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S P / it/ ip pc âÕejcÁa/n/M
Os Mistérios da Morte
e da Reencarnação

Philippe Deschamps

CO O RD E N AÇÃO E SUPERVISÃO
Charles Vega Parucker, F. R. C.
Grande Mestre

BIBLIOTECA RO SACRUZ
ORDEM ROSACRUZ, AM O RC
GRAN DE LO JA D A JU R ISD IÇÃO DE
LÍN G U A P O R T U G U E SA

Edição autorizada por:

V ROS1CRLC1ENNE
\sfe DDFFUSION
Cháteau d’Om onville
2 7 110 Le Tremblay
France
Os Mistérios da Morte
e da Reencarnação
In trodução........................................................................................................ 7

Culturas e religiões ante os mistérios da m o rte...................................... 13

A alma é im ortal?.......................................................................................... 87
Traduzida da versão francesa de setembro 1999
Reencarnação, uma das mais velhas teorias do m un do .............. ....... 137

Ia Edição em Língua Portuguesa A morte na história ocidental................................................................... 183


setembro 2003
A experiência de morte im in en te............................................................195

O acompanhamento de a g o n iz a n te s ..................................................... 21 7

O lu to ............................................................................................................ 239
ISBN - 8 5 -3 17 -0 17 1-6
O contato com os m o rto s..........................................................................267

Todos os direitos reservados pela Causas e antídotos do medo da m o rte ................................................... 277
ORDEM R O SACRUZ, AM O RC
GRAN DE LO JA D A JURISD IÇÃO Breve tratado da a lm a ................................................................................ 287
DE LÍN G U A P O R T U G U E SA
A morte: comparações com o sono e o nascim ento............................ 299

O suicidio.....................................................................................................325
Proibida a reprodução em parte ou no todo
Símbolos da alma e da m orte................................................................... 331

Composto, revisado e impresso na O destino da a lm a .......................................................................................339


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www.amorc.org.br
«_!v níw cáição

Há alguns anos, grande parte dos livros editados sobre o


tema da morte ressaltava que esta havia se tornado assunto
tabu por excelência nas sociedades modernas. Seus autores
explicavam que nossa sociedade do materialismo triunfante
exaltava a vida, a força e a saúde, que as pessoas en­
fraquecidas ou deficientes eram afastadas dela, que os velhos
eram cada vez mais isolados em asilos e que morria-se cada
vez menos em casa e mais no hospital. Nos círculos médicos
da época, o doente era cercado de mil meios técnicos cujo
único objetivo consistia em perpetuar a vida. A morte não
era mais aceita, tornara-se sinônimo de fracasso; fracasso
para a vida, fracasso para o corpo médico, e a ceifeira metia
medo.

Apesar de continuar válido em muitos casos ou cir­


cunstâncias, hoje esse fato precisa ser diferenciado. Unidades
de tratamentos paliativos, para ajudar os doentes terminais,
foram criadas. Graças à ação de médicos e psicólogos de países
anglo-saxões, depois de toda a Europa, a noção de acom­
panhamento do paciente terminal veio à luz do dia. As
experiências de morte iminente, relatadas por milhões de
testemunhos, obrigam nosso mundo a reconsiderar seu ponto
de vista sobre a morte ou, pelo menos, sobre suas fronteiras.
Regularmente, nos últimos vinte anos, o assunto tem aparecido
nos jornais, por vias indiretas. E só lembrar-se dos debates sobre
a eutanásia, das reflexões sobre o aumento da taxa de suicídios,
dos conflitos em torno do aborto, do surgimento dos
tratamentos paliativos...
Tudo isso poderia fazer crer que o homem e a mulher Ao se abordar pela primeira vez o tema do falecimento, logo
modernos finalmente estão reconciliados com sua morte e que se percebe, com surpresa, que ele se assemelha à roca daquela
ousam encará-la. As aparências, porém, são enganosas. A fiandeira mágica, de onde se puxa um fio que nunca chega ao
transformação veio de uma pequena elite do mundo médico, fim. Suas ramificações são bem numerosas e tocam praticamente
mas o modo como a imprensa aborda o assunto é superficial. todas as áreas da vida. A medicina, a economia, a filosofia, a
Nenhuma verdadeira pesquisa profunda jamais foi empre­ física, a própria arte, são interpeladas, bem como muitas outras.
endida pelo grande público, e isto é lamentável. A escatologia, Sob sua influência, todo um trabalho pôde ser empreendido na
a ciência da morte e dos fins últimos, é um daqueles temas que música. Algumas das mais belas peças musicais foram, com efeito,
não deveriam ser delegados a uma outra pessoa, por mais sábia requiem e outros stabat mater. Mozart estava familiarizado
que fosse. Nenhuma sociedade deveria se poupar de uma (alguns diriam obcecado) com a idéia da passagem; ele legou ao
reflexão profunda acerca do assunto, levado ao nível das mundo um dos mais belos requiem , que foi terminado por outro
individualidades. Se as seitas proliferam tanto hoje em dia, é compositor, após sua morte.
por causa da pobreza e mesmo ausência de respostas quanto
Mais que outras questões, a morte insinuou-se sutilmente
ao sentido da vida.
no coração de todos os campos da atividade humana, enquanto
o ser humano se recusava a reconhecê-la. Estaria fora de
O ser humano tem necessidade de dar significado àquilo
questão apresentar tudo neste livro; para isso, seria preciso uma
que ele vive. Se não se sente ajudado nessa busca, ele vai
“E nciclopédia da m orte”, que ainda está por ser feita. Não
procurar as respostas não importa onde, mesmo à custa de
obstante, o método utilizado foi o de observar o maior número
grandes riscos. E evidente, até mesmo após uma análise
possível de campos em que a morte se sinalizava. Tratava-se
superficial, que as respostas para os mistérios da morte
de compreendê-la melhor, esclarecê-la, até mesmo acostumar-
condicionam o significado dado a cada vida. Se a morte não
se com ela. Ao leitor, cabe fazer a sín tese intuitiva, sem a qual
tem nenhum sentido, então, a vida também não possui sentido
não há conhecimento verdadeiro. Para compreender a morte,
nenhum, e vice-versa. A evolução do espírito humano, no
deve-se, em primeiro lugar, partir para a descoberta de
momento em que este ganha profundidade e altura, cedo ou
diferentes culturas e aperceber-se de que, apesar das
tarde passa por essa meditação. Trata-se de uma questão de
divergências, elas possuem inúmeros pontos comuns.
amadurecimento.
Será que se pode efetivamente abordar o assunto sem se
Este livro se propõe a ser uma baliza para aqueles que não levantar uma reflexão sobre a noção da imortalidade, tão
sabem por onde começar sua busca do sentido da grande freqüentemente aceita como um postulado? A reencarnação é
viagem. Sem ser exaustivo, ele procura agrupar conhecimentos uma doutrina compartilhada por mais da metade da população
atuais, sintetizando-os e explicando-os à luz da filosofia do globo. Pode ela significar um fator importante de
Rosacruz. compreensão da vida e, por extensão, da felicidade?
Se as atitudes do ser humano face à morte evoluíram no morte simbólica das coletividades acompanhada de dificuldades
curso dos séculos, os principios básicos de suas reações ainda maiores para os indivíduos. Cada pessoa, então,
psicológicas são geralmente os mesmos. Conhecê-los nos ajuda questiona-se frente ao desconhecido amanhã. Sutilmente, a
a dominar melhor nossas próprias emoções diante do evento, humanidade volta a ganhar consciência de sua mortalidade
quando ele fustiga nós mesmos ou outrem. E para esses pontos (pela qual poderá, pela primeira vez, tornar-se responsável),
e muitos outros que este livro tentar propor algumas respostas. após os delírios científicos do século 19. A tendência natural é,
portanto, questionar a morte. Longe de constituir um sintoma
Não se trata aqui de assumir uma posição dogmática, mas de fatalismo ou de medo do futuro, trata-se de uma prova de
simplesmente de dar o que pensar e expor questões motivadas maturidade, que só precisa ser generalizada. Confrontado com
por conhecimentos e fatos exatos. A morte não faz parte das a realidade daquela que não é mais oculta, o ser humano
nossas categorias habituais de conhecimentos. Logo, não pode geralmente volta a situar suas ambições num quadro mais
ser abordada da mesma maneira que qualquer outro assunto modesto que, em si mesmo, é portador de futuro. Assim, ele
acadêmico. E preciso proceder diferentemente e também ganha consciência daquilo que um poema de Paul Fort
recorrer tanto às faculdades da imaginação humana como às descreve tão bem:
suas dimensões racionais e intuitivas. Por esses motivos, estão
reunidos aqui os aspectos rituais ou simbólicos e elementos “Na terra, devem os nos amar.
mais objetivos ou psicológicos. Enquanto vivos, devem os nos amar.
Não con fies em cem itérios.
Para abordar o tema da morte, na forma como explicaram Antes deles, devem os nos amar.
os ocultistas de antigamente, é preciso querer se lançar a ele; Teu p ó e m eu p ó
ousar fazê-lo, pois a busca é repleta de armadilhas; saber, mas Serão sem entes de ventos. ”
isto vem do buscar e do aceitar jogar fora antigos preconceitos;
depois, calar-se, pois os frutos das descobertas são inco­ Em todos os tempos e lugares, os místicos sempre tiveram
municáveis. A síntese só pode ser pessoal, como uma convicção maior alcance nesse gênero de reflexão. A particularidade do
adquirida à custa de uma busca tenaz. Esse processo, aliás, presente trabalho consiste, entre outros, em demonstrar que
não deixa incólume seu autor. Forçosamente, haverá para ele os espiritualistas do mundo conheciam e codificaram, há
um antes e um depois; assim como para a maioria dos que, muitíssimo tempo, o que a ciência parece estar redescobrindo
algum dia, perderam um ente querido pela primeira vez. após dois séculos de ocultação.

Se a velha ceifeira fascina cada mais vez nossa época (como


Ankpu, o Velho Homem-Morte, da Bretanha), é porque nossas
sociedades vivem uma transformação sem precedente. Essa
(u i/ ü iiaj e ze/ú/tóej
an te o) m htezioj d a m oiie

Ao se estudar as crenças dos povos em relação à morte, fica-


se imediatamente espantado com a diversidade das atitudes.
Não se morre na índia como no Ocidente, e os ritos e
convicções que cercam um falecimento mostram-se tão
diferentes quanto a índole de cada uma das nações que lhes
deram origem. Conhecer as práticas e as idéias de um povo
sobre o assunto significa desvendar uma parte de sua alma.
Mas poderíamos nos perguntar: Por que explorar um mosaico
de culturas para compreender o incompreensível?

É que, através da aparente multiplicidade, existe, parado­


xalmente, certo número de pontos comuns que se repetem
como um leitm otif. "Onde háfum aça, h á fo go ”, diz o provérbio
popular. Pode-se, portanto, apostar no seguinte: se várias
tradições diferentes concordam num determinado número de
detalhes, então, certamente elas refletem uma verdade sutil ou
uma corrente de pensamento subterrâneo que as engloba todas.
Poderíamos igualmente estabelecer um a priori que nos levaria
bem longe: mesmo as diferenças de crenças, como a
reencarnação dos orientais ou o Julgamento Final das religiões
monoteístas, longe de serem irreconciliáveis, poderiam até ser
complementares. Uma passagem do Corão explica que cada
povo recebeu, em sua história, um profeta enviado pela
Divindade. Se isso se mostrasse exato, então as divergências
entre as culturas corresponderiam não mais que a uma
diferença de acento, colocado em tal ou qual aspecto de um
conhecimento muito mais amplo. Claro está que essa Em seguida, vem o imortalismo. Segundo essa idéia, a alma
particularidade levaria em conta a mentalidade, a cultura e seria imortal, num estado intraduzível e completamente diferente
até a própria terra dos povos aos quais fosse direcionada. da vida na terra. E o credo das religiões monoteístas que pregam
Assim, através dos pontos comuns e das divergências o Julgamento Final, depois do qual a alma se une ao seu Deus.
comparadas e depois sintetizadas, o observador poderia ter Finalmente, vêm as doutrinas reencarnacionistas, às quais estão
uma idéia intuitiva dos verdadeiros mistérios que o aguardam ligadas as religiões orientais, alguns grupos animistas e grande
no além. Nenhuma cultura ou religião pode ter a pretensão maioria dos esoterismos dos cinco continentes.
de possuir, sozinha, o conhecimento total do assunto. Se um
dia a história da torre de Babel foi narrada, talvez o tenha Essa separação das culturas em três grupos fechados foi aqui
sido porque o futuro da humanidade passe forçosamente por intencionalmente exagerada a fim de facilitar a orientação do
uma aproximação voluntária, compreensiva e respeitosa das buscador em meio à aparente selva das convicções. Na realidade,
diferentes crenças locais. É a esse exercício que este capítulo as três concepções muitas vezes coexistem dentro da mesma
o convida. tradição. E assim que o islã descreve o paraíso em termos
sobrevivencialistas (uma vida de felicidade em meio a todos os
O único conselho que se poderia dar pode ser expresso objetos amados); já a esperança de vida do ser humano, após o
assim: o leitor poderia imbuir-se de cada tradição, uma a uma, julgamento, é descrita em linguagem imortalista. Por fim, o
e, em seguida, deixar seu subconsciente fazer o trabalho de esoterismo muçulmano recorre à doutrina da reencarnação.
síntese. Assim, dessa diversidade brotará a unidade de uma
concepção que será totalmente pessoal. Essa síntese intuitiva, Pode-se ainda acrescentar que, em certos aspectos, algumas
bem mais útil que um dogma recebido de fora, permitir-lhe-á crenças religiosas assemelham-se mais ao materialismo do que
então, por uma melhor compreensão da morte, equilibrar sua à idéia de imortalidade. Os primeiros hebreus, por exemplo,
vida para que ela tenha mais luz, otimismo e alegria. ensinavam que o corpo e a alma estão indissoluvelmente unidos
e que o desaparecimento de um provoca o do outro. Isso não é
Desde logo, podemos classificar as culturas em três grupos. a mesma coisa que a posição materialista segundo a qual a alma
Essa classificação, atribuída a Isola Pisani, parece ser a mais é o produto teórico das reações físico-químicas do cérebro?
simples e a mais rica de significados. Comecemos pelo De acordo com essa opinião, com a morte do cérebro, a alma
sobrevivencialismo. E a concepção segundo a qual o ser desaparece concomitantemente.
humano, após sua morte, sobrevive num mundo paralelo. Os
celtas, como também as tribos da África, da Indonésia e da Dentro de uma mesma religião, pôde-se igualmente observar
América, aderem ou aderiam a essa crença. O culto dos a evolução das idéias no curso da História. Que há de comum,
ancestrais é geralmente formulado a partir de conceitos por exemplo, entre as crenças judaicas modernas e as do início
sobrevivencialistas. do Antigo Testamento, a Torah hebraica?
O judaísmo Mas a posição dos saduceus era a de uma elite pensante
Para abordar a concepção judaica da morte, é útil debruçar- que se tornou a elite social da comunidade. Não se sabe ao
se sobre os textos da Torah (a lei judaica) e do Antigo certo se eles fizeram muitos rivais no meio do povo, que aspirava
Testamento. Não obstante os israelitas de hoje aderirem a um outro futuro. Os saduceus reclamavam do sacerdote
claramente à noção da imortalidade da alma, nem sempre foi Sadoque, sacerdote do rei Davi, e cuja família manteve o
assim de m aneira tão clara. Além disso, m uitas vezes sacerdócio no tempo de Salomão. Já mesmo no Eclesiastes,
esquecemos que não existe apenas um judaísm o, mas que se supõe ter sido escrito pelo próprio Salomão (mas, mais
judaismos, assim como também existem divisões dentro do provavelmente, obra de um mestre de sabedoria), encontram-
cristianismo. Esse é um dos motivos pelos quais devemos ter se alusões a essa crença. "Vaidade das vaidades”, nos diz o
prudência ao analisarmos concepções religiosas. Conforme as Eclesiastes, "tudo é vaidade e p ersegu içã o de v en to ”. O ser
correntes ou os interlocutores, podemos nos defrontar com humano estaria na terra para comer, beber e trabalhar; tudo o
diferentes sutilezas de idéias. mais seria, segundo o autor, “perseguição de ven to ”, e a morte
Ao longo de toda a história do povo judeu, a questão viria encerrar o baile. "Nunca mais eles tom arão parte em tudo
que é fe ito sob o so l”.
da morte foi considerada secundária (conforme eles
mesmos confessam). O importante, dentro da comunidade Outros textos fazem da morte o desaparecimento completo
judaica, é a vida, que deve ser aproveitada ao máximo: do ser humano: "E neste m esm o dia seus anseios p erecem ” (Salmo
segundo alguns judeus, o ser humano está na terra para 146,4); "Não são os m ortos que celebram o Eterno, nem nenhum
cumprir a lei divina e render graças ao Criador. Sua missão dos que descem ao lugar do silên cio ” (Salmo 115, 17). Trata-se
cessa com a morte. Mesmo que hoje o pensamento judeu de uma visão que exclui toda possibilidade de imortalidade
im agine que a personalidade, após a passagem, una-se à para o ser humano. Somente mais tarde, foi que apareceu a
Alma Universal, os textos abordando a questão do além tese da ressurreição no final dos tempos. E mais adiante, no
não sao tantos assim. Eclesiástico: "Dá, recebe e ilude tua alma, porque, no Hades, ela
Alguns estudiosos, aliás, explicam que os saduceus da época não há de encontrar delícias. Toda carne en velh ece com o uma
do Cristo (dos quais fazia parte o sacerdote Caifás) não vestim enta; pois assim é a lei eterna: certam ente morrerás. Na
acreditavam na imortalidade da alma. Para eles, o ser humano folh a gem de uma árvore frondosa, folh a s caem e folh a s brotam,
está na terra para cumprir os desígnios divinos e a morte põe assim tam bém as gera ções de carne e sangue: um a morre, outra
fim à sua função. O historiador judeu Flavius Josefo assim se nasce. Toda obra corruptível desaparece, e seu autor se voltará
expressou, por volta de 50 d.C.: "A opinião dos saduceus é de contra ela ”. Que outro modo melhor de enaltecer a vida e fazer
que as almas m orrem com os corpos; que a única coisa que som os da morte uma inimiga?
obrigados afa z er é observar a lei, e que é uma ação virtuosa jam ais Naqueles tempos, a exemplo dos povos da Antiguidade,
renunciar, sabiamente, àqueles que nô-la ensinam ”. alguns hebreus acreditavam, vale dizer que de maneira um
tanto nebulosa, que os mortos vagavam num lugar de trevas gregos e dos neoplatônicos, foi que a noção de imortalidade
situado embaixo da terra, chamado cheol. A geena, que se deitou raízes. Entre os filósofos judeus mais tardios, a tônica
tornou sinônimo de fogo do inferno, era um vale situado a foi igualm ente colocada mais na im ortalidade que na
certa distancia de Jerusalém, o vale de H innom, onde eram ressurreição. Maimônidas, no século 12, fez da imortalidade
jogados os cadáveres incinerados. E difícil saber se o ch eol, que da alma um parâmetro supremo. Mas desde o segundo século
se sucedia à morte, era considerado um lugar ou simplesmente antes de nossa era, havia duas correntes de pensamento no
um sinónimo para o nada. Aqui não estamos num terreno muito judaísmo: a primeira, entre os judeus alexandrinos, impre­
científico. Contudo, parece que essa idéia e a da geena foram gnados de filosofia grega, defendia a imortalidade da alma; a
algumas das origens do inferno cristão, a outra origem sendo segunda, entre os judeus da Palestina, afirmava a ressurreição
provavelmente egípcia. dos corpos.
A primeira tradição, a exemplo de Platão, apoiava-se na
O pensamento judaico, como todo pensamento religioso,
dualidade do ser humano: uma alma encarnada num corpo,
esconde outras sutilezas, e pouco a pouco revelou-se a espera
do qual podia se separar, prosseguindo numa existência
de um messias (messias significa “ungido de Deus”, como o
autônoma. A segunda baseava-se numa interpretação
Christos grego) que iria julgar os vivos e os mortos. Concepção, fragmentária da frase bíblica: “D eusfez o hom em do p ó da terra,
aliás, muito mais sustentada por movimentos ortodoxos, do
insuflou em suas narinas o sopro de vida e o hom em tornou-se
tipo L ubavich. Os fariseus, na época de Jesús, foram os um servivente". A interpretação palestina dessa frase (retomada
portadores dessa esperança messiânica. Segundo o historiador
hoje no cristianismo) faz do ser humano, “ser vivente”, um
judeu Flavius Josefo, eles representavam, com os saduceus e todo indissociável. A morte do corpo corresponde, então, ao
os essênios, uma das três correntes judaicas, na época de Jesús. seu completo desaparecimento (inclusive a alm a) e a
Um conflito importante opôs saduceus e fariseus com relação
ressurreição, a uma nova criação decretada por Deus. Se o
à ressurreição. Um saduceu disse a Gehiha B. Pesica: “—Ai de homem desaparece em sua totalidade, ele só pode renascer
vós, crim inosos ¡fariseus], que dizeis que os m ortos retornarão]
nessa mesma totalidade não dualista, de onde a idéia de uma
pois, uma vez que os vivos m orrem , reviverão os m ortos? —Ai de
ressurreição de corpos.
vós, crim inosos fsaduceus], respondeu ele, que declarais que os
m ortos não vivei‘ão, pois, uma vez que os que não existiam ganham A menos que essa concepção fosse uma perversão de idéias
nascim ento, quanto mais ainda os que já viveram !" esotéricas mais profundas, ensinadas somente aos iniciados.
Perversão acarretada por iniciados que não alcançaram a meta
Ao contrário do que geralmente costumamos acreditar, a de suas iniciações. Para a “Enciclopédia Judaica”, não há dúvida
ressurreição não é sinônimo de imortalidade. Os antigos de que: “A crença na im ortalidade da alma veio aos ju deu s a partir
hebreus não aderiam a essa crença e o além não é questionado do contato com o pensam ento grego e, mais especialm ente, através
no Antigo Testamento. Muito mais tarde, sob influência dos da filosofia de Platão, seu principal representante
Sabemos também que a tradição da Cabala judaica (a lei de mortos. Pois quem quer que fa ça isso é uma abom inação para
oral e oculta do judaismo) faz referencia à possibilidade de Yahvé...". Para Isaías, consultar os mortos é uma absurdidade:
reencarnação da alma humana. Urna das seções do Zohar, a “Se vos disserem: consultai os que invocam os m ortos e os que
biblia dos cabalistas, denomina-se “Livro da Transmigração das predizem o futuro, os que provocam assobios e suspiros, respondei:
Almas". Explica ele que enquanto a alma humana não tiver Um p ovo acaso não consultará seu D eus? D irigir-se-á aos m ortos
desenvolvido toda sua perfeição, cujos germes ela contém, em fa v o r dos vivos?". Tratava-se de uma posição lógica para
deverá recomeçar várias existências, até que sua condição um povo cujas concepções acerca da imortalidade estavam
permita-lhe retornar a Deus. Outras correntes judaicas aderem longe de serem claras.
ou aderiram a essa doutrina. Por exemplo, ohassidismo, nascido
no século 18 e do qual alguns grupos sobrevivem ainda nos
Estados Unidos. O cristianismo
Para apresentar a posição do cristianismo, o melhor consiste
Há também uma crença popular de que crianças que em citar o catecismo oficial da Igreja Católica, que se exprime
morrem com pouca idade são reencarnações de almas mortas sem ambigüidade sobre a questão: “A m o rte é o fim da
prematuramente (por acidente ou assassinato, por exemplo) e peregrinação terrena do ser humano, do tem po da graça e da
que não tiveram tempo de terminar seu período de existência m isericórdia que Deus lhe oferece para realizar sua vida terrena
terrena. Assim, elas precisam voltar por um curto período a segundo o desígnio divino e para decidir seu destino supremo.
este mundo, a fim de que seu mandato seja plenamente Quando chega ao fim o curso suprem o de nossa vida terrena, não
cumprido. voltam os mais a outras vidas terrenas. Os seres hum anos m orrem
som ente uma única vez. Não existe reencarnação após a morte".
Quanto ao contato com os mortos, é condenado pelo Segundo este ponto de vista “a m orte é a conseqüência do pecado
judaísmo, ainda que a possibilidade dessa comunicação seja origin al". Antes desse famoso pecado, “em bora o ser hum ano
admitida. Sobre essa questão, um dos raros textos do Antigo possuísse natureza mortal, Deus o destinara a não morrer. A morte,
Testamento baseia-se no contato realizado pelo rei Saúl e o portanto, era contrária aos desígnios de Deus criador, e entrou no
profeta Samuel, por intermédio da feiticeira de En-Dor, que m undo com o conseqüência do pecado". E a essa frase acrescenta-
praticava a necromancia ou invocação dos mortos. Não se um comentário que toma uma dimensão toda especial em
obstante, no curso desse episódio fantástico, mencionado em nossa época moderna: “A m orte corporal, da qual o ser hum ano
Samuel 28, 3, conta-se que Saul havia banido do país os teria sido poupado se não tivesse pecado, é, assim, seu últim o
necromantes e os adivinhos. No Deuteronômio 18, 9, inim igo a ser vencido".
encontramos a seguinte passagem: “Que não haja em vossa casa
ninguém que exerça a fu n çã o de adivinho, astrólogo, m ágico, Assim, a originalidade da posição cristã reside nessa idéia
bruxo, encantador, invocador de fantasm as e espíritos, consultador que alega que a morte não existia no estado de Éden. Ela foi a
conseqüência da Queda do ser humano. Embora essa idéia A posição da Igreja Católica quanto à escatologia tomou
seja de difícil concepção para nossa mentalidade moderna, um forma definida e quase clara por volta do século 13, na época e
aprofundamento pode nos trazer algumas luzes novas. sob a direção do Papa Benedito XII, chamado de o “cardeal
branco” antes de sua eleição para esse posto. Isso não significa,
A interpretação cristã da história da Queda do ser humano claro, que antes desse período a Igreja não tivesse idéias sobre
e do aparecimento da morte é estritamente literal. Baseia-se a questão. Foi nessa época, porém, que o dogma se estabeleceu
no texto da Gênese 2, 17: “Quando com eres do fru to da árvore de maneira duradoura. As idéias de inferno e paraíso que
do con h ecim en to do bem e do mal, m orrerás”. Deve-se crer, aguardavam as almas após seu julgamento, foi acrescentada a
então, que antes da australopiteca L u de existia na Terra um do purgatório. Para a Igreja de hoje: "a principal pena do inferno
ser humano imortal? E bem mais fácil admitir que esse texto consiste na eterna separação de Deus, o único no qual o ser humano
faia de uma tomada de consciência do fenômeno “morte”, num p od e ter a vida e a felicid a d e para as quais e le fo i criado e às quais
dado momento da evolução humana. ele aspira", enquanto que a noção de céu supõe uma vida
perfeita de comunhão e amor com a Santíssima Trindade.

E que o ser humano rompeu seus laços com o mundo Podemos facilmente considerar que a noção de purgatório
natural e sua consciência se individualizou o suficiente para foi introduzida sob a pressão de pensadores e do povo, os quais
que a morte representasse a n ega çã o d e sua p erson a lid a d e. decidiram que não compreendiam mais essa justiça divina. Uma
Não é isso, ao mesmo tempo, uma queda e uma evolução sem justiça impunha aos errantes ou pecadores finitos uma sanção
precedente? Ao invés de explicarmos que a morte foi uma eterna. Então, os prelados im aginaram um período de
conseqüência da Queda, podemos entender que a consciência purificação que operaria em prol das almas impuras mas
da morte e a consciência do bem e do mal representam as suscetíveis de redenção, a fim de que fossem preparadas para
conseqüências da perda do estado de inocência do animal. Essa o julgamento final redentor. Pelo menos, isso é o que afirmam
ruptura ocorreu provavelmente há várias dezenas de milhares alguns historiadores modernos, como J. le Goff. Mas a verdade
de anos, e a consciência da morte tornou-se um dos produtos é que a idéia do purgatório “estava no ar” há muito mais tempo.
dessa evolução. Toda moeda tem sempre duas faces. O ser Santo Agostinho já afirmava sua existência, ainda que seu
humano, portanto, merece o qualificativosapiens também por pensamento não fosse nem claro nem exato. Do mesmo modo,
saber que é mortal. Alguns antropólogos consideraram que os Orígenes, no século 3, expôs a existência de uma purificação
primordios da civilização coincidiram com a tomada de pelo fogo. A Igreja soube, a partir do século 12, limpar e clarear
consciência da morte e com a utilização de ritos acompanhando essa idéia, a fim de que a noção de justiça divina ficasse
infalivelmente essa conscientização. Esses mesmos pesqui­ preservada no pensamento das massas.
sadores concluíram, então, que toda civilização que negasse,
escondesse ou se desinteressasse pelo assunto apresentaria, por Na verdade, a doutrina cristã, em matéria de escatologia,
isto, sinais de barbárie e de d eca d ên cia inevitável. esteve longe de ser estável e unificada ao longo dos séculos.
Delicadezas de linguagem ou de concepção foram surgindo próxima à dos neoplatônicos com os quais estudou, ensinou,
através da História. Por exemplo, a respeito da ressurreição por sua vez, a sobrevivência de um corpo espiritual ou de um
dos corpos. Seguindo as epístolas de Paulo, a Igreja ensina corpo glorioso. Nesse sentido, ele fez eco fortemente às palavras
que, no fim dos tempos, as almas consideradas dignas assistirão de São Paulo: ‘Assim dá'se a ressurreição dos mortos. Somos
a uma ressurreição de seus corpos carnais. Uma das passagens sem ea d os co rru p tív eis, elev a m o -n o s in co rru p tív eis; som os
do Símbolo dos Apóstolos (o principal artigo da fé cristã, sem eados desprezíveis, elevam o-n os gloriosos; som os sem eados
adotado nos concilios de Nice e Constantinopla) alude a essa fracos, eleva m o-n os fo rtes; som os sem eados corpos psíquicos,
crença. Sem dúvida alguma, a Igreja, nessa época, ensinava o elevam o-n os corpos espirituais. Se há um corpo psíquico, há um
renascimento do corpo, em carne e osso, após sua putrefação corpo espiritual. O prim eiro hom em , tirado do solo, é terreno; o
no seio da terra-mãe. Segundo teólogos modernos, essa noção segundo hom em vem do céu. Eu os declaro irmãos: A carne e o
da ressurreição do corpo carnal presumiria a crença na sangue não podem herdar, do reino d e Deus, nem a corrupti­
preservação da individualidade humana na presença divina. bilidade da incorruptibilidade”. I Corintios 15, 42-45. Aliás,
Eles a opõem à idéia budista do Nirvana, que corresponde a será que devemos acreditar na ressurreição dos corpos carnais?
uma fusão na qual o ser humano perde sua identidade própria. O mundo científico nos prova hoje que o mundo material (e,
Mas isso pouca importância tem para o estudante imparcial. portanto, a carne) são ilusões decorrentes das limitações
Ele observa que, tanto num caso como noutro, o estado descrito inerentes aos nossos cinco sentidos físicos. Sabemos, por
ultrapassa grandemente toda e qualquer tentativa de descrição exemplo, que um átomo, longe de apresentar a opacidade que
humana. A natureza da suprema e derradeira experiência percebemos, é na verdade formado de imensos espaços vazios.
escatológica representa, de fato, o mistério dos mistérios. Se a carne renasce, como descrevem as religiões monoteístas,
isto significa que as ilusões renascem também com ela. E se as
K curioso notar que, alguns milhares de anos antes da era ilusões não renascerem, então é porque todo nosso mundo
cristã, uma outra civilização aderiu a essa idéia de renascimento será transformado e o termo “carne” não terá mais razão de
material do ser humano. O Egito embalsamava os cadáveres ser, no sentido como o entendemos habitualmente.
de seus grandes governantes. Acreditava-se então que a múmia
poderia ser reanimada pelo sopro de vida, após 3000 anos Mas a singularidade de Orígenes não cessa aí. Ele escreveu,
passados na mansão da morte. Teria sido por causa dessa por exemplo, que a alma é preexistente à sua manifestação
similitude nos conceitos que o cristianismo pôde se impor mais terrena (o que não é um conceito óbvio para os teólogos, que
tarde no Egito, num terreno já preparado para a nova religião? não sabem determinar se a alma é ou não criada no nascimento
da criança), e que depois da conflagração do nosso mundo, no
No entanto, desde o começo da Igreja, um de seus Pais - e fim dos tempos, outros mundos se sucederão. Explica ele “que
não um de seus ministros - argüiu contra a idéia da ressurreição irem os todos para o paraíso”\em outras palavras, que até mesmo
do corpo. Orígenes, no século 3, numa concepção mais os demônios serão salvos. Mas isso não é tudo. A exem plo de
outros Padres da Igreja primitiva, como São Justino, Clemente então um a seq üên cia d e vidas repetidas sem fim determ inado,
de Alexandria ou Sinésio (em seu tratado sobre os sonhos), a d u ra n te a q u a l a alm a não gu a rd a a co n sciên cia d e sua
História atribui-lhe uma crença na reencarnação. Eis a tradução personalidade, ou seja, um a sucessão in defin ida de existências
de um trecho do "Tratado dos Princípios” de Orígenes: “Os corpos qu e a alm a atravessa, sem gu arda r a con sciên cia d e sua in d i­
possuem apenas im portância secundária e aparecem de tem pos a vid u alid ad e”. Por fim, concluiu: “No que con cern e a prim eira
tem pos em resposta às con d ições variáveis das criaturas racionais. dessas hipóteses não vem os q u e a razão deva n ecessariam en te
As que necessitam de corpos se revestem deles e, ao contrário, tê-la co m o fa lsa ou im p ossível”.
quando as almas caídas se elevam e se tornam melhores, seus corpos
são outra vez aniquilados. Assim, elas desaparecem e aparecem Na verdade, uma tradição oral porém tenaz, visto que
incessantem ente”. Por tudo isso, Orígenes foi um dos primeiros perdura até nossos dias, explica que os primeiros cristãos
homens realmente místicos a propor oficialmente uma aderiram sem dificuldade à idéia da reencarnação. Já vimos
interpretação alegórica dos grandes textos sagrados. Sua que essa crença era comum entre muitos judeus da época
filosofia foi condenada pelo II Concilio de Constantinopla, no do Cristo. Seria mero acaso o fato de o Novo Testamento
ano 553. refletir isso complacentemente em um diálogo envolvendo
o Cristo e seus discípulos? (Mt 16, 13-18). Por que, em vez
Ao menos é nisso que se acredita geralmente, pois não há de se contentar em dar razão a Pedro quando ele deu sua
nenhuma prova indiscutível de que o Papa Vigílio, que presidia compreensão da verdadeira identidade de Jesus, este não
a Igreja nessa época, tenha dado sua aprovação a essa aproveitou a oportunidade para fustigar as crenças de então
condenação. Ele estava em conflito com o imperador bizantino referentes à suposta reencarnação de profetas?
Justiniano, que estava tentando fazer do cristianismo uma
religião de estado. O Papa Vigílio havia protestado então contra Mas voltemos à questão da ressurreição dos corpos. A
a convocação do Concilio de Constantinopla. Em todo caso, Igreja atual coloca a tônica numa posição mais espiritualista,
foi depois dessa época que o mundo cristão passou a ignorar a visto que hoje ela ensina que o corpo no qual o ser humano
reencarnação. está destinado a ressuscitar no fim dos tempos será seu corpo
transfigurado em um corpo de glória ou corpo espiritual.
Entretanto, depois dessa época, outros eclesiásticos cristãos Em outras palavras, a antiga atitude relativa a uma
se pronunciaram a favor da reencarnação. O Cardeal Mercier, imortalidade do homem dentro do mundo material está
por exemplo, escreveu em 1923 que “as idéias de reencarnação e sendo progressivamente abandonada por uma posição mais
m etem psicose ou transm igração das alm as p odem ter sentidos espiritual. Contudo, resta uma ambigüidade mantida e não
diferentes: ou bem significam uma série de existências sucessivas, claram ente resolvida em relação às duas concepções:
a tra vés das q u ais a a lm a co n serv a a c o n s ciê n cia d e sua ressurreição com um corpo espiritual ou com um corpo
personalidade e à qual está destinado um fim determ inado; ou carnal.
Associado ao tema da ressurreição, é difícil esquecer o o sincretismo aproximaria os seres humanos numa compre­
do Julgamento Final, revelado no Apocalipse de São João ensão superior, ao invés de negar ou de nivelar suas
(a palavra A pocalipse significa Revelação). Aqui, vemos particularidades.
surgir a figura central do Cristo que, acredita-se, julgará os
mortos quando de seu advento ou parusia. Nessa ocasião,
O Cristo Salvador e Redentor da religião cristã intervém
está escrito que a morte e o Hades serão julgados e
igualmente no âmago de algumas crenças antigas. Com efeito,
destruídos como resultado da lógica inversa, que vê a morte
os cristãos, até a Idade Média, acreditavam que, antes da vinda
aparecer no mundo em razão do pecado. Nesse Julgamento,
do Salvador, até mesmo as almas dos santos teriam domicílio
vemos irromper toda uma plêiade de temas simbólicos. Os
no inferno após a morte. Tratava-se, todavia, de uma zona
mortos serão examinados segundo suas obras, gravadas no
superior do inferno, denominada “limbos” ou “seio de Abraão .
livro da vida. Os que forem considerados injustos serão
Nesse lugar obscuro, separado do resto dos infernos, as almas
lançados num lago de fogo, o que corresponde a uma
dos justos gozavam do repouso, mas aguardavam a vinda da
segunda morte. Curiosamente, o grande juiz dos mortos, a
luz. Uma lenda cristã explica que durante os três dias de sua
segunda morte na aniquilação, o lago de fogo e o triunfo do
Paixão, o Cristo desceu até esse lugar para libertar os justos,
ser humano sobre a morte são temas que se encontram...
que aguardavam sua vinda. Também aqui a mensagem fica
no Livro dos Mortos dos egípcios antigos! Do mesmo modo,
clara: o ser humano não pode salvar a si mesmo completamente.
o livro, na qualidade de memória das ações, é um símbolo
Somente o Deus Salvador veio, há dois mil anos, tirar a raça
encontrado sob diversas formas em muitas tradições, e que
humana de sua situação perdida. Mais tarde, por ocasião da
há de falar m uito elo qüen tem en te aos verdadeiros
buscadores. grande conjunção, o próprio mal e a própria morte serão
erradicados.
Podemos nos guardar de fazer sincretismo primário.
Entretanto, aqui seria preciso complicar as tradições e se Em geral, o cristão tem medo da morte. Conseqüência do
concentrar demais nos detalhes para não se perceber o elo pecado, ela representa para ele uma inimiga implacável que
evidente que as une em suas linhas principais. Um elo que será vencida somente no fim dos tempos. O ser humano não e,
certamente não deve nada ao acaso. O medo do sincretismo em si mesmo, imortal, mas reviverá graças à intervenção divina.
muitas vezes subentende a angústia, muito legítima, em relação Um teólogo, o professor Olafsson, assim se expressou numa
a um totalitarismo que, longe de desenvolver o conhecimento, revista judaico-cristã: “O ser hum ano não é um ser com posto -
tornar-se-ia um pensamento único”. Mas a verdadeira síntese, corpo, alma e espirito —mas, sim, um ser form a n d o um todo,
que seria o reflexo de uma religião universal, deve preconizar [ ...] assim sendo, no m om ento da m orte, a alma deixa de existir
a tolerancia e o direito de cada indivíduo de exprimir sua [...]. Na morte, é a pessoa inteira que morre". Trata-se, para ele,
própria compreensão de determinadas leis gerais. É então que de uma primeira morte; mais adiante, porém, ele evoca o
grande julgamento que deverá preceder a ressurreição ou a O Islã e a morte
aniquilação: % segunda m orte ép erm a n en te, é o fiim definitivo A concepção clássica da morte, entre os muçulmanos, é de
da vida no tem po da suprem a elim inação do m al no universo"
fato diametralmente oposta à do mundo judeu. Enquanto esse
Agora podemos entender por que motivo o cristão teme a
último glorifica a vida, fazendo de sua suspensão uma fatalidade
morte. Ela corresponde ao desaparecimento completo de sua decidida por Deus, o muçulmano, sem chegar a louvar o suicídio,
existencia, seguido de um período de vazio cuja coroação será vê na morte um propósito desejável. Os textos do Corão incitam
um julgamento. Esse verá os bons se elevarem a um paraíso e o combatente do Djihad, a Guerra Santa, a morrer por sua fé:
os maus serem ou lançados no inferno ou aniquilados. Raras “E não digais, dos que são assassinados na senda de Alá, que eles
são as pessoas que podem afirmar sua santidade no momento estão mortos. Ao contrário, eles estão vivos, mas vós sois inconscientes
da grande partida.
disto’’. Corão 2,154. A eles, o paraíso onde serão acolhidos: uNesse
dia, os com panheiros do jardim se deleitarão no trabalho, com suas
Em contrapartida, os judeus não temem a morte. Os de esposas purificadas (as huris de grandes olhos negros), à sombra,
hoje aceitam a idéia da imortalidade da alma e não fazem da recostados em divãs. Lá, no deleite a que aspiram ... terão por
morte uma inimiga, mas uma necessidade inerente aos ciclos morada jardins onde correm riachos. E os farem os fica r sob uma
naturais. Para eles, não haverá um tempo em que a morte será copa sombrosa. E terão ju n to a si belas de olhos grandes (as huris),
abolida. “Pessoalmente, não creio nisso; existe um ciclo b iológico de olhar casto, semelhante ao branco bem preservado do ovo. Faremos
que nos perm ite pensar que isso durará assim p or todos os tem pos ", circular entre eles uma taça de água retirada de uma fo n te alva,
confidencia o dirigente de uma sociedade cultural israelita. Por saborosa de b eber... ”, etc.
conseguinte, a morte é compreendida pelo mundo judeu como
uma lei natural. A compreensão da morte, pelo mundo muçulmano, pode
ser comparada à de Platão (o que, aliás, provavelmente explica
a facilidade com que os sufis se assenhoraram das doutrinas
Paradoxalmente, as religiões monoteístas não aceitam platônicas). O ser humano vive em exílio na terra, tendo perdido
oficialm ente a idéia da reencarnação, mas fazem da o contato com Deus. Sua vida deve constituir um exemplo de
conservação da individualidade inteira o tema central de sua submissão à Divindade (uma das interpretações da palavra islã
ressurreição. O budismo, por sua vez, ensina a ilusão do ego é “submissão”). Somente depois da morte, graças a uma
e seu desaparecimento, ao mesmo tempo em que afirma a reconciliação, ele terá novamente acesso à visão do Altíssimo,
idéia da reencarnação. Há ou não há contradições flagrantes numa paz inefável. Assim, a morte seria uma espécie de
no âmago de cada corrente de pensamento? Não haveria uma libertação cheia de promessas para o muçulmano. A ela,
posição capaz de realizar a síntese dessas concepções, na sucede-se um julgamento no “dia da retribuição”. Existe aqui
forma de um mistério que transcende a compreensão uma visível distinção em relação ao cristianismo. A medida com
humana? que o mortal é julgado não pesa diretamente as virtudes que
ele praticou durante sua vida. Não se trata aqui de moral Existem algumas crenças difundidas no mundo árabe-
cristã. Na realidade, será considerado digno do paraíso aquele muçulmano. Por exemplo, a que explica que o morto, enterrado
que aceitou a mensagem do Corão. A adesão à fé é tão conforme os preceitos do Corão, aguarda que Azráel (o anjo da
importante que, segundo a palavra do profeta, “Deus con ced e morte) venha conduzi-lo, pela mão direita ou pelos cabelos, até
o paraíso a todo m orto atrás do qual se alinhem três fileira s o paraíso de Alá. Azrãel é tido também como aquele que separa
para a p r e c e ”. Não se faz referencia ao seu modo de vida. No a alma do corpo daquele que acaba de morrer. Chegando ao seu
entanto, trata-se de uma diferença superficial, pois, ñas destino, dois anjos visitam o recém-chegado e o interrogam acerca
entrelinhas, o Corão contém efetivamente um código de vida de questões relativas aos principais artigos de fé do muçulmano.
moral. É por isso que os vivos recitam, depois do enterro, certos textos
que lhe sugerem as respostas a serem dadas.
Em seguida ao julgamento final, assim como no cristianismo
mas de m aneira mais direta, faz-se referencia a urna A atitude do moribundo pouco antes de sua partida é muito
ressurreição do corpo ou a urna eterna estada no inferno. Deve- importante no islã. Várias frases atribuídas ao profeta referem-
se reconhecer que, embora o texto possa ser interpretado se à atitude necessária: "Que qualquer um de vós m on a som ente
também de maneira simbólica (como a maioria dos textos tendo boa opinião de Deus. Lembrai aos vossos moribundos, em
sagrados), a força das imagens conseguiu nutrir por muito seus últim os m om entos /a fórm u la da fé]. Alá é o único Deus.
tempo a fé simples dos beduinos e dos árabes no renascimento Aquele cujas últim as palavras fo rem Alá é o único D eus’ irá para
de seu próprio corpo físico. A surata 75 do Corão assim exprime o paraíso”.
a ressurreição:
Depois de morto, o corpo da pessoa é lavado, em seguida
“3. Pensa o ser hum ano que nunca reunirem os seus ossos? envolvido em três peças de tecido, de preferência branco.
4. Ah, sim l S om os ca p a z es d e c o lo c a r n o lu g a r as Depois, é enterrado sobre seu lado direito (nos países árabes),
extremidades de seus dedos. com o rosto voltado para a qibla (a meta), representada pela
24. E, nesse dia, haverá visões assombrosas, Ka’aba ou Pedra Negra de Meca. Preces para o morto podem
25. Que aguardam catástrofes p or sofrer. então ser feitas, mesmo na ausência do corpo.
40. Não é Ele (Alá) capaz de fa z er reviver os m ortos? ”
É claro que no islã, como em muitas outras religiões, existem
Mas, ainda aqui, pode-se perguntar se o texto não deve correntes mais esotéricas. Movimentos, como o sufismo, aceitam
ser visto como uma alegoria. Nesse caso, ele poderia de bom grado a doutrina das reencarnações sucessivas. Um
descrever a ressurreição do ser humano espiritual, no sentido pensamento atribuído a Maomé possui informações ricas de
com que Orígenes, um dos Pais da Igreja Católica, o implicações: “R ecebi do m en sageiro d e D eus dois tipos de
entendia. conhecim ento. Ensinei um deles, mas se eu houvesse lhes ensinado
o outro, ter-lhes-ia calado a voz”. A respeito disso, aliás, algumas nove esposas). Ao passo que Sidarta Sakyamuni era, segundo
suratas do Corão dão estranhamente o que pensar, aínda que a lenda, filho de um rei, muito protegido na infância, que
não constituam provas irrefutáveis: “Como podeis renegar Alá, conheceu tarde a morte, a velhice e a miséria dos homens. Essa
urna vez que Ele vos deu a vida quando éreis mortos, depois Ele experiência o marcou para sempre. Não podemos ser parcos
vosfa rá m orrer e depois Ele vosfa rá reviver e, p orfim , retornareis na compreensão da personalidade dos grandes fundadores de
a E le” 2, 28. “Não vistes os que saíram de suas m oradas (há religião. O ensinamento deles foi forçosamente tingido por sua
milhares delas) p or m edo da m orte? Depois Alá lhes disse: Morrei. educação, sua cultura e sua psicologia própria, bem como as
Após o quê, Ele os d evo lveu à vida. Sim, Alá é d eten tor da de seu povo. Seus discursos, relativamente ao verdadeiro cerne
m isericórdia para com as gentes; mas a maioria delas não é grata” de sua doutrina, são como a casca que envolve a polpa da noz;
2, 243. nada mais são que o invólucro. Alguns devotos só se interessam
pela casca, ao passo que os mais clarividentes aspiram a comer
Os sábios sufis apresentam-se como detentores de fato do apenas a polpa viva.
conhecim ento esotérico evocado pelo profeta. Desse
conhecimento, algum as luzes, como raios fulgurantes, Existe ainda um assunto interessante a ser abordado. Trata­
perpassam, de tempos em tempos, o Corão. Um outro se da viagem, quase miraculosa, que o profeta Maomé teria
movimento semelhante ao islã também defende a idéia da feito, certa noite, pela graça do Altíssimo, entre a mesquita Al-
reencarnação. Os drusos do Líbano ensinam que a alma, após Haram de Meca e a mesquita Al-Aqsa de Jerusalém. Esse
sua transmigração, reencarna-se imediatamente. Acreditam milagre está narrado na Sira, a biografia oficial do profeta. A
também que, entre eles, nascem somente almas de antigos Sira foi composta no século 8 por Ibn Ishaq, um letrado que
drusos que morreram. consagrou sua vida à pesquisa das tradições relativas ao profeta.
A história relata que, por um meio miraculoso, o profeta foi
Vale dizer que a visão da reencarnação do esoterismo transportado a Jerusalém. Chegando ao local que se tornou a
muçulmano é totalmente diferente daquela do budismo. mesquita de Jerusalém, Maomé subiu ao céu por uma escada,
Enquanto o budismo vê no renascimento uma maldição que o conduzido pelo anjo Gabriel. Se os exegetas não concordam
ser humano lança contra si mesmo, o islã esotérico vê nele uma entre si sobre os detalhes dessa experiência, a um só tempo
nova chance para a alma chegar à perfeição. Entretanto, mais viagem fabulosa e ascensão celestial, os teólogos muçulmanos
uma vez, para além das divergências de visão, a conclusão da vêem nela uma viagem da alma rumo a Deus e um modelo
história, tanto para o sufi como para o budista, é a mesma, ou escatológico. São as seguintes as etapas da ascensão: Maomé
seja, o fim das encarnações quando a mestria é alcançada. Aliás, sobe uma escada, a mesma que se estende para o moribundo
é possível que a diferença de análise tenha uma relação direta no instante de sua morte. Chega diante de um portal, chamado
com o caráter dos dois fundadores dessas religiões. Maomé “Grade dos sobreviventes”, que é guardado pelo anjo Ismael,
era um guerreiro, abocanhava a vida com todos os dentes (teve enquanto Gabriel lhe serve de guia durante toda sua elevação.
Maomé chega, então, ao primeiro céu, onde todos os anjos lhe mística com Deus. Para ele, trata-se, portanto, de uma
sorriem, exceto Malik, o guardião do inferno. Esse primeiro céu experiência espiritual. Veremos, aliás, que é sempre muito difícil
contém, na verdade, o inferno. O profeta assiste, então, aos desemaranhar as descrições das experiências ligadas às diversas
sofrimentos terríveis que se desenrolam ante seus olhos. Ele escatologias e a codificação de experiências místicas. Umas e
encontra Adão, o primeiro homem, que julga seus descendentes. outras muitas vezes são parecidas. Ibn Arabi, em “R evelações”,
Depois, Maomé entra no segundo céu e encontra os “doispnm os” põe em cena um filósofo e um místico que fazem, juntos, a
de Jesus e o apóstolo João. No terceiro céu, ele vê José, filho de viagem para o céu. O primeiro pára no sétimo céu, enquanto o
Jacó, e, no quarto céu, Idris. No seguinte, um homem barbudo, místico é admitido aos mistérios divinos. Segundo essa história,
de cabelos brancos, aborda-o: trata-se de Aarão, irmão de Moisés. haveria, portanto, outros níveis de experiências, superiores ao
O próprio Moisés, ele encontra n o sexto céu e, no sétimo, Abraão sétimo céu. Do m esm o m od o, p od ería m os concluir daí que a
pega sua mão e o conduz ao paraíso. ascensão da alma após a morte aconteceria através de um
número superior a sete níveis.
Essa ascensão é, de fato, muito útil para ilustrar o tema de
que nos ocupamos. Como em m uitas tradições, nela O Egito antigo
encontramos um condutor, Gabriel; um guardião, Ismael; e Uma vez que as religiões monoteístas modernas foram
um guardião dos infernos, Malik. Encontramos igualmente abordadas, convém agora nos debruçarmos sobre as culturas
um juiz, que é encarnado aqui por Adão, o primeiro homem. mais antigas, começando pelo Egito antigo. O Egito foi um
Cada uma dessas personagens representa, na verdade, um dado dos principais berços da civilização, embora não tenha sido o
personificado da experiência. Na surata 17 do Corão, versículo único. A Suméria e a índia podem igualmente reivindicar uma
44, Al’Isra, a viagem noturna, alude a essa ascensão aos sete antiguidade e uma influência fundamental. Alguns estudiosos
céus: “Os sete céus e a terra e os que nela se encontram celebram afirmaram que os próprios gregos teriam tirado sua inspiração
Sua gló ria ”. O versículo 21 também faz alusão a uma espécie mitológica nos grandes mitos do Egito antigo. Deve-se
de hierarquia das almas depois da morte: “Vede co m o reconhecer, aliás, que alguns deuses gregos possuem protótipos
fa vo recem o s algum as mais que a outras. E, no além, há classes egípcios. O deus grego Hermes, por exemplo, tem seu
mais elevadas e mais privilegiadas”. Isso lembra aquela frase do equivalente em seu primo próximo, o egípcio Toth, tanto que,
Cristo: “Na casa de m eu Pai há m uitas m oradas”, João 14,2. quando da helenização do Egito, a partir do século 4 antes de
Todos esses dados parecem ser um leitm otive, que, mais Jesus Cristo, os dois eram um só.
adiante, veremos que aparece em grande número de culturas.
Se os teólogos muçulmanos viram na ascensão do profeta uma O Egito enfrentava a morte não sem um certo medo, mas
prefiguração do destino das almas dos mortos, Ibn Arabi, um com a certeza da vitória. Isso constitui, de fato, a originalidade
dos sufis mais célebres do século 8, interpretou-a como o dessa cultura. Grande parte das atividades políticas, sociais e
modelo da emancipação da alma, a qual precede sua união religiosas desse povo girava em torno do tema da morte. O
Egito fazia da conquista do além um verdadeiro empre­ trevas, que a leva, depois de múltiplas peripécias (dentre as
endimento. Inicialmente, o privilégio de dominara morte era quais um combate com a serpente do mal, Apófis), até diante
exclusivo dos faraós, considerados representantes de Deus na de Osíris, o deus bom e perpetuamente regenerado, que triunfa
terra. Depois, a partir do fim do Antigo Império, essa prática eternamente sobre a morte. A morada do rei do mundo inferior
se democratizou. O Egito apresentou uma das primeiras éA m enti ou País do Ocidente. Nesse país, encontra-se também
tentativas de balizar o percurso da alma depois da morte. o Duat. Um lago de fogo e os campos de fogo que cor­
Tratava-se de delimitar a morte, de fazer triunfar a vida sobre respondem ao inferno estão situados nele.
a morte. Nas tumbas, junto aos corpos mumificados, os
egiptólogos encontraram grande número de exemplares do Ali, o morto glorifica Osíris, do qual emana um poder
famoso Livro dos M ortos. Segundo a crença, esse livro indica extraordinário de redenção e salvação. /Osíris é o deus
ao viajante do além as fórmulas que lhe permitem triunfar nas sacrificado e desmembrado, cuja esposa, Isis, reuniu suas
provas que o aguardam antes de atingir a imortalidade. A partes espalhadas, dando-lhe assim acesso à imortalidade.
primeira noite depois da morte conduz o morto rumo à luz da Trata-se de uma espécie de prefiguração do Cristo. Em
manhã, após uma jornada que, a exemplo do périplo noturno seguida, o morto comparece ante o tribunal de Osíris, na
do deus Rá, tem a duração de doze horas. O livro é um conjunto presença de doze dos principais deuses do panteão egípcio.
ilustrado de fórmulas de poder e de cenas cujo objetivo é Na ordem de distribuição, são eles: Anúbis, o deus com cabeça
permitir ao interessado evitar aquilo que ele temia acima de de chacal, guardião do portal e guia dos mortos; Hórus, com
tudo: a segunda morte. Nessa espécie de drama ritualístico, o cabeça de falcão, cujo olho é o único que pode contemplar a
morto se vê confrontado por visões. Um a um, ele se identifica luz diretamente; Isis, esposa de Osíris, e Néftis, sua irmã; em
aos deuses ou ao seu próprio medo de desaparecer, aludindo, seguida, Toth, o deus com cabeça de íbis, deus dos escribas e
assim, à dualidade do ser humano. da sabedoria; Maat, deusa da verdade-justiça, com seu
emblema, a pluma de avestruz... Quarenta e dois juizes
Primeiramente, a alma cruza o portal da morte que leva ao assistem à então célebre pesagem do coração do morto. A
além. E, então, ofuscada pela “plena luz do dia ”. Notem aqui estrela desse tribunal (como o leitor já deve ter adivinhado) é
que o lugar da luz do dia é, paradoxalmente, o além. A incontestavelmente Osíris, diante do qual ergue-se a balança
propósito, o verdadeiro nome do Livro dos Mortos é “Saída da justiça. No topo de seu eixo, zelando, vê-se um símio,
para a Luz do Dia”. Do mesmo modo, o deus Osfris, soberano emblema de Toth.
desse mundo, porta o título de “Sol dos Mortos”, como se a
esfera realmente desejável para o homem fosse esse reino. A Agora, deixe sua imaginação transportá-lo ao Egito antigo,
alma, ao retomar sua consciência, sente uma atração irresistível a fim de interpretar os símbolos. A pesagem do coração realiza­
por seu corpo, para o qual se volta. Entretanto, as entidades a se na presença de Maat, que representa a lei, a verdade
afastam do túmulo. Ela vai, então, atravessar uma região de universal e a norma divina. Em outras palavras, a consciência
do morto (uma vez que o coração era tido como a sede da e cuja essência oculta nutre as divindades do Duat, do Amenti e
consciência moral) vê-se confrontada com as leis e a ordem do Céu. Eu sou o govern a n te do Oriente, Senhor das duas fa ces
universais. Um recipiente, no qual se encontra o coração ou Ab, divinas. M eu esp len d or ilu m in a tod o ser ressuscitado que,
é colocado num dos pratos da balança. No outro está a pluma enquanto passa no reino dos m ortos p or transfonnações sucessivas,
de avestruz, símbolo de Maat. O coração deve ser mais leve que busca penosam ente seu cam inho através da região das trevas.
urna pluma. Não é o que se diz da pessoa que possui uma
Em verdade, eu sou Rál
consciência tranqüila, que ela tem o coração leve? Toth faz as
vezes de escrivão; ele vai anotar os resultados do julgamento. Se E, em contrapartida, Rá é eu!"
o morto é julgado digno, ele consuma a união mística com Osíris,
identificando-se assim com o deus. Deve também pronunciar a Alguns autores acham que esse livro descreve iniciações.
confissão negativa de Maat e seus 42 preceitos. Aqui se acha o elo sutil que une, desde a mais remota
Antiguidade, a escatologia e a iniciação, tanto que a morte foi
A partir desse momento, uma nova vida, feita de liberdade denominada A Grande Iniciação. Por ocasião de sua descoberta
absoluta, começa para ele. Ele percorre o céu, a terra e o mundo pelos egiptólogos, o caráter quase irracional desse livro levou-
inferior, realiza uma viagem em companhia das estrelas, pode os a considerá-lo como um sinal da esquizofrenia de seus
se transformar à vontade em diversos animais ou plantas, e se autores. E verdade que a abundância de suas imagens,
unir aos deuses. A viagem se efetua a bordo da barca do sol. simultaneamente mágicas e mitológicas, consegue chocar a
No caso em que sua culpabilidade fique estabelecida, ai dele!, mentalidade racionalista. De fato, ele funciona quase como um
pois é devorado por Babai, o devorador, um monstro com sonho; a maior prova disso é que o morto assume, no drama,
cabeça de crocodilo, corpo de leão e parte traseira de várias características diferentes e contraditórias. Ele descreve,
hipopótamo. Em seguida, é lançado no nada, sofrendo a portanto, um outro modo de se apreender “a verdade”, pela
segunda morte. face oculta do real. Não se poderia ver, aliás, em todos os
personagens e deuses do drama as diversas faces da mesma
Os egípcios antigos acreditavam que o Livro dos Mortos pessoa falecida?
lhes fora ditado por Toth. Na verdade, ele contém numerosas
e extraordinárias verdades esotéricas, intencionalmente veladas Cada deus ou neter representa um grande princípio ou uma
aos profanos. O morto declama, por exemplo, a seguinte grande força do universo material ou espiritual. Sugeriria o
invocação, tida como capaz de atrair para si a assistência dos Livro que o morto, depois da passagem, une-se a essas grandes
grandes deuses: forças, num casamento cósmico?
“Eu sou o Ontem, Eu sou o Hoje, Eu sou o Amanhã. Através
de m eus m uitos nascim entos, Eu perm a n eço jo v em e vigoroso. A morte, para os egípcios, consistia na separação de três
Eu sou a Alma Divina e misteriosa que, outrora, criou os deuses partes principais constituintes do ser humano: o B a ,
representado na forma de um pássaro e que pode ser enquanto outras estavam destinadas à imortalidade. Aqui,
comparado à nossa alma; o K a, considerado como o duplo do estamos bem longe dos conceitos atuais relativos à passagem,
morto; e o K hat, que representa o corpo psíquico. De dia, Ba que implicam o desaparecimento do ser humano total. Assim,
assume diversas aparências e, à noite, retorna ao túmulo. As comparemos essas concepções com as idéias relativas ao
superstições levaram o povo a crer que Ka, cuja tumba era Julgamento Final nas religiões monoteístas. O Apocalipse de
chamada de “a casa de K a ”, precisava ser alimentado. Mas a João fala de um julgamento separando os bons dos maus, os
verdade é um pouco mais complicada que isso. Entre Ka e Ba, justos dos ímpios, etc. Se, em lugar de dividir a humanidade
existe Khaibit, sombra e substrato dos desejos elementares, das em dois campos, considerássemos a possibilidade de o bem e o
paixões animais, dos vícios... (a “lixeira do inconsciente” dos mal pertencer a uma mesma e única pessoa, então a escatologia
psicanalistas). Em razão de seu estado negativo, Khaibit corre tomaria uma forma totalmente diferente. A morte corres­
o risco de ser destruido, devorado no além. Ele se manifesta ponderia então à purificação de um mesmo ser, à separação do
sob a forma de um fantasma, o involucro ou a concha vazia joio e do trigo nele mesmo. Para garantir a eternidade ao morto,
dos cabalistas. os egípcios utilizavam conhecimentos quase mágicos ou
técnicos. Acreditava-se, por exemplo, que algumas conjunções
Acima
y
de Ba, a alma, vem o espirito santificado {IafyJm ou astrais contribuíam para rejuvenescer o faraó, dando-lhe acesso
K hu). E o atributo do iniciado que habita os campos da paz na a uma relativa imortalidade.
companhia dos deuses, longe dos lugares de perdição. Mais
acima ainda, está Sahu ou o corpo glorioso. Redenção da matéria A prática do embalsamamento visava conservar o corpo, em
e do corpo material do morto, ele representa o supra-sumo da vista de sua possível ressurreição. Uma outra razão tinha origem
espiritualização do falecido. E assim seria a estrutura na seguinte crença: para preservar o Ka, devia-se conservar
escalonada do ser humano. Os egípcios, todavia, mencionavam ileso o cadáver. Antes de sepultar o cadáver, era preciso
ainda dois princípios muito importantes: o nome mágico ou embalsamá-lo, pois acreditava-se que somente um corpo
Ren e o poder mágico ou Sekjiem. Esquecer o nome significava preparado podia ter acesso às “moradas e t e r n a s O corpo era
meter-se em apuros no além. Conhecer o nome de um espirito primeiro lavado e uma pequena incisão feita no abdômen
ou de um deus significava ter poder sobre ele. permitia retirar as vísceras. A massa cerebral era extraída com
a ajuda de um gancho introduzido pelas narinas. A caixa
Iakhu, Sahu e Ren não correm o risco da segunda morte, craniana era, então, preenchida com resina líquida. Em seguida,
pois residem no amago de Osíris. Vale observar que o espirito o corpo ficava macerando em natrão durante sessenta dias, e
santificado constitui o produto da purificação ritualística do depois os embalsamadores untavam-no com preciosas
falecido. Em outras palavras, de sua conduta moral e reta. substâncias odoríferas à base de ervas e resinas. Por último,
Assim sendo, para o egípcio de então, determinadas partes de envolviam-no em bandagens de linho. Na hora de colocar o
seu ser estavam sujeitas à segunda morte ou aniquilação, corpo no túmulo, realizava-se o ritual chamado “abertura da
b o ca ”, que permitia ao morto alimentar-se no além, mas efetivamente, porque a família derramava leite e vinho no solo.
principalmente recuperar o alento e a fala que davam-lhe a Às vezes, cavava-se um buraco ao lado do túmulo para fazer
chance de alcançar a felicidade eterna. O papiro contendo o com que o alimento chegasse até o falecido. Acreditava-se,
texto do Livro dos Mortos era, então, colocado entre suas mãos. portanto, que a alma ficava contida na sepultura. Se porventura
uma vítima era imolada, sua carne era queimada a fim de que
O historiador grego Heródoto explicou que a origem da nenhum ser vivo se banqueteasse com ela.
crença na reencarnação, que pode ser atribuída a alguns gregos
(pitagóricos, platonianos, órficos, etc.), estava no Egito. Alguns Uma das punições mais terríveis infligidas aos criminosos
estudiosos acham que a fé na ressurreição dos corpos surgiu consistia na privação da sepultura. O povo acreditava que a

3000 anos depois da crença na reencarnação. E preciso admitir, alma, assim privada de um lugar fixo, perambulava a esmo,
porém, que as pesquisas atuais dos egiptólogos não permitem aspirando em vão ao repouso, sob a forma de uma larva ou de
confirmar essas afirmações. Com relação a esses aspectos, um fantasma. Não usufruía dos alimentos e das oferendas, e
portanto, temos de nos contentar com a tradição oral e aguardar se tornava malfeitora. Os espíritos chamados lares eram
confirmações futuras. considerados deuses. Aquele que tivesse vivido de maneira
correta era considerado benfeitor, mas o espírito que fora
malfeitor na terra continuava perturbador sob a terra. “Rendei
A Grécia antiga aos deuses manes o que lhes é d evid o;”, diz o romano Cícero,
As convicções dos gregos acerca da morte desenvolveram- “eles são hom ens que deixaram a vida; tenham -nos com o seres
se em duas, senão várias etapas, cujo ponto de junção está divinos
situado aproximadamente no século 5 a.C. Por volta de 1.450
a.C., a Grécia foi invadida por um povo ariano vindo dos Os antepassados não deviam ser negligenciados, porque
planaltos asiáticos vizinhos ao mar Negro: os helenos. Desse podiam se vingar e atormentar os vivos. O culto dos ancestrais
tronco comum, vieram os aqueus, os eolianos, depois os dóricos. corresponde provavelmente à mais antiga religião do planeta,
Esses povos tinham em comum o culto dos ancestrais e do visto que o encontramos quase que em todos os continentes,
fogo sagrado, que também é encontrado entre seus primos, os embora com algumas variantes. Quando o ser humano
arianos da índia védica. Suas primeiras crenças eram que a primitivo pensa na morte, ele a vê segundo aquilo que seus
alma permanecia perto do corpo, após a morte. Ela permanecia cinco sentidos lhe ditam. Ele associa a alma àquilo que ele vê:
ligada à sepultura e nenhuma idéia de um vasto mundo o corpo. Daí ele considerar sua segunda existência como
subterrâneo havia ainda germinado na mente deles. Os estando ligada à do corpo. Muitas vezes ele a associa, mais
ancestrais, chamados de dem ônios pelos gregos, depois, lares, exatamente, aos elementos imperecíveis do corpo: os ossos,
penates ou m anes pelos romanos, tinham de ser nutridos por como, por exemplo, no xamanismo. Logo, a alma é aqui
seus descendentes. Alimentados não de forma simbólica, mas considerada como semi-material.
Do mesmo modo, ao tomar consciencia da morte e de urna interm ediárias entre o primitivo culto dos mortos e a
possibilidade de imortalidade, a criança muitas vezes associa emergência da idéia de um reino subterrâneo. Ao partirem do
esta última ao local da sepultura. A prática atual de ir aos reino de Circe, a feiticeira, Ulisses e seus marinheiros precisam
cemitérios e a necessidade de encontrar-se com os mortos num viajar até as portas do inferno, para ali invocar a sombra do
lugar fisicamente circunscrito representam uma sobrevivência divino Tirésias. Circe indica-lhes o caminho a ser seguido, na
desse culto dos mortos. Na Grécia, somente mais tarde, com o forma de uma sucessão de passagens iniciáticas: para chegarem
desenvolvimento da consciência e a contribuição de iniciados ao Hades, precisam atravessar vários rios e outras fronteiras
como Orfeu, a noção de uma dimensão invisível da existência míticas —Aqueronte, Piriílegeton, Stix, Cócito (em alguns
tomou forma no pensamento humano. textos, trata-se do Letes). Ali, têm de cavar um buraco e fazer
três libações, de vinho, leite e água, enquanto invocam os
O culto dos mortos entre os primeiros gregos, assim como mortos. São aconselhados a sacrificar uma vaca, um carneiro e
entre os arianos da índia védica, estava ligado ao culto do fogo. uma ovelha negra. Então, da terra saem as sombras, atraídas
Vesta, Héstia e Agni tornaram-se a personificação do altar do pelo cheiro do sangue. E lhes pedem funerais e uma sepultura
fogo sagrado. Tratava-se de uma sobrevivência provável e como a de Elpenor, velho companheiro de Ulisses. Aquiles
idealizada do respeito quase religioso que o ser humano pré- chama esses habitantes de “povo extinto”. Numa outra
histórico devotava ao fogo vital, civilizador e, finalmente, moral. passagem, Circe os chama de “cabeças sem forças”. Por sua
O fogo da lareira simbolizava a presença dos ancestrais. Na vez, Tirésias chama o Hades de “lugar sem doçura”. E todos
“E neida”, Heitor diz a Eneu que vai dar a ele os penates os mortos atormentam Ulisses no tocante ao destino dos vivos,
(ancestrais) troianos. Na realidade, ele entrega-lhe o fogo da como se o ignorassem. Adormecidos, parecem ter fome de
lareira. Em outros momentos, ao invocar esses deuses, Eneu os informações sobre os que vivem sob o sol. Dentre os mortos, o
chama indiscriminadamente de penates, lares ou Vesta. O iniciado Hércules possui posição especial. Ulisses se dirige à
gramático latino, Servius, explica que havia um costume muito sua sombra, enquanto o verdadeiro Hércules está feliz na
antigo de guardar os mortos dentro das casas e que foi desse morada dos imortais. Vemos aqui a distinção entre a alma e a
costume que os lares e os penates passaram a ser cultuados nas sombra, à semelhança das crenças egípcias.
lareiras. As gerações mais antigas dos arianos, segundo Fustel
de Coulanges, não tiraram seus deuses da natureza física exterior, Hércules, respondendo às perguntas de Ulisses, recorda-
mas do próprio ser humano (ou seja, dos ancestrais). Foi somente lhe o último dos trabalhos que Oristeu lhe impusera: a captura
bem mais tarde que Zeus, Brahma e Indra passaram a ser de Cérbero, o terrível guardião das portas do mundo
adorados como divindades externas ao ser humano. subterrâneo. Cérbero é um cão de três cabeças. Para dominá-
lo, Hércules primeiro teve de participar nos mistérios de
Na “Odisséia”, através da narrativa da invocação dos mortos, Eleusis, a fim de se purificar. Em seguida, escoltado ao Tártaro
feita por Ulisses, encontramos um exemplo das crenças por Hermes e Atenas, ele se defrontou com Caronte, o
barqueiro, que o ajudou a cruzar o Stix. Depois de várias Como não relacionar essa alegoria com a desventura da
peripécias, encontrou-se com Perséfone e Hades, os senhores mulher de Lot, cuja história o Antigo Testamento hebreu nos
do lugar. Sob a orientação de Hades, Hércules conseguiu enfim conta ? Quando destruiu Sodoma e Gomorra, Deus salvou Lot
capturar Cérbero, usando apenas as mãos nuas. Assim, e os seus. Uma única proibição: não olhar para trás durante a
conseguiu atravessar novamente o Stix, arrastando consigo os fuga, para ver a destruição das cidades. A esposa de Lot
despojos do guardião. O décimo segundo trabalho de Hércules quebrou o tabu, ousou espiar o poder divino em plena ação e
corresponde a um mito que, como aquele do Livro dos Mortos foi, então, irremediavelmente transformada em coluna de sal.
egípcio, transmite um mapa simbólico do reino subterrâneo e
das “criaturas” que o povoam. Pode também descrever uma Alguns escritores, dentre os quais o romano Vigílio,
fase precisa da iniciação do protótipo do iniciado que Hércules deixaram-nos uma descrição exata das crenças dos gregos
representa. acerca do reino dos mortos. O império era governado por
Hades ou Plutão (que significa “o rico”), cuja cabeça era coberta
Foi provavelmente graças ao despertar da consciência por um capacete capaz de tornar invisível quem o usasse. Plutão
humana, de sua maior compreensão da alma, que as idéias roubou sua companheira, Perséfone, de sua mãe, Deméter,
relativas a um reino invisível e mais vasto apareceram na história. deusa das colheitas. Seus domínios compunham-se de várias
Um império sombrio e vago, situado sob a terra, cedeu lugar a regiões, dentre as quais o Tártaro e o Érebo. Descia-se até ele
noções morais orientadas por uma justiça cuja sanção tanto podia por uma estreita passagem que levava à confluência do Cócito,
ser o paraíso ou campos elíseos, como o tártaro ou érebo. rio das lamentações, e do Aqueronte, rio das aflições. Um
barqueiro, Caronte, levava as almas dos falecidos até a outra
As mitologias gregas e romanas narram a viagem ao Hades, margem. Por esse serviço, cobrava um preço: dentro da boca,
empreendida por vários heróis. Além de Ulisses e Hércules, sob a língua, deviam trazer uma moeda, o óbolo, e as almas em
Eneu, Psiquê, Dionisio e Orfeu também tentaram a terrível questão tinham de ter sido sepultadas. Caronte, o velho
aventura, e, em cada narrativa, uma lição é passada ao leitor. barqueiro imortal e avaro, as conduzia, então, até o portal do
No mito de Orfeu, por exemplo, o herói parte em busca de sua Tártaro, guardado por Cérbero, o cão de três cabeças. O
jovem esposa, Eurídice, morta pela mordida de uma serpente. molosso deixava entrar qualquer um, mas nunca deixava
Mas Hades (palavra cujo homônimo significa, de modo ninguém sair. E também interditava o acesso aos vivos. Em
eloqüente, in visível) impõe, como condição para a restituição sua chegada no invisível, as almas se confrontavam com três
de Eurídice, que Orfeu, seguido de sua amada, em momento juizes: Eaque, Radamante e Minos. Os três pronunciavam a
algum olhasse para trás a fim de vê-la, enquanto não estivesse sentença, condenando as almas aos tormentos ou dando-lhes
de volta ao mundo da luz. O infeliz, porém, não consegue acesso aos Campos Elíseos. Os heróis que foram recebidos vivos
resistir à tentação e ousa contemplar aquilo que é proibido aos no invisível, antes de retornarem à luz do sol, tinham de se
vivos; e perde Eurídice para sempre. banhar nas águas do rio Letes, o rio do esquecimento. Aquele
que bebia ou se banhava no líquido maravilhoso era invadido entanto, reporta a intervenção do iniciado Orfeu, oito séculos
pelo torpor do esquecimento desse mundo espiritual. Mais antes. Foi ele quem preparou o terreno para essas idéias mais
tarde, Platão, dissertando sobre a reencarnação, usou essa tardias, que evoluíram à sombra das antigas escolas de mistérios.
passagem do mito para explicar o esquecim ento das Não obstante, cinco séculos antes de Jesus Cristo, começou a
encarnações passadas. surgir a idéia da natureza imaterial ou espiritual.

