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Discalculia: possibilidades e limitações

Denise Levy

A discalculia é caracterizada por uma grande dificuldade em compreender as grandezas


numéricas, operar sobre elas e desenvolver uma linha de raciocínio aritmético. Suas
causas não estão ligadas à deficiência mental, escolarização inadequada ou problemas
visuais ou auditivos. Trata-se de um transtorno de aprendizagem ligado a falhas nas
conexões dos neurônios localizados na parte superior do cérebro, que é a área
responsável pelo reconhecimento dos símbolos.

A linguagem aritmética é uma linguagem simbólica que se vale de números, sinais de


operação e outros símbolos para transmitir ideias de quantidade e relações entre
grandezas. Uma criança com discalculia pode apresentar excelente capacidade auditiva
e uma aquisição normal da linguagem verbal e escrita, bom vocabulário e soletração.
Pode aprender os símbolos visuais desde que haja possibilidade de associá-los aos
símbolos auditivos. Entretanto, no caso da matemática, há uma grande dificuldade em
associar esses símbolos às quantidades por eles representadas, acarretando prejuízos
significativos no processo de aprendizagem da matemática.

A pessoa com discalculia pode adquirir bom vocabulário visual e boa capacidade de
leitura, entretanto os processos envolvidos no raciocínio aritmético lhe escapam
completamente. Algumas crianças e adolescentes memorizam números, conceitos e
fórmulas sem no entanto compreendê-los, ou seja, sem que se estabeleçam relações
adequadas entre os processos aritméticos ou as grandezas envolvidas. Podem apresentar
insuficiência quanto à organização visual-espacial ou à integração não verbal, tendo
dificuldades para classificar formas, quantidades, tamanhos, pesos ou distâncias. A
dificuldade com relação ao raciocínio aritmético não se limita a habilidades de
contagem e decodificação dos símbolos matemáticos, mas sim com a capacidade de
compreender conceitos e processos, de operar sobre eles e de relacioná-los à vida
prática e estender as habilidades matemáticas às tarefas habituais. Isso acaba por
interferir em situações cotidianas não verbais. Imaginemos uma criança com 10 anos de
idade que sistematicamente superestima ou subestima a quantidade de comida a ser
colocada no talher; não calcula adequadamente a quantidade de líquido a ser colocada
num recipiente; não abotoa sua camisa corretamente e raramente consegue emparelhar
os botões com suas respectivas casas, tem dificuldade para ver as horas ou lidar com
dinheiro.

Pode acompanhar a discalculia uma certa desorientação espacial (direita, esquerda e


senso de direção em geral) ou dificuldades de julgamentos relacionados à percepção
social, como noções de tempo e distância para se calcular um trajeto.

Texto produzido para uso exclusivo no curso “Transtornos de Aprendizagem”, da Atta Mídia e Educação. Proibida a distribuição e reprodução.
As deficiências em aritmética se manifestam de maneiras diferentes e em diferentes
graus, de acordo com cada caso. Podem surgir dificuldades quanto à nomeação, leitura,
decodificação e reprodução dos sinais de operações e outros símbolos matemáticos (%,
$, [, {, <). O aluno com discalculia pode apresentar problemas para discriminar
subconjuntos, para a conservação de quantidade, para a correta e completa compreensão
de sua imagem corporal ou para a compreensão de enunciados de problemas. É comum
uma grande dificuldade para executar adequadamente operações básicas e cálculos
numéricos. O aluno se perde na linha de raciocínio porque não tem a compreensão do
processo e da sequência das etapas a serem seguidas nas diferentes operações
matemáticas.

Ao se trabalhar com alunos que têm discalculia, é importante ajudá-los a simbolizar


experiências que os ajudem a lidar com relações de quantidades, ordem, tamanho,
espaço e distância. Atividades não verbais relacionadas à aritmética podem facilitar o
pensamento numérico, ajudando a criança, por meio de operações concretas, a
interiorizar noções e conceitos quantitativos. A partir daí, pode-se esperar que a criança
possa compreender e operar mentalmente os símbolos matemáticos. A organização
auditiva pode ser uma importante aliada para que a criança melhore sua compreensão e
seu raciocínio.

