhei na Educação e na Saúde, eu via uma certa meritocracia. É um conceito muita quebra de padrão para estar dentro da segurança pública. E, se você olhar essas questões,
polêmico. Não sei nem se eu concordo com esse conceito, porque acho que não tem meritocracia de fato é insuportável para um ambiente extremamente machista e corporativista sustentar uma
na nossa sociedade. Vamos a um exemplo: por mais que uma mulher e uma mulher negra se mulher assim em um cargo de gestão.
esforcem, por mais competência e formação que tenham, para a negra sempre haverá o peso da
Os ônus e os bônus desta mulher negra em um cargo de gestão
cor da pele. Então, como a gente vai falar de meritocracia, sendo que os fatores que pesam não
têm nada a ver com mérito, competência, habilidade ou formação acadêmica? Hoje, sou Diretora O bônus é o trabalho que a gente consegue desenvolver. Na minha área, o que me importa,
Sindical do Sindpúblicos14, representando os analistas, auxiliares e assistentes administrativos. E, no serviço público, como o próprio nome já diz, é estar ali para servir o nosso público, que é o
em conversa com outros diretores, acompanhando outras carreiras, percebo que, talvez, em outras preso e, consequentemente, a sociedade. Então, o bônus é conseguir dialogar e promover políticas
secretarias, a gente vê alguma coisa mais próxima disso, mas ainda assim um pouco precária. de reinserção social, porque o que a sociedade espera da instituição penitenciária é o retorno
desse indivíduo à sociedade em condições de não reincidir. Então, a gente está ali com um
Eu não vejo meritocracia dentro do sistema prisional. Até 2014, final da gestão do PSDB, a
papel socializador. Quanto mais diálogo com esse público, mais fácil e melhores são as políticas
gente ainda via um critério mais técnico para a ascensão de novos cargos. Depois, as coisas foram
desenvolvidas para eles.
se perdendo dentro da administração, até que chegou no ponto em que está hoje. Estou dizendo da
realidade da Secretaria de Segurança Pública. O gestor é um servidor público como qualquer outro. A única diferença é que a gente está
em uma posição de organizar o fluxo do trabalho. Mas eu sou tão servidora como qualquer outro
Eu sou psicóloga, sou técnica, analista dentro do sistema. Observo que lá dentro temos um
colega meu, seja gestor ou não. As pessoas estranharam muito que, durante todo o período que
número muito grande de agentes femininas com uma formação muito sólida, com competência e
eu fiquei na gestão, eu ia trabalhar em carro próprio, não ia trabalhar com o carro do Estado. Eu
habilidade muito grande para cargos de gestão e coordenação. Elas também não têm chances. Há
passava por todo o procedimento de revista como qualquer servidor. O fato de estar em cargo de
uma série de coisas que não são valorizadas nesse sentido. Acho que alguém que tenha um preparo
gestão não altera o caráter da pessoa. Se você organiza no fluxo de serviço as formas de revista,
acadêmico, que tem uma vivência; que leve em consideração o perfil da população carcerária, que
então nada mais justo do que você se submeter a ela.
é preta, pobre e analfabeta; que saiba de onde essas pessoas vieram e porque elas estão ali; isso faz

14 Sindicato que representa os servidores públicos estaduais de Minas Gerais.

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Capítulo 13 - Magda Andrade Neves Vilaça NEVES, Magda A.; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

E o ônus, no caso da segurança pública, é toda essa gama de adversidades que a gente tem socialmente não foi feito para nós. São questões complicadas para a mulher e para a mulher negra.
que lidar por ser mulher e negra. Em um ambiente não só masculinizado e corporativista, mas E como eu trabalho na segurança pública, eu acho que vêm em dose dupla.
hostil. Um ambiente aversivo como esse é um ambiente adoecedor. O ônus dessa posição vem das
Magda em movimento(s)
próprias características do ambiente, assediador por natureza. E, para o Estado, a única diferença
entre o servidor do sistema e o preso é que o servidor tem MASP15 e o preso tem INFOPEN16. Somos Por conta do meu envolvimento com os servidores, fui convidada por essa gestão atual
apenas número e recebemos o mesmo tratamento desrespeitoso. do Sindicato dos Servidores Públicos de Minas Gerais, o Sindpúblicos. Nós representamos os
servidores administrativos do sistema prisional. Damos apoio aos servidores, participamos das
4. Identidade de gênero e raça? Magda, mulher preta e livre. audiências públicas, fazemos articulação junto aos deputados, vamos em busca das políticas. Já
teve um tempo em que foi mais fácil. Agora, está mais difícil por conta de toda a conjuntura, não só
Como falei antes, quando era criança, não tive muita vivência do racismo, porque eu estava
do estado de Minas Gerais, mas de todo o país, de um enfraquecimento dos sindicatos.
no meio dos meus iguais. Fui ter essa experiência, quando eu fui trabalhar nessa empresa.
Eu participo de alguns grupos. Tem o de uma professora da UFMG, que mantém um grupo
Eu sempre me considerei uma mulher negra, mas tive alguns problemas dentro do
multidisciplinar sobre prisões. Tem um grupo de mulheres em Betim, sobre o feminismo negro.
movimento. Antes eu já percebia, mas quando eu comecei a participar das coisas, me inteirar dos
Tem, também, o grupo Autopoesis, em que a gente discute diversos temas sobre o sagrado feminino,
assuntos, comecei a perceber algumas coisas que abalaram um pouco a minha identidade. Foi
desde questões de segurança alimentar, até outras questões existenciais com relação às mulheres.
quando as pessoas começaram, de uma certa forma, a falar do meu cabelo e do meu nariz. Eu não
Todos esses grupos são voltados para discussões acerca da condição da negritude da mulher,
tinha prestado atenção nisso! Me causou uma certa estranheza, porque quando eu era pequena,
do jovem, da adolescente negra nos espaços de periferia. Em alguns grupos, são participações
as pessoas brincavam muito com essa coisa do meu nariz arrebitado. E depois que eu fui ficando
pontuais. Em outros, eu me envolvo mais.
mais velha, diversas pessoas começaram a me perguntar, e até hoje perguntam (só que hoje eu
sei responder); as pessoas me perguntam se eu fiz rinoplastia, plástica no nariz. Não sabia nem o Tem o grupo sobre prisões, que é abolicionista. Quando eu entrei nesse, eles tiveram uma
que era isso, não entendia muito bem. Parece que a sociedade tem um estereótipo do negro que é resistência muito grande comigo, diziam: “Como pode uma pessoa que trabalha dentro do sistema
muito específico. prisional fazer parte de um grupo abolicionista?”. Aí, eu os lembrava que a luta antimanicomial
começou com quem trabalhava dentro dos manicômios. Foi difícil pra me aceitarem lá. Tudo é uma
O cabelo não me trouxe nenhum problema de identidade, porque as pessoas sempre achavam
luta. Você tem que ir devagarzinho, posicionando-se, explicando.
que eu passava alguma coisa para relaxar ou alisar, não implicavam muito. As pessoas achavam
que eu alisava o cabelo para negar alguma coisa relacionada à minha raça, mas, na verdade, esse 5. Mulheres negras, problemas e desafios: conhecimento x
cabelo é da minha avó. E eu comecei a reparar em uma série de coisas: que na minha formatura,
sobrevivência
em uma faculdade particular, só tinha eu e mais uma mulher negra. Fui observando esses espaços.
Na posse do cargo, também eram pouquíssimas; no mestrado, menos ainda, menos mulheres – O maior desafio das mulheres negras é a falta de oportunidade. E é de oportunidade geral,
nós somos quinze mestrandos, quatro mulheres e só eu, mulher negra. Quando surge o assunto sabe? A mulher negra tem uma força muito grande, porque a gente luta desde pequena. É falta de
e eu falo que eu sou negra, as pessoas dizem: “Mas você não é tão preta”. Não existe “tão preta” acesso a uma educação de qualidade, acesso ao conhecimento. Eu acredito que o conhecimento
ou “menos preta”! É uma questão de etnia, eu sou uma mulher negra. Não existe uma disputa de transforma, mas é muito difícil você ter que lutar pela sobrevivência. Chega um momento em que
tom de pele. Negro é negro, não importa. Existe um lugar renegado para a gente, socialmente. E essa menina tem que escolher entre o conhecimento, o estudo e a sobrevivência. Às vezes, nem
existe um custo também para sair desse lugar, para quem se atreve a entrar em um ambiente que tem muito a consciência das escolhas que está fazendo, porque tem as questões de sobrevivência,
ela tem que trabalhar. Muitas têm filho cedo, porque acontecem casos, por exemplo, de meninas
de 14, 15 anos irem ao posto de saúde pedir anticoncepcional e o médico falar que não tem idade
15 Número de matrícula do servidor público estadual. pra isso.
16 Número que identifica o indivíduo em situação de aprisionamento.

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Capítulo 13 - Magda Andrade Neves Vilaça NEVES, Magda A.; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

Então, o que falta é oportunidade para desenvolvimento social; mas começando por Então, existe uma diferença. O racismo existe em todas as classes sociais. A gente pode falar
potencializar essas famílias com políticas afirmativas e com a continuidade dessas políticas. Assim de um “embranquecimento social” quando ocorre ascensão; mas isso, muitas vezes, é ilusório. As
haveria capacidade de realmente resgatar essa dívida histórica que o Brasil tem com mais de 50% pessoas acham que negros que têm dinheiro não são discriminados. São sim! E não é discriminado
da população. A gente carece de mulheres e de mulheres negras no judiciário, no legislativo, no só naquele meio, não. A pessoa é discriminada socialmente mesmo. Um homem negro em um
executivo. Ou seja, mulheres e mulheres negras com representatividade, em lugares em que a carro de luxo, por exemplo, é muito mais facilmente confundido com o motorista do que com o
gente possa realmente fazer política tendo sentido na pele o que é a falta dessa política. Porque proprietário do carro. Então, não é uma questão só financeira, é a questão do racismo. A questão
não vai haver enquanto tiver homens brancos falando pela gente; não existe nenhuma capacidade do feminismo precisa englobar as questões do racismo, de classe e existe uma diferenciação, sim.
de empatia que supere uma vivência. Porque a realidade da mulher negra é muito diferente da realidade da mulher branca. Desde o
estereótipo físico até as oportunidades de trabalho, o acesso à escola, o acesso à educação. Por
Eu sou jurada também, atuo no Tribunal do Júri desde 2012. Eu vejo nitidamente a diferença
mais feminista que a mulher branca seja, ela não vai entender o que é ser uma mulher negra sem
entre o comportamento dos defensores públicos e do corpo de jurados, diante de um réu negro e
estudo da periferia. O machismo e o patriarcalismo incidem de forma diferente na mulher branca
de um réu branco. Ou diante de uma ré e de um réu. E de uma ré negra. Isso é muito nítido. Então,
e na mulher preta. A loura é “gostosa e burra”, a negra é “gostosa e guerreira”. Mas guerreira não
eu acho que a gente tem que ocupar os nossos espaços. Tenho consciência de que não é fácil; e que
é propriamente um elogio. Por trás, significa que essa mulher, muitas vezes tem que dar conta de
há toda uma estrutura social voltada para que isso não aconteça. Mas se a gente não ocupar os
trabalhar, sustentar os filhos sozinha, cuidar dos pais, dos netos, viver a vida difícil…
nossos lugares, vai estar sempre em condição de submissão e sem lugar de fala. Porque as pessoas
falam pela gente. Eu conheço muitas pessoas de classe alta, brancas de diversas classes, que tem Mensagem de Magda Neves Vilaça: a gente tem que raspar o resto das
uma empatia muito grande, uma simpatia, um engajamento, inclusive no movimento, mas nem forças
toda essa capacidade de empatia vai substituir as questões sensoriais do dia a dia.
Eu falo muito, mas ao mesmo tempo
Magda e os feminismos: Elas estão ali porque foi o que sobrou do não sou muito boa para falar. Eu sou boa para
feminismo. responder. Acho que eu queria muito que as
mulheres tivessem mais força ainda, sabe?
Às vezes, as pessoas questionam muito essa coisa do feminismo negro: “Não é tudo feminismo?
Eu sei que é difícil falar isso no momento
Não está todo mundo no mesmo barco? A gente vive em uma sociedade que é patriarcal”. Mas não. As
em que a gente está vivendo, mas a gente
lutas feministas têm pontos comuns, mas também têm pontos divergentes. Então, quando a gente
precisa, principalmente agora, não desistir.
fala de feminismo, é sobre o lugar que a mulher ocupa no mercado de trabalho, nas academias e de
Eu sei que é muito frustrante assistir todo o
uma meritocracia que não existe, teoricamente. Quando a gente diz do feminismo negro, a gente
desmantelamento das políticas públicas e o
está falando o seguinte: que quando as mulheres conseguem ascensão nas academias – e nós já
retrocesso social e cultural que a gente está
conseguimos muito, já que já somos a maioria nas faculdades – a gente vê as poucas mulheres que
vivendo. Mas é neste momento que a gente tem
estão nos cargos de gestão; e as poucas que estão gerindo são mulheres brancas, enquanto há uma
que raspar o resto das forças que a gente tem nas
mulher negra que está limpando a casa dela. E isso não tem nada a ver com a questão do tipo do
entranhas e reagir. Porque eu não estou vendo
trabalho. Eu acho que a empregada doméstica, as faxineiras, os serviços gerais, as portarias – todos
um prognóstico favorável. Se a gente esmorecer,
são trabalhos altamente dignos e necessários. Mas essas mulheres não estão ali por opção, foi
vai ser pior ainda. Mais do que nunca, a gente vai
porque foi o que sobrou do feminismo. Enquanto essa mulher branca vai trabalhar em um banco,
precisar unir forças e conscientizar o máximo
tem uma mulher negra que deixa o filho dela na creche, ou com a avó, ou com os irmãos, ou na rua,
de mulheres possível. De angariar, também, os
para cuidar do filho da mulher branca que está trabalhando em postos um pouco melhores, como Magda atuando como diretora sindical, em 2019, em uma
homens, para entender a nossa luta. Não acho
na academia, ou no serviço público. audiência pública, representando as demandas do sistema
prisional.
Crédito: Clarissa Barçante/Almg
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Capítulo 13 - Magda Andrade Neves Vilaça

que a gente tem que fazer isso sozinhas. E quando eu falo de homens para a nossa luta, temos que Cleide Hilda de Lima Souza
angariar eles dentro do ventre. Porque a gente educa. Maria Clara Mendes
Matheus Arcelo Fernandes Silva
A vida é cheia de dificuldades, todo dia é um problema para resolver. A gente nasceu lutando
pela sobrevivência. E a gente vai ter que lutar para deixar um mundo melhor para os nossos filhos.
E também deixar filhos melhores para o mundo. Então, não vai ter jeito, a gente não vai descansar
nunca. Não podemos esquecer que não bastam marcos legais para garantir nossos direitos. A
gente tem que ser vigilante e fazer eles valerem todos os dias, porque basta a gente piscar, basta
vir uma crise, basta acontecer qualquer coisa, para que a gente perca, em um instante, coisas que

CLEIDE HILDA
demoramos décadas para conseguir.

DE LIMA SOUZA
1. Origem familiar
Meu nome é Cleide Hilda. Atualmente tenho cinco irmãos, mas já
fomos seis. Meus pais nasceram no município de Conceição do Mato Dentro,
região do Serro; mais especificamente no município de Dom Joaquim. Eles
vieram para Belo Horizonte, logo após o casamento. Eu nasci no bairro
Santa Efigênia, em Belo Horizonte. Fui criada na região Leste; quando eu
tinha três anos, meus pais compraram um terreno no bairro Casa Branca,
atualmente bairro São Geraldo.

Quando pequena, carreguei muita lata d’água na cabeça. Eu tinha como


função encher o filtro de casa antes de ir à escola. Às vezes, o sinal batia e
eu ainda estava subindo o morro com a latinha cheia de água na cabeça.
Lavei muita roupa na lagoa, não só da minha família, mas também “para
fora”, a fim de contribuir com as despesas da casa. Comecei a trabalhar na
infância. Eu me lembro que o meu primeiro emprego foi na casa da comadre
da minha mãe; eu tinha a mesma idade dos filhos dela e estudávamos na
mesma escola. A minha função era “cuidar” desses meninos, mas acho

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que fazíamos era mais bagunça, imagina uma criança cuidando de outras crianças! Havia duas negritude, a ancestralidade e o meu cabelo sarará. Foi nesse período, que eu fundei o Coletivo de
biquinhas onde apanhávamos água, e eu adorava tomar banho nela. Sempre fui muito responsável, Mulheres Negras que depois virou o Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte.
desde a adolescência.
A partir da inserção no coletivo e em diálogo com outras mulheres negras, começamos a
Mesmo tendo trabalhado bastante durante a infância, brinquei muito nos arredores do bairro. perceber que era necessário, de forma concomitante à militância, a formação acadêmica. Pois
Aqui havia muito mato, flores, água; já nadei com uma jararaca atravessando o rio. No bairro, havia havia um hiato entre as mulheres “pensantes”, que elaboravam propostas, e a gente, que só “fazia
uma pedreira, quase já fomos picados de cobra, pois elas costumavam ficar nas pedras. Tive uma militância”. Desse modo, começamos a nos fortalecer para que pudéssemos também ocupar o
infância linda do ponto de vista do lazer. Brincávamos de esconde-esconde, pega-pega, ciranda, espaço da universidade.
rouba-bandeira, finca, soltar pipa, andávamos de carrinho de rolimã. Havia aquela brincadeira da
O Nzinga chegou a pagar um mês de cursinho pré-vestibular para mim, depois eu consegui
maçã, em que tínhamos que acertar a boca do “namorado” e eu gostava de fazer piruetas em meio
arrumar um emprego e continuei pagando, e assim passei no vestibular. Os anos da graduação me
às flores amarelas. Eram muitas aventuras.
deram um pouco de trabalho, o professor falava assim: “Você detona tudo!” Eu respondia que não,
Meu pai trabalhava na construção civil, mas devido a uma queda no ambiente de trabalho, mas de fato eu já tinha uma leitura, um embasamento teórico e um discurso político. Eu não estava
adoeceu aos 36 anos; logo, teve que ser afastado. Minha mãe era lavadeira, tenho a nítida lembrança nem aí para eles; na verdade, eu só queria formar.
dela com a trouxa de roupa em cima da cabeça para entregar aos clientes. De vez em quando, eu
Na formatura, fui oradora da turma, estava linda com uma roupa afro. Foi um caos, porque
ia com ela. Passamos por “uma magrela lascada”, eram muitas as dificuldades financeiras. Todos
acabei discursando algo que eles nem imaginavam. Falei o seguinte: “Eu estou saindo daqui e não
os filhos começaram a trabalhar bem jovens, e foi a partir do trabalho que conseguimos sair um
estou devendo nada para vocês. Vocês que devem ao meu povo, porque se teve uma instituição
pouco daquela miséria em que vivíamos.
que assinou o tráfico negreiro e a escravização dos negros foi a igreja católica. Eu aprendi todas
Minha mãe prezava muito pela educação dos filhos. Esse incentivo se deu devido à falta de as ‘histórias’ do mundo, sobretudo da Europa e da Ásia, mas da história da África não foi ensinada
oportunidade que ela teve de estudar. A única escola de primeiro ciclo que havia no interior ficava uma linha. Portanto, vocês que continuam me devendo”. Fui a primeira mulher na família a ter um
dentro da fazenda, e as mulheres eram proibidas de estudar. Mesmo assim, ela conseguiu estudar curso superior, isso foi uma glória para os meus parentes. Meu pai fazia questão de falar dentro do
até o segundo ano primário. ônibus: “Minha filha está formada”!

Nós estudamos até o ensino fundamental em escola pública, depois fomos para a escola Eu não fiz mestrado, apenas uma especialização em políticas públicas. Não foi por falta de
particular, pois não conseguimos vaga na pública. Mas foi a partir daí que se deu o início de oportunidade nem de competência, apenas não tive tempo, devido ao excesso de trabalho e de
uma consciência mais política e crítica em relação à sociedade. No período do regime militar, os participação nos movimentos e na militância. Não tive tempo nem de ter outros filhos, tive apenas
professores de Português e de História, ministravam as aulas com as portas fechadas, pois o diretor uma menina. Toda vez que eu pensava em engravidar, envolvia-me em mais tarefas, movimentos e
da escola era militar. lutas. Não dava para estar para lá e cá barriguda, coordenando eleição. Cheguei a passar na primeira
etapa do mestrado da Unicamp1. Após uma viagem de nove horas, tinha que escrever 85 laudas.
2. Escolarização Até consegui escrever além do número estipulado; mas, infelizmente, não deu tempo para fazer os
cortes e ajustes necessários. Faltam dois anos para eu me aposentar, aí pretendo fazer o mestrado.
Minha mãe sempre nos incentivou bastante a estudar. Como resposta, eu e meus irmãos
Espero estar mais tranquila, saudável e com a cabeça funcionando, para eu poder garantir a minha
conseguimos ter uma profissão. Tenho um irmão, administrador de empresa; o outro formado em
qualidade de vida e de leitura, porque, como dizem, “apressado come cru”.
Ciências Contábeis; algumas irmãs formadas na área do Magistério e eu me formei em História pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mas eu digo que a trajetória no movimento negro Na educação, tirando a minha mãe, que sempre jogou a gente para cima, as mulheres negras
foi a escola da minha vida, foi onde eu me reconheci como uma mulher negra, assumi a minha foram a grande influência da minha vida. Foi a formação da minha identidade como mulher negra.

