Você está na página 1de 5

1

Priszkulnik, L. (1997). A escola, a criança e a clínica psicanalítica. In ENCONTRO SOBRE PSICOLOGIA


CLÍNICA, 1. São Paulo. Anais do I Encontro sobre Psicologia Clínica. São Paulo: Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 1997. pp.133 – 135.

A ESCOLA, A CRIANÇA E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

Léia Priszkulnik

A visão da importância de um sistema educacional, tal como hoje


aparece para muitos, é um fato que existe, relativamente, há pouco tempo. Na sociedade
medieval, não há essa preocupação com a educação; nela, a diferença e a passagem entre o
mundo da criança e o mundo do adulto não se constitui em problema, pois ao se tornar mais
independente em relação à mãe, a criança passa a fazer parte do grupo dos adultos onde faz
seu aprendizado para a vida. Conseqüentemente, a transmissão dos conhecimentos prescinde
de instituições especializadas e de textos escritos, já que é uma “ ... transmissão através da
aprendizagem direta de uma geração a outra ... a escola, a escola latina, que se destina
apenas aos clérigos, aos latinófones, aparece como um caso isolado, reservado a uma
categoria muito particular “ (Ariès, 1978, p. 229).
Com o passar do tempo, a situação começa a se modificar e a
consciência de separar e distinguir a criança do adulto, aparece “ ... entre os moralistas e os
educadores do século XVII ... o apego à infância e à sua particularidade se exprime ...
através do interesse psicológico e da preocupação moral “ (Ariès, 1978, p. 162). A criança
passa a ser vista como imperfeita e, com isto, surge a necessidade de conhecê-la melhor para
poder corrigi-la e torná-la um adulto honrado. A educação, agora nos estabelecimentos de
ensino, torna-se um importante meio de formação moral e intelectual através de uma
disciplina rígida que adota o castigo corporal (até surras) quando necessário.
Uma das conseqüências dessa preocupação com a educação das
crianças é a organização da escola nos moldes mais próximos da que prevalece atualmente,
ou seja, o início da separação dos alunos por idade e em classes regulares. A
correspondência entre idade e classe escolar torna-se cada vez mais rigorosa nos anos
subseqüentes.
2

No século XIX, uma nova concepção de educação se consolida. A


infância encarada como fraqueza que necessita da humilhação para ser melhorada, cede
lugar à idéia da criança ter de ser preparada para a vida adulta, preparação que exige
cuidados e uma formação com disciplina rigorosa e efetiva, sem as surras de antigamente,
mas ainda recorrendo a castigos corporais “ mais suaves”. Com isto, a importância moral e
social da educação aumenta e a formação metódica da criança em instituições especiais é
adaptada às novas finalidades.
Mas, a instituição da escolaridade primária obrigatória só é adotada,
mais ou menos, a partir de 1890 nos países ocidentais atingidos pela industrialização
crescente. No Brasil, a expansão da educação começa sobretudo a partir de 1930, época em
que também algumas condições estão concorrendo para a implantação definitiva do
processo de industrialização no país.
Com o funcionamento regular das classes, surge um grupo de crianças
que se mostra com dificuldades acentuadas em acompanhar as exigências da escola. Muitos
autores atribuem o fracasso escolar à uma insuficiência intelectual e, conseqüente a isso,
estas crianças são consideradas “débeis mentais”. Assim, surge uma nova categoria de
alunos com incapacidade intelectual pouco grave, diferente dos deficientes mentais médios e
profundos, que só a obrigatoriedade escolar acaba revelando, já que a maior parte deles
antes vivia e trabalhava desde muito cedo, de um jeito ou de outro trabalhava.
A partir de 1930, os estudos científicos começam a enfocar os
problemas na aprendizagem da leitura em crianças, sem a chamada debilidade mental, mas
com dificuldades escolares. Despontam, então, as investigações sobre a linguagem, a
motricidade, a lateralidade, a organização espaço-temporal, o ritmo, etc., que permitem a
descrição de novos quadros nosográficos como as dispraxias, a hiperatividade, a dislexia-
disortografia, etc. Com isso, surge um grupo de crianças com inteligência normal, ou até
superior, com condições e oportunidades para aprender a ler e a escrever (pelo menos
aparentemente) que não conseguem alcançar um rendimento escolar satisfatório.
Assim, os problemas com a leitura e a escrita, há alguns anos, têm
despertado um interesse grande de profissionais como pedagogos, professores, psicólogos e
médicos que lidam com crianças, na medida em que a aprendizagem da leitura e escrita
constitui-se num dos grandes objetivos da instrução básica e num dos grandes critérios para
o sucesso ou o fracasso escolar.
Os estudos nessa área têm precursores importantes que não podem
ser meramente esquecidos ou desprezados. As primeiras observações e descrições sobre
distúrbios de leitura e escrita são realizadas por médicos no final do século XIX.
Conseqüentemente, as primeiras teorias elaboradas se caracterizam por um pensamento
organicista onde a pesquisa por alterações anátomo-fisiológicas, pelos fatores inatos e pela
herança genética têm papel preponderante, e por uma busca de classificação centrada na
ordenação de nosografias precisas. Este enfoque exclusivamente médico marca de uma
forma intensa muitas investigações posteriores sobre o tema. Os primeiros trabalhos
realizados sob o ponto de vista dos processos de aprendizagem começam a florescer no
3