Algumas dificuldades específicas:

a) Percepção das formas, tamanho e comprimento

Nem todas as crianças ou adolescentes são capazes de distinguir adequadamente figuras


ou formas para classificá-las, nomeá-las ou reagrupá-las. Esses alunos desenvolvem
artifícios de mecanização, memorizando processos e teorias que, entretanto, não são
capazes de aplicar a situações análogas, como por exemplo traduzir e aplicar um
conceito aritmético na resolução de um problema geométrico. A dificuldade em
discriminar formas, tamanhos e comprimentos se estende aos conceitos matemáticos,
influindo negativamente no desempenho do aluno que poderá apresentar, por exemplo,
dificuldades de compreensão de outros conceitos da geometria, como perímetro, área ou
volume. Isso pode ser observado ainda em atividades cotidianas: uma criança que não é
capaz de estabelecer um relacionamento adequado entre o tamanho de seus pertences e
a área em que pretende guardá-los, pode estragar constantemente seu material escolar
por tentar sistematicamente colocá-lo em espaços pequenos demais.

b) Compreender o sentido dos números cardinais e ordinais

Crianças com discalculia podem apresentar boa capacidade auditiva e aprender a


sequência numérica. Essas crianças obedecem e repetem uma sequência auditiva, sem
que possam associar os números às respectivas quantidades. Podem apresentar
dificuldades em estabelecer correspondências biunívocas. É o caso da criança que não

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consegue abotoar adequadamente sua camisa. Algumas crianças não conseguem contar
em voz alta porque não conseguem manter as sequências auditiva e visual
simultaneamente. A integração de processos visuais, processos auditivos e processos
não verbais, demanda grandes esforços por parte da criança:

 ouvir um número e associá-lo a uma quantidade;


 visualizar uma determinada quantidade de elementos e traduzi-la para o número
de objetos correspondente;
 associar uma determinada sequência auditiva a símbolos visuais, e associar
ambos às quantidades adequadas.

c) Grupos e noções de conservação de quantidade

Além da dificuldade para distinguir formas, tamanhos e comprimentos, crianças com


discalculia têm grande dificuldade para identificar a quantidade de objetos pertencentes
a um determinado grupo. Assim, muitas vezes não são capazes de identificar subgrupos
pertencentes a um todo.

Outra característica de pessoas com discalculia é a deficiência quanto ao princípio de


conservação de quantidades. Se oferecermos uma mesma quantidade de líquido a ser
colocada em recipientes com formatos diferentes, a criança tenderá a achar que a
quantidade de líquido é diferente. Também poderá apresentar dificuldade em subdividir
o material oferecido (água, areia, tinta) a ser igualado em diversos recipientes.

A criança com discalculia muitas vezes não compreende que a quantidade é a mesma,
apesar de subdividida em grupos. Poderia, por exemplo, ter dificuldade em reconhecer
as várias formas de equivalência de valores para uma nota de 10 reais, ou seja:

 duas notas de 5 reais


 cinco notas de 2 reais
 dez moedas de 1 real
 três notas de 2 reais + 4 moedas de 1 real
 duas notas de 2 reais + 6 moedas de 50 centavos + 12 moedas de 25 centavos
 quatro moedas de 1 real + oito moedas de 50 centavos + 20 moedas de 10
centavos

d) Linguagem aritmética

Os sinais de operação estabelecem as relações entre quantidades e definem como


devemos operá-las. Os símbolos aritméticos (+, x2, <, =, %, etc) nem sempre fazem
sentido para a criança, que acaba por confundi-los. Por isso aconselha-se trabalhar
detalhadamente com a criança o nome de cada símbolo e sua função na operação

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matemática, de maneira que possa compreender os processos e procedimentos
necessários à correta utilização de cada novo símbolo.