1 Universidade Estadual de Campinas.

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E logo já comecei a enxergar o mundo um pouco diferente. Tiveram outras pessoas influentes na que era isso. Mas eu sempre fui uma jovem muito “pra frente”, comunicativa, até ganhei um troféu
minha vida sobre a questão racial, como Marcos Cardoso, Gilberto Leal de Salvador, Sueli Carneiro, “PT Simpatia”.
Edna Roland, como também outras referências do movimento negro.
O processo de inserção na militância também teve influência no meu processo de construção
3. O início da militância e religiosidade em relação à religiosidade. Meus pais eram católicos. Depois de algum tempo eu fiquei sabendo
que muitas pessoas da minha família já frequentavam a umbanda. Meus tios, irmãos de minha
Ao final dos anos 1970, a partir do trabalho e influência da minha mãe, começo a participar mãe, tinham terreiro de umbanda; mas era tudo muito escondido, devido ao medo da perseguição.
dos movimentos populares, da associação de bairro e da comunidade eclesial de base. Tivemos Quando fiz meu rompimento com a igreja católica, primeiro passei rapidamente pela religião
formação com Frei Beto, Leonardo Boff, conheci essas referências de perto, inclusive o Adolfo espírita kardecista. Posteriormente, fui beber na fonte do candomblé, por influência e pela
Pérez Esquivel, ativista de direitos humanos e ganhador do Nobel da Paz. Em 1980, ele veio até formação que o movimento negro me deu, do grupo de mulheres negras Nzinga e de tantas outras
a minha comunidade, eu li uma mensagem e entreguei um presente para ele. Tem até uma foto mulheres aqui de Belo Horizonte, de Minas Gerais e do Brasil.
minha nessa época, eu magrela.
Éramos um grupo muito forte, tínhamos uma leitura diferente daquela apresentada pelo
Sempre fui meio saidinha, gostava de falar, de atuar no teatro. Jogava futebol de campo no feminismo branco, que não olhava a gente com bons olhos. Discutíamos as especificidades e
bairro, disputávamos campeonato com o time do Alto Vera Cruz, já tivemos que sair correndo pautas relacionadas às mulheres negras. Logo, rompemos com o feminismo branco e passamos
debaixo de pedradas, porque as meninas não queriam entregar a taça. a organizar o feminismo negro. Queríamos falar da vida da gente, que saíamos às cinco horas da
manhã para trabalhar; que várias de nós éramos domésticas. Eu não cheguei a ser doméstica, mas
Minha mãe chegou a participar do jornal
eu trabalhei em casas de família muito jovem. A nossa vida era diferente, trabalhávamos entre 10
de bairro em Contagem, dos movimentos das
e 12 horas por dia, assumíamos uma tripla jornada de trabalho, não tínhamos a mesma formação
comunidades eclesiais e da criação da associação
política nem intelectual. Desse modo, o feminismo branco não conseguia contemplar muitas das
de bairro. A região do São Geraldo sempre foi rica
nossas pautas; além de todas essas questões, também éramos vítimas de racismo. Então, quando
em termos de participação popular. Vieram muitas
você faz esse recorte – a mulher negra –, tem um hiato que a separa à mulher branca, em relação à
pessoas e lideranças de fora para a comunidade;
leitura do mundo e as experiências de vida.
até o Presidente Lula esteve aqui para inaugurar
o nosso primeiro núcleo do PT. Participei também A origem da mulher negra é matriarcal, somos filhas, netas de grandes matriarcas! A grande
do movimento estudantil e da União Brasileira de maioria das mulheres negras são donas de casa, criam seus filhos sozinhas, são elas que cuidam e
Estudantes Secundaristas – UBES; nas décadas que fazem a família avançar. Foi assim na minha casa, a minha mãe que jogou a gente para frente
de 1970, 1980, lutamos pelo passe livre e pela e isso ocorre na grande maioria de famílias negras. Em muitos lugares que eu vou, pergunto às
carteirinha de estudante. A educação popular na pessoas se elas sabem por que o mundo é redondo, e digo: “É o formato de uma barriga, o mundo
perspectiva de Paulo Freire também foi e continua é fêmea”.
sendo até hoje uma base e referencial de luta.
O nosso olhar de mulher não é horizontal, você olha para frente e para todo o entorno. Você
Aos 17, 18 anos entrei para o Partido dos cuida de você, da sua mãe, do seu filho, da vizinha. Enfim, temos essa formação, de olhar o mundo
Trabalhadores – PT e na segunda gestão do como uma grande fêmea. O primeiro esqueleto humano encontrado foi de uma mulher na África.
Cleide Hilda e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 2006. partido eu já era Secretária de Organização. Então, não há nada que prove o contrário, mas isso é difícil para muita gente romper.
Crédito: Acervo Pessoal Confesso que no início eu nem sabia direito o
Eu nasci carregando água da mina, minha mãe falava assim: “Cleide, vai pegar água para
o café”. E eu saía com o baldinho, esperava a mina encher para tirar a água. Enquanto isso, eu

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cantava, sem saber que estava louvando para o meu Orixá. A minha mãe criou a gente muito livre; muito, porque eu tinha uma agenda sempre muito cheia. No último período da faculdade, eu estava
mas, ao mesmo tempo, ela sempre colocou a gente debaixo das asas dela para nos proteger. quase para ganhar a Luana; minha irmã largou a escola para ajudar a cuidar da minha filha, porque
ela sabia – por causa da minha agenda – que eu não daria conta.
Eu tive muitas oportunidades que muitos jovens da minha época não tiveram. Os movimentos
sociais me deram a oportunidade de rodar boa parte do mundo e do Brasil. Hoje eu poderia ser Casei, engravidei, tive minha filha Luana, ela tem uma pele clara. Eu morava na Serra, bairro
hoje uma mulher cheia de veias arrebentadas nas pernas, com sete meninos e ter casado com um burguês branco abaixo da favela da Serra, morei ao lado do Minas Tênis II. Era difícil uma negra
cara machista, ignorante que poderia até me bater; mas a minha formação não me permitiu isso. morar em um lugar preparado só para brancos. Ao sair com minha filha para passear e tomar sol,
algumas vezes fui abordada; perguntavam se eu era a babá dela. Eu tinha que ser a babá para os
A minha juventude pode ter sido o momento da minha vida em que fui mais radical. Eu sei
moradores burgueses da Serra. Imagina, uma negra morar na parte burguesa da Serra! Por essas
que eu era o capeta, não dava mole para ninguém; mesmo sendo da esquerda, eu chutava o pau
e outras situações, acabei saindo daquele lugar que me oprimia, que me tratava com racismo. Meu
da barraca. Não é que hoje eu não seja mais aquela pessoa, mas você vai amadurecendo e tendo
marido, que era músico e foi criado neste meio, até então não percebia que havia racismo. Foi
outras narrativas, outras formas de responder; a organização social vai te empoderando. Por
aprendendo comigo, com meus amigos. Voltei à minha origem, quando retornei para meu bairro,
exemplo, você não vai para uma reunião com o pires na mão, como a gente já foi muitas vezes.
onde cheguei aos três anos de idade e estou até hoje.
Eu sou da geração que conseguiu as cotas e o Estatuto da Igualdade Racial. Eu discuti o Estatuto
da Criança e do Adolescente. Participei de tudo quanto é Conferência que se possa imaginar, de Quando Luana nasceu, trabalhei na
educação à cultura. E essa área da cultura sempre me interessou muito e vai marcar também a Câmara Municipal, fui Assessora Parlamentar.
minha trajetória profissional. Nessa época, minha vida era muito turbulenta
e eu criei minha filha muito solta, muito livre
Neste sentido, tenho paixão pela História da Arte, como uma possibilidade de ressignificação
e independente. Ela já foi para a Venezuela, já
humana. Toda essa parte cultural sempre me atraiu muito e foi por ela que eu entrei em tudo isso,
sentou na mesa com o Nicolás Maduro, já foi
de fazer teatro na rua, na igreja, na associação comunitária. A cultura tem uma capacidade de
para o Paraguai e o Uruguai. Quando a observo,
transformar as pessoas e ressignificar pontos da identidade perdida ou nunca reconhecida, você
percebo que ela é muito mais empoderada do
retoma para aquele lugar em que nunca esteve, mas que faz parte da sua ancestralidade. Você
que eu, porque o máximo que cheguei foi ser
ressignifica tudo aquilo e se transforma.
Subsecretaria de Igualdade Racial, no governo
4. Relações pessoais e maternidade do estado, e Secretária de Combate ao Racismo
no PT. Ela não, a Luana foi para a chapa disputar
Meu ex-marido é músico e eu gostava de ouvi-lo tocar. Eu o conheci em um desfile afro de que a Prefeitura de Belo Horizonte – mas fizeram
eu estava participando como dançarina. Achei-o lindo, me apaixonei e, quando gosto, vou atrás, uma negociação e aí Nilmário ficou como
não espero. Quando nos conhecemos, eu estava fazendo vestibular, lembro que ele foi me buscar candidato e ela, vice dele, em uma articulação
na porta do cursinho. A partir daí, construímos um relacionamento e nos casamos. Aliás, eu casei política. Eu fico muito tranquila, porque minha
com ele. Falo isso, porque acho que fui independente demais e esqueci que a outra parte também filha está super-bem.
tinha que se comprometer. Eu assumi todas as funções de grande matriarca da casa.
Também preciso falar que tive muitos
Depois resolvi que não queria mais ficar casada, acho que porque fiquei muito tempo com amores platônicos; embora casada, amava
ele. Podia ter casado com outros. Inclusive, minha mãe sempre falava que não tinha me criado para cada um ao meu jeito. Sempre fui apaixonada
Cleide Hilda e a filha Luana, candidata a vice-prefeita na
casar. Tivemos uma filha, Luana, e acho que só a tive, porque não daria conta de ter mais filhos. pela vida; sem amores, a gente não vive. O chapa Nilmário Miranda. Belo Horizonte, 2020.
Acho que eu fui meio egoísta por pensar muito em mim e na militância. Minhas irmãs me ajudaram amor alegra, traz vários cheiros que ficam na Crédito: Acervo Pessoal

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memória. Sempre fui muito sonhadora, por isso foram amores platônicos. Enfim, a vida é também reparatórias. Muitos tratados foram assinados na convenção, em seguida era colocar em prática
para quem “ama e dá vexame”. algumas daquelas reivindicações. Toda essa movimentação também influenciou o Presidente Lula,
que logo após acabou ganhando as eleições.
5. Trajetória profissional
Eu vi muita coisa boa nesses meus quase 40 anos de militância. A gente fez o I Encontro
Eu sempre trabalhei a minha vida inteira, seja em loja de roupa, vendendo frango morto, Nacional de Entidades Negras, em 1991, e criamos a Coordenação Nacional de Entidades Negras –
frango vivo, fiz de tudo. Me lembro que, antes de formar, fui ser Assessora Parlamentar na Câmara Conen. Foi nesse momento que a gente começou a fazer uma outra leitura acerca da importância do
Municipal de Belo Horizonte. Trabalhei quatro anos, no início, como Chefe de Gabinete de um Estado na implementação de medidas reparatórias e na criação de cotas raciais, que antes éramos
vereador. Mas, ao final do mandato dele, eu estava grávida e finalizando o curso de História. Houve contrários. Eram necessárias mudanças estruturais, que deveriam ser refletidas nos próximos 70
uma incompatibilidade de relacionamento devido à temática racial, o que me fez pedir as contas. - 100 anos e, de fato, tem sido feito, há resultados positivos. Eu sou dessa geração do movimento
Após muita reflexão, percebi que havia muito discurso e pouca prática. negro, que viu muita coisa sendo concretizada, mas também muitos retrocessos.

Ele era uma pessoa muito bacana, no trato das questões dos movimentos sociais, tinha um Voltando para esse momento em que passei pelas escolas, dei aula de História e pude
histórico de luta contra a ditadura. Mas, infelizmente, quando você toca na questão raça, você desenvolver projetos maravilhosos. Hoje, encontro alunos que falam que fui importante na vida
amedronta os brancos, é um recorte do poder. Você é ótima enquanto não é vista como ameaça. deles: “Você tirava a gente da sala, punha nos corredores para contar história”. Eu levei muita gente
Acabamos rompendo o nosso relacionamento por muito tempo, depois voltamos à amizade. bacana para contar história, para fazer oficina de grafite – a escola ficou toda grafitada, grafitaram
até a sala dos professores.
Após essa experiência como assessora, fui dar aula. Meu bebê estava novinho, minha irmã
largou um pouco da vida dela para cuidar da Luana para mim. E eu fui procurar escola, comecei a Eu me lembro de uma aluna minha, que de tanto a mãe alisar o cabelo dela, o couro cabeludo
trabalhar como professora na Escola Estadual Júlia Lopes de Almeida e na Escola Estadual Amélia chegava a ferir. Na quadrilha da escola, ninguém queria dançar com ela. Esse episódio me fez
de Castro Monteiro. Depois, trabalhei na Escola Estadual Walt Disney, escola em que eu havia lembrar um pouco de mim, porque foi assim que aconteceu comigo. Além dos meninos não
estudado no primeiro ciclo. Contudo, não consegui trabalhar muito tempo nessa escola, porque dançarem comigo, eu tinha uma trança muito grande e a professora falava que minha cabeça não
eu havia ganhado uma bolsa na Fundação Ford para participar de uma conferência em Durban, na tinha formato para colocar chapéu. Então, eu nunca fui escolhida para dançar quadrilha. Ficava
África do Sul. morrendo de vontade e não entendia que já era vítima de racismo. Entre as meninas negras, poucas
conseguiam ser escolhidas.
Era a III Conferência Internacional contra Discriminações Raciais, Xenofobia e intolerâncias
Correlatas da ONU, e eu não ia perder essa oportunidade. Estavam reunidos representantes de todo Quando eu vi que a aluna também não tinha ninguém para dançar, eu estudei as questões do
o movimento negro do Brasil e do mundo. Lembro que estávamos dentro do avião e a comissária racismo, da beleza da mulher negra e tudo que vocês puderem imaginar, levei gente de fora. Mas
pediu para gente passar para frente, se não nós íamos jogar o avião no chão – porque todo mundo foi os alunos continuaram sendo muito cruéis com ela. Acabei me aproximando bastante dela e falei:
para trás para fazer samba. Nessa conferência, conseguimos fazer uma grande marcha denunciando “Vamos dançar, eu vou ser o homem e você vai ser a mulher”. No outro dia, me vesti de homem, foi a
o racismo no Brasil, a intolerância religiosa e todas as outras formas de discriminação. Éramos “sensação” da escola, porque os meninos adoraram, riam demais da conta e ela toda mulherzinha,
mais ou menos uns 500 delegados do Brasil, muita gente. Foi um movimento muito emocionante e toda bonitinha de chapéu. Nós fizemos o maior sucesso dançando assim: fui com um pijama verde
do qual saíram documentos fundamentais para o avanço das pautas raciais. do meu pai e ela dançou, feliz da vida.

A gente pressionou o então Presidente, Fernando Henrique Cardoso, lá da África. Fizemos Um dia eu estava descendo a rua de ônibus e quem eu vejo? Essa aluna, com um coque igual
uma enorme marcha às escondidas, a polícia toda na rua. A marcha saiu em vários jornais. ao que eu usava. Eu sofria muito com o racismo que os alunos traziam de casa. Eu chorei quase
Imediatamente o FHC sinalizou a criação de um conselho e um grupo de trabalho. Mas sabíamos o caminho todo. Foi uma alegria muito grande ver a transformação pela qual ela passou, ver ela
que não era somente isso que ia resolver a questão, era necessária a formulação de políticas conseguindo expressar sua identidade racial.

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Capítulo 14 - Cleide Hilda de Lima Souza SOUZA, Cleide H. L.; MENDES, Maria C.; SILVA, Matheus A. F.

Eu sempre fui muito preocupada com essas questões, porque a grande maioria dos alunos racismo estrutural e institucional. Em todos os lugares que eu passei, vivi e fui vítima do racismo
das escolas de periferias são jovens negros e é um lugar em que há muita dor. Por meio das aulas institucional.
é possível combater o racismo; você consegue formar cidadãos conscientes, mas é um processo
Teve um dia que eu pirei na Secretaria de Cultura. Fui fazer um curso sobre projetos e
longo. E você percebe que a sociedade é muito cruel. Eu tive vários exemplos de alunos que se
comunidades quilombolas em Brasília e sumi por sete dias. Quando voltei, fui chamada à atenção,
suicidaram por causa de tráfico; havia momentos em que eu chegava para dar aula e estava tudo
porque eu não tinha avisado. Argumentei que tinha direito a alguns dias e precisava daquele
fechado, porque fulano estava amarrado no lençol, estava devendo o tráfico. Também tinham
tempo. Acabei desabafando sobre as oportunidades que me foram negadas, reforçando a minha
alunos que eram traficantes e queriam que eu aceitasse dinheiro para fazer as festas. Eu falava
história de vida.
que se ele quisesse participar da festa, a única contribuição era a caixinha de chocolate. E mesmo
para quem não tinha condições, eu comprava; mesmo com salário de professor, eu comprava os Meu desligamento na Secretaria Municipal de Cultura ocorreu em 2005. Fiz rompimentos
chocolates de metade da sala. políticos como Assessora Parlamentar, na Escola e na Secretaria de Cultura. Depois desse
rompimento, fui trabalhar no Governo Federal, como Assessora Especializada em Igualdade Racial,
Nas minhas aulas, havia oficinas práticas de como tirar o chulé dos pés. Para as meninas, eu
o que abriu meu currículo para muitas oportunidades e experiências. Como exemplo, na gestão de
ensinava a usar absorvente. Então, eu não era só uma professora de História. Mesmo com pouco
Barack Obama, eu fui para os Estados Unidos em nome do governo Lula, discutir a questão da
tempo, essa experiência me trouxe uma forma de ver o mundo um pouco diferente. Eu fui formada
igualdade racial do Brasil. Foi um intercâmbio político muito interessante. Falamos sobre saúde da
assim e percebo a importância da educação popular. Acho que extrapolei o lugar de professora
população negra, porque a saúde pública nós temos no Brasil, e os Estados Unidos não tem.
de História e virei contadora de História da Vida para aquelas crianças. Foi um período lindo na
minha vida. Depois, eu comecei a fazer uma pós-graduação em Administração na Fundação Getúlio Vargas
(FGV) voltada para os direitos humanos, devido a um projeto que o Coletivo de Empreendedores
Como militante e gestora, também fui presidente da Fundação Centro de Referência da
e Empresários Negros tocavam junto com a FGV. Nesse momento, eu estava em uma disputa
Cultura Negra - FCRCN, entidade na qual aprendi a escrever projetos. A Fundação possuía, além de
partidária para assumir a Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT. Ganhei as eleições
seu corpo diretor, parceiros e pessoas que iam para ajudar, acabavam ficando e se incorporando
por seis votos de diferença, sem máquina nenhuma me ajudando. A outra chapa tinha toda a
em algum dos projetos; projetos esses todos voltados para combater o racismo, com quilombos do
máquina partidária, mas eu tinha a base, o povo, o movimento negro e as pessoas de periferia. E,
Médio do Jequitinhonha, com juventude, crianças, cultura negra entre tantos.
que felicidade, tremi, foi a primeira vez que eu coloquei de fato meu nome para uma disputa dentro
A trajetória na gestão do partido e ganhamos, foi maravilhoso.

Nessa época em que eu estava na escola, também trabalhava na Secretaria de Cultura da Ao assumir essa função no PT, também fui atuar como Assessora Parlamentar do Nilmário
Prefeitura de Belo Horizonte e dava aula à noite na Escola Estadual Walt Disney. Em 2000, trabalhei Miranda. Coloquei uma condição: “eu vou, só que minha pauta é a pauta racial”. Ele topou. E quando
ajudando a criar os centros culturais de Belo Horizonte, foi muito bacana. Coordenei vários projetos o partido venceu as eleições e assumiu o governo do estado de Minas Gerais, por unanimidade, fui
lindos, como o Circuito Negro, Interação Sociocultural e o Festival de Arte Negra – FAN. E, nesse indicada para assumir a pasta da Igualdade Racial. Fui a única Subsecretária do governo do estado,
processo, fui aprendendo a escrever projetos. principalmente da pasta dos direitos humanos, para a qual não teve disputa; houve um consenso
em relação ao meu nome.
Tive muitos problemas dentro da Secretaria por causa do racismo institucional. Todas as
vezes em que eu achava que ia melhorar, que ia ganhar um cargo melhor, eles colocavam uma Foi uma gestão de quatro anos, mas sem recurso nenhum. O único recurso que teve foi
pessoa branca. Em muitos momentos, eu tinha tudo que eles queriam, era formada em História, destinado à III Conferência Estadual de Igualdade Racial. Foi um sucesso, a gente envolveu quase
tinha experiência em educação, trabalhava com periferia e juventude, mas sempre tinha uma o estado inteiro, com mais de mil delegados, foi a maior conferência da Secretaria de Estado de
mulher branca que entrava no meu lugar, sem experiência nenhuma. É o que eu chamo de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac). Os resultados foram extremamente
positivos, com mais presença da militância do que de figuras políticas. Além da Conferência, a gente

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Capítulo 14 - Cleide Hilda de Lima Souza SOUZA, Cleide H. L.; MENDES, Maria C.; SILVA, Matheus A. F.