O Tártaro e o Érebro eram povoados, além das almas dos O poder dos filósofos aos poucos se impôs na cidade. Um
mortos, por certo número de habitantes míticos. As Furias ou dos que melhor desenvolveu o problema da morte foi, sem
Eríneas, executoras da justiça, puniam os culpados. Tanatos, a dúvida, Platão. O tema situa-se num ponto central de sua obra,
morte, e seu irmão Hipnos, o sono, habitavam o reino de onde na qual ele aborda os problemas do suicida, da pena de morte,
da recompensa post-m ortem , do julgamento das almas, da
os sonhos ascendiam até os homens. Os gregos já sabiam
diferenciar entre os sonhos ditos iniciáticos e os outros. Para reencarnação... Platão, para se exprimir, lança mão do mito,
como o de Er, soldado deixado para morrer durante doze dias
eles, os primeiros, verídicos, passavam pela porta de chifre, ao
passo que os outros, mensageiros, usavam a de marfim. Cronos, (livro 10 da “R epública”). Ele põe em cena os diálogos e faz
uso do raciocínio filosófico, como em “P hedo’\ para abordar o
o destronado pai de Zeus, governava os Campos Elíseos. Esses
constituíam o local de todas as delicias, de onde os habitantes problema da alma e de seu destino final. Para ele, a meditação
sobre a morte, a própria morte e o preparar-se para morrer
podiam escolher renascer na terra. Não longe dali, ficavam as
constituem a missão central do filósofo: “Todos aqueles que, no
Ilhas Venturosas. A elas só tinham acesso os que, nascidos três
sentido correto do termo, vinculam -se à filosofia [não têm ] outras
vezes, mereceram por três vezes os Campos Elíseos.
ocupações senão m orrer e serem m ortos” (“P hedo”). Não obstante,
Neste ponto, pode ser útil fazer uma comparação entre os Platão, pelos lábios de Sócrates, declara-se contra o suicídio e
cita uma frase dos mistérios: “Nós, humanos, estamos numa
mitos gregos e os egípcios. Neles, encontramos sempre um
espécie de crech e e não tem os o direito de nos liberar p or nós
condutor-guardião do reino: Anúbis, com cabeça de chacal, e
mesmos, nem de evadirm o-nos d ela ”.
às vezes Toth, com cabeça de íbis, no Egito; a dupla Caronte-
Cérbero, na Grécia. Algumas vezes, aparece a figura de Hermes Mais adiante, Platão oferece uma definição filosófica para a
como psicopompo ou guia das almas. Nos dois casos, a alma é morte: ela nada mais é que a separação da alma e do corpo.
julgada e enviada ou para o inferno ou para um lugar de Para ele, o corpo contribui para o obscurecimento do
delícias. Assistimos aqui ao despertar da consciência moral nos verdadeiro conhecimento. Desse raciocínio decorre que esse
seres humanos. Os especialistas concordam em aceitar que foi conhecimento fica inacessível ao homem, por causa da união
por volta do século 5 a.C. que ocorreu, na Grécia, uma oscilação do corpo com a alma no curso da vida. E a ele só retorna depois
entre o culto dos mortos, as noções de reino subterrâneo e as da morte. E por isso que o verdadeiro filósofo platônico, que
idéias mais sutis que acabamos de comentar. A Tradição, no faz tudo que é lhe possível para alcançar a sabedoria,
emancipando-se da escravidão e da prisão do corpo, ri da morte. Neste ponto, é tentador abrir um parêntese: na aurora da
Na verdade, a morte pode realizar suas mais caras esperanças. humanidade, os seres humanos acreditavam que as almas
Essa grande iniciadora dar-lhe-á acesso ao pensamento puro, moravam sob a terra, junto aos túmulos. Ao ler Platão, poder-
ao mundo do belo, do bom e do bem, sem cisão ("P hedo”). A se-ia perguntar se o nível baixo da consciência de então, que
morte corresponde, portanto, a uma purificação do pensa­ impedia de imaginar dimensões mais sutis, não obrigaria as
mento, no sentido dado pela tradição órfica. almas a ficarem, depois da passagem, em contato com o único
mundo que elas adoravam: a terra e o corpo que haviam usado.
Em sua demonstração da imortalidade da alma, Platão Semelhante atrai semelhante.
desenvolveu o tema da reencarnação: "Existe uma velha tradição
a que já fiz em os m en ção: que, daqui, as almas são levadas para E Platão prossegue: quando as almas renascem, são atraídas
baixo (para o Hades) e que é de lá que, uma vez mais, elas vêm para corpos cujos hábitos têm formas correspondentes às suas
para cá, nascendo a partir dos que morreram ”. Justifica ele, assim, afinidades —formas de asnos, lobos, falcões e, para outras,
a imortalidade e o nascimento a partir dos contrários. Dos vivos formas de abelhas, de formigas; para as melhores, formas
vêm os mortos e dos mortos os vivos, do mesmo modo que o humanas; e, finalmente, de deuses, para as mais puras. No
belo vem do feio e o grande do pequeno. Habilmente, ele Bardo Thõdol, o Livro dos Mortos tibetano, também há uma
compara o viver ao estar acordado, e o estar morto ao estar referência a seis possibilidades de reencarnação segundo a
dormindo. Com isso, Platão opõe a morte, na qualidade de existência vivida: ser infernal, ser ávido ou passional, animal,
estado, à vida. Ele não a concebe como uma passagem, em demônio, humano e deus.
cujo caso ele a teria oposto ao nascimento. Para ele, o inverso
do nascimento reside no ato de morrer. E acrescenta: “Se os É difícil determinar se Platão ensina positivamente a
vivos produzem os mortos, logo, destes devem nascer outros homens, metempsicose (o retorno da alma em um corpo animal) ou se
sob pena de que, no fim , tudo se congelasse na in ércia ”. Em ele se contenta em comparar as qualidades humanas às
seguida, aborda o destino da alma após o falecimento. Aquela qualidades animais. Essa comparação entre humano e animal
que, em vida, sentiu-se atraída pelo invisível e pelos valores era freqüente nas tribos qualificadas de primitivas, da África
elevados da vida encaminha-se para aquilo que lhe corres­ ou da América. Cada tribo tinha seu animal totem, símbolo da
ponde, “para o que édivin o, im perectvel, sábio, para a m eta onde, alma daquela sociedade. Muitas vezes, o próprio indivíduo
um a vez alcançada, p od e ela enfim ser fe liz ”. Inversamente, a ocultava um ser interior que podia ser representado por um
alma que foi corrompida na terra e cultivou somente o gosto animal que aparecia para ele em sonhos. Platão, por exemplo,
pela matéria, o luxo e as posses, ao ponto de nada mais ter compara o indivíduo que pratica a temperança e a justiça apenas
como verdadeiro, fica retida na terra e vaga junto aos túmulos. por um hábito desprovido de qualquer reflexão filosófica, a
E puxada para trás, para o lugar visível, por medo da região uma abelha ou a uma formiga, em função de sua característica
invisível do Hades. de inseto altamente socializado.
Quando Platão discorre sobre o devenir da alma após a sombra que a Terra gera atrás de si. Projeção de sua própria
morte, segundo aquilo que lhe era caro durante sua estada na sombra em sua jornada ao redor do Sol, esse cone é tido como
terra, será que devemos tomar ao pé da letra suas descrições? representando um lugar de férias para as almas presas à terra.
No final de “P hedo’\ após sua descrição dos mundos do além, Entretanto, devemos ver nele propriamente um lugar ou, antes,
considerados como terra superior e mundo subterrâneo, ele uma condição, um estado da alma? A definição do érebo traz
acrescenta uma valiosa, porém discreta, informação: "Sem em si mesma a resposta. O cone de sombra da Terra corresponde
dúvida, nada conviria m elhor ao ser que reflete do que querer, àquele lugar que se desloca junto com o planeta e que nunca
com toda sua força , que tudo isso seja m esm o com o lhe expus”. vê a luz do Sol; é o local do eclipse da Lua, da Besta de mil
Assim, longe de ser levada a lugares específicos depois da morte, sortilégios. Descreve a condição espiritual dos que rejeitam a
não seria a alma confrontada com suas próprias tendências? luz ou sofrem a sua privação. Assim, a alma, após sua passagem,
sofreria as conseqüências das escolhas feitas na existência, até
Livre do corpo e seus sentidos, nenhuma outra influência que o véu das ilusões e dos hábitos de ação e pensamento fossem
externa poderia distraí-la de seus próprios impulsos. Disso retirados, quando então ela atingiria a percepção de sua
decorre que a alma inclinada ao materialismo ou à luxúria seria verdadeira natureza. Lá, explica Platão, "cada qual [obtém ] do
confrontada com a tortura que lhe acarretaria essa atração Ser proporcionalm ente ao seu m érito”.
centrada no eu e nos desejos. Esses não poderiam mais ser
satisfeitos por intermédio do corpo. Em "P hedo’\ ele intensifica sua exposição acerca da
escatologia, pondo em cena Sócrates, que acabara de ser
Inversamente, a alma orientada para a sabedoria, a virtude condenado a tomar cicuta. Por meio de seu costumeiro
e a espiritualidade, que, para serem satisfeitas, nada mais exigem procedimento do diálogo entre o mestre ilustre e seus discípulos,
que uma imaginação inspirada, poderia se elevar às esferas ele expõe suas idéias sobre a alma, sua origem e seus fins últimos.
etéreas, sem que nenhum obstáculo se opusesse à sua ascensão. Ao término desse discurso, narra a execução e a morte
A um mundo sombrio e fechado sobre si mesmo, opor-se-ia o digníssima e plena de mestria desse guia extraordinário. Platão
infinito do firmamento cheio de estrelas. Uma condição parece dizer ali ao seu leitor: “O que te f o i exposto acerca da
centrada no medo, na inveja, na possessividade, no ódio, no m orte f o i a reflexão de um hom em que se sabia condenado. Ele se
pessimismo, veria sua antítese na alegria, no otimismo, no amor, apresentou sem m edo ante o portal suprem o. Mestre na vida,
na aspiração, no ilimitado. Veremos que o Bardo Thõdol ou ensinou a imortalidade da alma epartiu com serenidade, consoante
Livro dos Mortos tibetano aproxima-se dessas noções através suas convicções. Podes, portanto, con flar em suas palavras”.
de um subterfúgio mitológico.
Da mesma forma, procedendo por alusões, ele coroa sua
Nos mitos gregos, uma das regiões do Hades denomina-se obra principal, a "R epública", com um mito escatológico. A
érebo. Esse setor corresponde tradicionalmente ao cone de "R ep ú blica ” descreve as convicções do filósofo acerca da
constituição de uma sociedade ideal. Ao término de uma longa um acordo consigo mesmos, para um exame da jornada que
exposição, ele aborda mais uma vez o tema da morte para talar findava. Ele foi um dos primeiros a estabelecer uma distinção
da lei do julgamento post-m ortem das almas. Subentende ele entre a alma e o corpo, e a descrever o périplo desta através da
que a meta que as sociedades fixam para si mesmas e a morte, passando por uma purificação que a leva a se reunir à
orientação das vidas humanas dependem do sentido que os sua família espiritual.
seres humanos dão à morte. Nenhuma coletividade pode
desenvolver um futuro durável se a alma não é julgada em vista Mas para ele, a morte física representava o menor dos males.
de valores ou leis transcendentes. Outra coisa era a morte espiritual. Quando acontecia de um
neófito de sua escola de Crotona deixar a comunidade, ou
É o civismo que fundamenta toda realização humana, do quando um deles traía um segredo do ensinamento do mestre,
ponto de vista laico, e são as virtudes morais que dão o sopro os outros discípulos faziam um túmulo no interior do
de vida ao civismo. Aquele que dita o direito não pode estabelecimento, como se a pessoa em questão tivesse morrido.
eternamente esquecer a moral, sob pena de se tornar arbitrário. O mestre dizia: “Ele está mais m orto que os mortos, posto que
Se o jurista se contenta com uma leitura puramente jurídica retom ou à vida funesta; seu corpo cam inha entre os homens, mas
da lei, a lei humana, não se satisfará com ela a longo termo. sua alma está m orta; ch orem o-la ”.
Aquilo que subentende toda moral tem sua fonte na certeza
de que os atos e os pensamentos humanos são pesados em Mais tarde, por volta de 100 anos antes de Cristo, Cícero, o
vista de uma justiça imánente. Por esse motivo, Platão conclui romano platônico, discípulo de Posidonius, um pitagórico,
sua "República ’ com o mito de Er. Além disso, ele introduz a discorreu amplamente sobre o tema. Foi ele quem declarou
história por uma dissertação sobre as recompensas que as que “filoso fa r éap ren d er a m orrer”. Para ele, filosofar consistia
sociedades reservam aos justos e os castigos prometidos aos em liberar a alma dos prazeres, dos afazeres públicos e privados,
perversos. Depois acrescenta: “Eles não são nada, nem p or seu e de tudo o que é sinônimo de atividade. Assegurava ele que
núm ero nem p or sua grandeza, em com paração com aquilo que, separar a alma do corpo significava, em última instância,
depois da m orte, aguarda o ju sto e o injusto . Como se o direito aprender a morrer. Numa obra onde retoma e adapta as idéias
cósmico legitimasse o princípio do direito humano. de Platão, ele narra a lenda de Cleobis e Bitão, filhos de uma
sacerdotisa argiana. Todo ano, ela devia ir até um santuário
Entre outros filósofos gregos, também Pitágoras foi para participar num sacrifício. Num certo ano, porque a parelha
sensibilizado pelo tema. Longe de considerá-lo como impróprio que a transportaria estava demorando a chegar, seus dois filhos
ou como a obsessão de uma consciência mórbida, ele fizeram as vezes dos cavalos, atrelando-se, eles próprios, à
aconselhava aos seus discípulos o exame cotidiano da carruagem. A sacerdotisa chegou, sem problema, ao santuário,
consciência. Ele os incitava a considerarem, antes de dormirem, graças ao esforço deles. Rogou, então, à deusa uma recompensa
que cada dia podia ser o último e como era importante fazerem para seus filhos, em razão da devoção de que haviam dado
prova. Pediu que lhes fosse concedida a maior felicidade que Como a lendária Atlântida, que alguns escritores afirmam ter
um ser humano pode receber de um deus. Depois de sua sido a origem do culto celta, Avalon é uma ilha situada além do
participação no festim, na companhia de sua mãe, Cleobis e oceano. E o Monte Branco ou G wenva, em bretão.
Bitão foram se deitar. Pela manhã, foram encontrados
mortos... A Gênese, na forma concebida pelos celtas, fazia aparecer
quatro níveis do ser, através dos quais progrediam as almas em
sua evolução. O mais elevado, Keugan ou Círculo da Divindade;
As Crenças Celtas círculo vazio, infinito, eterno e único, no qual nem os vivos
Não obstante os celtas e seus druidas não terem colocado nem os mortos podem evoluir, mas Deus somente. No mais
por escrito suas doutrinas sobre a morte, suas idéias eram baixo, ou seja, no começo de toda existência, achava-se Anwn,
conhecidas por todos. A alma é imortal, a vida humana continua o estado da descida no abismo, fonte das almas antes do início
depois da morte, e a alma simplesmente muda de invólucro. de sua ascensão. Depois, a evolução prosseguia em Abred, do
Os mortos vivem uma outra vida no coração de um universo qual fazia parte nosso mundo. Por fim, vinha o Mundo Branco
diferente, e tanto assim acreditavam nisto que, segundo os ou Círculo de Gwended. Este último constituía a meta suprema
romanos, “os celtas levavam para os infernos ate regisUos de da existência humana.
com ércio e cobranças de dividas . Os celtas e os gauleses eram
famosos por seu desprezo pela morte, nenhum vazio se Alguns escritores declaram, abusivamente, que os celtas
assomando no horizonte de sua passagem na terra. Para eles, a acreditavam na reencarnação. Parece, contudo, que a questão
vida do outro lado do espelho era venturosa, sem inferno nem seja um pouco mais sutil que isso. Os celtas pensavam, de fato,
purgatório. O outro mundo correspondia a um universo que o ser humano, após a morte, ocupava um outro corpo ou
paralelo, o Sid, termo que significa paz. Situava-se simbo­ o seu próprio corpo, mas num outro mundo paralelo, que não
licamente no extremo ocidente, numa ilha oceanica, la onde o tinha nada a ver com um reino de sombras. Sua visão era
sol se põe. Mas imaginava-se também que a ilha estava situada decididamente otimista. Júlio César, como escreveu em sua
no norte do mundo, sendo a mítica Avalon, o País das Maçãs. Guerra dos Gauleses”, achava que eles tiravam sua coragem
O paraíso celta denominava-se TirNa Nog ou Terra da Eterna dessa convicção. Essa doutrina bem pode ser chamada de
Juventude. O Sid, mundo perfeito, era geralmente descrito em m etensomatose, termo que, na prática, é mais aplicável na língua
termos que lembram o paraíso dos muçulmanos. Tudo nele é moderna. O fato, porém, é que a linguagem acerca da morte e
eternamente belo, venturoso, encantador, isento de doenças e seus conceitos está singularmente empobrecida em nosso
pecados. Nele, o leite, a cerveja e o hidromel correm livremente, século. Mais um sinal de visível repulsa.
e jovens mulheres acolhem os que chegam. A barca de pedra
transporta os mortos, como o lendário Rei Arthur. Elas os fazem O escritor romano Lucano, dirigindo-se aos druidas,
atravessar o oceano, fronteira misteriosa entre os dois mundos. escreveu-lhes: “C onvosco aprendem os que o destino do espírito
hum ano não é o túm ulo nem o reino das sombras. O m esm o os dolmens coloridos tornavam-se os pontos de contatos
espírito, em um outro m undo, anim a um corp o e, se vossos privilegiados entre os dois mundos. Heranças de uma
ensinam entos são exatos, a m orte é o m eio para uma longa vida e antiqüíssima civilização do neolítico (os Thuata de Danann),
não o fim " . esses monumentos estão sempre relacionados aos mistérios da
morte e do nascimento. Usados como locais de sepultura para
os grandes chefes, provavelmente eram também locais de
Não há aqui nenhuma questão de reencarnação num corpo
iniciação. Não obstante os arqueólogos terem encontrado
físico presente na terra, mas, sim, uma espécie de transmigração
tumbas de dirigentes celtas, tudo indica, conforme testemunhos
da alma para algum outro lugar. No limite extremo, essa crença
da época, que eles incineravam os corpos.
se aproxima do cristianismo e da noção de ressurreição num
corpo glorioso, num reino transfigurado. Isso explicaria por
A festa do Ia de novembro ou Saman, entre os celtas, é outro
que as convicções cristãs puderam coabitar tão facilmente na
exemplo do ecletismo ou da capacidade de absorção de
Irlanda ou na Bretanha com os antigos costumes celtas. Nos
tradições antigas de que o cristianismo nos dá prova. Com
textos irlandeses antigos, praticamente não há nenhuma
efeito, foi essa festa celta que deu origem ao nosso Dia de Todos
menção à reencarnação. No entanto, é justo acrescentar, mais
os Santos e, em seguida, também ao Dia dos Mortos. Os anglo-
uma vez, que muitos autores acreditam que as crenças celtas
saxões, mais fiéis à idéia original, criaram o H allow een, dia em
sejam parecidas com as dos pitagóricos.
que os vivos se fantasiam de esqueletos, bruxas e outros
monstros do gênero.
Na Bretanha de hoje sobrevive um antigo costume: o da
macieira. A árvore, cujos galhos estão cheios de maçãs,
Na verdade, o que se percebe é que a maioria das culturas da
representa simbolicamente, no Dia de Todos os Santos, a
Terra instituiu um dia simbólico no qual os tabus relativos à morte
imortalidade. Ela lembra aos vivos os desaparecidos do ano.
podem cair por terra. Os vivos ficam tão lado a lado com os
Evoca também a Ilha de Avalon (Ilha das Maçãs), e o fruto
mortos que, mesmo em nossos dias, fazem-se comemorações
cortado perpendicularmente ao seu eixo faz aparecer um
bem floridas que acontecem nos cemitérios, durante um dia e
pentagrama, símbolo do conhecimento. Um dos símbolos da
uma noite. Isso é particularmente notável no México. Em alguns
Franco-Maçonaria é o pentagrama com a letra G no centro,
lares, servem-se refeições aos mortos, mas o caminho que eles
que significa gnose ou conhecimento. A macieira parece sugerir
vão percorrer, dentro das casas, é previamente delimitado através
aqui que o verdadeiro conhecimento só pode ser alcançado no
de flores, a fim de que as raias do racional não sejam transpostas.
além. A Festa de Saman, entre os celtas, deu origem ao Todos-os-Santos
cristão, no século 9. Até hoje, nessa data, a cerimônia do leilão
Entre os celtas antigos, todo ano, por volta de 1Q de das macieiras, em Plougastel Daoulas, simboliza o ponto de
novembro, data do ano novo, as aléias cobertas, os túmulos e contato entre os dois mundos.
Havia uma lenda sobre D agda, um dos principais deuses libertaro ser da cadeia das existências sucessivas ou, pelo menos,
do panteão celta. Via de regra, as lendas transmitem uma orientar o espírito para a vida seguinte, da melhor maneira
sabedoria e um conhecimento dificilmente transmissíveis de possível. O núcleo do texto dirige-se principalmente aos
outro modo. O Dagda tinha três filhos, um dos quais chamado monges que seguem o darma ou ensinamento do Buda. Mas
Oengus. Um dia, ele decidiu repartir o mundo subterrâneo os anexos servem para guiar igualmente os laicos.
entre seus filhos e ele mesmo, mas esqueceu-se de Oengus na
hora da partilha. Este, aflito com a injustiça da situação - mas Entretanto, como explicam os próprios lamas, o título da
ardiloso, o velhaco - pediu um favor ao seu pai. Solicitou que obra não apresenta de modo algum a palavra “morto”. A
ele lhe emprestasse sua própria parte do reino durante um dia tradução mais correta seria: a Liberação do estado intermediário
e uma noite, justamente durante o período de Saman. através do ouvir; o termo bardo significando “estado
Inconsciente do artifício que o faria perder o seu bem, o Dagda intermediário de consciência”. O objetivo perseguido consiste,
aceitou o acordo. Mas chegou o dia em que ele desejou portanto, assim como o Livro dos Mortos egípcio, mas com
recuperar suas posses e foi ter com o filho. Estupefato, recebeu um método diferente, em orientar o morto para uma libertação
uma negativa. Oengus lembrou-lhe que na noite de Saman, pelo reconhecimento da resplandecente luz da verdade. O
período em que os vivos ficam lado a lado com os mortos, no Bardo Thõdol escolhe o momento privilegiado da morte para
reino onde as sombras disputam com a luz, o tempo, a propor a obtenção dessa libertação, mas não faz uma oposição
ampulheta de Saturno, pára. Uma noite e um dia tornam-se, entre a vida e a morte. Para a filosofia budista, nascimento e
então, iguais à eternidade. O Dagda, por causa de sua morte ocorrem para nós de maneira contínua. Existem diversos
ignorância e de sua ingenuidade, nunca mais recuperou o seu Bardos e o da morte é apenas um deles. Como explica o lama
bem. Essa lenda nos oferece um precioso tesouro que pertence, Govinda: "Ele não éu m guia dos mortos, mas, sim, de todo aquele
porém, a um outro mundo. que quer ven cer a m orte m etam orfoseando seu processo num ato
de libertação

O Bardo Thõdol Mas a comparação com o Livro dos Mortos egípcio cessa
Seria possível escrever um livro sobre o tema da morte sem aqui. Se, por um lado, os egípcios vêem na morte o momento
evocar, ainda que brevemente, o Bardo Thõdol, traduzido de um encontro com os neter ou princípios divinos, concebidos
como Livro dos Mortos tibetano? Esse tesouro de texto foi literalmente como fatos, os tibetanos, por sua vez, crêem-se
descoberto no século 14. É o reflexo de um ensinamento mais confrontados com as ilusões e as potencialidades de seu próprio
antigo, atribuído aos mestres do budismo chinês presentes no inconsciente. Assim expressa-se o texto: “N obrefilho, não temas
Tibete por volta do século 8. Trata-se de um livro cuja finalidade quando ela se apresentar; porque és um corpo-m ente, produto de
é ser lido ao ouvido do morto, a fim de guiá-lo em seu périplo tuas tendências inconscientes, não podes m orrer realmente, m esm o
através da morte. O objetivo declarado dessa tentativa visa que te m atem ou te fa ça m em pedaços".
Na verdade, embora o budismo seja inegavelmente uma regulares, o lama lembra ao indivíduo que ele está morto,
religião, uma vez que desenvolve formas externas comuns a partindo do princípio de que ele pode estar completamente
todas as religiões (escrituras sagradas, um enviado especial, perdido e desvairado, vendo-se confrontado com sua nova
uma doutrina), ele recorre a concepções que se aproximam provação. Face a uma consciência fragmentada e desmembrada,
muito da psicologia. O Bardo Thõdol não foge à regra, visto ele lembra-lhe a necessidade de vigilância e atenção redobradas.
que se interessa, em primeiro lugar, pelos conteúdos da “A contece muitas vezes de se estar angustiado no m om ento da morte,
consciência humana. Isso ele o faz nos termos do budismo a despeito de com o possa ter sido a prática da m editação”.
mahayana (grande veículo). Em outras palavras, as tendências
inconscientes são visualizadas aqui em formas macrocósmicas, Na realidade, a luz perfeita se decompõe em três princípios:
simbolizadas por divindades bondosas ou coléricas. Mais masculino, feminino e mediano, que são a verdade em si, o
simplesmente, a obra divide-se em três partes ou estados co n h ecim en to não obstru íd o e o co rp o d e va cu id a d e que
intermediários que descrevem a experiência post-m ortem . A corresponde à união dos dois primeiros. Detalhes relativos à
palavra “trespassado” faz alusão a esses três passos que o morto fisiología da passagem são dados aqui e ali no Livro: depois da
deve cumprir. parada da respiração externa, resta ainda um alento sutil no
corpo, que pode subsistir por três dias e meio, ao longo do
1) Ele ajuda a reconhecer a essência luminosa do espírito. primeiro estado intermediário. Durante esse período, a mente
Quando cessa a respiração externa e o alento de vida aflui no mergulha no esquecimento. Não obstante, aquele que lê o Livro
canal central, aparece então a luz do conhecimento supremo, persiste na tentativa de fazer o morto reconhecer a luz.
chamada de corpo de vacuidade ou darma \aya. Essa luz está
vinculada a shunyata, o vazio ou natureza profunda do ser. E a O mais curioso é que os tibetanos afirmam que o morto
mais elevada experiência do Buda ou Ser desperto. Se o morto ouve aquilo que é lido para ele e que, apesar de ele perder a
reconhecer essa luz fundamental como sendo a natureza consciência, as informações coletadas cedo ou tarde voltarão à
suprema de seu ser, a qual transcende as ilusões, obterá a sua memória, como acontece no caso dos sonhos. Hoje, a
liberação. Caso contrário, assistirá a uma experiência de um ciência moderna de fato admite que o último sentido que se
nível inferior. retira, quando uma pessoa morre, é a audição. Do mesmo
modo, aconselha-se os familiares a conversarem com as vítimas
O texto recorre a formulações bem diferentes e eloqüentes em coma, uma vez que, embora aparentemente sem cons­
para descrever a passagem. Elas traduzem uma concepção, ciência, comatosos reanimados costumam relatar tudo o que
em vários planos, do ser humano cuja consciência emerge aos ouviram.
poucos: “A gora, eis o sinal de que o elem ento terra se transforma
no elem ento água; o elem ento água, em elem ento fo g o ; o elem ento Diversas tradições que não são orientais explicam, como os
fogo, em elem ento ar; e o ele 7nento ar, em cojisaência ”. A intervalos Tibetanos, que a separação entre a aJma e o corpo pode levar
de meia hora (o tempo de consumo de uma refeição, segundo Ao longo dos dias em que o espírito se separa do corpo,
o Bardo Thõdol) a três dias. Uma imagem simples permite muitas tradições explicam que o morto fica vagando junto ao
explicar como um alento sutil pode continuar presente no corpo cadáver, ele vê e ouve seus entes queridos se lamentando, mas
depois da morte clínica: basta imaginar urna jarra. Depois de que estes não podem vê-lo nem ouvi-lo. Entretanto, esse
esvaziada, sempre ficam algumas gotinhas do precioso líquido, sofrimento dos familiares atrai o espírito para a terra. E por
que vão se evaporando lentamente. esse motivo que os tibetanos desaconselham os parentes a
chorarem seus mortos.
Sabemos hoje que num corpo abandonado pela alma resta
uma espécie de energia vital que continua atuando e que faz 2. Se, no curso do primeiro estado intermediário do
unhas e cabelos crescerem. Os jivaros da América do Sul, momento da morte, a luz não é compreendida em sua
famosos encolhedores de cabeças, sabem muito bem que nas verdadeira natureza, surge então o segundo estágio inter­
cabeças encolhidas continuam crescendo cabelos por vários mediário, chamado de “a verdade em si”. Nele, o morto se
anos, como se uma energia vital, parecida com a das plantas, confronta com a percepção de suas próprias tendências latentes.
continuasse a atuar na cabeça reduzida. A observação lúcida e Em síntese, o Livro diz o seguinte: "N obre filh o, v ê as visões
objetiva de um cadáver mostra bem que a vitalidade retira-se que se apresentam a ti; elas são a p ro jeçã o d e teus próprios
gradualmente. Primeiro, a tonalidade rosada da pele desaparece, pensam entos, p recon ceito s e fantasm as. Elas m anifestam teu
conforme o caso, em algumas horas. Em seguida, o tônus vai próprio carma, que corresponde ao con ju n to dos pensamentos,
enfraquecendo e os traços vão ficando cada vez mais fundos. palavras e atos que manifestaste na terra. R econhece que essas visões
Esses sinais externos manifestam a retração gradual da energia vêm de ti, e obterás a liberação”. E essas visões, tesouros do
vital, cujas formas mais arcaicas continuarão mantendo algumas budismo mahayana, manifestam-se primeiro sob a forma de
funções em atividade. sete divindades benignas ou pacíficas, seguidas de sete
divindades violentas. Sua descrição é carregada de terror,
Pode-se observar que as modalidades da atividade do ser sangue, violência ou, ao contrário, de beleza, compaixão,
vivo, do ponto de vista da decomposição, vão sendo atingidos doçura. O interessado vê luzes e ouve sons, ou percebe raios
em função de seu lugar no plano da evolução. As primeiras a luminosos que podem lhe parecer aterradores. Os três
desaparecerem são as fases superiores da consciência. Em princípios de verdade, conhecimento e corpo de vacuidade,
seguida, vem o aspecto animal, composto de músculos, órgãos supracitados, não deixam de lembrar certos aspectos da cabala
e carnes. Só depois se decompõem os aspectos mais visíveis hebraica.
(unhas, cabelos, etc.), que são os vestígios do estágio de
evolução da planta. Por fim, os últimos aspectos que conservam Aspectos puramente psicológicos do indivíduo, as sete
sua integridade são os elementos minerais, ou seja, os ossos e divindades opostas representam a projeção de estados de
os dentes. consciência positivos e negativos. Mas a sabedoria aqui implícita
revela algo muito mais vasto, ligando o homem ao infinito por brancos, que representam seus atos positivos, enquanto seu
intermédio de deuses que estão dentro e fora dele. O professor gênio mau conta os pretos. Quando tudo está qualificado,
C. G. Jung, em seu comentário sobre esse livro, captou Yama é desencadeado, mas também ele é ilusão. O morto,
perfeitamente seu conteúdo psicológico: “O Bardo T hõdol então, é atraído, como nos mitos platônicos, para os reinos
con tém um a filosofia que se dirige aos seres hum anos e não aos correspondentes à natureza de suas ações.
deuses nem a seres prim itivos. Sua filosofia é a quintessência da
psicologia crítica budista e, neste sentido, pode-se dizer que ela é Há seis possibilidades de reencarnação segundo o budismo
um a reflexão extrema". tibetano, a cada uma das quais corresponde uma lu ­
minosidade: a terna luminosidade branca dos deuses, a
Em suma, que é que se passa depois da morte? A intuição vermelha dos titãs, a azul dos humanos, a verde dos animais,
nos indica que ela se refere apenas o corpo e que alguns aspectos a amarela dos espíritos ávidos e a cinzenta do mundo dos
da consciência subsistem. Contudo, na ausência do suporte infernos. O Livro dá explicações de como evitar a encarnação
m aterial, com o quê essa consciência sutil poderia ser humana ou, pelo menos, como evitar a encarnação num reino
confrontada senão consigo mesma? O Bardo Thõdol descreve, inferior.
portanto, certos aspectos da consciência, desconhecidos dos
materialistas. Tão vasta quanto o universo, sua fonte éshunyata, Mas, neste ponto, uma legítim a interrogação parece
palavra traduzida como “vazio”. Trata-se de um vazio rico de merecer surgir. O texto aparentemente muda de estilo. Seriam
imensas potencialidades, simbolizadas pelas divindades as passagens referentes a encarnações nos reinos inferiores
benignas e violentas. Tal é o pano de fundo com que o ser acréscimos posteriores ou a deturpação de uma mensagem
humano se confronta em sua morte, e o Bardo Thõdol explica: mais elevada? Que chance de obter a liberação teria um
“Todas essas formas são ilusões; procura ver além delas, busca espírito humano encarnado, por exemplo, num cachorro?
o absoluto, realiza a união entre o observado e o observador, senão Um outro animal de sua espécie iria ler para ele o Bardo
serás atraído por um mundo semelhante às tuas próprias Thõdol no momento de sua morte, a fim de ajudá-lo? Não
aspirações, para uma nova encarnação de sofrimento”. seria apenas um modo de o clero dominar as consciências,
suscitando nelas o medo e fazendo total abstração do princípio
3. Caso a compreensão não seja alcançada, vem o terceiro de evolução, patente em toda a Criação?
estado intermediário, denominado “devenir". Nele, o espírito
vai em busca de um corpo; mas ele é dotado de poderes O Bardo Thõdol é um livro que se lê ao ouvido do cadáver,
paranormais que permitem que ele se transporte para onde enquanto for possível. Mas essa leitura deve ser feita durante
seus desejos estão. Assim como acontece nas tradições grega, quarenta e nove dias. Um lama, então, senta-se no lugar onde
egípcia, monoteístas, ele passa por um julgamento no tribunal a pessoa costumava se sentar ou dormir, e invoca seu espírito
de Yama, a morte. O gênio bom do morto conta os seixos por meio de uma fórmula sagrada. A constituição do livro
seria o resultado de testemunhos dados por lamas passando do que o habitual, sente ressecamento na boca e nos lábios, o
pela morte, que teriam transmitido sua experiencia a outros calor abandona seu corpo e o espírito se ensombrece
monges, por telepatia. progressivamente. Quando a vitalidade vai embora, o espírito
entra numa luz branca parecida com o nascer do sol. Em
A filosofía tibetana adm ite seis bardos ou estados seguida, a obscuridade envolve a consciência que se desvanece.
intermediários, sendo que somente os tres últimos são A respiração externa cessa. Assim como determinadas fases
vivenciados por ocasião do falecimento. São eles: o estado alquímicas, a consciência passa aqui do negro ao branco e
intermediário do reino da existencia, o do sonho, o da fronteira depois ao vermelho, antes de mergulhar num sono relativo que
da meditação profunda, o estado intermediário da morte, o da precede os três passos entrevistos anteriormente.
verdade em si e o do devenir. Assim são descritas todas as
fronteiras com que se defronta o ser humano no curso de seu Mas a própria atitude do cadáver ensina os observadores.
interlúdio consciente. Vemos aqui por que o sono é irmão da Os calores que deixam o corpo começando pelas pernas e
morte, por que a prática da meditação prepara para a boa retirando-se para a região do coração, são o sinal de uma morte
morte, como o nascimento e a morte representam dois portais serena. Se o moribundo fica crispado, empedernido, os calores
opostos do mesmo mundo. Observar um deles significa, sem do corpo deixam primeiro a cabeça e a parte superior do corpo,
dúvida alguma, obter informações sobre o outro. antes de ir para o coração, e isto é indubitavelmente, segundo
os tibetanos, o sinal de um falecimento infeliz. Esses sinais
A morte representa um tema familiar para o monge tibetano, permitem, inclusive, prever se a encarnação seguinte será
uma vez que, segundo o Dalai Lama, ele pratica diariamente favorável ou não.
uma meditação sobre ela. Mircea Elíade reporta igualmente
que “a m editação sobre a im agem d e seu próprio esqueleto ou Alexandra David Neel, em suas anotações de viagem, relata
diversos ex ercidos na presença de cadáveres, esqueletos e crânios que os tibetanos (ao menos os do início do século 20) prestam
d esem p en h a m um p a p el im p o rta n te". Trata-se de tomar m u ito pouca atenção ao cadáver. Os ricos, que podem pagar o
consciência da impermanência e da fragilidade de toda preço da madeira, são queimados sentados sobre ela. Algumas
encarnação. Romper com o ciclo das existências dirigidas pelo partes do corpo podem ser guardadas, como os crânios. Servirão
carma e retirar o véu de Maya, a ilusão da vida cósmica, são os depois como copos, que os monges usarão para beber nas
eternos objetivos do budismo tântrico que se pratica (ou se cerimônias ou mesmo como utensílios de baixelas para os iogues
praticava) no Tibete. das seitas tântricas. Os pobres, que não dispõem de meios, são
jogados aos lobos ou às aves de rapina. Danças em honra de
Os tibetanos possuem conhecimentos muito exatos no que Shiva podem ser realizadas usando-se esqueletos. Tudo isso
concerne aos sinais externos da passagem: à aproximação da descreve a impermanência de todas as coisas sob o sol. A roda
morte, a pessoa percebe o peso de seu corpo mais fortemente das existências prossegue na insensatez dos seres humanos que
investem na busca de mil quimeras. Esse almeja a fortuna, aquele informações valiosas. Começaremos, porém, citando algumas
a conquista, aquele outro o amor de um outro ser humano. Que passagens do Mahabharata, epopéia particularmente popular
importa esta existência, aos olhos de uma outra realidade? O na índia.
budismo explica que tudo isso é a caça de ilusões do indivíduo
que se compraz na sensação. Aquele que deixou de ser tolo situa­ Depois da morte de seus cem filhos durante o combate
se, como um observador, acima das sensações. contra os heróis Pandavas, o rei Dhritarashtra é consolado por
um sábio, nos seguintes termos:
Todas essas imagens da morte mostram ao leitor ocidental
que os tibetanos têm um ponto de vista diferente do nosso. Sua "O que é criado acaba sendo destruído, o que se eleva volta a
vida e sua psicologia não se desenvolvem a partir das mesmas cair.
condições. E a própria Alexandra David Neel relativiza esses A união traz a separação, a vida traz a m orte.
costumes, cujo verdadeiro significado alguns tibetanos conhecem H eróis e covardes, todos estão destinados à morte.
apenas bem pouco: “Uma noite, para satisfazer e com prazer a um Quando a hora vem, não se escapa a ela.
am igo tibetano, degustei dois dedos de cerveja de m ilho servida num No com eço, as criaturas são não-existentes,
crânio, à guisa de com un hão tântrica e de brinde ao gra n d e Em seguida, passam a existir,
Padmasambhava, mas não transform ei isto num hábito. Tudo isso Depois do quê, retom am à não-existência.
é tão p ueril em seu ingênuo esforço para parecer terrível!” E isso motivo para te afligires? Acaso a aflição levar-te-á aos mortos?
A m orte não odeia, não ama, não poupa nem m esm o os deuses.
a A vida é uma caravana cujo destino é a morte.
A índia Não fiq u es aflito pela m orte dos heróis,
Assim como na Grécia, as concepções indianas acerca da As escrituras destinaram -nos ao paraíso.
morte evoluíram ao longo da História. Os Vedas, textos dos O tem po não poupa ninguém . O tem po cria,
primeiros arianos, faziam pouquíssima referência ao tema. O tem po destrói, nada perdura exceto o próprio tempo.
Entretanto, sabemos que suas idéias eram bastante parecidas O corpo é com o uma casa, diz o sábio: ele se deteriora.
às do culto dos ancestrais. Mesmo hoje, as práticas relativas ao Uma só coisa é eterna. Da mesma form a com o o hom em
uso do fogo sagrado continuam tradicionalmente em atividade. Tira um a roupa velha ou nova e veste uma outra,
Por ocasião do falecimento do Mahatma Gandhi, por exemplo, O atman se desfaz de um corpo e tom a um outro.
a chama que acendeu sua pira funerária foi acesa no fogo do E o carm a que traz a alegria ou a tristeza.
seu próprio fogão. Mas as concepções mais elevadas da índia Quer desejem os ou não,
podem ser descobertas nos Upanishads, textos compostos entre Vivemos segundo nosso carma.
o sexto e o quarto século antes de Cristo. Mais próximo ainda Alguns m orrem ao nascer, outros, no prim eiro dia,
do pensamento indiano atual, o Bhagavad-Gita contém algumas Alguns ao cabo de quinze dias...
Alguns joven s, outros adultos, outros velhos. reinam odores nauseantes, cadáveres em decomposição,
Seu carm a determ ina tudo. Assim o m undo éfeito . espíritos sugando sangue. Um verdadeiro inferno, sim­
De que adianta a fligir-se?” plesmente. Então, Yudhishthira, invadido pela compaixão
(certa vez ele se recusou a livrar-se de um cachorro),
Aqui, vemos apontar as doutrinas fundamentais da índia: a anuncia que prefere ficar nesse lugar para reconfortar seus
doutrina de atm an , a alma individual mas inseparável de irmãos. Como que por milagre, o véu da ilusão se dissipa;
Brahman, a Alma Cósmica; a idéia da reencarnação, da qual o sua extrema compaixão, o esquecimento de si mesmo, abre-
budismo se apoderou mais tarde, com algumas modificações; lhe a porta do paraíso. Então, os deuses e mesmo seus irmãos
e, finalmente, a doutrina do carma, a justiça universal que e parentes surgem diante dele, resplandecentes de luz.
sanciona os atos bons ou maus do ser humano durante sua Explicam-lhe que seus atos bons propiciaram-lhe o acesso
vida. à imortalidade.

Segundo a filosofia indiana, “dois pássaros (a alma suprema Os sábios da índia sempre se debruçaram sobre a questão
e a alma individual), sem pre unidos e de nom es iguais, m oram da morte. A Katha Upanishad explica que a reflexão sobre a
na m esm a árvore (o corpo); um (a alma individual) desfruta os morte constitui um sum m um bonum . A Nachif^êtas, que o
d oces fru to s da figu eira ; o outro (a alma universal) contem pla interroga sobre a questão dos fins derradeiros do ser humano,
com o um a testem unha” (wetaswatara Upanishad) Há também Yama, o deus da morte, primeiro se recusa a responder,
o ego transitório em perpétua transformação, ojiv a , que é uma advertindo que a natureza da resposta é sutil. Depois, diante
emanação da alma individual. Na morte, a alma vai para um da insistência do buscador, explica que há uma diferença entre
paraíso ou para um lugar sombrio. "Sem sol, assim são os m undos o que é bom e o que é agradável. O ser humano terreno busca
en voltos em cega s trevas, para onde, partidos daqui, vão todos os tão-somente o agradável, perseguindo a satisfação dos sentidos.
que assassinam sua a lm a ”. (Isha Upanishad) Ele, Nachikêtas, escolhera o que é bom, uma vez que estava
ávido de ciência. Ensinou-lhe, então, que a alma dotada de
ciência não morre nem nasce; não é morta nem mesmo quando
No que concerne o paraíso, o M ahabharata põe em cena a o corpo é morto. No momento da passagem, as almas supremas
chegada de um dos cinco heróis Pandavas, Yudhishthira, a esse e inferiores recebem a recompensa de suas obras e entram na
a
lugar de imortalidade. Mas antes de sua admissão, são-lhe caverna, a morada da alma suprema. E o lugar das trevas ou
apresentadas as ilusões. Primeiro, seu principal e único inimigo da luz do sol.
lhe é mostrado, o qual, para grande escândalo de Yudhishthira,
havia sido, ao que parece, admitido nesse reino de delícias. Mas especifica-se que “aquele q u e com preen d eu a natureza
Mas nosso herói não se deixa impressionar; insiste em ver seus d e Brahman, qu e é desprovido d e sentido, d e form a , e d e tato; que
próprios irmãos. E, então, levado a um lugar sombrio onde não dim inui, que é eterno, que é desprovido d e sabor e d e odor,
que não tem nem com eço nem f i m . .. escapa à boca da morte". Em outros textos, explica-se que, quando o pai está
Inversamente, aquele que é desprovido de sabedoria não chega morrendo, ele instrui seu filho a propósito da natureza de
à meta, mas desce novamente ao mundo. Brahman. Depois, quando o pai sai do mundo, ele entra na
vida de seu filho. A vida do filho dá continuidade à do pai e,
. O triunfo da morte, segundo os Upanhishad, reside no medo por isto, o pai não deve ser visto como morto. Assim, para os
que ela inspira. Mas a vitória sobre ela e a obtenção da textos sagrados da índia, triunfar sobre a morte é unir seu
imortalidade dependem do conhecimento da natureza real da espírito ao ilimitado, sobrepujar o egoísmo e compreender que
alma. "C onhecim ento e ignorância, aquele que con h ece essas duas a essência da vida é universal e sem fim.
coisas ao m esm o tem po, pela ignorância transpõe a morte, p elo
con hecim en to desfruta da im ortalidade". A morte é o produto O Bhagavad-Gita, um dos mais comentados textos da índia,
da distinção que o espírito faz entre as coisas. "Para o hindu, o também fornece informações valiosas sobre a compreensão desse
que está aqui está tam bém lá, e o que está lá está tam bém aqui. povo. Ele põe em cena o diálogo entre o guerreiro Arjuna, um dos
Vai da m orte à m orte aquele que v ê a diferença". A morte é heróis do Mahabharata, e o condutor de sua carruagem, o divino
considerada como o resultado da Criação, em sua dualidade. Krishna, encarnação do deus Vishnu. Num dado momento do
Numa espécie de gênese, explica-se: ‘‘Ele fo rm o u um desejo: diálogo, Arjuna pede ao seu instrutor para lhe mostrar sua forma
fa ça -se um outro eu -m esm oí Através de seu espírito, ele criou a divina, aquela sob a qual nenhum ser humano jamais o
palavra; ele criou a união, isto é, o devorador, a m orte". Da contemplara. Krishna, então, mostra-lhe uma forma feita de
semente da morte brota o tempo. doçura, amor, compaixão e luz. Essa é sua forma de criador e de
reconciliador, a qual terrífica e fascmaAtjuna. Depois, mostra-lhe
No Brhihda Aranyaka Upanishad, um combate opõe os sua face sombria: a do destruidor. Essa é a face do espírito do
deuses aos demônios. Os primeiros pedem ajuda à palavra, à tempo, o destruidor dos mundos, a morte. Mas aqui a sabedoria
respiração, ao olho, ao ouvido e ao espírito. A cada vez, os da índia rapidamente pressentiu que esse aparente horror
demônios os pervertem, fazendo aparecer o pecado na ação representava a forma de corroborar um desígnio mais vasto. Ele é
dos deuses, ou seja, a paiavra má, os odores e as cores o destruidor que destrói os destruidores: o mal, a ignorância, que
desagradáveis, as idéias falsas... Então os deuses pedem socorro incessantemente estendem seus véus de trevas. A esse respeito,
à vida. Ela triunfa sobre os demônios e dissipa o pecado dos Sri Aurobindo, o grande místico indiano, assim comentou o
deuses. Esse pecado é a morte, e a vida, que triunfou sobre a Bhagavad-Gita: “O nom e e a presença do Divino têm qualquer coisa
morte, salva a palavra e a transforma em fogo; depois, salva o que verte no coração do mundo o contentam ento e a alegria. E o
olfato e o transmuta em vento. Prossegue com o olho, que se sentido profundo que tem os disso que nosfaz ver, na fa ce sombria de
torna sol. O ouvido transforma-se em regiões (o espaço?) e o Kali, a fa ce da Mãe, e perceber, no âmago da destruição, os braços
espírito, a lua. Como no cristianismo, morte e pecado estão protetores do amigo das criaturas; no âmago do mal, a pura e inalterável
aqui interrelacionados. bondade; no âmago da morte, o mestre da imortalidade".
O Bhagavad-Gita divide a humanidade em três grandes Ali, a morte não é escondida, ela faz parte do cotidiano. Os
grupos, cujos membros são governados por determinadas cortejos atravessam as cidades, acompanhados pelo ritmo de
tendências chamadas sativa, rajas e tamas. Sattva corresponde à tamborins. As plataformas crematórias servem a todo mundo, a
busca do conhecimento e da iluminação; rajas, à inclinação aos tumba é provisória, mas guirlandas de flores são colocadas ao
desejos que levam a perder-se na ação; tamas tem a ver com a redor de bastões de madeira; flores, claro, como símbolos de
ignorancia, a negligência e a ilusão. Depois da morte, cada uma imortalidade. Antes de ser incinerado, o corpo é lavado e depois
dessas tendências corresponde a um determinado apego que envolvido com seu.ozn ou com seu dhotti. Em seguida, é coberto
levará o ser humano a se reencarnar. Se, na hora da dissolução, por um véu azul, para os homens, e vermelho, para as mulheres.
o ser humano tem sattva dominando sua consciencia, ele volta Após a cremação, as cinzas são jogadas no rio. A imersão na
ao mundo sem mácula dos que contemplam os princípios corrente do rio traz uma promessa de imortalidade. É o melhor
supremos. Se rajas predomina, ele se reencarna entre seres meio de entregar o corpo à natureza. De vez em quando, pouco
obcecados pela ação, pela agitação, pela ganância. Quando tamas antes da incineração, o crânio do defunto é quebrado a fim de
é o pólo de interesse, ele retorna num ambiente cercado de permitir que, segundo a crença, a alma escape.
obscuridade. Mas se a alma eleva-se acima desses três modos de
existência, ela se liberta de toda sujeição ao nascimento e à morte. No Ocidente há uma fascinação pelo corpo. O ser humano
Não passa mais pelas vicissitudes do tempo, da velhice e da está integrado ao seu corpo. Eis o porquê de, nos ritos
doença, e atinge a imortalidade. funerários, cuidar-se tanto desse invólucro. No Egito,
embalsamava-se o corpo, futuro suporte de uma esperada
Ao lado dos conhecimentos filosóficos desse povo, existem eternidade. Nos Estados Unidos, hoje, assiste-se a um
costumes que mostram o pouco apego que eles sentem pelo ressurgimento dessa prática, mas chegando-se ao ponto de
corpo abandonado pela alma. A prática da incineração e expor o corpo, embalsamado e maquilado, sentado numa
“moeda corrente” nas margens do Ganges e em outros pontos poltrona, fumando um cigarro! E preciso conservar, da
do país. Mas a cidade de Benares, cortada por esse rio tido pessoa, tudo o que se possa, pelo maior tempo possível. Na
como particularmente sagrado, é o lugar preferido para Europa, a profissão de tanatopraticante é relativamente
terminar uma vida. Multidões de idosos e doentes de ambos recente. Quando a questão é tornar apresentável aos
os sexos vão para lá a fim de esperar a morte, por dias a fio... familiares um corpo desfigurado por um acidente, não há o
ou mesmo anos, com o objetivo de morrer ali, naquele ambiente que criticar; trata-se de compaixão. O corpo sem vida e
santo. Enquanto o comum dos mortais é queimado nas acidentado torna-se muitas vezes sinônimo de deformidade
plataformas crematórias, os seres considerados santos ou os insuportável. Mas, aos poucos, a profissão tende a se desviar
recém-nascidos têm o corpo jogado, intacto, no próprio rio. para a prática comercial do embalsamamento sistemático.
Não é raro ver ali cachorros agindo como chacais e se lançando Contudo, embora seja difícil colocar-se acima de sua cultura,
sobre os cadáveres que chegam perto das margens. convem observar, com lucidez, que nossas reações de rejeição
face a um corpo morto representam os frutos da semelhança Zoroastro, constróem as “ torres do silêncio”. Nesses
que estabelecemos entre esse corpo e o individuo. Para nós, o monumentos a céu aberto, os corpos ficam expostos à avidez
corpo é a pessoa. dos pássaros de rapina e à agressão dos elementos. Quando
um doente falece, um de seus amigos vai buscar um cachorro.
No extremo oposto, a índia negligencia esse mesmo corpo, Quanto mais perto do corpo o animal chega, considera-se que
já que ele não passa de uma concha vazia que pode ser jogada mais o morto se aproxima da felicidade; ao passo que se ele se
como pasto para animais. A alma, ou seja, a realidade do ser mantém afastado, isto é visto como um presságio desfavorável.
humano, alçou vôo. Embora o Egito embalsamasse seus reis Como no Egito antigo ou na Grécia antiga, o cão continua
mortos, não há nenhuma certeza de que os iniciados antigos sendo um símbolo associado à morte. Nessa religião do fogo, o
aceitassem esse procedimento. A posição dualista de Platão, inferno não é considerado como uma fornalha, mas, sim, como
que foi iniciado no Egito, provavelmente proibia todo excesso um lugar úmido e sombrio.
de culto ao corpo morto. Demonstrar veneração pelo corpo,
pela tumba e por todas as formas materiais que pertenceram
ao defunto eqüivaleria não a negar sua morte, mas a considerar Crenças
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e ritos africanos
o desaparecimento das formas materiais como um fim total e A Africa é hoje uma terra onde todas as concepções da morte
definitivo. A esse desaparecimento, a experiência mostra que coabitam. As idéias de sobrevivência, im ortalidade e
as sociedades procuram se opor, mantendo as formas em bom reencarnação expressam-se ali das mais diversas maneiras. Mas
estado, pelo máximo de tempo possível. no que diz respeito a esse continente, é útil ser prudente ao se
apresentar seus costumes. Tanto pior para o espírito de
Há, no entanto, um caso em que o objeto material pode ser exotismo, mas os próprios africanos explicam que as práticas,
útil; é quando ele permite manter viva a memória da pessoa. hoje, perderam muito de sua força. A sociedade consumista
As comemorações anuais, as fotografias, os objetos de ocidental está causando ali devastações que provocam uma
recordação, preenchem assim uma função de imortalidade na espécie de aculturação selvagem. Tudo o que se segue
memória dos vivos. Tudo depende da compreensão das pessoas corresponde a casos ideais de culturas.
envolvidas e de sua atitude mental. E possível ligar-se a um
objeto tanto como se ele fosse o próprio morto ou simplesmente O culto dos ancestrais é o ponto comum das maioria das
como representando uma imagem dele. Em cada um dos casos, etnias animistas. Aliás, algumas práticas africanas muito
a atitude assume um caráter diferente, gerando conseqüências interessantes podem nos dar algumas informações sobre as dos
diferentes. Pais da Europa, os gregos e os romanos, na época em que estes
compartilhavam o culto dos manes. Sabemos, por exemplo,
Ainda na índia, uma outra cultura reserva um final diferente que o ancestral grego tinha de ser alimentado e mimado, sob
para o corpo. Os parsis, sobreviventes da antiga religião de pena de vir perturbar os vivos e lhes trazer a morte ou a doença.
Do mesmo modo, entre os bantos africanos, o chefe da familia interesses humanos, é preciso, então, dirigir-se a inter­
é enterrado na casa e um tubo liga a superficie do solo à sua mediários. Os ancestrais estão lá para cumprir essa função
boca. A familia pode, assim, fazer chegar até ele bebidas, mais próxima do humano. Essa necessidade de medição é
comidas e até pitadas de tabaco... Atualmente, o ato de nutrir encontrada por todo o planeta. As elevadas concepções de
tornou-se uma prática simbólica na Asia, onde a familia coloca Deus ou as filosofias em geral não satisfazem as populações,
um pratinho guarnecido sobre o altar dos ancestrais, mas que reclamam elementos mais compreensíveis, que tenham
originalmente essa ação era real, como se constata na Africa. relação com seu cotidiano e suas necessidades afetivas. O
culto dos santos no islã chiita ou no catolicismo traz Deus
No culto dos ancestrais, o morto é considerado como para mais perto do ser humano. Muitas pessoas preferem
fazendo parte de um mundo paralelo ao nosso. Para os fa n gs orar à Virgem Maria, que lhes parece mais humana do que o
do Gabão, os que cometeram o mal vão "errando na noite, Cristo, envolto em sua supra-humanidade. A necessidade de
sofrendo e chorando, pois serão encerrados no Otolane, a morada relacionamento com o ancestral pode ser considerada desse
m alévola onde só se vêem m i s é r ia s Já os bons, ficam nas cidades modo, o que não exclui uma possível comunhão verdadeira.
e voltam para junto daqueles que conheceram e amaram,
inspirando-lhes sonhos agradáveis e aconselhando-os. Na África, o luto é feito em branco e alguns chegam até a
Ensinam como viver por mais tempo, como se tornar rico, ter cobrir o corpo com uma argila branca, para simbolizar o
esposas fiéis e muitos filhos. mundo luminoso a que pertencem os ancestrais. Entre os
bantos, interrompe-se toda atividade sexual durante esse
Os vivos precisam conquistar as boas graças dos m ortos, período. G ritos, danças e cerimônias sucedem-se por vários
para não sofrerem a desagradável irrupção desse universo em dias, afirmando o contra-ataque das forças da vida à morte.
suas próprias vidas. O duplo do morto é temido; por isto, Ela é sinônimo de corrupção, de pecado. Um ritual de
costuma-se cortar seus membros ou decepar sua cabeça, para purificação perm itirá, então, que os casais se unam
impedi-lo de vir assombrar os vivos. Em certos casos, ele é novamente, algumas semanas depois do falecimento. Nessa
enterrado longe da cidade e rituais mágicos são realizados para ocasião, a muiher pega a semente do homem em suas mãos e
mantê-lo à distância. Não apenas a África procura se proteger a usa para limpar o pecado. A morte como que suspendeu o
da sombra dos mortos; os chineses, que são muito supers­ direito à vida. Por esse rito, o poder soberano da reprodução
ticiosos, explodem bombas, por ocasião de um falecimento, para é restabelecido, a vida pode continuar por tudo e contra tudo.
afastar os maus espíritos. Constata-se aqui a evidente ligação entre Eros e Tanatos,
pressentida no campo da astrologia, como também na
Apesar de desconfiar da sombra, o africano recorre de bom psicanálise. Há uma relação dialética sutil entre as forças da
grado ao ancestral em caso de problema. Uma vez que Deus é geração e as da destruição, representadas simbolicamente por
considerado como estando muito distante do mundo e dos esses ritos.
A origem da morte, segundo as etnias, viria de uma mundos, dos quais a morte e o nascimento representam os
desobediencia às ordens do Deus supremo. Entre os dogões, a pontos de passagem. A com m edia deli 'arte italiana, de certo
morte tornou-se fato quando o homem adquiriu a palavra modo foi a distante herdeira dessas práticas.
articulada. Assim, com o início da civilização e o acesso
Por razões financeiras ou ritualísticas (se alguns objetos do
progressivo à autoconsciência e à linguagem articulada que
ritual desaparecem, é necessário obte-los ou fabricá-los de
lhe é concomitante, a consciência da morte tornou-se fato para
novo), os funerais podem ter lugar vários anos após o
o ser humano. Mas os dogões explicam também que o ser
falecimento do indivíduo. Um boneco representando sua figura
humano é o reflexo do universo, e vice-versa. Podemos, então,
é então exposto aos olhos de todos. Durante oito dias, é proibido
estabelecer uma relação entre a palavra humana e a Palavra
pronunciar o nome da pessoa. O nome está associado à
macrocósmica, o Verbo de São João. A morte é o produto da
individualidade. No Egito antigo, esquecer o Ren ou nome
palavra, ou seja, é o produto do ato criador. Não pode haver
mágico era sinônimo de estar correndo perigo; analogamente,
criação sem a dimensão do tempo, que permite seu desenrolar.
a perda do nome, para o africano, provoca a perda do fluxo
No mito grego, Cronos, o tempo, é o pai dos deuses. Ele
vital. Essa importância ligada ao nome parece sugerir que a
apresenta o incômodo hábito de devorar seus filhos, à
morte corresponde a uma transformação da individualidade.
semelhança do tempo, que é o responsável pela morte das
criaturas. Um de seus filhos, Zeus, vai depois destronar seu Muitas outras culturas poderiam ser apresentadas. Mas os
pai e lança-lo nas regiões inferiores. Acontece que, no mito, os pontos principais foram abordados, alguns, aliás, por
deuses —ou o reino espiritual —são preservados da morte, que intermédio de uma única cultura, uma vez que são comuns a
pode causar estragos somente na terra. A imortalidade é várias. A tabela que se segue apresenta alguns dos pontos mais
possível, pois o tempo não mais atua sobre a Palavra primordial. evidentes, sem, todavia, pretender esgotar os assunto.
Esse mundo de forças invisíveis irrompe na vida dos
africanos, na ocasião de um falecimento, por intermédio das
sociedades mascaradas. Danças e rituais são então conduzidos
por homens pertencentes às sociedades secretas africanas. Esses
indivíduos ocultam sua identidade, que deve permanecer
desconhecida, sob máscaras. Essas simbolizam o morto, os
ancestrais e as forças espirituais da natureza... seus jogos têm
por objetivo ajudar o morto a ser vitorioso em sua passagem.
De enorme importância em todo o continente africano, esse
emprego da m áscara está presente também em todo o
continente americano, entre os índios. A própria Europa antiga
usava a máscara para estabelecer essa relação entre os dois
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budistas, por sua vez, explicam que o ego é uma ilusão; disto
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conta de que ele é, antes de mais nada, evanescente. Um
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Uma pessoa pode ter uma visão negativa a respeito de uma É certo que quando alguma coisa se transforma, no novo
outra porque esta outra, acredita ela, fez-lhe algum mal. Todas acaba um dia não restando mais nada do antigo. O adulto que
as suas decisões e declarações sobre esse oponente serão, então, você é hoje formou-se a partir do bebê de antigamente, mas
marcadas por esse ponto de vista desfavorável. Mas no dia em não existe mais nada desse bebê em você agora. Essa infância
que a relação com seu oponente evoluir, porque então, de novo morreu talvez dezenas de vezes em você, antes de se transformar
segundo o que ela acredita, ele lhe fez algo de bom, os discursos nisso que você é hoje. O elemento fundamental que dá a ilusão
e as atitudes mudarão diametralmente. Onde está o eu de uma continuidade de consciência é a memória. Recordo-
verdadeiro nesse caso? Nossos pensamentos são constan­ me de como eu era aos dez anos, logo, eu existia nessa época.
temente influenciados por nossas emoções. Se, por um motivo No entanto, cabe perguntar: “Que é que existia?”. Quando
ou outro, a emoção muda, o pensamento pode mudar também. uma pessoa se lembra de sua infância, na maioria das vezes ela
Que acontece, então, com a suposta rocha que somos? faz isto a partir daquilo em que se tornou, não a partir daquilo
Acreditamos, na maioria dos casos, que somos unificados, que ela era naquela época. A prova disso é que raramente vemos
quando, na verdade, freqüentemente não passamos de homens de sessenta anos se pondo a brincar, como os meninos,
marionetes nas mãos de emoções contraditórias e mutáveis. de soldadinhos. O estado de espírito mudou, a consciência
Assim sendo, podemos nos perguntar: afinal, que significa a não é mais a mesma. Falta o lado emocional. Mesmo que uma
imortalidade? mulher consiga se lembrar do tempo em que brincava com
bonecas, ela não consegue voltar a sentir de maneira tão intensa
“Longe dos olhos, longe do coração”, diz o ditado popular. as emoções da menina que ela foi. Se consegue, por que não
Se conhecemos uma pessoa, o conceito que temos a seu brinca mais com bonecas? A verdade é que o coração não está
respeito é quase sempre em função do fato de ela nos valorizar mais ali; aquela menina está morta nela e ninguém pode
ou preencher nossas necessidades afetivas, ou, ao contrário, ressuscitá-la. O que chamamos de saudade dos tempos antigos
nos frustrar. Mas se passamos um longo tempo longe dela, corresponde a uma cerimônia de recordação de todas as pessoas
guardamos na memória outros aspectos de sua personalidade, que já morreram em nós. A memória nos dá a ilusão de que
pelos quais não nos interessávamos então. Nosso ponto de vista somos hoje aquilo que fomos ontem, e que seremos amanhã o
pode assim mudar. Qual é o eu que muda constantemente mesmo que somos hoje; numa palavra, a mesma pessoa. Mas
sem que nos demos conta? Qual é a personalidade que é, na basta que aconteça um acidente seguido de perda de memória
verdade, o joguete dos afetos do momento e dos eventos que a para que a vítima tenha a impressão de estar morta. Quando
afetam? O eu comporta-se muitas vezes como um camaleão. lhe são mostradas fotos dela mesma, datando de alguns meses
Na realidade, o ego, como elemento imutável, não existe. Ele antes, ela as trata como se tratassem de fotos de um estranho.
apenas representa uma sucessão de instantes de consciência Perder acesso à memória de nosso passado é o mesmo que
em perpétua transformação. Isso significa, em outras palavras, morrer é isto o que nos ensina esse tipo de acidentados. Mas
que ele possui uma natureza essencialmente mortal. para pessoas sadias, que nunca sofreram nenhum acidente, a
memoria dá a ilusão de que, desde o nascimento até o suposto Tompkjns. .. William Tompkins... ". Im agine cem m il anjos ao seu
fim, elas nunca experimentaram a morte. Isso é falso e macula redor fazen do a mesm a coisa. E m esm o im portante que toda a
nossa compreensão das coisas. Certamente, podemos presumir personalidade d e Tompkins se p erp etu e p o r cem , mil, dez mil,
que um indivíduo seja o mesmo ao longo dos anos, porque cem m il anos? Uma vez e sem pre W. T.l 11 Nossa verdadeira
sua ação manifesta certa continuidade. Entretanto, conseguimos identidade nunca será perdida, o ouro puro do ego subsistirá,
realmente recordar tudo o que sentimos, do ponto de vista purificado e fortifica d o" .
físico, intelectual, emocional e qualquer outro, por exemplo,
há dez anos? De modo algum. Conseguimos conservar as Mas por que essa acentuação posta na separatividade?!!
linhas principais, nosso inconsciente ficou impregnado por Intencionalmente, não uso nem mesmo as palavras “morte
aqueles instantes, mas sempre faltará às nossas lembranças algo física” para descrever o fenômeno, porque nosso próprio corpo
que nos permita dizer: “eu sou”. E que, na verdade, cada perde a maioria de suas células a cada sete anos, graças ao
instante dos miríades de anos-luz que nos precederam é único. processo do metabolismo. Isso significa que, fisicamente,
A permanencia não é deste mundo. Se compreendermos que, morremos regularmente de sete em sete anos. As raras células
no curso de nossa vida, de fato vivenciamos várias mortes que sobrevivem durante toda nossa vida são as do cérebro. Esse
progressivas, então, não teremos mais nenhum motivo para fenômeno talvez seja o que nos dá a ilusão de uma imortalidade
temer a cessação das funções do corpo físico e a decorrente relativa, durante nossos sessenta ou mais anos de existência.
transição da alma.
Para sintetizar o que acabamos de expor, vale salientar que,
A esse respeito, Leslie D. Weatherhead, pastor e escritor no curso de uma vida, morremos psicológica e fisicamente
britânico, “morto” em 1976, assim se expressou: “Vocêé William várias vezes, de forma progressiva. A cessação das funções vitais
Tompkjns, p o r exemplo. M uito bem . Você é o W illianzinho- representam, de fato, apenas uma transformação a mais e, de
Tompkjns-de-nariz-escorrendo, que f o i punido porque ch egou modo algum, “A Morte” única, da qual tanto se fala. O grande
atrasado na escola. Quer continuar m antendo sua identidade com erro do mundo ocidental materialista consiste em contrapor
ele? Vocêé o Will Tompkjns que escreveu aqueles versos tem os e os esse fim ao resto da existência. No entanto, tudo o que
deslizou para as mãos daquela m ocinha de dezesseis anos, de tranças expusemos até agora demonstra largamente que esse evento
louras. Quer se identificar com ele? Você é o William Tompkins não representa mais que uma metamorfose complementar e
que f o i despedido p orqu e não f o i capaz de explicar a origem do que a diferença está somente na sustentação, pelo cérebro, de
dinheiro que v o cê recebeu em n om e da sociedade. Você vai fic a r uma memória superficial ao longo da vida.
frustrado se ele sum ir do seu sentim ento de identidade? Você é o
W. Tompkjns que sofre de reumatismo articular, que tem a audição Outro elemento: uma teoria sedutora e profunda explica
fraca, a vista turva e um corpo que se tom ou um fardo. Faça essa que nossa compreensão da imortalidade depende da forma
experiência: Repita, em voz alta, uma centena de vezes, "William como nos situamos no âmago da Criação. Ou nos apegamos à
idéia de que somos, em primeiro lugar e sobretudo, um ser Do mesmo modo, esse público interpreta os contatos com os
independente do resto da Criação, ou aceitamos a evidencia mortos como se existisse um possível diálogo com eles, idênticos
que nos torna um produto do universo. Você pode se imbuir aos que podemos manter aqui na terra. As descrições do além
do pensamento segundo o qual a vida se exprime através do também costumam recorrer a cenas terrenas, como é o caso do
ser hum ano e que se serve dele para expressar suas Corão. Tudo isso demonstra efetivamente que os homens se
potencialidades. Sua verdadeira função consiste, nesse caso, apegam desesperadamente ao seu modo de conceber a vida
em servir de canal para essa vida universal que o transcende e centrada no ego. Não queremos ou não podemos ampliar
que constitui a essência de seu ser. O ego, nesse esquema, nossos pontos de vista, abandonar nossas idéias preconcebidas.
representa tão-somente um meio para assegurar a expressão Ainda não conseguimos sentir em nós a presença de uma Alma
dessa vida no tempo e garantir-lhe um modo especial para que Universal, que, sozinha, confere a condição de im ortal.
ela tome consciência de si mesma. Visto como um fim em si
mesmo, ele se torna uma ilusão. Já demonstramos que ele é de As pessoas preferem se apegar à sua família, seu ambiente,
fato mortal nesta presente existência. E com mais forte razão seu estado de consciência limitado. E elas morrerão, porque
ainda, é mortal quando da cessação das funções vitais. se apegam ao que é impermanente. E, no entanto, uma parte
de seu ser é tão imortal quanto o de qualquer místico ou sábio.
Não obstante, se uma pessoa se identifica com aquilo que O despertar da consciência, de acordo com os escritos de
ela é verdadeiramente, isto é, uma forma de expressão da grandes místicos, visa ancorar a consciência no imutável, na
Grande Vida ou Alma Universal, então ela se torna imortal. eternidade e na abertura da personalidade ao infinito.
Na verdade, desde sempre ela foi imortal, sem o saber
realmente. E imortal no exato momento presente, a cada Logo, é bem possível que a questão da imortalidade dependa
instante. A única coisa que aconteceu foi uma mudança de da concepção que se tenha da alma. Uma opinião acertada
ponto de vista a respeito de si mesma e da vida em geral. Ao sobre isso pode dar acesso ao infinito. Um sentimento de
fazer isso, simplesmente mudou seu estado de ser e sua participação na eternidade resultará em indizível paz e alegria.
compreensão, e isto é tudo. A partir daí, ela pode usufruir uma Ao passo que uma idéia falsa pode levar à caça de quimeras, ao
espécie de paz, com a certeza de que não precisa esperar a longo de um caminho tortuoso e cheio de espinhos.
morte para se tornar imortal, mas que já é. E tão admirável
que tantas técnicas orientais acentuem a necessidade de se dar Tomemos um exemplo simples, cujo modelo já fora usado
toda atenção ao momento presente, o eterno presente? pelo filósofo romano Cícero. Imaginemos, como Descartes, uma
pessoa que começa a procurar a sede da alma. A exemplo de
Muitas pessoas vêem nas idéias sobre reencarnação apenas Platão, ela pode primeiro conceber a alma como uma idéia
um meio de manter de pé o seu eu. Querem saber se vão arquetípica, evoluindo no reino da abstração. Ou então, tentar
reencarnar junto aos seres que já amaram numa vida anterior. demonstrar que um órgão do corpo constitui sua sede. Essa
poderia ser o coração ou o plexo solar ou, ainda, na opinião de Para os neoplatônicos, assim como para os indianos, existe
Descartes, a glándula pineal. Parece que a humanidade tem apenas uma única alma no todo da Criação, à qual poderíamos
sido muito imaginativa nessa esfera. Os iafares da Nova Guiñé dar o nome de alm a do m u n do. Nesse princípio único
acham que a alma está situada no sangue, enquanto o Avesta participariam todos os seres vivos, qualquer que fosse sua
dos zoroastrianos revela uma ligação entre a alma e os ossos. posição na escala de evolução. Os neoplatônicos consideravam
Os Upanishads hindus explicam o seguinte: “A alma, q u eém a is que a alma do mundo ocuparia a posição intermediária entre
sutil que aquilo que é sutil, m aior que aquilo que é grande, está o mundo sensível e o mundo inteligível. Segundo Platão, ela
in stalada na ca v id a d e do ser v iv o (cavidade esta que é representaria o princípio único automotor, isto é, capaz de se
tradicionalmente considerada como sendo o coração). Aquele mover por si mesmo. Como indica o discurso de Hermes a
que é isento de desejos e angustias contem pla, pela tranqüilidade Asclépio, é justamente ela que faz mover A
todas as criaturas,
dos seus sentidos, a m ajestade da alm a”. que dela recebem vida e consciência. E por isso que não se
pode situar a alma em nenhuma parte do corpo. Mais que
Mas, então, que é feito dessa alma quando, com a morte, qualquer onda eletromagnética, ela penetra e interpenetra tudo.
o corpo desaparece? Sem dúvida, ela estaria destinada a Nenhuma barreira de chumbo pode opor-lhe obstáculo, pois
desaparecer com seu companheiro. De fato, toda concepção ela pertence a uma outra dimensão. Os Antigos acreditavam
que faz da alma o resultado de um processo físico-químico que ela seria transportada pelas asas do ar. Outros insinuavam
condena-a a ser m ortal. O mesmo ocorre quando se que ela seria como um fogo penetrando todas as coisas. Na
considera que ela está vinculada a uma parte do corpo ou a verdade, sabemos que a vida vem, entre outras coisas, do calor
qualquer corpo que seja. A mesma coisa, ainda, ao se e da respiração. Tudo que vive respira. Sabemos também que
im aginá-la como passível de evoluir. Tudo que evolui seres vivos extremamente surpreendentes se desenvolvem a
transforma-se, mas transformação também significa morte. milhares de metros de profundidade, nas regiões abissais
Por conseguinte, tudo que evolui morre à proporção que se oceânicas, perto de inesperadas fontes de calor. Havia, porém,
desenvolve. Se a alma é qualificada de imortal, não pode um sutilíssimo tesouro oculto no pensamento dos Antigos...
ser outra coisa senão p erfeita .
O ar, como também o calor, é um bem comum a todas as
Há grande diferença entre o fato de considerar que criaturas. Assim, do mesmo modo, a alma deve ser um tesouro
determinadas partes do corpo possam servir de intermediárias comum à totalidade da Criação. De sua unicidade e de sua
entre o mundo da alma e o da matéria, e a crença que situa a perfeição depende sua imortalidade. A definição deA tm an,
sede da alma no corpo. Veremos o porquê disso nos próximos segundo os U panishads (livros sagrados dos hindus), é