Além disso, o professor deve trabalhar a organização dos números em uma operação,
uma vez que o valor relativo dos algarismos representa diferentes ordens de grandeza:
unidade, dezena, centena, fração, potenciação. Assim, deve ser trabalhado o
alinhamento dos números e a orientação espacial: da direita para a esquerda, de cima
para baixo, etc. Para cada nova operação introduzida, o professor deverá explicar a
sequência e organização dos novos processos, promovendo atividades que permitam ao
aluno treinar cada etapa separadamente, para em um segundo momento integrá-las
adequadamente.

No caso de problemas, cada dado deverá ser explorado separadamente e devem ser
estudados processos organizacionais que permitam ao aluno chegar a uma resposta
satisfatória. Para a resolução de problemas que envolvem novos processos ou novos
conceitos, deve-se partir do mais concreto, utilizar elementos da experiência prévia do
aluno, reduzindo a complexidade da tarefa e tornando-a o mais prática possível para
facilitar a compreensão. Devem ser promovidas atividades diversificadas e problemas
de raciocínio relacionados à vida prática da criança, privilegiando o pensamento lógico
e o raciocínio, ao invés da mecanização de processos.

Considerações finais

A discalculia pode ser diagnosticada a partir do 4º ano do ensino fundamental, quando


os conceitos que embasam o raciocínio aritmético já devem estar consolidados. Pode se
manifestar de diferentes formas e em diferentes graus.

Algumas vezes a discalculia pode demorar a ser diagnosticada, porque a criança pode
demonstrar um desempenho escolar adequado. Isso ocorre quando o aluno aprende a
mecanizar processos e aplicar fórmulas prontas, entretanto, não compreende
verdadeiramente as relações entre as grandezas, não sendo capaz de realizar tarefas que
exijam um raciocínio mais complexo.

Deve-se prestar atenção para não confundir a discalculia com a dislexia. O aluno
disléxico, apesar de compreender os processos matemáticos, comete erros por
interpretar erroneamente símbolos, atribuindo a eles significados tão arbitrários quanto
aqueles que atribui para as letras. Algumas vezes, entretanto, a discalculia pode vir
acompanhada de uma dislexia, tornando o diagnóstico menos evidente.

É importante salientar que a discalculia não deve ser confundida com insucesso no
aprendizado da matemática. O professor deve observar se não há problemas da ordem
da linguagem ou da leitura, e deve se certificar que não se trata de um problema
pedagógico.

Texto produzido para uso exclusivo no curso “Transtornos de Aprendizagem”, da Atta Mídia e Educação. Proibida a distribuição e reprodução.
O professor é um importante aliado no processo de aprendizagem dos seus alunos, e
uma vez diagnosticada a discalculia, pode promover ações para auxiliar seu aluno a
progredir, planejando estratégias diferenciadas, respeitando a dificuldade do aluno e
ajudando a criança a superar suas dificuldades, para que possa compreender os
processos e procedimentos aritméticos solicitados no ambiente acadêmico e generalizá-
los, podendo estendê-los a outros problemas e situações de sua vida cotidiana.

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Bibliografia

(1) JOHNSON, D.J; MYKLEBUST, H.R., Distúrbios de aprendizagem – Princípios e


práticas educacionais. Livraria Pioneira Editora, pp. 292-319.
(2) GARCÍA, J. N., Manual de dificuldades de aprendizagem: linguagem, leitura,
escrita e matemática. Porto Alegre: Artmed, 1998, pp. 210-229
(3) Vídeo “Discalculia e TDAH”, coleção Psicopedagogia – Transtornos de
Aprendizagem, ATTA Mídia e Educação.

Texto produzido para uso exclusivo no curso “Transtornos de Aprendizagem”, da Atta Mídia e Educação. Proibida a distribuição e reprodução.

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