fez muita coisa, mas sem recurso e apoio. Porque, além de ter que tocar a política, era necessário Ao sair do governo do estado, trabalhei em duas consultorias. A primeira, em um projeto
também escrever projetos. Às vezes, era exaustivo dar conta de tantas agendas. chamado “Reconexões Periferia”, da Fundação Perseu Abramo3. Depois dessa experiência, trabalhei
em outro projeto com o Geraldinho, na Cabana4. Em seguida, fui trabalhar na Associação Estadual
Mas sofri discriminação até do setor de transporte do governo do estado. Nunca tinha carro
de Defesa Ambiental – Aedas, onde estou hoje, trabalhando com as famílias atingidas pelo crime
para mim, o motorista sempre me levava por último. Houve um caso em que perdi uma agenda
da Vale. Esse é o lugar que eu ocupo no momento, é um projeto maravilhoso, extraordinário e
com a Organização das Nações Unidas (ONU) por causa da administração de carros. Para eles, a
percebemos o quanto o capital é perverso.
nossa pasta da Igualdade Racial não era importante. Eu brigava dentro do carro, ligava, reclamava.
Nesse dia, eu voltei chorando no carro, porque eu tinha perdido uma super-agenda. Não por causa 6. Se eu sou, é porque antes de mim vários foram: a
do motorista e sim, da gestão do transporte.
construção da identidade individual e coletiva
Na Sedpac, eu e toda a minha equipe sofremos com racismo. Eu briguei muito, sofri assédio
moral, mas pensava assim: “Tenho que tocar, tenho que conseguir ir até o fim”. Nossos projetos Sempre digo que tive dois abortos na minha vida. O primeiro foi romper com o modelo
ficavam na gaveta, em cima da mesa do setor jurídico, não eram encaminhados. Coisas simples, do tradicional segundo o qual a mulher negra tem que se comportar e ser de um determinado padrão:
tipo, “Dia do Chico Rei”, que foi uma lei que veio da Assembleia, eu não consegui deixar aprovada, cabelo alisado, roupa lisinha – eu quebrei isso logo. O segundo, foi romper com a igreja católica,
porque não era prioridade. Além disso, várias propostas de lei que poderiam contribuir para não com as pessoas, mas com os dogmas e com o cristianismo. Passei a ser bastante crítica à igreja
garantia de direitos da população negra ficaram na gaveta. O único investimento financeiro foi católica, tendo em vista a sua conivência em relação à escravidão.
uma emenda que a gente conseguiu no PPAG, de 200 mil reais; foram destinados cento e poucos Esses rompimentos não foram fáceis. Romper com a estética branca é difícil, mas quando
ao Cenarab2 e quase cem para outra instituição. O resto foi todo feito sem orçamento e, quando você ocupa esse lugar já é uma grande diferença, porque você ocupa com mais força. Claro que,
havia algum financiamento, eu não conseguia fazer tramitar de forma que o dinheiro viesse para às vezes, eu entro no ônibus e, dependendo do jeito que eu estou vestida, ainda há olhares. Mas,
a Secretaria. se antes não tinha, agora eu tenho sempre no meu pensamento uma resposta para dar. Não tenho
Era um processo de racismo institucional que eu e a minha equipe vivenciamos na prática. medo de ir em lugar nenhum. Se eu sou convidada para ir ao palácio conversar com o governador,
Em coisas mínimas, esbarrávamos em limitações. Elaboramos um plano que ficou na mesa, vou conversar no mesmo nível, tête-à tête, sem estremecer as pernas. Hoje, não tenho nenhum
porque só tinha um advogado. Quase perdemos, juridicamente, a criação da Comissão de Povos problema de frequentar qualquer ambiente, porque tenho muito mais respostas para dar do que
e Comunidades Tradicionais e criação do Plano de Igualdade Racial para Povos e Comunidades perguntas que me possam fazer.
Tradicionais. Se não fosse o setor jurídico da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário Existem muitos estudos e diagnósticos sobre a relação entre gênero e raça. Quando
(Seda), tínhamos morrido na praia. imaginamos o lugar das mulheres negras, elas estão situadas no último escalão. Quando você pensa
Outro episódio foi a comemoração do 20 de novembro no Palácio do Governo, quando foi em uma pirâmide social, econômica, mercado de trabalho, educação, mesmo tendo conhecimento,
entregue um documento para a criação da Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais. Eu era capacidade, formação, ela ainda vai estar em quarto lugar. Em primeiro, o homem branco; em
provavelmente a única Subsecretária de Igualdade Racial naquele momento, e não tive o direito segundo, a mulher branca; em terceiro, o homem negro e, em quarto, a mulher negra. Isso significa
a ir ao palco, não me convidaram. Eu não entendi, ninguém entendeu e quando me perguntaram, que a gente lida ao mesmo tempo com o racismo e o machismo. Qualquer mudança nessa estrutura
respondi: “A gente continua sendo invisível aos olhos do poder e eles nunca vão achar que nós de relações vai gerar outras mudanças. Ou seja, se você não combater essas duas coisas, não
temos a capacidade e a competência de ocupar qualquer lugar, por mais brilhante que você seja”. promove transformação, não só para a mulher negra como também para as mulheres brancas, que
sofrem do mesmo machismo.

3 Criada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), para desenvolver atividades políticas e culturais
2 Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro Brasileira. 4 Associação de Moradores do bairro Cabana do Pai Tomás, regional oeste de Belo Horizonte

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Capítulo 14 - Cleide Hilda de Lima Souza SOUZA, Cleide H. L.; MENDES, Maria C.; SILVA, Matheus A. F.

Há estudos que apontam que mesmo a mulher branca tendo o mesmo conhecimento e religiosidade te ressignificam; descobri que não ando sozinha, não estou só. Eu acho que eu plagiei
formação que o homem branco, ela não ocupa esse lugar; nós, mulheres negras, muito menos. O a música da Bethânia, “eu não ando só”.
machismo é perverso para ambos os gêneros, não só para a mulher, mas para as pessoas trans,
para a comunidade LGBTQIA+. Enfim, o machismo é uma perversidade muito grande e que mata. 7. Legados
E as mulheres negras morrem mais; há dados que apontam que são as mulheres negras que estão
Eu acho que a gente acaba sendo exemplo para um monte de gente. Não só para a família,
morrendo mais de feminicídio. A violência doméstica é muito mais presente nas famílias negras,
mas também para várias coletividades. Não só eu, como vários da minha geração, nós abrimos
em função inclusive da situação econômica. Muitas dessas mortes ocorrem devido ao racismo
caminho para muitas coisas. Conseguimos as cotas; aprovamos, mesmo que “manco”, o Estatuto de
e ao machismo, por todo esse preconceito e discriminação que você julga sem conhecer, então
Igualdade Racial e criamos a Subsecretaria de Igualdade Racial. E há ainda um monte de desafio
é preferível você matar. Claro que o homem não quer uma mulher preta e empoderada; ela vai
pela frente.
disputar com ele. Eles não dão conta de imaginar que, talvez, uma mulher seja muito mais capaz
que ele em determinada situação. Este lugar que ocupo é muito bom, o de ter muitas respostas. Mas é também cansativo. Às
vezes, você não está bem; há momentos em que você está meio adoecida e frágil, principalmente
E nesse sentido, também entra a questão da autoestima. Nem todo dia a gente levanta com a
devido a conjuntura política e social do país. Ou pela condição de desemprego, como a que vivi.
autoestima boa. Você pode vestir a melhor roupa, o melhor sapato, estar com o cabelo mais lindo
Mesmo diante dessas adversidades, tenho que estar sempre pronta para falar. Então, esse lugar da
possível; mas se você não estiver emocionalmente bem, isso não importa tanto. E também tem
liderança é muito cansativo e solitário, você volta para casa com muitas angústias.
outra cobrança que é muito cruel, a de estar sempre bem. Eu já tive muitas ocasiões em que estive
mal; mas precisava estar bem. Tinha que levantar, tomar meu banho, calçar meu salto, passar A gestão pública em alguns momentos é um lugar de muita solidão, pela perversidade do
meu batom, pôr o meu cabelo black. A gente não tem muito tempo para baixa estima. Mulher racismo, como já disse. Por vezes, você é “muito do movimento” para estar em um lugar que é
preta, mesmo sendo linda, não arruma namorado. Existem muitas discussões nesse sentido, sobre “de governo”; por outras, você é “muito do governo” para um lugar que é muito “do movimento”.
a solidão da mulher negra. Ela perpassa todas essas dimensões que apontei, do racismo e do É uma dupla representação, que traz sofrimento. O movimento não entende que o planejado não
machismo. aconteceu não porque você não quis; mas porque outras pessoas não quiseram! Eu gostaria de
ter deixado o governo com muitos Conselhos de Igualdade Racial, com um plano aprovado de
Quando comecei a vivenciar todas essas discussões, comecei uma Cleide pequenininha, o
Igualdade Racial, entre outras coisas.
que é natural em um processo de crescimento de qualquer ser humano. A questão da identidade
racial e de gênero me fortaleceram, me fizeram uma mulher forte. Sou uma caixa de marimbondo, Me lembro quando fui em um evento com quase 3 mil pessoas para falar sobre beleza negra.
não tenho medo de nada. Tornei-me essa mulher em função da luta, em função dos espaços que No dia seguinte, ia ter uma manifestação contra o assassinato da juventude negra. Nesse dia, houve
coletivamente eu conquistei – nunca é um espaço individual, a luta só é possível se a construção somente 30 pessoas na praça, foi uma angústia. Para quem está na linha de frente, isso é sofrimento,
é coletiva. Eu não tive nenhum mérito individual, do tipo “porque sou fodona”. Não, foi todo um a gente pensa: “Nós estamos errando onde? O que a gente tem que fazer para acertar? ”
processo construído coletivamente a minha vida toda. Tenho pessoas para as quais eu tiro o
No início dos anos 1980, a gente era contra as cotas, porque havia o receio de formar uma
chapéu, por terem passado na minha vida, e algumas permanecem.
elite negra inconsequente e irresponsável com o seu povo e origem. Hoje, tenho medo de estarmos
E neste sentido, minha mãe é a grande inspiradora, porque foi ela quem me levou para esse formando uma elite branca e também uma elite negra, universitária, que não tem nenhum
lugar no qual estou, assim como vários dos meus irmãos. Além disso, bebi na fonte de Frei Beto e reconhecimento pela luta histórica. Sempre falo isso nas reuniões dos movimentos negros.
de Paulo Freire, da educação popular. Então se sou, é porque, antes de mim, vários foram. E como Temos que conseguir refazer essa conversa, que é uma conquista em termos de política pública.
eu sou mulher do orixá, eu sou uma semente desse processo que deu certo. Se não fosse a força Nós perdemos muitos negros e negras por doença, por questões emocionais, depressão, pelo
ancestral, também, eu não existiria. Já tive muitos motivos para não existir. A ancestralidade e a isolamento que o racismo provoca, para conquistar essa luta.

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15
Capítulo 14 - Cleide Hilda de Lima Souza

Acho que eu quero ser lembrada pelas Diva Moreira


coisas boas que eu fiz, mas também pelas coisas Maria José Nogueira
que eu não consegui fazer. Pela minha luta e Jessyka Martins
história, pelos meus compromissos e exigência.
Sempre fui muito exigente comigo e com quem
estava ao meu lado trabalhando. Não sei se é
qualidade ou se é defeito, mas eu sou assim,
acho que pela mulher negra que eu consegui e
tive oportunidade de ser.

DIVA
Agradeço pela vida, pelos desafios e pela
coragem. Porque você pode morrer sem ter tido
coragem de fazer nada, não ter vivido. Até para

MOREIRA
lavar uma roupa, tem que ter coragem porque a
roupa tem que ficar bem lavada e estendida para
olhar e poder falar: “Olha, está tudo limpinho”.

No meu tempo de infância, havia terreiro


de terra para varrer. Quando mamãe estava
para chegar do trabalho, eu queria que ela
1. Família, infância e ancestralidade: para me
chegasse e encontrasse o terreiro limpinho, o
café preparado, porque era uma forma que eu
entender, vocês têm que entender a minha mãe.
tinha de agradá-la. Ela gostava de tomar um
Nasci em Bocaiuva, norte de Minas, em 1946. Filha de empregada
café, de pitar um cigarro escondido, eu sabia
doméstica que trabalhava em uma pensão e tinha sido trabalhadora rural.
que ela ia gostar do que eu fiz. É esse lugar de
Não posso contar a minha história de vida sem falar da minha mãe. Se
querer construir agradando, e também sendo
estamos tratando de ancestralidade, e isso deve ser relevante para pessoas
agradada – porque quando ela achava bom, era
brancas, para nós, negros, é mais decisivo ainda, porque tem muitas pessoas,
tudo.
como eu, filhas de pais que não assumiram seus filhos. A figura materna, a
Cleide Hilda de Lima Souza, década de 1980. Acho que é esse legado que eu deixo. proteção, a influência e o exemplo materno foram decisivos para mim. Para
Crédito: Acervo Pessoal Viver com coragem é uma coisa muito difícil me entender, você tem que entender a minha mãe.
para os negros e negras, sobreviver todos os
Fomos para Belo Horizonte, em 1950. Qual trabalho uma mulher negra
dias. Então, se a gente conhece a nossa história
e analfabeta tinha naquele período? Era só trabalho braçal, doméstico,
e a compreende, a nossa identidade e o nosso
prestação de serviços para uma família branca. Era sempre assim: os
legado ficam para eternidade.
patrões brancos, as patroas brancas e as empregadas negras. Fui para uma
casa, no bairro da Serra, que ficava dentro da avenida do Contorno. Eu gosto
de falar um pouco de geografia, porque a de Belo Horizonte é extremamente

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Capítulo 15 - Diva Moreira MOREIRA, Diva; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

marcada pela exclusão da população negra. Eu morava abaixo da avenida do Contorno, porque “Colocando a Diva no Divã”: o racismo provoca dores impensáveis
trabalhava para uma família branca. E morar nessa localidade serviu para o acesso à escola. Era
Eu tive dificuldades com minha mãe, porque o racismo provoca dores impensáveis. Por
uma família que não tinha o menor interesse em ver a filha da empregada doméstica estudando:
exemplo: eu morava em uma casa onde as pessoas eram racistas, tratavam-me com diferença.
“Uma pessoa negra, basta fazer o primário”. Então, quando terminei o primário, comecei a trabalhar
Aí eu passei a hostilizar a minha mãe, olha que louco! A gente era hostilizado por todo o grupo.
como babá. Gente negra tendo feito o curso primário está de ótimo tamanho. Se ainda hoje existe
Eu interiorizei minha inferioridade, que ser preto não era legal, e eu comecei a hostilizá-la. Era
essa mentalidade, imagina naquele período? Foi muito difícil, estudando na clandestinidade, no
o cruzamento de várias discriminações, não era apenas a racial, a social também. Ser filha de
escuro, não podia gastar com energia. Era um lugar perigoso, inclusive por causa de assédio sexual.
empregada, até hoje, não é fácil; imagina naquele período? Eu me lembro que eu ia varrer as
Foi um dos períodos mais difíceis da minha vida. Eu era triste. Sabe aquela história: “Ai, meu Deus,
folhas e fazia o mais rápido possível para acabar e poder entrar em casa. Ser filha de empregada
eu podia morrer mais cedo, seria tão bom ficar livre disso tudo”. Porque a gente, claro, não tinha
doméstica era algo marcado pelo estigma da inferioridade, do fracasso, da pobreza. Então, eu
consciência da luta. Não tinha consciência das saídas políticas dos problemas.
passei a hostilizá-la. Só dei conta de superar isso quando tinha 15 anos. Foi um dos momentos mais
Quanto aos meus avós, tenho uma lembrança mais positiva do meu avô do que da minha inesquecíveis e marcantes da minha vida, vou morrer sem esquecer. Eu estava na busca de uma
avó. A pobreza, às vezes, deixa a gente meio cansada, meio áspera, coitadinha da minha avó. Ela transcendência. Quando a gente não vê saída coletiva, quando não têm uma teoria revolucionária
era muito impaciente. Tinha muita gente em casa e tinha eu, que ia para lá nas férias, para evitar para explicar aquilo, fica em busca de uma transcendência no campo da espiritualidade.
confusão na casa da família em Belo Horizonte. Minha avó não era exemplo de uma pessoa paciente.
Não muito longe da casa em que eu morava, tinha um grupo da Logosofia. Eu fui em uma
Ela era de descendência indígena. E o meu avô era de origem africana. Ele era considerado uma
sessão e tive um feeling: “Isso aqui não é o meu lugar, isso não tem a ver comigo, não é um espaço
pessoa que dominava saberes ocultos, mágicos. Por exemplo, ele dava conta de dominar bichos
para preto”. Eu saí, estava de noite e caindo uma neblina, eu sem sombrinha, sem nada, me deu
peçonhentos. Ele tinha orações que fazia, quando estava chegando um enxame de marimbondos,
um insight: “Imagina que eu estou contra minha mãe! Isso é loucura! Eu não posso mais”. Ela era
e os marimbondos voltavam. Foi uma memória perdida que eu lamento muito. Ele certamente
extraordinária, nunca reclamou. Nunca falou para mim: “Vem cá garota, vem cá piveta. Você está do
conhecia muitas ervas, muitos chás. E essa turma morreu muito nova. A expectativa de vida era
lado errado, que história é essa? Contra mim, que sou sua mãe?”.
muito baixa à época. Mesmo assim, eu me lembro deles muito mais velhos. Meu avô era bem mais
velho que a minha avó, ele faleceu bem antes dela. Do lado paterno, são pessoas brancas, com quem Um divã de analista pode explicar minha hostilidade a ela: “Por que foi me pôr no mundo?
não tive relacionamento. Quando eu era pequena, a minha mãe falava assim: “Vamos lá visitar Por que me trouxe para cá? Por que estou nessa casa de branco e não no meu lugar de origem?”.
seu pai”. Eu chegava, ela mandava eu tomar a bença, eu tomava, era um ritual. Quando eu era um Falar sobre isso está levantando uma questão interessante para mim. De repente, pode ter sido a
pouquinho mais velha, não dei conta mais. Ele prometia que me ajudaria a estudar, mas nunca me identificação nela das fontes de meu sofrimento. Essa entrevista, pode não valer para registro de
deu nem um lápis. vocês, mas está valendo para mim.

Divina Moreira, Diva Moreira: Divina não pegou e acabou sendo Diva 2. Escola, universidade e formação: Eu vivi em um mundo de
O meu nome tem uma história da qual eu gosto. Nasci em junho, que tem festa junina, festa de brancas e de brancos.
São João e, na região do norte de Minas, são comuns as festas do Divino. Aí, o meu nome foi Divina,
no batistério. Era Divina para lá, Divina para cá. Só fui ser registrada mesmo para entrar na escola O nome da minha escola primária era engraçadíssimo, de manhã era “Augusto de Lima”, o
primária. Até então, eu não tinha registro civil, o que não era nenhuma novidade naquele período. curso para a meninada. À noite, era “Adalberto Ferraz”. E era uma escola onde eu fui discriminada
Mesmo hoje, milhões de pessoas não são documentadas no país, imagina naquele período. O que também. Por um triz, não parei de estudar no primário. O público que tinha lá é algo que me
aconteceu? O pessoal falou: “Vamos colocar Diva?”. Porque já tinha muita gente me chamando de intriga até hoje. Aquela escola tinha crianças negras, filhas de empregadas domésticas. Tinha
Diva. Divina não pegou, acabou sendo Diva. a meninada da favela, porque era pertíssimo, a favela do Pendura Saia e do Pau Comeu. Junto
conosco, tinham meninas de classe média alta. Eu me lembro de uma coleguinha que era da família
Nunes Coelho. O pai dela, na ocasião, era deputado estadual. Eu levanto uma hipótese: Lá pertinho

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Capítulo 15 - Diva Moreira MOREIRA, Diva; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

havia dois colégios católicos cuja clientela era branca. Imagino então que se tratava de famílias não com a mão pendurada, e o guri branco, ao lado dela. Mas para ele era um ato vitorioso. Ele sabia,
confessionais, não religiosas. Que preferissem colocar esses filhos e filhas em uma escola pública desde pequeno, que seria vitorioso na vida. Essa roda que não se fechou me marcou muito.
do que em uma confessional.
Cabelo: “Galinha sureca” - vocês acreditam?
Quando entrei para a escola primária, já era letrada, sabia muita coisa. Nesse ponto, o racismo
Você não tem a mais pálida ideia do que seja a questão do cabelo para a negritude [dirigindo-
era algo que estruturava as relações. E não estou falando do meu olhar de hoje, em que tudo é
se à outra entrevistadora, branca]. Você se acha uma mulher livre com esse cabelo agora, não é,
racismo. Eu me lembro de uma vez em que uma irmã das donas da pensão comentou com a outra:
Jessyka? Seu cabelo te deu trabalho, não deu? Deu trabalho para a Jessyka, que nasceu mais de
“Nossa, olha a roupa de grupo dela, toda arrumadinha”. A outra disse: “Pois é, a mãe cuida muito
40 anos depois de mim. Deu trabalho para mim. Passei por aquele esquema de pasta para alisar,
e é negra, hein?”. O acoplamento do pertencimento racial de forma negativa se dá o tempo todo.
aquele negócio horroroso. Um belo dia, cheguei à escola com um cabelo que devia estar meio fora
Você vai olhar uma roupa arrumadinha, que minha mãe tinha acabado de secar no varal, passado
da estética dos cabelos lisos. Aí a professora me premiou com um apelido. Me chamou de “galinha
e posto ali. E você vai associar aquela roupa à negritude?
sureca”. Vocês acreditam? E, como vários colegas começaram a me chamar de “galinha sureca”,
O passo seguinte foi o ginasial. As patroas da minha mãe não queriam que eu fizesse o exame o que aconteceu comigo? Não voltei mais naquela escola. Eu saía para estudar e ia para casa de
de admissão, porque tinha que pagar uma taxa. Elas falavam assim: “Oh, Jesus, você vai perder o umas amigas que eram vizinhas e ficava lá brincando, até o horário da aula passar para eu voltar
seu dinheiro”. Minha mãe fez a minha inscrição e eu passei. Tem um escritor norteamericano, o para casa. O que aconteceu comigo é o que acontece com 90% da meninada negra, talvez até mais.
James Baldwin, que dizia que as pessoas negras têm que fazer o dobro do que as pessoas brancas Então, a gente fica em uma zona fronteiriça entre o fracasso e o sucesso – que é extremamente
fazem para ser reconhecida a metade. Então eu coloquei isso na minha cabeça. Sempre busquei tênue. Com qualquer coisinha, você pode ir para um lado ou para o outro. Uma coisa é a gente
excelência, mas é muito cansativo e causa alguns contratempos na vida da gente. Um desses foi ter consciência da discriminação e da diferença. Eu tive desde pequenininha. O cabelo, a cor, a
ter um corpo de uma mulher extremamente tensa. É um desgaste emocional muito forte você tem discriminação racial, o social. A discriminação por não ter pai, isso era muito forte naquele período.
que provar, o tempo todo, que merece estar ali, que não é um favor que estão te fazendo. Sempre Uma coisa é esse tipo de consciência, que é muito preliminar, precária, muito primitiva ainda. Outra
era uma minoria onde quer que estivesse. Eu me lembro de só dois meninos negros no Colégio coisa, é a consciência política. É um salto, é fantástico! Esse é o papel que eu acho decisivo, muito
Estadual. E, assim, eu vivi em um mundo de pessoas brancas todo o tempo. Isso se chama racismo importante, dos movimentos políticos e sociais negros.
estrutural.
Da Serra à Fundação João Pinheiro, passando pelo cortiço
Vejam só, sou uma mulher com 74 anos de vida, você é uma jovem de 30 anos, Jessyka
Minha mãe foi muito sábia. Eu não tinha feito nem 17 anos e ela pensou que já era hora de
[referência à entrevistadora, que também é negra]. Você fala de experiências semelhantes à
a gente sair, não tinha mais condição de ficar morando naquela casa. Fomos ter nossa casa, nossa
minha, e são mais de 40 anos que nos separam. Isso é racismo estrutural. Se não houve mudança
independência. Fomos morar em um cortiço, perto do Convento dos Dominicanos, que foi uma
entre o meu relato e o seu relato, lamento informar: vivemos no estado de Minas Gerais, que é
transformação da água para o vinho. Porque, naquele período, estava iniciando na Igreja Católica
estruturalmente racista.
a Teologia da Libertação. Eu ali, naquele meio totalmente diferente, chiquérrimo. Do ponto de
Identidade e Racismo: a roda não rodou porque ela estava quebrada em vista de uma menina preta, que está vindo com a mãe empregada doméstica, que mora em um
um lugar. cortiço, aquilo era a maravilha das maravilhas. Comecei a participar do grupo de jovens. Em 1967,
fiz vestibular. Estava motivada, rodeada de pessoas, porque no Convento dos Dominicanos tinha
Eu percebia que eu era negra e discriminada, desde pequenininha. Na escola primária, fui
a juventude estudantil, juventude universitária e a JOC, juventude operária. Tive o apoio da Igreja
discriminada e comecei a matar aula. Olhem o fenômeno de matar aula, a evasão escolar por causa
(nessa época no Mosteiro das Beneditinas) e fiquei meses a fio estudando para passar no vestibular.
de discriminação racial. Uma vez, estávamos em roda no momento da recreação. Ao meu lado tinha
Não tinha que me preocupar com comida, porque a gente vivia uma vida de muita pobreza quando
um guri branco. Eu tinha que levar minha mão para que ele segurasse e ele não aceitou. E a roda
fomos morar no cortiço.
não rodou porque estava quebrada em um lugar. Aí, claro, todo mundo olha e vê uma guria negra,