capítulos. E possível sermos imortais aqui e agora, e que tudo exatamente “aquilo que escapa a toda limitação de tempo,
dependa da nossa conscientização e da nossa identidade com espaço e causalidade”. Poderíamos, então, especular sobre sua
tal ou qual princípio. possível natureza vibratória, ígnea ou qualquer outra; mas,
neste caso, parece que traçaríamos uma rota falsa. O verdadeiro até que um obstáculo desvie seu curso. Essa opinião referente
espiritualista não procura dar forma e textura (por mais sutis ao eu explica a causa da crença geral de que o budismo ensina
que sejam) a um princípio invisível, intangível e mesmo a inexistência da alma (a doutrina dean atm am ), ao contrário
inacessível à compreensão estritamente intelectual. Em outras das crenças da índia. Repetidas vezes os discípulos do Buda
palavras, pode-se menos definir a natureza da alma do que questionaram seu mestre, tentando saber se o carma do homem
seus efeitos. é pessoal ou impessoal. Todas as vezes, Gautama elucidou a
questão explicando que conhecer a resposta não contribuiria
Enunciemos agora um postulado que tentaremos de­ para libertar o homem da ilusão do ser. Para ele, mais vale
monstrar da seguinte forma: devido à sua unicidade, a alma é meditar sobre o nascimento, a morte, a vida, a velhice, e sobre
perfeita, imortal e constitui a essência de todas as coisas. Dessa as causas e os efeitos dos acontecimentos felizes ou não.
idéia decorre que tudo que vive nas águas, caminha na terra
Dito de outro modo, mais vale tentar libertar-se do desejo e
ou voa nos ares recebe sua parte de imortalidade. Os animais
de todas as coisas que prendem o ser. Isso é melhor do que
não têm nenhuma consciência da morte, porque permanecem
tentar solucionar uma questão que, ao longo da História, opôs
indissociáveis de sua essência imortal. A centelha de vida que
e continua opondo as religiões entre si, e mesmo os diversos
os interpenetra e os faz moverem-se segue seu caminho depois
sistemas de humanismo. A fórmula “tudo se transforma”
do desaparecimento dos veículos que a transportaram e que
expressa o lema budista, que vê o mundo como um calei­
manifestaram alguns de seus atributos. Mas para o ser humano,
doscópio incessantemente mutável.
essa energia tornou-se fato secundário. Ele preferiu substituí-
la por seu próprio eu individualizado. Assim, ele se tornou
Pode aquele que se identifica com algo que varia
mortal, pois esse eu, aparentemente autônomo, sofre perpétuas
constantemente ser imortal? Não seria a imortalidade, ao
mutações.
contrário, o ancoramento da consciência no cerne de um
princípio imutável? O pensamento budista teve, na Grécia,
O budismo teravada, aquele que o Buda ensinava, chamado
um equivalente contemporâneo: Heráclito de Efeso dissolvia
também de budismo do pequeno veículo ou hinayana, explica
o seguinte: o ego, o eu humano, é uma ilusão. Representa, toda existência nas ondas do devenir. Inversamente, para
sobretudo, uma sucessão de instantes de consciência. Por Parmênides, o ser eterno e imutável existia só. Foi preciso
analogia, ele é como um rio. O rio, em si mesmo ou tomado esperar a chegada do mestre Platão para conciliar essas duas
em seu todo, é uma miragem. Na realidade, ele é somente a concepções. Mas, segundo o pensamento budista, a pessoa que
sucessão de uma multidão de partículas de água. Assim só vive no nível de seu ego transitório já está morta, ainda que
também, segundo os budistas, o eu não passa de um agregado as aparências pareçam provar o contrário.
de vários princípios em perpétuo movimento. O que parece Por que o mestre Jesus chamou os mestres da sinagoga de
real no rio é a corrente que vai sempre na mesma direção visível, “sepulcros caiados”? Teria sido porque, como um delinqüente
qualquer, ele quis simplesmente insultá-los? Seguramente, não! compreender que uma das condições da imortalidade pode
O que ele fez foi revelar uma elevada e sutil verdade espiritual. estar na lembrança que os descendentes mantenham de seus
Aquelas pessoas ligadas a poderes, posses, bajulações, já falecidos ancestrais. Enquanto houver alguém para se lembrar
estavam mortas e não sabiam. Assim como eles, todos do passado, ele conservará um pouco de sua imortalidade.
possuímos, dentro de nós, uma parte de nosso ser que está
morta, porque nossos valores são os de um mundo em mutação. O culto dos ancestrais, entre os gregos antigos e os povos
Porque damos mais importância ao nosso eu do que à missão animistas, têm uma parcela de sua origem nesse pensamento.
que ele deveria cumprir. Enquanto nossos filhos se lembrarem de nós, seremos imortais
na consciência deles. Cada um de nós sabe isso vagamente. E
Um mestre do passado explicou, certa vez, que o reino por isso que, segundo os psicólogos, um dos pesares mais difíceis
humano, cujo hábito é de se apresentar como o ápice do de assumir é aquele que advém da perda de um filho. A
universo, representa um relativo ponto de morte no âmago de progenitura representa, tácitamente, uma promessa de
um universo de vida. De fato, o universo inteiro vive ao nosso imortalidade. Os Anciões de Israel sabiam isso perfeitamente,
redor, com suas miríades de expressões diferentes, mas não eles que davam tanta atenção à linhagem. Sou o filho de meu
nos apercebemos disso. Levei dez anos para compreender o pai, e ele, o filho de fulano, e assim por diante, diziam os
que esse autor quis dizer com isso e ainda não estou certo de hebreus. O mais importante para o povo do Exodo não era
já ter abarcado todo seu significado. tanto a sobrevivência do indivíduo quanto a da coletividade.
No Antigo Testamento, os filhos de Israel até mesmo pagam
Cada um de nós poderia fazer a seguinte pergunta: seria pelas faltas cometidas por seus pais. O patriarca dessa nação,
esse eu, que acredito ser e ao qual me apego, o alfa e o ômega Jacó, toma, ele próprio, o nome da pátria inteira.
de todos os valores? Se respondo afirmativamente, torno-me
efetivamente mortal. Mas se considero esse ser transitório uma Entre os muçulmanos, o termo/4¿«, muitas vezes acoplado
parcela útil, mas secundária, de um todo bem mais vasto, este, ao nome de família, significa “pai d e ...”. O qualificativoIbn,
sim, imortal, posso então, neste exato momento, participar dessa também muito usado, como no caso do famoso sufi Ibn Arabi,
imortalidade. Eis uma das concepções mais esotéricas que traduz-se como “filho d e ...”. Isso sugere que a imortalidade
existem da imortalidade. reside mais na continuidade e na obra da humanidade coletiva,
que sucede a si mesma através de sua descendência. Parece,
Há outras que apelam totalmente a uma ampliação do no entanto, que as idéias defendidas nessa questão diferem
campo da consciência, até mesmo a uma renúncia ao eu. O segundo as culturas. Para os muçulmanos ou os católicos
escritor judeu Elie Wiesel falou do dever da m em ória, referindo- modernos, a morte individual é vista muitas vezes como uma
se ao sustento da necessária recordação dos mártires ✓ ^
do catástrofe. Entre os vietnamitas, mais íntimos da natureza, a
holocausto cometido na última guerra mundial. E fácil onipotência universal da vida é primordial. “Se tem os filhos,
a lg o d e nós p er m a n ece para se m p r e ”, diz um provérbio edificações e m onum entos fam osos, e ela é, de fato, o ápice de
compartilhado por eles, pois possuem, mais que nós, o todos os desejos humanos. Mas vem os tam bém quão mais duráveis
sentimento de serem parte de um todo vivo, com todas as são os m on u m en tos do g ên io e do con h ecim en to, do qu e os
transformações das quais ele é a sede. \bltaremos a essa questão construídos p ela m ãos do hom em . O reflexo do con hecim en to de
quando tratarmos do acompanhamento dos agonizantes. Os um hom em p erm a n ece intacto em seus livros, ao abrigo das
psicólogos e os clínicos gerais, com efeito, perceberam os vicissitu d es do tem po, e p o d e ex perim en tar um a p erp étu a
agonizantes conseguem partirem paz mais facilmente se estão renovação. M esmo aqueles, entre os filósofos, que fora m os mais
conscientes de que deixaram seus negócios em ordem e profundam ente ligados aos sentidos e negavam a imortalidade,
transmitiram aos filhos que os sucederão tudo o que estes adm itiram , todavia, q u e as a ções do espírito hum ano, não
precisam saber. requerendo o exercício dos órgãos do corpo, podiam continuar a
subsistir depois da morte, quais sejam, as do entendim ento e não
O filho representa, é verdade, a primeira obra, a primeira as das afeições; e que o con h ecim en to lhes parecia uma coisa
criação de um ser humano, mas suas outras produções também incorruptível e im ortal”.
lhe conferem uma parcela de imortalidade. Não se costuma
dizer que os criadores se imortalizam em suas artes? Frank Notemos, de passagem, que muitos grandes homens e
Sinatra, por exemplo, não renasce um pouco toda vez que um mulheres, após sua “morte”, adquirem, na consciência das
ouvinte se entusiasma com uma de suas canções? V ictorH ugo massas, uma dimensão que não existia qu an d o estavam vivos.
não passou à posteridade graças à sua obra monumental? O Em casos extremos, eles se transformam em totem de uma nação
próprio termo “imortais”, pelo qual os membros de uma ou de um povo. Sua personalidade torna-se um guia quase
Academia de Letras são qualificados, não é mais eloqüente que fantasmagórico para uma coletividade. Tornada imortal, essa
qualquer discurso? Cícero comentou, em sua época, o epitáfio personalidade emblemática é enriquecida pelas aspirações e
do poeta romano Enius, conhecido de cor por todos os anseios das milhares de pessoas que porventura se identifiquem
habitantes da antiga capital: “Contemplai, cidadãos, essa bela com ela ou projetem nela suas próprias frustrações.
im agem do velho Enius, f o i ele quem celebrou os grandes feito s
de vossos pais: Não choreis p or m im ... afinal, estou vivo, porque Por sua vez, a civilização do Egito antigo, em sua tentativa
vôo de boca em b o ca ... de colonização do além, imortaíizou-se através de suas obras
monumentais e por intermédio do conhecimento que legou
O inglês Francis Bacon, que, segundo algumas hipóteses, ao mundo. Quantos sábios, quantos filósofos gregos, com efeito,
pode ter sido o suposto autor das peças de Shakespeare, via no não foram estudar à sombra de suas pirâmides? O próprio rei
conhecimento um meio de a lca n ça r uma form a de imor­ MausoJe, simples auxiliar do império persa, no século 4 a.C.,
talidade: ‘A im ortalidade é tam bém buscada na form a çã o de uma consciente de que não passaria à posteridade graças às suas
fa m ilia , que não cessarem os d e enobrecer, na con stru ção de obras políticas, mandou erigir o mais magnífico monumento
funerário que o mundo jamais teve. Assim, o Mausoléu, existência. A psicanálise, no século 20, revelou às massas o
conhecido c o m o um a das sete maravilhas do mundo, tornou o mundo do inconsciente humano (ou tornou-o admissível ao
seu autor célebre para os tempos futuros. O cínico Diógenes, nosso pensamento estritamente positivista?). No entanto, há
aliás, esca rn ecía dessa vã pretensão à imortalidade. séculos, algumas pessoas conhecem e fazem uso dessa dimensão
oculta da psique. Para esses sábios, como os Rosacruzes do
Quanto à questão das obras legadas à posteridade, pessoas passado, a consciência objetiva é tão-somente o lado visível de
que vêm observando agonizantes salientam como partem mais uma árvore cujas raízes ou galhos se enterram ou se estendem
facilmente em paz os que têm o sen tim en to de terem feito de dentro de um campo infinito de consciência. Jung, afastando-
sua vida uma boa obra. Aqui, as clássicas crenças acerca da se da rota traçada por Freud, pressentiu vagamente a existência
im ortalidade to r n a m -s e quase secundárias. O melhor desse campo de consciência transcendente. Chamou-o
passaporte para o outro lado é o sentimento de ter cumprido a “inconsciente coletivo”. Para ele, os mortos não desaparecem,
obra ou a missão de sua vida. Então, o ser humano pode pois sua consciência tem sua base nesse inconsciente coletivo.
repousar por uns tempos junto de seus pais, antes de passar Por conseguinte, uma parte de nossos ancestrais viveria em
para uma missão mais elevada. nós de um modo invisível. Seriam os, portanto, n um certo
sentido, “os fru tos dos que dorm em ”.
O professor Carl Gustavjung, n o livro "M emória, S onhose
Reflexões”, explica que o inconsciente do homem representa Se os dados de uma determinada psicologia pleiteiam em
também o reino dos mortos. “Supondo que haja uma continuação favor da im ortalidade, co m o acabou de ser demonstrado, a
“no além ”, não poderíam os con ceb er outro m odo de existência medicina e, mais particularmente, a genética também dão sua
q u e não a psíquica, um a vez qu e a vida da psique não precisa contribuição nesse cam po. S abem os h o je q u e as informações
nem de espaço nem de tem po. A existência psíquica e sobretudo as genéticas transmitidas pela dupla hélice do DNA (o código
im agens interiores de que nos ocupam os agora fo rn ecem a matéria genético que co n tém nossas características físicas e m entais)
de todas as especulações m íticas sobre uma vida no além, e esta, são passadas de pai para filho. De certo modo, a frase bíblica,
represento-a com o um a m archa progressiva através do m undo das “Os erros dos pais serão transmitidos aos seus filhos, a té a sétim a
imagens. Assim, a psique poderia ser a existência na qual está gera çã o”, está sendo verificada pela ciência. Conhecemos a
situado “o a lém ” ou “país dos m ortos”. O in consciente e o “país origem g en ética d e algumas doenças hereditárias. Elas nos
dos m ortos” seriam, nessa perspectiva, sinônim os”. ensinam que algumas de nossas características são transmitidas
de uma geração à outra. Teriam elas feito algum pacto de
Que sabemos sobre a consciência humana? Bem pouca coisa, imortalidade? .
na verdade. Povos inteiros pretenderam conversar com seus
mortos por intermédio dos sonhos. Isso significa dizer que a A imortalidade material representa um dos velhos sonhos
consciência humana não se limita ao aspecto objetivo da da humanidade. Na China, há alguns séculos, um imperador
enviou homens para explorar o mundo à procura dos imortais. mais coletivo, por meio do inconsciente coletivo de Jung. A
Os alquimistas ocidentais sonhavam co m a pedra filosofal que memória das células, dos átomos ou do DNA também pode
poderia lhes conferir a imortalidade, na forma do chamado dar o que pensar em matéria de imortalidade.
elixir da lon ga vida. Hoje, porém, graças à contribuição dos
conhecimentos biológicos, esse sonho meio maluco está a um As obras gravadas no papel ou na pedra representam, por
passo de se realizar. A partir de uma célula tirada de um ser sua vez, a memória do pensamento de seu autor, e contribuem
vivo, o “doutor Jeckyll” pode reproduzir infinitas vezes o para sua eternidade. Dá-se o mesmo com a progenitura, que,
mesmo ser vivo. Chama-se a isso clonagem. Ergue-se, então, por seu “dever de memória”, mantém viva a lembrança dos
infalivelmente, a pergunta: com qual imortalidade você sonha, antigos. Por último, as cerimônias, as tumbas, os sinais externos
a do corpo ou a da alma? Da resposta a essa pergunta provém da vida dos mortos, contribuem igualmente para a imortalidade.
todo o valor dado ao ser humano, à vida e à verdadeira Evidentemente, aqui estamos bem longe das idéias egoístas
liberdade. É por isso que esse tema suscita tantas reflexões em de uma vida eterna centrada na individualidade. Há ainda uma
nossas comissões de ética. última e sutil idéia que pode orientar nossas concepções nessa
esfera. Muitos sistemas de moral e ética baseiam-se na noção
Mas isso ainda não é tudo. Físicos, como o francês Jean de que a virtude representa um fator de imortalidade. A virtude,
Charon, estão considerando a possibilidade de uma nesse sentido, constitui um meio de harmonizar o indivíduo
memória dentro do elétron, memória esta que poderia com as idéias eternas do bem, do belo e da verdade. Aqui estão
conservar “a experiência” pela qual passou esse elétron ao reunidos os grandes temas platônicos. Aquele que pratica a
longo de suas diversas formas de manifestação dentro da virtude pressentida no interior de sua consciência une-se àquilo
m atéria viva ou inerte. Assim, outra possibilidade de que é mais vasto que ele. Ele ancora seu ser no âmago de valores
imortalidade material poderia muito bem ser evidenciada eternos e verdadeiramente portadores de futuro; ao passo que
pela ciência moderna. a ausência de virtude leva apenas ao caos. Sua consciência
experimenta, então, um sentimento de im ortalidade e
Um esforço de síntese permite compreender que, de fato, plenitude. Esse ser servirá também de exemplo e de guia para
há múltiplas maneiras de se considerar a imortalidade. Queira outros, em sua própria esfera de vida. Estenderá, assim, suas
o leitor notar que o ponto comum de todas as concepções que faculdades, por contágio, tanto no tempo como no espaço.
virão a seguir reside na memória às quais elas recorrem, embora
sob formas diferentes. A imortalidade, portanto, pode ser Agora que algu m as c o n c e p ç õ e s da imortalidade foram
considerada de um ponto de vista individual, contanto que se abordadas, convém voltarmos à nossa primeira pergunta: A
admita ou que se ponha em evidência a existência de uma alma é imortal? Pergunta aparentemente única, m as que, na
memória imaterial que conservaria as características da verdade, esconde duas. Por um lado, será que existe, sim ou
personalidade morta. Ela pode ser imaginada, n u m sen tid o não, um princípio mais ou menos visível a que se poderia
chamar alma; por outro, seria esse principio dotado da manifestar. Vejamos agora em que medida podemos afirmar
faculdade da imortalidade? O mundo científico em geral evita que a alma e sua im ortalidade representam “A” causa
responder essas duas perguntas. Prefere recolher-se a uma importante, atrás da qual todas as outras se enfileiram. E, para
reserva prudente, ao mesmo tempo em que não as responde isto, laçamos uma pequena viagem ao lado dos filósofos da
negativamente. Para a ciencia, esse principio chamado alma, Grécia antiga. Um desses filósofos, Pitágoras, ensinou que “No
que não se enquadra nas categorias que ela analisa habi­ princípio, D eusgeom etrizou”. Com essa fórmula, ele quis dizer
tualmente (isto é, o campo do mensurável), deve ser sabiamente que o mundo dos fenômenos é regido por um conjunto de leis
deixado de lado. Se existe de todo um conluio tácito entre e princípios acessíveis à razão, que os gregos denominavam
ciência e religião para manter a ignorância sobre alguma coisa, Logos. O filósofo moderno Michel Serres viu nessa idéia do
esta coisa é o campo da alma. A primeira ignora o assunto, Logos (palavra que significa “discurso” ou “lei”) a origem da
enquanto a segunda o isola no campo da fé. Para o sacerdócio, marcha racionalizante da ciência. O apóstolo João, no começo
a alma é assunto de crença religiosa indemonstrável. Segundo de seu Evangelho, faz eco a essa idéia, com a frase: “No com eço
ele, a alma existe porque Deus, através das escrituras sagradas, era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era D eus”. O
disse que sim, e ponto final. Querer demonstrar a existência Verbo de São João é o mesmo L ogos dos gregos; por isto,
da alma graças à observação seria, para uns e outros, uma podemos nos perguntar, hoje em dia, quem tem o direito de
demência. Contudo, não haveria realmente nenhum argu­ reivindicar, se gregos ou judeus, a paternidade do conceito.
mento demonstrável e sustentável, capaz de provar a qualquer Tudo isso significa, na verdade, que esse mundo de princípios
mente racional a existência dessa grande força eterna? A ou leis universais (que Pitágoras afirmou ser regido pelo
sabedoria tibetana ensina que “a pessoa cuja f é não está enraizada número) presume, para sua origem, uma grande inteligência
na razão é com o um curso de água que p od e ser conduzido para organizadora. Essa grande inteligência pode ser comparada a
qualquer lu ga r”. De fato, toda fé não ancorada na razão é como purusha, o ser ou a alma dos hindus, em oposição a pratyiti, o
um raminho de palha açoitado pelos ventos de uma ciência devenir. Assim, a ordem patente do universo e da multiplicidade
cética. Ela não consegue resistir à dúvida gerada por uma mente de fenômenos não seria obra do acaso, mas dessa vasta
presa às suas categorias habituais de percepção. inteligência ou de uma alma que se poderia qualificar de
universal e que é imutável e perfeita em sua essência. Sem
A alma não pode ser medida, mas prova sua existência por dúvida, o ponto em questão não é demonstrar através de
meio de seus efeitos, inumeráveis para olhos realmente abertos. instrumentos científicos a existência dessa alma de natureza
Ela representa o próprio fundamento de toda existência, sem sutil demais para ser mensurada. A razão, porém, nos incita a
o qual nem mesmo aquele que a nega teria qualquer alento de tomar essa hipótese por quase certa, por ser a única que pode
vida. Sem a alma, as galáxias, as estrelas e os planetas jamais explicar a inteligibilidade do universo. Dessa alma, portanto,
teriam vindo à luz. As incessantes rondas que fazem girar emanou o mundo, graças a um conjunto de leis ou princípios,
universo após universo não teriam tido nenhuma razão de se chamados por nomes diversos em função das culturas.
Queiramos ou não, estejamos conscientes ou não, o fato é Seguramente, o materialismo nega a preexistência de um
que o edifício da ciência, cuja meta é pôr em evidência os mundo de princípios ou de uma alma inteligente. Ele afirma
axiomas e leis da fonte da Criação, fundamenta-se nessa que as leis da natureza representam necessidades inerentes à
concepção. Sua origem acha-se na Grécia, e os primeiros matéria. Se extrapolássemos esse ponto de vista, isto seria o
estudiosos muçulmanos foram seus herdeiros tardios, antes mesmo que considerar que a lei da gravitação universal fosse
de transmitirem-na ao Ocidente cristão. A esse respeito, ✓
o uma conseqüência do fato de uma maçã ter, um dia, caído na
físico Albert Einstein assim se expressou em 1922: “E fa to cabeça de Newton, e não a causa dessa queda. Isso significaria
que a con vicçã o —aparentada do sentim ento religioso —de que o que as leis são as conseqüências da simples existência da
m undo é racional ou, ao m enos, in teligível está na base de todo matéria e dos fenômenos, e não suas causas. Todas as leis
trabalho cien tífico com algum a elaboração. Essa con vicçã o, existentes na Criação seriam, portanto, intrínsecas ao primeiro
profu n da m en te sentida, de um a razão superior que se m anifesta aglomerado dessa “alguma coisa” que precedeu o hipotético
no m undo da experiência, con stitu i m inha con cep çã o d e D eus”. B ig-B ang. Im aginar as leis sem a m atéria seria, por
Em 1930, declarou num artigo: “Um contem porâneo afirm ou, conseguinte, uma absurdidade. Nessa ótica, parece, porém,
com razão, que os pesquisadores sinceros são, em nossa época, de bem difícil explicar como a imutabilidade das leis pode dar
m odo g era l m aterialista, os ú n icos h om en s p ro fu n d a m en te nascimento à multiplicidade dos fenômenos. Parece também
religiosos”. difícil compreender como uma inteligência humana pode, a
partir de um conhecimento totalmente abstrato das leis
De fato, o cientista moderno, no plano de fundo de seus naturais, comandar ou mesmo recriar um mundo, afirmando,
próprios trabalhos, é o único depositário dessa concepção do com isto, a superioridade da mente sobre a m atéria.
mundo. Ele pesquisa, com efeito, a origem dos fenômenos, Inversamente, a simples constatação de fenômenos, sem tirar
buscando representá-los sob formas de equações matemáticas, daí as leis subjacentes, não permite absolutamente nada. Se
de representações gráficas ou geométricas. Alguns pes­ seguirmos o ponto de vista m aterialista, chegaremos à
quisadores vão até mais longe e acalentam o sonho de conclusão absurda de que a vontade é um produto da ação, e
descobrir a grande equação, a força ou energia única que não o inverso. A liberdade humana estaria singularmente
poderia explicar a origem do universo inteiro. Chamam a isso amputada. Do mesmo modo, fazendo falar o símbolo da roda,
a gra n d e u n ifica çã o . A grande unificação é o sonho atual dos acabaremos concluindo que o que faz girar a roda com
físicos, que buscam a unidade das quatro grandes forças regularidade é apenas a sua periferia, e não o seu centro ou
subjacentes a todos os fenômenos naturais, as quais são: a núcleo.
força de atração, de Newton, que rege o movimento dos
corpos celestes; as forças de interação fortes e fracas, que Por conseguinte, podemos enunciar essa nossa hipótese, que,
regem as relações entre as partículas fundamentais dos mesmo repousando unicamente na fé, não é menos razoável.
átomos; e a força eletromagnética. Essa conjetura adquire, por isso mesmo, o caráter de uma
gnose: a pirâmide simbólica do universo presume, em seu topo, Tudo estaria dito e nós estaríamos isolados no reino da
uma vontade motriz ou urna alma eterna como origem dos matéria se, segundo uma arraigada tradição que remonta
fenómenos transitorios. a uns milhares de anos, os maiores pensadores do Egito
antigo não houvessem vislumbrado a seguinte lei: “O que
Os poucos elementos precedentes visaram mostrar a está em cim a é co m o o q u e está em baix o”. Essa fórmula
existencia soberana de urna inteligencia universal denominada pode ser lida na Tábua de Esmeralda, um texto filosófico
alma. Entretanto, eles ainda são insuficientes para permitir hermético cuja origem os historiadores fazem remontar
considerar sua imortalidade. E necessário, portanto, para ao século 3 d.C. Uma história mais tradicional atribui esse
vermos com clareza, que nos voltemos para as intuições da texto ao sábio Hermes Trismegistus. A frase corresponde
ciencia, das quais o químico Lavoisier foi o porta-voz, no século à importante lei da analogia, que tem guiado muitos
18. Lavoisier fez com que se tornasse conhecida do mundo, pensadores metafísicos ao longo dos séculos. “O q u e está
desde aquela época, a seguinte idéia: °Nada se perde, nada se em cim a é co m o o q u e está em baix o” significa que aquilo
cria, tudo se transforma". O aspecto fundamental dessa idéia que é válido no que tange a eternidade da dupla matéria-
faz com que ela seja ensinada hoje em todas as nossas escolas. energia vale também, com mais forte razão, para a essência
No entanto, raramente é explicado que essa foi uma noção invisível da Alma ou da Inteligência Universal. Em outras
descoberta intuitivamente já desde os séculos 4 e 3 a.C., pelo palavras, o que se aplica à essência da matéria, segundo a
filósofo Epicuro, que, por sua vez, foi discípulo de Demócrito. doutrina de Lavoisier, aplica-se igualmente à alma ou aos
Epicuro parte do principio de que nada nasce do nada e que o princípios cuja existência alguns filósofos gregos nos
universo formado de átomos não tem origem nem fim. “Nada fizeram perceber. Vemo-nos confrontados aqui com uma
se p erd e... ” significa, em termos mais filosóficos, que tudo é decisão fundamental para o ser humano. O pensamento
eterno em essência, ao passo que as substâncias estão em m aterialista parte do postulado (que é um ato de fé)
perpétua transformação. “A velhice e a m orte só poupam os deuses; segundo o qual o universo percebido pelos sentidos físicos
tudo o m ais está sujeito aos golp es vitoriosos do tem p o ”, diz ou pelos instrumentos científicos, atuais ou por virem
Sófocles em “É dipo”. (in strum en tos estes que, aliá s, correspondem sim ­
plesmente aos prolongamentos de nossos sentidos físicos)
Sem dúvida, Lavoisier, que se fez eco de Epicuro, queria é o único que existe. O pensamento espiritualista, por sua
deixar claro apenas uma coisa: a matéria e seus componentes, vez, sem negar as realidades do mundo objetivo, considera
embora possam mudar de forma, permanecem eternos em seu que nenhum argum ento racional ou científico pode
aspecto mais íntimo. Mais tarde, a física moderna pôs em demonstrar a inexistência do mundo dos princípios. Esse
evidência, graças a Einstein, a possibilidade da conversão da pensamento chega mesmo a afirm ar que é impossível
matéria em energia e o sacrossanto princípio da conservação explicar nosso mundo e os mistérios da vida e da morte
da energia. fazendo-se abstração desse mundo invisível.
Vejamos de novo a fórmula “Nada se perde, nada se cria, tudo Até o momento desenvolvemos argumentos, sobretudo
se transforma” Analisemos mais particularmente a parte que diz filosóficos, pleiteando em favor da eternidade da alma. No
“nada se cria”, aprofundando nosso raciocínio. Isso significa, na entanto, a observação da natureza, de um determinado
verdade, que a essência de todas as coisas nunca teve começo, ângulo, pode completar essa demonstração. Vamos fixar
que é incriada. Isso pressupõe, então, que todas as coisas e os nossa atenção exclusivamente no mundo vivo, uma vez que
fenômenos visíveis ou invisíveis são eternamente preexistentes nessa esfera a influência da alma se faz sentir de maneira
na Grande Inteligência do Universo. São potencialmente nitidamente mais patente. O mundo vivo dá provas de
preexistentes, antes de serem manifestados no mundo tangível. animação e inteligência, além de direcionamento de sua
Por analogia, poderíamos usar a imagem de um CD, que contém própria energia. Uma vontade invisível parece desabrochar
simultaneamente todas as informações musicais em seu pequeno ali, conduzindo, cientemente ou às cegas, as formas de vida
volume, antes de permitir sua manifestação sonora tangível para no caminho da evolução. Os seres vivos, quaisquer que
deleite de um ouvinte. Podemos também demonstrar que aquilo sejam, manifestam igualmente determinado número de
que nunca teve começo também não pode ter fim. Com efeito, o tendências latentes. Uma ilustração dessas tendências é, por
que não é criado também não pode ser destruído. Naquilo que exemplo, a vontade irreprimível de conservar a vida. Outra
tem existência eterna, o tempo não põe suas garras. tendência, tam bém irresistív el, visa a evolução e a
complexidade dos organismos vivos. Corolário dessa
Uma outra fórmula famosa é atribuída a Heráclito de Éfeso, complexidade, certa inclinação para a associação é evidente
que viveu entre o sexto e o quinto século antes de nossa era. Em entre os animais monocelulares, na gênese da evolução.
essência, diz o seguinte: “Nada é, tudo se tom a". Isso descreve o
que se passa realmente no nível do mundo manifesto. Tudo está Assim, desde sua origem no oceano primitivo, a vida,
em perpétua transformação. No exato momento em que inicialmente manifestada pelos primeiros aminoácidos, não
pensamos que uma coisa é isso ou aquilo, ela já se transformou parou de querer ser mais e melhor. Desejando experimentar
em outra coisa qualquer. Os átomos estão em perpétua vibração; uma qualidade de ser mais e mais sutil, os primeiros animais
não há dois instantes idênticos nem duas situações espaciais celulares, impelidos por esse desejo, associaram-se para
estritamente idênticas. Isso significa que nada pode pretender formar organismos mais complexos, origem dos órgãos dos
ao estado de ser no mundo da forma. Os fenômenos inces­ animais superiores. Em termos mais poéticos, vemos que o
santemente mutáveis não pertencem ao ser. Assim, o ser, que é amor —ou a necessidade de união das células —já estava
essencialmente imutável, não pode ser considerado como presente desde as origens da vida. Designa-se pelo nome de
pertencendo à matéria. A matéria não é, tende a vir a ser. O que “instintos” o conjunto dessas tendências. Instintos de
ê realmente é a alma, e aqui podemos nos fazer a seguinte conservação, de evolução, de associação... Aqui, natu­
pergunta: que existe de comum entre o ser e o objeto, entre o ralmente, nada mais faço que apresentar dicas para reflexão,
mundo e a alma? e espero que outros com mais informações que eu explorem
esse campo infinito de conhecimentos, mesmo que essa tese Existe um debate que há muitíssimo tempo vem opondo
pareça deixar de lado as indispensáveis contribuições de filósofos e cientistas. Trata-se de saber se uma essência como a
Darwin ou Lamarck. vida poderia ter outra origem que não a material. Para a crença
materialista, a vida é apenas a conseqüência de uma organização
A questão que nos preocupa aqui é: qual é a verdadeira físico-química especial da matéria. Essa teria se tornado
origem dos instintos? A resposta do darwinismo foi: os orgânica e, portanto, capaz de mover a si mesma. A faculdade
instintos representam o resultado de uma educação dos reinos da consciência decorreria igualmente dessa organização,
vivos, seguindo-se ou em reação à pressão do meio em que se impulsionada aos altos píncaros da evolução.
desenvolvem. Mas, para começar, podemos nos fazer a
seguinte pergunta: por que o ser vivo se desenvolve e Não há efetivamente nenhuma prova objetiva de que seja
m anifesta, a p r io r i, as características de crescimento, assim ou o contrário. Poderíamos, aliás, nos perguntar: por
assimilação e reprodução? Como pode a pressão do ambiente qual milagre uma matéria concebida como inerte poderia
estar na origem do instinto de sobrevivência, desse instinto produzir a consciência intencional? O debate não é nem um
que provavelmente impeliu a primeira célula viva, nascida pouco insignificante. Da resposta obtida ou escolhida
no oceano primitivo, a lutar para conservar sua vida, dependerá um determinado conceito da morte.
justamente contra esse ambiente que tendia a destrui-la?
Onde se encontra, na matéria mineral, a fonte de tal impulso? O século 19 assistiu a essa discussão de um ângulo
Acreditar que o ambiente possa ter engendrado uma reação, ligeiramente diferente. A idéia da geração espontânea de
sem admitir uma tendência inata, não seria tomar o meio pela pequenos organismos a partir de uma energia vital foi destruída
causa? Imaginar que a matéria possa se organizar espon­ pelo biologista Louis Pasteur, que tornou evidente o papel dos
taneamente, para produzir uma inteligência semelhante a de micróbios na gênese das doenças. Desapareceu, assim, o sonho
um computador, é esquecer que por trás de um computador dos adeptos da geração espontânea da vida. No outro extremo,
há sempre um ser humano. Na verdade, não é difícil o século 20 dedicou-se a produzir vida em laboratório a partir
pressentir que os instintos básicos representem um produto apenas da utilização de blocos de matéria. Nos Estados Unidos,
inato da Alma Universal. A menos que eles não constituam em 1952, certa experiência foi realizada. Um pesquisador
de fato o resultado do diálogo estabelecido entre essa Alma e tentou gerar vida a partir do que ele pensava ser as condições
as formas vivas. Por intermédio dos instintos e da vida ou ideais existentes na terra, há uns bilhões de anos. Usou, então,
energia vital, essa alma estruturaria a matéria em formas água e uma mistura de gases contendo, entre outros, o metano.
sempre mais evoluídas, capazes de demonstrar faculdades Nesse ambiente confinado, em primeiro lugar ele simulou
cada vez mais voluntárias. Graças a esse processo, as relâmpagos, através da produção de arcos elétricos. Para
faculdades mais nobres da alma exteriorizam-se pouco a surpresa sua, viu aparecerem aminoácidos, constituintes
pouco em nosso mundo. primários da vida. Contudo, conforme os próprios cientistas
confessaram, não houve surgimento da vida, pois, para isto, memória. A experiência da neurologia leva nosso mundo a
é necessário um código genético, constituído pelo material concluir que a sede da memória está situada totalmente no
portador de informações hiper-organizadas, que é o DNA. cérebro. Lesões acidentais ou provocadas (em animais)
Em outras palavras, para que haja vida, é preciso um tipo de produziram em suas vítimas perdas de memória passageiras
inteligência, veiculada pelo DNA. ou irremediáveis. Tudo se passaria, então, como se o dano
causado às células ou aos centros nervosos afetasse
A esse respeito, o professor Daniel Cohén, que dirige o simultaneamente a capacidade de recordação das lembranças.
programa francês de pesquisa sobre o genoma humano, Concluiu-se daí que a memória de determinado assunto se
explicou que, no início de seus estudos sobre o assunto, ele situaria num local específico do cérebro, ligado a esse assunto,
professava o ateísmo, mas quanto mais descobria a com­ como numa gigantesca biblioteca. Hoje, com o progresso das
plexidade inacreditável da organização desenvolvida dentro pesquisas, admite-se, porém, que todo o conjunto, e não mais
das células humanas, mais a hipótese de uma Inteligência apenas uma parte dos neurônios do cérebro ou até mesmo
Divina tornava-se plausível para ele. Invocar o acaso ou a do corpo, está implicado no processo de memorização.
seleção natural, a p riori cega, parecia-lhe desmedido para Contudo, a conclusão tácita dessas experiências é que o
explicar a extraordinária organização do genoma humano. conjunto da memória precisa ter um suporte físico, como no
caso de uma memória eletrônica (estocada em circuitos
Mas voltemos às tentativas de criação da vida. Desde 1952, integrados ou CDs).
outras tentativas foram feitas, com resultados infrutíferos.
Mesmo que um dia se anunciasse que um laboratório E bem esse o caso de determinadas áreas daquilo que se
conseguiu fazer a síntese da vida, isto não provaria abso­ denomina memórias de curto, médio ou longo termo. Mas essas
lutamente que essa en ergia ten h a sido criada, mas, quando experiências não permitem demonstrar que o desenvolvimento
muito, que as condições m ateriais, físicas, quím icas, de uma vida, naquilo que ela possui de mais emotivo e mais
eletromagnéticas, etc., foram reunidas de tal modo que a vida sutil, deva forçosamente inserir-se num substrato material.
pôde se manifestar dentro de receptáculos. Além disso, a Admitir que uma estrutura material seja necessária para a
dificuldade da maioria dos modernos estudos da vida vem manifestação de um fenômeno não significa, automaticamente,
do fato de que, cada vez que o ser humano quer observá-la a que essa matéria visível represente o alfa e o ômega de tudo o
partir de seu interior, ele se vê obrigado a destrui-la. que existe. Princípios como a alma ou a memória (veremos
depois que estão ligadas) podem ser, com toda liberdade e
No que concerne o debate sobre a presença ou não da independência, ao mesmo tempo em que precisam de um
vida, na qualidade de fenômeno que existe junto à matéria, mediador físico para se manifestarem. Precisamos aprender a
convém observar que o pensamento científico atual utiliza diferenciar entre o ser e sua manifestação, sem que um exclua
atalhos abusivos de raciocínio. Tomemos o exemplo da forçosamente o outro.
Quando se lesa uma parte do cerebro, o que se faz é somente conseqüência, segundo a lei do menor esforço, não pre­
atacar o mediador que liga a sede da memoria à sua expressão cisaríamos mais invocar a inteligência da vida para explicar a
inteligível ou à sua tomada de consciência. Por analogia, inteligência humana, uma vez que uma inteligência estri­
destruir algum dos componentes eletrônicos de um televisor tamente material pode fazer isto igualmente bem. A derrota
diminuirá parte da qualidade da imagem recebida. Todavia, as retumbante do jogador de xadrez Gary Kasparov para um
ondas enviadas pela emissora ou pelo satélite continuarão computador foi largamente comentada e veio apoiar essa idéia.
inalteradas. Isso é esquecer um pouco rápido demais que por trás do
computador estão os seres humanos. Kasparov, aliás, revoltou-
Mas fiquem todos tranqüilos, promover a certeza da se contra essa derrota, argumentando que os engenheiros
existência da alma, como modo de explicação de alguns corrigiam todo o tempo os cálculos da máquina, à medida que
fenômenos, não significa inserir um termo obscurantista nas o grande mestre do xadrez a colocava em dificuldades. Em
pesquisas científicas. A ciência deve estudar a organização outras palavras, Kasparov não jogou contra um simples
natural, e só pode fazer isto tendo toda liberdade. O estudo da computador inerte, mas contra engenheiros que somavam sua
matéria, aliás, talvez até acabe ajudando a compreender melhor inteligência ao poder de cálculo da máquina.
a alma. Mas a ética, a responsabilidade e a objetividade
científicas não permitem hoje (e provavelmente jamais Na realidade, nenhuma inteligência mineral até agora jamais
permitirão) negar os fenômenos invisíveis. Os maiores superou a inteligência e a criatividade biológicas desenvolvidas
biologistas da atualidade não hesitam mais em reconhecer que pelo ser humano. O computador não tem alma, poder-se-ia
a descoberta do código genético contido no DNA não é dizer, ou, se a tem, é indiretamente a de seus criadores. Todas
suficiente para explicar o conjunto dos fenômenos chamados essas digressões pela memória e pela informática parecem estar
u • i yy u • a. • »
vida e consciência . nos afastando do nosso assunto. No entanto, elas nos autorizam
a pensar livremente que, em nosso mundo científico-
De fato, o único “instrumento científico” capaz de sondar tecnológico, existe uma inteligência contida numa vida e numa
o mundo das essências é o próprio ser humano e suas memória que são independentes da matéria e que, portanto,
experiências interiores; de fato, o ser humano é um produto sua imortalidade continua sendo imaginável.
(até onde chega nosso conhecimento atual mais avançado)
desse mundo das essências. “Sem elhante com preen d e sem e­ Todo o problema da reflexão atual sobre a vida vem do fato
lhan te”, como diz uma velha fórmula alquímica. de nosso mundo colocá-la em oposição à matéria, como se uma
pudesse se manifestar sem a outra. Recusamo-nos a considerar
O desenvolvimento extraordinário da informática leva que uma relação dialética possa uni-las, uma se sobressaindo à
muitas pessoas a acreditarem que a inteligência artificial está a outra. Paradoxalmente, Pasteur, que combateu a idéia da
um passo de igualar, quem sabe, até superar a do homem. Em geração espontânea, escreveu o seguinte, numa de suas
anotações: “Quem nos garante que o progresso incessante da ciência existência a priori da vida. Como responder à pergunta: por
não obrigará os cientistas de daqui a um século, m il anos ou dez que a natureza apresenta uma capacidade criadora tão
m il anos, a afirm arem que a vida sem pre existiu e não a m atéria? extraordinária? Os naturalistas sabem perfeitamente, por
Passamos da matéria à vida porqu e nossa inteligência atual, tão exemplo, que essa vida aparentemente tão frágil dá provas de
acanhada em relação ao que será a inteligência dos naturalistas uma capacidade surpreendente de renascer em seguida à queda
do fu tu ro, nos diz que não se p od e com preen der as coisas de outro de uma mínima chuva nos desertos mais áridos. A luz dos
m odo. Quem m e garante que daqui a m il anos não se acreditará nossos conhecimentos atuais, o ser humano representaria a
ser im possível não passar da vida à m atéria?”. Quanto a nós, forma de vida mais organizada que existe. Constituiria, acredita­
pensamos que uma inteligência realmente prudente e isenta se, o ápice da evolução. A análise do ser humano, de suas
de preconceitos materialistas não pode racionalmente descartar particularidades e faculdades também pode pôr em evidência
a hipótese dessa vida preexistente. a existência da alma.
A lição que poderíamos tirar da questão da geração
A primeira e certamente a mais evidente das características
espontânea é de todo original: a vida não pode nascer
humanas está em sua autoconsciência. Em outras palavras, o
espontaneamente, numa forma conhecida, dentro de uma
ser humano desenvolve uma personalidade ou um eu. Isso
massa de matéria não preparada. Foram precisos milhões de
significa, em outros termos, que no estágio humano a evolução
anos para que essa vida estruturasse pouco a pouco a matéria,
pode assumir caráter consciente e voluntário, indepen­
a fim de que esta se tornasse um suporte válido para a expressão
dentemente da pressão do meio ambiente. O ser humano busca
daquela. As formas mais evoluídas da vida só são transmitidas,
e quer evoluir por si e para si, do ponto de vista psicológico.
portanto, pela presença de células já existentes e muito bem
Através dele, a consciência, que é um conceito totalmente
estruturadas geneticamente. Entretanto, no que concerne uma
abstrato, buscaria se aperfeiçoar. Dissemos antes que, segundo
visão espiritual da existência, milhões de anos não representam
as teorias materialistas, as leis naturais seriam o resultado de
nada. Mas recriar artificialmente uma organização material que
uma necessidade inerente à matéria. Isso parece significar que
apresente certa vitalidade não é suficiente para provar que essa
a matéria seria, ao mesmo tempo, a causa e a conseqüência de
energia seja o resultado exclusivo dessa organização da matéria.
suas leis, independentemente da intervenção de uma
Para compreender o surgimento da vida, é necessário ter em
inteligência externa ou transcendente. Acontece, porém, que
mente a relação dualista que ela mantém continuamente com
o ser humano, ápice da evolução, pode, não só hoje como há
a matéria, e a isto somar a intervenção das leis de evolução, do
muito tempo, constituir essa inteligência exterior. O ser humano
tempo e, por que não, de alguns “acidentes” certamente não
é causativo, isto é, pode livremente decidir acionar forças e leis
devidos ao acaso.
naturais que, até certo ponto, submetem a matéria à sua
A observação do mundo natural, aliás, provavelmente vontade. Como explicar que a necessidade ou a matéria inerte
poderia nos fornecer muitas outras informações acerca da tenha podido criar tal inteligência livre, capaz de se tornar
mestre dela? Através do ser hum ano, a consciência, considerou pela primeira vez a noção de uma alma imortal.
supostamente produzida por arranjos complexos da matéria, Nossa civilização materialista explica que a vontade humana
buscaria se desenvolver por si mesma. De novo, onde é que se de considerar a sobrevivência da alma é um produto do medo
encontra no mundo mineral a origem desse impulso? Nossa da morte ou, então, que trata-se da consideração e da
compreensão científica atual não pode responder a essa interpretação, pela consciência, do instinto de sobrevivência.
interrogação, a não ser (e isto colocaria em questão muitas Que a consciência leve em consideração o instinto de
coisas, fazendo desaparecer uma certa concepção da natureza, sobrevivência, isto parece, por si mesmo, evidente. Contudo,
herdada da ciência do século 19) que se considerasse a matéria recordemos a pergunta feita anteriormente: qual é a origem
como um ser vivo e consciente, capaz de apresentar uma do instinto de sobrevivência? Não a matéria inerte, com certeza,
inteligência. O inerte não pode produzir consciência, mas a mas, sim, a Alma Universal. Por conseguinte, se o ser humano
inteligência, ao organizar o inerte, pode gerar consciência possui a intuição irreprimível da sobrevivência de sua alma,
objetiva. esta vem-lhe justamente da existência dessa alma imortal.
Que dizer, então, do impulso sentido pelo mestre Leonardo
É fato pragmático que um ser humano colocado num
Da Vinci, de pintar a Gioconda? Alguns filósofos gregos, dentre
ambiente desconhecido tentará estruturar aquilo que ele
eles Platão, seguidos dos neoplatônicos, explicavam que o ser
percebe, para dar-lhe um sentido. Para isso, ele partirá do
humano possuía, em seu foro íntimo, de maneira mais ou
conhecido: sua experiência atual. Tentará, então, comparar
menos difusa, uma idéia do belo, de bem, do justo e do
aquilo que ele percebe como novo com aquilo que ele já
verdadeiro. Platão acrescentou que seria perfeitamente possível
conhece. Assim, ele fará nascer nele a centelha de compreensão
imaginar que as noções de perfeição, provenientes do mundo
dessas novas experiências. Essa tendência é irresistível no ser
arquetípico das idéias eternas, foram-lhe transmitidas por
humano. O que chamamos inteligência pode, aliás, ser
intermédio da Grande Alma do Universo. Ele a considerava,
definida, entre outras coisas, por essa faculdade de adaptação
portanto, como um intermediário entre o mundo material da
que transporta o desconhecido ao conhecido. Em última análise
transformação e aquele outro imutável, dos arquétipos.
e de modo extremo, pode-se remontar essa tendência ao seu
instinto de conservação. O ser humano sente necessidade de Sócrates, mestre de Platão, por sua vez, ensinou a existência
compreender seu ambiente, a fim de dominá-lo e assegurar de um conhecimento inato no ser humano, do qual ele poderia
sua sobrevivência. se lembrar sob determinadas condições. Ele foi o divulgador
da m aiêutica ou arte de fazer a alma parir através de um
Os antropólogos preferem muitas vezes situar os primordios questionamento corretamente conduzido. A palavra m aiêutica
da civilização há mais ou menos cem mil anos. De fato, é formada de m aia, termo grego antigo que significava
constataram que foi por volta dessa época que o ser humano “pequena mãe” ou “pequeno pai”. Um dos nomes freqüen­
começou a enterrar seus mortos. Nesse mesmo período, ele temente utilizados para designar a Alma Universal é a “Mãe
Universal”. Segundo aqueles grandes filósofos, um ideal de símbolo, que a serpente do texto bíblico da Gênese é um animal
perfeição de conhecimento dormita no homem. A busca desse que rasteja horizontalmente, o corpo em contato com o chão.
ideal, seja ele material, intelectual, emocional ou espiritual, “O mais ardiloso de todos os animais dos campos” está
compõe o fermento da evolução humana. E poderíamos qualificado no mito? O ser humano, por sua vez, desenvolve o
acrescentar que todas as tendencias que impelem o ser humano estágio vertical. Sua relação para com ambos ilustra o
para os elevados valores da vida (amor, arte, fraternidade, etc.) simbolismo da cruz.
vêm de sua alma.
O réptil representa a necessidade de leis no mundo material,
É inegável que o ser humano, face à existência material, é enquanto o ser humano encarna seu velho inimigo, a liberdade.
capaz de demonstrar certo livre-arbítrio. Essa capacidade só Eis porquê, no mito bíblico, a serpente sentenciou a queda de
pode lhe ser insuflada pelo mundo espiritual. A liberdade da Adão. Eles representam duas ordens distintas. Um é o sujeito,
alma se contrapõe à necessidade de leis do mundo material. o outro, o objeto. Boa parte da história das sociedades foi
Fonte dessas leis, ela só pode ser maior que elas. Toda a vida baseada nessa dualidade, nessa luta ou numa busca perpétua
humana constitui uma luta contra a necessidade. O advento de equilíbrio entre esses dois princípios, o da necessidade ou
da tecnologia nos permite compreender que essa luta deveria totalitarismo sufocante e o da liberdade que dirige o ser humano
passar por um estágio de dominio, em vez de destruição da para o progresso. O braço vertical da alma fornece as idéias de
natureza material. De fato, muitas tradições e filosofias perfeição e infinito.
concordam em explicar que, por suas faculdades e poderes, o
ser humano representa uma imagem da Grande Inteligência A essa altura, podemos dar uma nova definição ao termo
Universal que está na origem do mundo. “milagre”. Ele representa a irrupção da liberdade no mundo
da necessidade. Nesse sentido, todo processo vivo torna-se um
Um dos símbolos mais antigos usados para descrever o elo milagre. Não precisamos evocar Lourdes, Mejugorje ou, ainda,
e a relação existentes no ser humano entre sua alma e seu corpo, manifestações extraordinárias e inexplicáveis. O milagre se
ou entre os mundos espiritual e material, é a cruz. O braço encarna todo dia diante de nossos olhos, na medida em que
horizontal da cruz descreve, por sua relação com a linha do vivemos num mundo mesclado de liberdade e necessidade.
horizonte terrestre, o mundo da matéria. O braço vertical, pelo Compreender isso é resolver, de um só golpe, o problema da
fato de sugerir a idéia de descida, representa a alma que se morte.
infunde na matéria, para nela estabelecer uma relação dialética.
A barra horizontal ou material é regida pelos princípios de A visão materialista da vida transforma o ser humano num
evolução, transformação e multiplicidade de formas e estados. produto bioquímico do acaso e do nada. Nesse terreno,
A morte, que, em última análise, representa uma transformação, nenhum humanitarismo coerente, portador de futuro, pode
pertence-lhe portanto. Note-se, lançando mão de um outro realmente se desenvolver. Ela torna o ser humano uma simples
máquina que pode ser explorada e destruída. Pior ainda, faz existe um eu humano? Vimos que o budismo oficial responde
da poesia um produto de reações estritamente físicas. Mais negativamente a essa questão fundamental, apoiando-se, como
espaço, por favor, para uma concepção mais sutil ou sensível Héraclito, no fato de que nada é, tudo se torna. Algumas pessoas
do ser humano e da Criação! Passe a emoção pelas Forças sentem-se atraídas pelo budismo, por acreditarem (um tanto
Caudinas da análise intelectual e materialista, e você a aniquila apressadamente) que ele desenvolve uma visão muito próxima
irremediavelmente. Dizer “não existe alma im ortal", é o mesmo da filosofia do materialismo, uma vez que nega a existência do
que declarar que não há liberdade possível; é encerrar a vida Ser Absoluto que é Deus. O filósofo André Comte-Sponville,
no absurdo e na ausência de sentido, e, por fim, afirmar que por exemplo, diz que a filosofia indiana sâmkliya, considerada
não existe mais o próprio ente humano!. Sustentar a existência como a fonte do budismo, expõe o mesmo princípio de
da alma significa propor um acordo entre a liberdade e a inexistência do ser.
necessidade. Um sentido para nossa existência torna-se, então,
possível. E é por isso que a evidência da imortalidade da alma Platão, por sua vez, numa síntese superior, realizou a
é a única portadora de um futuro sempre a construir. unidade entre a idéia de um ser supremo e imutável e a de um
mundo em transformação. Para ele, portanto, há lugar para
No simbolismo da cruz, o ponto de cruzamento dos dois que o ser humano participe no Ser.
braços descreve um princípio que é evolutivo como o mundo
material e, ao mesmo tempo, perfeito e imutável como o mundo Na filosofia do islã esotérico, encontramos idéias parecidas.
espiritual. De fato, a relação entre a alma e a matéria, a alma e Para o sufi, o ser humano não é nada e absolutamente não existe.
o corpo, gera um principio que é afetado simultaneamente pelos No entanto, admite-se o mistério da existência humana, o qual
mundos espiritual e material. Parece que todo processo vivo se está inteiramente nestes versos de Djalâl-od-Dtn Rümi:
situa-se no ponto central de urna cruz desse tipo. Na tradição
islâmica, o ofício de tecelão, com suas tramas, simboliza a “És nada e teu nada é m elhor que a existência.
/
estrutura e o movimento do universo. E através dos seres vivos, Estás atrelado na perda e tua perda é um ganho.
todavia, que a ação da alma dentro da matéria torna-se mais Se fo res aniquilado, ser-te-á dado a existência.
evidente. Essa idéia sugere a presença de um mundo invisível, Se te diminuíres, tom ar-te-ás m aior que o mundo.
o duplo ou a matriz do mundo visível. Por conseguinte, a morte Serás depois mostrado a ti mesmo, sem ti. ”
do corpo, representado pelo pote de cerâmica do oleiro, não
significa, ip sofacto, o desaparecimento do molde que o formou. Maravilhosas fórmulas para reconciliar o ser e o devenir,
numa síntese que ultrapassa o entendimento. Isso, aliás, talvez
Existe um verdadeiro enigma em torno à identidade explique a prudência extraordinária do Buda, que sempre se
verdadeira do ser humano, o qual pode influenciar nossa recusou a indicar a solução do problema relativo à impes­
compreensão da morte. Esse mistério pode ser assim expresso: soalidade ou não do carma.
Mas voltemos à nossa alma imortal. Até aqui, foram Não há evolução sem memória. O que hoje é aprendido é
desenvolvidos elementos em favor da existência eterna de um armazenado e serve de base para compreender ou adaptar-se
princípio único, que foi qualificado de Alma Universal, do qual a experiências futuras. No mundo material vivo, conhecemos
emana uma grande força de vida. No entanto, o leitor certamente essa memória que conserva a experiência evolutiva adquirida.
há de convir que o que realmente interessa aos habitantes deste A genética chama essa memória de hereditariedade e explica
planeta é a possibilidade de uma sobrevivência de seu eu, de sua que a hereditariedade de características físicas ou mentais é
individualidade. Seja poderoso ou miserável, o indivíduo quer transmitida pelo código do DNA. Essa codificação está inserida
saber se as tribulações que ele viveu neste mundo possuem um no núcleo de todas as células vivas.
sentido em relação a um destino mais vasto. Vamos, então,
examinar agora a questão da sobrevivência do eu. Vimos antes que nada nos impedia de considerar a existência
autônoma de uma memória capaz de conservar a experiência
Salientamos, em primeiro lugar, que o ser humano é adquirida durante toda uma vida. Em outras palavras, é
consciente de si mesmo. E justamente devido a essa consciência possível imaginar a sobrevivência de um indivíduo depois da
de si mesmo, que é diferente daquela que os outros possam morte? Por que pensar, por exemplo, que o conhecimento e a
ter dele, que ele desenvolve uma verdadeira personalidade. A maestria adquiridos voluntariamente por determinada pessoa,
emergência da autoconsciência na corrente da evolução das ao longo de sua vida, sejam perdidos, sendo que a natureza
espécies constitui, de fato, uma ruptura em relação ao passado, tomou o cuidado de conservar a experiência do campo material
mesmo que se possa dizer, de alguns animais superiores, que através de uma memória genética? Por que a experiência
eles tenham desenvolvido uma autoconsciência embrionária. acumulada por meios mais sutis, mais espirituais, seria perdida?
A esse respeito, note-se que 99% dos genomas são comuns a Se a regra do menor esforço mostra-se verdadeira na natureza,
humanos e macacos. O 1% restante representa, en tre outras por que esta teria tido o cuidado de produzir uma consciência
coisas, a consciência de si, de Deus, da verdade e da morte. tão evoluída quanto a do ser humano, se fosse para faze-la
C onsciente d e si m esm o, isto, para o ser humano, significa que desaparecer ao cabo de uns oitenta anos?
nele a evolução adquiriu caráter radicalmente diferente. O ser
humano pode aceitar ou rejeitar a ação de fazer evoluir sua Se não admitimos a sobrevivência da personalidade humana,
própria personalidade, multiplicando ou não os instrumentos fica difícil justificar esse desperdício de uma natureza que
favoráveis ao fenômeno evolutivo. Quanto a isso, ele é dotado produz uma criatura cuja principal característica é desenvolver
de livre-arbítrio. A evolução representa nele um fator uma personalidade imperfeita, passível de evolução e
consciente, ao passo que nos outros reinos essa consciência de aperfeiçoamento. Parece evidente, ao observarmos hones­
evoluir, tanto individual como coletivamente, não existe ou tamente a nós mesmos e aos nossos concidadãos, que, numa
existe em baixo grau. Nos reinos qualificados de inferiores, a única existência, a personalidade fica bem longe de ter
evolução parece mesmo ser sofrida. manifestado o desenvolvimento máximo de todas as suas
qualidades latentes. Se a pessoa desaparece com a morte, fica coração no Egito, por exemplo, acontece na presença do deus
difícil compreender por que o universo dotou-se desse meio Toth, o deus da escrita. Thot era o Senhor da Voz, o Mestre da
de autoconhecimento que é o ser humano. Afinal de contas, o Palavra e, sobretudo, o inventor da escrita. Sobre esse último
universo se reflete na consciência humana. Quanto mais o atributo, diz ele num mito: "Ela representa a mais n otável de
indivíduo cresce em conhecimento, sabedoria e maestria, mais minhas idéias. Ela perm itirá, aos egípcios, adquirir e conservar
o reflexo se aproxima de seu molde, ainda que, ao longo do uma ciência incom parável. Graças a ela, eles poderão guardar a
progresso, cresça também nosso sentimento de ignorância. lem brança de todas as coisas. A escrita elim inará a ignorância e
com p en sa rá a fa lta d e m em ória " . Desse modo, pode-se
Se a experiência de uma personalidade e esta mesma estabelecer o elo entre o livro, a escrita e a memória. Fazer com
personalidade desaparecerem sem estarem terminadas, será que Toth intervenha na pesagem do coração é, portanto, uma
que podemos realmente ter a esperança de que o ser humano forma de explicar, pelo símbolo, que a evolução da alma ocorre
se torne, um dia, como no caso dos místicos mais evoluídos, o perante a Memória Universal.
instrumento através do qual o universo será consciente de si
mesmo? O espírito da poesia nos deixa pressentir: o universo Tomar o exemplo isolado do Egito não significaria grande
mira-se no pensamento dos entes despertos. O sonho coisa se uma religião mais atual não utilizasse, ela própria, uma
prometeico da humanidade é tácitam en te o d e acender o fo g o imagem similar. No Apocalipse de João também se fala de livros
do conhecimento. Todos os talentos da humana natureza de e, especificamente, do “livro da vida" (João 19, 11). E cada
hoje não preenchem esse vasto e brilhante destino. Arte, ciência, alma “é ju lga da segundo o con teú do desses livros", os quais,
religião, mística, poesia, meditação, não esgotam a totalidade naturalmente, ela mesma escreveu. “E aquele que não está
do conteúdo do real e do imaginário que se tornará o real de inserido no livro da vida é lançado num lago de fogo" . Que
amanhã. representam esses misteriosos livros senão a memória das
experiências e dos atos de cada um? Na verdade, a maioria das
No que diz respeito à existência de uma memória capaz de tradições alude a um deus escriba, que anotaria a história de
conservar a experiência plena de uma pessoa, as tradições cada pessoa. Na índia, o deus Ganesha, com cabeça de elefante,
orientais, bem como o esoterismo ocidental, aludem à existência escreve o texto da grande epopéia ou Mahabharata, ditada pelo
de arquivos que correspondem a uma espécie de Memória vidente Vyasa. Seria graças a essa memória imaterial que as
Universal. Essa memória reteria, por toda eternidade, a personalidades seriam conservadas, antes de renascerem para
experiência adquirida pelos indivíduos. Ela constituiria um um novo ciclo de evolução. Essa interpretação seria muito
quinto elemento, chamado akasha, em sánscrito, sendo os cômoda, pois provaria que o ser humano evolui através de
quatro outros a terra, a água, o ar e o fogo. Note-se, de sucessivas vidas de experiências e provas. Esse pensamento
passagem, que a maioria das religiões ou tradições aludem, de coincidiria também com a idéia que geralmente se tem da
maneira simbólica ou velada, a essa memória. A pesagem do justiça. Explicaria, ainda, porque as crianças que nascem hoje
estão cada vez mais rápidas em sua adaptação às condições carma ou de uma sucessão de causas e efeitos, mesmo assim
sempre cambiantes do mundo moderno. Elas dão mesmo a podemos notar que, nessa sucessão de ações, a existência de
impressão de possuírem um conhecimento adquirido efeitos já está contida potencialmente na causa primeira. Isso,
anteriormente. portanto, significa que o conjunto das possibilidades —passadas,
presentes e futuras —está latente e eterno na lei que rege essa
Nessa questão de memória e conhecimento passado, um seqüência de causas e efeitos. Em outras palavras, tudo está
professor da universidade de Charlottesville, Virgínia/EUA, em tudo, eternamente, sem que tenhamos necessidade de
estudou as lembranças de vidas anteriores relatadas por crianças invocar uma “memória”, no sentido clássico do termo.
bem pequenas. Esse psiquiatra, Ian Stevenson, estudou, de
1961 até o presente, mais de 14.000 casos de reminiscências Apresentar uma apologia da imortalidade da alma não é
surpreendentes, em todo o mundo. Para ele, se as recordações coisa fácil. A argumentação poderá parecer insuficiente ao leitor
de existências anteriores não provam cem por cento a doutrina preocupado em obter provas tangíveis e absolutas. Na verdade,
da reencarnação, essa idéia, velha como o mundo, constitui ao é muito difícil provar de maneira filosófica a existência da alma
menos a melhor explicação do fenômeno. Disse ele: "Todos os e sua imortalidade. Se fosse fácil, o debate já estaria encerrado
casos que pud e estudar exaustivam ente sugerem o fen ô m en o da há milhares de anos. A razão dessa incerteza vem do fato de
reencarnação. E trago, no m ínim o, aprova de que entre algum as que, para obter informações sobre essa esfera, seria preciso que
crianças há elem entos de sua estrutura psicológica que certam ente o pesquisador se comportasse como um peixe que põe a cabeça
não fora m adquiridos em sua vida atual e que tam bém não podem para fora da água a fim de admirar o que se passa no outro
ser im putados a nenhum fa to r hereditário”. mundo, na terra. O pesquisador precisaria mudar de lógica e
de ponto de vista; precisaria aceitar sair daquilo que lhe é
Se essa idéia de reencarnação é um fato, isto significa que a costumeiro. Os pioneiros, na maioria dos campos, muitas vezes
evolução, que conduziu a primeira célula viva até o ser humano, são considerados como marginais, porque incomodam as
não pára neste estágio, mas pode tomar outras vias para se ideologias comumente aceitas, sem verdadeira análise. Ousar
realizar. O ser humano pode escolher evoluir de modo imitar os egípcios antigos e ir conquistar o além, como quem
independente de seu ambiente físico, mesmo que ele tenha parte para a conquista de Marte... eis um desafio que faz
oitenta anos de idade. Nada se perde, nada se cria, e todo tremer nossos contemporâneos. No entanto, não existe
trabalho de uma vida, mesmo feito numa idade bem avançada, nenhuma outra solução, se queremos aprender a domar a
produzirá frutos mais tarde. Que perspectivas imensas se abrem morte. Em relação a esse assunto, existem os mesmos tabus
assimí que existiam na era vitoriana em relação à sexualidade. A
propósito, note que os astrólogos associam o signo de escorpião
Inversamente, se, a exemplo de alguns budistas, não ao sexo e à morte, assim como Freud acreditou poder associar
acreditamos na existência da alma, mas somente na de um Eros a Tanatos. No entanto, para atingirmos a idade adulta, é
necessário questionarmos nossos tabus relativos à morte. A somente o não-sentido. A necessidade, por sua vez, pode ser
única atitude válida face ao assunto é a do caminho do meio. concebida como inteligente, mas destrói a liberdade e o amor.
Nem fascinação nem repulsa, mas adaptação inteligente, só A esperança de que existe um futuro para o ser humano baseia-
isto. Um ponto de vista como esse deixa bem para trás o estado se nessas idéias. Negar a alma conduz ao niilismo e ao caos. E
de resignação e se opõe categoricamente à promoção do suicídio. por isso, entre outras coisas, que, em nossas sociedades de
consumo e materialismo, mais e mais pessoas se sentem
Repetindo, provar a imortalidade por meio de argumentos desnorteadas e infelizes. Não tendo mais um objetivo
filosóficos é difícil. E preciso salientar, no entanto, que provar transcendente a ser alcançado, elas perderam sua orientação
o contrário é impossível. A questão da geração espontânea e as ou não sabem mais a qual santo se devotar. Não sabendo mais
diversas pesquisas de criação da vida mostram: é impossível de onde vêm nem para onde vão, não sabem mais nem mesmo
demonstrar que a energia vital corresponde a um mero produto quem são. Salvo se sua lucidez as fizer responder a charada
da matéria. materialista: “você veio do nada por acaso e vai voltar ao nada
Na verdade, grande parte do comportamento coletivo da por necessidade, adivinhe quem é você?”
humanidade é reflexo de uma crença implícita na imortalidade Foi certamente por causa dessa compreensão e consciente
da alma: de onde vêm nossas idéias de justiça, fraternidade e do risco corrido pela humanidade, que Montesquieu, no século
altruísmo? Por que defender o interesse coletivo antes ou junto 18, apresentou a imortalidade da alma mais como uma
ao seu próprio, caso se acredite que o ser humano vem do necessidade que uma certeza. Para ele, essa necessidade fazia-
acaso e retorna ao nada? Por que construir civilizações ou se tão imperativa que não era nem um pouco permitido duvidar
produzir obras de arte, se apenas a necessidade cega dirige o dela. Depois acrescentou: “Quando a im ortalidade da alma fo r
mundo? Será que devemos, então, fazendo eco ao Eclesiástico, um equivoco, fica r ei m uito desolado de não acreditar nela". E
entoar o canto niilista: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade e concluiu com as seguintes palavras: “Busco a im ortalidade e
perseguição de ven to ”} ela está em m im mesmo. Minha alma, expande-te! Precipita-te
na im ensidão, penetra no Grande Ser!". Vale lembrar, neste
A orientação moral das sociedades, para além mesmo dos
contexto, a frase lúcida de André Malraux: “O século 21 será
dogmas, repousa na idéia de que há um propósito sublime
espiritual, ou não será"...
para o ser humano. A humanidade, coletiva e às vezes
inconscientemente, está sempre em busca de sentido e Para encerrar este capítulo, esclarecemos que a compreensão
liberdade. Para progredir, ela tem necessidade de se sentir livre do fen ô m en o da alma e sua imortalidade é sempre uma questão
e de conceber um universo inteligente, criativo e —por que de convicção interior. Todavia, isso pode resultar do despertar
não? —imprevisível. Precisa sentir “o ser” à sua volta e imaginar de certas faculdades superiores do ser humano. Para utilizar
que o universo é concebido segundo o que ela crê ser a sua uma imagem, pode-se dizer que essas faculdades correspondem
imagem. O acaso traz consigo a liberdade, mas apresenta a alguma coisa parecida com o despertar do senso artístico, ou
seja, àquilo que o indivíduo é capaz de produzir de melhor no
nível emocional. Acima do senso artístico, há uma faculdade
¿/leencazaaçãt?, um a ¿/ai m aà
ainda mais sutil, mais espiritual. E esse meio de conhecimento
que pode nos informar de tudo quanto se refira ao reino da n/Ao) íeo z iaj c/o /m im /¿>, ¿una
alma. Aqui não é mais uma questão de fé, mas da cultura
deliberada de um instrumento de investigação suplementar para convicção unweua//nm ¿e cfí/unc/it/a
o ser humano. Todo o objeto da busca do bem empreendida
pelos místicos, em especial os místicos Rosacruzes, consiste em
permitir que esse sentido se expresse neles.
Na mente do público ocidental, a palavra “reencarnação”
Num campo mais próximo do paranormal, Mircea Elíade muitas vezes remonta ao Oriente e seus misteriosos aromas.
estudou os xamãs, sacerdotes feiticeiros da Sibéria, Ásia central No entanto, se é correto constatar que mais de dois bilhões de
e outras regiões do mundo. Observa ele que o aprendiz de habitantes da terra são acalentados pelas doutrinas budistas
xamã, para se tornar mestre e receber a iluminação que o ou hindus, que ensinam a multiplicidade de existências, nem
tornará curandeiro e vidente, “d eve viven ciar a experiência da por isto é m en os verdade que o resto d o planeta conhece ou
m orte, durante 3 dias e três noites, e da ressurreição m ística”. conheceu esse conceito desde a noite dos tempos. No próprio
Então, nada mais lhe é oculto e ele pode ver o que se passa a continente europeu, muitos grupos o transmitiram secre­
grande distância. Supõe-se mesmo que ele seja capaz de ver as tamente.
almas, "quer tenham sido levadas para o alto ou para baixo, no
país dos mortos". Na vasta categoria dos xamãs da Antiguidade,
Originalmente, a idéia de reencarnação decorreu prova­
Sócrates está numa boa posição graças à referência ao seu
velmente da observação 'dos fenômenos naturais, pelos
Daimon, mas quem mais nos interessa aqui é o sábio Apológio
Antigos. No Livro dos Mortos dos egípcios, por exemplo, o
de Tilanta. Ele teria respondido a um jovem imprudente que,
morto (que podia ser o faraó) geralmente se identifica com
depois de sua morte, invocou sua alma para obter informações
o deus-sol Rá. Na índia, no Egito ou em qualquer outra
sobre a imortalidade. Falócrates, em sua biografia de Apológio,
parte, que coisa melhor que o retorno diário do Sol no
relata-nos a seguinte resposta, supostamente do além-túmulo:
levante para dar ao ser humano a idéia de um mesmo destino
“A alm a é imortal, não é vossa, mas da Providência. Quando o à sua alma? A reaparição regular da vestimenta floral da
corpo é consum ido, tal com o um cavalo veloz que salta a barreira, terra não representa a mais bela evocação do ciclo das
a alma se lança e se precipita nos espaços etéreos, cheia de desdém encarnações? Mesmo a data do solstício de inverno, que no
pela triste e rude escravidão que sofreu. Mas que te im portam Hemisfério Norte coincide com o N atal, marca o tão
essas coisas? Tu as conhecerás quando não mais fores. Enquanto esperado triunfo anual do sol, em pleno coração da frieza e
estás entre os vivos, p or que tentar desvendar esses mistérios?" das trevas invernáis.
Os egípcios antigos formularam a idéia segundo a qual "o que, após ter habitado, sucessivam ente, em todas as espécies
que está em cim a é com o o que está em baixo”, e vice-versa. A terrestres, [ ...] ela p en etra de n ovo num corpo hum ano, no
Tábua de Esmeralda, texto cuja primeira apresentação m om ento de seu nascimento, depois de um a m igração de três m il
conhecida data do século 3 d.C., apresenta o testemunho anos. Os gregos, tanto os antigos com o os modernos, tom aram sua
escrito desse princípio. Segundo essa concepção, a fim de obter essa teoria, apresentando-a com o de sua própria autoria”.
informações sobre o mundo invisível, o ser humano deve
proceder primeiro a uma observação do mundo visível. A Platão, por exemplo, conta sob forma mítica, no livro dez
doutrina da reencarnação corresponde, portanto, à trans­ de sua “R epública”, a história de Er de Panfília. Er é um jovem
posição, para o reino da alma, da lei universal dos ciclos naturais soldado que, após uma batalha, fica morto por dez dias e depois
e cósmicos, cuja existência qualquer um pode verificar. retorna à consciência. Ao despertar, narra a experiência que
ele viveu no além da morte. Descreve o julgamento das almas e
Os egiptólogos modernos ainda não conseguiram fornecer seu retorno em corpos animais, para uns, e humanos, para
a prova de que essa crença existia entre os antigos egípcios. E outros. Mas são as almas que fazem essa escolha; porém, antes
apenas uma tradição tenaz que afirma que eles eram partidários de tomarem um corpo, devem se banhar nas águas do rio Letes,
dela. Alguns estudiosos explicam que eles acreditavam na o rio do esquecimento. Na mitologia grega, esse rio separa o
ressurreição do corpo, a qual devia acontecer ao termo de 3000 além da vida terrena. E dessa maneira que Platão, precursor
anos. Não seria preciso ir mais longe para encontrar a origem de muitos escritores, explica a súbita amnésia das nossas
da prática do embalsamamento. Foi daí que veio a idéia de que existências passadas. No mito, ele evoca também a possibilidade
eles eram partidários da idéia da reencarnação. Na realidade, de reencarnação das almas animais. Num outro texto, “P hedo”,
seu conhecimento apresentava uma dupla face. A oficial, do Platão nos entrega suas reflexões acerca do destino da alma
sacerdócio de Amon, era exibida às claras. Mas havia também após a morte, e novamente fala da reencarnação: “Se elas voltam
um conhecimento esotérico, uma sabedoria secreta reservada em sua mesma form a hum ana”, explica ele, “dão nascim ento a
a uns poucos iniciados. Nela é que se abria o verdadeiro conceito pessoas de boa con duta”.
de vidas sucessivas.
Para explicar a lei da reencarnação, ele recorre ao princípio
Mais tarde, filósofos gregos, como Platão e Pitágoras, foram da dualidade. Trata-se de um modo mais filosófico de abordar
estudar à sombra das pirâm ides. Heródoto, o grande o tema, ao passo que outros povos preferem considerá-lo a
historiador grego, afirmou que foi dos egípcios que eles partir da observação da natureza. Para Platão, a natureza de
colheram suas idéias sobre a reencarnação e a transmigração. uma coisa só pode lhe ser conferida através da relação com o
Disse ele: "Foram os egípcios os prim eiros a dizer que a alma seu contrário. Por exemplo, a luz não existe sem as trevas, o
humana é im ortal e que, no exato m om ento em que o corpo morre, pequeno só faz sentido diante do grande, etc. Um produz o
ela vai se alojar num outro ser vivo que nasça naquele instante; outro, e vice-versa. Se essa concepção é válida na categoria do
sentido, também o é na das coisas sutis. Assim, para Platão, a são utilizados indiferentemente, no sentido de renascimento
vida não existe sem a morte, a vida vem da morte e a morte, da num co rp o qualquer. Com muita freqüência, a metempsicose
vida. No reino da matéria, constatamos esse fato. O húmus, animal é usada no intuito de ridicularizar a idéia do retorno
produto da decomposição das folhas, constitui o terreno ideal num corpo humano. E preciso, portanto, imaginar novas
das florestas. Do mesmo modo, Platão explica que as almas definições que façam da reencarnação a migração da alma de
dos vivos são almas mortas que tomaram um novo corpo, assim um corpo para um outro do mesmo reino.
como os mortos provêm dos vivos.
Para se chegar à compreensão das obras de Platão ou Pitágoras,
Outro grande filósofo grego, Pitágoras, professava, por sua convém lembrar que, a exemplo dos mestres daqueles tempos,
vez, a doutrina da metempsicose, isto é, a crença segundo a eles exprimiram seus pensamentos sob forma de alegorias. No
qual a alma humana pode voltar à vida num corpo animal. Os fim das contas, nada evidencia que eles não nutrissem noções muito
pitagóricos muitas vezes são acusados dessa opinião grosseira. mais sutis do que as que decidiram dar ao mundo. A respeito do
Muitos estudiosos afirmam que sua prática do vegetarianismo próprio Pitágoras, conta a lenda que ele teve a experiência da
provinha dessa crença. Entretanto, Hiéroclos, um neoplatônico recordação de suas vidas anteriores, quando de uma visita a
do século 5 d.C., insurgiu-se contra essa interpretação imatura Heraum de Argolis. Nessa ocasião, ele identificou o escudo de
do pensamento do grande sábio. Comentando os "Versos de Euforbe como tendo sido seu, antes mesmo de ter visto a inscrição
Ouro” dos pitagóricos, disse: “S em preperm anecendo com o alma que ele continha. Isso faz supor que Pitágoras fora Euforbe,
de um ser humano, a alma (humana) vai se tom ar um deus ou guerreiro morto diante dos muros de Tróia.
um animal, segundo tenha adquirido a virtude ou o vício. Por
natureza, ela não é nem um nem outro, e éso m en te seu estado de Em Elêusis, nas celebrações dos mistérios, o mito de
ser que a tom a sem elhante ao prim eiro ou ao segu n d o”. Antes de Deméter era representado nas iniciações secretas. Platão,
mais nada, ele explicava que o ser humano está situado no meio segundo consta, era um iniciado dessa escola, onde a revelação
entre os mundos superior e inferior. Por causa do uso de seu ilícita dos arcanos condenava à morte os culpados. A deusa
livre-arbítrio, ele pode assumir interiorm ente as características Deméter, personificação da natureza e das colheitas, tinha uma
de um ou de outro mundo. Chama-nos a atenção, aqui, a filha, Core, bela como o sol. Um dia, Hades, deus dos infernos
semelhança com as idéias tibetanas do Livro dos Mortos ou e irmão de Zeus, apaixonou-se perdidamente pela jovem.
Bardo Thõdol. Nessa obra, explica-se que o ser pode se Enquanto ela estava colhendo flores, ele decidiu raptá-la e levá-
reencarnar como homem, demônio, animal ou deus. la para viver entre as sombras que povoavam seu reino
subterrâneo. De repente, a terra se abriu sob os pés da
Não há em nossa língua um termo específico que marque adolescente, dando passagem à terrível carruagem de Hades,
definitivamente a diferença entre reencarnação num corpo puxada por seus cavalos infernais. Num piscar de olhos e num
animal ou num corpo humano. Reencarnação e metempsicose barulho ensurdecedor, ele arrastou consigo a apavorada Core.
Algum tempo depois, Deméter se deu conta do desapa­ encarnações, bem como o período vivido alternadamente
recimento de sua filha. Em prantos, ela peregrinou pela terra na terra e no invisível. Descreve também os laços que unem
durante nove dias e nove noites, numa procura que se mostrou o ser humano e a natureza, o ser humano e os deuses. Aqui,
infrutífera. Interrogou todos os seres fantásticos e até mesmo Core representa a alma humana, filha da Alma Universal
os outros deuses do Olimpo, que ficaram em silêncio, temendo encarnada por Deméter. Perséfone passa um quarto do
sofrer as represálias de Hades. Então, Deméter, senhora da tempo num reino inferior, destituído de luz, ao passo que
fecundidade da natureza, tornou a terra estéril, declarando vive os outros três quartos em estreita harmonia com sua
que só lhe devolveria seu poder de produzir frutos se sua filha mãe. Se compararmos os doze meses do ano a um ciclo
lhe fosse devolvida. Diante da iminência de um caos na ordem completo de encarnação e se os multiplicarmos por doze,
da Criação, Zeus e os outros deuses intervieram junto a Hades, obteremos cento e quarenta e quatro. Os nove meses
com a seguinte mensagem: “Ou devolves Core, ou estamos todos restantes podem, então, ser comparados, segundo esse
perdidos!”. E ele respondeu a Deméter: “Só recuperarás tua filh a mesmo princípio, ao número cento e oito. Esse valor
se ela atnda não tiver provado do alim ento dos m ortos”. E como representa relativamente bem uma duração de vida na terra,
achasse que assim era, ele se dispôs a devolver a jovem à sua que, embora acima da média, não é assim tão raro. Em
mãe. Nesse momento, porém, Ascalafos, um jardineiro do relação a cento e quarenta e quatro, restam trinta e seis anos
Hades, afirmou ter visto Core comer sete grãos de uma romã a serem passados no invisível. 108, 144, 36: esses valores
do pomar infernal. Entretanto, era preciso encontrar um modo simbólicos, cujos dois primeiros são muito utilizados nas
de fazer um acordo entre o apaixonado repelido e a mãe, coisa tradições orientais e no esoterismo ocidental, têm em comum
que aconteceu depois de longas discussões. Core passaria três o fato de poderem ser reduzidos a nove, que marca
meses do ano no Tártaro, com o nome de Perséfone, a rainha excelentemente a noção de ciclo. A história de Deméter e
dos infernos, esposa de Hades. Os nove meses restantes, viveria sua filha representa, portanto, de maneira alegórica, a lei
com sua mãe, na superfície. das reencarnações comparada à dos grandes ciclos.