século XX, com o estudo sistemático da criança, através de investigações acerca de seu
desenvolvimento, seu pensamento e sua inteligência. Este enfoque, digamos, educacional
favorece a elaboração de vários testes para a detecção de deficiências instrumentais e de
vários métodos de reeducação destas deficiências.
A partir da década de 40 as investigações sobre os distúrbios de
leitura e escrita desenvolvem-se ora dando ênfase ao aspecto orgânico e à medicação, ora ao
aspecto educacional e à reeducação. Para a descrição e o estudo desses problemas, várias
terminologias são empregadas : “dislexia”, “dislexia específica de evolução”, “dificuldades
específicas de aprendizagem”, “distúrbios específicos de aprendizagem”.
É entre as décadas de 60 e 70 que os estudos dos autores de língua
inglesa e os de língua francesa chegam efetivamente até nós, e a diferença entre eles é
marcante e merece ser destacada. Assim (Priszkulnik, 1993, p. 20-21), a literatura inglesa,
predominantemente organicista, passa a ser difundida entre médicos, psicólogos, pedagogos,
fonoaudiólogos e, rapidamente, a disfunção cerebral mínima (DCM) é adotada no
diagnóstico dos distúrbios de aprendizagem levando ao tratamento através de alguns
fármacos psicoestimulantes; a literatura francesa, predominantemente psicogeneticista, passa
a ser difundida principalmente entre psicólogos, pedagogos, fonoaudiólogos, e os vários
estudos da psicomotricidade francesa começam a ser adotados, influindo no diagnóstico que
principia a se preocupar com a gênese das estruturas práxicas, cognitivas e emocionais, e a
valorizar os aspectos qualitativos na hora de examinar o cliente, levando a um tratamento
através das reeducações psicomotoras e/ou psicopedagógicas em clínicas especializadas em
distúrbios de aprendizagem e em outros distúrbios psicomotores.
Esse é o panorama em São Paulo na década de 70, quando começo a
atender crianças com problemas na escola. Porém, com o passar dos anos, o entusiasmo
inicial dos que adotam seja a abordagem organicista, seja a abordagem psicogeneticista,
diminui e várias críticas começam a ser formuladas. Através de várias publicações, fica claro
que o uso dos medicamentos não traz, com freqüência, os excelentes resultados que deles se
esperam, e que as reeducações em muitos casos não conseguem “suprimir” as deficiências
instrumentais detectadas.
No final da década de 70, época em que no meio universitário e
psicanalítico de São Paulo, tem início o estudo da Psicanálise freudiana numa releitura
lacaniana, as críticas aos medicamentos e às reeducações são levantadas a partir da clínica
psicanalítica, cujos fundamentos epistemológicos dão características bem singulares para a
prática clínica. Assim, a abordagem psicanalítica começa a nortear os estudos e as pesquisas
nessa área e, como docente de disciplina e supervisora de estágio da área clínica, junto com
outros colegas docentes, um trabalho singular começa a ser desenvolvido no Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, trabalho que impõe modificações no atendimento
da criança com distúrbios de aprendizagem, inclusive dos alunos-estagiários.
Para a clínica psicanalítica o que importa é o sentido que o transtorno
tem para a criança e que se insere na trama de uma história marcada pelo desejo inconsciente
do sujeito, e não a história do transtorno ou do corpo anátomo-fisiológico alterado. O
4