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Capítulo 15 - Diva Moreira MOREIRA, Diva; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

Minha mãe conseguiu um emprego de faxineira no Instituto de Educação. Era o governo do porque ele é o pai da Ana Tereza. Eu tenho duas filhas, uma biológica e uma afetiva. Foi ótimo, mas
Magalhães Pinto e ele ficava sem pagar o funcionalismo durante meses, pagava só duas vezes por havia diferenças de classe e escolaridade no meu caso com ele que intervieram no relacionamento.
ano, pelo que me lembro. Tínhamos que contar com a compreensão do dono do cortiço para pagar Ele era liderança sindical; eu tinha outra cabeça, estava lendo, estudando, pesquisando.
os aluguéis com atraso. E a compreensão do cara da mercearia, que vendia fiado. Foi um aperto
Em 1973, ele foi preso e ficou quase três anos no presídio político de Linhares, em Juiz
danado. Era dificuldade de faltar comida; não era uma dificuldade metafórica, era concreta. Minha
de Fora. Foi um período muito difícil, ia visitá-lo, claro. Quando saiu da prisão, a gente voltou a
mãe lavava e passava roupa para ter um dinheirinho mais permanente e era muito interessante o
ficar juntos. Formalizamos o nosso relacionamento com uma reunião com os amigos, um padre
respeito que ela tinha, como valorizava a questão do estudo. Nunca falou: “Sinto muito, a situação
veio e abençoou a gente, isso foi em 1976. Participamos das lutas operárias, com panfletagem
tá difícil e você vai ter que parar de estudar e trabalhar”.
contra o arrocho salarial e a ditadura militar, e denúncias na imprensa operária. Como eu tinha
Em 1967, havia apenas três anos da instalação da ditadura militar, quando entrei para a feito Jornalismo, ficava encarregada de fazer os textos e entrevistar as pessoas. Tínhamos um
Fafich1. Não me lembro de discriminação racial na faculdade, era uma turma de esquerda, com jornalzinho de imprensa operária, chamava-se União Sindical.
quem eu convivia. Tinha o movimento estudantil, mas eu participei pouco dele, porque senti que
Ana Tereza nasceu em 1983. Logo depois, a gente se separou. É como se eu tivesse querendo
o movimento estudantil era branco, a questão racial não era tratada e ali não era o meu mundo.
encerrar aquele relacionamento com uma filha, porque eu já estava com 37 anos quando ela
No dia primeiro de maio de 1968, teve uma manifestação magnífica dos trabalhadores e das
nasceu. A filha afetiva é mais recente. É uma graça, uma lindeza. E nessa história da filha afetiva, eu
trabalhadoras contra a ditadura, na Secretaria de Saúde, onde é hoje o Minas Centro. Lá eu conheci
ganhei de presente um neto maravilhoso e um genro.
a pessoa que seria meu namorado, pai da minha filha, do Partido Comunista. Saímos de lá com
bomba de gás lacrimogêneo, correndo, enquanto outros tipos de bombas eram lançadas pela 3. Vida profissional
polícia, que também ia pegando as lideranças. E foi a partir daí que entrei para o velho Partidão.
Já estava dissociada do Convento dos Dominicanos, meu itinerário estava sendo outro e comecei o Em 1974, fui trabalhar na Fundação João Pinheiro e fiquei 14 anos. Pensando nesse tempo
ativismo no Partidão, a luta na clandestinidade. de FJP, uma coisa que me incomodava profundamente era quando eu saía para fazer entrevistas
nos ministérios. Em geral, com uma companheira que era branca. O que acontecia? Não estou
Eu saí do curso de Jornalismo em 1970, não tinha muita faculdade de Jornalismo na época,
exagerando. Eu chegava lá, com essa colega e cumprimentava a pessoa. Era incrível: eu chegava
mas o mercado de trabalho já era muito disputado. Eu pensei: vou morar no Rio, quem sabe assim
e saía, os únicos momentos que a pessoa olhava para mim rapidinho, era no cumprimento de
tenho mais chances? Fui, vi que não era lá que eu queria morar e voltei. Em 1971, uma amiga
chegada e de saída. Mas era o tempo todo olhando só para a companheira branca. E ela, era aquela
me falou do curso de Ciência Política. Achei a ideia de fazer jornalismo político muito atraente e
história da branquitude que não tem a menor consciência racial, nunca percebeu aquilo. Eu saía
fui fazer o exame de seleção. Fiz o que pude para me preparar, porque eu vinha de outro campo.
supermal, porque o cara me ignorava o tempo todo. Nunca teve aquela coisa de olhar para mim,
Passei. Eu sempre falo assim: fui uma mulher exitosa na vida. Tenho a maior consciência disso. Sou
explicar, depois olhar para ela e voltar um pouco. Nada. Eu estava e não estava ali. Mas, apesar da
uma mulher vitoriosa. Fiz o curso e senti que aprendi muito, apesar de ser uma ciência política
dor da discriminação, eu não deixava aquilo me aniquilar e, no geral, me sentia bem de novo.
muito baseada em autores norteamericanos e no funcionalismo. Nem se falava em Marx. Se falava,
era para dizer que ele estava totalmente errado. Eu recordo que, uma vez, surgiu uma oportunidade de um cargo para a coordenação de uma
determinada equipe. E eu era uma pessoa que servia para ler os textos. Todo mundo me passava os
Um parentese: eu tive namorados brancos, eu tive namorados pretos.
respectivos textos para ler. Fazia revisão criteriosa, descobria as vírgulas no lugar errado, a lógica
Eu percebia que as mulheres negras eram discriminadas, também, no campo afetivo. Eu sabia que faltava, a falta de consistência, tudo. Então, eu tinha uma cabeça desse porte. Quando teve uma
disso, e acho que isso me retraiu muito em relação aos homens. Eu tive namorados brancos, eu tive oportunidade, levaram gente de fora e não fui chamada para o cargo.
namorados pretos. Então, conheci o Zé em 1968, companheiros no Partidão. Somos amigos até hoje,
Mas tinha um aspecto extremamente positivo na Fundação naquele período. Em plena
ditadura, era um espaço extremamente autônomo. Para vocês terem uma ideia, iniciei a questão da
1 Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.

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Capítulo 15 - Diva Moreira MOREIRA, Diva; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

saúde mental na Fundação de maneira totalmente independente. Cheguei lá exatamente quando a A passagem pela Prefeitura: racismo e machismo marcam esse episódio
Fhemig estava sendo construída. E me passaram a parte que tinha a ver com a Fundação Estadual
Na Prefeitura de Belo Horizonte, o Prefeito ficou encantado com o nosso trabalho, mas isso
de Assistência Psiquiátrica (Feap). Eu sempre pensava assim: “A gente não pode fazer de qualquer
nos deu muito problema interno. Eu era a única secretária negra naquela prefeitura, trabalhando
maneira. Tem que fazer algo com robustez”. Fui estudar, não fiquei só naquela receitinha que tinham
com uma temática que ninguém acreditava que existisse. Teve uma administradora regional que
me passado. Foi quando descobri Irwing Goffman. Mudou a minha vida. Fiquei tão impressionada
foi me procurar um dia para me convencer que ela representava o prefeito e que tudo que fôssemos
com aquele livro Manicômio, prisões e conventos, que falei: “A gente podia estudar mais sobre os
fazer na Escola Profissionalizante Raimunda da Silva Soares, na Pedreira Prado Lopes, que estava
hospitais psiquiátricos. Não podemos ficar só nesse modelito organizacional da Fhemig, a gente
na área de abrangência dessa regional, tinha que ser encaminhado a ela antes, se não eu estaria
pode aprofundar”. E aí a Fundação João Pinheiro, por meio da Diva e do Goffman, inauguraram uma
desrespeitando o prefeito. Claro que não aceitei e fiquei brava, porque não tinha eira nem beira
etapa extraordinária da história da psiquiatria em Minas Gerais.
o que ela estava me falando. E como ela insistia, o que aconteceu? Foi a primeira vez na vida que
Nós incluímos, também, a temática racial na Fundação. O pessoal achava coisa menor, feita eu dei murro em mesa. Eu fiquei tão indignada que falei: “A gente não vai poder fazer nada na
por pessoas que não queriam encarar trabalhos maiores, mais importantes. Mesmo com aquela Pedreira sem passar pela regional? Mas é impossível um negócio desse, a gente tem autonomia lá”.
história e enfrentamos, fizemos um documentário Dandara, mulher negra, vocês acreditam? Que Ela respondeu: “Não tem porque é da regional”. Aí eu dei um murro na mesa! Essa mulher foi uma
foi inclusive premiado pela CNBB. das nossas adversárias e, com certeza, ajudou na destruição da Secretaria.

Depois da Fundação João Pinheiro, comecei a trabalhar na criação de uma entidade do O prefeito tinha passado a Escola da Pedreira Prado Lopes para nós. Aquilo foi o limite.
movimento negro, que foi a Casa Dandara. Tinha me dado conta de que naquele período eu tinha Sobretudo o pessoal da Secretaria de Desenvolvimento Social não entendia. Na ocasião, falamos:
empreendido várias lutas: em defesa da criança e do adolescente, da saúde mental, da classe “O prefeito está apostando na secretaria, vamos tornar a escola um modelo em termos de gestão
operária, das mulheres. Estava com quase 40 anos e não tinha feito nada pelo meu próprio povo, pública, em termos de ação governamental”.
como podia? Com a experiência que tinha, essa militância estava na hora. Saí da Fundação João
E tiveram os problemas com os machistas, claro. Uma mulher preta conversando com
Pinheiro, em 1988. Foi uma aposta de total risco financeiro. Minha família voltou a passar dificuldade
secretários brancos, querendo mais recursos para a Secretaria. Eu cheguei a uma reunião e,
financeira, mas ninguém reclamou. Pura maravilha. Fui ficar por conta da Casa Dandara durante
desrespeitosamente, um deles estava lendo alguma coisa e lendo ficou. Escutou alguma coisa que
um bom tempo. Foi assim por oito anos. Durante esse período, eu vivia com bolsas de fundações
o desagradou e que tinha a ver com o orçamento curto da Secretaria. Ele ficou indignado e deu uma
estrangeiras, sobretudo a Ashoka, da qual eu faço parte até hoje e me valeu muito. Eu fazia projetos
resposta grosseira com o dedo em riste na minha cara. Repito: dedo em riste.
de pesquisa, conseguia algum financiamento por um tempo. Depois, ficava sem dinheiro de novo
e assim foi. Na Casa Dandara, nossa preocupação era combinar política com cultura e afeto: o
encontro e a festa. Foi uma experiência muito rica, na Casa Dandara.

Em 1996, Célio de Castro se torna vitorioso nas eleições para a prefeitura municipal e manifesta-
se interessado em me chamar para compor sua equipe. Eu estava fora do país na ocasião, mas para
adiantar enviei uma breve proposta a algumas pessoas para que conversassem com lideranças
do movimento negro sobre a criação de um órgão, que depois passou a ser chamado SMACON –
Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra. Um espaço de não discriminação na
prefeitura para fazer a diferença em relação ao nosso povo. O Célio foi extremamente aberto e Diva na companhia do ex-prefeito
fomos à luta pela aprovação do projeto de lei, na Câmara. Eu fiquei na prefeitura durante quatro de Belo Horizonte, Célio de Castro
– em cujo governo, ela chefiou a
anos, até o final de 2000, quando a Secretaria foi extinta. Secretaria Municipal para Assuntos da
Comunidade Negra – SMACON.
Crédito: Acervo Pessoal

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Capítulo 15 - Diva Moreira MOREIRA, Diva; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

Subir o morro: era uma dedicação extraordinária, coisa que os brancos nunca tinha visto antes, até em brasileiras que lá moravam. Da Universidade do Texas, passei em
não faziam, claro! outra seleção para um programa de verão sobre a temática racial e me mudei para a capital do
país, Washington. Estava em um think tank, o Woodrow Wilson International Center. É um pessoal
Alguns poucos secretários brancos gostavam da gente, e eu vou explicar. Conseguíamos entrar
extremamente conservador, de direita, mas era mais uma oportunidade de me aprofundar na
em favelas e sair, numa boa, mas eles tinham medo. Então, pediam a gente para mandar alguém com
questão racial e, enquanto isso, eu contaria com o dinheiro da bolsa para sobreviver. Permaneci lá
a equipe deles para subir os morros. Tínhamos um núcleo de respeito entre Secretários, porque
até início de 2003, quando voltei para o Brasil, mais uma vez desempregada.
eles sabiam: “tendo a SMACON, a gente pode ir às favelas e os bandidos não podem nos atacar”. A
gente precisava legitimar a existência da Secretaria, então a nossa dedicação foi extraordinária! Às Eu me sinto uma pessoa muito abençoada e sempre dou graças a Deus, à minha galera
vezes, a gente saia de favela às onze horas da noite. Era uma dedicação extraordinária, coisa que os espiritual, bem como à vida, “que me há dado tanto”. Um dia, eu me encontrei na rua com um ex-
brancos não faziam, claro! Não tinha sábado, não tinha domingo, não tinha nada, lá estávamos nós. colega de trabalho que não via há anos, o Zé Antônio, e falei que estava desempregada. Gente, ele
Na entrada da escola da Pedreira, tinha um jardim cheio de flores. Defendia a ideia de que a política sabia que o Roberto Martins, a quem conhecia há anos, estava procurando uma mulher negra para
pública tinha que ser fundada na ética e na estética, de que o nosso povo sofrido merecia o melhor. indicar ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Pnud. Lá fiquei por uns 3 anos, foi
Então, a diferença que fizemos teve a ver com a necessidade de respeitar o povo negro e combater a minha última experiência profissional. Fiz amizade com várias pessoas, trabalhei com a temática
o racismo institucional na prefeitura e de legitimação da Secretaria, que nasceu sob ataque e nunca racial e de gênero, conheci um pouco as entranhas das relações de poder na burocracia federal. O
teve legitimidade interna. salário era ótimo, mas foi o único lugar de onde saí de forma melancólica. Minha mãe tivera um
AVC e tinha que arcar com os custos de cuidadoras 24 horas por dia. De novo desempregada, entrei
Com a extinção da Secretaria, em dezembro de 2000, eu me senti derrotada, emputecida.
numa espiral de endividamento do qual não saí até hoje.
Deixei a Prefeitura de Belo Horizonte e fiquei desempregada, até que alguém descobriu, foi até
a uma pessoa do PSB, e me convidou pra trabalhar como assessora de direitos humanos de um Entre nós, a mobilidade social descendente é muito mais frequente do que
deputado do partido, o Edson Rezende2. Fui trabalhar com ele e foi ótima a experiência, muita rica; entre as pessoas brancas.
eles tinham muita consideração comigo. Eu gostava do que fazia, apesar do sofrimento nas visitas
Então, é isto: tem esse sobe e desce, porque as profissões estão reservadas para as pessoas
aos encarcerados. Também atendemos policiais que foram relatar o caso de uma acusação injusta
brancas, formadas em universidades de ponta, com tempo e dinheiro para se prepararem para os
que havia sido feita contra um de seus colegas de corporação. Acho importante fazer este registro,
concursos públicos. A isso a ideologia individualista chama de mérito. Por isso que lutamos por
porque a imagem dos direitos humanos ficou muito distorcida pela direita, e isso repercutiu
ações afirmativas, nas universidades e nos órgãos públicos. Outra forma de acessar espaços no
de forma negativa nos quartéis, com o discurso de que “direitos humanos é coisa de bandidos”.
mercado de trabalho, sobretudo no setor privado, nas empresas, é por indicações, o famoso QI
Mostramos, na ocasião, que direitos humanos era para todo o mundo.
(“quem indica”). Sabemos que as pessoas negras vieram de famílias pobres e suas redes não têm a
Eu comecei a ser uma das pessoas mais velhas nas equipes. Estava no mercado de trabalho mesma capilaridade e influência das redes dos profissionais brancos.
com uma turma muito mais nova do que eu. Foi assim que passei a ter amigas e amigos, que me
Não me lembro de como eu fiquei sabendo desse curso na Universidade do Texas. Já existia
tratam com o maior carinho e consideração, tem jovens que podem ser meus netos, pela grande
a internet, devo ter recebido algum e-mail. Na prefeitura, claro, eu conhecia o Célio de Castro,
diferença de idade. Fiquei pouco tempo trabalhando na Assembleia Legislativa, porque soube de
da luta pela reforma sanitária no país que resultou na criação do SUS. Quando a Secretaria foi
um programa focalizado em Raça, Direitos e Recursos nas Américas, na Universidade do Texas,
extinta, e eu voltei também para a estaca zero. Posteriormente, ao sair do Pnud, não caí “para
em Austin. Participei do processo de seleção e fui aprovada. Em agosto de 2001, estava no Texas
cima”, eu caí para baixo. Meu contrato foi encerrado em 2006. Foi um encerramento traumático,
participando do programa. Foi uma experiência muito rica, muito interessante. Estava lá quando
agravado pelo falecimento de minha mãe. Eu me senti muito injustiçada, e com a ajuda de uma
o 11 de setembro aconteceu, e as versões oficiais despertaram sentimentos de patriotismo que
amiga do movimento negro procurei pessoas para fazer uma carta de denúncia, tive apoio de
lideranças nacionais do movimento, mas não adiantou nada. Veja só, quando eu saí do Pnud, já
2 Médico, professor universitário e político brasileiro – foi vereador e deputado estadual, ambos por duas vezes.
tinha experiência profissional louvável. Eu tinha 60 anos. Procurei pessoas amigas que davam
Também presidiu a Ceasa Minas.

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aula em faculdades particulares, já que muitas precisavam de gente com titulação de mestre e de não deveríamos passar, mas é claro a gente passa, porque isso é algo também que é específico da
doutor para melhorar sua pontuação no MEC. Mas ninguém me indicou para nada. Até conseguir situação de mulheres negras em ascensão. A gente experimenta uma situação pendular, ora está
me aposentar por idade, em 2006, passei muito aperto financeiro. bem, ora está em dificuldade.