Esse mito foi interpretado, na maioria das vezes, como a Um outro povo da Antiguidade conhecia muito bem a noção
representação do ritmo das estações. Perséfone simbolizaria a de reencarnação. Os judeus da Palestina admitem duas fontes
germinação na primavera e Deméter, a colheita no fim do mês em suas doutrinas: a Torah escrita (os cinco primeiros livros do
de agosto, no signo astrológico da Virgem. O frio e as trevas Antigo Testamento) e a Torah oral (a lei oral). Essa última,
do Tártaro, por sua vez, representariam o período invernal. remontando a Moisés, foi transmitida de boca em boca por
Mas os mistérios de Elêusis, cuja chave teria sido dada aos intermédio dos rabinos cabalistas. O rabi Isaac Loria, no século
homens pela própria Deméter, encerram uma outra inter­ 16, ensinava a metempsicose ou migração das almas, mas
pretação - esotérica - para a história do rapto. Todo o drama igualmente a impregnação de duas almas num mesmo corpo,
tem por função descrever o périplo da alma através das em circunstâncias excepcionais. Os cabalistas geralmente
aceitam a doutrina das encarnações sucessivas, e a Bíblia relata Filho do hom em tam bém de sofrer p or causa d eles”} Então, os
que o próprio Moisés tinha sido iniciado aos mais altos discípulos compreenderam que essas palavras eram para João
conhecimentos do Egito. Deve-se ver aqui uma relação entre Batista. Como explicar, sem distorcer o texto, que Jesus não
esses dois fatos? estivesse falando da reencarnação de Elias em João Batista?

Por volta do ano 50 d.C., o historiador judeu Flávio Josefo Ao leitor atento, não parecerá surpreendente que alguns
explicou, em seu livro “História Antiga dos Ju d eu s’’, que essa dos primeiros cristãos possam ter sido adeptos da reencarnação,
crença era muito difundida na Palestina, na época de Jesus. se lembrar que estes eram, antes de mais nada, judeus
Afirma ele que na seita dos Fariseus, “tam bém é aceito que as convertidos ao cristianismo. Foi somente a partir do século 6
alm as são im ortais; que as dos ju stos passam, depois desta vida, de nossa era, no segundo co n cilio de Constantinopla, que essa
para outros corpos, e que as dos maus sofrem torm entos que duram idéia foi condenada oficialmente pela Igreja. Esse concilio, eixo
eternam ente”'. Uma passagem do Evangelho de Mateus faz eco de articulação na história da cristandade, viu a condenação de
a esse fenômeno. A pergunta, "Que dizem de m im ?”, feita por um dos principais Pais da Igreja: Orígenes. Orígenes ensinava
Jesus a seus discípulos, estes não hesitam em responder: “Para a idéia da preexistência da alma e da multiplicidade dos
uns, és Joã o Batista, para outros, Elias; para outros, ainda, mundos; idéia cara aos neoplatônicos, para os quais ele pendia.
Jerem ias ou um dos profetas". Representaria Jesus, para uma Uma tradução de um texto de Orígenes, feita por São Jerónimo,
parte do povo hebreu, a reencarnação de um dos sábios antigos? faz transparecer sua convicção: “Os que têm necessidade do corpo
E por que, em vez de corrigir o possível erro, ele se contenta revestem~se de um e, ao contrário, quando almas caídas se elevam
em responder: “Mas, para vocês, quem sou eu?". e s e tom am melhores, seu corpo é d e novo aniquilado. Assim, elas
desaparecem e reaparecem incessantem ente".
Até hoje, os judeus continuam aceitando essa idéia. O
movimento do hassidismo, que existe desde o século 18, afirma O origenismo (que já mencionamos num capítulo
sua crença na reencarnação. Segundo uma crença persistente precedente) foi condenado pelo imperador Justiniano, que
entre muitos judeus, crianças que morrem com baixa idade convocou o co n cilio contra a von ta d e d o Papa Virgilio. Todo o
são a reencarnação de pessoas que deixaram este mundo ceticismo de nossa civilização ocidental, em relação ao tema
prematuramente. A tradição esotérica ocidental afirma que os das vidas sucessivas, remonta à época em que esse cutelo caiu.
primeiros cristãos também estavam familiarizados com essa Teria a idéia incomodado o imperador da época, que, contra a
doutrina. Como compreender, no contexto da época, relatado opinião do Papa, queria fazer do cristianismo uma religião de
por Flávio Josefo, esta frase de Jesus e seu comentário em Estado? Foi esse mesmo imperador, aliás, que fechou, em 529,
Mateus 17,9-13: “Sim, Elias deverá vir e colocar tudo em ordem ; a escola de Atenas, último reduto do neoplatonismo no
em verdade, eu vos digo, Elias já veio e eles não o reconheceram , Ocidente. De lá, os mestres neoplatônicos fugiram para a Pérsia
mas o trataram com o bem entenderam . Do m esm o m odo, terá o e transmitiram suas doutrinas ao esoterismo muçulmano.
Nossa investigação deve, então, prosseguir na esfera do islã. Mais adiante, encontramos uma afirmação bastante
Uma das três grandes correntes islâmicas foi influenciada pela surpreendente:
filosofia neoplatônica. Respeitadíssimos no mundo árabe, os
P: Quantas vezes Hamza apareceu e quais fora m seus nom es?
sufis são em geral considerados como mediadores entre os
sunitas da Meca e os xiitas iranianos. Um de seus maiores R: Ele apareceu em todas as revoluções, desde Adão até o profeta
representantes, Djalal-od-Din Rümi, expressou-se claramente, Maomé, sete vezes ao todo. No tem po de Adão, cham ou-se Schatnil;
no século 13, sobre a reencarnação: "Como o segundo estágio no de Noé, Pitágoras; no de Abraão, seu n om e f o i Davi; cham ou-
sem pre f o i m elhor que o prim eiro, morre, pois, alegrem en te e se Schoaib no tem po de Moisés; no tem po de Jesus, ele f o i o
rejubila-te à idéia de tom ar uma form a nova e m elhor [...]. Como verdadeiro messias e seu n om e f o i Eleazar...
o sol, som ente quando fiz eres teu ocaso, nascerás novam ente em
todo esplendor, no oriente". Mais adiante ainda:
P: Como se realiza a reencarnação ou transm igração da alma
Os su fis consideram-se detentores do conhecimento
num corpo?
esotérico do islã, mas os druzas do Líbano também professam
a mesma fé. Para eles, um druza corresponde geralmente à R: Sem pre que m orre um indivíduo, um outro nasce; é assim
reencarnação de um outro druza que morrera. Afirmam que que o m undo existe.
todas as almas foram criadas pela Inteligência Universal, que
o número de seres humanos é sempre o mesmo, e que as almas Essa idéia, porém, não é defendida apenas por algumas
passam por diferentes corpos. Abaixo, apresentamos o texto correntes das tradições monoteístas. Na África, está bem
de uma profissão de fé druza, expresso numa seqüência de implantada nos povos animistas. Entre os iorubas da Africa
perguntas e respostas. ocidental, por exemplo, algumas crianças, tidas como pais que
voltaram à terra, recebem o sobrenome B abatundê, para os
P: Q uejulgam ento Hamza (o enviado divino para os druzas, meninos, e Ietundê, para as meninas. Esses termos podem ser
que apareceu na terra no ano 400 da hégira ou era maometana) traduzidos como “Pai (ou Mãe) que voltou”. Em Gana, o
exercerá sobre os indivíduos de diferentes seitas e religiões? sobrenome Abadio significa “Ele voltou”. Os bam baras
consideram que Dya cN i, dois componentes da alma, podem
R: Cairá sobre eles com o glá d io e com rigor, e fa rá todos
reencarnar no corpo de um recém-nascido. Uma superstição
perecerem .
talvez tenha criado a seguinte prática, que os iniciados das
P: Que acontecerá depois que todos p erecerem ? autênticas sociedades secretas africanas rejeitam: fazer um corte
ou estigma qualquer no corpo do morto, para depois tentar
R: Eles voltarão ao tnundo, renascendo uma segunda vez, pela constatar se o mesmo pode ser reconhecido no corpo de um
reencarnação; em seguida, ele os ju lga rá com o bem lhe aprouver. recém-nascido.
A África não é o único continente cujo culto da natureza Um pouco mais perto de nós, o doutor C. G. Jung,
recorre à reencarnação. Certos ameríndios, e mesmo os psicanalista tão famoso quanto Freud, manifestou-se a esse
esquimós, acreditam poder recordar suas vidas passadas. Na respeito. Apesar de nenhuma experiência comprovadora tê-lo
Europa, desde a Idade Média, parece ser mais difícil encontrar levado a concluir a seu favor, sua primeira atitude cética foi
escritores que professem abertamente o princípio das vidas modificada graças a uma série de sonhos. Neles, como mostra
sucessivas. Os cátaros, herdeiros de correntes gnósticas, como no livro “Memória, Sonhos e Reflexões”, ele observou o processo
também os b ogom iles, acreditavam nele. Entretanto, face à de reencarnação de uma pessoa morta, que ele havia conhecido.
inquisição reinante, era perigoso divulgar suas crenças. Explica que, estudando certos aspectos daqueles sonhos, seria
Contudo, não dizer nada sobre alguma coisa não significa que possível demonstrar de modo empírico a realidade da
não se seja partidário dela. reencarnação, e isto com uma probabilidade nada negli-
genciável. Desde o início do século 19, várias pessoas se
Como compreender que o conde de Saint-Germain tenha, manifestaram no Ocidente a favor dessa convicção. Pessoas
em pleno século 18, deixado correr, tão indulgentemente, o como, por exemplo, Walt Whitman, o filósofo Emerson, Kant,
boato de que ele tinha 500 anos de vida? Essa história Hegel, Victor H ugo...
inacreditável não estaria escondendo alguma outra coisa? Como
explicar também essa declaração de Cagliostro, feita no decorrer Corolário da idéia de renascimento, as noções de carma e
do seu processo: “Não sou de nenhum a época nem de nenhum darma também tiveram um equivalente no Ocidente. Carma
lugar; fora do tem po e do espaço, m eu ser espiritual vive sua eterna ou krm, palavra sánscrita que significa “ação”, representa a
existência, e, se estendo m eu espírito a um m odo de existência noção de justiça ou lei de causa e efeito. Já a palavra darm a,
afastado desse que percebeis, tom o -m e aquilo que desejo [.../. antes de representar o ensinamento do Buda, pode ser
Eis a í m inha infância, m inha ju ven tu de, tal com o vosso espírito traduzida como “lei universal”. Essas duas noções estão
inquieto e ansioso de palavras a reclam am ; mas que ela tenha indissociavelmente ligadas à reencarnação. De fato, todo seu
durado mais anos ou m enos anos, que tenha se passado no país de sentido como instrumento de evolução está em que ela atue
vossos pais ou em outras regiões, que vos im porta isto?". no âmbito da lei universal que, no caso, m a n ifesta-se através
da lei de compensação ou de justiça.
Ainda no século 18, impossível resistir à tentação de
reproduzir o famoso epitáfio de Benjamín Franklin: “A quijaz O Egito antigo conhecia muito bem esses dois princípios,
Benjam ín Franklin, tipógrafo, com o a capa de um livro velho, as visto que a pesagem do coração, representada no Livro dos
páginas arrancadas, abandonado aos verm es; com o título e os Mortos, põe em cena a balança da justiça, na qual é colocada
dourados esm aecidos. A obra não se perderá, pois, co m o ele a pluma de M aat, deusa da verdade e da lei universal. O
acreditava, reaparecerá mais uma vez, numa edição nova e mais próprio Platão, em toda sua obra, fala de uma justiça universal
requintada, revisada e corrigida p elo autor". que visa o aperfeiçoamento e a evolução da alma humana.
Ao justo, o ato justo e a justa compensação. A cada um, suas Abordemos o tema, porém, na forma como é defendido pelos
ações e suas compensações. Não é exatamente assim o princípio orientais. O budismo e o hinduísmo têm concepções divergentes
do carma? acerca da reencarnação. Por fortes razões, a idéia popular da
reencarnação, no Ocidente, está a anos-luz da abordagem feita
Existem diferentes pontos de vista no que se refere à duração pelas grandes tradições autênticas. Em que consiste o problema?
dos ciclos de encarnação. Para os egípcios, 3.000 anos O problema está nas diferenças de conceitos oponentes sobre a
separariam duas vidas. Platão, em “Phedo", fala de 10.000 anos, natureza do eu, ou seja, sobre a natureza daquilo que reencarna.
já na "República", cita uma jornada de 1.000 anos. Os tibetanos, Vimos que a índia admite a presença, no ser humano, de uma
no Bardo Thõdol, estimam que a espera no outro mundo varie alma universal ou atinan. Já o budismo, acentua a doutrina do
de 0 a 49 dias. A primeira constatação que salta aos olhos em anatnam, que afirma não existir nenhum eu, nenhuma alma no
relação a esses números reside em sua natureza simbólica. ser humano. Alguns budistas chegam mesmo a negar a existência
de uma Alma Universal, ao passo que, no Ocidente, o valor
H. Spencer Lewis, Imperator da Ordem Rosacruz,
absoluto é o do indivíduo.
AMORC, no começo do século 20, alude a um ritmo de 144
anos, valor médio entre dois nascimentos. Se por acaso esse
Mais exatamente, o budismo thcravada do sudeste asiático
valor causa surpresa, convém ressaltar que a medicina afirma
(Ceilão, Camboja, Tailândia, etc.) corresponde ao pequeno
hoje que o homem estaria geneticamente programado para viver
veículo ou hinayana. Esse é o que mais se aproxima dos
entre 130 e 140 anos. 144 corresponde de fato a um número
conceitos originais do Buda. Poderia ser denominado budismo
importante na tradição ocidental. O Apocalipse de João refere-
ortodoxo, em oposição ao que se desenvolveu na China, no
se a ele, e até as tradições chinesas o têm como um número
Tibete e no Japão. Essa expressão religiosa compara o eu do
nefasto, símbolo de morte. Louis-Claude de Saint-Martin,
indivíduo a um rio: o rio, em si, não existe; corresponde apenas
filósofo do século 18, afirma que esse número baseia-se nas
a um conjunto de gotinhas de água que se sucedem numa
dimensões ternárias, quaternárias e setenárias da essência
corrente, até que alguma coisa desvie seu curso. Assim também,
sagrada do ser humano, sobre as quais deve se elevar a
o eu, como unidade, não passaria de uma ilusão. Cor­
Jerusalém celeste da paz.
responderia simplesmente a uma seqüência de instantes de
Enfim, de qualquer ângulo que a abordemos, o que consciência, mantidos de maneira coerente pela memória.
percebemos é que a doutrina da reencarnação se impôs em
todo o planeta. De norte a sul, do oriente ao ocidente, ela guia Essa imagem, que é defendida igualmente pelos tibetanos,
e ilumina muitos povos. Na Europa, hoje, indivíduos e baseia-se no ensinamento do Buda, que explicou que o eu
movimentos filosóficos, como a AMORC, mantêm acesa a constitui o produto de cinco coisas agregadas: a forma, a
chama. Parece, portanto, que, longe de ser apanágio dos povos sensação, a percepção-concepção, o instinto e a consciência.
orientais apenas, ela representa um valor universal. Certo dia, o mestre interrogou seus monges:
— Que pensais, ó monges, a form a é eterna ou p erecível? roda cega de causas e efeitos, da roda das encarnações, para
atingir um estado de não-ação, no nirvana.
— Perecível, ó Senhor!
— Que é perecível, o sofrim ento ou a alegria? O próprio Dalai Lama tem plena consciência da dificuldade
de sustentar uma tese como essa, visto ter declarado que
— O sofritnento, ó Senhorl
ensiná-la a pessoas despreparadas poderia levá-las ao niilismo.
— Então, o que é p erecível, cheio de sofrim ento e sujeito à De fato, como compreender o sofrimento de uma pessoa aqui
transformação, deduz-se que seja eu, m eu próprio ser? e agora, se seu futuro consiste num aniquilamento? A mente
moderna perguntaria: para que serve tudo isso, então?
— Não, Senhorl
E, dessa forma, o guia espiritual prosseguiu explorando, A questão, aliás, não é tão simples assim. A um jornalista
um a um, todos os cinco agregados, mostrando a imper­ que o questionou a respeito de sua futura encarnação, o Dalai
manencia e a ausência de realidade estável de cada um deles. Lama respondeu, para espanto da platéia presente, que sua
futura encarnação era uma criança já viva e que estava sendo
A conclusão conduz à doutrina de anatm am nenhum eu,
preparada para sua função. Estaria ele se referindo ao fato de
nenhuma alma individual. O eu representa, portanto, uma
que, como líder espiritual, ele é sempre considerado, no Tibete,
ilusão e, pela doutrina do budismo, ninguém reencarna.
como a manifestação do bodhisattva da compaixão, Cherenzi\
Somente as tendências, os hábitos, como um carro sem freio e
ou teria querido ressaltar para o Ocidente a impessoalidade da
à toda velocidade, reencarnam. Em outras palavras, o que nasce
noção de reencarnação dos cinco agregados? Na qualidade de
de novo é o carma, uma série de potencialidades herdadas do
Cherenzi, nada impede que outra pessoa possa receber o influxo
passado, que vão processar sua energia (que quase se poderia
espiritual, depois da morte do veículo anterior. Mas, pela
chamar de cinética) no presente e no futuro.
concepção de anatman, nada impede também que duas pessoas
Buda nunca quis se pronunciar sobre a natureza pessoal muito íntim as, do ponto de vista de suas tendências
ou impessoal do carma. Tanto quanto não quis se pronunciar inconscientes e de seu carma, sejam consideradas uma única e
sobre a natureza última do eu. Hoje, o budismo retoma a mesma entidade.
posição do filósofo da Antiguidade grega, Heráclito —essa não
é, portanto, uma questão desconhecida. Para essa religião, tudo Para complicar ainda mais as coisas, há uma crença budista
está em perpétua transformação. O universo é análogo a um segundo a qual os agregados que constituem uma dada
rio: nada é, tudo se torna. Por conseguinte, não existe nem o personalidade podem reencarnar separadamente, em corpos
grande nem o pequeno eu estático; apenas um processo, uma diferentes. Assim, uma pessoa pode herdar as tendências físicas
sucessão de causas e efeitos existentes. E a doutrina da do morto; outra, suas inclinações intelectuais; uma outra ainda,
impermanência. A meta do budista consiste em se libertar dessa ser a depositária de sua compreensão espiritual.
A posição do Buda situa-se no lado oposto em relação à dos um tesouro, enquanto a luz do Oriente coloca a vida, como
brâmanes hindus, que sustentam o princípio da reencarnação corrente impessoal, acima de tudo. A síntese corresponde à
ào atinan, a alma individual. Não é impossível que sua doutrina, doutrina de Plotino e a dos iniciados de todas as épocas. As
considerada pelos indianos como uma traição, tenha almas individuais são segmentos inseparáveis do Ser eterno e
contribuído para fazer evoluir a dos brâmanes. Nos Upanishads, universal. Não existem almas, mas, sim, uma única Alma,
contemporâneos de Gautama, vemos de fato aparecer a noção desempenhando bilhões e bilhões de papéis diferentes,
de que a natureza essencial de atm an, longe de ser individual, encarnando bilhões de dramas ditos individuais, manifestando
é um componente do Universal, de B rahm an, a Alma do seus atributos através dos mundos e das criaturas, em formas
Universo. “A quele que m edita repetidam ente sobre as três letras cada vez mais superiores.
do n om e sagrado, sobre a Alma Universal, é transportado para a
luz, para o sol. Assim com o a serpente desveste-se de sua pele, ele Com a morte, o indivíduo funde-se à sua Mãe Universal,
se desveste do pecado. E elevado, p elos mantras do Sama-Veda, ao da mesma forma como as cores se fundem na luz solar. Acaso
m undo de Brahma. Lá, ele é a alma que é m aior que a som a total as cores perdem sua identidade na luz branca? Se a alma
das alm as individuais e que infunde todos os corpos. Isso é o que individual conserva sua identidade, esta só pode ser concebida
ensinam os dois versos que d evem estar sem pre na m em oria ". como um componente inseparável da Alma Universal.

Assim, o Buda, que se recusou a falar sobre a natureza da Os verdadeiros iniciados buscaram sempre se colocar acima
alma humana, talvez visasse direcionar os seres humanos para das divergências das culturas, realizando uma síntese sutil. Toda
noções mais impessoais ou universais. Sua ação, assim como a luz vem do Oriente e adquire sentido no Ocidente. A Tradição
do Cristo, visava regenerar a religião que a tinha precedido dos Rosacruzes designa a morte pelo termo “transição"'. Essa
diretamente e da qual era filha. palavra indica a passagem de um estado para outro. Nesse termo
estão contidos “transitório” e “trânsito”. Isso desdobra um
No Ocidente, o indivíduo é tido como o valor supremo da
sentido de intermédio, de mudança, de transformação. Sua
existencia. A morte é considerada nada menos que um drama.
origem latina significa “ação de passar, passagem gradual de
A reencarnação, revisada, corrigida, emendada, absorvida e /
um estado para outro”. E a palavra ocidental que mais se
digerida pelo Ocidente, torna-se o meio ideal para o eu
aproxima da palavra tibetana bardo\ estado intermediário.
egocéntrico imaginar sua apaziguadora sobrevivência. A morte
Podemos, então, explicar que o eu, a consciência, muda de
do ego é vivida como urna segunda morte, após a do corpo.
estado, e compreender por que os cultos são tão divergentes
Diante disso, a verdade é que o desenrolar do budismo no
em relação a uma transformação tão impalpável.
Ocidente nada mais é que um modismo superficial, na medida
que suas verdadeiras doutrinas não são levada em conta. A A crença dos budistas é que a existência aparente acaba se
chave reside numa diferença de atitude interior, psicológica fundindo na vacuidade, ao passo que, para as tradições
ou mental. O eu individual é considerado pelo Ocidente como ocidentais, a personalidade transfigurada conserva sempre sua
identidade. Na realidade, raros são os seres que sabem a reação escandalizada de uma delas diante de algo que
verdadeiramente o que aguarda a personalidade humana após considera uma injustiça. A justiça possui u m valor universal
sua jornada de milhões de anos. Quer seja uma fusão com perda sobre o qual estão fundadas nossas próprias sociedades. Em
de identidade ou de uma alquimia sutil em que a alma humana função da máxima, "O que está em cim a é com o o que está em
é, a um tempo, unida a Deus e distinta dele, estas são palavras baixo", os seres humanos sempre pensaram que a Divindade
incapazes de descrever a natureza da experiência suprema. reina sobre o mundo graças à sua justiça espiritual im ánente.
Somente um sentimento interior, advindo de uma longa busca O carma é uma expressão particular dessa justiça. Como
que transcende as faculdades do cérebro, pode dar acesso a acreditar, co n ceb en d o -se D eus co m o o arquétipo do justo, que
algumas informações. Teria a alma a possibilidade de se fundir uma única vida de atos bons ou de erros possa receber como
com seu Criador, para além do bem e do mal, para além de san ção um a etern id a d e d e sofrim en to ou, ao con trário, de
toda forma, num vazio etéreo? Talvez ela possa manter a felicidade? Como acreditar no paraíso ou no inferno eternos,
capacidade de voltar a descer, para reen con tra r sua identidade en sin am en to oficial das religiões monoteístas, ao m esm o tempo
numa relação dual, frente a frente com o Indizível. Graças a em que essas mesmas religiões nos dizem que Deus é amor?
isso, ela teria a possibilidade de cantar lou vores à sua fonte no Orígenes foi mais co er en te ao afirmar que vamos todos para o
Ser eterno. Entretanto, a única certeza que temos e que paraíso. Mas, nesse caso, onde ficam os princípios morais?
ultrapassa as divergências de linguagem é que, quaisquer que
sejam os mestres espirituais, seus ensinamentos encerram uma A reencarnação e o carma correspondem a leis cujos efeitos
promessa de libertação das limitações e do mal. Todos eles falam residem no fato de que cada ação traz em si sua conseqüência
de uma felicidade suprema. E essa promessa que constitui a exatamente proporcional. O resultado poderá se fazer sentir na
chave e o guia da evolução, bem como a solução da verdadeira vida presente ou numa vida futura, tendo em vista a educação
doutrina da reencarnação. da personalidade. Tomemos uma imagem: quando uma criança
se queima, aprende uma lição sobre a natureza do fogo e da
Corolário dessa doutrina, o princípio do carma dá-lhe reação de suas células quando expostas a este elemento. Da
sentido. Um não pode ficar sem o outro, e a reen carn açã o seria mesma forma, as conseqüências dos pensamentos, palavras e
esvaziada de sua substância e de sua razão de ser se uma lei atos humanos nos ensinam sobre sua natureza lícita ou ilícita,
específica não canalizasse seu processo. Muitos dos escritores positiva ou negativa, em relação às leis universais. E tido como
que se expressaram sobre o assunto não estavam enganados lícito tudo aquilo que favorece a evolução da pessoa e do seu
em seu raciocínio. Eles fundam entaram sua a rgu m en ta çã o na ambiente. O ilícito é tudo aquilo que bloqueia o desenvolvimento.
idéia de uma justiça universal. A maioria das religiões e filosofias Assim, a reencarnação, concebida dessa maneira, representa uma
baseiam seu sistema nessa mesma concepção de justiça. oportunidade de evolução para o ser humano, que se v ê
Observando as crianças, é fácil constatar que essa noção de confrontado com as leis do carma. São essas leis que balizam e
justiça exprime-se de maneira inata no ser humano. Basta notar iluminam seu caminho.
Em matéria de educação infantil, o bom senso diz que, para condição, segundo Er, valia a pena ser visto, pois era digno de
evoluir em perfeito equilíbrio, ela tem necessidade de ser pena, ridículo e estranho. Na verdade, elas faziam suas escolhas,
confrontada com um quadro claramente definido, justo e na m aior parte do tem po, de acordo com os hábitos da vida
estável. Explorando o permitido e o proibido em relação a esse anterior”.
quadro que, inicialmente, pôde ser negociável, ela constrói aos
poucos os valores que edificarão sua personalidade. O que E as escolhas quase sempre dependiam de suas atrações e
muitas vezes se esquece é que o adulto se confronta com as aversões. Platão explica, além disso, que o filósofo tinha mais
leis universais da mesma maneira que a criança diante das leis chances que os outros de escolher certo, devido ao discer­
paternais. O carma representa uma lei imutável, estável, nimento adquirido. A escolha não se faz de maneira livre e
impessoal e não-arbitrária. E nesse sentido que ela ilumina a voluntária, pois o passado, para muitos, interfere nela, como
vida e se torna a prova evidente da Misericórdia Divina. O ser acontece na doutrina do carma.
humano, portanto, é responsável por seu futuro, cuja vinda
ele pode preparar através de suas escolhas presentes, e que ele Uma vez feita a escolha, as almas tinham de passar pelo
deseja que seja o melhor possível, para se libertar de toda turbilhão do fuso da necessidade, representado pela
dependência. configuração do astros, a fim de cumprirem o destino das
existências escolhidas. Na verdade, Platão apresenta a
Como já dissemos, a idéia do carma foi conhecida também retribuição, a compensação ou a justiça, de duas maneiras. A
em outros lugares, além do Extremo Oriente. A psicostasia primeira, na ocasião do julgamento da alma, que decide quanto
egípcia, a famosa pesagem do coração, simboliza o carma de a sua permanência no céu ou no Tártaro, por mil anos. A
maneira bastante exata. Não é o cérebro nem o corpo do morto segunda, em seqüência à escolha não fortuita da vida futura.
que é pesado, mas seu coração ou ab. Em outras palavras, o E acrescenta: “A responsabilidade é daquele que escolhe; Deus
que Thot, o sábio, avaliava não era tanto os atos mas as intenções. não é o responsável”.
Essas eram comparadas com a pluma de Maat, a verdade e a
lei universais. Essa lei, leve como uma pluma, é feita de Um argumento importante, relativo à reencarnação, e
harmonia, por isto se diz que bastam poucas coisas para romper geralmente evocado é: se já vivemos várias existências, por que
seu sutil equilíbrio. não nos lembramos delas? A ausência de recordação leva a
crer que a reencarnação constitui uma quimera. Entretanto,
Platão, no mito de Er, descreve ainda mais claramente o longe de advogar contra ela, o esquecimento representa um
princípio do carma. Ele apresenta o futuro das almas que são trunfo para a evolução da personalidade humana. A primeira
levadas a renascer. Explica, então, que esse futuro depende explicação para a amnésia já foi evocada: é mitológica. Cada
das escolhas feitas pelas almas, pouco antes de seu retorno à alma que volta do outro mundo, segundo o gregos antigos,
terra. Mas especifica que "o espetáculo das almas escolhendo sua banha-se nas águas do Letes, o rio do esquecimento. Mas o
outro mundo também pode ser o do sonhos. É assim tão fácil, — Agora, faça um esforço. Concentre-se e ... tente lembrar
depois que acordamos, recordarmos nossa vida noturna, com o que você fez na véspera desse acontecimento.
suas milhares de imagens oníricas e imprecisas?
E difícil, não é? Talvez mesmo impossível. E por causa disso,
Poderíamos igualm ente nos perguntar sobre o quê
devemos concluir, então, que você não existia?
realmente se reencarna. Em muitas culturas, acredita-se que,
depois da morte, a alma passa por uma espécie de purificação.
Da mesma forma, por razões bem precisas, cinqüenta por
O trigo é separado do joio. Purificação - isto significa supressão
cento das pessoas são incapazes de recordar acontecimentos
de uma parte da antiga experiência de vida. Em outras palavras,
vividos antes da idade de três anos. No entanto, sua mãe
a reencarnação não seria completa. Do mesmo modo, quando
provavelmente lembra-se muito bem de você com essa idade.
uma pessoa morre, as lembranças de sua vida passada voltam à
sua consciência. Não tudo, com certeza! Somente aquelas que
Alguns elementos mostram nossa capacidade para esquecer.
m arcaram profundam ente a personalidade, porque os
Nosso cérebro, por intermédio dos cinco sentidos físicos, é
acontecimentos que foram sua fonte geraram um poderoso
constantemente bombardeado por milhares de informações.
impacto emocional. Analogam ente, só transm igram as
Se todos esses estímulos não fossem selecionados e apenas uns
informações que marcaram fortemente a personalidade e
poucos memorizados, correríamos o risco de ficar loucos,
contribuíram para sua moldagem. Os agregados dos tibetanos,
esmagados por essa imensa quantidade de dados. Todavia, os
que constituem o eu, só formam um todo homogêneo no
estudos do inconsciente, graças à hipnose ou aos sonhos,
momento da encarnação. Nada prova que as leis universais
mostram que muitas informações são armazenadas em nossa
conservem todo o conjunto idêntico às encarnações prece­
consciência, num nível subliminal. Mas existe uma barreira.
dentes. Se o fio condutor se conserva, é preciso ainda que ele
Trata-se de uma segurança, para garantir que a atividade de
sirva a algum desígnio cósmico, senão há uma chance de que
vigília seja eficaz. Sabemos que esses dados ficam disponíveis
partes consideradas estéreis sofram a segunda morte.
nas camadas profundas da consciência, mas não facilmente
Esquecemos, é verdade; e, para muitos, isto leva a supor acessíveis. A mesma coisa vale para níveis ainda mais ocultos,
que não existimos antes desta vida. Então, enquanto lê este no que concerne as personalidades de encarnações passadas.
livro, participe deste pequeno jogo:
Alguns elementos de bom senso ajudam a compreender a
— Tente lembrar um acontecimento que você viveu quando
lógica do esquecimento. Em toda vida humana normalmente
era criança... depois, faça uma pausa.
constituída e suficientemente lúcida para não ignorar a si
— Feito? Você era um menino ou uma menina, alegre ou mesma, surgem períodos nada interessantes que preferiríamos
triste, e a experiência foi agradável ou desagradável ou, ainda, esquecer. Uma pequena covardia aqui, uma maldadezinha ali,
neutra. uma tendência inconfessável acolá... coisas muito humanas e
que constituem o que a psicologia profunda, seguindo os passos terra, longe de ser negativa, representa a condição sine qua
dos grandes mitos, denomina "sombra”. Diz certo provérbio non de uma catarse no nível das atitudes que deixaram de ser
que o sábio sabe esquecer seu passado, porque ninguém é portadoras de futuro.
perfeito. Ele pratica a "m em oriapura” no que lhe diz respeito. /

Ai está você, calmamente instalado em sua honesta vida de E preciso morrer para continuar crescendo. Aí está a chave
pessoa tranqüila. Imagine agora que, de repente, recordações que, a duras penas, ousamos reconhecer. Nesse sentido, o
de um passado infernal venham à sua lembrança. Suponha banho nas águas do esquecimento possibilita certa continuidade
que, em alguma vida anterior, você foi um crim in o so , e que entre as encarnações, sem que estas se tornem sinônimo de
todo o remorso dessa condição, revivido com clareza e impasse e esterilidade. Por extensão, pode-se considerar que,
intensidade, afluí à sua consciência... Você não acha que é se uma pessoa se dispõe a ter outras vivências, a modificar seus
mesmo muito sábio manter um compartimento estanque entre pontos de vista sobre a vida, a se abrir a outras culturas, ela
vidas diferentes? tem maior chance de viver mais longamente, porque o projeto
da vida que se expressa através dela fica favorecido. Ela evolui,
Na verdade, o esquecimento assim feito constitui outra prova permite que as capacidades latentes de seu ser exteriorizem
da Misericórdia Divina. Ela sabe passar uma esponja sobre o cada vez melhor seu talento. Para isso, o ser necessita de um
passado consciente, a fim de salvaguardar as condições da veículo preparado, disponível e maleável.
evolução espiritual da humanidade. Esse relativo esquecimento
corresponde a uma espécie de catarse. Embora as tendências Inversamente, a pessoa que se fecha em seus hábitos já está
mais profundas continuem sempre ativas, sua ação não mais cavando sua futura cova. A vida e o ser provavelmente a
intervém diretamente no nível da consciência objetiva. abandonarão mais rápido; não por punição, mas por seguirem
um destino engendrado aqui pela preguiça humana. Uma
Não é raro encontrar pessoas que, ao envelhecer, perdem pessoa pode ser velha aos trinta anos, enquanto nos olhos de
toda capacidade de se auto-analisarem, de se questionarem. alguns velhos brilha a chama da eterna juventude. O ponto
Estão travadas em seus hábitos ou mesmo preconceitos. Sua supremo que explica o esquecimento está no simples fato de
visão do mundo, m ais cedo ou m ais tarde, acaba se que, se nos lembrássemos perfeitamente de nossas vidas
esclerosando, fossilizando-se num estado imutável. Que passadas, provavelmente passaríamos o tempo simplesmente
aconteceria então se, de encarnação em encarnação, o ser contemplando o on tem , negligenciando a vida presente.
humano tivesse de reproduzir sempre os mesmos esquemas
conscientes e estáticos? A imortalidade material, segundo Esquecemos nossas vidas anteriores; esta é uma evidência
nosso atual modo de pensar, constituiria a verdadeira morte, que ninguém ousa negar. No entanto, as lembranças estão
a morte de fato. Mas a morte que provoca medo, essa de que sempre lá, presentes em algum recôndito de nossa consciência.
o ser humano padece no corpo no final de sua jornada na As vezes, uma impressão de “já sei isto” pode nos assaltar
durante uma viagem ou numa situação nova com que nos meses de estudos (fato incrível), sem passar pela escola da
defrontamos. Esse fenômeno pode ser explicado pela repentina associação, M. consegue cumprir o desafio e se torna Mestre
reminiscência de uma encarnação antiga, mas também pela talhador de pedra, aos quarenta anos. Conhecendo o rigor da
capacidade que o inconsciente tem de perceber um acon­ associação dos artesãos da França e sabendo que a única
tecimento de modo mais rápido do que a consciência objetiva. informação que M. possuía no começo era que ele trazia oculto
Uma mesma manifestação poderia ser percebida primeiro por um dom herdado de uma vida passada, isto dá o que pensar...
uma fase mais profunda da consciência e só depois pela
consciência objetiva, o que provocaria a impressão de “já sei isto”. Como explicar o caso de Mozart, que, aos quatros anos,
apresentou seu primeiro concerto em público? Conhecemos
Sonhos perturbadores sobre lugares distantes ou sobre um igualmente o caso de certas crianças autistas, que, incapazes
passado misterioso podem igualmente nos assaltar. Alguns de se comunicarem normalmente, desenvolveram capacidades
grandes avatares, como o Buda ou Pitágoras, falaram de suas extraordinárias. Uma delas pintava, desde a infância, tão bem
antigas encarnações, dando inúmeros detalhes. quanto mestres que treinaram toda sua vida; uma outra
interpretava com mãos de virtuose trechos de música dos mais
Como explicar certos talentos afluindo repentinamente na árduos, sendo que nunca havia aprendido música.
vida de um indivíduo praticamente despreparado? Eis a Foi o caso do jovem negro americano, Tom Blind. No século
história real de M. Esse homem, inicialmente, é um sujeito 19, aos quatro anos de idade, ele foi notado pelo homem de
totalmente comum, empregado de uma grande empresa. Um quem seu pai era escravo, numa fazenda na Geórgia, EUA.
dia, ele encontra um conselheiro que, através de um Esse senhor, verdadeiro melomaníaco, constatando seu dom
procedimento especial, revela que ele possui um dom muito de pianista espontâneo, fez com que ele tomasse aulas. Não
desenvolvido para a escultura, herdado de uma vida muito demorou muito para que o professor desistisse: Tom tocava
antiga. Essa pessoa, que exercia forte influência sobre sua vida, melhor que ele, quando nem mesmo sabia ler uma partitura.
aconselha-o a se lançar num estudo de entalhe de pedras; o Aos sete anos, já havia se apresentado na maioria das grandes
que ele faz com toda confiança. Ele nunca havia esculpido em cidades dos Estados Unidos. Aos quinze, era capaz de tocar
toda sua vida. No fim do estágio de estudos para adultos, de de memória milhares de obras dos grandes mestres da música
quatro meses, seu instrutor fica cheio de inveja do talento de clássica. Era capaz de reproduzir um concerto inteiro, após
seu aluno, que se revelou numa velocidade alucinante. Mas a tê-lo escutado uma única vez. E, no entanto... Tom era cego e
aventura não acaba aqui, e M. decide bater às portas da deficiente mental de nascença. Provavelmente ele seria
associação dos artesãos da França, a elite. Fato raríssimo, ao qualificado hoje como autista. A ciência atual ainda é incapaz
mostrar suas habilidades, os associados pedem-lhe que crie de explicar proezas assim, que se exprimem por intermédio de
uma obra-prima em sua arte, por meio da qual poderá ser aceito um ser considerado débil. Para nós, existe uma explicação
como Mestre talhador de pedra. Depois de apenas quatro evidente que possui uma palavra: reencarnação.
Um dos indícios que permitem considerar essa solução é campanhas, os perigos enfrentados... O Doutor Doksat,
que o jovem em questão era totalmente fechado em si mesmo. professor da clínica psiquiátrica de Istambul, foi posto a par
Em outras palavras, vivia em estreitíssimo contato com seu do caso e confrontou o jovem Emrullah com um dos filhos de
mundo interior, situação que ocorria em detrimento da Cheikh MarufJ que era deputado no parlam en to. M esm o
comunicação externa. Em casos assim, a criança está, portanto, ignorando a quem iria encontrar, Emrullah, tão logo avistou o
permanentemente numa relação com seu subconsciente, que deputado, reconheceu-o como sendo um de seus filhos,
representa a memória das vidas anteriores. Não importa que o chamou-o pelo nome e evocou lembranças
*
íntimas de família,
autista não saiba isso, o resultado se expressa por si mesmo que ninguém tinha como saber. E interessante notar que o
através do dom inexplicável. A explicação simples, a de um jovem Emrullah conservou memórias exatas, dos sete até os
cérebro desequilibrado, não é suficiente, já que aquela criança vinte anos, sendo que, segundo o Doutor Stevenson, que
tocava piano com a sensibilidade e a criatividade de um reportou essa história, a duração média das recordações não
verdadeiro mestre da música, coisa que nenhuma máquina, ultrapassa os sete anos de idade. Via de regra, as crianças
desarranjada ou não, é capaz de fazer. esquecem suas encarnações anteriores por volta dos dez anos.
Um outro caso estudado pelo professor Stevenson foi o de
Mas existem outros testemunhos, ainda mais claros em William Georges Junior. William G eorges era um jovem índio
lembranças. O professor Stevenson estudou quatorze mil casos tlingite. Os tlingites habitam o sudeste do Alaska e acreditam
espalhados pelo mundo. Como bom cientista, teve o cuidado na reencarnação (mais uma prova da extensão mundial dessa
de descartar todo excesso ou fraude. Eis o caso do jovem turco convicção), que constitui uma característica fundamental de
Emrullah Turkan, nascido em 1949. Aos dois anos, disse aos seus costumes religiosos e sociais. William Georges Junior,
seus pais que tinha lembranças de uma antiga vida e que, na nascido em 5 de maio de 1950, seria, por certos detalhes
verdade, chamava-se Cheikh M aruf Cinco anos mais tarde, o conhecidos, a reencarnação de seu avô William Georges Sénior.
pai de Emrullah, que era fazendeiro, emprega um casal de Este último, pouco antes de sua morte no mar, em agosto de
agricultores que dizem ter conhecido Cheikh Maruf, morto 1949, tinha anunciado ao seu filho que, se a reencarnação fosse
em 1948. A pedido do pai, o casai tenta desmascarar a criança um fenômeno real, ele renasceria no corpo de um de seus
fazendo-lhe diversas perguntas. Como se chamava a esposa futuros filhos; ou seja, renasceria no corpo de um neto seu.
de Cheikh Maruf? Quantos filhos ele tinha? Todas as respostas
dadas pela criança foram corretas e cheias de detalhes. Ele William G eorges S én ior a crescen to u ainda que esse neto
forneceu o nome dos quinze filhos e disse que sua mulher apresentaria os mesmos sinais de nascença que ele tinha. Pouco
tinha uma pinta na face direita. Mais tarde, quando estava no tempo depois de seu desaparecimento, num barco, sua nora,
serviço militar, Emrullah explicou a um oficial, estupefato, que Sra. Reginald Georges, ficou grávida e certo dia sonhou que
ele já havia servido sob suas ordens, há muito tempo, quando dava à lu z... ao seu sogro. A criança, nascida mais tarde,
se chamava Cheikh Maruf. D escreveu-lhe então suas apresentava, como anunciado, marcas no ombro esquerdo e
na parte interna do antebraço esquerdo. A criança só começou No caso de William Georges e das coisas que permitiram
a falar bem tarde, aos três ou quatro anos. Seu comportamento identificá-lo, Stevenson considerou a hipótese de transmissão
era estranhamente parecido com o do seu avô. Manifestava os de características hereditárias. Isso, porém, não exclui
mesmos gostos e aversões. Depois de um acidente esportivo, totalmente a noção de reencarnação, na medida em que William
passou a mancar, com o pé direito voltado para dentro, o que foi o único dos dez filhos da família a apresentar os sinais
lhe emprestava o caminhar típico do avô. Chamava seus preditos pelo avô.
familiares segundo os laços de parentesco existentes entre eles
e William Georges Sénior. Por exemplo, chamava sua tia-avó Entretanto, o Doutor Stevenson, com toda prudência científica,
de “irmã” e considerava seus tios e tias como filhos dele. escreveu um livro intitulado "20 Casos Sugerindo a Reencarnação ".
Reconhecia pessoas e lugares. O fenômeno mais marcante Ele não escreveu "provando", mas somente "sugerindo", já que, na
aconteceu entre quatro e cinco anos, quando reconheceu como realidade, nenhum desses testemunhos prova a reencarnação num
sendo seu um relógio que pertencera ao seu ancestral. Antes sentido estritamente científico. Se a autenticidade dos
dessa época, ninguém havia lhe mostrado ou sequer falado do testemunhos não pode ser posta em dúvida, deve-se, contudo,
objeto. Sua mãe estava apenas lhe mostrando, certo dia, as jóias admitir que sua interpretação pode ser discutível.
da família, que ficavam guardadas em seu quarto. A criança Do ponto de vista científico, a reencarnação não é a única
reconheceu o relógio espontaneamente, em meio aos objetos, coisa que pode ser evocada quando uma pessoa relata um
e o reclamou para si obstinadamente, até a idade adulta. Várias passado supostamente vivido. Pode-se verificar que os lugares
testemunhas puderam atestar essa história intrigante. descritos são bem reais e que a pessoa nunca pisou ali antes,
que os nomes de pessoas e laços familiares evocados refletem
Trata-se de um valioso testemunho sugerindo a reencarnação. efetivamente uma época distante, etc. Mas, para explicar o
Nele, encontramos um caso de identificação através de sinais fenômeno da harmonização com o passado, da telepatia, um
corporais, uma anunciação por meio de um sonho, o reconhe­ contato com o inconsciente coletivo ou com almas desen­
cimento de lugares e laços de parentesco. Finalmente, como é o carnadas, da reencarnação, etc. podem ser indistintamente
caso de alguns lamas tibetanos, o reconhecimento de objetos. A considerados, sem que seja possível escolher apenas uma dentre
prática no Tibete, quando se procura um tulfyu (mestre espiritual todas as explicações possíveis.
reencarnado) consiste, de fato, em apresentar a algumas crianças
os objetos que pertenceram ao mesmo. As crianças podem ser Em suma, lembremos que, mesmo que a ciência possa
escolhidas graças a sonhos, visões, estudos astrológicos,... Se uma esclarecer alguns de seus aspectos, a reencarnação não é tanto
delas reconhece três objetos do falecido como sendo seus, é uma questão de provas científicas quanto de compreensão
considerada como sua reencarnação. Foi assim com o atual décimo filosófica e convicção interior. Quem efetivamente consegue
quarto Dalai Lama, que reconheceu o rosário, o tambor e a bengala se lembrar sabe a verdade, e isto lhe basta; mesmo que não
de sua anterior décima terceira vida. possa apresentar provas definitivas da sua memória.
A única coisa que a honestidade intelectual proíbe é negar de seu ambiente, acaba sempre se convencendo de que as
a veracidade dos testemunhos colhidos, quando estes realmente lembranças vagas que ela percebe são miragens de sua
são comprovados em relação a lugares, épocas e pessoas imaginação; depois, pouco a pouco, ela as esquece.
envolvidas. No caso Bridey Murphy, por exemplo, a pessoa,
Ruth Simón, uma jovem americana do século 20, de trinta anos, Pode ser perigoso forçar as portas do inconsciente. Confiar­
hipnotizada por um psicólogo, relata uma experiência muito se a mãos inexperientes já gerou mais desordens mentais do
singular. Numa vida anterior, relatou, ela se chamava Bridey que curas, em muitos casos. Se a natureza previu uma barreira
Murphy e vivia na Irlanda, em 1806. Ele deu o nome de seus entre passado e presente, certamente há uma boa razão. A
pais, descreveu sua casa, deu a data de seu falecimento e traçou emergência brusca do ontem no hoje é como misturar água no
o mapa da Irlanda daquela época. Mais tarde, uma averiguação vinho, talvez pior. Somente métodos suaves, que respeitem a
independente foi realizada, para verificar suas afirmações, por personalidade e a integridade de cada indivíduo, são válidos.
juristas, bibliotecários e pessoas que não conheciam o psicólogo Para isso, não é preciso que o estudante se coloque à disposição
nem o assunto. Embora nem tudo tenha podido ser verificado, de um outro operador que não ele mesmo. O passado só se
nomes, lugares e costumes revelaram-se exatos. revela se possuir alguma utilidade no sentido de favorecer a
evolução da pessoa. A curiosidade, o modismo ou o fenômeno
Mas aqui poderíamos nos perguntar por que os testemunhos exótico não tem vez no que concerne as leis espirituais.
relativos a vidas passadas são obviamente mais numerosos no
Oriente do que no Ocidente. A razão é simples e tem suas Agora, seria justo questionarmos as razões da reencarnação.
raízes na cultura dessas regiões. No Oriente, a reencarnação Como já foi explicado, a idéia primordial da reencarnação é a
sempre foi mais facilmente admitida e tem grande influência de que existe uma justiça imánente que foi, aliás, pressentida
na psicologia humana. No Ocidente, se uma criancinha se pela maioria das religiões e das filosofias da terra. Se admitirmos
expressasse nos seguintes termos: "Quando eu era grande, eu que a alma se manifesta somente uma vez, irá ela eternamente,
era indiano" ou “Eu trabalhava embaixo da terra, juntando pedras como explicam as religiões monoteístas, para o interno ou o
pretas m uito sujas", ninguém lhe daria ouvidos. Se persistisse, paraíso? Seria possível que uma única vida destrutiva ou
os que a cercam considerariam sua imaginação como sendo construtiva, aos olhos das leis naturais, levasse a uma eternidade
transbordante. Se continuasse persistindo, seus pais se de sofrimentos ou, ao contrário, a uma perpetuação de
inquietariam quanto ao seu equilíbrio mental e a mandariam felicidade? Nosso senso inato de justiça nos inclina a pensar
calar a boca. que o destino humano não é assim tão simples. A idéia
primordial da reencarnação é a de que a personalidade-alma é
Ainda que as lembranças de antigas encarnações, segundo perfectível e que conserva, após a morte, uma enorme
o professor Stevenson, possam ser vividas entre as idades de potencialidade de evolução. Voltando à terra, ela pode
dois e dez anos apenas, a criança, confrontada com a hostilidade compensar seus erros passados e usufruir as alegrias geradas
por suas antigas consecuções. Do mesmo modo, confrontada nos e observando nossos concidadãos, logo nos damos conta
com o principio do carma, ela vai tecer a trama de suas vidas de que, em uma única vida, estamos longe de atingir o nível de
futuras. Essa doutrina, portanto, torna o ser humano o único evolução de pessoas como Mahatma Gandhi, Albert Einstein
responsável por aquilo que ele vive, aos olhos dos principios e outros. No entanto, possuímos o mesmo veículo físico. Em
do universo. Na verdade, ela ressalta seu sentimento de outras palavras, nós estaríamos em nosso corpo como
dignidade e confere-lhe um lugar importante na marcha da aprendizes ao volante de uma Ferrari, ao passo que eles seriam
Criação. Aqui não há um Deus vaidoso ou vingador a se invocar, pilotos experientes.
nem um diabo chifrudo e terrível controlando os seres humanos
como marionetes. E também não há um universo cego, sem Como compreender, então, que a Criação tenha preparado
propósito nem sentido. Somente o homem é responsável por esse veículo físico, perfeitamente adaptado para permitir o
seu futuro, graças ao seu conhecimento das leis justas da desenvolvimento, a um altíssimo nível, da alma que ele encerra?
Criação. Se a ferramenta não é progressivamente explorada pelas
personalidades, por que, podemos perguntar, a natureza a teria
Ao longo da História, outras explicações foram dadas para criado? Que absurdo isso seria! A experiência prova que uma
a necessidade da reencarnação. Evocou-se o fato de que a alma única vida não basta para explorarmos todas as potencialidades
não poderia ficar eternamente na presença da luz perfeita, colocadas à nossa disposição pelo corpo e o mundo físico. O
devido a suas imperfeições. Foi dito que, cedo ou tarde, ela tempo destruidor exerce sua ação desde o nascimento e impede
sentiria a necessidade de experiências tangíveis. Sentiria que o trabalho do ser seja feito até o fim. E aí que a reencarnação
saudade da terra, de um mundo feito de carne e sangue. adquire todo seu sentido. Trata-se de uma sutil alquimia
Outros, ainda, explicaram que não era a saudade da terra que espiritual. Ela considera a alma como uma matéria bruta que
motivaria o retorno da alma, mas a lei da necessidade; numa deve evoluir até o ouro mais puro e perfeito. O ouro já está
palavra, carma. oculto no grosseiro, basta revelá-lo aos poucos.