transtorno, então, é encarado como sintoma que precisa ser apreendido na configuração de
sua elaboração inconsciente e não, simplesmente, suprimido ou corrigido, já que tem um
sentido rigorosamente subjetivo e é portador de uma verdade que precisa ser revelada. A
concepção de cura, então, é bem peculiar, ou seja, ela advém como um desdobramento
possível do processo analítico porque o objetivo primeiro é possibilitar a uma subjetividade
ter acesso à sua verdade, abandonar uma posição “queixosa” frente às experiências do
passado e abrir-se para novos sentidos diante do enigma da existência e da vida.
Em conseqüência do exposto acima, os distúrbios de aprendizagem
passam a ser encarados como “expressões sintomáticas” de conflitos inconscientes que o
cliente não consegue colocar em palavras precisando, então, introduzir o que o interpela e o
faz sofrer através das desordens de comportamento. Este ponto de vista contesta
frontalmente a crença na natureza orgânica de muitos distúrbios porém, em contrapartida,
abre a possibilidade de pesquisá-los e tratá-los através da Psicanálise.
Um aspecto importante a ser destacado, se refere ao diagnóstico. Se é
verdade que nem todas as crianças se beneficiarão de medicamento e/ou reeducação, é
também verdade que nem todas precisarão do processo analítico; assim, o diagnóstico
diferencial é importantíssimo e as entrevistas diagnósticas são imprescindíveis, já que nelas a
atenção está dirigida para um mais-além dos fatos e dos acontecimentos e centrada na
criança com sua história pessoal, familiar e escolar.
Quando o caso é encaminhado primeiro para nós, será necessário, em
primeiro lugar, procurar ter uma apreensão do sentido da queixa trazida para, então, saber
qual a indicação mais adequada. Com isto, não se está invalidando a importância do
medicamento, que em alguns casos será inevitável, nem de uma reeducação, que algumas
vezes precisa ser indicada, mas questionando o momento apropriado deles serem
introduzidos, se o caso assim exigir. Freud (1913, p. 180) ressalta este ponto quando afirma
que “ ... tratamentos combinados para distúrbios neuróticos que têm poderosa base orgânica
são quase sempre impraticáveis; os pacientes afastam o interesse da análise assim que lhes é
mostrado mais de um caminho que promete levá-los à saúde”; é melhor adiar o tratamento
orgânico até que o processo analítico (quando for o caso) avance porque se ele for tentado
primeiro, na maioria dos casos, acaba não tendo êxito.
A complexidade do assunto exige realmente uma investigação
cuidadosa pois, muitas vezes, não se trata de um simples problema de aprendizagem que
necessita de treinamento, reeducação ou medicação. Sabe-se até que vários psicanalistas não
consideram as dificuldades de aprendizagem passíveis de uma abordagem pela Psicanálise.
Entretanto, mesmo Melanie Klein (1923, p. 111-112) considera que o desajeitamento nos
jogos, a “preguiça”, pouco ou nenhum prazer nas lições, falta de interesse por determinado
assunto e em geral, inibição quanto ao estudo e ao ensino em si, podem ser efetivamente
inibições neuróticas e podem ser resolvidas pela análise. Assim, diante de pais que trazem
seus filhos com, digamos, “queixas escolares”, muitas vezes urgentes, mesmo o analista
pode acabar indicando medidas reeducativas, antes mesmo de procurar ter uma apreensão
5

psicanalítica do caso e, se junto com as dificuldades de aprendizagem aparecer uma


referência à agitação, pode acabar indicando, apressadamente, também um neurologista.
É realmente relevante ter uma apreensão psicanalítica da criança com
distúrbios de aprendizagem, pois se se tratar de sintoma, na conceituação psicanalítica do
termo, a indicação mais adequada será o processo analítico que pode ajudar “... a criança a
reescrever sua história e, com isto, torná-la mais apta a situar-se com sua subjetividade em
relação ao corpo próprio, ao espaço, ao tempo, à família e, com estas conquistas, poder
também situar-se mais tranqüilamente em relação à escola (Priszkulnik, 1993, p. 26).
Entretanto, a possibilidade de uma investigação cuidadosa pressupõe uma formação
cuidadosa do profissional e um questionamento que se liberte de uma visão essencialmente
pedagógica.
Freud, no decorrer dos anos, afasta-se do saber médico e da clínica
médica até o ponto de construir um sistema conceitual que tece os fundamentos que
sustentam a constituição do saber psicanalítico e da clínica psicanalítica. É seguindo,
estritamente, os fundamentos epistemológicos da Psicanálise, onde o relato e a escuta são
preponderantes, que se consegue ouvir o que a criança com distúrbios de aprendizagem tem
a “dizer” e, assim, buscar ou decifrar o sentido do sintoma na trama de sua elaboração
inconsciente, na trama de uma história marcada pelo desejo inconsciente do sujeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.


FREUD, S. “Sobre o início do tratamento” (1913). In: FREUD, S. Ed.Stand.Bras. das
Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1969, vol. XII, p.163-187.
KLEIN, M. “A análise infantil” (1923). In: KLEIN, M. Contribuições à Psicanálise.
São Paulo, Mestre Jou, 1970, p. 111-148.
PRISZKULNIK, L. A criança e a Psicanálise : uma (re)leitura da dislexia-disortografia.
São Paulo, 1993. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia da USP.

Você também pode gostar