No ano passado, aconteceu outra bênção em minha vida: fui procurada por um professor já 4. Políticas afirmativas, movimentos e a política de cotas
aposentado, o Walter Andrade Parreira. Ele me falou: “Eu conheço você do seu livro, da sua luta
em defesa dos internos em hospitais psiquiátricos, a gente está criando um curso e construímos Eu lutei pelas políticas afirmativas, pelas políticas de cotas, defendi ardorosamente. Escrevi
uma disciplina para você”. Vocês acreditam que aconteceu isso comigo? Um cara branco, que sobre isso, “bati” nos intelectuais brancos, muitos de origem estrangeira, que eram contra as cotas.
não me conhecia, ele sabia do livro, sabia que existia uma tal de Diva Moreira, mas ele nem sabia Questionei, participei de polêmicas nas palestras que eu dava e nos meus escritos, que estou
como me localizar. Ele me telefonou, um telefonema longo e maravilhoso de reconhecimento e de resgatando – eu estou fazendo livros, no plural. Não estou escrevendo um só.
valorização. Falando da minha importância na história da Psicologia do Brasil. Nunca tinha visto
Eu falava, naquela época, o seguinte: “Nós não estaríamos reivindicando políticas de ação
tamanho reconhecimento. E o que aconteceu? Essa pessoa me convida para dar aula na Faculdade
afirmativa se tivesse havido política universalista, de fato. Na teoria, era tudo maravilhoso. Os
Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) no Departamento de Psicologia. Tinha mais de 70
que batiam contra as cotas falavam que nós estávamos ferindo princípios republicanos, como se
anos de idade e fui ser professora das Ciências Médicas, o que eu achei totalmente insólito.
a gente vivesse em uma república maravilhosa. Eu entrei para a universidade em um período em
Aí, aconteceu um episódio impressionante de racismo de uma amiga branca. Tem coisas muito que sequer existiam cotas. Mas para eu ter entrado, quantas e quantas pessoas negras ficaram
ofensivas para nós negras, mas para as pessoas brancas não são nada. Falei assim: “Vou avisar para de fora? Eu saí da universidade em 1970. Cinquenta anos atrás. Se tivessem mais Divas Moreiras
essa minha amiga, que também dá aula exatamente na Psicologia, nas Ciências Médicas, que estarei nas faculdades, naquele período, cinquenta anos depois ou trinta, quarenta anos depois, quanta
lá. Ela vai me ver e achar estranho, então vou avisar para ela”. Tive esse cuidado. Mandei uma diferença faria! Eu virei este ser meio exótico, por causa de uma sociedade racista. Se não fosse
mensagem de Whatsapp falando que eu ia começar a dar aula. Ela me perguntou: “Para o primeiro isso, a minha trajetória não seria tão rara. Teríamos mais mulheres negras que deram certo na
período?”. É isso que vocês estão entendendo. Uma mulher com a minha trajetória, com a minha sociedade mineira, como eu. Mas porque que eu virei uma peça tão exótica? Porque vivemos em
experiência, toda essa bagagem e essa minha amiga acha que, se eu estou lá, devo estar dando aula uma sociedade racista.
para as turmas iniciais. Não que isso seja uma desonra, mas a pergunta dela foi desastrosa. Então,
As cotas nas universidades abriram processos para uma série de mudanças na sociedade
a vida profissional de gente preta em uma sociedade de hegemonia branca é isso. A vida é de altos
brasileira. Temos pessoas negras na academia, não no número que seria proporcional ao que
e baixos.
deveria ser, mas temos. Hoje, temos pessoas negras na área da Ciência, da Tecnologia, da Medicina.
“O problema do pobre é que ele só tem amigo pobre”, e é isso mesmo, ele Existe um diretor negro na Faculdade de Medicina, em mais de cem anos. Olha o imobilismo
tem toda razão. da sociedade brasileira! Por isso, há necessidade de políticas de ação afirmativa. Não tivemos
políticas abrangentes, universalistas, pelo contrário! Tivemos políticas deliberadas de exclusão
Sobre a mobilidade descendente das pessoas pretas, eu me lembrei de uma outra coisa. No
da população negra do projeto de modernidade do estado de Minas Gerais. Os indicadores sociais
nosso caso, em geral, somos as pessoas mais endinheiradas da família. E aí, o que acontece com
negativos da população negra não são nada casuais. Tipo assim: “Oh, meu Deus, aconteceu isso?
o dinheiro da gente? Tem que ser distribuído. Distribuição não é da renda, que infelizmente não
Mas eu queria do outro jeito”. Não. Aconteceu assim, porque as elites mineiras planejaram para que
existe no nosso país, distribuição da minha aposentadoria e dos salários de quem está na ativa. Eu
fosse assim.
me lembro, também, de uma frase do Amartya Sen que eu acho muito interessante: “O problema
do pobre é que ele só tem amigo pobre”, e é isso mesmo, ele tem toda razão. A família da gente é Vocês vão ler em meu livro, em breve, como isso foi planejado. A exclusão da população negra
pobre e os amigos em geral. Ou tem amigos que não são pobres, mas você não tem a liberdade de do projeto da Minas Gerais moderna, higiênica. Em Belo Horizonte, a situação foi ainda pior em
chegar e falar: “Você pode me passar um dinheiro?”. Eu, às vezes, tomo dinheiro emprestado, mas é termos de exclusão, porque a capital foi criada em um momento histórico de influência da ideologia
chato ficar devendo. Quando vou pagar, a pessoa fala: “Não precisa”. São situações pelas quais nós do eugenismo, do racismo científico. Os esforços dos movimentos sociais negros geraram muitos

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frutos. Tudo o que conquistamos na sociedade brasileira foi fruto de nossa luta. A moçada de hoje uma galera negra que vai ficar extremamente
fala em “meter o pé na porta” e com razão. Falando das consequências dessas lutas, hoje temos frustrada se não conseguir ocupar espaço no
empresas com programas de bolsas para oferecer oportunidades para trainees, inclusive na mais mercado de trabalho. A questão da organização
científica. Isso não existiria se não fosse a luta pelas cotas nas universidades. Elas desencadearam é muito importante. Mas, para mim, é muito
outras consequências que mudaram a cara deste país. Hoje, a presença negra nas universidades já importante enfrentar o problema que é o
supera, em uma proporção pequena, os 50%. Veja só, a gente fala da rigidez da estrutura racial em mais grave, o mais crucial: a violência policial.
Minas Gerais e no Brasil, mas eu fico feliz de ver isso. Porque teve gente que morreu antes de mim Ontem, recebi o recado de um pai que está com
sem ter visto nada disso! o filho arrasado, um filho negro que é músico,
artista e foi grosseiramente abordado por um
Temos que organizar o nosso povo para transformações mais profundas
policial militar. Ele processou o policial, mas
Eu acho que os movimentos sociais são decisivos na história de nossas conquistas de direitos. o juiz deu ganho de causa para o agressor. E
Por exemplo, quando chego no Centro de Referência da Juventude eu fico encantada. É cheio de o condenou a pagar uma indenização para o
grupos de jovens fazendo reuniões, e fazendo aulas de dança, é teatro, circo, hip hop, capoeira. Ou policial de mais de 30 mil reais. O pai ligou para
seja, o que eu tenho visto ali é um protagonismo negro que não tinha na minha época de jovem. mim desesperado, e eu falei: “Antes, a gente não
Eu fiquei décadas sem ouvir falar de teatro negro. Sabia do TEN – Teatro Experimental do Negro, tinha para onde recorrer. Hoje, a gente já tem
criado pelo grande Abdias do Nascimento? E agora? Está cheio de teatro negro. Eu estou achando a Comissão de Igualdade Racial da OAB, todo o
espetacular tudo isso. Ver as mulheres negras se organizando, têm grupos de psicólogas negras, trabalho é de graça, é só ir atrás”. Tem o pessoal
de arquitetas, de professoras, nem se fala! Eu fico encantada. Então, essa questão da articulação da Defensoria Pública de Minas Gerais que
e da visibilidade da nossa luta tem atraído uma quantidade extraordinária de pessoas para os também está atenta à questão do racismo.
movimentos. Essas pessoas levam a temática do racismo para os seus territórios, para os quilombos,
Então, são várias questões que
os terreiros. Trata-se de um momento histórico muito rico, apesar das estatísticas de violência
demandam a construção de sujeitos coletivos
policial e do clima de ódio em que vivemos, desde 2018.
e a constituição de novas institucionalidades.
A questão da educação, para mim, é fundamental. Na formação educacional, a moçada tem lido Temos que organizar o nosso povo para Diva em campanha de apoio ao Instituto Pauline Reichstul,
muito pouco, tem que ler. E, hoje, a produção editorial sobre racismo e a história da escravização associação sem fins lucrativos, que tem como foco a
transformações mais profundas. Como defender
promoção da justiça social. Belo Horizonte, 2014.
vem se expandindo. Livros de escritores negros têm sido reeditados e outros traduzidos para o o SUS, que é uma experiência magnífica? Como Crédito: Acervo Pessoal
português. Tem mais editoras negras, no país. Antigamente, em Belo Horizonte, só tinha a editora defender a escola pública de qualidade? Como
da Mazza3. Hoje, tem a editora Nandyala... Ou seja, esse protagonismo negro, que se verifica em impedir que a nossa meninada seja expulsa
todas as áreas, é porque a gente está na luta, não está dando bobeira. O Frei Davi4 foi um dos da escola por causa do racismo institucional?
pioneiros e cutucou muito a questão das cotas. Depois, das vagas no mercado de trabalho. Mais Como impedir que as nossas mulheres
recentemente, foi mais ousado e interpelou a Bolsa de Valores de São Paulo. Porque você vai formar morram por violência doméstica, policial,
negligência no atendimento médico? Os dados
3 A editora Mazza foi fundada em Belo Horizonte por Maria Mazarello Rodrigues, que também foi uma das fun- de mortalidade materna, neonatal e perinatal,
dadoras da Editora do Professor e da Editora Vega, nos anos 1960 e 70. Fez mestrado em Editoração realizado em devido à violência obstétrica são maiores entre
Paris, e por meio da Mazza publica autoras e autores negros e livros que abordam temas em torno da cultura afro-
as mulheres negras. Como impedir isso sem
-brasileira.
4 Frei David Raimundo dos Santos, presidente da Educafro, criada há mais de três décadas e uma das protagonis-
organização, sem a construção de novas ações
tas da luta pelas cotas nas universidades. e institucionalidades?

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Feminismo negro e feminismo branco brancas, essa consciência. Crescemos, em termos de consciência racial. As pessoas brancas também
cresceram, mas não tanto quanto nós. O Professor Aluísio Pimenta foi presidente da Fundação João
Quando entrei para o movimento feminista, eu não tinha consciência dessa transversalidade
Pinheiro e Ministro da Cultura. Ele gostava de afirmar que se fosse convidado para uma mesa de
racial. Mas eu sempre tive aquele feeling, aquele sentimento de impasse. As feministas brancas não
debate, dizia: “Eu não aceito sentar em uma mesa se não tiver uma mulher do meu lado”. Ele tinha
aceitavam que a questão racial fosse exposta, porque elas só percebiam a opressão de gênero que se
consciência da dimensão de gênero, mas não tinha consciência da racial. Você já imaginou se as
abatia igualmente, segundo elas, sobre as mulheres negras e as mulheres brancas. Quando a gente
pessoas brancas, quando fossem convidadas para algo, perguntassem: “Olha, alguma mulher negra
alcança outro patamar de organização das mulheres negras feministas, a gente sai do movimento
vai ser convidada? Sou homem, vai ser convidada alguma mulher trans? Isso faria uma colossal
de mulheres brancas. Porque passamos a perceber que a temática racial não era acolhida e era,
diferença. Não sei se foi só impressão minha, mas eu tenho tido um olhar agudo em relação às
inclusive, fator de constrangimento. As mulheres negras falavam: “Sabe por que vocês estão no
imagens dos convidados nas lives. Estou vendo muito mais pessoas negras nas lives hoje. Eu acho
movimento feminista? Estão na rua rasgando sutiã? Porque tem as mulheres pretas, dentro de
que houve uma turbinada depois do assassinato do George Floyd.
casa, cuidando dos filhos e da casa de vocês”.
A questão do racismo tem um impacto devastador sobre a população negra, mas não acredito
Isso ficou muito claro no caso das empregadas domésticas. Vocês viram como uma parcela
que a população branca fique a salvo. Não pensem os brancos que, “está tudo bem comigo”; não
da classe média se voltou contra a Dilma quando o Estatuto das Empregadas Domésticas foi
está, seguramente não está. Eu fico vendo que os americanos e as americanas negras avançaram
aprovado. Mesmo aquelas patroas brancas, que tinham poder aquisitivo para pagar todos os
mais nos estudos sobre a branquitude, do ponto de vista da Psicologia. A chefe negra chega para
direitos previstos, não estavam acostumadas com isso. Se não tivessem que pagar, seria muito
se reunir com os seus subordinados, fala mas não é ouvida. Ela pode perguntar: “O que eu acabei
melhor. Eu conheço empregadas domésticas, minhas amigas, algumas são minhas inquilinas. Tem
de falar?”. E a pessoa não é capaz de responder. Ela desplugou. Está com o fone de ouvido ligado,
uma que está em uma casa deve ter 30 anos, nunca pagaram nenhum benefício para ela, somente
não escutou o que a mulher negra falou. O que significa isso para aquela pessoa? Eu acho que a
o salário. Falo para ela: “isso é um absurdo”, mas não adianta. Todas elas são prejudicadas pelo
Psicanálise e a Psicologia nos devem estudos sobre isso. Ano passado, comecei a dar aula em uma
desrespeito aos direitos. Daí a necessidade da consciência política. Eu sou marxista, não acredito
faculdade particular e “bati” nisso. Aproveitei que me deram a oportunidade, que criaram uma
que a gente vai ter uma percepção espontânea da luta de classe, das lutas contra o racismo. Se não
disciplina para mim, coloquei bem forte a questão racial. Teve aluno que saiu impactado, era de
tiver organização, não avança.
doer, de dar bolo na garganta, tinha gente que chorava. É um processo.
Silenciei algumas coisas: a gente tinha medo de não ter oportunidade se Vou falar uma coisa parcialmente desanimadora: para nós, que temos uma perspectiva
reclamasse histórica e adotamos a esperança como um valor político transcendental, não podemos desaminar,
Eu silenciei algumas coisas para não ficar chata, toda hora falando, reclamando. E, às vezes, a mas o racismo é uma construção. É uma construção secular, está quase no DNA. Talvez, se estivesse,
gente tinha medo de não ter oportunidade se reclamasse. Eu falei com vocês sobre minhas viagens os biólogos poderiam programar um novo DNA. Tanto para os pretos não nascerem com complexo
com a colega branca da Fundação João Pinheiro. Eu silenciei, minha colega nunca soube disso. de inferioridade quanto para os brancos não nascerem com complexo de superioridade, porque
Por que silenciei? Por uma questão de ordem econômica familiar, para ajudar as pessoas, para ambos desumanizam.
ter um pouco mais de dinheiro, ter uma margem, que era o dinheiro das viagens. Hoje, eu sou
cuidadosa. Tem coisas tão simples, mas importantes. Vocês não sabem o cuidado que eu tenho,
por exemplo, com a maneira de colocar as cadeiras. Se estou sentada em um lugar e a pessoa está
se direcionando mais para mim, mas tem uma pessoa ao lado dela, eu chamo a pessoa para ficar
sentada do meu lado, para evitar isso.

A gente é invisível, a nossa invisibilidade é muito grande, isso eu tive que silenciar, porque
senão eu não viajaria, seria vista como a “chata” e ficaria muito isolada. Não havia, entre as pessoas

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Capítulo 15 - Diva Moreira MOREIRA, Diva; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

Qual o sentido da minha vida? Quem pode conferir sentido à minha vida? deles era brutal, era cruel. Eu tenho uma amiga que é ateia militante. Um dia, ela falou assim para
mim: “Você falou em seu texto sobre a mulher negra, que as pessoas podem substituir Deus por
O fenômeno religioso sempre me tocou
Buda, por Alá, por não sei quem. Por que não substituir Deus por processos evolutivos?”. Então, eu
muito. Há muitas décadas, meu irmão se tornou
pensei em uma escrava ou um escravo sendo levado para a forca e segurando na mão dos processos
um iniciado no Candomblé. Eu também sou
evolutivos... Ah, é impensável isso. Eles estariam segurando na mão dos Orixás deles, na mão de
próxima ao Candomblé e assessoro o Cenarab,
Santa Efigênia, São Benedito ou de Nossa Senhora do Rosário. Ontem foi dia da Nossa Senhora do
que é o Centro Nacional de Africanidade e
Rosário e eu coloquei isso na minha página do Facebook. Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Resistência Afro-Brasileira, que reúne o povo
Pretos é uma tradição fantástica deste país, desde o século XVIII. Mesmo estando fora do catolicismo,
de santo no Brasil. Eu não sou iniciada nem
não ter a menor ligação com a igreja católica, eu tenho que respeitar esse catolicismo popular. Eu
pretendo ser, mas sinto-me muito ligada às
vou às festas das irmandades do Rosário e, chego lá, é Guarda de Moçambique, é Congado, não sei
religiões de matriz africana e reconheço o
mais o quê. Me cumprimentam: “Salve Maria”!. “Salve, Maria”!, respondo. Eu ganhei até um rosário
papel delas na resistência negra durante todo
enorme da turma, tenho em casa. Eu acho que o fenômeno religioso é fundamental para a gente
o período de escravização e depois. Por isso,
ser dotada de uma perspectiva transcendente, de uma utopia, porque as esquerdas deixaram de
consigo entender o porquê de elas serem alvo
oferecer ao nosso povo uma utopia, na medida que fizeram pacto com o centrão, com a direita e
de tanto ódio, de tanta intolerância religiosa no
ficou tudo a mesma coisa para a maioria das pessoas.
Brasil de hoje.

Em ternos de outras religiões, primeiro


5. Mulheres negras, desafios: a única condição para acessar
eu gostaria de dizer que me considero uma a renda básica universal é estar vivo.
pessoa internacionalista, o mundo é meu limite.
Vocês fiquem atentas a algumas questões que são cruciais. Uma delas, tem a ver com a
Em qualquer lugar do mundo, e eu já visitei
robótica, a automação nas fábricas. O que nós vamos fazer com a população descartável que cresce
vários países, eu nunca me senti mal. Morei fora
de maneira exponencial? Quem conhece essa população? Adoraria ficar em dúvida. Será que é o
e ouvia: “Você está sentindo falta do Brasil?”.
branco de olhos azuis? O ruivo? Será que é o moreninho? Será que sou eu?
Eu: “Não, estou bem”. Se eu me sinto acolhida
Diva na Igreja Jesus Crucificado, participando de festividades
do Rosário. Belo Horizonte, 2016. naquele lugar, então está ótimo para mim. Essa Um outro tema, que eu acho que a gente precisa abraçar, é a questão da renda básica universal.
Crédito: Acervo Pessoal visão de mundo me ajudou a desenvolver um Não a renda básica universal para pobre, mas a renda básica universal que não discrimina. Tem
respeito muito grande por todas as religiões, autores defendendo que se o Bill Gates entrar na fila para pegar a renda básica universal, ele vai
por todas as conexões com o sagrado. Claro que, ser aceito: “a única condição para acessar a renda básica universal é estar vivo”. Não tem nada de
por algumas, tenho que dizer que tenho meu assistente social ir na casa para ficar olhando: “Será que não tem nada escondido?”, vendo a renda,
pacote de preconceito também. os recibos dos gastos... é uma humilhação para as pessoas. Uma pessoa que recebe uma renda
mensal vitalícia por velhice ou invalidez, ao ouvir a pergunta: “Quantas pessoas tem em sua casa?”
Eu já estive na Índia uma vez, e estava em uma cidade no dia da festa do Senhor Ganesha. Foi
não vai ser obrigada a mentir, a falar que mora sozinha para conseguir aquela rendinha de merreca,
ótimo estar com o pessoal, deram-me comida no jornal e eu comi numa boa. É um pouco como São
igual ao BPC5. A renda básica é fundamental, pois não tem nem vai ter trabalho renumerado, com
Paulo falava: “Eu me passo por grego entre os gregos, romano entre os romanos”. Sou facilmente
carteira assinada, para a maioria da população economicamente ativa. Se nós, povo preto, nos
adaptável e o fenômeno religioso me encanta muito. Primeiro, no nosso caso de povo negro, fico
pensando o seguinte sobre o período de escravização em nosso país: as religiões, o fenômeno da
fé, do sagrado, foram aquela oportunidade mínima de transcendência. Porque aquela imanência
5 Benefício de Prestação Continuada.

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Capítulo 15 - Diva Moreira MOREIRA, Diva; MARTINS, Jessyka; NOGUEIRA, Maria J.

períodos de altos índices de emprego no nosso país ainda ficamos para trás, imagine agora? O direitos humanos. Tem uma jovem pesquisadora brasileira na França fazendo um estudo sobre as
Brasil vai ter o menor crescimento do mundo em 2021. Como é que será a vida da população negra? mulheres negras na luta contra a ditadura. No livro dela tem a experiência da Diva. São múltiplas as
experiências, serão múltiplos os legados canalizados para um rio único, que é a libertação do povo
Diva, Divina, Shiva: vários nomes e um sobrenome.
negro. Isso, para mim, significa a libertação da humanidade.
Quais são os meus legados? Por quais gostaria de ser lembrada? Isso varia conforme o
É possível pensar em um mundo novo, em uma sociedade fraterna, justa, igualitária, com o
público. Pelos chamados de loucos, gostaria de ser lembrada pela luta da humanização dos
povo negro para trás? Com o povo indígena para trás? O único povo para o qual eu não trabalhei
hospitais psiquiátricos. Em relação às mulheres negras, pelo trabalho da Casa Dandara, que é
foram os indígenas. Mas sou amiga de uma liderança indígena espetacular, o Ailton Krenak, e dei
uma experiência fantástica. Eu recebi uma mensagem extraordinária do Adelson, um garoto que
para ele a tarefa de fazer o prefácio do meu livro. Eu não tive experiência nem sei falar sobre os
tinha tudo para dar errado se não tivesse ido para a Casa Dandara. Por que eu falo que tinha tudo
povos indígenas, então a escolha do Ailton, é uma maneira singela de fazer a minha homenagem
para dar errado? Menino negro, expulso da escola, ninguém queria saber dele. E ele foi parar nas
aos primeiros habitantes deste país, vítimas de um sistemático genocídio desde sempre.
mãos da Casa Dandara, nas minhas mãos. Quando foi colocado um documentário sobre mim no
Facebook, ele mandou uma mensagem linda de reconhecimento. Mandou porque está fora do país, Considero-me uma pessoa vitoriosa, que deu certo na vida. Uma mulher negra que deu certo.
chiquérrimo. Um tanto de gente que dava aula de capoeira para nós está fora do Brasil, alguns Quero deixar esse legado em várias áreas do conhecimento, para a luta contra o racismo.
alunos também fizeram carreira internacional com a capoeira, inclusive o Adelson. Ele aprontava
Eu gosto muito de poesia revolucionária, mas de vez em quando, eu gosto de umas poesias
e a gente tinha a maior paciência com ele.
mais suaves. Eu tenho aberto minhas falas, com frequência, com um poema de Bertolt Brecht: “Nós
Para falar a verdade, eu tive vários braços, como Shiva. Vou ser lembrada dependendo do vos pedimos com insistência, nunca digam: isso é natural”. Então, que todas as pessoas possam ter
campo em que as pessoas estejam. Vou ser lembrada de maneiras diferentes pelas mensagens que dúvida em relação a essa realidade que está aí e não achar que ela é natural, que foi uma obra criada
recebo: “Eu não conheço a senhora, mas a senhora é referência na minha vida”. Mulheres negras, por Deus, que não tem jeito de mudar. Sim, tem jeito de mudar. Se cada um de nós fizer um esforço
adultas, um negócio tão bonito, comovente, que nutre a gente. Esse carinho e afeto me ajudam mínimo que seja, no lugar do seu trabalho, no conselho municipal, estadual, onde participar, na sua
a viver. A dimensão da minha fala, da minha história, da minha produção teórica que tem sido casa, na família. Em qualquer espaço que seja, você pode e deve fazer diferença, mesmo que seja
espalhada por esse Brasil, graças a Deus. Tenho falado que eu não posso morrer por enquanto e que pequena, sem perder la ternura, sem perder la esperanza.
tenho que cuidar da minha saúde. Eu tenho que tratar da minha pressão arterial, pois ainda quero
deixar livros de legado. Tenho muitos escritos, totalmente desorganizados. Estou pensando em
deixar uma série de livros publicados. Uma mão de Shiva vai escrever um livro sobre isso, outra vai
escrever um livro sobre aquilo e outras áreas. Eu tenho um domínio muito bom da escrita, que foi
identificado quando eu tinha uns 12 anos, em uns exames psicotécnicos no Instituto de Educação.
Eu tive a oportunidade de fazer um psicotécnico seríssimo, com uma psicóloga dedicada, que
fazia muito mais do que as suas funções requeriam. E foi identificado, naquele período, o domínio
verbal. Quero aproveitar e escrever. Além disso, fiz Latim e Lógica. A Lógica deixa a gente com
um ouvido... Igual tem ouvido para a música, eu tenho ouvido para a lógica da fala da pessoa. Por
exemplo, dar conta de perceber que a pessoa falou uma coisa, mas está deduzindo outra. Penso:
“Uai, isso aí não está na premissa do cara”. O meu legado será pegar toda a experiência que tenho
acumulado em várias áreas ao longo das décadas. Em todas eu me tornei – aí eu ponho aspas –
“especialista” em praticamente tudo que seja do campo das políticas sociais e das questões raciais.
Sou chamada para falar na área da saúde mental, da saúde em geral, da educação, da violência, dos

316 317
16
SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

Renata Souza-Seidl O objetivo destas notas conclusivas, ainda que parciais e incompletas, é indicar as principais
Letícia Godinho regularidades observadas. Entender de que modo testemunham o enfrentamento de dificuldades
e obstáculos que, guardadas suas especificidades, corroboram com a existência de fatores
estruturantes de discriminação sobre a mulher negra, não apenas no trabalho e no contexto da
administração pública.