Sabemos hoje que, embora as células do cérebro morram a Outras razões explicam a necessidade de reencarnações.
partir dos vinte anos, elas têm a capacidade de compensar o Uma delas diz que a alma, para aperfeiçoar sua própria
envelhecimento criando mais e mais conexões umas com as natureza, para exteriorizar sua vontade e suas diversas
outras. O cérebro, portanto, possui uma geometria flexível e faculdades, precisa da experiência do mundo. Se admitimos
evolutiva que lhe permite disfarçar os estragos do tempo. E o que a natureza humana possui uma potencialidade quase
único órgão do corpo que consegue apresentar essa capacidade. infinita de expressão e criatividade (que sentimos con­
Constatando essa capacidade de adaptação do cérebro, vemos fusam ente), percebemos paralelam ente que uma vida
que o veículo físico do ser humano está perfeitamente adaptado circunscrita a um determinado século e um determinado meio
hoje para abrigar almas de níveis muito elevados. Observando- ou cultura não representa uma suficiente oportunidade de
desenvolvimento da alma. Na medida em que ela faz várias até um nível de compreensão infinita. É por isso que a evolução
estadas na terra, isto explica as diferenças fundamentais que deve se produzir no nível do indivíduo consciente, até a
existem entre os seres humanos, alguns dos quais estão perfeição. Somente o múltiplo pode concretizar a unidade. Vale
provavelmente mais avançados que outros em conhecimento ressaltar que o termo evolução não é, aliás, o melhor, já que
inato e em sabedoria. E, aliás, apoiando-se nessa bagagem de não se trata tanto de fazer crescer alguma coisa, mas, sim,
nascença que todos os seres humanos possuem, em maior ou manifestar cada vez mais uma perfeição latente.
menor grau, que Platão baseou sua argumentação a respeito
da reencarnação. A capacidade humana de relembrar, de que Quando as pessoas, superando os preconceitos habituais,
falou o filósofo, presume a presença em nós desse patrimônio aceitam abordar de maneira imparcial a idéia da reencarnação,
anterior. ocorre-lhes uma pergunta perfeitamente justa. Essa pergunta,
que vem a seguir, denota, porém, uma espécie de inquietude.
Poderíamos supor que a alma continue a evoluir no outro Mas, então, se a alma realmente reencarna, tem de faze-lo
mundo, sem a necessidade de voltar à terra, mas isto seria eternamente, sem um objetivo final, como um círculo sem fim,
negligenciar o fato de que a evolução requer uma dimensão reproduzindo sempre os mesmos dramas? Para essas pessoas,
feita de dualidade para se afirmar. O sujeito tem de se trata-se de perguntar qual é o propósito das encarnações, e o
confrontar com os objetos, o eu com o não-eu, a vontade com fazem de maneira muito lúcida.
a resistência, antes de finalmente chegar a tomar consciência Bem conscientes do que está em jogo, os budistas
da unidade de todas as coisas. Só o mundo material apresenta consideram a reencarnação não como uma vantagem, mas
essas condições. como uma maldição que a alma conjura contra ela mesma. O
Buda ensinou a realidade do sofrimento. Para ele, tudo é
Poderíamos igualmente imaginar que a evolução da alma sofrimento. Mesmo o ato de respirar é sofrimento, ainda que
contente-se com o progresso coletivo e histórico da huma­ não tenhamos consciência disto. Disso decorre que o budismo
nidade, sem, contudo, exigir uma reencarnação de indivíduos. ensina a possibilidade do fim do sofrimento pela cessação da
Em outros termos, poderíamos considerar que o crescimento roda de samsara ou círculo das encarnações. Pela prática do
dos conhecimentos humanos, que fecundarão as inteligências caminho do meio dos oito preceitos, o ser se libera progres­
de amanhã, seria suficiente para cumprir os desígnios da Alma sivamente de todo apego e das conseqüências negativas de seu
Universal. Isso, porém, seria negligenciar o fato de que, se a carma. Ele alcança então o nirvana, que é a cessação do
evolução individual acompanha ou mesmo se nutre dos sofrimento. Não estando mais apegado, ele tem a experiência
progressos coletivos, não pode estar subordinada a eles. A de shunyata, o vazio ou a ausência de existência inerente às
coletividade humana, no sentido material do termo, não é a coisas e aos seres. Shunyata corresponde à realidade última que
priori um ser consciente de si mesmo ou do universo. Somente se oculta atrás dos fenômenos aparentes. Por isso, o ser não
os indivíduos, por seu processo voluntário, podem se elevar precisa mais reencarnar.
Se o budismo eleva ao mais alto grau o ideal do anacoreta, uma divergência, mas de uma forma complementar de resolver
urna casta da India, por outro lado, admira entusiasticamente a questão. Para o ocidental, a reencarnação não é concebida
o do guerreiro. Assim, a meta e o meio de alcançá-lo são inicialmente como uma maldição, mas como uma opor­
formulados porcada um deles de forma ligeiramente diferente. tunidade para a alma de se aperfeiçoar e de cantar as glórias de
O Bhagavad-G ita, o livro mais estimados pelos hindus, afirma seu Criador. O sufi Ibn Arabi aponta, como termo da obra
que retirar-se do mundo não é o melhor meio de se chegar ao humana, a união do amor, do amante com o ser amado. Outro
fim das encarnações. A via da ação é superior à outra: “Realiza grande mestre do sufismo, Djalâl-od-Dín Rümi, também afirma
a ação tal com o te prescrevi, pois a ação ésuperior à inação; m esm o o amor ao Divino como valioso meio: “Pelo am or a Deus, não
tua vida física não saberia se m anter sem ação". Entretanto, o podes ser derrotado. Como podes não ter alma, se te tom arás a
discípulo é convidado a realizar a ação sem apego. Ou seja, ele Alma. Primeiro, vieste do céu para a terra; no fim , partirás da
se situaria como observador não identificado aos próprios atos. terra para o céu ”.
E dessa forma que, liberto da ação, ele se emancipa do carma.
Em sua magistral obra “M asnavi”, ele descreve a evolução
Não sendo mais, como indivíduo, uma causa eficiente, ele não
progressiva da alma: “Mineral, m orrietom ei-m eplan ta;p la n ta ,
tem mais necessidade de reencarnar. Ele atinge mokfisa, o estado
m orri e nasci animal; animal, m orri e m e fiz hom em . Por que
daquele que se libertou da ilusão. “Assim, sem apego, realiza
haveria eu de ter m edo? Alguma vez f u i dim inuído pela m orte?
sem pre a obra que d eve ser feita . Pois, fazen d o a obra sem apego,
Não obstante, um a vez mais, m orrerei com o hom em para m e
o ser hum ano atinge o S uprem o”. Como um eco, respondem-
eleva r aos anjos bem -aven tu rad os; mas, m esm o esse estado
lhe essas frases de Lao Tsé, o sábio chinês:
angelical, precisarei deixar. .."
“Sem cruzar a porta, con h ecer o universo; O estado que marca o fim das encarnações foi descrito por
sem olhar pela janela, en trever a vida do céu. todos os grandes místicos em termos simbólicos. Uns falam de
Assim o sábio con h ece sem ter de se mover, união; outros, de casamento; outros ainda, de esquecimento
com preen de sem ter de ver, do eu. E assim que mil imagens se sucedem:
realiza sem ter de agir.
O universo se conquista p elo não-agir. “Pela união do Sol e da Lua, o casam ento será consum ado.
Agir sem agir, ir ao encontro sem se unir, A gran de conjunção m arcará o sinal do fim dos tempos, a
saborear sem degustar. submissão perfeita do cordeiro ao pastor.
Assim o sábio que busca o grande A luz brilhará sem em pecilho, expulsando as trevas.
con segu e se tom ar grande. ” O ouro e o diam ante ocultos se revelarão em seu esplendor, e a
filh a reconhecerá sua mãe.
O Ocidente, por sua vez, aborda a questão a partir de uma O véu que encobria o abismo se rasgará, deixando a descoberto
diferença sutil. Mas que ninguém se engane, não se trata de a verdade suprema.
A cnança-rei, armada com seu poderoso cetro, precipitará no O adepto da reencarnação só muito raramente se deixaria
lago de fo g o os últim os servidores do mal. arrastar ao estado de dúvida tão formidavelmente descrito no
H averá danças e ranger de dentes, contudo, som ente a alegria livro de Jó, do Antigo Testamento. Jó o justo escandalizou-se
in efável e incondicionada reinará nos corações. do fato de que, tendo servido a seu Deus durante toda sua
Quando os hom ens aprenderem a língua dos pássaros, quando vida, parecia que Ele o havia abandonado naquele momento.
a sensível gazela se deitar em paz entre as patas do leão, Desiludido, ele constata que neste mundo os criminosos muitas
quando Maia, a ilusão, não tiver mais fio s para tecer sua vezes ficam sem punição, enquanto muitos inocentes sofrem
trama, provações cujo motivo não compreendem. Jó 21, 7: "P orq u e
o am or fecu n d a rá os corações. os maus continuam vivos, en velh ecem e aum entam seu pod er?
Então, o m oinho da necessidade suspenderá sua rotação, e a Sua posteridade se fortifica diante deles e sua descendência subsiste
goela escancarada da m orte se fech a rá para sempre. ” ante seus olhos. A paz de sua casa não tem o que temer, os rigores
de Deus os p ou p a m ... ”.
Qualquer doutrina filosófica prova seu valor quando é capaz
de tornar seus adeptos mais felizes. Muitas vezes, consideramos Jó põe em dúvida e maldiz seu Senhor, como muitas pessoas
a reflexão filosófica como um passatempo intelectual, o que afirmam hoje que, se existe mesmo um Deus, então não devia
significa negar seu valor pragmático. No entanto, no que haver guerras e a felicidade devia reinar indistintamente. Quem
concerne a reencarnação, muitos pensadores se debruçaram adere à idéia da reencarnação fica definitivamente “vacinado”
sobre qual seria seu papel no cotidiano, e você verá que ele contra essa tentativa de imputar a um longínquo Deus a
merece ser levado em consideração.
responsabilidade da injustiça e da violência humana. O adepto
Em primeiro lugar, um dos principais atrativos da da reencarnação sabe que há leis naturais e espirituais e que
reencarnação vem do fato de que ela fornece ao ser humano ele “colherá con form e sem ear”. Para ele, o universo é portador
uma compreensão da vida baseada numa verdadeira justiça e de um sentido que, cedo ou tarde, conduz à felicidade e ao
aponta sua responsabilidade perante seu futuro. O futuro é amor desabrochados. Mas eis que no livro de Jó intervém Elias,
considerado como sendo vasto e tendente à perfeição. Ele é o sábio que vem tirar do erro o desesperado. Jó 34, 10: “Q uese
tecido a partir de pensamentos, intenções, discursos e atividades afaste de Deus o mal; de Shaddaí, a injustiça! Pois Ele dá ao
do passado e do presente; não como produto da decisão h o m em segu n d o suas obras, trata cada q u al segu n d o sua
arbitrária de um Deus, mas como resultado de uma c o n d u t a . Jó 36,6: “Ele não deixa viver o mau, m asfazjustiça
confrontação clara com leis estáveis, senão imutáveis. Assim, aos pobres; Ele não abandona o ju sto de visão. Com os reis em
relacionando-se com a idéia de sua reencarnação, a perso­ seus tronos, Ele os instala para reinarem para sempre, e eles são
nalidade pode ser edificada na luz e na responsabilidade. exaltados. Mas se Ele os ata com correntes, eles fica m presos nos
Ninguém duvida que a dignidade, a retidão e o equilíbrio laços da aflição. Ele lhes revela seus atos, os pecados de orgulho
psicológico do indivíduo saiam fortalecidos. que com etera m ... ”. Mas antes desse discurso, Elias acentua a
misericordia e a idéia de reencarnação: “Pequei e perverti o certo: seria inútil, porque acreditaríamos poder deixar para amanhã
Ele não m e pagou na mesma m oeda. Ele isentou m inha alma de o que poderia ser feito hoje mesmo. Trata-se aqui de uma falsa
passar p elo fosso (a segunda m orte) e fa z minha vida usufruir da interpretação do princípio, que é também de uma cegueira
luz. Tudo isso Deus faz, duas vezes, três vezes p elo hom em , a fim total no que concerne as condições de vida no universo
de extirpar do fosso sua alma e fa z er brilhar sobre ele a luz dos estritamente material.
vivos" Jó 33, 26. Assim, a co m p en sa çã o d os erros e d os acertos
pode acontecer numa vida posterior. A reencarnação assenta-se no princípio da evolução da
Criação. Todas as observações científicas, históricas e
O segundo aspecto prático da reencarnação expressa-se no psicológicas pleiteiam em favor dessa evolução. Assim, elas
fato de incitar o ser humano a aprender durante toda sua vida, deixam claro que as leis do universo operam para favorecer
até a idade avançada e mesmo até seu último suspiro. Nela, ele esse desenvolvimento. O provérbio popular explica que “tudo
não é concebido simplesmente como um produtor-consumidor, que estagna, regride” e “o que não avança, recua”, pois a lei do
mas se✓ torna uma matéria em evolução através dos ciclos de universo se exprime pela mudança rumo ao sum m um bonum .
vida. E tão espantoso que no Ocidente (que em sua maioria
aposta numa única existência) as pessoas acima dos quarenta A respeito do possível impacto psicológico da educação
anos sejam consideradas como “acabadas”? Quarenta anos, a reencarnacionista, uma antropóloga, Margaret Mead, estudou
idade da maturidade, quando o indivíduo deveria consumar o caso de dois povos: os balinais e os manus. O primeiro acredita
os frutos de tudo o que aprendeu antes. A partir dessa idade, na reencarnação da alma numa mesma família, enquanto o
nossas sociedades geralmente acham que a pessoa pode apenas segundo considera que, depois da morte, o ser humano
regredir. Podemos, porém, nos perguntar se isso não passaria sobrevive, sob a aparência de um fantasma, por um período
de uma poderosa auto-sugestão que as massas fariam nelas muito breve, depois do quê se ele degenera em formas de nível
mesmas, com todos os efeitos devastadores que conhecemos. mais ou menos baixo, até chegar à de um verme ou de uma
alga. Margaret Mead observou, então, a evolução desses dois
Inversamente, entre as pessoas que apostam na reencar­ povos a partir da maturidade. Notou, como particularmente
nação corretamente compreendida, não é raro encontrar surpreendente, o fato de que entre os balinais o indivíduo pode
aquelas que iniciam estudos aos cinqüenta anos ou mais. Elas continuar aprendendo até a id a d e avançada. As pessoas
estão convictas de que todo trabalho iniciado hoje dará frutos permanecem jovens, belas e risonhas por muito mais tempo
amanhã, de um modo ou outro. do que em nossas regiões. Inversamente, entre os m anus, o
intelecto e o corpo enfraquecem a partir dos quarenta anos.
Existe um argumento muitas vezes evocado e oposto à Então, Margaret Mead colocou a seguinte pergunta: "Poderia
reencarnação, o qual se costuma usar após uma observação a relação que existe entre aprendizagem e teoria do nascim ento e
superficial da índia. Esse argumento diz que aderir a essa idéia da im ortalidade constituir um fa to r-ch a ve? ”.
Cranston e Head, que reportam esse estudo no livro çyy /noite n a
intitulado “Livro da Reencarnação", também fazem e c o ao estudo
de um psiquiatra da Marinha nacional americana, o qual se
desenrolou durante a Segunda Guerra M undial. Essa
/ liâto iia o àc/ en ial
informação foi publicada pela revista “Times”. Esse psiquiatra
descobriu que o equilíbrio mental da maioria dos habitantes
da ilha de Okinawa (situada no norte do arquipélago nipônico) “A m orte é a verdadeira meta fin a l de nossa vida; depois de alguns
é superior ao da média das outras populações. Esse povo anos, estou tão fam iliarizado com essa verdade, essa maravilhosa
acredita que o espírito volta à terra depois de sete gerações e se am iga do ser humano, que sua im agem não apenas nada tem de
encarna num indivíduo que se parece fortemente com sua assustadora, mas, ao contrário, é m esm o m u ito ca lm a n te e
antiga encarnação. Em seguida a um terrível bombardeio, o confortadora."
psiquiatra notou que, de cada cinco habitantes da ilha, apenas W A. Mozart
um ficava mentalmente desequilibrado, ao passo que,
submetidos a condições semelhantes, soldados americanos e Há várias dezenas de milhares de anos, o ser humano,
japoneses foram levados ao suicídio ou ao asilo psiquiátrico. tomando consciência de si mesmo, simultaneamente tomou
Ele explica que a estrutura mental da criança de Okinawa é consciência de sua morte. Desse fenômeno fundamental para
tão segura e forte, desde os cinco anos de idade, que pode a evolução humana, decorreram algumas crenças relativas à
enfrentar as piores catástrofes. D eve-se v er aí a influência da sua sobrevivência. As primeiras convicções assumiram a forma
educação reencarnacionista? do sobrevivencialismo, freqüentemente ligado a uma fé
animista. Em outras palavras, o primitivo achava que o morto
continuaria a viver sob uma forma invisível, quer num mundo
paralelo, quer sob a terra ou, ainda, em nosso próprio mundo.
Foi apenas bem mais tarde que a noção de um reino
espiritual se imprimiu no pensamento humano. Paralelamente
às primeiras crenças, enterrava-se, queimava-se, imergia-se ou
jogava-se aos animais o cadáver. Alimentos, armas, bens
materiais ou humanos (escravos, família, jó ias...) acom­
panhavam-nos em sua viagem. Eram enterrados ou queimados
junto com ele.
AJternadamente, na História, as tumbas e outras sepulturas
situaram-se em locais afastados dos vivos ou, ao contrário,
próximos aos mesmos, conforme o medo que estes sentiam ou pontos de vista diferentes e igualmente válidos. Assim, quando
não em relação aos mortos. Viu-se aparecer a preocupação em se sabe contemplar seus próprios costumes com objetividade,
relação à sobrevivência do eu e do outro. Depois, os nomes pode-se extrair deles o sentido mais profundo, num primeiro
fizeram seu florescimento nos túmulos. A familiaridade com a momento, e depois superá-los, para se chegar a verdades mais
morte evoluiu igualmente no curso da História. Festas foram amplas que transcendem o tempo e o espaço de todos os ritos.
organizadas em cemitérios que, em outras épocas, ficavam E a esse jogo que este capítulo o convida. Começaremos
abandonados. apresentando a pré-história do tema, depois examinaremos as
diversas atitudes vividas apenas no Ocidente. Essa amostragem
Mas por que desenvolver uma tal reflexão sobre as diferentes deve ser suficiente para alimentar uma boa reflexão.
atitudes dos seres humanos ante a morte? Muito simplesmente
porque, na maioria dos casos, qualquer que seja nossa cultura, Os primeiros ritos mortuários de que temos prova
se não são frutos de uma reflexão profunda e pessoal, nossos remontam ao paleolítico superior, desde a época do homem
ritos e crenças transformam-se quase sempre em preconceitos. de Cro-Magnon. Os antropólogos descobriram tumbas e
A morte representa um tema cercado de um respeito quase ossaturas, acompanhadas de jóias e objetos diversos. Ainda que
supersticioso, que a torna intocável. Muito freqüentemente, antes desse tempo provavelmente tenha existido um culto dos
querer pôr em causa um costume implica o risco de se passar crânios, alguns dos quais sofreram trepanação, os sinais de uma
por sacrílego. Essa atitude conservacionista an iq u ila veneração organizada são menos evidentes. A primeira religião
regularmente toda reflexão em torno do assunto ou quanto ao da terra foi, sem dúvida, o culto dos mortos. A atitude dos
sentido a ser dado aos nossos ritos. vivos diante dos agonizantes sempre foi composta de certa
ambigüidade. O respeito ladeia o medo dos fantasmas, a
Uma meditação sobre as posições assumidas pelo ser esperança muitas vezes acompanha a angústia do pós-vida.
humano no curso da História permite tomar consciência de
sua relatividade. Após uma viagem ao espaço das crenças, uma No período ariano da Grécia, por volta de 1300 a.C., os
outra, no tempo, ajuda a compreender as ligações que existem corpos podiam ser até mesmo enterrados em casa. Com o
entre a evolução das sociedades e a de seus costumes, quer avanço da civilização, passou-se a enterrá-los fora das cidades.
sejam laicas ou religiosas. Aqui, nada é neutro e poder-se-ia Os cemitérios ainda não existiam e as tumbas, como no caso
facilmente afirmar: “D iz-me quais são tuas crenças em term os da Via Apia em Roma, eram arranjadas por alinhamentos. Na
de ontologia e te direi para onde vais. Inversam ente, fa la -m e de verdade, enterrava-se onde dava, desde que isso fosse feito fora
tua sociedade, de teus hábitos de consum o, etc., e adivinharei teus da cidade, pois os mortos suscitavam medo. Além disso, apenas
costum es e cerim ôn ias”. as pessoas importantes usufruíam de uma tumba. Nessa época,
os epitáfios floresceram nos túmulos, com o nome das pessoas
Não se trata de destruir as convicções do presente, mas de gravados neles. A preocupação com a identidade individual
se conscientizar do fato de que outros puderam defender após a morte era bem real.
Somente a partir dos séculos 2 e 3 d.C., começaram a Em torno do século 11, a morada final fixou-se ao redor
surgir os embriões dos cemitérios organizados, sempre fora de igrejas, os velhos tabus envolvendo a morte caíram por
das cidades. Uma arquitetura de sarcófagos, pedras e fossas terra, as tumbas fizeram sua aparição dentro das cidades e o
com cobertura fez sua aparição, e as pessoas comuns cemitério perdurou nessa forma até o século 18. Esse
começaram a usufruir deles com o início da era cristã. Por cemitério medieval não tem nada a ver com o que conhecemos
volta do século 5, a prática da inumação tomou o lugar da hoje; Tratava-se de um local público, onde se praticava o
mais usual, a da incineração. Aliás, datando desse período comércio, as pessoas marcavam encontros, às vezes até
de transição, foram encontrados esqueletos encerrados em moravam lá. Até hoje ainda existe no Cairo, Egito, um
ánforas, em lugar das cinzas habituais. cemitério que pode dar uma boa idéia do velho recinto
medieval. Na Tunísia, até alguns atrás, as pessoas iam aos
No cemitério rural, os túmulos eram orientados. Um dos cemitérios para fazer piqueniques. Os vivos viviam, por assim
meios usados hoje pelos arqueólogos para datar um dizer, numa verdadeira promiscuidade com os mortos. Nesses
cemitério consiste em observar a orientação dos túmulos. locais, podia-se dar festas, banquetes, fazer encontros
Norte-sul, no período galo-romano; leste-oeste no período amorosos, praticar o comércio... Ainda hoje, no México, em
merovíngio. Os primeiros cristãos adotaram a orientação certos períodos do ano, festas multicoloridas são dadas ali. O
para Jerusalém, enquanto os muçulmanos até hoje voltam Ocidente, entre os séculos 11 e 18, domesticou a morte, apesar
o rosto para a Meca ou K ibla. Mais que um destino a ser de temê-la. Para o homem da Idade Média, ela fazia parte de
atingido, essa posição parece sugerir que mesmo na morte suas preocupações costumeiras.
o ser humano não perde sua orientação e que esta possui
um sentido ou meta. Nessa época, a antiga ordenação do espaço desapareceu, os
corpos confiados à.igreja eram enterrados em qualquer local,
Por volta do século 5, desfez-se a preocupação da desordenadamente. O local importava menos que a proteção
conservação da identidade da pessoa, na morte. O retrato e o dos religiosos. No entanto, no que concerne as pessoas
nome do morto colocados no túmulo foram desaparecendo importantes, a preocupação da identidade retida pela
gradualmente (embora alguns casos tenham se conservado), autoconsciência voltou à tona. Aos poucos, os túmulos viram
para reaparecerem cinco séculos mais tarde. Mártires e santos reflorescer os epitáfios. A representação física da pessoa ganhou
estão enterrados em alguns desses primeiros cemitérios. Perto força na forma jacente. Os nomes voltaram a ser gravados nos
deles, igrejas foram construídas para lhes render culto. Essas túmulos. No século 12, curiosamente, a palavra “morte”
igrejas aos poucos tornaram-se, elas próprias, locais de personificou-se: a Morte tornou-se a “Dama da Foice”,
sepultamento, porque os fiéis queriam ser enterrados ad representada nas danças macabras. Preocupava-se então muito
san ctos, isto é, na companhia dos santos. Um novo tipo de mais com a questão da conservação da identidade após a morte.
cemitério, então, organizou-se ao redor da igreja. A segunda face dessa preocupação traduziu-se no medo dos
mortos-vivos. Uma iluminura do período medieval, “O encontro O historiador Philippe Ariès adotou diversos parâmetros
de três m ortos e três vivos", mostra três cavaleiros próximos a de análise da evolução dos comportamentos humanos ante a
um cemitério, apavorados pela visão de três cadáveres saindo morte. O primeiro implica a tomada de consciência do eu. Em
dos túmulos. função do valor atribuído ao ego, no curso da História (dado
basicamente variável), as concepções da morte variam.
Como nas velhas crenças de nossos antepassados, os
indivíduos mortos tornaram-se novamente suscetíveis de O segundo parâmetro diz respeito à atitude da humanidade
perturbar os vivos. As representações de danças macabras e da ante a natureza e os fenômenos. A morte e a sexualidade
Dama da Foice sucederam-se numerosamente. Nessas imagens, representam fenômenos naturais aceitos de maneiras diversas.
as personagens aparecem, duas a duas, numa ronda infernal. Uma a uma, as culturas foram tentando domá-los ou torná-
Um homem (ou uma mulher) estupidificado é arrastado por los diabólicos, ou simplesmente ignorá-los, em consonância
um morto-vivo, do qual pedaços de carne podem ser vistos. com a atitude geral que o ser humano foi assumindo perante a
Trata-se aqui de representar a igualdade dos homens diante totalidade do meio natural. Por exemplo, a era industrial
da morte (nela, prelados e nobres ficam lado a lado com artesãos freqüentemente colocou-se em oposição à natureza, que
e gente simples do povo) e a decrepitude do corpo, como precisava ser domada. Assim sendo, a morte, último fenômeno
também a sobrevivência do indivíduo. indomável, foi então afastada das preocupações do homem
moderno.
Essa foi também a época do surgimento dos testamentos,
pelos quais o indivíduo transmitia uma parte de si mesmo à Outros acontecimentos externos a ele —epidemias, fomes,
posteridade, estando o eu estendido, sem dúvida, às posses. A guerras e catástrofes naturais —também transformaram suas
preocupação com a boa morte surgiu então. A “A ve M aria", atitudes e sua compreensão do fenômeno. Ao menos, é o que
cujo último verso diz “Orai p or nós pecadores, agora e na hora de explica o historiador Michel Vovelle, que cita testemunhos bem
nossa m o rte" , surgiu igualm ente nessa época. Sobre o do começo do século 17, numa época em que a expectativa de
testamento, a História antiga conhecia essa prática de vida era relativamente curta: “Mortal, pensa que, sob a cobertura
transmissão de um patrimônio. Entretanto, a ele somava-se a de uma câmara mortuária, há um corpo com ido p or vermes, sem
transmissão de um influxo espiritual. Na Grécia, o culto da carne, sem nervos, cujos ossos à mostra despojam-se, desconjuntam-
lareira e dos ancestrais era transmitido de pai para filho. Esse se, perdem suas articulações. Ali uma das mãos cai podre, acolá
último tornava-se, então, o sacerdote do culto doméstico. No os olhos revirados destilam hum or vítreo, e os diversos m úsculos
Antigo Testamento, Jacó transfere ao seu irmão Esaú a bênção servem , aos verm es vorazes, de ordinário repasto. ..".A imagem é
que seu pai Isaac teria dirigido ao seu filho primogênito, pouco certamente repugnante, mas fazia parte do cotidiano daqueles
antes de morrer. Essa bênção fazia dele o favorito do Divino, homens e mulheres que se confrontavam diariamente com a
em suas terras e entre sua gente. morte, nas epidemias e na miséria.
O terceiro parâmetro de análise implica as crenças ou abertura da gruta, que dava para o norte. O erem ita os havia
convicções sobre a imortalidade da alma. O modelo cristão enrolado num a peça de Imho da Europa, tecido p or sua mãe: era
da Idade Média era que as almas dormiam, à espera do o único bem que lhe restara de sua pátria e, após tanto tempo,
Julgamento Final. A propósito, a verdadeira definição estava destinado ao seu próprio túm ulo. Atala f o i deitada sobre
etimológica da palavra cemitério traduz-se por “dormitório”. um canteiro de mimosas das montanhas; seus pés, sua cabeça, seus
Considerava-se, porém, que esse sono podia ser intranqüilo om bros e parte de seus seios estavam descobertos. Em seus cabelos,
por causa dos erros passados, e que os maus podiam voltar via-se uma flo r de m agnolia descolorida [ ...] a mesma que eu
para implicar com os vivos. Convinha, então, canalizar esse havia depositado no leito da virgem , para tom á-la fecu n da . Seus
retorno e exorcizá-lo por ocasião de determinados festejos, lábios, com o um botão de rosa colhido há duas manhãs, pareciam
como o carnaval. m u rchar e sorrir. Em suas fa ces, d e esplendorosa brancura,
distinguiam -se umas veias azuis. [ ...] Ela parecia encantada p elo
O último método de compreensão diz respeito à noção de anjo da m elancolia e p elo duplo sono da inocência e do túm ulo.
bem e mal relativa à morte. O cristianismo considera-a como Nunca eu havia visto nada mais celestial. Quem quer que ignorasse
um resultado do pecado original. Pecado, mal e morte, no que essa jo v em donzela houvesse usufruído da luz poderia tom a-
sentido de infelicidade, são sinônimos, mas não para os judeus, la pela estátua da virgindade adorm ecida”.
por exemplo. Para os epicurianos e os estoicos, a morte, pelo
contrário, correspondia a uma submissão, de natureza boa. É a primeira tentativa de ocultação do assunto, num quadro
primordialmente fantasmagórico. A morte alheia gerava
A esses quatro parâmetros superpõe-se uma evolução também o desejo de estabelecer contato com ele, no
histórica das mentalidades. Até o século 11, a morte era transcendente desconhecido. O século 19 viu nascer, assim, o
concebida em seus aspectos coletivos; o ser humano era então espiritismo.
considerado como um elemento de uma corrente vital. A partir
do século 11, surgiu a noção de individualidade, que perdurou No século 20, a noção do mal perdeu todo sentido, a relação
até o final do século 18. Com o advento do Iluminismo e, depois, com a natureza selvagem não representava mais um problema,
da sociedade burguesa do século 19, a morte alheia adquiriu porque, graças à tecnologia e a medicina, ela foi banida ou
dimensão mais importante. A família e a noção de espaço domada (ao menos, é o que se crê). As noções de imortalidade
privado tomaram a dianteira sobre a antiga comunidade e o foram sendo progressivamente negadas, como restos de uma
individualismo da Idade Média. O romantismo tendia a fazer infantilidade passada que se recusava a aceitar morte em sua
da morte algo muito belo. realidade. Os comportamentos diante dela foram então
invertidos: ela foi banida da sociedade e entrincheirada nos
No livro '"Atala", de 1801, Chateaubriand assim se expressa: hospitais que, a duras penas, a aceitavam (hoje, 70% das pessoas
"No inicio da noite, transportamos seus preciosos restos a té uma morrem em hospitais).
Antigamente, a morte se fazia anunciar. Não raro (e isto matéria é que era então considerada eterna. Em meio a essa
sabemos graças às ações familiares da época), sentindo-se perto concerto, Montesquieu apresentou a imortalidade da alma
de partir, a pessoa convocava sua família e lhe comunicava sua antes como uma necessidade que uma verdade: "Quando a
última vontade. Tinha-se então a necessidade de morrer com im ortalidade da alma f o r um erro, fica r ei m uito desolado de não
a consciência limpa. Partir sem estar pronto dava medo. A acreditar nela". Os que chamamos de filósofos do iluminismo,
partida de uma pessoa envolvia também toda a coletividade. como Louis-Claude de Saint-Martin ou Joseph de Maistre,
Hoje, a maioria das pessoas prefere partir rapidamente, quase reagiram contra esse baixo materialismo.
brutalm ente. A morte anunciada é considerada uma
calamidade. Ela se tornou também um assunto absolutamente Desde o final do século 18, assistimos a um refluxo dos
privado. Do mesmo modo, os tempos não são mais chegados cemitérios, fora ou na periferia das cidades. Por exemplo, o
aos grandes cortejos fúnebres ou às representações da morte. cemitério de Père Lachaise, em Paris, situou-se por algum
Adornos, danças macabras, jacentes, carpideiras, epitáfios e tempo fora dos muros, até que a metrópole o abarcou. O
outros apelos à meditação tornaram-se extremamente raros. A cientificismo do século 20 progressivamente rejeitou a morte,
morte não dá mais sinais. um dos últimos desafios incontornáveis a se erguer perante a
onipotente ciência. Quando uma pessoa falece num hospital,
No século 17, a arte de se preparar para morrer era isto se torna sin ôn im o de fracasso para todo o corpo médico.
freqüentemente lembrada e praticada, como aconselhavam os A saída do corpo é feita da maneira mais discreta possível, às
antigos pitagóricos: "Por uma sábia antevisão, preparai-vos para vezes até secretamente. Certa enfermeira de repente percebeu
a morte, de m edo que ela vos surpreenda: m orrei antes de vossa que, em dez anos de serviço, ela nunca tinha ficado ciente de
morte, m orrei para o mundo, m orrei para todas as criaturas, entrai por onde os corpos passavam para deixarem o hospital.
num estado em que possais dizer com o São Paulo: “quotidie
m orior" (m orro todos os dias). A arte de m o r r e r santam ente é tão Os mortos deixam de ter direito de cidadania e, segundo os
im portante que, para consegui-la uma vez, é preciso apreender sociólogos, deixam de ter função social. Os sinais que lembram
toda a vida, porque asfaltas que com etem os nesse m om ento são a morte - mausoléus, jacentes, adornos, fanal dos mortos, etc.
irremediáveis". Jacques Nouet: “R ecolhe-te, afim de te preparares - estão cada vez mais discretos, porque sua produção está
para a m orte”, 1684. parada. Nas mídias, as imagens só mostram as mortes de
estrangeiros. As dos nossos, dos que fazem parte da família
O século 18 e suas luzes assistiram a uma primeira tentativa nacional, dos que nos tocam de perto, são cuidadosamente
de eliminar a morte. Voltaire ridicularizou as antigas práticas e veladas. O historiador P Ariès chama a isso "a grande inversão
as velhas pompas, em seu ‘A deusà Vida". Fazendo piadas sobre “Um pesado silên cio ”, escreveu ele, “estende-se, assim, sobre a
a morte, os próprios padres negavam a imortalidade da alma. morte. Quando ele se rompe, com o algum as vezes na América do
O Marquês de Sade apresentou-a c o m o sendo um nada. A Norte, hoje, épara reduzira m orte à insignificância de um evento
qualquer, do qual se fin g e fa la r com indiferença. Nos dois casos, o
resultado é o m esm o: nem o indivíduo nem a com unidade tem
<y? experiência
su ficiente consistência para recon h ecer a m orte”.
de nw iíe ¿/nmrnte
Felizmente, há umas três décadas, um vento de lucidez
começou a soprar na civilização, através do meio médico. As
longas agonias do câncer e o surgimento da AIDS vêm “Vejo-Te coroado e, com Tua ?nassa e Teu disco, d ifícil de
favorecendo esse processo. Entretanto, a mudança de discernir, porque és, etn toda parte à m inha volta, uma massa
mentalidade ainda não tocou todas as camadas da sociedade. luminosa de energia, um incêndio ili?nitado, um Incom ensurável
Quando a tomada de consciência se generalizar, pode-se apostar brilho, com o o do Sol, estrepitoso com o o fo g o [ ...]
que nossas sociedades sairão daí transformadas e mais
maduras... Contemplo-Te, ó sem fim nem m eio nem com eço, de fo rça
i infinita e braços inum eráveis; Teus olhos são sóis e luas, tens um
Armado do poder que a ciência lhe confere, o ser humano sem blante de fo g o ofuscante e consom es eternam ente o universo
enfim se reconciliará com a natureza, pela aceitação de sua inteiro nas cham as de Tua energia. ”
própria m ortalidade. A morte, fenômeno reconhecido Bhagavad-Gita
socialmente e não mais rejeitado, convidará o indivíduo e as
sociedades a se questionarem sobre seu futuro, porém, sobre “Há umas duas décadas, fiq u ei gravem en te doente depois de ter
bases totalmente novas. tomado uns remédios, e tenho certeza deque, naquele m omento, eu
quase m oni. (Quem fala é a Sra. O.) Sentindo vertigens, deite-m e
na cama, em m eu quarto, e perdi a consciência. No fim de alguns
instantes, (não posso dizer com precisão quanto tem po foi), voltei à
consciência, mas, para m eu profundo horror, vi m eu corpo deitado
na cama, com o se eu estivesse flu tuan do acim a e separada dele.

Ah, d evo explicar que m e senti perfeitam en te bem nesse novo


estado indefinível. Eu sabia que estava m orrendo e, no entanto,
não sentia medo. Estava com pletam ente serena. Depois, senti uma
espécie de oscilação etn minha consciência e m e vi indo para um
tún el m uito escuro, ou melhor, era o tún el que vinha na minha
direção. B em no com eço desse túnel, com ecei a perceber um ponto
de luz verm elha que com eçou a crescer cada vez mais e se tom ar
mais brilhante, a té invadir totalm ente m eu ca?npo de consciência. Como a Sra. O., que o marido achou que estava louca
De repente, tom ei a perder a consciência, caindo num outro buraco quando contou a ele sua história, a maioria das pessoas que
escuro. Algum tem po depois, acordei penosam ente em m eu corpo passam por essa experiência, no Ocidente, guardou para si
físico, com m eu m arido ao m eu lado, tentando desesperadam ente mesma a perturbadora narrativa dessa viagem a uma outra
m e reanimar. ” dimensão da consciência. Preferiram se calar, para evitar serem
tratadas como loucas ou mentirosas, até q u e... médicos,
Quando a Sra. O. me relatou sua história, vinte anos já
enfermeiros, psiquiatras, começaram a levar a sério esses
haviam se passado e ela se lembrava dela como um acon­
testemunhos que voltavam várias e várias vezes sob formas
tecimento marcante que tivesse acontecido ontem. Zeloso da
muito parecidas, nos lábios dos que haviam tocado a morte.
honestidade intelectual e da verdade, perguntei-lhe então se
aquela experiência não podia ter sido um sonho. Para ela, a
Mas vejamos mais claramente do que se trata. De uns trinta
hipótese do sonho devia ser excluída. Ele não tem a mesma
anos para cá, o progresso da medicina não parou de se acelerar.
“textura” que esse tipo de fenômeno. Durante um sonho,
Graças à utilização da química medicamentosa, da cirurgia de
ninguém nunca vê seu corpo físico (ou muito raramente, já
ponta, da eletrônica... os médicos estão sendo capazes de fazer
que a experiência prova que toda regra tem sua exceção), não
pesquisas com as pessoas que chegaram perto das fronteiras
se tem consciência desse desdobramento. Para a Sra. O., a
do além. Muitas vezes, quando o coração e o cérebro não dão
separação entre o ser físico e o ser espiritual era uma coisa tão
mais sinais de atividade nos aparelhos registradores, quando
óbvia e real quanto qualquer acontecimento cotidiano,
os médicos que cuidam delas as declaram mortas, essas pessoas,
percebido no estado de vigília. Acrescentamos que essa pessoa
contra toda expectativa, voltam à vida. Em alguns casos, tudo
nunca tinha estudado nada de esoterismo, cuja existência ela
que receberam foi simplesmente, por exemplo, uma descarga
quase que ignorava, que sua aventura se desenrolou numa
de desfibrilador cardíaco, que acionou novamente toda a
época em que ainda não se falava, na Europa, sobre histórias
mecânica vital. Para espanto dos que lhes prestam assistência,
de estados vizinhos à morte, e que ela não estava predisposta a
cerca de quarenta por cento desses viajantes de um outro
passar por isso.
mundo se põem a contar uma história extraordinária, que se
O que provocara a situação foi a iminência da morte, desenrola em cinco etapas.
causada pela ingestão de medicamentos. Os americanos
chamaram esse estado de consciência singular de “Near Death 1. Enquanto se encontram numa mesa de operação ou
Experience (NDE)”, ou Experiência de Morte Iminente caídos por terra depois de um acidente ou, ainda, em qualquer
(EMI). Várias investigações realizadas em todo o mundo outra situação gravemente traumatizante para a vida, essas
revelaram que milhões de pessoas já vivenciaram esse fenômeno pessoas sentem que estão deixando nosso mundo e indo para
surpreendente. Só nos Estados Unidos, o instituto de pesquisa um reino totalmente diferente. A situação, para elas, é sempre
Gallup contou oito milhões. muito agradável e elas não sofrem nada, mesmo que seu corpo
físico esteja numa condição dolorosa, doente ou acidentado. É o caso da aventura do Dr. Philip Simpson, relatado por P
De forma surpreendente, ao regressarem, não têm mais medo van Eersel no livro “A Fonte Escura”'. “Seres aproximaram-se de
da morte, sentem-se totalmente confiantes e tranqüilas. m im . .. Eles não eram cúbicos com o eu, mas esféricos. Queriatn
que eu m e tom asse com o eles, e uma onda de terror m e engolfou.
2. De repente, para seu espanto, na segunda fase da Gritei: “Vão emboraI" O mais espantoso tem a t/er com a natureza
experiência, elas percebem nitidamente seu corpo físico estirado do que os tom ava tem íveis. A coisa é quase inexprimível. A única
sob elas ou ao seu lado. Vivenciam, assim, a experiência íntima palavra que p od e traduzir vagam ente o que elas m e inspiravam é
da dualidade de sua natureza, a mente fica separada do corpo. ironia. Aquelas esferas em anavam para m im algu m a coisa
Essas pessoas provam a veracidade da situação recordando fatos zombeteira. Finalmente, sem desaparecerem, ficaram a uma certa
concretos que perceberam enquanto estavam nesse estado distância. Constatei, então, que eu estava numa paisagem árida e
singular. Descrevem aos médicos que cuidaram delas, por fechada, com o as terras no fu n d o de um canyon, em p len o deserto.
exemplo, cada um dos gestos e atos que eles fizeram para Por últim o, m eu “cu b o ” im plodiu e f u i parar em m eu leito no
reanimá-las. De acordo com esses testemunhos, parece que hospital. Com m uito custo despertei, e uma espécie de luz difusa
nesse estado a mente pode se deslocar instantaneamente para encheu minha cabeça. R evi toda a cena. De repente, p erceb i que
outros lugares. Uma pessoa acidentada, que estava pela m e en ga n ara to ta lm en te: em n en h u m m o m en to a qu elas
primeira vez naquele hospital onde estava sendo tratada, pôs- “en tid a des” estranhas quiseram m e fa z er mal. Ao contrário,
se a descrever, às suas espantadas enfermeiras, os quartos e revendo-os em minha mem ória, m e d ei conta de que elas tinham
outros locais do estabelecimento, onde ela nunca tinha pisado. sido, na verdade, extrem am ente bem intencionadas. Apenas um
Entretanto, ela visitara aqueles locais desconhecidos durante pouquinho “divertidas” com o m eu medo. Foi esse “divertim ento"
sua experiência. Após prudentes averiguações, suas declarações que eu não con segu i suportar. Apesar de estar con scien te das
se revelaram exatas. aparências totalm ente fantasiosas do m eu relato, tenho a dizer
aqui que essa b reve e fu lg u ra n te experiência alterou m inha
3. Depois da viagem da mente, separada do corpo, pelo concepção do m u n do”.
mundo material, há uma mudança da consciência para uma
outra dimensão. Um túnel sombrio se apresenta diante das 4. Na quarta etapa, as pessoas contam que perceberam uma
pessoas e elas entram nele a uma velocidade vertiginosa. Tudo luz imensa ou um palácio de cristal bruto. Explicam que
se passa como se elas atingissem então uma outra dimensão do daquela onda luminosa irradiava um amor incomensurávei.
universo. A saída do túnel, os narradores explicam que foram 16% dos que relatam uma EMI atingem essa quarta fase.
recebidos por algo que eles entenderam ser criaturas que vieram Apenas 10% vão além.
acolhê-los. Mas aqui os testemunhos adquirem uma natureza
excessivamente simbólica, formulada incorretamente nos 5. E esse além é a entrada na luz, uma fusão que, segundo
conceitos limitados do nosso mundo. elas, imprime um êxtase indizível. Luz sobre luz, amor, alegria,
sentimento de infinito e eternidade, experiência mística ou depois que a alteração de consciência aconteceu enquanto ela
noética, conhecimento absoluto. Todos esses termos repre­ passeava num jardim, extasiando-se com a beleza das flores
sentam esforços infrutíferos para revestir de palavras algo que que via. Pessoas que sofrem um coma também podem dar esse
se vive primordialmente no nível da emoção. tipo de testemunho. Assim, uma jovem que, depois de um
acidente de carro, ficou seis meses em coma profundo relatou,
A maioria que alcança esse patamar sai dele perma­ ao sair dele: "De todo esse tem po, que não p u d e m edir porque,
nentemente transformada. Toda dificuldade que resta a essas quando acordei, parecia que o acidente tinha acontecido na véspera,
pessoas é traduzir esse novo conhecimento em atos ligados ao não m e lem bro de absolutamente nada. Ah, sim !... só tenho certeza
concreto cotidiano. Ao voltarem dessa viagem, algumas delas de uma coisa. Antes de recuperar a consciência, “alguém ” m e deu
até recriminam os médicos por terem-nas trazido de volta. uma escolha: partir definitivam ente ou voltar ”.
Tendo gozado de um instante de eternidade, retomam contato
com um corpo limitado, pesado e com todas as contingências Há dois elementos fundamentais no que diz respeito às
materiais. Elas prefeririam continuar naquele novo lugar. EMI que fizeram a comunidade científica pender a seu favor.
Outras têm a convicção de que, “lá de cima”, receberam a 0 primeiro reside nos relatos de percepções extra-sensoriais.
ordem de voltar a este mundo. Por algum tempo, pôde-se acreditar que durante a incons­
ciência aparente, o subconsciente das pessoas pode, por
Neste ponto, vale notar que, longe de constituírem um novo intermédio dos sentidos físicos, perceber eventos que se
mito, como pretendem alguns escritores, as EMI sempre foram desenrolam nas imediações. Lembremos que a audição é o
vividas pelos seres humanos. A extraordinária vitalidade das último sentido que permanece ativo na morte, na perda de
religiões e místicas diversas vêm, aliás, desse fato. Na verdade, consciência ou no sono. Essas explicações, porém, são muito
as pessoas saem dessa experiência não com uma simples fé, fracas para justificar percepções verificáveis e verificadas de
mas com um conhecimento ou gnose inabalável, que elas acontecimentos que ocorrem em lugares distantes. A História
buscam compartilhar. O mito de Er, descrito por Platão, se relata um caso vivido pelo sábio Apolônio de Tiana, no século
não representa uma EMI (até prova em contrário, nenhuma 1 d.C., no momento do assassinato do imperador Domiciano,
EMI pode durar doze horas, nem mesmo mais que alguns a centenas de quilômetros dali. Filóstrato conta que, entregue
minutos, sem se transformar em morte de fato), com certeza a um discurso, Apolônio “estancou, com o quem p erd e o f i o de
tira sua força das narrativas reais vividas naquela época. seu discurso, lançou ao solo um olhar apavorado, deu três passos à
fren te egritou : ‘A taque o Urano, ataquei”. Dizem que ele viu não
Há também outras experiências que se assemelham às EMI, a im agem do fa to com o num espelho, mas o próprio fa to em toda
sem serem de fato. Assim, certa mulher que narrou sua aventura sua realidade. Os efesianos fora m tom ados d e espanto. Apolônio
nos mesmos termos de uma EMI (sentimento de amor se deteve, assim com o alguém que tenta ver a conclusão de um
incondicional, eternidade, expansão da consciência...) explicou a co n tecim en to duvidoso. Por fim , g rito u : “Tende coragem ,
efesianos/O Tirano f o i m orto hoje. O que estou dizen do... hoje?l üm ocidental que passou pela EMI após uma tentativa de
Por Minerva!, ele acaba de ser m orto neste exato instante, enquanto suicídio —“Quando se está lá em cima, a gen te com preen de o que
m e in terrom p i”. Podia Apolonio estar em dois lugares ao realm ente o suicídio significa; aí, então, acreditem -m e, a gen te
mesmo tempo? Segundo seus proprios testem unhos, realm ente não tem a m enor vontade de fa z er isso de n o v o ”.
verificados por membros do corpo médico, as pessoas que
passam por uma EMI, a exemplo de Apolônio, também Pessoalmente, posso atestar sem quebrar nenhum segredo,
parecem perceber eventos à distância. que indivíduos que viveram uma EMI encetaram estudos
espirituais que, em alguns casos, conduziram-nos aos portais
O segundo —e mais importante —fenômeno que se levou da Rosacruz. Por vontade própria, desejavam compreender,
em conta, se, por um lado, é aparentemente menos espetacular, através da sabedoria Rosacruz, a natureza daquilo que viveram
por outro, apresenta caráter mais profundo e prático. Seu de maneira tão emocionante. O ponto comum de todas essas
sentido é também infinitamente mais eloqüente para o místico vidas transformadas exprime-se por uma grande alegria, um
sincero, que se recusa a deixar-se levar pelo meramente crescente otimismo frente à vida e uma abertura mais ampla
espetacular. Quanto mais longe as vítimas vão na experiência em relação às outras pessoas.
(até a quinta fase), mais regeneradas elas retornam, tanto do
ponto de vista físico quanto mental, emocional e espiritual. Mas há ainda outra coisa no que tange sua regeneração física.
Algumas delas parecem rejuvenescer. Lesões graves saram mais
Pessoas totalmente egoístas, que toda a vida sempre foram rapidamente. Vítimas de câncer em fase terminal, que a
centradas na satisfação de seus interesses pessoais, passam medicina tinha condenado a um brevíssimo desfecho, vêm suas
espontaneamente a se interessar e a amar o próximo. Outras, metástases regredirem relativamente e o desfecho fatal adiado
cuja vida não tinha outro sentido senão o consumismo e a busca em seis meses ou mesmo um ano. Se ainda não chegamos a
de prazeres, de repente passam a ter aspirações mais elevadas. declarações como: “paralíticos andam, cego s vêem e surdos
Outras, ainda, descobrem nelas mesmas dons de cura ou uma passam a o u vir”, não estamos muito longe disto, tanto do ponto
vontade de reorientar sua vida para a manutenção da saúde de vista físico como psicológico ou espiritual.
física ou mental. Tudo isso constitui, inegavelmente, sinais de
uma expansão da consciência. Essas pessoas parecem ter O meio médico está se questionando sobre a transformação
experimentado uma verdadeira conversão. Conversão essa que psicológica radical efetuada em tão pouco tempo. Nenhuma
se traduz por um crescente amor à vida e às pessoas, bem como lei psicológica conhecida pode, em tais condições, explicar essa
por um maior serviço prestado ao próximo e, por mais transformação. Logo, alguma coisa acontece, a um tempo
paradoxal que pareça, pela abolição de todo o medo da morte. profunda, prática e real, que a ciência não consegue explicar
Vale acrescentar que, para elas, a idéia do suicídio “só para por suas análises habituais. Os médicos que querem se manter
ver” torna-se um completo absurdo. Daí a frase enigmática de objetivos ficam tão contra a parede, que um deles, um psiquiatra
alemão que estudou o assunto profundamente, declarou: “Se químico seria produzir uma última sensação agradável, antes
as experiências de m orte im inente não dem onstram de maneira de se mergulhar... no nada. Se, por um lado, não há razão
absoluta o principio da sobrevivência da alma depois da morte, os para negar essa explicação, por outro, vale observar que ela
que hoje ainda se recusam a adm itir essa sobrevivência não tiraram sozinha não basta para justificar as transformações psicológicas
as m elhores cartas". Vale ressaltar, aliás, que as EMI não são das pessoas e muito menos suas percepções à distância.
mortes provisórias, mas unicamente estados próximos da morte. Acrescentemos, porém, que isso absolutamente não entra em
Tirar conclusões sobre a experiência da morte a partir de uma contradição com a noção de descorporificação real. Os místicos
EMI seria um pouco abusivo. Embora seja válido apreender o que seguem a via da alquimia espiritual aceitam a idéia de
desconhecido a partir do conhecido, essa extrapolação, para associar um fenômeno físico a um evento de natureza espiritual.
chegar à condição de conhecimento verdadeiro, necessitaria A máxima hermética, “O que está em cim a é com o o que está em
de uma verificação objetiva. Se tivesse ocorrido morte nesses baixo, e o que está em baixo é c o m o o que está em cim a ", implica
casos, as últimas ligações que unem o ser humano à vida teriam que um fenômeno físico pode ser o reflexo ou o indício de um
se rompido. Ninguém teria podido fazer uma reanimação. As fato espiritual, assim como a ponta do iceberg indica a presença
únicas informações que se pode tirar daí dizem respeito aos de um volume imerso duas vezes maior. O fato de que o amor,
estados da consciência na proximidade da morte. por exemplo, possa ser medido ou refletido por secreções das
nossas glândulas endocrinas (tanto é que já se pôde falar em
Para compreender o evento, o fato é que cada um tenta “molécula do amor”) não impede que ele constitua uma emoção
adaptar as EMI aos seus próprios parâmetros analíticos. Um real e muito prática, sem a qual a vida com nossos congêneres
vê nela um modelo psicanalítico, outro a interpreta como se transformaria num inferno. Entretanto, o papel dos
reações psicoquímicas do cérebro... em todos os casos, as EMI neurotransmissores na gênese de uma EMI ou quaisquer
não deixam ninguém indiferente; tanto que o governo francês outras experiências semelhantes nunca foi comprovado pela
teve de chamar atenção para os termos da lei: “A m orte definitiva ciência; até hoje, isso não passa de uma hipótese. Para encerrar,
de um a pessoa p od e ser declarada som ente após m edidas tomadas vale acrescentar que nunca se viu um restabelecimento ou
p or eletroencefalogram a, efetuadas duas vezes, com m eia hora de regeneração tão espetacular, tanto do ponto de vista físico
intervalo". quanto psíquico, pelo uso de medicamentos clássicos.

O modelo psicoquímico explica que as sensações de Na mesma ordem de coisas, existe uma teoria chamada “três
descorporificação, a visão da luz, a passagem no túnel, os sons cérebros”. Segundo essa idéia, na medida de sua evolução, a
ouvidos, etc., são resultados de uma experiência alucinatória. natureza teria dotado os seres vivos de estruturas cognitivas
Segundo essa versão, o cérebro, na iminência da morte, sofreria cada vez mais complexas. Assim sendo, o ser humano de hoje
uma gigantesca descarga de drogas, secretando alucinógenos possuiria um cérebro composto de três cérebros superpostos.
em forma de neurotransmissores. A função desse orgasmo O cérebro superior ou neo-córtex; o cérebro médio,
correspondente ao rinencéfalo ou sistema lím b ico; e o cerebro Existem ainda outras teorias para explicar as EMI. Uma
inferior ou reptiliano, formado pelo hipotálamo, que, por sua delas é a de Régis Dutheil, o pesquisador francês, autor do
vez, está ligado à glândula pituitária. livro “O H om em Supra-lum inoso”. Ele é autor de uma teoria
matemática muito respeitada, segundo a qual existiriam
Cientistas puseram em evidência reações semelhantes aos partículas muito especiais, os táquions, capazes de ultrapassar
estados de consciência mística, que se enquadram igualmente a velocidade da luz (barreira supostamente intransponível até
na linguagem das EMI, pela estimulação artificial de cada uma então). O Instituto de Física de Colônia observou alguns que
dessas partes do cérebro. Durante a excitação do rinencéfalo ultrapassam de três a quatro vezes a velocidade da luz, e
por meio de eletrodos, os pacientes experim entaram resultados similares foram obtidos depois na França e nos
sentimentos de amor universal. Durante a estimulação do Estados Unidos. Segundo Régis Dutheil, cujos trabalhos são
hipotálamo, descrição de luz e sensação de fusão no grande até agora hipóteses revolucionárias ainda a serem confirmadas,
Todo foram relatadas. Não demorou para que uma interessante existiriam, portanto, dois mundos. Um sub-luminoso e o outro,
teoria da transição viesse à tona. Assim, ao morrer, a pessoa um “alhures” supra-luminoso. O termo “alhures” foi dado por
assistiria a uma desativação progressiva de cada um de seus Einstein, que havia previsto sua existência.
cérebros, começando pelo neo-córtex. No nível da consciência,
ela faria, então, o caminho inverso da evolução, até chegar aos
níveis de consciência mais primitivos. Tratar-se-ia, portanto, Assim, a teoria da relatividade, estendida a essas novas
de um retorno às origens da evolução. Isso explicaria as concepções, consideraria o universo segundo três seções. Uma
experiências da descorporificação, do túnel, da luz, do amor seção sub-luminosa, reino do mundo da dualidade, da
universal e da fusão na luz. causalidade e do tempo; um mundo supra-luminoso ou campo
taquiônico, reino da inseparabilidade e da simultaneidade, para
R Dewavrin, por sua vez, desenvolveu um explicação além do tempo. Por último, a barreira da luz, participante dos
psicodinâmica. Frente à irrupção do medo da morte, “o dois mundos simultaneamente.
inconsciente dissocia o corpo e a autoconsciência, o q u e”, segundo
ele, “gera a impressão de desligam ento corporal. Da mesma form a, Como deixar de ver aqui uma ligação (como um piscar de
ele dilata o tem po e isola o ambiente, que então parece distante. E olhos) com o primeiro capítulo da Gênese: “No com eço, a terra
uma verdadeira fu g a espaço-tem poral o que se produz; p or esse era inform e e vazia e o espirito de Deus pairava sobre as águas...
processo, a realidade da m orte é lançada fora da consciência ”. Depois, Deus disse: “Fiat lux! (Faça-se a lu z !)”... e esse f o i o
Segundo ele, a percepção do ser de luz representa um prim eiro dia. Em seguida, Ele criou o universo, as estrelas, os
arquétipo da vida... Essa interpretação pura e simplesmente vegetais, os animais e, p or últim o, o h o m em ”. No começo, teria
nega o fenômeno, para levá-lo ao nível do fantasma havido, portanto, um mundo supra-luminoso de onde emanou
reconfortante, sem se apoiar em nenhum fato. a luz e, depois, o mundo que conhecemos.
E Régis Dutheil procurou comparar os testemunhos de numa NDE. O acesso ao reino da consciência só pode ser obtido
pessoas que passaram por uma EMI ao seu "cam po taquiônico”. através da separação dos elementos mais pesados da existência,
De fato, todas falam do cruzamento de uma barreira de luz e de ou seja, o corpo físico. A admissão, pela meditação, aos estudos
uma aceleração súbita e vertiginosa da experiência; depois, de de certos mistérios equivale à passagem no túnel, fronteira entre
uma sensação de chegar ao coração de um mundo sem espaço dois mundos. Nas NDE, outras personagens também assistem
nem tempo, gerando nelas a impressão de terem se tornado o “iniciando” em sua viagem a uma outra dimensão. Da mesma
onipresentes. Essa viagem não seria, portanto, do corpo, mas da forma, o iniciando nunca está só em sua busca de mais luz. A
consciência, uma experiência noética (relativa à consciência) de passagem no túnel pode ser comparada também à noite negra
algum tipo. Assim, o mundo supra-luminoso seria o habitáculo da alma, à qual muitos místicos cristãos se referiram. Escuro, o
de todas as consciências e, de acordo com o próprio Régis túnel o é forçosamente e, para alguns, até mesmo assustador.
Dutheil, o campo da Consciência pura de onde proviriam e para Tal como a gruta do eremita, ele é o local onde a alma se prepara
onde voltariam as consciências individuais, após a morte do e se despoja gradualmente de suas antigas escórias e impurezas.
corpo. Nesse campo, a ordem e a informação aumentariam sem Nosso mundo parece estar descobrindo as NDE. Os místicos,
parar, merecendo, em suma, o qualificativo de inteligência. Mas, os iniciados e os sábios de todos os tempos conheceram-nas no
vamos com calm a... O próprio pesquisador acrescentou: “Sou símbolo e, algumas vezes, na experiência direta da consciência;
o prim eiro a dizer que m eu m odelo é provavelm ente falso e, de em todos os casos, em sua carne e em sua alma.
qualquer m odo, será superado um dia. Ele é tão-som ente um
esquema provisório, destinado a nos ajudar a faz er avançar nossas A revelação preside, no iniciando, o acesso a um conhecimento
idéias sobre a consciência". superior. Aqui, os maiores mistérios lhe são revelados. Mas, acaso
há mistério maior que o do amor? E esse conhecimento que os
Mas, à parte o lado interessante das muitas histórias sobre o experimentadores de NDE percebem no mais profundo de seu
assunto que, aliás, pode ser abordado por outros livros, as EMI coração, tanto que chegam a rejeitar os esforços desesperados dos
possuem um caráter de fato interessante para os místicos e, em médicos que tentam traze-los de volta à vida. “Por quem e trouxeram
especial, para os Rosacruzes. Seu interesse reside principalmente de volta?’\ lamentam alguns, “Eu estava bem lá em cima, era tão
no fato de que elas vêm confirmar aquilo que o estudante aprende b elo... não preciso de vocês... deixem-me em paz!". Mas há um
gradualmente sobre as fases iniciáticas atravessadas pelo adepto outro mistério que essa gente percebe, como uma revelação, e este
na senda da evolução espiritual. é o da unidade, na qual aqueles que vão mais longe esquecem-se
As etapas de uma EMI ou NDE “Near Deal Experience” de de si mesmos por algum tempo, como numa aura de luz inefável,
fato correspondem muito fielmente às diferentes fases da até chegarem à regeneração e à conversão.
iniciação. A necessária separação do iniciando em relação aos
preconceitos do mundo, a fim de atingir uma nova consciência, Todos esses termos empregados ao se falar das EMI são
pode ser comparada à separação entre o ser físico e o ser espiritual conceitos que podem ser assinalados também numa via de
alquimia espiritual. Assim conta uma mulher que deu à luz Finalmente, ao final de uma EMI, há sempre o retorno a
um de seus filhos através de cesariana: “Foi uma em ergência, um corpo que, apesar de relativamente regenerado, muitas
numa sala de operação não aquecida; fazia m uito frio, e lem bro- vezes continua doloroso ou enfermo. Em todo caso, de acordo
m e de ter esperado o sono anestésico com im paciência, pois eu com os próprios experimentadores, a sensação não tem caráter
estava sofrendo. De repente, abri os olhos; um sentim ento de agradável. A reintegração se realiza, na verdade, numa
felicid a d e inexprim ível m e invadiu, igual ao de um pássaro a dimensão grosseira, em vista da experiência vivida.
quem devolveram a liberdade. Pensei: “Estou entrando em mimV*
Eu estava n u m tú n el im en so, vaporoso, co m u m a agu da Pouco antes do retorno, algumas pessoas explicam que viram
consciência de m im mesma; estava m e deslocando à velocidade da toda sua vida passar ante sua consciência, como que numa tela
luz!(1) e m e dirigia a um a maravilhosa claridade, da qual m e de cinema. Ao que parece, com a aproximação da morte, todos
aproxim ei num a felicid a d e total, banhada no am or divino que é nós nos encontraríamos ante essa constante, relatada pelos
“con hecim en to perfeito, alegria pura e am or p u ro ”. Eu estava no agonizantes. Uma necessidade da mente de fato impele a
m undo do espírito, sem corpo, mas mais viva do nunca. De repente, pessoa a fazer um último balanço. Isso pode acontecer num
senti que havia uma discussão a m eu respeito, m eu trabalho ainda piscar de olhos, mas sempre com extraordinária acuidade.
não estava term inado; eu precisava m e reintegrar ao m eu corpo Lembranças esquecidas voltam à superfície; a consciência
hum ano. Supliquei em vão que m e deixassem seguir em fren te, demonstra, então, uma aguda percepção. Tudo se passa como
mas, com m uito amor, f u i mandada de volta. Entrei de novo no se a memória da pessoa, antes de passar a uma outra dimensão,
m eu corpo físico, p elo m eio do m eu crânio; aquele corpo m e fosse rebobinada, como uma fita cassete, a fim de conservar
parecia m inúsculo, eu tinha de m e acostum ar a ele outra vez, na melhor suas preciosas informações.
dor. Depois, sobressaltei-me, ou vi um b eb ê que chorava. Era o
m eu filh o ; eu tinha de viver p or am or a e le ”. Sabemos que a alma, depois da morte, faz um balanço de
sua vida. Podemos deduzir isso, racionalmente, a partir dos
Essa pessoa acrescentou que depois desse acontecimento testemunhos das pessoas que vivenciaram uma EMI e dos
ela adquiriu uma aguda intuição e que “algum as coisas se agonizantes. Na momento de partir, tudo se passa, como
m odificaram do pon to d e vista b iológico”. De fato, várias décadas pensavam sabiamente os pitagóricos, como no momento do
mais tarde, aos sessenta anos de idade, ela ainda menstruava, sono. Em sua sabedoria, eles consideravam que não há sono
o que era incompreensível para os médicos. Ela atribuía isso à bom se a alma não está em paz. Para eles, essa paz só poderia
sua experiência de um dia numa outra dimensão, como uma ser obtida através de um balanço do dia que passou: “Não
pedra misteriosa assinalada em seu caminho. perm itas que o d oce sono se insinue sob teus olhos, antes de teres
examinado cada uma de tuas ações do dia. Que faltas co m eti?
Que fiz eu ? Que deixei de fa z er e que deveria ter fe ito ? Começa
(1)A fam osa velocidade da luz. (Nota do Autor) pela prim eira e p ercorre todas as tuas ações. Em seguida, se
descobnres que com etestes algum a falta, repreenda-te; mas se ocorre em muitas meditações, corresponde a uma projeção dos
a gistes bem , a leg r a -te". Na iminência da morte, uma lei conteúdos da consciência. A exemplo do espírito de um texto
psicológica implica que o indivíduo acha-se exatamente nessa do Bardo Thõdol, o Livro dos Mortos tibetano, poderíamos
mesma disposição de espírito. dizer ao experimentador: “Contempla as visões que se apresentam
a ti: são a p rojeção de teus próprios pensamentos, precon ceitos e
Mas voltemos à questão do retorno. Toda a dificuldade, para fantasmas. R econhece que essas visões vêm de ti e te libertarás
as pessoas envolvidas, reside na necessidade de traduzir em delas".
ações concretas a revelação que receberam em outro plano.
Para o observador, um dos meios de saber se uma EMI foi A natureza da EMI, portanto, será sempre formulada com
realmente vivida, ou se tudo não seria apenas uma fantasia, termos ligados à cultura e às imagens familiares à pessoa. Pode-
consiste justamente em observar as transformações do se até apostar que a descorporificação não seja forçosamente
comportamento da pessoa em questão. E inegável que a uma separação entre o ser espiritual e o ser físico, que o túnel
experiência da dualidade corpo-alma ou a da luz e do amor não seja um túnel, que a luz seja algo intraduzível. A intimidade
inefáveis não deixa ninguém incólume. Cedo ou tarde, uma da experiência torna-a incomunicável em sua natureza
alegria de viver contagiosa acaba transparecendo, bem como a profunda, ainda que os milhares de testemunhos recolhidos
vontade de ir ao encontro das outras pessoas... Um concordem de maneira surpreendente. Então, como explicar
conhecimento obtido pelas vias espirituais, se válido, vai se as experiências de NDE e a conscientização de fenômenos
traduzir infalivelmente em fatos objetivos, muitas vezes voltados extracorporais?
ao serviço voluntário. E a lei do retorno, vivida também pelo
iniciado armado do privilégio de uma iniciação simbólica. 1. Podemos, num primeiro tempo, partir do princípio de
que, em seguida a uma comoção, alguma coisa sai do corpo e
Vale acrescentar aqui um ponto que os espiritualistas vai perceber um fenômeno situado em outro lugar. Em várias
conhecem bem. Existem EMI de diversas naturezas. Uma vez tradições, essa “coisa” é conhecida: denomina-se corpo
chegados ao outro plano, alguns passam o tempo considerando psíquico, corpo astral, perispírito, etc. Tratar-se-ia de uma
a idéia da morte. A experiência pode adquirir caráter oculta dimensão do ser humano, uma emanação da vida que
essencialmente simbólico, como no caso do Dr. Simpson, já nele circula e que estaria ligada ao seu corpo físico. A essa,
citado. Há registros, porém, de uma minoria de EMI de caráter somamos as experiências de bilocação, aquelas dos xamãs da
negativo e desagradável. Por se tratar de uma experiência noética América e da Ásia do Norte...
(termo emprestado de Teilhard de Chardin), presume-se que
ela dependa, em primeiro lugar, do estado de consciência da 2. A exemplo dos cientistas céticos, poderíamos imaginar
pessoa. Nessa esfera, percebemos somente aquilo que estamos que, no momento da morte, o cérebro se saturaria de
prontos a perceber. Uma parte da experiência, assim como neurotransmissores, um sistema de segurança que, ante a
iminência da morte, permitiria à consciência viver um último centros, cuja existência os Rosacruzes conhecem há séculos.
momento agradável... mas ilusório. Isso é muito interessante, Da mesma forma, note que, durante esses fenômenos, a alma,
mas não basta para explicar o fato de que pessoas em estado de no sentido de princípio animador e fonte de vida, não sai
inconsciência aparente tenham podido perceber cenas que se efetivamente do corpo. Se assim fosse, a morte ocorreria
situavam bem fora dos limites de seu corpo e mesmo do local irremediavelmente. Poderíamos, porém, nos perguntar se, no
em que se encontravam. Sem nunca terem visitado fisicamente instante da morte, um outro princípio, diferente da consciência
os lugares que, após voltarem à consciência, descreveram da alma, pudesse talvez desenvolver uma existência autônoma.
detalhadam ente, essas pessoas relataram eventos que Em função de determinadas leis, que a Tradição Rosacruz
ocorreram à distância. conhece, aquilo a que chamamos autoconsciência ou
personalidade, na qualidade de expressão manifesta e ativa no
3. Enfim, a terceira hipótese, que não é forçosamente a mais mundo, é a resultante da relação estabelecida entre a alma —
simples, mas a mais sutil, constitui um ponto intermediário princípio universal —e o corpo. A morte corresponde à
entre as duas precedentes. Admitamos que, no todo da Criação, separação de ambos. Temos, então, o direito de nos perguntar
exista uma Grande Consciência Universal que é onipresente, sobre o devenir da autoconsciência quando seu sinônimo, isto
onisciente, etc. Não precisaríamos mais invocar nenhuma é, o relacionamento entre a alma e o corpo desaparece.
experiência de “saída do corpo”. O verdadeiro fenômeno que
interviria, então, seria o de uma harmonização momentânea Tudo o que sabemos é que a conscientização de um
entre essa Grande Consciência Universal e a consciência fenômeno extracorporal produz-se por ocasião de uma
individual da pessoa em situação crítica. experiência de morte iminente. Mas essa mesma experiência já
foi vivida igualmente em outras situações. O Padre Pio, por
Pessoalmente, conheci o caso de um amigo que, de repente, exemplo, já foi visto em dois lugares ao mesmo tempo. A
vivia essa experiência subitamente, enquanto estava sentado História relata também que os antigos mestres Rosacruzes
ou dormindo calmamente. Dava-lhe a sensação de que tudo o conseguiam essas mesmas proezas. Durante as guerras,
que estava afastado parecia ser percebido como próximo, e o institutos de pesquisas psíquicas de todo o mundo conseguiram
que estava próximo se tornava afastado. Os médicos disseram colher testemunhos de mães que afirmavam ter visto e ouvido
simplesmente que ele estava com o cérebro cansado, quando seus filhos lhes falarem, enquanto estes se achavam feridos a
provavelmente tratava-se de uma experiência psíquica. centenas e até milhares de quilômetros de distância.
/
Os xamãs,
mas também muitos místicos, como os iogues da índia, dizem
Se essa hipótese se mostrasse válida em experiências como poder exercer essa faculdade, sem precisarem sofrer um
as de NDE, dois tipos de consciências interagiriam: a Grande acidente, um coma ou uma doença. Um dos termos utilizados
Consciência Universal e a do cérebro. As informações de uma para designar o fenômeno é “bilocação”. Nele, o indivíduo não
verteriam para as da outra por intermédio de determinados se contenta apenas em perceber o que se passa a quilômetros
dele; uma parte de seu ser se cristaliza nesse lugar distante e
pode até ser observado. Assim, as explicações dadas acima para
(9 aco/zipa/i/uv/u/i/o
justificar essas manifestações são apenas hipóteses práticas. A
explicação verdadeira talvez seja muito mais complexa, ou c/e agorriza/iíej
requeira uma combinação de todas essas interpretações.