Antes de nos focarmos no objetivo geral da pesquisa – entender o impacto da participação das
mulheres negras no interior da administração pública na promoção da diversidade, evidenciando
suas contribuições para o Estado e a sociedade em geral e, sobretudo, a busca de políticas públicas
voltadas à população negra – precisamos compreender as condições que tornam possíveis as
trajetórias das biografadas. É importante notar que buscamos aqui apontar para as regularidades

ALGUMAS
desses itinerários, percorridos no contexto de uma sociedade estruturada para seu fracasso
enviesado por um regime de desigualdade racial. Tal regime que, ainda que velado, se desenvolve
mesmo após ter abolido a escravização da população preta, acarreta ao longo de todo o século
XX uma política de branqueamento e hierarquização social, e impede o acesso dessa população

NOTAS
a processos de escolarização de qualidade e às universidades; por fim, comprime a chegada
de mulheres negras em posições socialmente valorizadas no mercado de trabalho, incluindo o
trabalho na administração pública.

Também buscamos as condições ou acontecimentos que lhes tornaram capazes de superar

CONCLUSIVAS
tais estruturas. Dito de outro modo: como essas mulheres negras rompem com a corrente de
imobilidade estrutural, aquela que as tenta manter todo o tempo em condições de submissão e
subalternidade? Seguindo o roteiro de nossa investigação, começamos pelas origens.

16.1. As origens sociais e familiares


Nas histórias das mulheres biografadas, lemos como as origens sociais denunciam a
vulnerabilidade familiar em prover as condições de vida e acesso aos processos iniciais de
As memórias particulares, trazidas em cada uma das biografias deste
escolarização fundamental. Para a superação das diversas limitações, ressalta a atuação de
livro, desvelam, em seu conjunto, uma pequena parte da memória social da
personagens que se tornam centrais nessas histórias: mães e avós, obstinadas em alcançar de
população negra feminina brasileira. As similaridades que nelas podemos
melhores condições de vida para suas filhas. São delas que vêm as estratégias iniciais de resistência,
observar mostram que seus percursos são fruto de suas relações sociais
no contexto familiar. Tais estratégias atualizam os recursos e resistências colocadas em marcha
e, assim, são atravessados pelos marcadores de raça, classe e gênero,
pelas gerações anteriores, que atuaram de forma na promoção de projetos de liberdade para o
retratando experiências de vida e trabalho de outras mulheres negras do
povo negro desde o período colonial.
país.
A biografia dessas personagens, mães e avós, são caracterizadas pelas entrevistadas a partir
das diversas formas de violência sofridas, que incluem desde terem sido vítimas da prática da

318 319
Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

“doação”1, comum no período posterior à abolição da escravidão negra, à sua inclusão precária e infantil, em que a ajuda nas tarefas domésticas se torna obrigação de trazer recursos financeiros
superexplorada no trabalho doméstico: para casa, como nos exemplos abaixo:
A minha mãe nasceu em 1938. Ela é filha de um pai retirante nordestino, que veio do interior Com seis, sete anos me lembro que a gente acordava às quatro da manhã para ir para o enge-
de Pernambuco no pau-de-arara. Naquela época, nas grandes secas do Nordeste, as famílias nho de cana-de-açúcar. Já guiei muito boi na roça. Até os dez, onze anos guiava os bois cheios
tinham o hábito de doar os filhos para outras famílias, para tentar garantir a sua sobrevivência. de cana para levar para o engenho pra gente trabalhar. [...] [Também] trabalhávamos como
Meu avô não aceitou aquela situação e acabou fugindo, bem rapazinho. Foi andando por vários babás dos filhos dos patrões. Eles mandavam um “cavaleiro” que dizia: ‘Dona Juventina, hoje
lugares até chegar aqui em Minas Gerais (Patrícia). nós queremos uma das suas filhas para ficar com o filho do fazendeiro’ e eu era uma dessas
filhas” (Xica).
Minha mãe é uma mulher muito sofrida, não conheceu pai e mãe. Ela é órfã e veio para Belo
Horizonte aos seis anos de idade. […] Ela vivia nos fundos de uma igreja, num orfanato mascu- Nesse período, a gente precisava ajudar na família, cada um tinha que fazer alguma coisa. Eu
lino. Ela se recorda que morava no fundo dessa igreja com uma senhora, que chamava de mãe, ajudava a tomar conta de um bebê, filho da minha primeira professora do primário que era
e era essa senhora quem limpava a igreja, ou seja, era a faxineira2. […] Foi doada, por um padre, vizinho nosso, e a família era de Raul Soares. Então, eu ajudei a tomar conta do filho da minha
a uma família da elite belo-horizontina, que vivia na Avenida Augusto de Lima e eram um dos professora do primário. Eu já estava na faixa de sete para oito anos; o jardim de infância, eu me
donos do Iate clube (Iara). lembro, foi com 5, 6 anos (Maria do Carmo).

Minha mãe chegou em Belo Horizonte com sete anos. Ela vinha de uma família muito pobre,
Um dos elementos característicos das biografias é a luta de mães e avós para garantir condições
que vivenciava a questão da seca, e minha avó mandava as filhas para trabalhar em casa de
família. Ela tentava protegê-las da violência, da fome. […] Quando minha mãe chegou na capi- para a mobilidade social de suas filhas e netas. Trabalharam para criar condições para que as
tal, foi trabalhar em uma casa de uma família bem rica, que tinha muitos filhos e boa parte das gerações seguintes pudessem romper com sua própria trajetória, marcada pela subalternidade.
terras de Belo Horizonte; ela era pequena e tinha que fazer o serviço todo (Larissa).
Constroem, então, para suas filhas, segundo as palavras de Macaé - “planos de emancipação”, os
Esse primeiro marcador trazido da biografia das mães, a necessidade de trabalhar desde quais se mostram a estratégia principal para superar as situações completamente desfavoráveis
a infância, repete-se entre parte das biografadas. Ainda crianças, ajudam nos afazeres da casa; vividas pelas famílias:
muitas acordavam bem cedo para terminar as tarefas antes de ir à escola. Minha mãe desenhou uma trajetória de estudo para as filhas (Nila).
Por diversas vezes, minha mãe precisou fazer comida no fogão de lenha por não ter dinheiro Minha mãe sempre achou muito importante a gente estudar. Ela sempre diz: “São as mulheres
para comprar gás. Às vezes, até mesmo para ir à escola. Por isso, eu levantava cedo, cinco ou é que vão mudar o mundo”. Por isso, ela sempre procurou boas escolas, na medida do possível.
cinco e meia da manhã, para poder cozinhar cará ou mandioca. Eram alimentos mais baratos […] Quantos ônibus lotados minha mãe pegou para eu conseguir acabar de estudar (Larissa).
com os quais nos alimentávamos para poder ir estudar (Cleide Barcelos).
Minha mãe nos incentivou muito a não depender de ninguém. Ela falava: “Não dependam de
O trabalho para ajudar nas tarefas de casa, pedagógico, aqui se configura como necessidade, ninguém, muito menos dos homens para sobreviver, para comprar um shampoo, um absorven-
te. Então, estude, faça um concurso público” (Patrícia).
que se mantém no percurso das mulheres já adolescentes e adultas – em sua grande maioria, vão
para a escola ou para a universidade, depois do trabalho. Há relatos graves de inserção no trabalho Mesmo com todas as dificuldades que a gente tinha para estudar, minha mãe sempre que pôde
tentou me colocar em escola particular. Mas depois acontecia que não tinha jeito de pagar,
aquela coisa toda. Por isso, mudei muito de escola ao longo da vida estudantil, mas sempre
com essa perspectiva de que eu ia fazer faculdade. Acho que isso fez toda a diferença. Fico
relembrando as pessoas com quem eu convivia, que tinham como horizonte se formar no se-
1 Nesses casos, as mulheres negras pobres eram instigadas a serem “doadas” para outras famílias, geralmente gundo grau, no máximo. E para mim, não era o suficiente (Daniela).
brancas, em função da pobreza e das dificuldades familiares. São processos conhecidos como “adoção de má fé”,
[Minha mãe] recomendava: “Vocês, mulheres, vão estudar, vão arrumar um emprego, porque
em que se “pega a criança para criar” para proporciona-lhe “um lar”, mas na realidade escondem o oportunismo de
no dia em que vocês se casarem e o homem levantar a mão para bater em vocês, mandem ele
adquirir meninas e adolescentes, normalmente negras, para a exploração do seu trabalho. Segundo Rousiley Maia e
‘sair vazado’, mandem ele embora, porque vocês conseguem sobreviver sozinhas, não preci-
Daniela Cal (2012), esse “cuidado em troca de trabalho” tem valor instrumental para as patroas, no sentido de que
sam dele”. E completava: “Perdeu o respeito, mandem embora!”. Hoje, eu falo com ela: “Mãe,
as liberaria da realização das tarefas domésticas sem valor social. Além do trabalho doméstico, também era comum
eu estou trabalhando com prevenção à violência doméstica e sempre lembro do que a senhora
agregar às responsabilidades das meninas o cuidado de crianças e bebês. Por fim, além das meninas realizarem o
falava com a gente” (Cleide Barcelos).
trabalho doméstico, em alguns casos, tem-se a expectativa de que satisfaçam os desejos sexuais dos homens da casa,
em que força de trabalho e corpos são entendidos como propriedades particulares – uma mentalidade que sobrevive
A educação é o meio vislumbrado pelas mães para superar os destinos sociais impostos
no século XXI.
2 Depois de muitos anos se descobriu que a faxineira era, na verdade, sua mãe, e o padre, seu pai.
à população negra e, portanto, objeto central de seus planos. Além disso, parece-nos relevante

320 321
Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

também o papel jogado pelos diferenciais cognitivos que muitas dessas mães possuíam. Face às 16.2. O percurso escolar
limitações que as afetam, promovem o acesso a livros e ao conhecimento, recursos fundamentais.
O percurso escolar é marcado por dimensões que se interseccionam. Na escola, o racismo
Quando eu já estava no Ensino Fundamental, minha mãe tinha estudado até a terceira série,
no interior. Quando eu já estava na juventude, ela voltou a estudar. Na época do meu Ensi-
estrutural, antes não percebido de forma explícita, agora é sentido na pele, e demanda outros
no Médio, passou em um concurso da Universidade Federal de Minas Gerais para o cargo de esforços materiais: não apenas para comprar livros, passagem, lanche, mas também para “adequar”
Auxiliar Operacional de Serviços Diversos. Conseguiu ter um emprego público que deu uma suas roupas e cabelos – investimentos caros, feitos em situações precárias. A dificuldade para as
melhor sustentação financeira para nossa família. Após ingressar na UFMG, resolveu estudar.
Fez o curso de Auxiliar de Enfermagem e depois o curso de Técnico de Enfermagem. Com isso, crianças negras e pobres de entrar na escola pública, explorada no relato de Macaé Evaristo, entre
pôde ter uma mobilidade na carreira de técnica administrativa na universidade e, quando se outros, constitui importante limitação ao processo de democratização não só do sistema de ensino,
aposentou, ocupava o cargo de Auxiliar de Enfermagem (Yone).
pois restringe o acesso a outras esferas sociais. O depoimento de Maria do Carmo traz elementos
Minha mãe, Maria Antônia Cesária Evaristo, é professora formada no Magistério de nível mé- importantes nesse sentido:
dio. Estudou com muita dificuldade. Encontramos uma foto dela na escola primária; é a única
menina negra da turma. Ela fez o magistério em Pará de Minas, único lugar onde foi aceita Naquela época, a gente fazia o exame de admissão; os pobres tinham que passar por esse pro-
- porque, naquela época, mesmo que meus avós estivessem pagando seus estudos, algumas cesso e você tinha que estudar muito, porque senão não conseguia as bolsas de estudos. Então,
escolas não aceitavam pessoas negras. Minha mãe persistiu muito e nós todas estudamos. To- desde aquela época, você tinha que provar que era bom. E, muitas vezes, a gente não tinha o
das têm formação de nível superior, e duas, mestrado. Cumprimos o roteiro que a minha mãe dinheiro para poder fazer as provas. Às vezes, quando você se destacava um pouco, tinha pro-
planejou para nós, de termos nosso trabalho, sermos donas do nosso nariz, tocar nossa vida fessores que te ajudavam nesse sentido. Eu me lembro do meu irmão caçula querer fazer a pro-
(Macaé). va e chorar, porque não tinha como a gente pagar. Eu fiz com a ajuda de uma professora. Uma
professora negra, que era pianista já naquela época, nos anos 1960. Foi graças a ela que eu
A figura do pai possui características menos estanques nas biografias estudadas. Em parte consegui fazer o meu exame de admissão. É sempre uma história assim, de um ajudar o outro
[...]. Me lembro que, ao passar para o científico, eu ia muito nas rádios para poder pedir livros
delas, a luta das mães pela educação das filhas se dá contra sua vontade; em outras, contudo, […]. Tinham aqueles livros que você não dava conta nunca de comprar […] Sempre batalhei,
aparece não apenas o fomento aos estudos, mas também é evidente o papel que joga na formação como tantos colegas da minha época, a gente corria muito atrás do prejuízo. Se você quisesse
de uma consciência política precoce em boa parte das filhas: vencer, tinha que ter alguém que fosse com sua cara ou alguém que descobrisse que você tinha
talento. […] E a gente precisou de muita ajuda para poder estudar. Tanto é que apenas eu, entre
Meu pai também só estudou até o quarto ano “de grupo”, mas gostava muito de ler. Lia livros os irmãos, consegui fazer o curso superior (Maria do Carmo).
e jornais todos os dias, inclusive aos domingos. Naquela época, tinha o Jornal Diário da Tarde
e, aos finais de semana, o Estado de Minas, que líamos juntos. Ele é um dos responsáveis pelo Para várias dessas mulheres, a vaga para estudar estava disponível somente à noite, por
meu hábito de leitura. Falava uma coisa da qual eu nunca me esqueci: que se pudesse, teria
imposição das instituições, revelando uma segregação racial mascarada, a exemplo desta passagem
estudado Geografia. Até hoje, ele lê muito e tem um conhecimento do mundo, uma posição
política que construiu por si próprio (Patrícia) na história de Patrícia Santana: “Quando fiz 13 anos, fui transferida equivocadamente para o turno
De certa forma, também seguimos a tradição do meu pai, de ter um engajamento na luta an-
da noite. Não era para estar na escola à noite com 13 anos de idade, era para estar de manhã”.
tirracista. Para a gente, esse sempre foi um debate fundamental. Meu pai, Osvaldo Catarino Outro exemplo do racismo nas instituições é sublinhado por Maria do Carmo:
Evaristo, era autodidata, aprendeu várias coisas sozinho: lia muito, pintava e fazia esculturas.
Quando você vai crescendo, você vai vendo que não é bem assim. Você percebe que a forma de
Participou das aulas de artes livres dentro do parque municipal e também chegou a escrever
tratamento tem um significado […]. Eu era doida para fazer balé e tocar piano. Aí recebi toda
no Jornal Estado de Minas. […] Foi militante do movimento negro em Belo Horizonte, partici-
forma de desistir: que as mãos eram pequenas, que não dava para eu tocar piano; que piano
pou da Associação Cultural José do Patrocínio, uma das primeiras associações negras daqui
era caro; que balé era só para os filhos de quem podia. […] São sonhos de infância, que depois,
(Macaé).
ao longo da vida, você vai vendo as retaliações [ao longo da vida]. […] “Olha, esse aqui não é o
A minha família, especialmente meu pai, mas a minha mãe também, era muito engajada no seu lugar” (Maria do Carmo).
quesito conhecimento, reforçando a necessidade de estudar. E era, muito marcadamente, ver-
balizado com relação à cor da pele. Meu pai não dizia com todas as letras sobre a questão do Apesar de alavanca fundamental para a mobilidade social, a escola é também um espaço
racismo, ou do racismo estrutural, mas ele dizia: “Você precisa se achar bonita e você precisa tradicional, de manutenção das estruturas. Os relatos indicam a solidão da criança negra ao acessar
estudar. Porque você precisa ser melhor do que qualquer pessoa. A concorrência está dada e
você será muito cobrada”. Ele estava tentando me dizer que eu ia enfrentar uma série de racis- as escolas, sendo esse mais um marcador no percurso das meninas negras:
mos ao longo da vida. (Iara).

322 323
Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

Da mesma forma que minha mãe, minha vivência escolar foi bastante solitária, do ponto de A escola é a porta da inserção social para o mundo do trabalho e, como tal, o estereótipo
vista da presença negra na escola. A maioria das crianças que frequentava a escola era de fa-
vai se verberar no ambiente do trabalho. A adoção do padrão de beleza branco é condição para a
mílias brancas. Ser uma criança negra na escola é difícil. Você vai ser chamado de “cabelo de
bombril’’ (Macaé). aceitação social e inserção nas organizações de ensino e também do mercado de trabalho, como
Eu percebia que era negra e que era discriminada, desde pequenininha. Na escola primária fui veremos adiante. A aparência se torna mais um recurso de poder e de dominação, que inferioriza
discriminada, e comecei a matar aula. Olha o fenômeno de matar aula, a evasão escolar, por o fenótipo negro – tema que comparece em todas as biografias deste livro.
causa de discriminação racial. Uma vez estávamos em roda, no momento da recreação; ao meu
lado tinha um guri branco, e eu tinha que levar minha mão para que ele segurasse na minha
e ele não aceitou. E a roda não rodou, porque ela estava quebrada num lugar. Aí, claro, todo 16.3. A formação universitária: o sonho, o racismo profundo e a
mundo olha e vê uma guria negra com a mão pendurada e o guri branco ali ao lado dela. Para transformação
ele era um ato vitorioso. Ele sabia desde pequeno que seria vitorioso na vida. Isso me marcou
muito, essa roda que não se fechou (Diva). O desejo e a perspectiva de estudar esteve presente em todas as narrativas das mulheres
Eu me lembro de uma aluna minha, que de tanto a mãe alisar o cabelo dela, o couro cabeludo da biografia: o sonho é expresso na chegada bem cedo à escola primária, em tirar as melhores
chegava a ferir. Na quadrilha da escola, ninguém queria dançar com ela. Esse episódio me fez notas para se sentir pertencente e mostrar seu valor, tornar-se líder da turma e movimentar os
lembrar um pouco de mim, porque foi assim que aconteceu comigo. Além dos meninos não
dançarem comigo, eu tinha uma trança muito grande e a professora falava que minha cabeça estudantes. A universidade é o lugar de chegada do percurso escolar. Para muitas, a universidade
não tinha formato para colocar chapéu. Então, eu nunca fui escolhida para dançar quadrilha. foi um universo a ser descoberto, dado que não vivido pelos seus próximos:
Ficava morrendo de vontade e não entendia que já era vítima de racismo. Entre as meninas
negras, poucas conseguiam ser escolhidas (Cleide Hilda). Antes de ir para faculdade, eu estava decidida, por causa da necessidade, a ir para o corte de
cana em São Paulo, onde a gente tinha vários conhecidos (Maria do Carmo).
Os relatos destacam o papel importante das professoras – sobretudo em sua identificação Chegar à universidade foi um divisor de águas para mim, devido a tudo que ela proporcionou e
com aquelas que eram negras: eu aproveitava tudo: debates, cursos. Fui monitora de Sociologia do ciclo básico, uma oportu-
nidade acadêmica boa. Depois, engajei-me no projeto de educação para adultos na Faculdade
Eu adorava a professora da primeira série. Era uma professora branca que recebia todas as de Engenharia, que tinha bolsas, tudo para complementar a renda (Patrícia).
crianças na porta da sala e dava um beijo e um abraço [...]. Também me lembro de outra profes-
sora à qual tinha uma admiração muito grande, de Português, negra e casada com um interven- O curso em si, me atendia pouco; então, fui fazer estágio fora, iniciação científica, vários proje-
tor da escola. Ela foi a responsável pelo meu gosto pela leitura, incentivava-me a ler (Patrícia). tos de extensão, para tentar entender como a Psicologia poderia me ajudar para além daquilo
que me estava sendo apresentado, para além do Freud, do Skinner e do Lacan. E foi muito
Contudo, um traço também evidenciado foi o posicionamento de parte das professoras, ao bom, acho que fez uma grande diferença uma formação que extrapolava um pouco o currículo
(Daniela).
contribuir para a naturalização do racismo entre as crianças:
No final do 3º ano, eu ia fazer vestibular, mas não tinha muita referência de cursos. Adolescen-
No geral, as professoras não faziam nenhuma intervenção. E quando faziam, diziam assim:
te negra, a gente não era estimulada a pensar nesse ingresso na universidade, no curso que
“Por que você está achando ruim? Você é nega mesmo!”, legitimando o algoz. É um processo
ia fazer. Não tinha esse estímulo e não tinha nenhuma referência familiar. […] Em 1981, eu
difícil para uma criança operar isso, dar conta de elaborar essas situações (Macaé).
ingressei na UFMG. Comecei estudando à noite e fui abrindo caminhos. Na universidade, era
tudo muito diferente do que eu vivia. […] Para mim, foi muito interessante e desafiador, porque
O racismo na escola está relacionado à formação da autoestima das mulheres, de suas eu gostava de ler, mas Durkheim, Marx, Weber era um tipo de leitura que eu não tinha (Yone).
identidades. Uma das dimensões mais simbólicas do racismo, para além da cor da pele, é o cabelo
das pessoas negras. No ambiente da escola, o cabelo está relacionado a vivências muito peculiares, As narrativas trazem também os sentimentos da dúvida, e apresentam o momento do
que negam a natureza humana da pessoa negra. Transformar os cabelos, na tentativa de pertencer encontro da mulher negra com as ideias protegidas pelas redomas da classe média branca:
ao ideal da branquitude implica introjetar o racismo, inferiorizar o cabelo natural crespo. Estar numa faculdade pública era a coisa mais fenomenal do mundo. Eu não queria luxo ne-
nhum! [...] Eu tinha um amigo na universidade, o Cris, que falava que queria ser doutor. Eu não
Nesse período, eu alisava o meu cabelo e ele, os fios começaram a cair. Com isso, minha mãe me entendia o que era ser doutor. Quando entrei para a faculdade, não sabia que existia mestrado
levou para cortar o cabelo. Só que a pessoa que cortou, fez uma coisa que deixou ele ainda mais e doutorado. Minha questão era formar rápido e começar a trabalhar, porque sempre tive mui-
estranho do que estava. E depois do corte, eu fui para a aula, mas quando cheguei na escola, ta consciência de que o que vivia já era muito, em termos de poder (Daniela).
o professor foi o primeiro a fazer piada do meu cabelo, e foi assim, devastador. Depois disso,
após o episódio, eu saí da aula e raspei a cabeça, e fiquei muitos anos usando o cabelo raspado
(Larissa Borges).