Resta uma pergunta: por que as NDE existem hoje? A companhar, eis um termo cujo sentido recente traduz a
Lembre-se, as NDE ou EMI não datam de ontem. É melhor compaixão que nosso mundo é capaz de demonstrar
justamente a evolução sem precedente das técnicas médicas ante alguém que está morrendo. Trata-se do último ato de amor
que têm produzido todos esses retornos antecipados. O que de alguém que, segurando por um tempo a mão de um ser às
foi anunciado antigamente está se desenrolando ante nossos portas da passagem, só vai soltá-la quando o outro tiver partido.
olhos. Hoje, é a ciência que preside a evolução da humanidade Gesto gratuito por excelência, porque sem lucro no plano
e constitui o novo âmbito de seu desenvolvimento. As terreno, ele inicia tanto os que partem quanto os que ficam.
manipulações genéticas e a clonagem impõem ao ser humano Acompanhar é a palavra mais exata, pois o ser de partida está
uma reflexão sobre a ética e sobre sua própria natureza. A sempre um passo à frente de seu companheiro ou companheira
informática o obriga a reformular seu lugar no universo dos últimos dias. Gesto de humildade, ação silenciosa, ele apela
produtivo. E a medicina abre para ele as portas da morte; ou, à qualidade de uma presença que, por sua natureza, ajuda o
pelo menos, obriga-o a se questionar a respeito dela. Seja como agonizante a levar a termo sua transmutação. Nada de
for, pessoas testemunharam e seus testemunhos constituíram discursos; não se trata de convencer do contrário a quem tem
a fonte de numerosas pesquisas, que põem em xeque muitas medo ou, ao incrédulo, de que existe alguma coisa depois. A
idéias estabelecidas. importância ou a urgência do momento faz com que as certezas
do acompanhante pesem bem pouco ante o inelutável com que
se defronta o ser que parte. Assim, o acompanhante precisa
aprender a se calar, para ser mais intensamente no amor e no
respeito ao outro.

Mas mudemos de tom e falemos tecnicamente, porque um


pouco disto é necessário se queremos que o coração se expresse
sem as suas ilusões. Há três ou quatro tipos de acompanhamento.

O primeiro, e mais conhecido, é o praticado nas unidades


de tratamentos paliativos. É um produto da ciencia, na medida
em que esta está sabendo, cada vez melhor, analisar as psicologia as fases de consciência que a pessoa desenvolve, via
condições de uma enfermidade e fixar os sinais da aproximação de regra, quando fica sabendo ou pressente que está
do inevitável. O câncer em fase terminal, a aids e outras doenças condenada.
confrontam a medicina com a sua impotência natural, e é
possível dizer se uma pessoa tem ou não chances de sobreviver. Que é que normalmente acontece ao descobrirmos que uma
Nos casos em que a resposta é negativa, convém, então, auxiliá- pessoa, atingida por uma doença grave, vai nos deixar? Todo
los. Enquanto na Idade Média podia-se tranqüilamente falar mundo se revolta. A família, os amigos e, obviamente e com
da morte, depois do século 18 e da era industrial ela foi relegada mais forte razão, o próprio interessado. Mas antes dessa revolta
ao nível dos assuntos que é preferível evitar. Foi apenas há umas mais ou menos óbvia, há uma reação geral de estupefação e
quatro décadas, graças a pessoas como Elisabeth Kübler-Ross, embotamento. "Ele (ou e la ) ... morrer, com o é possível? Era tão
que se passou a ousar encará-la. Resta, porém, um longo sorridente e tão forte!" “Se ele (ou ela) morrer, então a m orte vai
caminho a ser percorrido. Por ora, e isto já é fato, as unidades faz er uma irrupção em minha vida, o que é im pensável e sinônim o
de tratamentos paliativos têm por missão oficial acompanhar de desm oronam ento de todo um m undo". Essa fase importante
os seres até o grande portal. chama-se de?iegação. A pessoa não admite a possibilidade da
morte. A morte parece-lhe enorme demais, totalmente em
A segunda forma de acompanhamento, menos conhecida, contradição com tudo aquilo que a pessoa foi até então. O
foi praticada no curso de nossa História passada. Consiste não inconsciente nega a morte; ele está programado para a vida.
em esperar a chegada do fim para se pensar no assunto, mas Sua inteligência dedutiva recebeu a missão de assegurar, custe
num convite a que se faça um exame regular do sentido do fim o que custar, a sobrevivência do indivíduo.
derradeiro do ser humano. Assim, quando o dia da transição
se apresenta, a pessoa já está preparada. O Dr. Freud pôs em evidência, desde o começo do século
O terceiro método de acompanhamento diz respeito a todos 20, a incompatibilidade entre a morte e o inconsciente.
os ritos, meditações, preces, etc., que ajudam na libertação dessa Deduziu, então, muito precipitadamente, que os sonhos nos
borboleta que é a alma da pessoa. Se o primeiro método pode quais uma pessoa aflita vê seu próprio cadáver não passam de
ser qualificado de p re-m ortem , este atuapost-m ortem . uma brincadeira do inconsciente, significando, assim, sua
negação e sua incompreensão do fenômeno “morte . De fato,
Há, enfim, um quarto acompanhamento, que está longe de todos nós acreditamos que somos imortais, e vivemos como se
ser inútil: o que é feito pela família ou por amigos daquele que isso fosse fato evidente.
vai morrer ou que já está morrendo.
A denegação pode assumir formas totalmente diferentes.
Voltemos agora à primeira forma. Elisabeth Kübler-Ross foi Uma pessoa atacada de uma doença incurável repete
quem conseguiu, pela primeira vez, formular em termos de incessantemente: “Mas o que éq u e está acontecendo com igo, logo
eu, que Jiunca fiq u ei d oen te?”. Uma outra se recusa a ouvir a permanecem definitivamente nesse estágio de recusa crispada
verdade sobre seu estado. Embora não caiba a todo mundo que torna os mortos hediondos. Entretanto, a maioria dos seres
tornar-se psicólogo encarregado de desenredar situações como possui em si os recursos para superar esse estágio. Segundo as
essas, o fato é que ter uma compreensão do que está em vias próprias palavras de alguns agonizantes, a morte não precisaria
de acontecer pode ajudar a pessoa a viver esses acontecimentos. ser assim tão terrível. É a recusa que gera a dor para todos
A morte é para todos, agonizante e familiares, uma espécie de (acompanhantes e doente).
iniciação. Cada um sai dela mais ou menos duradouramente
transformado. Compreender ou conhecer as diferentes fases Enfermeiras conseguiram recolher as ultimas palavras de
dessa iniciação contribui para atenuar suas etapas de crise, e pessoas que partiram e que se exprimiram no instante do
até mesmo triunfar sobre elas. Seria prejudicial deixar último suspiro. Dizem elas: “É bem com o contam : a luz, a
totalmente a cargo dos especialistas a questão da morte e do música, o am or e tudo o mais. E m aravilhoso! .
acompanhamento. O conjunto da sociedade deve se sentir
implicado ou envolvido, sob pena de estagnar num estágio B. perdeu sua mãe no hospital. Alguns anos antes, seu irmão
infantil de desenvolvimento espiritual. mais velho morrera num acidente. Quando a mãe de B. deu o
seu último suspiro, uma enfermeira estava presente e relatou o
O segundo estágio que sucede a denegação manifesta-se que viu acontecer com essa senhora. Nos últimos instantes, a
numa reação de cólera. E o período em que se questiona Deus. velha senhora estava sentada, os olhos voltados numa direção
"Por que eu e não os outros? Por que ju sto a gora ?... ” A revolta específica do quarto onde se achava, como se estivesse vendo
aumenta e cada um acaba levando sua parte. "Esses m édicos alguém. Depois, pronunciou as seguintes palavras: “E você,
que são incapazes d e m e cu ra r.. . ", a família que decididamente L uc... (Luc era o nome de seu primeiro filho, coisa que a
não consegue entender nada da gravidade da situação, os enfermeira não sabia) Você veio m e buscar, que b o m ”. Em
padres e todas as crenças inúteis que de nada servem quando seguida, o corpo da velha senhora tombou, para não mais se
se tem de dar o primeiro passo rumo ao desconhecido, esses levantar.
filhos que tomam uma atitude compassiva e escondem a
verdade, quando, na maioria das vezes, o doente sabe O Dr. Osis, psicólogo, intrigado com essas cenas repetidas
perfeitamente onde é que ele está... de pessoas que, no momento da passagem, comportam-se
como se alguém tivesse ido buscá-las, tentou saber se tratava-
E a recusa. “Não, eu não quero morrer, nem m e fa lem disso”. se de alucinações, de projeções de desejos mais ou menos
O próprio Deus pode ser incriminado e uma certa agressividade conscientes, de alteração da consciência ou outros sinais devidos
em relação à sociedade dos saudáveis vem na seqüência. Na a um cérebro deficiente. Sem rodeios, armado de seus testes,
verdade, cada indivíduo reage nessa hora com sua psicologia e seus interrogatórios e sua técnica de psicologo, concluiu que
sua história particular. Alguns não se revoltam, enquanto outros não se trata de nada disso. Por alguns detalhes, ele pôde
descartar a explicação alucinatória. Pelo exemplo, pelo fato de ao seu médico se ele não poderia ajudá-la a agüentar até lá,
uma alucinação ser sempre o reflexo de um conflito ou um graças às suas drogas e remédios. Constatando o desejo e os
desejo latente, que ela vem então preencher. As visões de olhos brilhantes da senhora, o médico aceitou. A ciência
personagens, à aproximação da morte, não têm nada a ver com fornecia-lhe os meios e a vontade da paciente parecia forjada
esse tipo de desejo, porque parecem animadas de certa em aço. Ela ganharia alguns meses... ao preço do sofrimento.
autonomia independente do visionário. Para ele, tudo se passa Mas no dia do casamento, lá estava ela, de pé, para abraçar sua
como se essas pessoas conversassem realmente com uma nora. Alguns dias depois, foi procurar seu médico e agradeceu
personalidade invisível aos olhos dos demais. As investigações a ele, mas o jogo recomeçou. Seu segundo filho estava a um
foram realizadas entre pessoas de culturas diferentes. Se é passo de se casar também. Mas a velha senhora, no fim de suas
difícil concluir de modo definitivo, de um ponto de vista forças, já não tinha tempo de esperar até lá... A conclusão
científico, pela veracidade do fenômeno, o fato é que essa desse acontecimento real é que o ser humano, confrontado
mesma ciência continua incapaz de explicá-lo. Para nós, parece, com a morte, pode ganhar algum tempo, se quiser. Ele pode
contudo, que algumas portas da percepção se abrem no jogar por algum tempo uma espécie de pôquer, mas a aposta
momento da morte. será paga em termos de sofrimento. De maneira diferente, ele
mesmo pode organizar sua partida, depois de pôr tudo em
A História relata o falecimento de Jacob Boehme, filósofo ordem.
do século 17. No meio da noite, Boehme chamou seu filho
Tobias e perguntou se ele estava ouvindo aquela música Uma mulher esquimó sentiu a proximidade de sua morte.
magnífica que enchia a casa. A despeito de seu filho ter Assim, convocou, para determinada data, um amigo seu, um
respondido negativamente, ele pediu-lhe para abrir todas as padre que ela adorava. No dia fixado, pediu ao seu amigo para
portas, a fim de poder ouvir melhor os cantos harmoniosos. que fosse buscar um de seus filhos, de modo a que ele estivesse
Terminou dando seu adeus à sua família, pronunciando estas presente na hora de sua partida. Seus desejos cumpridos, ela
palavras: “E agora, vou ao p a r a í s o Depois, fechou os olhos morreu em seis horas, depois de ter assistido a uma cerimonia
para sempre. religiosa. Essa mulher queria decididamente rever seu filho
antes de partir, o qual ela não via há muitos anos.
O terceiro estágio que todo acompanhante (ou sim­
plesmente todo ser de compaixão) deve conhecer corresponde Um homem doente estava convicto de que, aos olhos de
a uma espécie de negociação. O indivíduo exauriu sua cólera e sua esposa, ele era um fracassado e que sua própria morte
começa a admitir o inevitável. Então, um tipo de jogo representaria, para ela, seu último disparate. Nos dois casos,
inconsciente começa a ser jogado. A pessoa pode, por exemplo, foi preciso que os acompanhantes encontrassem, no primeiro
tentar fazer um trato com seu médico. Certa mulher disse que caso, o filho para convidá-lo a ir ver sua mãe, e, no segundo, a
seu filho iria se casar dentro de alguns meses. Então, perguntou esposa para exortá-la a explicar ao seu marido o quanto ela o
amava. Enquanto o desejo do agonizante, muitas vezes papéis (e não o menor) do testamento que a pessoa redigia
inconsciente, não for atendido, não haverá separação ou, então, consistia em ajudar a pôr seus assuntos em ordem e permitir
depois de uma forte negociação implícita, essa separação poderá que ela sentisse que seu papel na terra estava cumprido. Podia,
ser dolorosa. O papel de qualquer pessoa que queira ajudar então, partir em paz. Pedir a um condenado à morte que
consiste em compreender e resolver a situação, o que requer expresse seu último desejo, oferecendo-lhe um último cigarro,
muito tato e não é tão fácil. é uma cena caricatural que esconde princípios mais profundos.

A negociação pode assumir formas muito sutis. Um doente Um velho lenhador não queria morrer. De fato, ele levou
toma seus remédios escrupulosamente, nos horários deter­ seis meses para compreender que o inevitável estava chegando
minados, com gestos quase maníacos, como se fosse uma questão para ele. Na véspera de sua morte, aconteceu uma coisa que
de conjurar a sorte através desse ritual. Um outro sente que lhe mostrou à sua família que ele a havia finalmente admitido. Essa
falta fazer alguma coisa em sua vida ou que precisa resolver um aceitação, com certeza, ajudou-o a fazer sua transmutação. O
conflito familiar. Para partir em paz, o ideal não está nessa ou indício foi muito simples: o velho lenhador indicou um nome,
naquela crença religiosa. O problema é sempre muito mais o da pessoa a quem ele legara suas madeiras e os terrenos que
profundo que uma simples cultura superficial. Já se pôde ver ele explorava, e que ele tanto adorava.
padres, que falaram do Reino de Deus a vida toda, ficarem Outra forma de negociação implica os familiares. Ante o
paralisados de angústia e completamente desarmados no umbral, a pessoa muitas vezes tende a ficar inquieta quanto ao
momento de passar para o outro lado do espelho. A experiência futuro de seus descendentes. Alguns filhos, alias, não hesitam
cotidiana dos acompanhantes mostra que os que têm o em dizer: “Não quero que v o cê morra; sem você, não vou saber
sentimento de terem vivido bem sua vida aqui na terra passam v iv e r ’. Sem uma aceitação de fachada por parte da família, o
pelo evento mais facilmente e em paz. Tudo se desenrola como trabalho não é facilitado. Um homem, que perdera sua filha
se cada pessoa houvesse recebido uma missão de vida e como se de quinze anos por causa de uma doença incurável, contou
o sentimento de missão cumprida fosse o melhor passaporte para que, até o fim, os parentes haviam mantido a menina na
o além. Ante o umbral ou com uma idade avançada, as pessoas ignorância do desenlace fatal de sua doença. Esse pai contou
em geral tendem a analisar seu passado. Antes da hora, fazem que, até o último momento, sua filha parecia feliz. Nem por
uma espécie de balanço inconsciente. Portanto, é bom, ante o um instante, ele considerou que sua filha podia perfeitamente
limiar, ajudar uma pessoa convidando-a a falar de sua vida e dos conhecer seu real estado e que ela pudesse ter fingido felicidade
atos praticados, e valorizar suas atividades. para evitar que sua família sofresse. Aqui, não se sabe mais
quem negocia com quem. A mais dramatica situação, difícil
O outro aspecto do período de negociação consiste em que de resolver, é aquela em que um filho deficiente vai ser deixado.
a pessoa, antes de admitir a idéia da passagem, sinta-se em paz A paz fica difícil de ser obtida, na medida em que o agonizante
consigo mesma, os outros e o mundo. No século 17, um dos angustia-se com o destino do filho.
Você descobre que a negociação pode levar a retardar a emaciado, o qual, com o passar do tempo, tornou-se pesado
data de uma partida. A situação inversa existe igualmente. de suportar. Algumas palavras de valorização para quem não
De fato, num casal, não é raro assistir à partida de um, depois se aceita mais podem restituir-lhe a confiança.
de o outro já ter feito o mesmo alguns meses antes. O livre -
arbítrio existe igualmente nesse sentido. Como bem disse Durante esse período, percebe-se o quanto o silêncio é
Jacques Brel em sua música “Os Velhos”, quando um dos dois valioso. Às vezes, algumas pessoas dizem que gostariam de
se vai, o mundo pode se tornar o inferno para o outro, com o ajudar, mas, segundo elas, não se sentem capazes porque não
sentimento de que não resta mais nada que valha a pena ser saberiam encontrar as palavras certas para expressar o consolo.
feito nesta terra. Mas quem disse que é preciso falar? Vivemos numa civilização
de ação, de ruídos, de agitação. Temos de ser barulhentos para
Outra forma de comportamento que se poderia associar à nos sentirmos vivos. Não dizer nada representa muito
negociação é aquela em que as forças de vida tentam ficar por freqüentemente um incômodo. Assim, temos medo do olhar
cima mais uma vez. Uma mulher vai, então, quererse perfumar, do outro não expresso em palavras. No entanto, em harmonia
se maquiar, se fazer bela e atraente; um homem vai aplicar, consigo mesmo, basta simplesmente que a pessoa se cale, para
uma última vez, seus talentos de sedução sobre as enfermeiras. ser mais intensamente e tornar tudo mais simples.
Aqui se pode realmente falar do elo que une Eros e Tanatos.
As pessoas ao redor às vezes percebem e compreendem o jogo, As relações com aqueles que estão chegando às portas da
às vezes não; reminiscência do velho medo de ser devorado morte são geralmente mais despojadas. Muitas vezes é só uma
pela morte. Foi esse o caso de um jovem pastor, relatado por questão de dizer: “Estou aqui com v o cê. M esmo que eu não diga
Louis Vincent Thomas. Diante de uma jovem mulher nada, viverem os ju n tos esses momentos. Podemos conversar, se você
totalmente cheia de metástases, esse homem de Deus falava- quiser, senão, vam os usufruir em silên cio a presença um do outro,
lhe, à sangue frio, de imortalidade. Então, ela o interrompeu, pois é um grande prazer estar com v o c ê ... ” Aqui, naturalmente,
para dizer-lhe que o amava. Assustado, o pastor fugiu. é preciso vencer suas próprias angústias e pensar primeiro e
sobretudo no outro.
O quarto estágio corresponde a uma depressão. Passadas a
revolta e a negociação, o agonizante sente uma imensa solidão. O quinto estágio por que passa o agonizante, quando sua
E então que todo calor dos que o cercam deve intervir e, em psicologia e seu ambiente o permitem, corresponde à aceitação
todos os casos, é aí que a arte de quem cuida requer o máximo do inevitável. Para alguns deles, a aceitação pode até mesmo
de delicadeza. A pessoa, sobretudo nos casos de câncer, está tomar a forma da paz interior de quem compreendeu o que
em conflito com seu próprio corpo. A imagem que ela conserva está em jogo. Nesse estágio, muitas vezes acontece de assistir-
de si mesma está desvalorizada. Um simples carinho pode se a uma relativa melhora no nível

da energia da pessoa. Trata-
contribuir para reconciliá-la com seu corpo geralmente se da última comoção de vida. E como se a natureza, em sua
imensa sabedoria, houvesse previsto essa comoção, pois, A essa altura, poderíamos tentar responder a pergunta
segundo os próprios médicos, é preciso energia para poder tantas vezes feita: deve-se dizer a verdade ao doente? De fato,
morrer. Algum as vezes, os médicos chegam mesmo a quem não conhece ou não quer conhecer o desfecho lógico
administrar um tonico fortificante para que a pessoa possa de seu estado ficará preso ao estágio da denegação ou ao da
partir nas melhores condições. raiva. Será que se deve, então, impor-lhe a realidade de sua
morte próxima ou, ao contrário, como se fazia antigamente,
Nem todo mundo consegue perfazer esses cinco estágios. pôr-se no lugar dele e mante-lo na ignorancia? Afinal, como
Alguns permanecem centrados no primeiro, o da denegação; se costuma acreditar, guardar silêncio evitaria ao doente o
outros chegam até o da negociação. Às vezes, a ordem dos sofrimento proporcionado pela consciência lúcida do
estágios pode ser mudada ou o ciclo pode se repetir. Uma paz desfecho fatal. Os partidários da verdade sem disfarces se
relativa se instala, mas depois, de repente, ocorre um brusco insurgem contra essa atitude que retira toda dignidade ao
retorno da raiva. Nada é absolutamente previsível nesse campo, doente e que sobretudo veta-lhe a oportunidade de ter em
principalmente porque as pessoas à volta interferem fortemente seus últimos momentos a chance de um desenvolvimento
através de sua relação com o agonizante. A própria família importante em sua personalidade. A lucidez versus um
enfrenta as cinco passagens, especialmente quando se vê procedimento que se diz misericordioso... qual se deve
confrontada com seus próprios problemas, no caso de uma escolher?
longa agonia. As situações conflituosas que opõem o doente
aos membros de sua fam ília também têm um papel a A esse dilema aparente, os concidadãos franceses já
desempenharem sua possível aceitação ou recusa. Um parente responderam, em forte maioria, que preferem ouvir a verdade,
pode se recusar a aceitar a idéia da partida do outro e, assim, custe o que custar. Quando interrogados, respondem que
complicar as modalidades. O agonizante sofre ao ver os outros preferem saber, a fim de poderem viver esses dias claramente,
sofrendo. O acompanhante, ou simplesmente o amigo, tem desenganados. Para eles, trata-se de uma questão de dignidade.
uma função a cumprir aqui, tentando obter pelo menos uma Sentir-se humano e informado, e não apenas paciente, eis o
aceitação de fachada por parte da família. que exige a maioria das pessoas hoje.

Os problemas de herança não ajudam as coisas e podem Podemos acrescentar que, uma vez atingido determinado
contribuir para uma negociação plenamente legítima... Na grau de certeza quanto ao desfecho de uma doença, manter a
verdade, há uma multidão de casos diferentes, cabendo ao olhar pessoa na ignorância pode ser prejudicial pára ela. Afirmar,
observador perceber e compreender com a sensibilidade do contra toda expectativa, que: “Você vai sair dessa, os m édicos
coração. Não pode haver dogmas em matéria de acom­ ainda têm algum as cartas na manga \ é o mesmo que alimentar
panhamento, como, aliás, em nenhuma outra relação humana na pessoa uma negociação inconsciente que poderia perdurar.
realmente autêntica. Na verdade, a maioria das pessoas sente por si mesma o que
está acontecendo, as crianças igualmente ou até mais que os O caso desse engenheiro é raro. Entretanto, sem chegar a
adultos. O sentimento de que se vai morrer pode ser intuitivo cometer o ato irreparável, algumas pessoas caem em depressão
ou ser revelado através de sonhos. O fato de não se ousar dizer profunda, o que é preferível evitar. Não é bom dizer toda a
a verdade, de agir “como se”, enquanto o interessado sabe muito verdade de uma só vez, em geral basta simplesmente proceder
bem o que está havendo, cultiva um erro coletivo. O doente por meio de sugestões e questionamentos sutis. “E então, com o
pode, da mesma forma, sofrer com o silêncio reinante, ficaram seus problem as de saúde, os m édicos lhe explicaram tudo?
perturbado apenas por olhares que dizem muito. A sua própria Já pediu para eles lhe darem o progn óstico? Alguma vez v o cê já
necessidade de transmutação, eis que ele tem de somar o pensou na m o rte? ... ”
sentimento de perder toda dignidade, porque os outros sabem
aquilo que tentam esconder dele próprio. Então, todo mundo Questionar um doente sobre sua atitude face a morte
se põe a disfarçar, a começar pelo próprio doente: “Olhem, proporcionará, a partir de suas respostas, informações acerca
hoje estou bem m elh or... estou m uito fe liz ”. Ele não quer que do diálogo que se deve ter com ele sobre seu real estado. Em
ninguém sofra à sua volta. Bando de tolos, quando a urgência 80% dos casos, a verdade será amplamente preferida; em 20%,
da hora exigiria que se ousasse encará-la de frente. Frente à será melhor ser prudente e deixar que se desenvolva e
frente com a morte, a vida adquire toda sua relevância, toda amadureça o que tiver de ser. Nesta, como em muitas outras
sua intensidade. áreas, as posições extremas são sempre perigosas. Está claro,
segundo o que afirma a maioria dos interessados, que a
Mas será que é preciso, como afirmam os partidários mais preferência pende para o lado da verdade ou, pelo menos, da
firmes, dizer absolutamente a verdade, mesmo que o outro se informação com a máxima transparência possível.
recuse a ouvi-la e diga isto em alto e bom tom?
Acompanhar também não é ir contra as convicções das
Mareei, engenheiro de telecomunicações, foi acometido de pessoas, nem mesmo pensar em convencê-las. Consiste
um câncer. Ele se arrastou durante meses, violentamente simplesmente (e já é muito) em trilhar uma parte do caminho
agredido por seu mal. Um dia, seu médico o auscultou e, de com eles, dando-lhes, se possível, uma qualidade de contato,
repente, disse-lhe a verdade nua e crua: ele atingira agora a de calor, até mesmo de cumplicidade. As flores desabrocham
fase terminal da afecção; a ciência não podia fazer mais nada graças ao calor do sol, as almas evoluem graças ao calor de seus
por ele. Dentro de alguns meses, estaria morto. Dois dias depois semelhantes. A primeira virtude a se desenvolver aqui é a
desse anúncio, a enfermeira de plantão encontrou Mareei em capacidade de ouvir... sem fazer comentários.
seu leito, morto. A polícia concluiu que fora suicídio. Mareei
não queria ouvir a verdade. Sua estrutura psicológica Vale ressaltar aqui que, no quadro dos trabalhos desen­
provavelmente não lhe permitia assumi-la; ele preferiu encurtar volvidos na Universidade Rosacruz Internacional, associada a
sua estada no mundo. esse movimento de espiritualidade profunda que é a Ordem
Rosacruz, AMORC, as cinco fases precedentes correspondem A velha arte da alquimia mostra bem, em sua linguagem
a uma espécie de iniciação. Mvalimu Imara escreveu: "O ato de singular, esse processo de despojamento e de crescimento
m orrer é a últim a etapa do crescim en to”. Trata-se, assim, de contínuo. A obra em negro ou nigredo está associada à morte
lembrar que, diante da morte, defrontamo-nos também com ou noite saturnina. Nela, a matéria-prima sofre uma putrefação
uma escolha. Podemos, como na Idade Média, considerá-la e uma calcinação, em preludio a sua transformação em um
uma oportunidade de coroar uma vida inteira e, desta maneira, estado superior. Claro que, neste caso, a matéria-prima é a
dar-lhe um sentido por meio de um ato consciente do instante própria alma que, confrontada com seu futuro, vai sofrer uma
vivido. Podemos, ao contrário, sofrer a situação ou até mesmo transmutação sem precedente. Seguramente, não foi à toa que
fugir. Confrontadas com a AIDS e o prazo derradeiro que C. G. Jung viu nos símbolos alquímicos uma representação
despontava no horizonte, algumas pessoas conseguiram, em daquilo a que ele chamou processo de individuação.
alguns meses, realizar um processo de desenvolvimento interior
infinitamente superior a tudo que haviam vivido ao longo de O título deste capítulo é "Oacompanhamento de agonizantes’.
todos os anos anteriores. No entanto, poderíamos nos perguntar se intervir nos últimos
meses de vida é suficiente. A essa pergunta, a maioria das
Mais precisamente ainda, os cinco estágios, que são
organizações tradicionais e espirituais já responderam,
compostos de denegação, raiva, negociação, depressão e
explicando que a preparação para o bem morrer deve começar
aceitação, correspondem a um processo de despojamento
quando o indivíduo é jovem e saudável.
progressivo da pessoa. A denegação e a raiva, por exemplo,
refletem a reação de um ego terreno que não quer deixar de
Nossa civilização positivista excluiu do campo da ação diária
ser. Como meio humano de desenvolvimento e distinção, ele
toda reflexão sobre a morte. Qualquer um que se dedicasse a
também tem seus reflexos de sobrevivência. Assim como o corpo
uma meditação diá,ria sobre o assunto seria suspeito de ter mente
desenvolve reações de salvaguarda, o eu, diante da perspectiva
mórbida e malsã. Agimos como se a vida e a morte fossem
de seu desaparecimento ou de sua transmutação provisória,
irreconciliáveis, ao passo que a mínima análise superficial
pinoteia. Primeiro, ele age como se fosse eterno, depois se
demonstra que uma se nutre da outra, até mesmo que uma
revolta, negocia e, por fim, se deprecia. O que é válido no plano
tem sua fonte viva na outra. E possível pensar, por exemplo,
físico das células tem sua contraparte no campo psicológico.
no desenvolvimento do corpo, fazendo-se abstração do
A aceitação final traduz a profunda compreensão do metabolismo que assiste a contínua troca das células gastas por
indivíduo do fato de que ele não representa somente um ego novas?
provisório. O ser humano é um algo mais que muitos
agonizantes devem perceber confusamente, mesmo que isto A menos que se comporte como uma inteligência artificial,
seja incompreensível para o intelecto. É por essa razão que a estritamente dedutiva e que nunca se pergunta sobre os motivos
morte pode representar um tipo de iniciação. de seus atos, o ser humano sente necessidade de uma analise
indutiva que o leve às causas e razões primeiras de sua ca m e e o transformará num esqueleto, e v o cê morrerá. Mas reaverá
existencia. As perguntas: “Qual é minha o rigem ? ” e “Q ualserá sua carne, despertará e suas vestes voarão até v o c ê ”. O aprendiz
m eu fim ? " fazem parte das interrogações fundamentais sem xamã penetra assim nos mistérios de sua própria morte e essa
as quais o ser humano se perde no ativismo e na agitação tomada de consciência fará dele o intermediário privilegiado
estéreis. Ao se familiarizar com a idéia de sua morte, ele acha entre os homens e as forças invisíveis da Criação.
seu lugar dentro do universo imenso. Ele pesa o valor de suas
realizações e de seus problemas, dos quais grande parte resulta Também em nossos países ocidentais, certa familiaridade
de seus estados de consciência. O nascimento e o desen­ com a morte era aconselhada antigamente. O pregador jesuíta
volvimento, associados à morte, podem servir de semente ou Bourdaloue escreveu, no século 17: “A lguma vez fizestes sobre
de referência, permitindo relativizar tanto as dificuldades como ela, cristãos, não digo toda a reflexão necessária, mas algum a
as glórias em meio às quais evoluímos. Mas há mais. Acostumar- reflexão? Agora mesmo, em que vos fa lo da m orte, pensais na
se a considerar que cada dia pode ser o último familiariza o eu m orte ou pensais bem dela? Pensais nela atentam ente? Pensais
com a idéia de sua futura viagem. Isso contribui para manter, cristãm ente? Pensais eficazm ente? Mas se não pensais nela, em
sem dramatizações, uma reflexão sobre a ontologia, a ciência que pensais? E se não pensais nela presentemente, quando pensareis
do ser e seu devenir. Não apenas não se trata mais de um ou quem haverá de pensar p or vós? Feliz daquele que não espera
processo mórbido, mas, como explica o professor Louis para pensar nela quando não hou ver mais tem po de fa z e-lo ; feliz
Vincent Thomas: “E absolutam ente correto dizer que se amamos daquele que nela pensa em vida! É assim que a morte, castigo do
a vida mas não am am os a morte, éporq u e não am am os realm ente pecado, será para nós o remédio. Ela entrou no m undo p elo pecado;
a vid a ”. mas se a considerarm os com o os santos, ela nos fa rá entrar, com o
eles, pela graça, na eternidade venturosa que desejo para vós... ”
O interesse de uma concentração na morte encerra, na
verdade, um paradoxo raramente reconhecido: isto traz alívio, Até agora, abordamos o tema do acompanhamento antes
sabor e alegria verdadeira à vida. Meditando regularmente sobre da morte. Esse assunto é habitualmente tratado pela psicologia
sua própria morte, o indivíduo se despoja progressivamente e pela medicina modernas, eventualmente pela filosofia. Em
dos aspectos mais agressivos do ego. Ele enceta, bem cedo, um seguida à morte de uma pessoa, existe igualmente uma
processo de desapego. Mircea Elíade relata que, no xamanismo possibilidade de acompanhamento ou de ajuda espiritual, feito
esquimó, existe um tipo de iniciação pela qual o aprendiz, pelas civilizações tradicionais e, sob forma intemporal, pelas
instruído pelo mestre, passa horas e horas em solidão. Depois, ordens esotéricas.
deve passar pela experiência da morte e da ressurreição místicas.
Ele cai “morto” e permanece inanimado por três dias e três O objetivo de determinadas cerimônias, como entre os dogões
noites, durante os quais é devorado por um enorme urso da África, é convidar a alma do morto a se elevar e deixar este
branco. “Então”, diz-lhe o mestre, “o urso devorará toda sua mundo. Os cantos, as danças e os ritos criam condições
favoráveis a essa elevação. O ambiente dessas práticas se não acredita. De maneira ligeiramente diferente, a pessoa que
exprime no efeito que produzem tanto no falecido como nos sofre pela ausência do morto tende a retê-lo, em vez de ajudá-
vivos. Nesse sentido, elas favorecem o processo de luto da lo. Os ritos e as atitudes externas não fazem nada. Só a intenção
fam ília através do estabelecimento, por algum tempo, de uma secreta conta. E mbora o lu to seja um a realidade inevitável, a
relação simbólica (e, em alguns casos, real) entre os dois melhor atitude poderia ser expressa em poucas palavras, assim:
mundos. “Vá para onde d eve ir, pen etre na luz e na paz, você, que rom peu
os vínculos com este m undo".
No Tibete, para acompanhar o processo, o lama lê ao ouvido
do morto o texto do Bardo Thõdol. Quando não é possível Até hoje em algumas regiões, como era costume antigamente,
fazer a leitura na presença do corpo, ele toma o lugar do corpo faz-se o velório do morto, cujo objetivo, às vezes mal
da pessoa e continua seu trabalho espiritual. No islã, os fiéis compreendido, consiste em criar em torno da pessoa um
lembram ao morto os principais artigos de sua fé, que ele tem ambiente harmonioso e enviar-lhe pensamentos de amor e
de conhecer para responder a um exame post-m ortem . Uma encorajamento. Em todo caso, longe de ser uma prática
história relata que, na morte do Negus da Etiópia, seu amigo, o mórbida, o velório deve servir a esse propósito. Segundo as
profeta Maomé, fez uma prece pela paz de sua alma. Por causa culturas, ele pode ser acompanhado de cantos e salmos, cujos
da distância que separava a Arábia da Etiópia, essa prece foi efeito s calm a n tes sob re as consciências são bem conhecidos.
repetida durante vários dias após o falecimento do Negus. Essa Via de regra, uma vela é mantida acesa por um ou dois dias (o
prática de preces e invocações pela paz dos que partem possui tempo que durar o velório). Durante esse período, entre alguns
caráter quase universal. camponeses, o costume antigo requer que todos os pêndulos
dos relógios da casa sejam parados e os espelhos, cobertos; que
Antigamente, os cristãos mandavam rezar missas durante um ramo de alecrim seja colocado na sala do velório e uma
quarenta dias e, depois, uma um ano após o falecimento. De jarra de água, junto ao leito.
fato, na medida em que a alma da pessoa fica presente de três
a sete dias nos locais onde viveu, os vivos podem favorecer sua Cada um desses sinais altam ente significativos foi
partida graças à sua atitude mental. E óbvio, porém, que uma interpretado de diversas maneiras. As superstições explicam
pessoa totalmente deprimida no momento da morte de um que os espelhos são cobertos para que a alma do morto não
ente próximo fica impossibilitada de ajudá-lo, mesmo que fique angustiada por não ver sua imagem refletida. O recipiente
desejasse faze-lo. O sofrimento extremo pode vir da com água permitiria que a alma se lave antes de partir. A
incapacidade de suportar a ausência ou do ceticismo em relação suspensão do tempo é simbolizada pela parada dos relógios.
à imortalidade. A pessoa que, no mais íntimo de seu ser, não Um tempo que não tem mais nenhuma razão de ser no além,
tem absoluta convicção da imortalidade da alma não pode reino do eterno presente. O espelho coberto representa a
pretender auxiliar ninguém, num plano em cuja existência ela transição da autoconsciência para um outro estado. A água
manifesta a idéia da purificação da alma na ocasião da morte, e
a vela, sua imortalidade. As flores que também são colocadas
(9 âito
na sala mostram o futuro florescimento da alm a, sua
imortalidade e sua regeneração, ou seu retorno cíclico a este
mundo. Seu perfume se espalha no ambiente como a alma em “Ele (ou ela) partiu para sempre, não posso mais m e com unicar
sua onipresença. Seu murchar lembra a impermanencia de nem rir com ele {ou com ela) com o antes. .. Ele (ou ela) não pode
todas as coisas neste mundo. mais m e consolar ou p reen ch er em m im uma insatisfação. Sua
presença deixou de ser, é com o se todo um m undo desm oronasse...
Resta, enfim, apresentar uma última forma de acom­ Procuro minha respiração, ele (ou ela) deixou com o que um grande
panhamento, mais místico, que transcende toda manifestação vazio em mim, o vazio do am or insaciado. Ele (ou ela) podia ser
externa. Consiste em utilizar o poder criador do pensamento, o am igo (ou a amiga), o pai (ou a mãe), o esposo (ou a esposa), o
de acordo com técnicas de meditação. É também possível emitir filh o (ou a filha). Ouem quer ele (ou ela) fosse, a cum plicidade,
forças reconfortantes ao morto. Mas aqui poderíamos fazer a o laço afetivo, consciente ou não, parece rom pido p or essa partida.
seguinte pergunta: é sempre possível ajudá-lo desta forma? Se Terei de m e habituar à nova situação, reconstruir um m undo sem
representamos o mundo como uma hierarquia que tem sua sua presença patente, apesar de que ele (ou ela) form asse boa parte
fonte no centro do Divino e que forma diversos planos até de m eu próprio m undo interior. ”
chegar ao plano terreno, é simples compreender intuitivamente
que os antepassados fiquem simbolicamente em alguma parte A esse período de desordem interior, de habituação e de
entre o ser humano e Deus. Se, para eles, o período “crítico” readaptação à vida, que tem de continuar apesar de tudo,
situa-se nos primeiros dias após a morte, em seguida eles chamamos luto, do latim luctu, que significa dor ou aflição
devem passar a uma condição que ultrapassa as limitações pela morte de alguém. Os povos da terra o expressam de formas
terrenas. aparentemente muito diferentes, até radicalmente diferentes.

Ao longo desse primeiro período, feito de claro-escuro, a Mas, antes de mais nada, num livro decididamente vinculado
família terrena pode contribuir para a elevação dessa alma em à espiritualidade, convém explicar uma coisa fundamental. Se
devenir, porque ela está então participando simultaneamente consideramos o ser humano segundo sua dupla natureza,
dos dois mundos. Uma vez passada essa fronteira, podemos exterior e interior, percebemos que o luto é coisa unicamente
considerar que o inferior não pode mais ajudar o superior, ao da primeira. Quem sente uma carência relativa à separação?
passo que o contrário poderia acontecer. Disso decorre, Quem não pode mais se comunicar? Quem, enfim, está, por
naturalmente, que o acompanhamento após a morte só tem sua vez, sujeito à morte e à transformação? O ser exterior, físico,
razão de ser durante os três ou sete dias que se seguem ao material, é claro! Limitado às percepções dos cinco sentidos,
último suspiro. ele não consegue conceber outras formas de existência. Privado
da direção da dimensão espiritual, a morte representa para ele tive m ed o !”, e eu espanava a terra que havia fica d o sobre seus
um desastre irrem ediável, uma catástrofe cósmica. O o m b r o s " . Se comparamos essas inform ações com as
desaparecimento do outro não manifesta apenas o fim de urna declarações de C. G. Jung, outro grande psicólogo que
relação afetiva, mas aponta-lhe sua própria partida da terra. E explicou que o inconsciente é o reino dos mortos, então
de espantar, então,yque algumas manifestações de sofrimento
,t podemos ter certeza de que o ser interior concebe tão-
sejam histéricas? E a não aceitação que gera o sofrimento, a somente a eternidade.
oposição rígida de um eu exterior exclusivamente entregue a si
mesmo.
O luto do ser físico
O ser interior, por sua vez, não teme a morte. Evoluindo Se não se pode realmente falar do luto no que concerne a
perpetuamente no coração da luz eterna, ele está sempre em dimensão espiritual do ser humano, este capítulo não tem,
contato com a Realidade Suprema. Nada de ausencia de então, nenhuma razão de ser. Isso, se não fosse o fato de ser
comunicação para quem está a todo instante em comunhão necessário (até vital, em alguns casos) compreender o processo
com todas as criaturas visíveis e invisíveis. Nada de carencia de luto pelo qual deve passar o homem físico.
afetiva numa esfera em que o Amor Divino abarca e transcende
todo amor das criaturas. Em suma, o problema do luto Possuímos hoje certa soma de conhecimentos em matéria
definitivamente não se aplica aos dominios do eu interior. Disso de psicologia, os quais levam a crer que o luto seja um processo
decorre que o iniciado saberá elevar-se sobre o sofrimento do necessário ao equilíbrio da pessoa que sofreu uma perda. A
luto, mesmo estando ainda ligado e relativamente sujeito ao sabedoria popular não usa a expressão “estar de luto (por
processo psicológico do ser físico. alguma coisa)”, quando o desejo ou a expectativa de realizar
alguma coisa (uma viagem, uma festa, um projeto, etc.) morre?
Numa formulação totalm ente diferente, mas cujas Isso bem pode sugerir que o luto consiste em admitir separar­
conclusões convergem, o professor Sigmund Freud mostrou se do objeto de seus desejos.
que o inconsciente desconhece a morte. Nos sonhos, ele faz
o morto aparecer, para a pessoa em luto, rejuvenescido e com Quando uma pessoa sofre um acidente cujas conseqüências
roupa de festa, como quem diz: “Veja só, ele está bem vivo, acabam na amputação de um membro (um braço ou uma
jo v em e con ten te. Para m im , o inconsciente, a m orte não existe, perna), a prática prova que essa pessoa passa por um período
os m ortos guardam sua eternidade em m im ”. Um homem disse de depressão, nos dias ou meses que se seguem a essa perda.
o seguinte sobre o período posterior à morte de seu pai: “Nos Os médicos falam do necessário trabalho que o luto pela parte
anos segu intes à sua m orte, tive m uitos sonhos com m eu pai. amputada demanda. A vítima terá de aprender a viver sem
Ele saía de seu túm ulo, usando suas roupas costum eiras, chegava aquela parte de seu corpo e reconstruir uma vida adaptada a
em casa e eu fica v a m uito fe liz d e revê-lo. Ele dizia: “Ah, com o essa ausência.
Não se diz que o pai, a irmã, o filho, etc., são os membros psicólogo acabou desconfiando da existência de um luto mal
de uma família? Se a observação de um periodo de luto é resolvido. Um dia, a mulher perdeu seu animal de estimação.
necessário e útil quando da perda de um braço ou de urna Sofreu então, com uma intensidade desproporcional, a perda
perna, então, por analogia, a perda de um parente próximo daquele pequeno companheiro e se pôs a chorar como uma
implica uma atitude bastante parecida. fonte inesgotável. Surpresa, reencontrou o dom das lágrimas,
perdido há tantos anos. O psicólogo conseguiu faze-la
Eis aqui um outro exemplo: os psicólogos há muito tempo lembrar que, na ocasião da morte de seu pai, ela tinha
vêm observando o estado mental de mães que acabam de trazer reprimido as lágrimas e refreado toda manifestação de luto.
um filho ao mundo. Eles notaram que, ñas semanas ou mesmo O terapeuta estabeleceu, então, um relação de causa e efeito
nos meses seguintes ao parto, algumas mulheres passam por entre a doença e esse luto mal resolvido. Ele viu na reação
um periodo depressivo. Aqui também, podemos levantar a extrema diante da perda do animal um substituto da perda
hipótese de um trabalho de luto. O feto, que foi valentemente do pai. Concluiu, assim, que a cura da paciente só podia ser
carregado durante nove meses, representa uma parte do corpo alcançada pela resolução do luto pelo pai, transferido para o
da mãe. Foi ela que o nutriu. Ele extraía sua vida do sangue e do animal de estimação. Trata-se aqui de um exemplo entre
da respiração de sua mãe. O nascimento da criança corres­ milhares que parecem sugerir que o luto representa uma
ponde, para ela, à perda de uma parte física de si mesma, a energia psíquica que é perigoso negar ou reprimir.
qual, no sentido próprio do termo, deixa um vazio. Via de regra,
o período depressivo não dura muito, mas há alguns casos Na verdade, numa grande parte da Terra, os povos
excepcionais nos quais a mulher, extremamente fragilizada, imaginaram ritos cujo objetivo consistia em facilitar a elevação
chega a suicidar-se. Na verdade, nesta questão como em muitas do morto. Além disso, esses ritos podiam acompanhar o
outras, o ambiente é fundamental na orientação da natureza processo de luto dos que ficavam. Segundo Alexandra David
da experiência. Neel, os tibetanos desaconselham os vivos a chorarem os que
partiram para o outro plano. Eles explicam que o morto,
Temos aqui exemplos de separações físicas comparáveis ao constatando o sofrimento que sua partida causou nos
luto que parecem sugerir a necessidade de levarmos em membros de sua família, tendem a ficar em contato com eles,
consideração esse processo. Conseqüências negativas, que se em vez de se libertarem dos vínculos da terra. Nessa mesma
seguem à sua não consumação após a morte de alguém cultura, os cadáveres das pessoas do povo eram antigamente
próximo, orientam no sentido das mesmas conclusões. Eis um abandonados na montanha, a fim de que os lobos e os rapaces
exemplo real: uma mulher há anos consultava um médico após os devorassem. Longe de mim a idéia de ju lgar tais
outro, porque as glândulas lacrimais não umedeciam mais seus comportamentos. Trata-se apenas de salientar que cada
olhos suficientemente. Quando a medicina alopática se provou cultura definiu seus próprios ritos, às vezes diametralmente
impotente, ela foi consultar um psicólogo. Graças à análise, o opostos aos de outros povos.
Nos países norte-africanos, por exemplo, é de bom tom respeitados. O primeiro dura sete dias; o segundo, trinta e um;
que mulheres carpideiras acompanhem o morto até sua o terceiro termina após um ano do falecimento. Durante o
última morada terrena. Trata-se de mostrar o quanto era primeiro período, o praticante judeu não come carne, não bebe
importante para a familia e o grupo social aquela pessoa que vinho, não trabalha e não se diverte. Ele reconhece que o Eterno
partiu. deu e retomou, e o crente aceita a separação. A comunidade
compartilha dessa dor indo à casa da família enlutada, para
A cultura ocidental pratica o luto há milenios. Seria fonte recitar salmos e consolá-la. Ao contrário dos ritos cristãos, o
de desequilibrio para a pessoa no outro plano, quer se goste caixão nunca entra na sinagoga e os ofícios regulares não são
ou não desse costume, agir como se ela não existisse mais. Nós alterados. No momento do enterro, o viúvo ou a viúva recita a
não somos tibetanos. No entanto, é necessário insistir prece Kaddish. Na verdade, ela é recitada durante todo o tempo
veementemente no fato de que luto e lágrimas não são, ipso do luto. No dia do aniversário do falecimento, um ofício
fa cto , sinônimos de sofrimento. O indivíduo esclarecido convive religioso é realizado no cemitério.
com os processos inerentes ao seu ser físico, mas não é
prisioneiro deles. Ele não rejeita o processo de transição ✓da Há um determinado número de costumes que, tendo o
alma, que implica o desaparecimento do corpo físico. E a morto como destinatário, tem por missão ajudar os vivos a
negação que gera a dor. Para usar uma imagem: o ser interior realizar sua própria transmutação. Na maioria das culturas,
observa de cima as reações do ser exterior, mas não participa efetua-se uma toalete, embora inicialmente fosse apenas uma
nelas forçosamente. prática necessária à manutenção da higiene do corpo. Em
alguns casos, a toalete é feita por pessoas especializadas nessa
função. No islã, é obrigatório banhar o corpo três vezes. O
Alguns ritos de luto e seus significados primeiro banho deve ser feito com uma mistura de água e folhas
No Ocidente, onde a morte representa normalmente o de bagas; o segundo, com uma mistura de água e cânfora; o
oposto da vida, a pessoa em luto veste-se de negro, o que já terceiro, com água pura. O viúvo ou a viúva pode executar os
não acontece na China, por exemplo, onde os habitantes se banhos. Assim, Ali, genro do Profeta Maomé, banhou, ele
vestem de branco. Entre os judeus ortodoxos de hoje, a prática próprio, sua esposa.
consiste em rasgar uma ponta da camisa, símbolo do corte do
vínculo familiar que unia o morto e os que estão de luto por Em outras culturas, costuma-se vestir o cadáver com suas
ele. Essa ação, aliás, tem origem na prática dos hebreus do melhores roupas, maquiá-lo e até mesmo, como na índia, cobri-
Antigo Testamento, que rasgavam suas vestes. Entre os judeus, lo de flores. O propósito de todas essas ações consiste em
muitas práticas bem diferentes são utilizadas, como aquela de apresentar o morto numa atitude jovial e bela que evoque a
acender uma vela à cabeceira do leito do morto, durante sete imortalidade. Como vimos antes, hoje em dia, nos Estados
dias. Quando alguém morre, três períodos de luto são Unidos, não raras vezes o corpo é embalsamado e igualmente
maquiado, visando ocultar a morte. Mais que isso, não se trata que sentiram, quando crianças, por terem sido impedidas de
mais de sugerir a imortalidade, mas de negar a morte. Em outras ver o cadáver. Inversamente, outros reclamam de terem sido
partes, os cantos, as salmodias e as músicas, quando utilizados, obrigados a ver uma coisa que lhes dava medo. Alguns dirão
servem tanto para convidar o morto a se elevar às esferas etéreas que a experiência pode ser cruel. A esses, respondo que
quanto para amenizar a tristeza dos que ficam. numerosas experiências provam que ocultar a morte não facilita
o luto nem a compreensão da criança. Ela pode, inclusive,
Os psicólogos conseguiram pôr em evidência o fato de que conservar as seqüelas disso por muitos e muitos anos. Na
não ver o corpo do morto pode representar, para a família, verdade, na maioria dos casos, a criança sofre silenciosamente
uma dificuldade em reconhecer a morte. Assim, crianças que quando lhe ocultam a realidade. O silêncio dos adultos a
perderam os pais num acidente de avião sofreram as seqüelas emparedam dentro de seu próprio luto. Para ela, a morte
psicológicas muitos anos mais tarde. Os corpos dos pais nunca representa uma noção muito mais vaga do que para o adulto.
puderam ser encontrados. Para essas crianças, a ausência dos Em conseqüência, é muito difícil para ela separar-se do ser
pais era algo irreal e sem vínculo com seu desaparecimento. A amado quando lhe impedem todo contato com o morto. Ao
morte ficou no campo do fenômeno teórico, capaz de deixar a passo que, bem preparada (isto é, deixada de fora das angústias
porta aberta a todos os fantasmas possíveis. Em alguns casos dos adultos), a visão do morto pode ajudá-la em seu
de catástrofes aéreas ocorridas em países estrangeiros, as amadurecimento. Com a condição, claro, de que a deixem
autoridades locais chegaram a financiar a viagem dos parentes escolher ver ou não. Mais uma vez, da atitude do ambiente
para que eles vissem com seus próprios olhos os escombros do dependerá, via de regra, a reação da pessoa em questão. A
avião. Todo esse “ritual” visava ajudar o processo de luto. prática mostra, com efeito, que, diante da morte, o ser humano
se apoia geralmente na presença da coletividade, que a ajuda a
Em alguns países, como a índia, o morto é transportado suportar a provação. A outra face dessa moeda é que essa
em caixão aberto ou sobre esteira, à vista de todos. Na Idade mesma coletividade tem um peso suplementar que pode
Média, procedia-se da mesma maneira na Europa. Não raro, influenciaros comportamentos individuais.
cruzava-se com uma procissão indo para o cemitério. Ela
acompanhava o corpo de uma pessoa, à vista de todos. Em Voltemos à questão da visão do corpo. Hoje, em que
outras palavras, a morte não era ocultada. Todo mundo podia, ocultamos a morte nos países ditos “civilizados”, imaginar um
portanto, entregar-se a uma meditação sobre a impermanência cortejo fúnebre acompanhando um caixão aberto, com o corpo
das coisas, ao cruzar com um daqueles cortejos. do defunto à vista de todos, seria considerado indecente.
Preferimos viver o fenômeno por procuração, nas telas da
Por que é que hoje não se permite que uma criança veja, televisão. Jornalistas, à guisa de sensações fortes, não hesitam
por exemplo, o corpo de seu avô, quando ela manifesta esse em filmar pessoas morrendo, no próprio local dos acidentes.
desejo? Muitos testemunhos de adultos falam das frustrações A televisão se deleita com imagens de chacinas. Mas isso é uma
apresentação da morte, a um tempo, disfarçada e apelando ao que ela deixe a pessoa em paz ou então que compartilhe do
voyeurismo do telespectador. Essa, sim, é uma morte muito seu processo. Freqüentemente, porém, o espírito vivificante
“católica”, que pode ser mostrada sem que ninguém levante foi substituído pela letra morta e essas

práticas tornaram-se
as verdadeiras questões. Cruzar com um caixão aberto, na obrigações cujo sentido se perdeu. E tão espantoso que nosso
esquina de uma rua, eis o que levaria o ser humano às suas século rejeite as manifestações de luto? Em alguns países, como
autênticas interrogações. Por que a vida, se devo acabar entre também na França do século 19, as regras a serem respeitadas
quatro pranchas de madeira? Mas poucas pessoas querem se eram tão estritas que quem encurtasse seu luto tornava-se
questionar sobre tais assuntos, numa época em que o ativismo suspeito de falta de respeito. Já quem o prolongasse demais
predomina. Preferimos nos deixar entorpecer pela ação era tido como marginal, mórbido ou mesmo agressivo para com
desenfreada. A verdadeira preguiça do Ocidente manifesta-se a coletividade. Por sua vez, as mulheres que voltavam a se casar
da seguinte maneira: agir incessantemente do lado de fora, a rapidamente eram tachadas de “viúvas alegres”, de pouca
fim de evitar uma interiorização meditativa sobre o sentido virtude.
último da vida. Vivemos um período de tabu da morte. A visão
crua de um cadáver é considerada obscena (salvo na televisão). Um exemplo da rigidez de algumas práticas. Um africano,
No que se refere a esse assunto, preferimos nos comportar que não ia ao seu país há muitos anos, foi até lá por ocasião do
como as avestruzes. Até quando, o cortejo banalizado? falecimento de seu pai. Para seu grande desespero, não pôde
falar com sua mãe nessa época, pois ela tinha de observar a lei
Assim também, as manifestações de luto estão ficando cada do silêncio por um longo tempo. Ele teve de fazer novamente
vez mais discretas e se tornando sinônimo de tradições a longa viagem Europa-África alguns meses mais tarde, para
ultrapassadas. No entanto, antigamente na Europa (e ainda finalmente poder conversar com sua mãe. Segundo sua
hoje, algumas vezes), mandava-se celebrar uma missa no oitavo declaração, a situação fora verdadeira e horrivelmente
dia, no quadragésimo dia e no primeiro aniversário de frustrante. Aí está uma aplicação estúpida e dogmática de uma
falecimento da pessoa. Observava-se também um período de prática cuja nobreza de espírito é inquestionável.
quarenta dias de luto, durante o qual a família vestia-se de
preto. O numero quarenta representa um ciclo completo de Mas será que devemos rejeitar as tradições? Certamente
afastamento, purificação e preparação, antes de se reintegrar à que não, pois elas têm algo a nos ensinar. O luto representa
luz. A mulher muçulmana tem a obrigação de observar o luto um período em que aquele que fica vai poder interiorizar a
por seu marido até quatro meses e dez dias. Na África negra, presença do morto, a fim de faze-lo passar do mundo externo
durante o período dos quarenta dias, o viúvo ou a viúva era até material ao seu mundo interno subconsciente. “Os mortos vivem
mesmo proibido de falar. Há um profundo espírito presidindo e têm um a parcela de eternidade em nós". Mas, para que esse
a essas práticas: observar um período de adaptação à nova processo possa se realizar, o vivo deve admitir o desapa­
situação e mandar um sinal à sociedade circundante a fim de recimento físico e a sobrevivência, pelo menos, na memória.
Trata-se de uma espécie de alquimia sutil. A pessoa que perdeu No entanto, há milênios, os místicos foram mais longe ainda.
um pai precisa se tornar seu próprio pai. Em outras palavras, a Afirmaram, e continuam afirmando, que a consciência humana
dimensão paterna deve se exprimir nela mesma. Há um filme não passa de uma ínfima parcela de uma consciência
excelente que ilustra esse fenômeno, “A Históna Sem Fim”, que infinitamente mais vasta, que interpenetra todos os seres vivos.
é a história de um menino que perdeu sua mãe e cujo mundo A consciência objetiva é, na verdade, apenas uma das muitas
interior psicológico desmorona, devorado pelo nada. Fantasia formas de expressão dessa Consciência. E sua ponta visível e, de
(o nome desse mundo) só consegue se salvar quando o menino algum modo, consciente de si mesma. Ora, esse imenso campo
dá o nome de sua mãe à im peratriz, que representa a de consciência universal constitui, a um tempo, o local de
personagem principal. O filme, baseado num romance, é bem elaboração do futuro e a memória do passado, fundidos num
mais rico que isso, mas, em síntese, o que ele descreve, de modo eterno presente. Em outras palavras, determinados níveis da
bem simbólico, é um processo de luto. A criança só consegue consciência humana teriam acesso tanto ao passado como ao
conservar seu equilíbrio quando assimila sua própria mãe a futuro. A consciência do morto se incorpora a esse campo de
uma personagem que representa uma dimensão fundamental consciência mais vasto. Ou seja, os vivos estão a todo instante
da psique. Talvez seja muito interessante comparar essa em contato com os mortos, sem o saberem. Nós acreditamos
alquimia a determinados ritos mortuários antropofágicos. Entre que somos nós mesmos a todo instante, afetados unicamente
alguns povos da Nova Guiné, por exemplo, come-se o cérebro pelos eventos do mundo objetivo. Em parte, isso é falso. Um
do morto, com a idéia de assimilar suas características. Na pouco de humildade nos ajuda a perceber que podemos ser
América do Sul, o povo dos arvaques reduz a pó os ossos de afetados por outros níveis de manifestação, cuja existência nem
seus chefes. Em seguida a essa operação, as mulheres e os sempre percebemos claramente. A consciência do indivíduo está
guerreiros da tribo fazem uma infusão com o pó e tomam a a todo instante se relacionando com a de toda a coletividade
beberagem, guardando assim em suas entranhas aqueles que viva, mas também com a dos que “estão dorm indo”. Isso não
foram, em vida, o objeto de sua afeição. significa que sejamos marionetes dessas forças, mas sim­
plesmente que elas fazem parte dos elementos que se apresentam
Para o místico, a idéia de que “os m ortos vivem e têm uma à nossa consciência, assim como toda e qualquer informação
p a rcela d e etern id a d e em n ó s” representa uma realidade. objetiva, que podemos ou não levar em consideração.
Realmente, quem pode dizer que nosso campo de consciência
se limite às percepções recebidas por nossos cinco sentidos e O processo de luto, nesse quadro que acabamos de
aos pensamentos elaborados dentro de nosso cérebro, apresentar, é duplo. Prim eiram ente, consiste em uma
qualificado de superior? A consciência objetiva, a psicanálise habituação ao desaparecimento do ser físico do morto e dos
já demonstrou que representa somente uma pequena parte da contatos afetivos que o uniam ao enlutado. Em segundo lugar,
nossa consciência real. E teve de lutar muito, no início do século a questão é admitir a passagem do morto para um plano de
20, para fazer com que essa idéia revolucionária fosse admitida. consciência diferente, no qual participam mortos e vivos, ainda
que num plano subliminal. Por conseguinte, "os mortos têm uma acaba de morrer, costuma-se observar uma série de cerimônias
parcela de eternidade em n ós”. Os psicólogos, via de regra, bastante codificadas e de preces. Sacrifícios de animais são
ocupam-se apenas da primeira parte do luto, em casos de realizados em honra do morto, em função de seu nível social.
situações patológicas. A segunda parte, até o presente, recebe o Os membros da tribo podem também levar-lhe alimentos.
acompanhamento e o apoio dos rituais religiosos ou es­ Trata-se de entrar em acordo com ele, através dessas ações, e
piritualistas. Devemos admitir que, nos dias atuais, mais e mais cair em suas boas graças. No caso de o protocolo sofrer algum
pessoas negligenciam ou mesmo negam essa segunda fase. impedimento, esses povos temem que o morto se transforme
Poderia isso explicar o tabu que hoje envolve a morte? Sem o em demônio, venha assombrar os vivos e lhes traga doenças e
reconhecer, nossa sociedade está sofrendo de um luto insatisfeito até a morte. Tudo isso diz respeito ao primeiro degrau das
- o luto por milhões de homens e mulheres mortos nas guerras crenças sobre a sobrevivência da alma e a possível inter-relação
ou de velhice e doenças. Um luto não é resolvido completamente entre os dois mundos. Contudo, podemos tirar daí um
se rejeitamos a idéia de uma existência post-m ortem . Um dos ensinamento mais sutil referente ao processo do luto.
sinais de luto patológico consiste em negar a morte. Não é
justamente isso que sonha em fazer nossa sociedade, a ponto de Se fica uma controvérsia afetiva entre a família e aquele que
os mais extremistas pensarem em congelar seus corpos na parte, essa pendência pode perseguir o vivo por um longo
esperança de que a ciência vá ressuscitá-los um dia? período, gerando remorsos, tristeza e frustrações. Quando
Costuma-se dizer que perder um parente torna o indivíduo alguém tem de partir (e os acompanhantes bem o sabem), existe
adulto. Isso quer dizer que a criança que há dentro de todo um interesse recíproco em acertar velhas contas, no sentido
homem ou mulher deve procurar em si mesma a força de viver positivo. Caso contrário, o morto pode se transformar num
por seus próprios meios. Ela deve se tornar o pai, a mãe e “toda demônio psicológico para quem fica. Certa mulher declarou:
a santa família”. Nesse sentido, o primeiro luto por um parente "Minha descoberta do principio de reencam ação m e ajudou m uito
constitui uma espécie de iniciação, na medida em que faz a quando m eu filh o morreu. Mas eu conservo um arrependim ento
morte entrar bruscamente no campo da consciência. O evento [que a fazia sofrer visivelmente]: que ele tenha partido num
coloca cruelmente o ser humano frente a frente com a realidade m om en to em que estávam os em co n flito ”. No momento da
que dificilmente ele conseguiria continuar negando. Daí em partida, é preciso que a família honre a memória do falecido e
diante, passa a existir, para o enlutado, um antes e um depois cumpra as cerimônias honoríficas, a fim de que não subsista
da separação que geralmente não o deixa incólume, mesmo nenhum sentimento de ter esquecido alguma coisa. “Só se
nos casos em que a harmonia tenha prevalecido. morre uma vez”, diz o provérbio popular. Razão de sobra para
que tudo seja consumado e que se parta em harmonia. Uma
Da parte de alguns povos animistas, encontramos práticas única chance é dada para que as coisas sejam feitas
complementares em numerosas regiões da terra. Elas corretamente. Senão, a separação acontece como dois velhos
conservam uma função de auxiliar no luto. Quando uma pessoa amigos que se separam sem dizer o quanto se amam.
Uma outra função dos sinais que cercam o luto consiste em Não obstante, o papel dos ritos de luto consiste em reconciliar
restabelecer a harmonia onde a morte rompe a ordem das familiares e amigos com a vida, e a experiência demonstra que
coisas. A morte, para o ser físico, marca a ruptura de todos os o falecimento de uma pessoa pode até ajudar os que ficam a
vínculos e a intrusão do relativo caos na consciência dos vivos. obterem certa paz.
O luto, por seus ritos próprios, tende a reinstalar pouco a pouco
O estágio seguinte vê a emergência de um tipo de depressão.
a ordem. Depois do enterro, em geral a família se reúne para
Os prantos ajudam então a exprimir a emoção e o vazio interior.
uma refeição ritual. O falecimento de uma pessoa tende a cortar
Mas, como na maioria das depressões, o estado emocional se
o apetite e imobiliza os vivos na própria atitude dos mortos.
torna instável e versátil, com mergulhos no sofrimento seguidos
Pelo alimento, demonstra-se que a vida deve continuar e reaver
de relativas calmarías ou mesmo euforias efêmeras. Perda de
seus direitos. Alimentar-se é uma das funções primordiais, que
apetite ou mesmo anorexia pode acompanhar o fenômeno, e o
conserva a pessoa em vida e chama-a para a realidade física e
sono se torna de má qualidade. A obsessão pelo morto pode
cotidiana. Quando a refeição é feita em conjunto, o indivíduo
fazer emergirem sonhos; é o inconsciente indicando ao
é posto ante seus deveres sociais, reforçando os laços que unem
sonhador sua compreensão pessoal da morte. Em alguns casos,
a coletividade confrontada com a morte de um dos seus.
a pessoa pode desenvolver um sentimento de culpa: "Porque
eu não estava lá na hora em isso a con teceu ? Com certeza, eu
No momento da divulgação de um falecimento, a pessoa
poderia ter a ju dado!”. Assim confessou uma mulher, anos
que recebe a notícia pode passar por diversas fases de
depois da morte de sua mãe: "Eu m e culpo p o r tê-la deixado
conscientização, análogas àquelas pelas quais passa a pessoa
partir num hospital, tão sozinha!”. Na pior hipótese, a seguinte
ao saber que está condenada. Primeiramente, todo seu ser se
idéia pode assaltar o enlutado: "Por que f o i ele (ou ela) quem
orienta para uma denegação do acontecido: "O quê? Não é
partiu, p orq u e não eu ? ”. A culpabilidade pode resultar também
possível fu la n o ter m orrid o!”. Receber a notícia da morte de
de relações ambíguas, baseadas em amor e ódio simultâneos
uma outra pessoa significa considerar a sua própria. Mas como,
pelo agonizante. O tempo e a verbalização do sofrimento
se todo mundo acha que seu ser físico é imortal! E de espantar,
permitem o desapego necessário ao retorno à normalidade e à
então, que a primeira reação seja tingida de incredulidade?
evacuação das energias psíquicas negativas acumuladas. O
Mas, em seguida, podem vir a rejeição e a cólera. Então, Deus
emprego de pensamentos positivos, apoiados no reconhe­
e todos os santos da terra serão amaldiçoados, e às vezes até o
cimento de suas próprias imperfeições (no caso de se ter tido
próprio morto que tão covardemente nos abandonou. E então
pensamentos de raiva em relação ao morto), é um recurso que
que a morte caótica pode assumir toda sua dimensão, caso a
não deve ser negligenciado.
rejeição e o sofrimento que a acompanham adquiram uma
intensidade insuportável. Em casos extremos, algumas pessoas Um dos lutos mais difíceis de assumir é, sem dúvida, o da
chegaram até mesmo a cair em coma profundo por várias criança falecida. Insuportável, porque a criança representa uma
semanas, a fim de esquecer sua dor “cortando os circuitos”. dupla promessa. Primeiro, a de vê-la crescer, conversar com
seus pais e realizar a obra que constituirá sua vida. Depois, Essa prática remonta, na verdade, aos antigos arianos, que
uma promessa de imortalidade para seus pais. O filho praticavam o culto dos manes (os manes eram as almas dos
representa em geral uma dádiva que os pais dão ao mundo. ancestrais), cujo sacerdote do lar era o primogênito da família.
Não é incomum, aliás, vê-lo seguir as pegadas de seus genitores, Naquela época, os mortos despertavam medo. Era preciso,
contribuindo assim para uma forma de imortalidade. Quando então, cativá-los. Essa “religião dos ancestrais”, porém, visava
a progenitura, carne de nossa carne, desaparece... nada mais também vincular os vivos a uma longa linhagem. Assim, graças
resta. A frustração é total; o sentimento de injustiça absoluta; aos sacerdotes dos manes, a família podia se sentir um produto
o esvaecimento da vida, flagrante. Ao longo de diversas dos que haviam partido. Uma grande cadeia de solidariedade
conferências, tive a chance de encontrar várias mulheres que unia então os vivos e os mortos.
perderam um filho. Nenhuma me pareceu ter ficado incólume.
Não representaria a forma atual de pesquisa genealógica
Ninguém está verdadeiramente preparado para esse tipo uma necessidade inconsciente de vinculação do indivíduo aos
de provação, pois num país em paz (No Oriente Médio, em seus ancestrais e, por meio deles, a Deus? Hoje, alguns velhos
contrapartida, famílias inteiras foram dizimadas pela guerra) álbuns de fotos da família preenchem uma relativa função de
via de regra são os avós que partem primeiro. O falecimento “altar dos ancestrais”.
de um descendente representa uma inversão da ordem
“normal” das coisas. Quando um ancião abandona o navio para Pode ser útil conservar em casa um local consagrado à
ir nadar nas águas celestes, é sempre possível invocar a memória dos ascendentes: isto ajuda no processo do luto. Aqui
fatalidade e a sucessão natural dos eventos da vida. Aqui, vão, então, algumas dicas para se construir esse altar:
nenhuma fatalidade desponta no horizonte e as pessoas podem,
então, revoltar-se à vontade. — Arrume uma mesinha redonda ou quadrada, com mais
Já que tocamos na questão dos anciões, talvez seja útil notar ou menos quarenta centímetros de lado (conforme você
que, em muitos lugares do globo, as pessoas ainda mantêm, na preferir o símbolo ou a forma do círculo ou do quadrado).
/
intimidade do lar, um altar dos ancestrais. E o caso, em especial,
— Coloque sobre ela suas fotos preferidas de seus parentes
do Japão e da China. Os japoneses usam o pequeno altar
falecidos.
budista, que abriga os retratos dos últimos falecidos e o livrinho
onde está escrito os nomes de todos os ancestrais falecidos. — Coloque também um castiçal com uma vela, que você
Parentes e amigos vão ali saudar essas almas, para as quais acenderá em uma ou mais ocasiões específicas do ano (no Dia
contam-se os últimos acontecimentos que envolveram a família. dos Mortos, se você é cristão).
Em alguns restaurantes vietnamitas, pequenos altares com
oferendas são dedicados aos ancestrais. Ali se acham também — Você pode ainda acrescentar objetos especiais que
as fotos dos avós. pertenceram a eles, flores e símbolos religiosos de sua escolha.
— Você poderá se dirigir a esse local, que foi consagrado consideraram a instauração de rituais laicos, cujas formas
por sua atitude de respeito, toda vez que sentir necessidade. E poderiam se basear nas grandes leis da psicologia. Mas, na
você que dará a esse local todo seu valor. Nunca deixe ninguém verdade, para essa pessoa, o retorno às contingências da vida é
profaná-lo. Essa prática pode ajudar muito na ocasião de um que vai anestesiar o sofrimento. Quanto mais identificamos as
luto. pessoas com seu corpo físico e as reações fisicoquímicas de seu
cérebro, mais completo torna-se para nós o seu desaparecimento.
Não raras vezes, as pessoas vão aos cemitérios para conversar
com a pessoa ausente (mas fazem isso mesmo?). Sem o saber, Parece que as mulheres atravessam melhor que os homens
estão aplicando a uma velha prática milenar, datando da época os processos de luto, porque elas falam mais espontaneamente.
em que se acreditava que as almas evoluíam embaixo da terra. O homem também engole mais suas lágrimas, porque em geral,
Mas o cemitério muitas vezes fica numa cidade distante, desde a mais tenra infância, ele aprende que homem que é
principalmente no caso em que a família tenha se mudado para homem não chora. No entanto, hoje sabemos que o riso, a
outro país. O altar dos ancestrais, por sua vez, tem a vantagem verbalização, a raiva e as lágrimas são alguns dos meios de
de ficar no lar, ao alcance da mão. Sua presença ou sua expurgar uma energia psíquica que, sem isto, tomaria caráter
confecção pode ajudar no trabalho do luto, mas algumas destrutivo. Então, chore o quanto quiser, escondido ou às
técnicas de visualização criativa podem igualmente contribuir claras. A Dra. Elisabeth Kübler-Ross, para ajudar a solucionar
para minimizar o drama de um falecimento difícil. situações de luto não resolvido, dava uma almofada a cada
participante de seus seminários, para que ele descarregasse sua
Uma pessoa confessou que, depois da morte de seu pai, violência no pobre objeto, socando-o. Isso, no fim, desembocava
não parava de pensar nele, até chegar à obsessão. Foi-lhe então nos gritos e nas lágrimas.
aconselhada a imaginar, durante várias noites seguidas, seu pai
se elevando numa grande luz, e a se despedir dele. Aos poucos, Uma psicóloga, que cuidava de uma unidade de tratamentos
os pensamentos obsessivos desapareceram, dando lugar às paliativos, disse que às vezes tinha a impressão de que se poderia
atividades cotidianas. afogar nas lágrimas dos que ficavam. A cascata de lágrimas
podia dar a sensação de ser inesgotável, mas, na verdade,
Com toda certeza, o luto de uma pessoa que não crê na segundo ela, havia sempre um fim para as lágrimas aliviadoras.
sobrevivência da alma, de qualquer forma que seja, será sempre Os que sofrem sem possibilidade momentânea de consolo são
mais duro de viver. Para ela, a morte significa a ruptura os que se recusam a chorar, mesmo sentindo necessidade. O
definitiva de uma comunicação e de uma presença. “Nunca choro representa uma função psicológica de descarga. Seria
m ais” torna-se, então, sinônimo de vazio insondável e de tão tolo querer passar sem ele quanto privar-se de rir. Isso faz
angústia. Assim, tudo o que puder colocá-la em contato com o lembrar o famoso debate: “Jesus ria?”. Debate que, no caso do
cotidiano será vital para ela, tanto que alguns estudiosos pranto, não teria razão de ser, visto que a passagem do Novo
Testamento sobre a ressurreição de Lázaro mostra Jesus tronco comum e geral (se bem que não exaustivo) dos costumes
chorando a sina de seu amigo, que ele vai “ressuscitar” alguns imaginados pelo ser humano, no curso dos milênios. Podemos
instantes depois. facilmente deduzir daí que, se encontramos essas constantes
tão amplamente difundidas, é porque provavelmente possuem
Contrariamente a uma idéia muito difundida, é proibido, um sentido. Poderia significar também que elas são úteis a todo
no islã, anunciar um falecimento bradando pelas ruas e às homem e a toda mulher no processo de amadurecimento de
portas das mesquitas, e se derramar em lamentações. A seu ser, ao se confrontarem com o falecimento de um ente
propósito, não se deve confundir a cultura árabe com a querido.
muçulmana. O próprio Maomé assim se expressou: “A m orte
sofre gritos e lam entações que o vivo solía por causa déla [ ...] A 1. A primeira atitude de luto consiste em observar um tempo
m orte chorada em voz alta recebe um castigo equivalente”. Numa de habituação à ausência do outro e ao cultivo de sua memória.
outra ocasião, acrescentou: “Separo-m e de toda m ulher que solta Esse período varia, segundo os povos, de vinte e quatro horas
gritos, arranca os cabelos ou rasga as vestes”. Um pouco de a três anos. Alguns casos extremos podem durar toda a vida.
dignidade, que diabo! E preciso que se diga que, na época do
profeta, o povo tinha urna forma um tanto escandalosa de 2. Esse tempo algumas vezes é acompanhado da ação que
manifestar sua dor. Algumas pessoas urravam, rasgavam as consiste em raspar os cabelos e a barba ou, ao contrário, deixá-
roupas, rolavam pela terra e cobriam o rosto com terra ou cinzas. los crescer, bem como às unhas.
Outras chegavam até a ficar sem comer por um longo tempo,
3. Uma roupa especial, preta ou branca, indica à comu­
proferindo queixas dirigidas a Deus.
nidade que a pessoa está de luto; em alguns casos, usam-se
roupas velhas. Em alguns países orientais, proibia-se
No entanto, o muçulmano não é efetivamente proibido de
antigamente o uso da seda. Em culturas mais tribais, é costume
chorar. Quando seu filho morreu, Maomé declarou: “Os olhos pintar uma parte do rosto ou do corpo.
vertem lágrimas, o coração está pesado, mas nada dizem os que
ofenda Deus. Estamos m uito aflitos com tua perda, Ibrahim l”. 4. Um período de jejum pode ser observado; assim, o vivo
E por ocasião da perda de sua neta, respondeu assim aos se associa, por algum tempo, ao morto, pela suspensão de uma
companheiros que o repreenderam por chorar: “Estas são as importante atividade vital. Contudo, enormes banquetes
lágrim as da com paixão que Deus coloco u no coração de seus podem se seguir a esse jejum ou, na ausência deste, encerrar
servidores. Deus se com padece dos que têm com paixão”. as solenidades funerárias. '