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Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

Nos relatos de grande parte das mulheres negras aqui biografadas, acessar o ensino superior O enfrentamento não é apenas contra as próprias inseguranças, mas também contra a
significou ser a primeira ou a única de uma geração. Nesse sentido, o diploma simbolizava a naturalização das expectativas do grupo sócio racial ao qual pertencem, como exemplifica Nila:
chegada de toda a família, de toda uma linhagem desprovida dessa conquista – pois esse era o Quando eu e minha irmã fomos para o cursinho, algumas pessoas falavam assim: “Olha, isso
lugar do patrão, dos brancos. não é para gente igual nós, que nascemos nesse bairro. A gente tem que trabalhar. Tal pessoa
ganha muito bem, trabalha na padaria. Eu parei de estudar. Cê vai fazer vestibular?!” (Nila).
Fui a primeira mulher na família a ter um curso superior, isso foi uma glória para os meus
parentes, meu pai fazia questão de falar dentro do ônibus: minha filha está formada! (Cleide Muitas das mulheres desta biografia se engajam em movimentos políticos, sobretudo o
Hilda)
movimento negro e o movimento de mulheres negras, sendo esse um processo ocorrido junto com
Eu entrei para universidade em um período em que sequer existiam cotas. Mas para eu ter en-
a vivência com a universidade e transformador:
trado, quantas e quantas pessoas negras ficaram de fora? Eu saí da universidade em 1970. Cin-
quenta anos atrás. Se tivessem mais Divas Moreiras na faculdade, naquele período, cinquenta Uma coisa é a gente ter consciência da discriminação e da diferença. Eu tive desde pequenini-
anos depois, ou trinta anos depois, que diferença faria! Eu virei este ser meio exótico por causa nha. O cabelo, a cor, a discriminação racial, o social. A discriminação por não ter pai, isso era
de uma sociedade racista. Não fosse isso, minha trajetória não seria tão rara. Teríamos mais muito forte naquele período. Uma coisa é esse tipo de consciência, que é muito preliminar,
mulheres negras que deram certo na sociedade mineira (Diva). precária, muito primitiva ainda. Outra coisa, é a consciência política. É um salto, é fantástico!
Esse é o papel que eu acho decisivo, muito importante, dos movimentos políticos e sociais
Na minha geração, fui a primeira pessoa a ingressar na universidade. A primeira a fazer gra-
negros (Diva).
duação, a primeira a tirar carteira de motorista, a primeira a entrar na pós-graduação, a pri-
meira, primeira, primeira! Isso acaba sendo uma marca que eu carrego, para bem e para o
A afirmação da identidade da mulher negra é um processo complexo, cujo início pode
mal. Minhas conquistas eram vitórias para meus pais, mas também para a família. Quando me
formei no ensino médio […] Me lembro da família toda lá. […] Na graduação, da mesma forma. ocorrer dentro da própria família, constituidora das primeiras formações cognitivas sobre as
No mestrado e no doutorado, o núcleo familiar mais próximo estava lá junto comigo. Para mi- pessoas, a comunidade e o mundo. Algumas famílias negam o racismo, como forma de romper
nha família sempre foi motivo de muita alegria ver uma filha, sobrinha chegar nesse lugar de
doutora (Yone).
o pertencimento a um grupo inferiorizado e alcançar alguma mobilidade social. Contudo, a
convivência social e inter-racial, em lugares predominantemente ocupados por pessoas brancas,
Fui a primeira da minha família a fazer uma faculdade pública, eu tive essa sorte. Na época,
tinha que ser universidade pública mesmo. Não tinha Fies [financiamento público]; a universi- como o ambiente universitário brasileiro, revela o racismo de maneira chocante para muitas delas,
dade particular era muito distante para mim. Entrei na UFMG em 1999 e não havia cotas ainda. conforme defende Nila: “Eu me identifico como mulher negra, e o que me fez ser uma foi o racismo.
[...] Na minha sala, éramos 4 alunos negros, sem nenhum debate racial, durante todo o meu
Na escola, foi lá que me disseram que eu não era branca”.
curso, muito diferente do que é hoje (Daniela).
Daniela e Magda tocam no tema do colorismo, ou do lugar fluido ocupado pela mulher negra
Contudo, para além da capacidade intelectual, são muitos os percalços até a obtenção do
mestiça, dado que seu estereótipo decepciona o imaginário da mulher negra:
diploma. Após o acesso à universidade, são necessários muito investimento e estratégias para
sobreviver e concluir o curso: Eu sempre me considerei uma mulher negra, mas tive alguns problemas dentro do movimento.
Antes eu já percebia, mas quando eu comecei a participar das coisas, me inteirar dos assuntos,
Me mudei para o São Gabriel, um bairro de difícil acesso e eu já estava no curso superior, no aí comecei a perceber algumas coisas que abalaram um pouco a minha identidade [...] quando
período noturno, muito pesado e difícil. Tinha que trabalhar de dia para pagar os xerox e as as pessoas começaram, de uma certa forma, a falar do meu cabelo e do meu nariz” (Magda).
passagens (Patrícia).
Sou filha única de uma mulher negra e de um homem branco. Isso é algo importante da minha
Eu estava estudando, fazendo a faculdade, meu curso demorou muitos anos para acabar. Como trajetória, porque o lugar da mestiçagem me confundiu, muito, sobre a relevância da pauta
não tinha dinheiro, fazia um semestre e trancava o outro, e eu fui vivendo de estágios (Larissa). racial em minha vida (Daniela).

Como eu pagava naquela época? […] Tomando empréstimo no banco. Me avalizavam para po-
Ao se aproximar dessa identidade, as gestoras expressam a dor da consciência desse lugar,
der pegar empréstimo no banco. [...] A roupa que eu tinha era a roupa que eu ganhava para
poder ir para faculdade. Aí, quando eu já fazia faculdade, às vezes, dividiam comigo o lanche. mas também do encontro com sua autoestima, o processo de empoderamento, a alegria de se
Então me descobriram indo a pé e falaram: não, nós vamos ajudar você a ir de ônibus (Maria libertar dos estereótipos da branquitude:
do Carmo).

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Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

Eu e minhas irmãs paramos de alisar e íamos ao salão black para fazer cortes diferentes. Co- 16.4. Vida profissional
meçamos a gostar e não nos víamos mais de cabelo alisado. Pouco depois, comecei a participar
do movimento negro e encontrei um espaço de reafirmação de tudo aquilo que já estávamos Como já argumentamos, o traçado dessas trajetórias profissionais implicou, quase que
vivendo sozinhas. Tinham as tranças, os coques para cima e tive a possibilidade de ser assim
também. Nas oficinas, a gente conversava muito sobre autoestima e a importância de se assu- invariavelmente, em conciliação entre o trabalho diurno e o estudo durante a noite. A grande
mir como é (Patrícia). maioria das mulheres desta biografia coletiva forjaram suas primeiras experiências profissionais
Quando batizei [no candomblé], tive que ficar certo tempo usando só branco, Ojá na cabeça, aliadas à formação universitária e continuada. Além disso, é presente a dupla ou mesmo a tripla
ficar de Guia, de Contraegum, um monte de coisas. E lá vou eu para Assembleia Legislativa, jornada, pois não são apenas delas o esforço, mas também de outras mulheres da família – irmãs
onde trabalho, toda parafernada de coisas. Para mim não teve nada melhor, mas se fosse há
um tempo, talvez sentiria constrangimento. Hoje me dá uma satisfação e orgulho de falar: “Eu
ou mães – para garantir o cuidado de suas filhas e filhos. Por fim, boa parte delas se envolve na
posso estar nesse espaço. Mereço estar neste espaço e não quero esconder nada”. Mas também militância, justamente para lutar por melhores condições de vida e dignidade para si e seus pares.
entendo que é um privilégio, pois se tivesse outra formação, não poderia fazer isso. [...] não
poderia sequer ir com uma conta dos meus guias para o trabalho (Daniela). Ressaltamos também o fato de possuírem variadas formações: todas possuem graduação, e
várias o mestrado e o doutorado. Acumularam experiências profissionais diversificadas e vastas.
O desenvolvimento desse processo perpassa o perfil e a formação para a vida profissional:
Portanto, se considerarmos seus atributos individuais, fundamento da ideia de meritocracia, o
tem a ver com “aprender a ler o ambiente”, estar à espreita de qualquer oportunismo, de se defender
acesso aos postos de trabalho na gestão pública não deveria demandar percorrer trajetos tão
com palavras e inteligência, e de propor a defesa de seus próximos. No contexto dessa discussão, a
insólitos, tais como os recontados. No entanto, nem mesmo o fato de possuir qualificações extras
condição da mulher negra relativiza a ideia de uma pauta feminista universal capaz de abarcar as
ao exercício da função ou, muitas vezes, superiores à de seus pares profissionais, livraram-nas de
necessidades de mulheres brancas e negras ao mesmo tempo. As narrativas a seguir resumem essa
sofrer discriminação no emprego e constrangimentos cotidianos nas relações de trabalho.
perspectiva, que alcança o mundo do trabalho, que trataremos na seção a seguir:
Às vezes, as pessoas questionam muito essa coisa do feminismo negro: “Não é tudo feminis- Tais situações envolveram, por exemplo, preconceitos e estigmas associados à condição de
mo? Não está todo mundo no mesmo barco? A gente vive em uma sociedade que é patriarcal”. mulher, como nas recontadas por Magda e Patrícia:
Mas não. Porque as lutas feministas têm pontos comuns, mas também têm pontos divergentes.
Então, quando a gente fala de feminismo, é sobre o lugar que a mulher ocupa no mercado de É muito difícil, para a mulher, ocupar um lugar de gestão em um ambiente predominantemente
trabalho, nas academias e de uma meritocracia que não existe, teoricamente. [...] As poucas masculino. Eu tinha toda uma preparação com o que era exigido para o cargo: a formação, as
que estão gerindo são mulheres brancas, enquanto há uma mulher negra que está limpando a pós-graduações necessárias, as outras disciplinas que eu tinha feito no mestrado voltadas para
casa dela. E isso não tem nada a ver com a questão do tipo do trabalho. Eu acho que a emprega- gestão. E a experiência também; já tinha oito anos de serviço público na área da segurança
da doméstica, as faxineiras, os serviços gerais, as portarias todos trabalhos altamente dignos e pública. Já conhecia a unidade, o fluxo do trabalho, os presos, participava ativamente. Então, a
necessários. Mas essas mulheres não estão ali por uma opção, mas porque foi o que sobrou do gestão em si, os processos administrativos, eles não configuraram um desafio. Desafio mesmo
feminismo. [...] O machismo e o patriarcalismo incidem de forma diferente na mulher branca e foi lidar com as questões de gênero inerentes ao ambiente da segurança pública. Fui tirada da
na mulher preta. A loura é gostosa e burra, a negra é gostosa e guerreira. Mas guerreira nesse direção, à época, e substituída por um agente penitenciário sem formação alguma. Um homem.
sentido não é propriamente um elogio. Por detrás significa que essa mulher, muitas vezes, tem [...] Dentro da segurança pública, os homens olham para a gente como se a gente fosse um
que dar conta de trabalhar, sustentar os filhos sozinha, cuidar dos pais, dos netos, viver a vida “bife”. É uma mulher, é “comível” (Magda).
difícil (Magda).
Eu resolvi me candidatar à diretoria da escola, junto com outra colega, uma professora negra.
Fui me identificando primeiro a partir da literatura, ao ler Conceição Evaristo, Toni Morrison, Foi um processo bem difícil, a gente sofreu racismo e toda forma de preconceito e discrimina-
Alice Walker... Lembro que quando li “O Olho Mais Azul”, falei: “gente, ela está perto de mim!”. ção. Sobre essa colega que se candidatou comigo, até o fato de ela ter cinco filhos foi levado
Fui lendo mulheres que falavam de uma complexidade, dos atravessamentos de gênero e raça, para os debates: “Como uma mãe de cinco filhos daria conta de ser diretora de uma escola?”
e da relação com os homens negros também. É como se eu fosse descobrindo a minha comuni- (Patrícia).
dade. Aí descobri bell hooks, parece que eu sou amiga da bell hooks! E ela tem uma escrita que
não é rebuscada por academicismos, é supercriticada por falar da experiência dela o tempo Aparece como um traço comum a naturalização do “ser mulher”, relatada por Patrícia, de
todo. Mas quando fala, eu penso: “é isso!” O conceito de ser insubmissa é tão interessante, me seus atributos e de suas (in)capacidades para o trabalho. Decorrente dos estigmas concatenados
deu uma série de recursos que, aí, me fizeram aproximar de um feminismo, que é o feminismo
negro. Mas também não acho que o feminismo negro seja universal. Tem que existir o feminis-
ao feminino, os trabalhos mais valorizados socialmente são “naturalmente” associados não a esse
mo negro e tudo o mais! (Daniela). gênero, mas ao masculino. As biografadas também relatam com frequência o não reconhecimento

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Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

de suas potencialidades, o que é reforçado por uma prática corriqueira nas relações de trabalho, Na minha trajetória profissional, tive três promoções em três anos. Foi tudo muito rápido. Mas
comecei, nesse movimento de ascensão, a viver muitos conflitos. As pessoas falavam que eu
em que um homem lhe rouba o crédito de uma ideia3, como no relato a seguir:
era muito brava, que era muito nervosa, muito isso, muito aquilo. “Você é competente, mas...” e
A gente está falando e os homens passam por cima. Primeiro você fala, ninguém dá ouvidos. eu não entendia o que era aquilo. Então comecei a ler livro de gestão, de como evitar conflitos,
Passam dois minutos, um homem fala e: “Nossa que ideia original!”. Ou a pessoa vem contar aquelas coisas de autoajuda. E continuava sem entender. Foi quando assumi um [outro] cargo
para você a ideia que você mesma deu, como se fosse dela, achando o máximo (Macaé). [...] [e] ocupei o lugar de uma mulher branca. Quando foram dar a notícia para ela, na minha
frente, ela me olhou de um jeito... do tipo: “Não acredito que é você que vai me substituir”. Acho
A ausência de legitimidade nos espaços não ocorre apenas porque são tradicionalmente que ficou ofendida. A maneira como essa mulher me olhou deu uma sensação muito literal de
que vários dos conflitos e do mal-estar que eu vivia tinham a ver com estar ocupando lugares
masculinos, mas brancos, o que leva, inclusive, à necessidade de trabalhar mais e melhor para que não atribuíam a mim. Que as pessoas não queriam estar subordinadas a mim (Daniela).
obter legitimidade. As narrativas ainda deixam evidente quão corriqueiras são as situações e o
modo como não apenas os homens, mas as pessoas brancas em geral, buscam ocupar os espaços Assim, a vivência cotidiana do racismo no ambiente da gestão é profundamente marcada
na organização. A dominação branca e masculina no cotidiano do trabalho assume variadas formas pela questão da corporeidade negra: “Corpos negros não pertencem à paisagem” (Macaé). Ser “a
de manifestações e privilégios, sendo suas formas de agir as normalizadas: única pessoa sem um cargo de chefia naquele departamento” (Nila) é algo trivial. A invisibilidade
e o não reconhecimento de seu status profissional se manifestam, assim, de modo tão explícito
[Eu era] uma mulher preta conversando com secretários brancos, querendo mais recursos
para a secretaria. Cheguei a uma reunião e, desrespeitosamente, um deles estava lendo alguma quanto velado. “Ausência na paisagem”, versão de expectativas muito baixas ou estereotipadas,
coisa e lendo ficou. Escutou alguma coisa que o desagradou, que tinha a ver com o orçamento esses racismos explícitos são algumas das formas exemplificadas nas narrativas abaixo:
curto da secretaria. Ele ficou indignado e deu uma resposta grosseira, com o dedo em riste na
minha cara. Repito: dedo em riste! (Diva). A sociedade nos enxerga somente nos bastidores – na cozinha, como benzedeira, na assistên-
cia social e nas funções de cuidado e de limpeza. Quando você vai às secretarias de governo,
[Quando assumi a prefeitura] Teve casos de dizer que “lugar de negro é na senzala”, que “lugar dificilmente vê negros em setores como planejamento e finanças. De dez pessoas em funções
de mulher é na cama, na cozinha”. Todos esses conceitos e preconceitos enraizados afloraram burocráticas ou de chefia, somente uma é negra. Na minha primeira equipe, dos dez funcioná-
nesse período e, principalmente, pelas famílias tradicionais. Sempre perguntavam: “cadê o rios da Gerência de Segurança Alimentar, somente eu era negra (Xica).
prefeito?”. Quando me viam, era um “toco preto”, diziam. Também falavam que eu “só tomaria
posse se não houvesse homem na cidade” – para isso, foi necessário chamar o reforço policial Eu era a única pessoa sem um cargo de chefia naquele departamento [...]. Em muitos momen-
(Maria do Carmo). tos, eu tinha tudo que eles queriam: era formada em História, tinha experiência em educação,
trabalhava com periferia e juventude... mas sempre tinha uma mulher branca que entrava no
Quando cheguei, fui bem acolhida pelos meus colegas técnicos, muitos já me conheciam por meu lugar, sem experiência alguma (Cleide Hilda).
causa da atuação sindical; mas tive uma rejeição muito grande dos docentes. Além disso, a
presença de pessoas brancas em lugares de mando era muito maior. Estavam acostumados a Não pensavam que eu estava lá por competência técnica, mas sim porque era filiada a partido.
fazer as coisas do jeito que queriam. Na gestão de pessoal, uma parte grande das atividades Estranhavam muitíssimo quando eu falava que fazia doutorado, levavam um susto: “o quê,
eram normatizadas; muitos não gostaram [que eu aplicasse as regras], achavam que eu que você faz doutorado?” (Yone).
queria mandar e não que era a norma. A leitura que eu fazia desse comportamento era que,
Quando assumi o cargo de Superintendência, eu tinha várias agendas na Cidade Administra-
como eram em sua maioria homens, brancos e ricos, sempre mandaram. E, de repente, chega
tiva, recebia muitas autoridades e, com algumas delas, o racismo foi latente [...] Chegava na
uma mulher, negra e pobre para mandar (Yone).
sala, ia para a mesa para fazer a abertura da reunião e uma pessoa perguntava: “Que horas
vamos começar? A Superintendente virá?”. Mesmo estando escrito na pauta da reunião o meu
A prerrogativa branca e masculina se relaciona a outro aspecto importante, o de estar à nome, “Iara Viana”, no e-mail do convite [...], eu chego, me apresento, “Meu nome é Iara Viana,
vontade com relação à sua aparência. As narrativas mostram como as mulheres negras são mais sou Superintendente…”, [mesmo assim] vinha a pergunta: “A Superintendente não virá”?. Eram
cobradas tanto esteticamente quanto em termos de atitude e postura; e, portanto, como essa perguntas recorrentes, materializando o racismo institucional. [...] [Depois], quando termino a
minha fala, as pessoas têm a necessidade de vir dizer: “Nossa, como você fala bem, que bacana,
consciência e construção é árdua e exaustiva para grande parte delas: fiquei encantada de ouvir você falar”. É como se a expectativa fosse tão baixa, que qualquer
frase que eu falasse certinha já seria uma grande novidade. É assim: “É tão impressionante
você estar neste lugar e ainda falar bem”. Como se não pudessem caminhar junto a cor da pele,
o gênero e o falar bem – isso é inaceitável aos olhos racistas (Iara).

Os excertos acima assinalam a existência de impedimentos variados não só no acesso ao


3 Essa prática é conhecida pelo termo em inglês bropriating, que em tradução livre, significaria apropriação por trabalho e à alçada de posições mais altas nas organizações, mas a um exercício íntegro e não
um “cara”.