Agora é possível apresentar uma espécie de síntese dos 5. Cerimônias são realizadas mais ou menos repetidamente,
diferentes ritos de luto que podem ser encontrados por todo o em períodos determinados (após três dias, sete dias, quarenta
planeta, com infinitas variantes. O que se segue representa o dias, um ano, etc.).
6. Via de regra, a comunidade participa dos rituais, 8. Outro ponto comum, no que tange o luto, consiste em
principalmente no caso de falecimento de pessoas importantes, erigir um monumento concreto em memória do morto. Esse
quando toda a coletividade fica de luto. Os enterros católicos tanto pode ser o túmulo como a foto colocada no altar budista.
antigos contavam com a participação de uma importante
personagem eclesiástica. Nos países ortodoxos e árabes, usava- 9. E, é claro, há as diversas manifestações do sofrimento,
se o serviço das carpideiras. mais ou menos reprimidas segundo as culturas. Os judeus,
por exemplo, recusam-se a ocultar essas emoções fundamentais,
7. Em datas regulares, festas são dedicadas à comemoração enquanto os tibetanos são mais inclinados a abafá-las.
da memoria dos mortos. Trata-se aí, de maneira mais ampla, Em nove pontos, ficamos diante da grande maioria das
do culto dos mortos. O nosso “Dia de Todos os Santos”, práticas relativas ao luto. Sem sombra de dúvida, as variantes
seguido do “Dia dos Mortos”, representa essa prática. Se, por são inumeráveis. Mas com um pouco de perspicácia, é possível
um lado, a morte se tornou assunto tabu nas sociedades inseri-las quase sistematicamente num desses nove pontos.
modernas, por outro, nenhuma coletividade consegue esconder Também é verdade que algumas sociedades suprimem algum
totalmente o fenômeno. Sempre haverá um período especial desses aspectos (entre nós, o luto não causa nenhuma reação
do ano durante o qual o contato entre os dois mundos será na pele...), enquanto outras os incrementam. Até a metade
tolerado (ainda que considerado irracional). Nessa época, aliás, do século 20, quando um homem morria na índia, sua viúva
os anglo-saxÕes festejam o H alloween. Uma bela oportunidade tinha de se jogar sobre a pira onde o cadáver estava se
de ver pessoas fantasiadas de esqueletos perambulando pelas queimando.
ruas. Na realidade, o “Dia de Todos os Santos” e o H alloween
têm origem na festa celta de Samain, de que já falamos. O ano A essa altura, poderíamos nos fazer a seguinte pergunta: se
novo dos celtas caía no dia Ia de novembro, e a noite a alma possui o dom da imortalidade, poderia aquele que
representava um período durante o qual o mundo dos vivos e passou para o outro lado do espelho ajudar os vivos em seu
o dos mortos podiam se comunicar. período de luto? H. Spencer Lewis aborda o assunto no livro
“As Mansões da A lma”. Explica ele que o morto, por alguns
Se a religiosidade parece estar em baixa na era moderna (82% dias, permanece junto a seu corpo e assiste às cenas do luto da
dos franceses disseram-se católicos, em 1989, mas apenas 12% família. A única coisa que ele pode fazer então é enviar ondas
deles disseram ser praticantes), parece que o culto dos mortos de conforto aos seus entes queridos. Os vivos recebem
conserva um valor inabalável. Para se convencer, basta lembrar impressões sob forma de intuições ou de pensamentos, que
os escândalos que se seguiram às diversas profanações de eles acham que são seus, mas que são inspirados pelo morto.
túmulos, em Carpentras e outros lugares. O espírito religioso,
que começou provavelmente com o culto dos mortos, conserva, Essas afirmações de um grande iniciado poderiam, talvez,
portanto, este culto como um último baluarte na era moderna. suscitar riso nos livres pensadores. Não é, porém, incomum
encontrar pessoas muito racionais contando que, na ocasião da obsessão de uma consciência que exterioriza seus desejos,
em que perderam um amigo, ao entrarem na sala onde o corpo até a alucinação. A realidade está longe de ser simples nessa
estava, sentiram ali uma poderosa presença, que eles atribuíram área, como em tantas outras. Uma prova? A história relata que
ao amigo falecido. Viúvos e viúvas também costumam contar uma das canções de Dante Allighieri (autor de “A Divina
que sentiram, por alguns dias, a presença de seu cônjuge junto C om édia”) foi encontrada por seu filho, graças a um sonho.
a eles. Nele, ele viu seu pai indicando-lhe um quadro atrás do qual
ele próprio havia escondido o texto, antes de morrer. Arquivos
C. G. Jung, em sua autobiografia, relata sua própria de criminologia também reportam histórias em que o assassino
experiência: "Naquela noite, não conseguia dorm ir epensava na foi apontado por sua vítima durante um sonho ou de uma visão
m orte súbita de um am igo que tinha sido enterrado na véspera... intencional, recebido por um parente.
De repente, tive o sentim ento de que ele estava em m eu quarto.
Tive a impressão de que ele estava ao p é da m inha cam a e m e
pedia para acom panhá-lo. Segui-o em imaginação. Ele m e levou, Luto e simbolismo astrológico
então, para fo ra da casa... a té chegarm os à casa dele. Ele m e fe z O tema da morte expressa-se na astrologia através de três
entrar em seu escritório. In dicou-m e o segundo volu m e de uma signos: peixes, câncer e escorpião (todos signos de água). O
série de cinco, encadernados em verm elho, que se achavam no alto tema do luto, por sua vez, tem uma relação com os signos de
d e um a estan te em sua b ib lioteca . D epois disso, a visão se câncer e peixes. Câncer está relacionado ao passado, à história,
esvaneceu. ” à ancestralidade. Encerra, portanto, o culto dos ancestrais e a
memória. Ocupando a posição mais baixa do Zodíaco, câncer
“Esse evento p areceu -m e tão estranho, que, na manhã seguinte, simboliza a tumba, tão associada ao diálogo com os mortos e à
f u i a té a casa da viúva de m eu am igo e p ed i-lh e que m e deixasse interiorização no recolhimento. Domicílio da Lua (seu local
entrar na biblioteca dele, para uma averiguação. Realmente, lá de predileção), ele representa a ilusão do luto. Os reflexos da
estavam, no alto da estante, os cin co volum es encadernados em Lua, grandes ilusionistas, iluminam a noite com seus raios
verm elho. Subi no tam borete para ler os títulos. O título do enganadores. Da mesma maneira, o luto representa a ilusão
segundo volu m e de Zola era: "O Voto de uma M orta”. O título de uma consciência objetiva (a Lua) que crê na separação. Ela
era m uito significativo em relação ao que se passara. ” fica entregue à sua própria ignorância sobre o que a morte
realmente significa. A memória que acompanha a lembrança
Claro que para ser totalmente, senão imparcial, ao menos também é simbolizada por este signo.
objetivo, é bom explicar que a ortodoxia, em matéria de
psicologia, rejeita toda possibilidade de contato com os mortos. Já o signo de peixes, associado à décima segunda casa do
(Esse, aliás, foi o pomo da discórdia entre Jung e Freud). Para Zodíaco, representa a dor e a provação da separação, quando
eles, sonho ou sensação de presença de um morto são produtos o luto tarda a se desfazer. Pode também representar o estado
psíquico da pessoa enlutada, instável e emocionalmente
fragilizado pelo acontecido. As lágrimas, líquido salgado como (9 contato com oj /t w z I o j
o oceano onde nadam os peixes, fazem parte do simbolismo
deste signo.
O contato com os mortos é um grande problema que muitas
vezes opôs ocultistas e espíritas. Os primeiros, seguros de sua
ciência, alegam que os segundos, contentando-se com fatos
desordenados, correm o risco de enganar a si mesmos. Todo
mundo conhece, hoje, o aparato espirita: das mesas que giram,
intervenção de um médium, psicografia, manifestações de
ectoplasmas, aos aparelhos eletrônicos (gravadores, televisores)
que fizeram sua aparição mais recentemente, em substituição
aos médiuns —a modernidade obriga...

O fenômeno espírita surgiu no século 19, nos Estados Unidos,


em pleno período do vôo do romantismo. Quando o ser humano
toma consciência da morte alheia, sente necessidade de
estabelecer um contato com ele ou ela, após sua partida —daí o
espiritismo. De lá, o movimento propagou-se por toda Europa,
e muitos estudiosos da Sociedade Real da Inglaterra, como
também da França e dos Estados Unidos, debruçaram-se sobre
a questão. Citamos, de memória, Sir Oliver Lodge, o coronel de
Rochas, Camille Flammarion, o professor Newbold, William
James, um dos pais do pragmatismo...

Se as tentativas de contato com os mortos sempre existiram,


o século 19 assistiu ao seu desenvolvimento em grande escala.
Hoje, curiosamente, há duas correntes espíritas que, por
lógica, deveriam se excluir mutuamente. Uma é adepta da
doutrina das reencarnações sucessivas; a outra, não.
Poderíamos questionar qual a razão dessa divergência de
opiniões, se a informação, afinal, vem realmente dos próprios
mortos. É que, na verdade, a questão não se deixa abordar parecem singularmente voltadas para o passado. Aqui está
assim tão facilmente, e presume que se tenha respondido a um relato surpreendente, de uma mulher que afirmava ter
mais que uma simples pergunta: Podem os mortos realmente tido vários contatos com os mortos: “Jú lia era um a velha
falar com os vivos? Qual é o estado da alma depois da morte? am iga de m inha mãe, um a am izade de lon ga data. Não sei
De qual natureza a consciência se reveste depois da passagem? dizer com o se esta b eleceu o con ta to en tre nós. Não creio qu e
tenha sido eu, p orq u e nunca p en sei nela e não tinha nenhum a
Sabemos hoje que 90% das manifestações de espíritos são cu riosid ad e nem interesse; f o i ela qu e se im pôs a m im . Ela
coisas de charlatães que querem somente abusar do público, estava preocu p ad a e chorosa; p ed iu -m e para qu e eu entrasse
por dinheiro. Alguns médiuns famosos, como Edouard Kelley em con ta to com sua nora (viva) e qu e fo sse recuperar, em seu
e seu parceiro, John Dee, no final do século 16, depois de terem ja rd im , p er to d e um a caban a, um p a c o te q u e ela tin ha
produzido uns tantos fenômenos surpreendentes, foram pegos en terra d o , em b ru lh a d o em a lgu m a coisa branca. Caixa,
depois em plena trapaça. E para se ver o quanto o terreno é dinheiro, jóias, cabana e local, tudo m e f o i bem in dicado; eu
minado. Entretanto, restam 10% de fenômenos autênticos até d everia recu p era r essas coisas. Co?no recu p era r essas coisas?
hoje inexplicados. Temos, então, o direito de perguntar: em C omo resolver esse p roblem a ? “Vá ao en con tro dos vivos e diga-
que consistem realmente esses fenômenos? lhes q u e sua m orta lhes transm ite um a m en sagem ; eles vão n r
na sua cara e vão tachá-la d e louca. Mas é tam bém p ossível
A questão do espiritism o é delicada. A experiência
qu e o atrativo do ga n h o os fa ça irem p rocu ra r nesse lo ca l”.
demonstra que, a partir do momento em que se toca nas
Mas só q u e o p rob lem a não f o i esse. A m eu ver, m esm o se
possibilidades de contato com nossos entes queridos falecidos,
inventássem os aparelhos para contatar os m ortos, isto não daria
as reações adquirem postura passional. Aí então, a vontade da
em nada. Os con h ecim en tos qu e os m ortos possuem são os que
pessoa vai se contentar mais em fazer perguntas do que em
eles tinham ao partir, e param aí, não avançam mais. Para
questionar opiniões que, aliás, pertencem mais ao campo do
emocional que do racional. eles, há algu m a coisa d e estagnação, p ois Jú lia ignorava que
seu terreno tinha sido vendido, que p erten cia agora a um a outra
Comecemos lembrando-nos da aventura de Ulisses, narrada pessoa e que era im possível ir a té lá sem im ensas com plicações. ”
por Homero na "litada’. Na passagem da invocação dos mortos,
ele fala de "cabeças sem fo r ça s”. As sombras também parecem Assim, segundo esse testemunho e muitos outros, tudo
ignorar a peregrinação dos vivos. Assim, a mãe de Ulisses, uma indica que os mortos existem em estado estático, no estado de
das sombras invocadas, fica feliz ao saber que seu filho ainda sua última obsessão. Parecem saber apenas do passado, como
vive, como se esta informação não tivesse chegado até ela antes. se existissem em forma de memória. Para eles, o tempo parece
ter parado e os assuntos dos vivos lhes são desconhecidos. Mas
Do mesmo modo, testemunhos colhidos de pessoas que tratar-se-iam realmente de pessoas mortas ou de uma simples
afirmam ter feito contatos deixam transparecer que as almas vibração planando na atmosfera ambiente?
Veja este outro testemunho, de uma pessoa contatada por “Vivi numa casa durante três anos. Muito antes da minha chegada,
uma senhora falecida havia alguns anos: “Vi a casa dela, tal havia no m eu quarto uma presença. Barulhos nas paredes, armános
com o era antes de sua morte. Eu via tudo aquilo e ela m e falava; habitados, todo m undo fech a va as portas instintivamente. Passos de
estava preocupada com uns papéis que ela tinha escondido sob o uma pessoa subindo escadas de madeira, quando, na verdade, elas
telhado de um a cocheira, atrás da casa. O curioso nesta história é eram de cim ento coberto com tecido de tapete. D eslocamentos de
que a cocheira não existia mais, um trator tinha sido passado lá e objetos... Cada manifestação importante precedia um acontecimento
tinha nivelado tudo. Isso f o i fe ito depois de sua m orte; logo, ela marcante de nossa vida. Manifestação m uito fo r te antes da nossa
ignorava a coisa toda. ” mudança, quando estávam osprocurando outra casa. Na ocasião da
assinatura do contrato da que tínhamos escolhido, tudo cessou. Mais
O espírita invoca, na maioria dos casos, a intervenção dos nenhum a presença fo i sentida, desde a assinatura até a mudança .
mortos para explicar certas manifestações paranormais. Não é
uma conclusão um tanto precipitada, em vista do que outras E que dizer da aparição de fantasmas (fenômeno bem mais
ciências conseguiram verificar? Aqui vão algumas pistas para raro do que nossos espectros poderiam nos levar a crer, e
reflexão, que podemos indicar ao leitor imparcial e em busca percebidos somente por pessoas muito sensíveis psi­
da verdade. quicamente)? A alma, por definição, corresponde a um
princípio totalmente abstrato, que não tem nada a ver com a
Que dizer das casas ditas assombradas, por exemplo? A m atéria. Dessa lei decorre que os ocultistas de várias
experiência provou que o pensamento dos seres vivos pode civilizações consideraram que deveria existir um mediador
impregnar tanto um lugar, que uma pessoa sensível pode, sutil entre a alma e o corpo. Ele permitiria à alma agir e, assim,
depois de anos, captar as cenas que se desenrolaram ali. animar seu invólucro material, no curso de uma vida. Com a
Sabemos também que a emoção humana, em momentos de morte, esse intermediário, útil unicamente durante a vida
violências intensas ou de traumatismos, é capaz de “carregar” material, não teria mais, portanto, nenhuma razão de ser.
uma casa de vibrações desagradáveis, até mesmo, e sobretudo, Sendo um princípio composto, assim como o corpo físico,
inconscientemente. A origem das manifestações de espíritos ele vai pouco a pouco se desagregando, para retornar à matriz
causadores de ruídos ou “p oltergeist” situa-se quase sempre de onde saiu. O fantasma, quando percebido (não com os
nas emoções desgovernadas de deficientes mentais. Anos depois olhos, mas através de um sentido sutil), corresponde, então,
da morte de uma pessoa, nada impede que as últimas obsessões simplesmente a uma concha vazia, a cuja existência os
que ela tinha pouco antes de seu falecimento impregnem por cabalistas fazem referência, e que está em vias de de­
muito tempo o lugar de suas perambulações. Trata-se de um composição (provavelmente mais lenta, aliás, que a do corpo
fenômeno psíquico que nada tem a ver com a suposta presença físico). Isso não tem nada a ver com a alma de um morto.
de um morto. O testem unho que se segue pode ser Em todos os casos de intervenção com manifestações
interpretado dessa maneira. materiais (pancadas, aparições), eventualmente poderíamos
pensar tratar-se de mortos recentes que ainda con serva ssem de inferirmos a presença de um morto, poderíamos n os
alguns meios de ação na terra. Mas, depois de certo tempo, a perguntar se aí não se trataria de um fenômeno de telepatia.
alma não volta mais à terra; ela rompeu as amarras. O astrônomo
Enfim, o último tema que dá o que pensar, e que é menos
Camille Flammarion, que estudou essas manifestações, extraiu
conhecido do grande público, está nas informações trans­
delas esta conclusão, entre outras: “A sapariçõese m anifestações
mitidas por pessoas mortas, admitindo-se que esse contato
são relativam ente freq ü en tes nas horas que se seguem im edia­
realmente exista. Nós admitimos o fato de ser possível a uma
tam ente ao fa lecim en to . Seu núm ero dim inui à m edida que se
pessoa viva elevar-se até a alma de uma pessoa morta para obter
vai afastando daquele m om ento, e atenua-se a cada dia que passa”.
informações dela (isto não é a mesma coisa que a teoria espírita,
As lendas populares muitas vezes im aginaram esses segundo a qual os próprios mortos é que descem até nosso
fantasmas em form a de grandes lençóis brancos, arrastando plano terreno). A experiência apresentada por institutos de
correntes. Tomo de outra pessoa a interpretação tão poética pesquisas psíquicas prova que os mortos referem-se, via de
dessas co r ren tes. Elas seriam o símbolo do apego desses regra, apenas a acontecimentos de seu passado terreno.
fantasmas às vibrações mais baixas da energia psíquica, tão Curiosamente, eles nada dizem sobre sua experiência no além
baixas que dizemos que eles estão “presos à terra”. e nem sobre uma projeção no futuro. Eles parecem mesmo
totalmente ignorantes do que se passa na terra, no presente.
Podemos também questionar o perigo de uma invocação
dos mortos. Afinal, o que é chamado ou contatado? Ao lermos Veja esse um testemunho relatado por Maeterlinck, no livro
os escritos espíritas, temos de admitir que, quando personagens "A M orte". O Dr. Hodgson fora um cientista, membro da
famosos são invocados, seus discursos parecem-se mais com Sociedade Americana de Estudos Psíquicos. Após sua morte,
uma conversa no balcão do bar da esquina do que com a idéia seus colegas tentaram, é claro, estabelecer contato com ele. Ao
que fazemos do discurso de tal sumidade. O segundo elemento longo de várias sessões, “ele” respondeu a várias perguntas mais
que conseguimos perceber é que pessoas sob efeito de álcool ou menos íntimas, e suas respostas pareciam perfeitamente
ou de drogas parecem ter a curiosa capacidade de interagir corretas. De repente, William James, eminente pesquisador,
com a experiência. perguntou-lhe: —"Hodgson, o qu e v o cê tem a nos dizer sobre a
outra vida?" O “contato”, então, mostrou-se vacilante em suas
Relatórios de pesquisas psíquicas fazem pouco caso dos respostas: —“Não é um a vaga fantasia, mas um a realidade” —
conhecimentos transmitidos através de um médium. Ora, "Hodgson", insistiu a esposa de William James, “vo cê vive com o
acontece que, na sala, há sempre apenas uma pessoa que está nós, com o as pessoas?" - “Que f o i qu e ela disse?", respondeu o
ao par dos fatos relatados, enquanto o assim chamado médium espírito, parecendo não ter compreendido a pergunta. - “Você
os ignora. Disso se deduz geralmente a intervenção de um vive com o nós?", repetiu William James. - “Vocês a í usam roupas,
morto, alguém próximo à pessoa em questão. Contudo, no moram em casas?", acrescentou sua esposa. —“Sim, casas, sim;
caso de contato através da consciência de um médium, antes mas não roupas. Não, que absurdo! Esperem um pouco, tenho de
ir agora.” —“Mas v o cê vai voltar? ” —“Sim .” —“Ele f o i tom ar morrer se todas as mesquinharias da vida continuam... ? Será
fô le g o ”, disse um outro espírito, chamado Rector, que interveio que realm ente vale a pena passar pelos assustadores
de repente. desfiladeiros que desembocam nos campos eternos, para
lembrarmos que nosso tio chamava-se Fulano e que Beltrano,
Em suma, nada de muito convincente. Por que tanta
nosso primo, sofria de varizes e de um problema estomacal?
ignorância acerca do além? Outras pessoas já conseguiram
fazer os mortos falarem sobre o assunto. Mas as respostas Poderíamos, então, pensar que os chamados espíritos
parecem-se mais com descrições de coisas terrenas que contatados sejam, na verdade, resíduos da passada experiência
qualquer pessoa viva pode fazer. Disso poderíamos inferir que desses seres, gravados naquilo que os ocultistas de antigamente
a experiência no outro plano é mais semelhante a um sono que denominavam “luz astral”? A alma, por sua vez, bem poderia
a um estado de consciência ativo. Os que estão lá em cima estar muito além e incomunicável por esses meios. Lembre-se
desconhecem o que estão fazendo os daqui de baixo. Enfim, da lenda que narra o contato entre Ulisses e Hércules. Ulisses
poderíamos considerar que as personalidades desencarnadas só consegue se encontrar com a sombra de Hércules, enquanto
deixam de passar por experiências novas e que existem apenas o verdadeiro Hércules está lá no Olimpo, fora de alcance. Se
como memória. esse ponto de vista tem algum conteúdo de veracidade (e cabe
Maeterlinck, que estudou bem o fenômeno espírita, fazia- a cada um determiná-lo), os chamados contatos com os mortos,
se as seguintes perguntas em relação à natureza surpreendente portanto, parecem ser apenas quimeras. Que pensar, então,
dos contatos. Por que eles escolhem essa maneira (essa forma daquelas pessoas que usam o sofrimento de lutos mal resolvidos
de relacionamento) ? Por que se limitam a isso? Por que ficam para fazer brilhar, num familiar pesaroso, a esperança de um
tão obstinadamente acantonados na estreita faixa de terreno contato tão fugaz quanto ilusório?
que a memória ocupa, nos confins de dois mundos, e de onde Grande parte da incompreensão que existe acerca do
não nos podem chegar senão testemunhos indecisos e contato com os mortos reside na imprecisão do uso dos termos
suspeitos? Não têm, então, outras saídas nem outros comunicação e comunhão. Esses termos não têm o mesmo
horizontes? Por que ficam tanto tempo vegetando ao nosso sentido. Há entre eles a mesma diferença que existe entre os
redor, em seu pequeno passado, quando, desembaraçados da conceitos de unidade e dualidade. Querer a todo custo ver em
carne, poderiam vagar livremente nas extensões virgens do certos fenômenos a prova da comunicação com o outro plano
espaço e do tempo? Será que ainda não sabem que não é entre eqüivaleria a considerar este último como sendo igual ao plano
nós, mas neles mesmos, do outro lado do túmulo, que irão terreno. Trata-se de uma persistência muito sutil das crenças
encontrar o sinal que nos mostrará que eles sobreviveram? Por sobrevivencialistas, segundo as quais a vida no além é igual à
que voltam de mãos e palavras vazias? E só isso que se encontra vida na terra. Na mesma ordem de coisas, a conscientização
ao se banhar no próprio infinito? Tudo é nulo, sem forma e da própria morte implica, para muitos, que esse eu, que nos é
sem luz do outro lado da nossa última hora? De que serve tão caro, tenha de continuar sua existência de modo idêntico
no outro plano. O que está em cima não é igual ao que está em
baixo, mas unicamente “como” o que está em baixo. Como (u u iíc u e (f/i/ú /o /o i
poderia ser de outro modo?
do /nedo da /nozte
O termo “comunicação” pertence, na verdade, à terra, ao
mundo da dualidade, das relações do eu e do tu. A palavra
“comunhão”, por sua vez, implica uma fusão, uma unidade Dizer que a Velha Dama da Foice amedronta constitui quase
indescritível com o outro (ainda que, no retorno, a experiência uma obviedade. Quando sua evocação se torna realista, muitas
possa ser qualificada de “com unicação”). A noção de pessoas, confrontadas diretamente com sua própria morte,
comunhão casa-se magnificamente bem com a noção de sentem necessidade de respirar mais profusamente, como que
transição ou de mudança do estado da consciência. Nesses para provarem a si mesmas que a vida as está animando e que
domínios, o tempo e o espaço deixam de existir, como também tudo nelas está funcionando bem. Como se a própria idéia da
as noções de separação e de dualidade. A comunhão implica m orte incitasse as células a inspirar mais profundamente essa
uma elevação, da parte de quem deseja realizá-la, além do plano vida que circula através delas.
das contingências materiais. Trata-se de um exercício espiritual.
Parte do sofrimento sentido na perda de um ente querido
Impossível resistir a citar aqui Ralph M. Lewis, antigo tem sua fonte no fato de que essa partida nos incita diretamente
dirigente supremo da AMORC: "Os Rosacruzes afirm am que a a considerar, mais ou menos conscientemente, a nossa própria
fo rm a de consciência, se esta categoria de fen ô m en o existe após a m o rte. N o entanto, a morte, segundo nossos próprios
morte, é totalm ente diferente de tudo o que o ser hum ano jam ais contemporâneos, não provocaria tanto medo assim. O que mais
ex p erim en to u aqu i, en q u a n to m o rta l. E les a d ecla ra m inquieta o ser humano de hoje seria, sobretudo, todo o
inexplicável. E im possível descrever, com palavras, um estado de sofrimento. Graças à mudança de mentalidade e à evolução
existência ao qual nada p od e se com parar na terra. O ser, declaram dos tratamentos analgésicos, logo poderemos erradicar a maior
eles, continua a existir, mas sua qualidade, sua natureza, difere parte do espectro do sofrimento físico, tornado inútil. De fato,
de toda im agem visível p ela consciência mortal. Isso não quer por que continuar a aceitar suportar tormentos atrozes, desde
dizer que o ser perca sua identidade, isto é, que ele se dilua que a dor já tenha sido levada em consideração, como
com pletam en te no Universal, tam bém denom inado o Cósmico. advertência?
E, antes, um a sensação nova de unidade com toda a realidade,
que é, quando m uito, uma experiência fu ga z para o ser humano, Entretanto, sofrimento físico ou não, para muitas pessoas vai
e que só a experimenta aqui em baixo um pequeno núm ero de continuar existindo o medo de morrer e ir ao encontro ou do
m ortais*. nada ou de um outro mundo. Vejamos, então, quais poderiam
ser as causas dessa angústia e quais seriam seus antídotos.
Bom número de n ossos tem ores poderia, em últim a análise, os cristãos ou nas religiões monoteístas que o inferno assume
ser imputado em parte àquela inquietude fundamental. Medo tal importância. O Oriente, tanto taoísta como budista,
de perder o emprego, de fracassar, de falhar, sentimento de imaginou centenas de formas para o inferno, do gelo ao fogo.
solidão, inquietude frente a mudanças, medo do escuro, falta Outros povos desenvolveram em sua cultura idéias terríveis
de autoconfiança, etc. Na maioria desses casos, o medo da sobre o além. Em geral, em todas as concepções, há sempre
morte está à espreita em alguma parte obscura da consciência. mil vezes mais motivos para se acabar no fogo eterno do que
Assim, poderíamos tomar o caminho oposto a essa idéia, no jardim das delícias, e a culpa vai de arrasto. Nessas
adiantando que o verdadeiro medo que move muitos dos condições, a pessoa essencialmente honesta não consegue
nossos contemporâneos é, acima de tudo, o de viver. Vida e considerar que seu futuro seja no paraíso. Conhecendo a si
morte estão indissociavelmente ligadas, inclusive na esfera da mesma e conhecendo as imperfeições latentes de todos os seres
inquietude. Suprima essa angústia e você volta a ter confiança humanos, ela seguramente visualiza ✓
uma pequena estada no
na vida. O melhor meio de superá-la consiste, primeiramente, coração das fornalhas do Hades. E tão espantoso, então, que
em tomar consciência de sua natureza e de sua fonte. Em outras ela tenha medo da morte?
palavras, em lançar luz sobre ela.
Elisabeth Kübler-Ross relata a história de uma menina
Um dos primeiros motivos que torna a passagem tão sofrendo de câncer e que não “podia” morrer. Procurando
assustadora tem origem no medo do desconhecido. Uma solucionar a situação, ela perguntou: “L., há algum a coisa que
mentalidade geralmente inquieta desenvolve a tendência de não deixa v o cê partir? Parece que v o cê não con segu e m orrer e eu
projetar toda sorte de fantasmas mais ou menos deliberados não consigo im aginar o porquê. Quer m e con tar?”. Com visível
no desconhecido. Imaginado como um lugar sombrio, ele se alívio, ela m e respondeu: “Sim. Eu não posso m orrer porque não
povoa, então, de criaturas informes e, de preferência, posso ir para o c é u ”. Afra se m e causou um choque, e pergu ntei-
am eaçadoras. Teias de aranha e outros obstáculos impedem o lhe se ela já tinha ouvido alguém dizer algum a coisa parecida.
acesso a ele. Se tivesse tido essa atitude medrosa, Cristóvão Ela m e respondeu que os padres e outros religiosos que vieram
Colombo com certeza nunca teria tentado fazer sua viagem à vê-la muitas vezes disseram -lhe que a pessoa não vai para o céu
índia. O vasto oceano representava então o desconhecido mais quando não ama a Deus sobre todas as coisas. Reunindo suas
hermético. Pensar no misterioso com angústia acaba sendo o últimas forças, ela se ergueu, passou os bracinhos m agros em volta
mesmo que fazer uma aposta audaciosa em sua natureza. A do m eu p escoço e sussurrou, com o que para ser perdoada: “Sabe,
origem de muitas superstições situa-se quase sempre nesse tipo o que eu am o mais que tudo ép a p a i e m am ãe”. Depois de uma
de atitude. Veremos, porém, que o desconhecido pode ser sólida explicação para restabelecer a verdade, com a ajuda d e
encarado de outra maneira. parábolas, L. m orreu em paz p ou co tem po depois".
As idéias de inferno ou paraíso levaram muitas pessoas, ao O sentimento de que resta algo a ser feito neste mundo, o
longo dos tempos, a temer o desfecho final. E somente entre sentimento do inacabado, também não facilita em nada a
passagem. Enquanto tudo não está consumado numa vida, proporcionalmente às consecuções que resultam de seus
em consonância com a própria consciência interior, o esforços. Logo, esse eu vai se recusar a morrer e verá o desfecho
sentimento de paz é dificilmente imaginável. A disponibilidade final com inquietação. Ele vai se debater até o fim e isto acabará
mental é necessária para tornar menos terrível a morte. Pode- provocando angústia.
se, aliás, somar a tudo isso a angústia da separação ligada à
Depois dessas rápidas pinceladas sobre a angústia diante
perda do contato afetivo com os entes queridos.
da morte, nada mais construtivo que considerar os possíveis
meios de se precaver contra ela. O primeiro método consiste
Um outro tipo de perda tem origem ainda mais profunda,
em encarar de frente a morte e sua angústia. Tomar consciência
ligada ao sentimento humaníssimo da identidade. O ser
de um fenômeno é, de certo modo, exorcizá-lo e tirar dele um
humano, produto de uma evolução milenar, tanto do ponto
pouco de sua força desarmonizadora. Trata-se de defender a
de vista do corpo como da alma, desenvolveu uma auto-
atitude inversa à do mundo moderno que, apesar de algumas
consciência. Observando o corpo de um morto, os indícios
mudanças terem ocorrido em algumas camadas da população,
desse “eu sou” parecem ter desaparecido. Bem poucos seres
continua a ocultar a morte. Ao mesmo tempo em que se
humanos aceitam imaginar o desaparecimento desse eu a que
desenvolve o acompanhamento no fim da vida, o Dr. X
eles tanto se apegam. Raros são os que poderiam se contentar,
apresenta uma pílula anti-envelhecimento, à base de secreções
para o futuro, com a imagem de uma fusão num todo coletivo
supra-renais. O velho sonho da ciência em busca a imortalidade
ou universal. O tormento que pode sentir alguém que imagine
está relançado.
a morte como um acesso ao nada pode, conseqüentemente,
ser considerado concomitante ao medo de perder a identidade. Sejamos lúcidos e adultos. O ser humano nunca vai vencer a
morte por meios materiais. No máximo, conseguirá retardar seu
Há, na verdade, dois instintos de sobrevivência que recorrem desfecho. Além do mais, seria isso desejável? Imagine, por um
a um medo natural em caso de perigo, a fim de permitir uma instante, que você fosse presenteado com a imortalidade neste
fuga ou uma ação salvadora. O primeiro está associado ao corpo mundo. Todas as manhãs, eternamente, você teria de se levantar
e ao impulso irreprimível, de cada uma de nossas células, para e ir trabalhar. Sua possível aposentadoria teria igualmente uma
conservar e expandir sua existência. O instinto de sobrevivência natureza infinita. Você poderia explorar o universo material, mas
física é compartilhado por todos os reinos da natureza, e se sendo este limitado, a exploração e o sentimento de novidade
exprime diferentem ente segundo sua natureza e suas chegaria forçosamente ao fim. Reproduzir eternamente os
características. Há, ainda, um outro instinto de sobrevivência, pequenos atos banais do cotidiano... Seria mesmo tão divertido?
ligado à psicologia e relativo à autoconsciência. Assim como a Cedo ou tarde, o tédio não acabaria se instalando, transformando
vida das nossas células procura se expandir, o eu procura em inferno essa vida pela qual o agonizante tantas vezes tem os
constantemente progredir e anexar cada vez mais capacidades mais ardentes desejos? Se, no limitado período de setenta e
a si mesmo. Seu sentimento de existir aumenta, então, cinco anos, a maioria das pessoas se acomoda numa mesmice,
como se comportariam elas se tivessem um infinito de tempo à impede de abordá-lo com confiança e serenidade. Por que ter
sua frente? medo do urso escondido em sua toca, sem ter sido atacado por
ele? Não é apostar um tanto precipitadamente numa suposta
A ciência afirma que urna única bactéria, sob condições natureza agressiva, quando as próprias crianças fizeram dele
favoráveis, poderia, em oito dias, sintetizar uma massa de seu melhor companheiro?
matéria viva igual à da terra. A realidade, porém, é que ela
sempre se depara com limites. Se o processo não tivesse fim, Na verdade, trata-se aqui de operar uma verdadeira alquimia
não haveria mais nenhuma matéria para produzir células vivas. mental. Há milhares de anos, os seres humanos têm oscilado
A vida, portanto, deve se nutrir da morte. Para que a existência entre a aceitação de superstições que correm a respeito do reino
se tornasse eterna, seria preciso também que todas as causas invisível e a rejeição pura e simples, considerando-o como um
de doenças ou de acidentes fossem erradicadas. Estamos longe nada. Quaisquer que sejam as opiniões que os seres humanos
disso. Por conseguinte, ao invés de considerar a morte como tenham a seu respeito, elas em nada mudam sua verdadeira
uma horrível fatalidade, a humanidade poderia concebê-la natureza. O que pode mudar é a atitude mental que temos em
como uma lei natural portadora de sentido e propósito, na relação a ele. Nem terror nem fascínio, mas nada impede que
manutenção do equilíbrio universal. Assim, ela se reconciliaria uma atitude de serenidade torne-se um fato no horno
com uma parte da natureza. duplamente sapiens.

O segundo antídoto do medo age sobre as idéias religiosas E depois, façamos por um instante o papel de advogado de
ou supersticiosas que circulam a respeito da vida depois da uma visão pessimista: do que é que temos medo, afinal? O
morte. Não há nenhum inferno e nenhum paraíso depois da nada que se afigura no horizonte do materialismo não seria
morte. O único lugar onde o ser humano pode experimentar mais vantajoso do que vidas e vidas de sofrimentos inumeráveis,
essas condições é na terra. Para imaginar um sofrimento no de nascimentos no sangue, de mortes em espasmos, de
além, mesmo que de ordem espiritual, teríamos de admitir que preocupações incessantes, de pesares e de fracassos? O medo
a consciência lá é a mesma daqui. Ora, as condições em que da morte é um luxo dos que vivem no conforto, suficientemente
nossa consciência evolui, definitivamente, não são semelhantes. cegos ou sem compaixão para não verem o sofrimento deste
Não há mais nem corpo físico nem sistema nervoso cérebro- mundo. Buda ensinou que tudo é sofrimento. (Este é, aliás,
espinal ou autônomo. Como, então, conceber a consciência um dos principais artigos de fé do budismo: a realidade do
futura de outro modo que não o desconhecido? sofrimento e a possibilidade de seu fim, no nirvana). Só a
familiaridade pode nos fazer esquecer esse fato. Mas o budismo,
Temer o desconhecido é entregar-se prematuramente a uma que ensina a doutrina da vacuidade, não se juntaria ao
idéia negativa, em vez de uma outra. A priori, o desconhecido materialismo? Que diferença há entre determinada concepção
possui natureza neutra. Ele não é nem positivo nem negativo, da vacuidade e o nada? O materialista não deveria temer a
justamente por ser desconhecido. Disso decorre que nada nos morte, já que ela conduz ao nada.
Mas outros métodos contribuem igualmente para diminuir “Todo dia aguarda a morte, afim de que, quando a hora chegar,
o medo da Velha Dama. Poderíamos considerar, como no possas m orrer em paz. A desdita, quando vem, não é tão m edonha
século 17, que cada dia pode ser o último, cultivando o quanto se c r ê ... Trabalha, toda manhã, no sentido de acalm ar tua
sentimento de que fazemos o melhor que podemos, em m ente, e im agina o m om en to em que talvez p o s s a s s e r dilacerado
consonancia com nossa consciencia. Elisabeth Kübler-Ross, ou m utilado p or flechas, afogado p or enorm es ondas, lançado às
que dedicou sua vida ao acompanhamento de agonizantes, chamas, fu stiga d o p o r um raio, soterrado p o r um terrem oto,
explicou que o tema da morte devia ser abordado desde a caindo num precipício, ou em que estejas m orrendo doente. Morre
infancia, ñas escolas. em pensamento, toda manhã, e nunca mais terás m edo de morrer. ”

As crianças são geralmente mais maduras do que pensamos.


A atitude do ser humano frente à própria morte não se decreta
do dia para a noite; ela resulta de uma cultura e de uma longa
maturação que tem origem na infância. Não é tanto uma prova
de morbidez quanto de familiaridade com ela. Ao contrário,
trata-se de se impregnar da evidência de nossa mortalidade e
disto tirar resultados em termos de qualidade de vida. Via de
regra, as pessoas que chegam perto da morte transformam suas
concepções da vida. Quem sabe se parte da intolerância não
provenha do esquecimento do inelutável desfecho para todos?

Por outro lado, quem procura viver de maneira construtiva,


com o sentimento constante do dever cumprido, está sempre
pronto, sem o saber. Quando sua vida desfila ante sua
consciência, ele confia nela e, depois de se despedir de sua
família, pode partir em paz. Do mesmo modo, quem orienta
sua vida para o próximo dá menos importância à perda de seu
ser pessoal.

Para terminar, se você quiser métodos ainda mais radicais,


lembre-se dos tibetanos. Todos os dias, seus lamas fazem uma
meditação sobre a morte e alguns se visualizam na forma de
um esqueleto. Um tratado samurai, o “H agafyirê”, expressa-se
de modo bem marcial:
¿Szeve óictfeu/o da a/ma

Seria possível falar da morte sem procurar compreender a


natureza da alma? Foi respondendo negativamente a essa
pergunta que a idéia deste capítulo se impôs. Difícilmente se
conseguiria apreender o fenômeno da separação entre a alma
e o corpo, sem se ter definido o que o termo “alma” encerra,
de onde vem ela, de quais ingredientes é composta, etc.
Quando se começa a pensar no assunto, logo se percebe
que a alma não se deixa desvendar facilmente. Os diversos
pensadores que já se expressaram sobre o tema deixaram, cada
qual, uma doutrina diferente. Os povos e as culturas parecem
igualmente ir no sentido de urna patente divisão. De simples,
o assunto vai se tornando cada vez mais complexo, à medida
dos estudos. A origem de sua diafaneidade artística está no
fato de o tema da alma constituir uma abstração por excelência.
A alma não se deixa capturar. Sobre ela, comentou um
cirurgião: “Nunca encontrei a alma sob a lámina do m eu bistu rí’.
No entanto, o termo é usado habitualmente por todos,
materialistas e espiritualistas, com diferentes acepções. Para os
primeiros, ela corresponde a um construto mental que não
possui substancia própria, ou, então, eles a isolam no campo
da psicologia (que vem â ep sych é, um dos termos gregos para
“alma”). A psicologia humana é o resultado da evolução das
faculdades de seu cérebro material, num dado ambiente
cultural, social e familiar.
Num pequeno tratado sobre a alma, naturalmente só se pode
abordar a questão psicológica de forma resumida. No alvorecer
da consciencia humana, o tema certamente não era tão as dos escolásticos da Idade Média. Para eles, três divisões
complexo. Os primeiros seres humanos da pré-história compunham o mundo anímico: a alma vegetativa, que comanda
descobriram uma dimensão invisível em seu ser, provavelmente as funções de nutrição e reprodução; a alma sen cien te, que
por intermédio de seus sonhos ou observando seu sono. governa os cinco sentidos físicos; e a alma racional, vinculada
Tomando consciência da morte de seus companheiros, eles ao intelecto e às emoções superiores. Os Pais da Igreja, como
imaginaram a sobrevivência de um princípio invisível a que Orígenes ou Clemente de Alexandria, retomaram, por sua vez,
deram o nome de “alma”, pois era desse princípio que o corpo, os princípios de Plotino, que dividia os seres humanos em três
assim acreditavam eles, extraía sua energia, seu calor e sua grupos: sensíveis, racionais e inteligíveis.
consciência. Mas nessa remotíssima época, o ser humano era
concebido apenas como uma dualidade, isto é, uma alma A posição oficial da Igreja Católica de hoje faz da alma o
invisível que impregnava um corpo físico. princípio espiritual por excelência, graças ao qual o ser
humano torna-se imagem de Deus. Acrescenta, ainda, que
Encontramos em Platão essa mesma concepção dualista da ela veicula a vida e a personalidade humana. Aqui, o homem
natureza humana. Nessa época, a alma era concebida, entre os é realmente concebido como um todo, e essa unidade é tão
gregos, como um alento oupneum a. Depois, esse princípio se profunda que a alma é considerada como tendo a forma do
tornou gradualmente mais complexo. A palavra “alma” vem corpo. A originalidade desse dogma está em que essa alma
do latim anim a, que significa “alento’ ou “ar” e que remonta à não morre com o corpo, mas voltará a se unir a ele no dia do
palavra sánscrita aditi ou “ele respira”. O latim distinguía um Julgamento Final do Cristo ou da ressurreição dos corpos.
princípio superior masculino, denominado a nim us, e um Nessa concepção, reconhece-se uma espécie de dualidade
princípio feminino, anima ou “a alma” propriamente dita. A entre a matéria e a alma. Não obstante, o ser humano só pode
palavra anim us foi mais tarde rivalizada por spiritus. ser concebido como uma unidade reencontrada. Eis por que
a vida da alma depois da morte não pode ser imaginada senão
Assim, de uma concepção dualista do ser humano, a como um sono. Essa é toda a ambigüidade da posição cristã,
civilização passou a uma idéia de trindade: espírito, spiritus; que oscila entre uma visão saducéia da alma e uma concepção
alma, anim a; e corpo físico. Os gregos desenvolveram uma platônica.
compreensão paralela. Pneum a significa “alento espiritual” e
abrange a noção de espírito. A divina e toda feminina p sych é Na África, diz-se que há no ser humano um ou vários
abrange a anim a, na qual C. G. Jung viu o arquétipo da mãe. princípios espirituais. Na morte de uma pessoa, sua alma ou
Os filósofos gregos desenvolveram, então, noções do ser nia (o duplo) não morre. Ela guarda sua personalidade
humano com dois, três e até quatro níveis, como o fez Platão eternamente, leva uma vida independente e pode transmigrar
em sua “R epública”. Com os progressos da análise intelectual, para qualquer corpo. Consulta-se o ancestral, através de seu
outras concepções nasceram, como as de Tomás de Aquino ou nia, para pedir conselhos.
Entre os bambaras, a ni ou alma é distinta do dya ou duplo, Aristóteles, que foi discípulo de Platão. Aristóteles postulou
que é como a sombra da pessoa. A ni viaja durante o sono. que a alma era dotada de três qualidades: a vegetativa, a
Mas há também dois outros princípios: o terê ou caráter — senciente e a racional. Os Pais da Igreja parafrasearam os
eventualmente maligno —e o wanzo ou mácula, produto de neoplatônicos. Os próprios muçulmanos inspiraram-se nos
uma espécie de pecado original. Esses princípios circulam no filósofos gregos, nos judeus e nos cristãos que os precederam.
corpo por meio do sangue ou até da saliva. No momento da Os d ogões, por sua vez, afirmam que sua origem encontra-se
morte, dya volta à água com Deus, enquanto m\ pelo sacerdócio no Egito antigo.
do chefe da família, integra-se ao altar da família. Juntos, dya e
ni podem reencarnar num recém-nascido. Platão, no Livro IV da “R epública”, apresenta uma grade
de leitura da alma em três partes ou domínios. Esses domínios,
Os d o gõ es diferenciam a sombra estúpida da sombra segundo ele, devem ser relacionados às divisões da sociedade
inteligente (o anjo mau e o anjo bom, respectivamente). Alguns ideal: religião ou filosofia, justiça e economia. Assim, ele
povos africanos estimam que todos os seres vivos possuem distingue na alma o elemento racional, o sensual e o irascível.
quatro almas: a clara, a opaca, a invisível e o espírito. Já os Ao primeiro, ele associa os aspectos superiores da alma, que
iorubas contam apenas três. Na República Democrática do levam à pratica da virtude e à busca da beleza e da harmonia
Congo, a parte da alma que permanece em contato com o em todas as coisas. O domínio da sensualidade é o dos instintos
mundo é a sombra. Uma outra parte pode perambular: é a luz e dos desejos fundamentais, que podem ficar entregues a si
do olho. Uma terceira parte pode se situar na orelha. Para os mesmos. Finalmente, o elemento irascível, que corresponde à
quicuius, uma das duas almas retorna aos ancestrais, enquanto justiça e à cólera, auxilia a razão em sua missão de manter os
a outra, símbolo do espírito da família, reencarna numa criança desejos no caminho certo. Se o elemento racional aconselha, é
da comunidade. Na África do Sul, o alento e a carne são o irascível que leva a rejeitar as tentações dos desejos ilegítimos,
distintos. Na índia, existem concepções em sete níveis, e é na no indivíduo e na sociedade.
tradição cabalística que o Oriente foi mais longe em termos de
análise e complexidade. Através dessa aparente mixórdia de doutrinas, é possível,
no entanto, encontrar uma constante no tema, mesmo
Mas tudo isso pode passar uma imagem falsa de uma abordado por diferentes povos. Em primeiro lugar, a alma pode
evolução linear das concepções, no curso da História. Na ser concebida como masculina ou feminina, ativa ou passiva.
verdade, o corpo completo das idéias mais elevadas foi elaborado Os chineses têm uma concepção dupla: sen , o gênio, e chue,
nas antigas escolas de mistérios da índia e do Egito, há milhares que formam os desejos mais molestos. Esses dois princípios
de anos. O restante foi composto pelos comentários de mestres remontam ao Yin positivo e ao Yang negativo. A alma pode ser
mais ou menos talentosos e mais ou menos ligados à antiga também intelectual ou instintiva, ativa ou vegetativa. Pode
tradição. Os escolásticos da Idade Média inspiraram-se em aparecer na forma do pássaro Ab, no Egito, e da sombra. O
princípio superior é o único que se eleva ao céu, enquanto a já foi feito no tocante à influência da exposição à luz e seu
sombra continua em contato com a terra. Por extensão, ela pode efeito sobre a pineal (epífise), que atua sobre os ritmos vitais
ser considerada ou perfeita ou em devenir. Os grandes do corpo. A função do tálamo é igualmente importante na
princípios que ela contém são a inteligência, sob forma consciência e nas reações emocionais do indivíduo.
consciente ou vegetativa, e a vitalidade. Disso pode-se inferir
que a mesma alma pode ser dividida no sentido horizontal Voltemos à alma propriamente dita. Geralmente ela é
(positivo-negativo, masculino-feminino, direita-esquerda) e no associada à sombra, à imagem e ao nome, como, por exemplo,
sentido vertical (superior, perfeito, sombra e devenir). entre os africanos ou os índios da América do Sul, e até entre
os delawares. A sombra corresponde à parte da alma passível
A sede da alma vegetativa supõe-se geralmente estar no de evolução. Na China, a lenda dos Imortais explica que estes
fígado ou no sangue (o fígado é o principal local de elaboração não têm mais a sombra. Isso indica que, tendo atingido a
do sangue). É assim na África do Norte e na Sibéria. Os povos perfeição, a luz circula livremente através deles, sem ser
dessas regiões consideram os ossos como o local de circulação ocultada. A sombra é, portanto, uma projeção imperfeita do
da alma sutil, cuja sede seria o coração. Algumas vezes, plano divino na terra. Ela corresponde àquilo que deve ser
acontece uma inversão de símbolos, mas, via de regra, purificado no ser humano. Para C. G. Jung, são esses os traços
encontramos a constante osso, sangue, alento e coração como de caráter inferiores reprimidos e que podem se manifestar
suportes das diversas partes da alma. Entre os maias quichés e através dos sonhos. Entre os zelandeses, a alma ou alento
os índios naspaki do Canadá, a alma sai do corpo pela boca. denomina-se waidoua. No momento da morte, a parte mais
Igualmente, um ritual importante no Egito antigo era “a pura de waidoua eleva-se às regiões de glória, enquanto a parte
abertura da boca”, depois da morte. Aristóteles, que se apoiava impura precipita-se nas trevas.
na experiência, situava a sede da alma no coração, ao passo
que seu mestre, Platão, a colocava no cérebro. Ao longo da Simbolicamente, a alma pode ser representada por uma
história, figuras ilustres como Leonardo da Vinci e o filósofo borboleta, um pássaro, uma fita, uma corda ou um espectro.
Descartes entregaram-se à tarefa de determinar o local da sede Mas há também uma alma do mundo que se supõe vivificar o
da alma. Suas pesquisas sobre o cérebro permitiram aos universo. E ela que regeria o movimento dos astros. Os Antigos
trabalhos mais modernos estabelecerem suas conclusões. Hoje, transformaram-na no éter. Diga-se, de passagem, que nossa
tudo indica que o local privilegiado de contato entre o corpo e ciência não conhece a natureza da força de atração que rege o
a consciência da alma pode ser o cérebro médio ou diencéfalo. movimento dos planetas, apesar de conseguir mensurá-la.
As glândulas hipófise e epífise, o hipotálamo e o tálamo fazem
parte do diencéfalo. Juntos, eles possuem um controle Prossigamos, agora, apresentando as concepções caba­
importante sobre o sistema neurovegetativo. Seu papel no lísticas. Essas idéias baseiam-se na frase bíblica: “Deus fe z o
controle do estresse, por exemplo, já foi evidenciado. O mesmo hom em do húm us da terra, insuflou n ele o alento de vida e o
h o m em to rn o u -se alm a v ív e n t e ”. Os hebreus cabalistas vital e a física. Cada uma dessas divisões, por sua vez, é
representam a alm a segundo três princípios, que são: composta de três subprodutos. Há o mental no mental, o vital
neschamah, a parte divina ou espiritual do ser humano, m a ch , no mental e o físico no mental. Depois, o mental no vital, o
que corresponde ao alento de vida ou dimensão vital, e nephesh, vital no vital, e assim por diante. Assim como na cabala, não há
que é a alma viva ou parte terrena da humanidade. uma separação nítida entre cada um desses reinos, mas, sim,
uma interpenetração progressiva. O domínio do mental puro
Assim, “D eus fe z o h o m em ” corresponde a n escham ah, está vinculado aos aspectos mais elevados do ser humano. Sua
“insuflou n ele o a len to ” é traduzido por ruach, e o homem parte vital corresponde à mentalização dos desejos, quando
tornou-se n ep h esh , a alma vivente. Esses três princípios estes atrapalham a reflexão objetiva ou quando são sonhados
correspondem, portanto, ao espírito, à alma e ao corpo dos mentalmente, ao passo que a parte mental do vital corresponde
romanos e gregos. Papus (o Dr. Gerard Encausse), no início a uma temporização do desejo pela razão. O domínio do vital
do século 20, acrescentou que cada um desses componentes, puro é o dos instintos e desejos gerados pela própria natureza
por sua vez, divide-se em três partes, todas elas formando um da força vital. Se tudo isso parece muito complicado à primeira
único indivíduo. Assim, a parte corporal do ser humano vista, o olhar experiente pode ver aí correspondências com
{nephesh) possui uma consciência, uma vitalidade e um corpo experiências bem concretas.
que é a matéria. A parte vital (ruach) possui uma consciência
Na índia, as almas humanas são consideradas como
que dirige o funcionamento vegetativo dos órgãos. E ela que
imanentes da Alma Universal e Suprema, como inumeráveis
os vivifica com sua energia e, segundo os cabalistas, possui um
centelhas brotando de um fogo imenso. Mas, nunca nasceram
corpo. Do mesmo modo, a parte divina (neschamah) é composta
e, portanto, não podem morrer. Elas vêm de Brahman e
de Alma Universal, consciência divina e corpo espiritual. Se
retornam a ele. Sua essência é a da Divindade que, por
neschamah é o domínio da inteligência do coração, ruach é o
conseguinte, dota-as de inteligência, razão, sensibilidade e
dos instintos que o ser humano deve subjugar. A árvore
imortalidade. Segundo os hindus, a alma pode experimentar
cabalística das sephiroth fornece uma imagem dessa concepção
cinco estados em seu contato com o corpo.
da alma. Por sua vez, a via tradicional da Rosacruz aborda, de
forma muito mais exata e detalhada, essa constituição oculta 1. O estado de vigília, no qual está ativa sob a direção da
do ser humano, em nove princípios. Divindade.
2. O estado de sonho, ilusão intermediária entre a vigília e
Passemos agora à concepção desenvolvida por Sri
o sono, no qual pode ter premonições.
Aurobindo, famoso mestre hindu do início do século 20. Esse
filósofo incontestável exprimia-se através de idéias bem 3. O estado de sono profundo, no qual ela está como que
próximas às da cabala, apesar de sua terminologia ser um pouco mergulhada na Essência Divina, até voltar a imprimir sua ação
diferente. Para ele, a alma se divide em três partes: a mental, a no corpo.
4. O estado de desfalecimento ou de insensibilidade, ponto faltas cometidas pelo ser humano. O culpado é, na verdade, o
medio entre o sono e a morte, no qual a alma fica tempo­ objeto mais ou menos iluminado por ela; um ser composto de
rariamente separada do corpo. alma e corpo, que vive tão-somente por ela e com ela. E, assim,
a alma recebe seu quinhão segundo as escolhas que faz, sem o
5. Finalmente, o estado de morte, no qual a alma deixa menor acaso.
definitivamente seu involucro material.
A alma dos sábios subjuga o corpo, elevando-se sobre as
O filósofo Plotino, nascido no Egito por volta do ano 203, contingências materiais. Sua purificação, pelo sábio, consiste
apresentou uma concepção da alma que exerceu importante em isolá-la do corpo. Sem a alma superior e perfeita,
influencia em todo o Ocidente, tanto cristão como muçulmano. acompanhada da razão que ela confere, o ser humano ficaria,
Ele foi o fundador da filosofía neoplatonica. Em sua “Enéade”, portanto, sujeito ao destino cego. Ela entra no corpo no
ele aborda o assunto de maneira bastante completa. Segundo momento oportuno, por meio de uma atração irresistível ou,
ele, a alma corresponde a urna substancia imortal e invisível, melhor, apenas sua natureza mais audaciosa, imprudente e
intermediaria entre o mundo sensível e o das idéias arquetípicas. maldosa contém o corpo, enquanto a parte superior permanece
Ele a considera como a última das divindades. Saída do Deus em contato com o domínio dos arquétipos. Portanto, também
Supremo, ela produz o mundo engendrando o tempo, em em Plotino encontramos essa divisão da alma, em superior e
relação com a Justiça Universal. Portanto, ela é a causa primeira inferior, em única e múltipla.
de todas as coisas.
Segundo Plotino, a alma é semelhante a raios luminosos
A alma não fica completamente encerrada no corpo, mas, emitidos por um ser. Sua natureza é propriamente luminosa e
ao contrario, contém todos os seres ao mesmo tempo, ela faz nascer uma obscuridade nos limites de sua luminosidade.
permanecendo sempre idêntica a si mesma. E ela que fornece Ela dá, então, uma forma a essa obscuridade, que corresponde
o corpo, ordenando a matéria na qual se infunde. Ela, então, ao corpo. Ela se sente feliz somente em sua relação com o bem
individualiza-se, mas essa particularização resulta do sub- com o qual vibra em afinidade, consumindo-se de desejo por
emprego de sua forma primeira. Algumas faculdades da alma ele. Toda sua função visa guiar o ser humano, ensiná-lo e
atuam, portanto, em algumas pessoas unicamente em função iluminar seu pensamento, dirigindo-o no caminho do bem,
das diferenças de corpo e órgãos. A alma age sem reflexão, em do justo, do belo e do verdadeiro. Em suma, para Plotino, a
função de sua natureza própria e imperativa. perfeição da alma consiste em se tornar semelhante aos deuses
pela prática das virtudes superiores.
O vício e a maldade das almas têm seu lugar na perfeição
do universo e contribuem para seu equilíbrio. Mas a alma imóvel Enfim, e isto encerrará este tratado da alma, diversas culturas
é um ser absolutamente simples, que não é responsável pelas imaginaram o momento em que a alma se encarna e toma posse
de seu corpo. Aliás, parte das proibições relativas ao aborto
provêm desse debate. Para os cristãos, embora não saibam ainda
0 7 m ozie: co/npazaçõe)
claramente se a alma é criada ou preexistente ao corpo, admite-
se de modo geral que ela está presente desde o primeiro com o sono e o najc¿/nen¿o
desenvolvimento das células fetais.

O budismo tibetano, pelos lábios do Bardo Thõdol, afirma, O sono e a morte


no Bardo do devenir, que a alma penetra no corpo no momento
da concepção: “E nessas con dições que tu penetras na matriz e, “B em -aventurados os humildes, porque verão a D eus”.
no exato instante em que o óvu lo e a sem ente se encontram , sentes O Sermão da M ontanha, Evangelho de Mateus
a alegria inata e, nesta felicida de, desfaleces”.
Quem não ouviu, alguma vez na infância, alguém lhe dizer,
Mas as tradições esotéricas têm uma posição muito mais para tranqüilizá-lo: "Morrer éco m o dorm ir”} Essa comparação
lógica, que resulta do próprio conceito da alma. Elas partem entre a morte e o sono é muito difundida no planeta. H ipnos, o
do princípio de que a alma, como princípio vivificante, é aquilo sono, cujo filho chamava-se M orfeu, era irmão de Tanatos, a
que realmente dá autonomia ao corpo. Em outras palavras, ela morte. Alguns muçulmanos chamam o sono de "a pequena
só pode se introduzir no corpo no instante da primeira m o rte”. Entre os cristãos, a morte era considerada um sono da
respiração. Antes desse momento, o corpo da criança é alma. Quando você ouviu essa comparação pela primeira vez,
vivificado e nutrido pelo corpo, pelo sangue, pela respiração e provavelmente achou a imagem bonita, mas sem realidade e
pela alma de sua mãe. Ele não possui nenhuma autonomia. O sem importância. Pois, sim!
conceito de pessoa é um absurdo ao se referir ao feto, pois esse
corpo ainda por nascer não possui nenhuma das características Os tibetanos consideram que há seis bardos ou estados
autônomas. Como analogia, poderíamos usar a imagem de um intermediários, dos quais dois pertencem à morte, sendo os
carro. Que é ele de fato? Um amontoado de ferragens, dotado outros três o da meditação, o do sono e sonhos, e o do
de rodas, motor e volante? Na realidade, um carro só é nascimento. Poderíamos acrescentar também os estados
realmente digno deste nome quando a energia que lhe permite intermediários que adornam a vida nas diversas transformações.
deslocar-se e o seu condutor estão presentes. Antes disso, ele
não passa de um conjunto de lâminas de ferro e plástico mais Dessa constatação bastante geral, veio a idéia de comparar
ou menos bem modeladas. todos esses estados intermediários ao da morte. Por que e como
o sono pode ser seu irmão? Se a morte representa uma porta
para o espírito, então, o nascimento conduz para o mundo.
Em quê possuem eles um ar de parentesco?
Estabelecer essas comparações poderá parecer sem Deixemos agora essa cena, para voltar ao nosso tempo atual.
significação para alguns, enquanto, para outros, assumirá um Esses dois seres do paleolítico acabaram de emitir a hipótese da
caráter bem eloqüente. Seja como for, devemos faze-las. existência de uma alma imortal. A experiência do sono e do sonho
Muitas culturas comparam o sono e a morte, mas raros são os foi talvez, naqueles tempos distantes, o meio pelo qual a
exploradores que ousam “ir lá ver”, de maneira mais direta e humanidade considerou, pela primeira vez, a existência de uma
sistemática. parte invisível no ser humano. Essa parte invisível também pode
ser definida como a face noturna do indivíduo. Na mente dos
O que se segue provavelmente não tem um suficiente valor primeiros povos, tratava-se bem mais do que o inconsciente
científico para a inteligência zelosa de exatidão; todavia, as redescoberto em nossa época. Essa fase noturna, uma parte do
comparações aí estão, muito significadvas. Basta se deixar levar. mundo cristão nunca cessou, desde seu surgimento, de combatê-
Agora, se você quiser saber mais, siga o guia e comece a la, perseguindo os então chamados pagãos. Até hoje, ela incomoda
entranhar-se no reino do sono. a mente racionalista do mundo moderno, onde só se acredita
naquilo que se vê. As pessoas esquecem, porém, que nossos
Imagine que você se transportou para 35.000 a.C. Você próprios sentidos físicos estão sujeitos à ilusão e à manipulação.
está numa choupana de sapé. E noite. O fogo acaba de se
apagar. Entretanto, ainda restam algumas brasas rubras na Essa dimensão lunar foi a fonte das maiores criações
fogueira. Perto dela, há dois homens deitados, que artísticas. No início do século 20, ela rebentou na forma do
apresentam traços parecidos com os do homem moderno. surrealismo. E ainda hoje ela causa confusão, pois sobre ela
Eles estão vestidos com peles de animais. Um deles dorme. nenhum ser humano consegue ter poder, ao passo que a
Seu tórax sobe e desce regularmente, no ritmo de sua calma inteligência diurna pode ser facilmente condicionada. O espírito
respiração. Seu vizinho vigia, olhando os arredores. De sopra onde e quando bem entende. O ser humano não é
repente, a pessoa adormecida se agita e começa a dizer somente um cérebro montado sobre duas patas; é também uma
palavras desordenadas, quase inaudíveis. O outro observa, alma unida ao seu subconsciente.
meio intrigado, mas fica em silêncio. A noite passa assim, De modo surpreendente, essa dimensão do ser humano,
tranqüilamente, sem mais incidentes. Na manhã seguinte, já que nos parece noturna e pouco compreensível, corresponde,
acordados, os dois homens conversam. O que dormiu conta na verdade, à sua verdadeira parte luminosa. Os egípcios
ao seu companheiro que, durante a noite, seu espírito viajou. antigos não se enganaram; eles a chamaram de o Divino Rosirê,
E caçou um caribu nas grandes estepes desertas. O outro o Sol dos mortos. Como se a verdadeira luz pertencesse a esse
escuta, pensando profundamente. De repente, como um mundo situado atrás do espelho. Rosirê reina no mundo do
relâmpago ou uma revelação, ocorre-lhe uma idéia: e se, além, como o grande juiz das almas, mestre da psicostasia. De
quando a gente morre, alguma coisa nossa sobrevive e sai qualquer modo, todos os que viveram uma experiência de morte
viajando, como nosso espírito durante a noite? iminente normalmente citam essa luz que perceberam.
Mas voltemos ao ser humano e ao seu aspecto secreto. Mas, vejamos a seqüência. A pessoa acaba relaxando.
Cinqüenta por cento de seu ser lhe é um total desconhecido, Pedaços de frases interrompidas, pensamentos desconexos
mesmo com todo o progresso da psicologia. E foi provavelmente assaltam a consciência. Imagens truncadas se sucedem
isso o que descobriram os seres humanos a quem chamamos rapidamente, invadem a mente entre a vigília e o sono. As
primitivos, há uns 35000 anos, observando seu sono e seus palavras ou as cenas que se apresentam podem corresponder
sonhos. Isso foi o início da civilização e de uma evolução da àquelas estocadas na memória pré-consciente ou semi­
consciência, sem precedente. consciente do cérebro. Para a maioria, essas palavras ou cenas
têm relação com o que foi ouvido ou visto durante o dia, mas
Passemos, então, à exploração do sono e sua comparação às quais não se deu atenção. Parece, então, que nesse momento
com a morte. Analisemos, prim eiram ente, aquilo que o cérebro libera parte de seu conteúdo subconsciente. No
poderíamos qualificar de mecanismo do sono. Quando o momento da morte, defrontamo-nos com um processo similar.
indivíduo deseja dormir, sente necessidade de deitar seu corpo. A alma revê sua vida passada, é igualmente posta diante de
Para que o mergulho no sono se faça nas melhores condições, seus conteúdos subconscientes. Isso explica o porquê de muitas
é bom também que a pessoa se livre do estresse, das tradições afirmarem que as últimas experiências da vida são
preocupações cotidianas e do fluxo dos pensamentos que cruciais nesse instante. Assim como o estado mental de uma
invadem seu cérebro incessantemente. Em outras palavras, um pessoa condiciona seu modo de dormir, seu estado psicológico
relaxamento prévio, tanto interna como externamente, ou tanto nos anos que precedem a morte influenciará a natureza da
mental como fisicamente, constitui uma boa preparação para experiência “vivida” no momento da passagem.
o sono.
Prossigamos nossa viagem gradual pelo sono. Com o
No momento da morte, existe igualm ente uma fase relaxamento, a pessoa se harmoniza com os grandes ritmos
preparatória, que consiste numa espécie de liberação do vitais de seu corpo. Via de regra, salvo problemas de saúde
passado. O ser humano tem necessidade de sentir que sua graves, a respiração se torna ampla, calma, relaxada, e
tarefa neste mundo foi cumprida, que está encerrada, e que proporciona uma sensação de liberdade. Isso se chama
seus negócios estão em ordem. Para partir em paz, a pessoa “respiração do bebê”. Para observá-la, basta olhar para um bebê
tem de poder se soltar, sem ser retida por nenhuma obrigação e constatar o relaxamento de seu corpo e a confiança absoluta
ou inquietação. O andamento é idêntico, para o sono. E por que ele demonstra.
isso que, na Idade Média e mesmo mais tarde, ao se preparar
para o sono, a pessoa era aconselhada a fazer um exame de No estado de vigília, a respiração é muitas vezes truncada
consciência, tendo em mente que o dia que passou podia ser o ou sem ritmo. A pressão da mente e das preocupações
último. E por isso também que os muçulmanos chamam o sono respondem por grande parte disso. O indivíduo raramente está
de “apeq u ena morte". em harmonia com os ritmos naturais de seu corpo. O tempo
todo há tensões que impedem a energia vital de circular através do sonho não é aquilo de que a pessoa se lembra ao
livremente. No pior dos casos, essa condição pode se tornar acordar. A consciência de vigília já terá feito uma seleção a partir
fonte de enfermidades. No momento da morte, a alma também de seus preconceitos e de seus próprios códigos e hábitos de
entra em harmonia com os grandes ritmos do universo. Ela pensamento. Portanto, já terá traduzido a experiência nos
intensifica seu contato com sua Mãe, a Grande Alma Universal. termos lhe convém.