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Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

violento de suas funções no cotidiano do trabalho. Tais barreiras são constituídas, em grande Em coisas mínimas, esbarrávamos em limitações. Elaboramos um plano que ficou na mesa,
porque só tinha um advogado. Quase perdemos, juridicamente, a criação da Comissão de Po-
parte, de práticas visíveis e concretas, somadas àquelas impalpáveis e naturalizadas pelo racismo
vos e Comunidades Tradicionais e a criação do Plano de Igualdade Racial para Povos e Co-
institucional. Essas barreiras estão configuradas de tal modo que quanto mais prestigiosas sejam munidades Tradicionais. Se não fosse o setor jurídico da Secretaria de Estado de Desenvolvi-
as posições que elas pretendam ocupar, tanto menores se tornam as chances de as ocuparem. mento Agrário (Seda), tínhamos morrido na praia. Outro episódio foi a comemoração do 20
de novembro no Palácio do Governo, quando foi entregue um documento para a criação da
O racismo institucionalizado se concretiza nos próprios mecanismos que existem para reagir Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais. Eu era provavelmente a única Subsecretária
de Igualdade Racial naquele momento, e não tive o direito a ir ao palco, não me convidaram. Eu
a ele, tais como denúncias e processos judiciais já previstos formalmente na legislação, de forma não entendi, ninguém entendeu e quando me perguntaram, respondi: "A gente continua sendo
que não sejam levados às vias de fato: invisível aos olhos do poder e eles nunca vão achar que nós temos a capacidade e a competên-
cia de ocupar qualquer lugar, por mais brilhante que você seja" (Cleide Hilda).
A gente chegou a denunciar; há processos de racismo a que deu entrada. Mas, na época, a “per-
cepção” das autoridades era de que não se configurava racismo. Era mais fácil colocar como 16.5. No interior da burocracia: atuação e construção de políticas de
calúnia, ou então arquivar, “deixar quieto” (Maria do Carmo).
igualdade racial e de gênero
O caráter racista das estruturas burocráticas está imbricado, ainda, nas decisões sobre o
Muitas das gestoras biografadas neste livro pertencem a gerações que se sucederam às das
destino dos serviços públicos, e fica evidente em experiências emblemáticas vivenciadas pelas
mulheres que trabalharam e lutaram para que tivessem acesso à escola e à universidade. Essa
mulheres, a ocorrência de sabotagem às políticas de enfrentamento ao racismo propostas por elas:
consciência é, em parte, responsável por buscarem contornar a vivência habitual dessas agressões
Enfrentei uma situação muito emblemática. Uma das coisas que conduzimos como política
(“racismo, pessoa negra toma uma dose todo dia”, segundo Macaé Evaristo). Também aproveitar
pública foi a composição de um conjunto de obras teóricas e literárias chamadas de Kit de
Literatura Africana e Afro-brasileira, a partir de 2004. [...] Tem duas questões sobre esse kit: a as oportunidades de vocalização, de criação de ações e políticas fundamentais. De se posicionar
primeira, é que eles chegavam em muitas escolas e as diretoras falavam que queriam devolver, e legitimar sua fala a partir da explicitação de suas capacidades; de encontrar formas de pautar
porque as professoras delas não iriam ler aquele tipo de material. Ou ficavam empoeirando em
um canto das salas das direções, sendo que o lugar deles deveria ser as bibliotecas. Descobri-
suas demandas na agenda pública – pautas negligenciadas da igualdade racial e de gênero, que
mos que muitos ficavam encaixotados (Patrícia). provavelmente não teriam encontrado expressão se não estivesse no interior da gestão pública.
O enfrentamento do racismo é diferente na burocracia. Porque, na burocracia, o racismo e o Com efeito, a criação de políticas públicas com recorte racial é evidência de como essas
machismo não estão somente te atingindo; estão atingindo milhares de pessoas. [...] Por exem-
plo: foi feito um concurso público para as professoras das Umeis [Unidades Municipais de mulheres contornaram as restrições para construir um espaço de liberdade, e do constituir-
Educação Infantil de Belo Horizonte, algumas construídas nas periferias, dentro das vilas e se como sujeitas capazes de influenciar diretamente na definição de seus destinos sociais e da
favelas]. Os primeiros aprovados são, em geral, pessoas portadoras de uma melhor formação,
população negra.
que vêm das universidades públicas. Então, as primeiras professoras de educação infantil das
Umeis, aprovadas nesse concurso, são mulheres brancas, que, pela primeira vez, vão para as
Os projetos e políticas criadas pelas biografadas, ou para as quais contribuíram, envolveram
unidades municipais de educação infantil para serem professoras de crianças negras. Nesse
contexto, o primeiro grande dilema instaurado foi um drama em relação ao número de luvas questões como: a política de educação, incluindo a educação para a população pobre e para os
que as professoras precisavam usar: "Como vou pegar nessa criança?". É óbvio que você pre- povos tradicionais, história e cultura negra, igualdade racial, promoção da autonomia das mulheres,
cisa de luvas para trocar uma criança. Mas o problema foi tão superdimensionado que foi pre-
ciso prover uma infinidade de luvas! A gente não estava vivendo em época de pandemia, não sistema prisional e segurança pública, segurança alimentar, direitos da população LGBTQIA+,
tinha nada; sempre houve creches comunitárias e nunca tinha tido esse debate no ambiente entre tantos outros. São temas periféricos. O ambiente de trabalho no qual esses projetos são
educacional. Mas era a primeira vez que havia mulheres não negras cuidando de crianças ne-
implementados e é ocupado pelas mulheres negras, ao menos em parte de sua trajetória, não se
gras. Então, a situação ganha relevância, porque se tratava de pegar no corpo negro, no cabelo
das crianças negras. Nosso cabelo e nossa pele eram tidos como coisas sujas. É esse nível de incluem nas instituições tidas como centrais na sociedade tradicional, no establishment.
enfrentamento, que acontece quando a gente está fazendo as políticas públicas, que me atinou.
A gente precisa fazer uma reprogramação para não entrar em depressão. E, às vezes, a gente No caso da educação, há biografadas que atuaram em escolas de periferia, frequentadas por
entra mesmo, adoece, porque é muito duro (Macaé). maioria de crianças negras, com mães chefes de família. Espaços muitas vezes caracterizados por
violência, insegurança pública e precariedade em suas estruturas. Em outros casos, seu trabalho

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Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

envolveu repensar a cultura de uma cidade ou estado para incluir o ponto de vista de uma população que indicadores sociais mostram a desigualdade a que essas populações estão sujeitas. Esse
discurso precisava ser reiterado inúmeras vezes durante o dia. [...] As pessoas brancas têm que
que ainda ocupa um lugar social subalterno, como a juventude negra.
se haver com os processos de desconstrução e de enfrentamento do racismo e pensar políticas,
pois o racismo estrutural impede o funcionamento da sociedade, tanto para branco quanto
Todas essas situações compreenderam ambientes, organizações e políticas que demandaram para negro (Yone).
sensibilidade para o problema – que já possuíam, seja por sua própria história de vida; ou que
adquiriram, dado o contexto em que atuaram. Essa característica foi fundamental para o papel Suas trajetórias lhes fornecem estofo para construir suas formas de resistência ao racismo.
que desempenharam. A partir de suas narrativas, é possível perceber que suas passagens nesses As experiências na militância contribuem para integrar saberes e borrar limites; usam a bagagem
contextos contribuíram para reinventar e reforçar pontos de vista singulares e, ao mesmo tempo, trazida do movimento social para ajudar a traduzir as demandas dos segmentos de onde provêm
abrangentes, da sociedade e das instituições, incluindo as da própria administração pública. Foram em políticas públicas, como explica Larissa Borges:
fundamentais para a ampliação do acesso a direitos e à cidadania; contribuíram para que o Estado Percebi que [a gestão pública] é um lugar diferente da militância, que exige um conhecimento
técnico, conhecimento político, exige articulação e, também, uma sagacidade de integrar vá-
e sociedade ampliassem o cumprimento de suas atribuições constitucionais e sobretudo éticas em
rios saberes e limites. Essa decisão foi se consolidando ao pensar: “Como a bagagem que eu
relação à mitigação das vulnerabilidades sociais, não apenas sociorraciais e de gênero. tenho do movimento social pode ajudar a traduzir nossas demandas em políticas públicas? Eu
posso mesmo colaborar nessa tradução?”. Sinto que foi muito positivo esse caminho (Larissa).
A maioria dessas gestoras entra na gestão pública com o intuito de lutar contra o racismo por
meio de projetos e políticas públicas de combate às desigualdades sócio raciais. Mas o significado Os relatos abaixo exemplificam esse aspecto:
de participar da gestão pública é ampliado, pois tem efeitos também em seu interior. Em primeiro As pessoas encarceradas são oriundas de aglomerados e não foram alcançados pelo Estado,
lugar, significa, com a afirmação de seus corpos, desestabilizar a paisagem construída à imagem e sendo submetidas a uma situação de fragilidade. De que forma que a criminalidade entrou em
suas realidades? Ou são pessoas que tiveram todas as oportunidades e fizeram suas escolhas?
semelhança da branquitude: Percebo que o envolvimento com a criminalidade e o consequente encarceramento são conse-
Éramos cinco mulheres negras, de pele preta, na Subsecretaria de Igualdade Racial. Na Subse- quências de um conjunto de fatores que nós precisamos atacar para colhermos frutos diferen-
cretaria de Políticas para as Mulheres tinham outras quatro. Duas colegas usavam dread. Às tes. Se atuarmos somente na superfície, eu não vou chegar a lugar nenhum (Cleide Barcelos).
vezes coincidia das demais irem de cabelo solto e as pessoas ao passar pelos corredores do Acho que alguém que tenha preparo, que tem uma vivência; que leve em consideração o perfil
nosso andar, na Cidade Administrativa, olhavam. Superintendente, negra e com o cabelo black da população carcerária, que é preta, pobre e analfabeta; que saiba de onde essas pessoas
é muita transgressão para as mentes colonizadas. É um modelo que destoa da ideia concebida vieram e porque elas estão ali; isso faz toda a diferença na gestão e na construção de políticas
de gestora: cabelo liso, salto alto, maquiagem. A gente tinha um outro perfil. Esse nosso perfil para essas pessoas. Quando você conhece e sabe de onde essas pessoas vêm, você consegue
foi um processo de ensinamento para as pessoas brancas, de que mulher negra também pode dialogar com as famílias e com os presos. Eles veem uma confiança e uma reciprocidade, não
ser gestora (Yone). sentem que quem está ali é apenas uma figura de autoridade, mas alguém que não está distan-
te deles (Magda).
Compreendem também o incidir sobre o racismo epistêmico no interior das organizações
Na entrada da escola da Pedreira, tinha um jardim cheio de flores. Defendia a ideia de que
públicas; contribuir para desnaturalizar as relações desiguais; convencer acerca da importância
a política pública tinha que ser fundada na ética e na estética, de que o nosso povo sofrido
do enfrentamento do racismo e das políticas afirmativas; desconstruir rotinas racistas; contribuir merecia o melhor. Então, a diferença que fizemos teve a ver com a necessidade de respeitar o
para que as pessoas brancas assumam seu papel na luta antirracista; integrar saberes e transpor povo negro e combater o racismo institucional na prefeitura e de legitimação da Secretaria [...].
Alguns poucos secretários brancos gostavam da gente, e eu vou explicar. Conseguíamos entrar
limites. Com isso, buscam inverter: e sair em favelas, numa boa, enquanto eles tinham medo. Então, pediam a gente para mandar
[...] os discursos construídos de igualdade, em uma lógica de exclusão das diferenças, como alguém com a equipe deles para subir os morros. Tínhamos assim um núcleo de respeito entre
se todas as pessoas fossem igual e não precisássemos de ações específicas para a população Secretários (Diva).
negra [...]. Meu grande desejo era que, de fato, a gente conseguisse romper com o silencia-
mento dessa discussão nas escolas e nos gabinetes, romper o racismo epistêmico. [...] Fazer
as pessoas entenderem que nós precisamos de uma política afirmativa porque ela trabalha
na lógica da reparação, da garantia dos direitos humanos, que esses sujeitos são humanos e

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Capítulo 16 - Conclusões SOUZA-SEIDL, Renata; GODINHO, Letícia.

16.6. E se fosse diferente… Por isso, uma biografia sobre mulheres negras na administração pública não poderia se
ancorar nos fundamentos das teorias “teto de vidro”, típicas do feminismo liberal. Não se trata de
O preconceito racial, em um país que se autoafirma democrático sociorracial, aparece de
defendermos que algumas mulheres alcem o topo das organizações, públicas e privadas, “rompendo
forma sutil e naturalizado pelas pessoas que reproduzem, mas também pelas que o sofrem. As
o teto de vidro, enquanto uma vasta maioria é deixada limpando os cacos” (Cinzia ARRUZZA, Tithi
mulheres, ao terem clareza da identidade étnica e cultural de suas atuações na gestão pública,
BATTACHARYA, Nancy FRASER, 2019, p. 13, tradução nossa). Ao focarmo-nos sobre os cursos de
contribuíram para desnaturalizar relações de desigualdades. Porém, como bem expressa Larissa
vida como um todo, revelam-se os atravessamentos presentes desde o nascimento; ao tratarmos
Borges:
as histórias de forma coletiva, explicitam-se as características estruturais.
Se não tivéssemos que enfrentar o racismo, como a nossa vida estaria melhor! Porque iríamos
gastar energia com outras coisas. Mas antes de fazer qualquer outra coisa, nós precisamos É disso que se trata: não de trajetórias individuais, mas de um grande segmento social
enfrentar o racismo para sobreviver, enfrentar o machismo para sobreviver. Além de todas as colocado à margem pelas políticas coloniais de sujeição e exploração, atualizadas no contexto pós
coisas, a gente precisa antes garantir que sobrevivamos, tanto materialmente quanto simbo-
licamente. Porque tem uma violência simbólica que tenta me destruir o tempo inteiro, então
abolição e reatualizadas pelas estratégias do capitalismo recente, com suas necropolíticas (Achile
você tem que lidar com isso tudo antes, para depois fazer outras coisas. As pessoas brancas já MBEMBE, 2016). É com tudo isso que precisamos romper. Para tanto, é fundamental o trabalho
partem para fazer outras coisas. Quando eles chegam na corrida, a gente já está cansado. Por das mulheres, negras, no Estado, na sociedade, em todos os lugares. É essencial mudar a paisagem.
isso há tanta desigualdade. Se não tivéssemos que enfrentar tanta desigualdade, estaríamos
em outro patamar (Larissa).
REFERÊNCIAS
Como vimos, as biografias contadas neste livro evidenciam diferentes mecanismos que se
ARRUZZA, Cinzia; BATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminism for 99%: a manifesto.
encontram articulados na “matriz de dominação”, para usar o conceito de Patrícia Hill Collins (2019).
New York: Verso Books, 2019. 192 p.
O racismo institucional nos ajuda a entender o que está em jogo no caso das mulheres negras, que
nas palavras de Jurema Werneck ([2013]), é um dos modos de organização e “operacionalização do
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder
nas organizações empresariais e no poder público. 2002. 176 p. Tese (Doutorado em
racismo patriarcal heteronormativo [...] para atingir as coletividades”, priorizando-se os interesses
Psicologia) – Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e
dos mais claros e negligenciando as necessidades dos mais escuros. da Personalidade, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-
Ele está ancorado no “pacto narcísico da branquitude”, ideia formulada por Maria Aparecida
181514/publico/bento_do_2002.pdf. Acesso em: 13 abr. 2021.
Bento (2002) acerca da rejeição à abertura e à diversidade existente nas instituições:
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a
[...] a branquitude enquanto lugar de poder se articula nas instituições – que são por excelência
conservadoras, reprodutoras e resistentes às mudanças – e constitui um contexto propício à
política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019. 480 p.
manutenção do quadro das desigualdades (BENTO, 2002, p. 166). MAIA, Rousiley Celi Moreira; CAL, Danila Gentil Rodriguez. Reconhecimento como
ideologia e democracia: o trabalho infantil doméstico. In: ENCONTRO ANUAL DA
Trata-se de um pacto tático e indiscutível, cujo objetivo é manter os privilégios do grupo
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 8, 2012, Gramado. Anais [...]. Gramado:
dominante. Segundo a autora, a expressão do amor a si mesmo, ao mesmo tempo em que gera
ABCP, 2012. p. 1-25. Disponível em: https://cienciapolitica.org.br/system/files/
aversão ao outro, funciona, na dimensão coletiva, para evocar laços unificadores entre aqueles documentos/eventos/2017/02/reconhecimento-como-ideologia-e-democracia-trabalho-
considerados iguais. Em suma, o pacto tem função ideológica de identificar quem são os “nós” e os infantil.pdf. Acesso em: 9 abr. 2021.
“eles”, e ocultar o conflito e a dominação. MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, dez.
branquitude é o território do silêncio, da negação, da interdição, da neutralidade, do medo, 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169.
do privilégio; enfatizamos que trata-se de uma dimensão ideológica, no mais sentido pleno da Acesso em: 9 abr. 2021.
ideologia: com sangue, calor, entusiasmo, veneração, porta-voz, emblemas, iconografia, com
seus santos e seus heróis. E igualmente nas falsas representações, nas armadilhas em que to- WERNECK, Jurema et al. Racismo institucional: uma abordagem conceitual. São Paulo:
dos caem e se debatem, na ânsia de sair justamente do calor e do sangue com os quais temos Geledés – Instituto da Mulher Negra, [2013]. 54 p.
de viver cotidianamente (BENTO, 2002, p. 167).

336 337
Integrantes da Equipe de Pesquisa Integrantes da Equipe de Pesquisa

INTEGRANTES DA
LETÍCIA GODINHO
Pesquisadora e professora da Fundação João Pinheiro, é
membro do corpo docente do Programa de Mestrado em

EQUIPE DE PESQUISA
Administração Pública daquela instituição. Possui mestrado
(2005) e doutorado (2011) em ciência política pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Coordena atualmente o
Grupo de Estudos “Estado, Gênero e Diversidade” (Egedi - FJP)
e atua principalmente nas temáticas de gênero, teoria política
e segurança pública.

ANA PAULA SALEJ MARIA CLARA MENDES


Professora e pesquisadora da FJP, doutora e mestre em ciência É mestre e graduada em Ciências Sociais pela PUC-Minas.
política e especializada em administração pública. Em 2014, Possui experiência como pesquisadora, analista e técnica de
fundou o Grupo de Estudos “Estado, Gênero e Diversidade” programas e políticas sociais e na área de segurança pública.
(Egedi), na Fundação João Pinheiro, do qual já foi coordenadora. Atualmente trabalha como coordenadora de cursos da Gerência
Desde 2007, seus estudos focam a presença das mulheres de Capacitação e Treinamento da Escola de Governo “Professor
no serviço público, políticas públicas para as mulheres e Paulo Neves de Carvalho” da Fundação João Pinheiro.
mulheres do campo. No último dedicou-se também ao estudo
do antifeminismo de estado.

JESSYKA MARTINS MARIA NOGUEIRA


Mestranda em Administração Pública pela Fundação João Sou uma mulher branca, casada, sem filhos, servidora pública.
Pinheiro. Especialista em Gestão Pública Municipal e também Aprendi com meus pais de origem simples a importância do
bacharel em Direito pela UFMG. Estuda políticas públicas com conhecimento e o amor pelos livros. Graduei em Ciências
recorte de gênero, raça e classe. Sociais pela UFMG e sou Doutora em Ciências da Saúde pela
Fiocruz Minas. Realizo estudos e pesquisas nas temáticas
de Saúde e Gênero, Políticas Públicas de Saúde e Divulgação
Científica. Acredito no poder transformador de todas as formas
de conhecimento. Que saibamos sempre usá-lo para o bem da
humanidade.

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Integrantes da Equipe de Pesquisa Integrantes da Equipe de Pesquisa

MARINA ALVES AMORIM ROSÂNIA RODRIGUES DE SOUSA


É pesquisadora da Fundação João Pinheiro. Possui o título de Doutora em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações
doutora em história pela Universidade Federal de Minas Gerais, pela Universidade de Brasília (2009), mestrado em Psicologia
e doutora em letras pela Université Rennes 2 – Université Social pela UFMG(1999) e graduação em Psicologia pela FUMEC
d'Haute Bretagne (França). Há mais de 20 anos, interessa-se (1985). Pesquisadora da Fundação João Pinheiro, docente e
pela história das mulheres e os seus percursos de formação em Gerente de Ensino e Pesquisa da Escola de Governo/FJP.
uma perspectiva ampla, trabalhando com a história oral como
método de produção de fontes históricas.

MATHEUS ARCELO FERNANDES SILVA RENATA APARECIDA DE SOUZA SEIDL


Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Co-organizadora desta obra. Doutora em sociologia e geografia
atuando na Fundação João Pinheiro (FJP). Mestre em (Université Paris Nanterre e UFMG). Mestra e graduada em
Administração pela UFMG. Membro do Grupo de Estudos Administração Pública pela FJP e graduada em Geografia pela
Estado, Gênero e Diversidade da Fundação João Pinheiro UFMG. Gestora pública no governo de Minas Gerais desde
(Egedi) e do Observatório das Desigualdades da FJP. 1999. É pesquisadora associada do Ladyss.fr na França e
coordenadora de GT na Rede brasileira de pesquisadores em
segurança alimentar.

MÔNICA DE CÁSSIA COSTA SILVA SÉRGIO LUIZ FELIX DA SILVA


É mestranda em Administração Pública pela Fundação João Nascido em Belo Horizonte. Graduado em Ciências Sociais
Pinheiro; bacharel em Comunicação Social com especializações (UFMG), especialista em Teoria Politica (UFMG), mestre em
em Gestão Social e Gestão de Programas e Projetos Sociais. Administração Pública (FJP). Trabalha/atua em projetos de
Possui experiência profissional em instituições do terceiro pesquisas na área de segurança pública. Participa do Grupo de
setor e empresas privadas, nas áreas de planejamento, gestão Estudos “Estado, Gênero e Diversidade” (Egedi). É coordenador
da qualidade e projetos. e professor em cursos da Escola de Governo da Fundação João
Pinheiro.

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Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Às mulheres, sobretudo às mulheres negras, tem-se
negado sistematicamente o direito de escrever e fazer
parte da “História” – essa, que pretensamente universal,
foi e é efetivamente escrita a partir de mãos e olhares
masculinos, brancos e eurocêntricos. O presente livro
aborda o tema das mulheres negras no seu percurso de
vida, de ascensão social e de trabalho na administração
pública. Escrito com base em entrevistas realizadas no
ano de 2020, com 14 mulheres que ocuparam posições
de destaque na gestão pública, o livro busca compartilhar
suas histórias particulares de enfrentamento, superação,
derrotas e conquistas. Partindo dessas trajetórias
individuais, o objetivo é construir, ao mesmo tempo,
uma biografia coletiva que retrata questões comuns
enfrentadas pelas mulheres negras em sua luta por um
lugar na administração pública brasileira e, afinal, pela
igualdade racial.

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