Mas avancemos mais ainda sono adentro. Nesse momento, Esses elementos deveriam nos tornar prudentes na
o estado de consciência do indivíduo sofre uma alteração. Sua interpretação de experiências de morte iminente. Na realidade,
consciência se expande progressivamente, a própria noção de os relatos são dificilmente compreensíveis no que concerne o
limite desaparece. Seu eu de vigília se dissolve cada vez mais, e aspecto oculto da experiência. Da mesma maneira, tudo o que
ele mergulha realmente no sono, perdendo totalmente diz respeito à morte deveria ser tomado num sentido simbólico.
consciência de si mesmo. A morte corresponde também a uma As melhores linguagens que podem descrever uma experiência
alteração da consciência. O eu exterior desaparece progres­ da alma, após a morte, são o símbolo e o mito. O símbolo mais
sivamente e uma espécie de sono da alma se segue. Após o conhecido é, sem dúvida, o da balança onde é feita psicostasia
primeiro sono, o ser vai se expressar com sua linguagem (pesagem da alma e julgamento). No que tange as idéias de
própria. A recordação dos sonhos dá uma idéia dessa justiça, balanço da vida e purificação, temos de recorrer,
linguagem. inegavelmente, aos símbolos. Esse é um princípio mais fácil de
ser compreendido quando o abordamos fazendo comparações
No curso de uma noite, sonhamos de acordo com várias com os sonhos.
fases, chamadas de sono paradoxal. Cinco desses períodos, de
duração variável, adornam nossas noites, segundo os cientistas. Há um outro ponto muito interessante, comum à morte e
O mais importante deles, o quarto, ocorre entre quatro e seis ao sonho. Trata-se do fenômeno do eu. O eu, no estado de
horas da manhã, que é um dos períodos durante o qual as vigília, está normalmente vinculado ao corpo físico. Ora, nem
mortes são mais freqüentes. Segundo alguns pesquisadores, no momento da morte nem no sonho, a consciência está
no curso de uma noite, viveríamos apenas um único sonho, vinculada ao corpo físico. Na morte, a alma se separa do corpo,
com uma simbólica diferente a cada vez. enquanto, no sonho, o sistema nervoso está relativamente
adormecido, tanto que o corpo fica como que paralisado
É difícil interpretar um sonho por ser ele o modo de durante algumas fases do sono paradoxal. Que acontece, então,
expressão preferido da alm a, por intermédio de nosso quando observamos o sonho? Primeiro, o sonhador nunca vê
subconsciente. O Dr. Freud, à sua maneira, descobriu e seu corpo físico. Segundo, sua consciência do eu consegue
demonstrou isto: que o inconsciente possui uma linguagem saltar de uma personagem para outra. Ela possui a faculdade
constituída de símbolos. O que o ser interior tenta comunicar de se metamorfosear em qualquer coisa. Uma sonhadora
contou que uma vez sonhou que ela era uma chaleira. Isso abolidos, como também as noções de dualidade e de separação.
significa que, num sonho, a pessoa se confronta com o self,’ Os celtas, lembre-se, haviam descrito esse fenômeno contando
isto é, um eu difuso que se estende a todas as coisas. No que, na noite de Samain, o Dagda tinha perdido seu território
momento da morte, segundo os dados tradicionais, o mesmo para seu filho. Na noite de Samain (Todos os Santos), o tempo
fenômeno se produz. A consciência do eu vinculada ao corpo e o espaço cessam de existir, não é?
desaparece pouco a pouco, para dar lugar a um tipo de
consciência nova, mais próxima da universalidade. Mas, então, se não há tempo nem espaço, que são as
descrições fantasiosas e infantis que algumas pessoas fazem
Outro elemento intrigante e rico de significado: a noção de do além? Devemos buscar a realidade de outro modo? Nos
tempo, no sono e no sonho, desaparece ou se torna totalmente domínios da alma, portanto, estamos lidando com uma
relativo. O mesmo ocorre com a noção de espaço. Se acordamos dimensão nova que, para ser apreendia, exige uma nova lógica
alguém que está sonhando e lhe pedimos para contar seu sonho e novos conceitos. Mais uma vez, recorrendo ao Bardo Thõdol,
e estimar o tempo que ele durou, ele fica surpreso ao constatar podemos acrescentar que as experiências encontradas pelo
que sua aventura onírica, que parece ter se estendido por horas morto assemelham-se a um sonho. Todos os ingredientes estão
a fio, na verdade, não durou mais que uns poucos minutos ou lá e, em especial, as projeções dos conteúdos da consciência.
mesmo segundos. A pessoa que sai de um coma profundo
geralmente não consegue determinar a duração do período Do ponto de vista da alm a, a morte acontece sem
em que ela viveu inconsciente. Depois de uma boa noite de sofrimento. Nas EMI, os testemunhos reportam que, após a
sono, é fácil avaliar as horas passadas nos braços de Morfeu, separação entre o ser físico e o ser espiritual, a pessoa pára de
sem olhar o relógio? E bem conhecido também o fato de que o sofrer e que a sensação é muito agradável. Em geral, a mesma
sonhador pode viajar instantaneamente de um ponto a outro coisa acontece no sono e nas formas mais profundas de coma.
do planeta, como num filme de cinema. A lógica que o sonho Em alguns casos, o corpo físico pode até estar doente ou
segue não tem nada a ver com a do nosso mundo diurno. ferido, e a pessoa gemer porque o instinto de sobrevivência
está inscrito na memória de todas as suas células. Entretanto,
Como ficam os elementos de tempo e espaço no fenômeno a consciência não se solidariza com a experiência vivida no
da morte? Muita vezes, as pessoas fazem a seguinte pergunta: nível do corpo. Logo, não há conscientização do sofrimento,
admitindo-se a doutrina da reencarnação, quanto tempo o se visto que uma parte do sistema nervoso está relativamente
humano passa do outro lado? Invariavelmente, pode-se dormente. Pessoas que estiveram em coma dizem não se
responder: do ponto de vista da terra, vários anos, conforme o lembrar mais de nada, ao passo que observadores externos
caso; mas, do ponto de vista do céu, essa pergunta não faz o jurariam que elas estavam sofrendo. Assim também, na morte,
menor sentido. Um piscar de olhos ou uma eternidade são a onde ficaria o sofrimento físico se não há mais nenhum
mesma coisa, pois, nesses domínios, o tempo e o espaço são sistema nervoso para senti-lo?
Agora que o aspecto puramente mecânico do sono e do perseguir e abordar o papel do sono no plano mental. Nesse
sonho, comparativamente à morte, foi abordado, há uma quesito, as descobertas mostram que o sono e o sonho ajudam
pergunta que os cientistas se fazem e que também poderíamos a pôr em ordem as impressões recebidas e memorizadas pelo
fazer: para que servem o sono e o sonho? Ao responder essa cérebro. Contribuem também para a execução de uma triagem
pergunta, é possível que descubramos, sempre por analogia, na enorme massa das informações conscientes ou subliminares
valiosas informações acerca da utilidade da morte. E, para recebidas diariamente pelo cérebro. Têm, portanto, um efeito
respondê-la, é útil abordá-la segundo três pontos de vista: benéfico na assimilação das informações adquiridas no estado
físico, mental e espiritual. de vigília. O sono paradoxal tem imensa importância na
memorização e na maturação do sistema nervoso. Ele protege
Pelo relaxamento que proporciona, o sono traz o repouso e as lembranças de todas as interferências que possam perturbá-
a regeneração física. Favorece a produção de diversos las e propicia um verdadeiro tratamento das informações.
hormônios, dentre os quais o do crescimento. Setenta e cinco
por cento desses hormônios são produzidos durante o sono Uma pesquisa realizada com crianças em idade escolar
profundo, tanto que a insônia pode provocar retardo de mostrou que quanto mais a criança dorme, aproximando-se
crescimento nas crianças. Esse hormônio favorece também a das doze horas, mais sua taxa de rendimento escolar aumenta
reparação de fraturas e a cicatrização. Vale lembrar que a estáticamente. Quanto mais a criança dorme, mais facilidade
produção de hormônios é dirigida pelo sistema nervoso ela apresenta para aprender e reter. Além disso, como explicam
autônomo. No bebê, já se comprovou o papel do sonho no os psicanalistas, o sonho possui uma função de liberação das
amadurecimento do cérebro. Regeneração e desenvolvimento frustrações acumuladas no estado de vigília. Ele teria, assim,
físico, estas parecem ser as palavras-chaves que definem o sono. uma relativa função de purificação.
O mesmo vale para a morte, ainda que essa imagem possa
parecer engraçada. O ser humano troca o co rp o usado de um E quanto à morte? Purificação, balanço (que vem da palavra
velho, o qual não lhe permite mais realizar todas as suas italiana b a la n d o: balança), pesagem da alma, julgamento...
funções, por outro, regenerado, de um recém-nascido, cheio Todos esses termos não se parecem com um tratamento da
de potencialidades. Sem essa restauração, a alma não poderia informação? A alma, nesse caso, seria considerada como um
mais evoluir nem manifestar as infinitas riquezas que ela conjunto de informações a serem ordenadas, estocadas,
encerra. selecionadas... Aliás, talvez seja a esse preço, pago ciclicamente,
que a personalidade humana pode continuar sua evolução.
Os cientistas concordam em pensar que, se o sono tivesse
apenas o papel de reparação física, o ser humano não teria As explicações que acabamos de dar sobre as funções do
necessidade de tantas horas de repouso e, sobretudo, não sonho nos planos físico e mental não satisfazem plenamente
precisaria sonhar, mas simplesmente relaxar. E preciso, então, os cientistas que trabalham no campo da pesquisa. Isso não é
de espantar, já que muitos deles se recusam a levar em conta a maior? Provavelmente, que a alma do ser humano necessita se
dimensão espiritual do ser humano. Essa, aliás, é urna das recolher ao seu mundo próprio, alguns momentos todo dia,
características do processo científico atual, que propo­ para se revigorar. E é exatamente isso que ela faz no fim de sua
sitadamente deixa de lado, quando não nega, a faceta espiritual vida terrena. A diferença reside em que, durante o sono, não
do ser humano. Somente uns poucos pioneiros, como C. G. há separação definitiva entre a alma e o corpo. Seria mais uma
Jung, tentaram fazer um processo unificador, associando o espécie de re-harmonização do ser psíquico. Isso se traduziria
científico e o espiritual. Esse processo, aliás, era bem mais numa energia vital renovada, através de uma reativação do
sistemático no Egito antigo, que tinha certo avanço no sistema nervoso autônomo, o que explicaria as inúmeras
desenvolvimento científico de seu tempo. O fascínio que essa conseqüências endocrinas.
civilização exerce no mundo moderno vem, entre outras coisas,
desse desenvolvimento. Hoje, apenas movimentos como a Vale lembrar que a energia vital é um atributo da alma,
Ordem Rosacruz, AMORC, parecem ousar, contra ventos e representando a consciência uma outra característica. Quando
correntezas, restabelecer essa unidade entre a análise científica dormimos, a mente analítica fica entorpecida. Ora, essa mente,
dos fenômenos e a espiritualidade. em muitos casos, constitui uma das fontes do bloqueio da
circulação da energia no corpo e do mau funcionamento dos
Analisemos, então, o papel espiritual do sono e do sonho, órgãos. Deve-se ver aqui a origem do estresse destruidor.
comparando-o sempre à função cumprida pela passagem para Durante o entorpecimento da mente analítica, o corpo se põe
o outro lado do espelho. O sono possui uma função a vibrar, naturalmente e sem entraves, em uníssono com os
regeneradora no plano espiritual, da mesma forma que no grandes ritmos universais. Isso se traduz numa respiração mais
plano físico. Os efeitos produzidos por um simples sono de plena, numa diminuição do ritmo cardíaco, num relaxamento
um minuto são bastante espetaculares, quando prestamos do sistema nervoso, etc.
atenção neles. A pessoa assiste a uma sensação de aquecimento
do sangue, a circulação sangüínea melhora visivelmente e os Pesquisadores demonstraram que cinco dias sem sono dão
sentidos físicos passam por uma espécie de limpeza. A pessoa lugar a alucinações; mais uns dias e a loucura se instala, na
vê melhor, as cores se reavivam, ela ouve melhor, seus reflexos forma de uma paranóia. Parece, todavia, que viver sem sono
e sua vitalidade retornam. E quase impossível obter resultados não mata diretamente. O mesmo vale para os sonhos. Uma
como esses, em tão pouco tempo, através de outro proce­ pessoa que fosse sistematicamente impedida de sonhar
dimento que não o sono. caminharia para a loucura. O sonho desempenha um papel
importante na manutenção dos instintos de sobrevivência e da
Que outra explicação, que não seja estritamente física, integridade psíquica da personalidade. Tudo se passa como se
poderíamos dar ao fenômeno, partindo do princípio de que o o eu, paradoxalmente, para sobreviver, necessitasse se refugiar
físico é apenas a ponta emergente de um iceberg infinitamente no mundo do seIf ou numa zona de não-eu. A paranóia de
quem não dorme é uma perversão do ego, que se sente humano. Sem essa oscilação de sua verdadeira natureza para
constantemente agredido. Para manter seu equilíbrio, ele outros mundos ou outras dimensões, o ser humano, e mesmo
precisa se soltar de tempo em tempo. Só o sono torna possível o animal, não consegue continuar vivendo eficazmente. Graças
esse abandono que permite à alma evoluir em seu mundo a essa compreensão, o medo da morte se desfaz, para dar lugar
próprio. à aceitação. Algumas vezes, como no caso dos mestres
espirituais, ele se transmuta em compreensiva aquiescência.
Pierre Fluchaire, autor de "AR evolução do S ono”, explica, Muitos animais fogem de seus predadores enquanto têm uma
numa audaciosa conclusão, que uma pessoa que vivesse em chance de escapar deles. Mas, ao serem pegos, eles parecem se
harmonia com as leis universais não precisaria dormir, pois entregar à sua fatalidade, mas não trágica, apenas destinada.
sua alma não sentiria necessidade desse recolhimento. Em O ser humano, em ruptura com a natureza, possui o triste
outras palavras, a pessoa a que os místicos se referem como privilégio de se debater até o último suspiro. Um dos melhores
tendo alcançado a iluminação poderia passar sem o sono. Em serviços que se pode prestar aos nossos contemporâneos,
seu caso, a energia vital circularia sem entraves, não tendo, consiste em lhes restituir a concepção de uma morte útil e
portanto, necessidade de ser normalizada. O fato é que houve portadora de sentido. Isso pode lhes ajudar frente à sua própria
realmente, ao longo da História, pessoas reconhecidas como morte ou em situações de luto, não obstante continuar
santas e que não dormiam ou o faziam muito pouco. Por necessário que se faça, no dia D, um acompanhamento com
exemplo, Marthe Robin, na França, ficou cinqüenta anos sem amor e encorajamento.
dormir. Francisco de Assis, também viveu, durante boa parte
O sono é irmão da morte. Seria por essa razão que, o
de sua vida, dormindo muito pouco.
momento mais comum do dia, no qual os agonizantes soltam
seu último suspiro, situa-se incontestavelmente entre quatro e
Se estabelecemos um paralelo com a idéia de reencarnação,
seis horas da manhã? Curiosamente, essas horas são as da fase
apercebemo-nos de que os períodos que separam a morte de
mais importante do sono paradoxal. Seria o sono também a
uma nova encarnação são muito variáveis. Os tibetanos, quando
antecámara da morte?
falam da reencarnação de seus mestres espirituais, situam-na
entre zero e quarenta e nove dias após a morte. Haveria pessoas Freqüentemente, os mortos intercambiam com seus entes
que não precisariam ficar um período longo no outro plano, queridos por intermédio dos sonhos. “Do reino de Hades, os
para se revigorarem? Tendo percebido e compreendido a sonhos sobem , passando pela porta de ch ifre ou pela porta de
unidade entre os planos terreno e espiritual, sua consciência marfim ”, assim dizem os mitos gregos. Uma pesquisa, realizada
não teria nenhuma necessidade de ser purificada. no País de Gales, em 1971, mostrou que, de 295 viúvos e viúvas,
47% afirmaram ter vivenciado uma manifestação do cônjuge
Comparando a morte ao sono, percebe-se que a primeira, falecido, quer por sua presença, seu contato ou sua voz. O
assim como a segunda, representam necessidades para o ser astrônomo Camille Flammarion realizara, em 1899, uma
pesquisa semelhante com 4.280 pessoas, obtendo resultados tdéia de entrar em contato com ela nunca tinha m e passado pela
idênticos. Vários desses contatos foram obtidos também através cabeça. Como era o lugar onde isso a con teceu ? Bem, nada de
de sonhos. paisagem bonita, nem luz, nem m esm o um lugar especifico.
A psicanálise explica que trata-se de um processo psicológico S im plesm ente f o i ; nem tem po, nem espaço, nem lu ga r a ser
inerente a um trabalho de luto. Toda e qualquer possibilidade definido concretam ente. Mas o contato gerou uma reação física,
de contato com uma pessoa morta estaria, sem dúvida, excluída pois quando minha nora sentiu que tinha sido reconhecida, ela
para essa disciplina. Sua mais avançada explicação é que o m anifestou toda sua alegria apertando-m e fo rtem en te em seus
inconsciente desconhece a morte e que demonstra isto através braços. E não f o i uma sim ples sensação, f o i tão forte, tão con creto
e tão real quanto p od e ser um contato com qualquer pessoa viva,
dos sonhos. Com toda certeza, em alguns casos, a posição da
aqui na terra. Eu a a ch ei então idêntica, psíquica e p sico ­
psicanálise é válida, mas não em todos. Nas tradições antigas,
logicam ente, ao que ela era em vid a ... Minha nora queira m e dar
considerava-se que o sonho constitui um meio de comunicação
um a m ensagem para transmitir à sua fa m ília ... ”
com outros mundos. Isso ainda é praticado em muitas tribos
da África e da América do Sul. Entre os bondos da África do Testemunhos como esse existem aos milhares e é impossível
Sul, por exemplo, Deus é considerado muito distante para relatar todos eles. Em todo caso, eis aqui um último, breve
ajudar os seres humanos no cotidiano. Eles, então, recorrem mas comovente: "Uma noite, p ou co tem po depois da m orte de
aos ancestrais, que têm o dever de ampará-los. Para isso, existe m eu filh o, sonhei com ele. Ele não era o bebê que eu tinha perdido,
na tribo uma pessoa considerada pela comunidade como mas um jo v em m uito bonito, de uns vinte anos. Quando ele falou ,
predestinada a receber a orientação dos ancestrais, através de ouvi sua voz m e dizendo: “Como v o cê p od e ver, mamãe, eu estou
sonhos. Acredita-se que esse personagem faça parte do povo bem, não chore m ais”.
da luz. Ele recebe, dos ancestrais, conselhos para curar ou guiar
Existem também sonhos nos quais se vê uma pessoa
seu povo. O xamã, na Sibéria e no Canadá, cumpre uma função
morrendo ou que são compostos de imagens ligadas à morte.
similar. Durante o contato com outras esferas de existência, o
xamã tem acesso ao passado, ao presente e ao futuro. Para os Freqüentemente esses sonhos informam de uma transformação
que ocorrerá no relacionamento com aquela pessoa. Podem
bantus do Congo, a alma sai do corpo no momento do sono.
também anunciar uma possível mudança de vida para ela ou
Dessas viagens, ela traz os sonhos que lhe foram transmitidos
uma transformação em sua personalidade.
pelos ancestrais com quem conversou.
No Ocidente, é bastante comum encontrar pessoas que
contam que sonharam com um parente falecido. Aqui está o O nascimento e a morte
testemunho de uma senhora que perdera sua nora: “O contato Há algum tempo, o escritor Arnaud Desjardins contou,
f o i fe ito durante o sono, sem que eu o tivesse buscado ou desejado num de seus livros, que dedicou-se um dia a uma espécie de
ou, de outro modo, intencionado conscientem ente. Na verdade, a sondagem. A públicos orientais e ocidentais, ele dirigiu essa
única e mesma pergunta: qual é, para você, o contrário da palavra “Solve et coa gu la ”, diz o alquimista, expressão que significa:
“m orte”? A maioria dos ocidentais respondeu “vida”, ao passo “purifica e integra”. A purificação corresponde à morte,
que os orientais responderam “nascimento”. Essas respostas enquanto a integração representa o nascimento.
sintetizam bem as diferentes sensibilidades dos povos em
relação ao assunto. A morte é um fim ou somente uma A ontologia Rosacruz e a ciência do ser explicam que a
passagem? Nossa aposta aqui é de que existe apenas uma única encarnação da alma, no nascimento, ocorre no momento do
vida eterna, composta de uma sucessão de dias e noites, como primeiro alento; estando alma e alento vinculados. Inver­
no caso do movimento diário do sol. A manhã de cada dia samente, a morte ocorre no último alento. “Ele deu seu último
corresponde ao nascimento e a noite, à morte. Ambos suspiro”, isto é, “seu último alento”, “ele entregou a alma”, são
representam passagens entre o dia e a noite. O que está em expressões que escutamos muitas e muitas vezes. Mas há outros
cima comunica-se, assim, com o que em baixo, para realizar o pontos de comparação menos conhecidos.
milagre de uma só coisa. Nascimento e morte corresponderiam,
então, às duas faces de um mesmo rosto, como um Jano. Muitas descrições da passagem fazem referência a uma
segunda morte, na passagem de uma fronteira, como a do túnel
No instante do falecimento, o ser humano se desintegra em nas experiências de EMI. Sabe-se que, do mesmo modo, a
seus diversos componentes, sendo cada um deles eterno em criança vive um segundo nascimento, ligado à sua evolução.
essência. O corpo físico retorna ao pó da terra e prossegue seu Em seguida ao nascimento, sua tomada de consciência do
périplo na forma de átomos e de moléculas diferentes. Os mundo ocorre de maneira gradual, da mesma forma que, na
componentes mais sutis ou psíquicos do ser também se morte, a separação é gradual. No nascimento, a criança, se não
dispersam no âmago de sua essência primitiva. Os egípcios é totalmente cega, também não possui, antes de um mês, uma
admitiam a dispersão dos componentes da alma, como o B a c boa acuidade visual, e seu sistema nervoso não é totalmente
o K a, que até então estavam unidos no corpo vivo. Na verdade, eficiente. No entanto, está cientificamente provado que todos
cada elemento integrado no ser humano vivo volta a se unir à os órgãos do corpo estão presentes e operacionais desde o
Essência Universal que lhe deu origem. A integridade do ser nascimento. Mas, então, como explicar essa aparente
humano alma ou ser vivente” é perdida momentaneamente. contradição? Explicando que a alma ainda não tomou plena
Com o nascimento, o processo adquire caráter rigorosamente posse de seu veículo físico?
inverso. Há a reconstituição de um ser de síntese física, psíquica,
anímica e cármica, encarnado na terra. Devemos crer que, no nascimento, a alma tome posse do
corpo da mesma forma que um objeto entra num outro objeto
Se quiséssemos designar esses fenômenos em termos de ou devemos considerar que ela intensifique seu contato com
alquimia, designaríamos a morte pelo termo “dissolução”, ao ele, assim como qualquer coisa abstrata influencia o concreto?
passo que o nascimento seria qualificado de “coagulação”. Observe uma criança em pleno desenvolvimento: e uma
maravilha vê-la despertar pouco a pouco para o mundo. Mas, superior à dos homens. O fato de um homem se interessar
afinal, onde está aquele segundo nascimento prometido? Os pela morte mostra que ele tomou consciência e deixou que se
psicólogos afirmam que entre um ano e meio e três anos a expressasse nele a dimensão feminina, feita de receptividade.
criança toma consciência de si mesma. Ela diz “eu”. Eles Face à morte, evento do qual se padece, só nos resta sermos
chamam isso de o estágio do espelho. A criança reconhece sua receptivos, o que explica o porquê de as mulheres sentirem
imagem no espelho, ao passo que a maioria dos animais adultos menos repulsa pelo assunto.
não se reconhecem espontaneamente quando colocados na
No instante da morte, o corpo retorna à sua mãe Terra,
frente de um. Este é o segundo nascimento: a tomada de
enquanto a personalidade reúne-se à sua Mãe, a Alma
consciência do eu, a partir da qual a relação com o mundo
Universal. Em outras palavras, o humano retorna à sua
nunca mais será a mesma. Nesse exato momento, a consciência
existência essencial. Inversam ente, no nascim ento, a
se cristaliza em torno do ser físico, ao passo que, antes disso, a
personalidade deixa sua Mãe Universal, para reassumir sua
distinção entre o eu e os objetos (ou a mãe) é muito mais
✓ natureza individual, no mesmo instante em que o corpo do
nebulosa. E, aliás, em torno dessa idade que a criança perde a
bebê sai de sua mãe humana. Nascimento e morte invocam o
memória do meio espiritual de onde veio. Todos esses motivos
simbolismo da gruta. Gruta uterina da mãe, túmulo da terra.
conjugados explicam por que é geralmente tão difícil recordar
O túnel de acesso, nas experiências de morte iminente, também
o passado anterior aos primeiros três anos de vida. Assim
nos leva a pensar na entrada de uma gruta. Essa é a razão pela
também, na segunda morte, o ser esquece pouco a pouco o
qual alguns psicólogos se enganam grandemente ao com­
meio terreno de onde saiu.
pararem as EMI e determinadas experiências sob efeito de
psicotrópicos às reminiscências do nascimento. Não é nem um
Mas ainda outros pontos de comparação merecem ser
pouco espantoso que essas experiências sejam similares na
ressaltados. Nunca é demais repetir que nascimento e morte
forma. Contudo, o sentido do nascimento e o da morte são
correspondem a dois portais, separando dois mundos. Parece
estritamente inversos.
(sem querer ver nisso um discurso sexista, infinitamente
distante das intenções do autor) que os seres que guardam No tratado da alma, falamos de uma representação simbólica
esses portais são, com mais freqüência, as mulheres. O símbolo da alma, na forma de uma corda. Na imaginação popular, a
aqui é admirável. São a mãe e a parteira que assistem (o e ao) alma muitas vezes é representada como uma espécie de cordão
nascimento do recém-nascido. Hoje em dia, na maioria dos que se une ao corpo. A morte seria, então, a ruptura desse
casos, são as enfermeiras e as auxiliares de enfermagem que cordão. Mas, e quanto ao bebê, não está ele ligado à sua mãe
prestam ao defunto os últimos serviços ou que acolhem seu pelo cordão umbilical, que é cortado no nascimento? Um
último suspiro. Na grande maioria dos seminários de reflexão cordão substituiu o outro, e o ser está sempre atado a alguma
sobre a morte e dos seminários sobre acompanhamento, a coisa. No nascimento, essa ligação sutil intensifica gradual­
participação das mulheres é quase sempre numericamente mente seu contato com a dimensão psíquica da pessoa. Alguns
pesquisadores explicaram que, antes dos vinte e oito anos, o última na própria vida. Com efeito, a compreensão da função
ser humano ainda não tomou consciência de todas as da destruição é muito importante para nos ajudar a viver melhor.
potencialidades incluídas em sua alma. O ser humano, afinal, Se assim não fosse, a utilidade de uma reflexão sobre o tema
pode ser comparado a um sol. Seu percurso noturno ficaria seriamente reduzida. A principal lei do mundo m anifesto
corresponde à vida p o s t- m o r te m , seu percurso diurno é a da perpétua transformação. "Nada se perde, nada se ena, tudo
representa a existência terrena. se transforma”. A morte representa essa transformação sempre
presente na existência e nas atividades terrenas. Como você
Nem o nascimento nem a morte são repentinos. O ser acabou de ver, o metabolismo do corpo humano representa um
humano se dirige lentamente para seu zênite e sua maturidade, reflexo dessa lei. Continuamente, há criação de células novas
despertando pouco a pouco para o mundo manifesto. Depois para substituir as foram destruídas. Na verdade, boa parte do
do zênite, a fase espiritual do ser começa a despontar e o ser corpo humano terá sido inteiramente substituída no fim de
humano se dirige progressivamente para sua morte. O alguns anos. Isso ilustra o aspecto físico da questão.
momento exato da morte não foi definido com exatidão pelo
mundo médico. Se a morte biológica é definida como a parada Na vida social de um indivíduo, essa lei também afirma sua
definitiva das funções vitais, principalmente no nível do presença. Os grandes eventos familiares - nascimento, casamento,
triângulo cérebro, coração e pulmões, ainda é difícil situar no mudança de casa, mudança d e emprego, etc. - constituem
tempo a passagem da vida para a morte. Segundo L. V Thomas, algumas dessas transformações. Em outras palavras, a situação
"se não fo sse a urgência em determ inar com exatidão o m om ento anterior morre no advento da nova. As próprias sociedades
propício para a extração de órgãos e o da inumação ou da cremação, humanas sofrem essas mutações e os períodos de crise implicam
provavelm en te não haveria uma definição legal do que é m orrer". uma resistência às mudanças ou uma dificuldade de dar à luz ao
Q uanto m ais a ciên cia p ro grid e no assunto, m en o s se sabe futuro. Em todos os processos de morte, perde-se alguma coisa,
quando e como a morte ocorre. Ela não é um estado, mas um para se ganhar outra num nível superior. Mas é preciso aceitar
processo; permanece, portanto, inapreensível. No nível do perder antes de ganhar; a evolução jamais implica um ganho
corpo, ela é onipresente nas manifestações de destruição das perpétuo ou linear. O ser humano abandona um corpo físico e
células; fenômeno que se acelera em caso de doença. Basta, na uma consciência física, para ganhar vida e consciência espirituais.
verdade, uma perda de vitalidade, e as forças da morte entram As almas ditas “presas à terra” não querem perder nem esse corpo
em ação. Assim, a morte é, antes de mais nada e principalmente, físico nem as percepções de seus cinco sentidos. Elas se privam,
ausência de vida. Ela não corresponde a uma manifestação assim, de prazeres superiores. Na vida cotidiana e na das sociedades,
positiva. Após a morte biológica, o corpo, porém, não se torna se o indivíduo não quiser abandonar nada, sejam seus
inerte, mas continua a se transformar. preconceitos, seu modo de pensar ou seus processos esclerosados,
A essa altura, podemos considerar não mais uma com­ não poderá continuar progredindo - ou, então, isto se dará apenas
paração entre nascimento e morte, mas a onipresença desta no sentido do sofrimento. O velho homem teima em não morrer.
Este termo, “velho homem”, permite passarmos agora É preciso acrescentar que práticas como essa seriam
diretamente à questão da iniciação. Os Rosacruzes chamam perigosas hoje, pela simples razão de que, antigamente, as
a morte de "a gra n d e i n i c i a ç ã o Trata-se exatamente de uma iniciações eram feitas dentro de sociedades tradicionais
iniciação, posto que, quando ela sobrevem, a alma passa por extremamente fortes. Desde que nasciam, os postulantes
diferentes etapas que a levam gradualmente a deixar a zona estavam acostumados a práticas de cultos bem estritos, e o uso
tenebrosa do mundo material, para alcançar a luz celeste. de drogas e outros “cogumelos mágicos” era comum nessas
O term o in iciação , do latim in itia r e , que sign ifica práticas. Hoje, nas sociedades materialistas, as pessoas que
“começar”, descreve bem esse processo que implica ritos fazem uso de psicotrópicos fazem isto unicamente pelo prazer,
de passagem, de transformação, de conhecimento, de o que as leva aos piores excessos autodestrutivos. Mesmo que
habituação progressiva e, por fim, de ilum inação da alguns estejam em busca, mais ou menos conscientemente, de
consciência. Trata-se de uma mudança de estado, de estados de consciência diferentes, eles o fazem num âmbito
condição e de dimensão. Podemos reduzir uma iniciação, definitivamente inadequado.
de maneira mais ou menos arbitrária, a quatro partes ou
fases de desenvolvimento. Essas quatro fases já foram Nos anos sessenta, na Tchecoslováquia, um psicoterapeuta
nomeadas: separação, admissão, revelação e retorno. Elas e pesquisador tentou utilizar a droga para explorar as zonas
valem também para uma iniciação terrena, que, na verdade, de consciência superiores ou paralelas do ser humano. Stanislas
supõe uma morte simbólica. Grof utilizou o LSD, que ele próprio absorvia ou fazia ser
absorvido por voluntários. A observação das reações que se
Antigamente, no Egito, uma tradição relata a existência seguiam e as operações sucessivas obedeciam a um protocolo
de uma cerimônia que era praticada e que depois desa­ científico muito estrito. Não demorou muito para que essas
pareceu, pelo menos no Ocidente. O postulante aos graus experiências fossem proibidas. Não obstante, a corrente de
superiores do conhecimento era colocado num sarcófago. psicologia que leva o nome de “transpessoal” saiu dessas
Antes disso, oficiantes o tinham feito beber um elixir ou uma primeiras explorações. Curiosamente, essa nova escola confirma
droga. O iniciando assistia então, num estado secundário os elementos transmitidos pelas mais antigas tradições acerca
induzido pelo produto, à separação momentânea entre seu do ser humano. Fenômenos como a telepatia, a projeção da
ser espiritual e seu ser físico. Ele fazia de fato a experiência consciência à distância e as reminiscências de prováveis vidas
da alm a e da im ortalidade. E, aliás, justam ente essa anteriores foram observados. Qualquer uma das matrizes
experiência que vivem as pessoas que, sem o quererem, sofrem perinatais de Grof envolvem, aliás, o conflito e a experiência
uma EMI, depois de um acidente, uma doença ou um coma. de morte-nascimento.
Hoje não há mais iniciações desse tipo, pois acontecia às vezes
de a pessoa morrer mesmo, devido a uma excessiva fraqueza De fato, os iogues da índia, os sábios chineses e algumas
ou a uma excessiva impressionabilidade. raras escolas ocidentais, dentre elas a Ordem Rosacruz,
AMORC, há séculos vêm ensinando técnicas seguras e
inofensivas, cujo objetivo é realizar essas investigações, sem
(9 M lícíctío
fazer uso de drogas e sem que a pessoa precise sofrer um coma
ou um acidente. Contudo, a verdade é que anos de prática são As cifras falam: hoje há cada vez mais suicídios entre jovens
necessários para que o estudante alcance um resultado desse e aposentados. Esse aumento da autodestruição interroga nossa
tipo. Longe de nós sermos mercadores de promessas sociedade, como o fez em todas as épocas. Platão já se
inalcançáveis. pronunciara sobre a questão, há dois mil e quinhentos anos. E
disse formalmente: o suicídio é proibido. A originalidade de
sua posição, ou de sua ambigüidade, está no fato de que ele
considerava o derradeiro fim do ser humano totalmente
desejável. Segundo ele, a morte marca o fim de todas as ilusões
e todos os apegos às paixões terrenas. Ainda assim, insistia em
que o ser humano não tem o direito de adiantar esse evento,
pelo suicídio.

De fato, nenhuma espiritualidade realmente válida jamais


encorajou a autodestruição ou suicídio. O budismo, que leva
ao mais alto grau o respeito para com toda forma de vida,
ensina: "não m a t a r á s Essa frase aplica-se, em primeiro lugar,
à pessoa a quem ela se dirige. Essa recusa à autodestruição
corresponde, na verdade, a uma atitude ecológica. Isso implica
que a natureza, por intermédio de sua criatura humana,
cumpre uma função de inteligência e de consciência ímpares.
Eliminar-se significa frustrar a natureza da oportunidade de
realizar uma experiência por intermédio do fator humano. O
suicídio seria, portanto, anti-ecológico.

Vale ressaltar aqui, todavia, que, em pleno século 21, os


velhos tabus e as atitudes de rejeição para com os suicidas e
suas famílias não podem mais estar em circulação. Antigamente,
a comunidade excluía as famílias dos que cometiam o ato
considerado abominável e negava o enterro religioso aos
culpados. Assim, o grupo economizava fazer uma reflexão muitas vezes se compara à “derrota militar”, e muitas pessoas
sobre seus próprios comportamentos e normas, os quais ficam angustiadas quando começam a ver despontar o dia em
poderiam ter levado a pessoa a fazer o irreparável. Tratar-se- terão de se aposentar.
ia, talvez, de um meio de autoproteção frente a um ato
percebido como uma agressão à sociedade, feita por um de Um mapeamento da França (mas que também poderia ser
seus membros? aplicado ao mundo) dos locais onde as taxas de suicídio são as
mais altas faz ver que as regiões mais atingidas são aquelas
Hoje, sem desenvolver um sentimento de culpa, que onde a comunicação entre os indivíduos é mais fraca.
corresponderia ao pólo inverso da questão, podemos conduzir Sentimento de inutilidade, falta de comunicação, afastamento
uma reflexão inédita sobre o sentido desse gesto. Há uma das famílias, são alguns dos ingredientes que favorecem o
infinidade de razões que levam uma pessoa a cometer o desespero.
irreparável. O desespero, a solidão, um pedido mudo de Há também, se bem que infinitamente mais raros, suicídios
socorro, o medo do futuro, uma necessidade de iniciação, uma por razões filosóficas ou culturais. Todo mundo se lembra dos
atitude filosófica, o sentimento de inutilidade, a sensação de kamikazes japoneses, capazes de se lançarem com seus aviões
estar esmagado pelo peso das provações, um mal-estar geral sobre os porta-aviões americanos, em 1945. Seppufyu, o suicídio
resultante da perda do sentido de viver, etc. ritual do Japão, era, até o início do século 20, o meio de acabar
com a própria vida quando a honra do sam urai era maculada.
Não obstante ser impossível pretender cobrir todo o
conjunto das motivações que levam algumas pessoas ao Do mesmo modo, filósofos materialistas, ante um universo
suicídio, visto que cada criatura é uma história e um caso únicos, que lhes parecia desprovido de sentido, concluíram que a única
podemos, todavia, explorar algumas delas. Os dois períodos saída possível, face ao absurdo, residia no suicídio. Tratava-se,
da vida onde uma grande recrudescência do fenômeno pode na verdade, da resposta filosófica fornecida por seres centrados
ser observada são, segundo pesquisas econômicas feitas na em si mesmos, para os quais a corrente da vida universal pouco
França, a adolescência e a aposentadoria. importava. Não está evidente que a atual perda do sentido da
vida, que, inclusive, repercute na educação das crianças, seja
Com a aposentadoria, sabemos que um certo sentimento uma das razões do crescimento do fenômeno.
de solidão geralmente se instala. A pessoa se sente também Conclusão filosófica para uns, porta de saída das provações
aposentada da sociedade. Na era moderna, o velho, que não para outros, essa forma de suicídio negligencia o seguinte fato:
produz mais, geralmente é considerado simplesmente “o de acordo com a idéia de encarnações sucessivas, não há
aposentado”. Em outras palavras, ele não tem mais nenhuma escapatória possível. Segundo o princípio do renascimento,
função reconhecida, está fora do circuito ativo. Eis o que teremos de voltar à terra para enfrentar nossas questões e
significa, in f i n e , a palavra “aposentado”. Pior, esse termo dificuldades.
O suicídio de adolescentes, por sua vez, possui uma multidão A solução consistiria, entre outras, em instaurar um rito
de explicações. Angústia frente ao desconhecido que o mundo moderno de passagem, adaptado à mentalidade dos jovens de
dos adultos representa, crise de crescimento, falta de referenciais, hoje, mas ainda estamos longe disso. Um dia chegará, talvez,
medo de futuras dificuldade econômicas... Todas essas razões em que o pensamento moderno se reconciliará com a
já foram diversa e fartamente evocadas por psicólogos e mentalidade iniciática, com base não no misterioso nem no
sociólogos. Mas há uma que praticamente nunca foi objeto de demoníaco, mas num conhecimento profundo da psicologia
reflexão, e é a seguinte: a passagem da adolescência corresponde humana.
a uma fase iniciática. A psicóloga Françoise Dolto evocou, para
descrever esse período, aquilo que ela chamou de “complexo de
lavagante”. Como esse crustáceo do grupo das lagostas, o
adolescente sofre uma muda que o torna excessivamente frágil e
sensível. Alguma coisa nele precisa morrer (sua infância), antes
que ele possa chegar ao estado adulto. Mal acompanhada pelo
ambiente (família, escola, sociedade), essa iniciação pode se
transformar em algo crítico. Antigamente, as sociedades
tradicionais, como na Africa, instauraram ritos (a circuncisão,
por exemplo) cuja finalidade era ajudar a criança a se tornar
adulto. Nossas sociedades ocidentais abandonaram todos os ritos
e o jovem ficou entregue a si mesmo. Num período de prova e
de surda competição escolar, no qual boa parte de seu futuro
está em jogo, o jovem se sente muitas vezes desarmado.

Podemos, então, considerar a seguinte idéia: alguns


adolescentes tentariam, mais ou menos conscientemente,
provocar uma espécie de experiência iniciática, que antigamente
era simbólica, inclinando-se à tentativa de suicídio. Viveriam,
assim, no plano do corpo, a morte produzida nos domínios da
personalidade e da fisiologia, durante a passagem da infância à
maturidade. Alguns (felizmente mais numerosos) saem dela
fisicamente incólumes. Outros recomeçam, porque a tentativa
física de suicídio não resolve o problema psicológico. Mas uns
tantos acabam cometendo mesmo o irreparável.
óí/ti6o/oj
c/a a//na e c/a //totfe
Algumas vezes, o emprego de símbolos é mais eloqüente
do que longos discursos. Eles permitem que as faculdades
inteligentes mais profundas do ser humano sejam mobilizadas
para uma compreensão do tema em questão, no mais íntimo
de seu coração. O símbolo desperta também a intuição,
mostrando a outra face das coisas, aquela diante da qual a razão
pura emudece. O ser humano imaginou uma multidão de
representações da morte. Apresentaremos aqui apenas algumas
delas.

O taro dos iconógrafos da idade média

1 - 0 Arcano Sete, A Carruagem: um Símbolo da Alma


Essa carta do famoso jogo de tarô apresenta um rei
coroado, sob um dossel, conduzindo uma carruagem cujas
rédeas estão ausentes. O rei, jovem, porta o cetro do poder
e da autoridade. A carruagem é puxada por dois cavalos,
um de cor azul e o outro de cor vermelha, que parecem ir
em direções opostas, mas que fitam o mesmo objetivo. Na
realidade, a carruagem avançaria segundo uma direção
mediana em relação à visada pelos dois cavalos. Duas letras,
S e M, estão inscritas na frente da carruagem. A tradição
que acompanha esse jogo de cartas explica que a carruagem
do triunfo é de fato um símbolo da alma. Mas qual é a origem
dessa representação?
Vejamos, então, o que diz Platão sobre a alma, em “Fedra com o o condutor, e o espirito com o as rédeas. Os sentidos são os
“Eu dina, da alma, que ela se assemelha a um a força , com posta cavalos e os objetos que se lhes apresentam, as rotas. A alma dotada
de uma parelha e um cocheiro alados. Nos deuses, cavalos e cocheiro do corpo, dos sentidos e do espírito desfruta daquilo que lhe cerca;
são igualm ente bons e d e boa raça; nos outros seres, têm valores assim dizem os sábios. A pessoa desprovida de sabedoria e que não
desiguais; em nós, o cocheiro dirige a parelha, mas um dos cavalos fa z uso das rédeas tem sentidos indomáveis, com o os cavalos ariscos
éex celen te e de excelente raça, enquanto o outro éju sto o contrário, que puxam a carruagem ... Aquela cuja carruagem é dirigida
p or si m esm o e p or sua origem . Disso decorre, fatalm ente, que é p or um sábio condutor e cujas rédeas (do espírito) são habilm ente
tarefa penosa e árdua ter as rédeas de ?iossa alma". utilizadas alcança a m eta colocada na extremidade da rota, a
morada superior de Vishnu".
Para Platão, o cavalo vicioso faz a alma pender para a térra,
se tiver sido mal adestrado pelo cocheiro, e, assim, a alma tem No B hagavad-G ita, uma famosa carruagem é também
de lutar para se conservar na direção do bem. Por conseguinte, descrita. A que conduz o divino Krishna pelas mãos de Arjuna,
ele distingue na alma três partes, sendo uma delas o cocheiro e o arqueiro. O primeiro representa a consciência e o segundo,
as outras duas são representadas pelos cavalos. “O prim eiro, à a vontade. Juntos, eles guiam a carruagem da alma e sua ação
direita, é correto e bem talhado, tem p escoço alongado, ventas neste mundo. Mas a vontade deve ser submissa e educada pela
aquilinas, p êlos brancos e olhos negros; é am ante da honradez, da consciência superior.
tem perança e do pudor, arraigado à opinião verdadeira; a palavra
e a razão, sem os golpes, são o que basta para conduzi-lo. O outro 2 - 0 Arcano Sem Nome
é torto, grosseiro, m al talhado, tem corpo pequetio egordo, p escoço A décima terceira carta do tarô é a única que não tem nome.
curto, ventas achatadas, p êlos negros, e olhos azuis e injetados de Por esse motivo, foi batizada "Arcano Sem Nome". Aquilo que
sangue; é am igo da violência e da fanfarronice, é p elu d o em volta tem nome pode ser designado na qualidade de fenômeno
das orelhas, surdo, e só ob ed ece, com m uito custo, a chicotadas e palpável, portador de vida. A morte não faz parte dessa
aguilhões". Em seguida, o filósofo tece as relações que os dois categoria; ela é inapreensível em sua qualidade de passagem
cavalos mantêm com o cocheiro; um facilmente submisso, o evanescente. Na compreensão popular, ela se tornou sinônimo
outro rebelde ao comando. de supressão do ser. Quando a morte sobrevem, entre alguns
grupos africanos, ninguém pode pronunciar o nome do morto
Poderíamos, então, crer que o tarô reproduz simplesmente por algum tempo.
esse símbolo platônico, visto que em algumas cartas os dois
cavalos são branco e preto, e não azul e vermelho. Entretanto, Na carta do tarô, a personagem esquelética, com a foice,
um texto hindu, o Katha Upanishad, assim se expressa: "Vede a corta mãos, pés e cabeças coroadas, em meio a ramos de ervas.
alma (que vivifica o corpo) com o aquela que está montada na Ela manifesta, assim, a igualdade de todos diante da morte. O
carruagem , e o corpo com o a carruagem ; vede o entendim ento chão é de cor preta, que lembra a fase negra da alquimia. A
cabeça representa a consciência, e as ervas, a vida vegetativa. A renascimento do ser humano muito além da morte, no fim dos
morte, portanto, corta consciência e vida, livrando-se de tempos. A palavra “julgamento” refere-se aqui ao primeiro
riquezas. A foice, da cor do sangue, despreza o inútil para Julgamento dos Justos, do Apocalipse de São João.
conservar apenas o que é verdadeiramente produtivo. Apenas
as extremidades dos membros são cortadas. A morte tem, Mas houve, na História, outros túmulos famosos que foram
portanto, uma função purificadora. abertos, entre os quais o do Cristo e o de C hristian
Rosenkreutz.
Associada ao número treze, ela marca (ao menos na França)
esse número com uma idéia de infortúnio. Pode-se ver aí uma O túmulo da personagem mítica C. R. C. foi aberto por
ligação com o número do Cristo e seus apóstolos, em torno da buscadores, segundo a lenda, cento e vinte anos após sua morte.
mesa da Ceia, e dentre os quais um deles era um traidor. Não Nele, eles encontraram o corpo, conservado intacto, do
há quartos de número treze nos hotéis, ter treze convidados à presumido fundador da Fraternidade dos Rosacruzes. Na
mesa traz desgraça e a sexta-feira 13 é um dia nefasto. Na realidade, o túmulo, ele próprio um livro de conhecimento,
China, o número quatro, redução teosófica de 13 (1 + 3 ), encerra tesouros, manuscritos, obras de sabedoria... A abertura
constitui um presságio de morte. A superstição que acompanha desse túmulo marcava o ressurgimento da Ordem num
essa cifra é a mesma da que envolve a morte. Trata-se, na determinado país, depois de um necessário período de sono,
verdade, da exacerbação de uma resistência à mudança. de mais de um século. O “Fama Fraternitatis”, texto que narra
a história de sua descoberta, sugere que aquele ou aqueles que
O verdadeiro sentido do arcano indica o despojamento conhecem a natureza dessa cripta e dos tesouros que ela encerra
extremo (os ossos representados são brancos) que acompanha tornam-se capazes de restaurar de novo a Ordem ou a
uma transformação. Ela marca o fim de um ciclo, para uma nova Fraternidade. E isso, mesmo que, após centenas de anos, ela
primavera. Esse arcano (por ser um princípio invisível mas ativo) tenha sido reduzida a nada. Essa lenda simbólica sugere, na
sugere que o processo morte-transição é onipresente em toda verdade, que a Ordem Rosacruz, AMORC, identificada por
existência. Assim, o ser humano e as sociedades sofrem contínuas C.R.C., é uma Organização que sabe ficar sempre jovem e atual.
transformações que constituem outras tantas “mortes”. Não obstante permaneça tradicional, ela sabe também morrer
a fim de melhor se regenerar, como uma fênix que renasce
3 - 0 Arcano Vinte, O Julgamento - Túmulos Célebres perpetuamente de suas próprias cinzas.
O túmulo representa o local de um processo de renas­
cimento, após a morte. Nesse arcano, uma personagem, O túmulo do Cristo, por sua vez, foi encontrado vazio pelos
desenhada de costas, é despertada pela trombeta do anjo do discípulos do mestre. “Cristo ressuscitou! ”, exclamaram. O
Julgamento. Dois indivíduos, um homem e uma mulher, túmulo estava vazio, seu ocupante só podia mesmo estar vivo.
assistem religiosamente à ressurreição. Esse símbolo marca o A morte foi para ele o local de maturação de uma obra que
cobriu dois milênios. Ela sinalizou uma mudança por meio da de Languedoc, na Idade Média. Uma nova vida, então, ganha
qual o homem Jesus foi transformado em um deus por seus raízes na caverna. Ela pode conduzir à terra, como no caso de
discípulos. Muitas vezes, e é o caso da Alsácia, calvários são um recém-nascido, ou dar acesso à vida eterna, rumo ao céu.
colocados sobre um crânio ou sobre o caixão de alguém, cujo Corresponde, portanto, ao local de passagem por excelência.
esqueleto pode ser visto. Isso faz alusão ao Gólgota ou “local “Visita o interior da terra e, retificando-o, encontrarás a Pedra ”,
do crânio”, em Jerusalém, onde a cruz do sacrifício cristão se diz, em suma, a Tábua de Esmeralda. Em cima dessa bíblia
realizou. Trata-se também do velho Adão, cujo caixão se dos alquimistas, estava gravada a palavra "vitriol”. Não é no
encontra sob a cruz. A cabeça freqüentemente é associada à topo de uma montanha, mas numa gruta, lugar subterrâneo,
morte (cf. o Arcano Sem Nome, cortador de cabeças). As que se realiza a primeira transmutação, a “obra em negro” ou
ornamentações da Renascença usam bastante essa repre­ a nigredo do alquimista, associada à morte e à putrefação.
sentação. Em alguns ritos maçônicos, cabeças da morte estão
presentes e uma é colocada na câmara da reflexão. Tudo isso As civilizações que precederam os celtas na Europa
sugere, na simbologia cristã, que o ser humano que morreu reconstituíram a gruta através dos dólmens. Esses prova­
em Adão é regenerado no Cristo, graças à obra da cruz e a do velmente deviam servir como local de iniciação. Representação
tümulo tornado vazio. A própria cruz pode ser representada da matriz materna, serviam igualmente como campos de
pelo número treze, como na Rosacruz Hermética. Em cada sepultura. Pode-se entrar num dólmen como na morte ou dele
ponto cardeal, três elementos estão representados, mostrando sair rumo ao sol do oeste, para um novo nascimento. Vemos
doze princípios. O décimo terceiro encontra-se no centro da aqui o quanto a idéia da morte é inseparável da idéia do
cruz, no qual se realiza o ato sacrificial. nascimento.

4 - A Gruta Existem outros instrumentos utilizados nas cerimônias,


Outro símbolo, a gruta, também é freqüentemente associado tanto cristãs como de outras religiões, cujo valor simbólico é
à idéia de morte-renascimento. Platão utilizou o mito da inegável. A água, benta ou em outras formas, representa a idéia
caverna, em cuja entrada o habitante percebe a luz que vem de de purificação da alma. Antigamente, entre os camponeses,
fora. As representações cristãs fazem da gruta o local do costumava-se colocar um jarro com água no quarto do morto.
nascimento e da morte de Jesus. O presépio do nascimento é Acreditava-se então que a alma devia se banhar antes de alçar
uma gruta, o túmulo do Cristo é outra. Foi numa gruta que a vôo. O fogo também estava presente na forma das chamas das
Virgem Maria apareceu para Bernadete, em Lourdes, e lhe velas, que eram acesas ao lado do caixão. Ele simboliza a
confiou sua revelação. imortalidade do princípio invisível do ser humano. O incenso
que perfuma os templos e as igrejas, e cujas volutas envolvem
Lugar de trevas, é nela que o ser atinge a maturidade. Pode os corpos, representa, neste mundo, a essência etérea da alma
também se tornar um local de iniciação, como entre os cátaros do morto. Ele se insinua progressivamente em todos os cantos,
a exemplo do elemento ar ao qual está associado. Enfim, quem
não se lembra do punhado de terra que tradicionalmente era (9 c/atí/w c/a a////a
jogado sobre o caixão, no cemitério, antes da inumação
definitiva? As flores, que lembram a juventude eterna, a beleza Somos inclinados a nos apegarmos ao ego e à sua
e o renascimento cíclico, também fazem parte dos principios sobrevivência. Não obstante, outras concepções, que podem
freqüentemente utilizados. ser muito valiosas, foram apresentadas aqui à guisa de reflexão.
O universo pode ser imaginado como um grande ser em
Ao contato da morte, tudo se torna símbolo. Tradi­ devenir, cada componente do qual executa uma função antes
cionalmente, há quatro maneiras de devolver o corpo à de morrer definitivamente. Enquanto as partes desaparecem,
natureza, assim como quatro são os princípios que regem nosso o Ser supremo, o propósito, prossegue seu desenvolvimento —
universo: pela terra, na forma da inumação mais ou menos esta é a posição saducéia. Tomemos o ca so de um form igu eiro:
direta; pelo fogo, através da cremação; pela água, como fazem cada formiga executa uma tarefa específica, quase meca­
os marinheiros e também no Oriente, onde os corpos nicamente. Quer sofra ou não, ao final de sua existência, a
desmembrados são lançados num rio; e, finalmente, pelo ar, formiga se retira e desaparece definitivamente como entidade
quando é exposto, sem sepultura, ao ataque dos animais de constituída. Uma vez esgotada a energia que lhe permitiu
rapina. Pouco importa o método utilizado, contanto que um desempenhar seu papel, ela morre. Nada de reencarnação, nada
rito sagrado seja realizado. de sobrevivência, simplesmente uma obra a ser feita enquanto
a criatura está viva, em perfeita harmonia com o plano criador
do formigueiro. Nada impede que seja exatamente assim para
o ser humano, e ponto final. O ego é ilusão, o sofrimento pouco
importa, a alegria pouco importa, somente a obra viva e criativa
possui algum valor.

Isso bem poderia representar a verdade final do nosso futuro


e da nossa razão de ser (por que não?). No entanto, o ego do
ser humano não se satisfaz com isso. Ele não aceita ser tão-
somente a engrenagem utilizada por um imenso ser vivo, uma
engrenagem da qual o todo se livra depois que ela cumpriu
sua função.

A visão acima, para um ser consciente e dotado de livre


arbítrio, exige uma capacidade de abnegação sobre-humana
para ser aceita. A concepção budista de anatman (sem alma) cumprir uma função quase mecânica, mas tornou-se a
aproxima-se dessa visão, e o próprio Dalai Lama, embora a testemunha do Deus criador. Assim, foi concebido como um
defenda, explica que ela pode levar pessoas não preparadas ao ser em devenir. Um ser livre, cujos atos podem ser sancionados
niilismo. e cuja morte não mais constitui o fim. Sua vida, portanto,
enquadra-se num esquema mais vasto, em consonância com
O que, provavelmente, levou alguns filósofos a considerarem as faculdades por ele demonstradas.
outras soluções, baseadas nos dois fatos abaixo.
Das particularidades de seu ser inteligente, veio a idéia de
1. O ser humano é um ser consciente de si mesmo; ele tem que a liberdade por ele manifesta presume a possibilidade de
consciência de sua alegria e de sua dor, e busca sua felicidade. agir segundo o aspecto destruidor da lei universal. Alguns atos
foram concebidos como justos e outros como falsos ou
2. Sua consciência altamente desenvolvida proporciona-lhe inarmônicos em vista de uma progressão da Criação, entregue
um poder de discriminação e discernimento, e o livre-arbítrio. às tendências construtivas de sua natureza. A fim de que o ser
humano não ficasse mais sujeito ao seu próprio arbítrio, à sua
Disso decorre que o fenômeno humano, em sua grande própria desordem, veio-lhe a revelação de que seus atos podem
maioria, dificilmente aceita que um demiurgo ponha no mundo ser julgados por uma Justiça Universal que mantém o equilíbrio
criaturas para faze-las desaparecer para sempre, sendo que na Criação; uma harmonia rompida pela ação desordenada,
muitas são chamadas a sofrer. Esse arquiteto seria, então, uma cega e egoísta do ser humano. Se, a despeito de tudo, ele é um
espécie de Moloque ou de monstro arbitrário que se serviria produto da natureza, pode igualmente edificar a si mesmo em
de suas criaturas, antes de se livrar delas, como a lenço de papel acordo ou desacordo com a corrente construtiva geral que
usado. O ser humano não consegue apreender os fundamentos preside ao alçamento de sua consciência e de todo seu ser. Foi
de uma ação como essa, que o criou na luz, fazendo-o sofrer, em função das idéias de livre-arbítrio, de justiça retribuidora e
para no fim faze-lo desaparecer através de uma morte absurda. de consciência organizada e abstrata, que germinou a
convicção de que esse ser excepcional não pode desaparecer
Mesmo que possamos admitir que a coletividade, por sua tão simplesmente como uma formiga.
evolução científica, tenha se libertado progressivamente da
fatalidade do sofrimento, nem por isso essa dor deixa de ser O conceito deatm an, a alma individual dos hindus, emergiu.
inteira para o indivíduo, num dado instante de sua história. A Com os conhecimentos adquiridos hoje em matéria de
ciência, a despeito de seu desenvolvimento, nunca triunfará psicologia profunda, essa alma pode ser qualificada de
sobre a morte. personalidade-alma ou eu individual. Porque o ser humano
Então, veio a idéia de um desígnio mais vasto reservado ao pode declarar “eu sou”, à imagem do “eu sou Aquele que é ” do
ser humano. Ele não está mais na Terra unicamente para Deus bíblico, presumiu-se que um núcleo de seu ser pode,
após purificação, participar na imortalidade divina. Melhor
ainda, esse “eu sou” humano só pode ser um produto do “Eu
(Soncáuão
Sou” divino e, por conseguinte, sua verdadeira identidade foi
concebida como divina. Então, uma centelha, um fogo sagrado
depositado no coração do ser humano pode continuar aceso, a “Há um vivo p on to d e interrogação ante a vida em geral, mas
despeito do desaparecimento do corpo que a continha. igualm ente em fa c e de todo ensinamento. Nunca aceite, a priori,
um conhecim ento; ponha-o em prática, experimente, trabalhe com
ele e tire as conclusões necessárias ao seu progresso. .. "

Essa reflexão Rosacruz pode se tornar uma fonte de


meditação para cada um.

O tema da morte geralmente é objeto de exclusão nas mentes


racionais, que consideram que nunca poderemos saber o que
ela representa realmente. “Ninguém nunca voltou para nos
contar o que viu lá em cima (ou lá em baixo)”, dizem, com ar
de sabedoria douta. No entanto, a experiência prova que uma
verdadeira pesquisa pode fornecer alguns indícios. As
experiências de morte iminente ensinam sobre os estados
vizinhos à morte, o acompanhamento ajuda a compreender
aquilo por que passam os agonizantes. A possibilidade de
contato ou de influência entre os vivos e os mortos é sempre
evocada. Contudo, nada disso nos ensina

coisa alguma sobre a
realidade da experiência derradeira. E como se nós opusés­
semos nossa possibilidade de conhecer as coisas e as leis do
nosso mundo ao desconhecido que é a morte.

Estamos nós tão seguros de poder conhecer tudo neste


mundo? Nós nos interrogamos sobre a natureza da consciência
depois da morte, mas que sabemos sobre o estado de
consciência de um simples animal, sem falar da consciência do
nosso próximo? Nós conseguimos determinar o tamanho de
um cão, suas necessidades, seus humores, seus modos de verdade é que a reflexão sobre o tema desloca progressivamente
reprodução e comunicação... mas isto não nos informa nada os pólos de interesse principais, do ter para o ser. Tudo se passa
sobre a intimidade de seus modos de conscientização. Tudo como se, paradoxalmente, ela tornasse a vida mais bela, a
isso, portanto, não passa de conhecimentos externos. No exemplo daquilo que vivenciam os que passam por uma EMI.
entanto, saciamos nossa ignorância contentando-nos com esses A diferença está em que, para eles, a transformação se produz
indícios externos. A maior parte dos nossos conhecimentos em alguns minutos.
neste mundo é exatamente assim. Moldamos matematicamente
as leis naturais (pelo menos aquilo que acreditamos ter Se um conhecimento produz tantos resultados práticos, é
compreendido), desenvolvemos tecnologias, mas as coisas em porque possui um interesse real, num sentido pragmático. Foi
si continuam desconhecidas. Ignoramos, por exemplo, qual é exatamente isso, aliás, que C. G. Jung pressentiu: “O ser humano
a natureza intrínseca do átomo, exceto que ele corresponde a d eve pod er ter a prova de q u efez todo o possível para form a r uma
um conjunto de partículas cada vez menores, como num jogo con cepçã o ou uma im agem da vida após a morte, ainda que isto
de bonecas russas. Usamos e calculamos os campos magnéticos, seja uma declaração de sua im potência. Quem já não sofreu uma
mesmo ignorando sua verdadeira natureza. Acaso sabemos ao perda? Pois a instância interrogativa q u efa la n ele é uma herança
menos o que é uma vibração em sua natureza profunda? Um m uito longínqua da humanidade, um arquétipo rico de vida
fóton é considerado ora uma onda ora um corpúsculo. Uma secreta, que quer se unir à nossa para aperfeiçoá-la. A razão nos
onda é uma vibração. Que é que vibra, então? Que é que dá a im põe lim ites excessivamente estreitos e nos convida a viver apenas
polaridade positiva ou negativa ao elétron ou ao ímã? Nossa o con hecid o (ainda que com m uitas restrições) e numa esfera
ciência ainda não sabe. Mesmo assim, ela explora suas conhecida, com o se conhecêssem os a verdadeira amplitude da vida”.
propriedades em nossos eletrodomésticos. Se apenas com muita dificuldade conseguimos compreender
a morte intelectualmente, podemos tentar nos familiarizar com
Se somos tão pouco informados acerca de nosso mundo, ela, para descortinarmos intuitivamente sua função. Mas, para
por que ficarmos chocados com a ignorância sobre a morte? isso é preciso ousar cercá-la em todas as suas manifestações
No fim das contas, também em relação a ela, temos os indícios mais ou menos discretas. A imortalidade da alma representa
já citados. Tentar empreender pesquisas sobre ela possui um fenômeno e as condições que o enquadram já foram
também interesse prático. Poderia ela, talvez, nos dar as definidas. O obstáculo à sua compreensão talvez venha de
respostas para todas as outras perguntas? A longo termo, para nosso modo de abordá-lo; sua natureza é incompreensível, se
nossa surpresa, percebemos que, com a prática da meditação, não for acompanhado da ativação da inteligência do coração e
o estado da consciência se transforma progressivamente. de certa dose de poesia.
Finalmente, ao fim de alguns meses ou anos, a necessidade de
obter um conhecimento objetivo sobre ela adquire cada vez Não creio que o além possa ser descrito em termos do nosso
menos importância, para dar lugar a um estado de paz. A mundo. Tudo o que dizem as lendas, as tradições, as religiões
e os filósofos são apenas símbolos da experiência da alma. A morte corresponde a uma fusão naquilo que os
Permitem unicamente pressentir a verdade, mas esta está Rosacruzes denominam O Cósmico. Quantos sábios já
sempre alhures. Podemos sonhar com a preservação do ego, explicaram que, nessa fusão, o ser humano perde momen­
da autoconsciência e de quaisquer outras coisas que possam taneamente a consciência de sua identidade, como as cores
ser conservadas; n ossos desejos e, talvez a razão, sigam nessa perdem a sua na luz branca do sol. A identidade continua lá,
direção. A realidade, porém, provavelmente é mais sutil. adormecida, até que uma nova vida leve-a a se manifestar. Com
a morte, o ser humano funde-se na luz, unindo-se ao amor
incondicional, perfeito, infinito, e ... nele se perde. Da mesma
Quando um homem ou mulher morre, a experiência de sua forma como ele se perde no sono. Mas isso não dura, pois nesse
vida é conservada em algum recôndito da memória universal plano o tempo é abolido. Parte do medo da morte pode,
(um dia chegará em que a própria ciência provará a existência portanto, ser comparado ao medo daquele tipo de pessoa que
desta memória). A imagem do disquete que permite conservar se angustia perante o sono, porque não quer perder o controle
o trabalho feito no computador simboliza bem essa idéia da nem abandonar sua consciência de vigília. Para aceitar o sono,
conservação dos feitos humanos. Entretanto, a identidade é a pessoa precisa primeiro ter confiança no fato de que, na
conservada de modo impessoal, até ser utilizada na terra numa manhã seguinte, ela vai acordar, e, em seguida, deixar-se levar.
futura encarnação.
É a mesma coisa em relação à morte. Confiança é a palavra-
chave.
O ser humano, desde sempre, num recôndito de sua
consciência, está em contato com o infinito. O passado, o Assim, entre uma morte e um nascimento, há uma
presente e até o futuro não têm segredos para ele. E bem nesse continuidade de consciência. No intervalo, a alma passa pela
nível da consciência que cada um encontra seus ancestrais; purificação que se segue ao seu julgamento ou pesagem
eles vivem em nós. O período de luto permite a cada um simbólica. Com toda certeza, é isso que acontece, senão, para
compreender e realizar esse fato. Para muitos, passar pelo luto que serviria morrer, no plano da alma?
é o mesmo que esquecer, quando, na verdade, trata-se de
integrar simbolicamente em si a alma do antepassado. Então, No curso dos tempos, outras versões mais materialistas
o vivo pode ser inspirado por aqueles com quem está em foram inventadas. Em sua angústia, o ser humano não queria
harmonia. Isso, aliás, não significa forçosamente um contato considerar outro modo de existência, bem diferente do que ele
entre duas pessoas, mas uma harmonização momentânea (e conhecia. O espiritismo representa uma tentativa moderna,
talvez involuntária) entre duas vibrações simpáticas. Os grandes muito elaborada, nesse sentido. Para muitas pessoas, é difícil
ancestrais correspondem aos mestres das tradições esotéricas; ficar numa abstração que não as satisfaz. Os grandes
e o Mestre, como se costuma dizer, só se expressa quando o fundadores de religião souberam levar em conta esse fator,
discípulo se eleva até ele. sugerindo o conhecimento e, ao mesmo tempo, respondendo
às aspirações dos povos. Mas a humanidade até hoje não do incrível esplendor das dimensões espirituais. São desejáveis
compreendeu que a realidade é muito mais bela que as ficções essas esferas onde não reina nem sofrimento nem morte, onde
inventadas pelos seres humanos. Os experimentadores de EMI todas as coisas correm de sua fonte numa harm onia
falam da luz e da unidade que encontraram nela. Basta ouvir intraduzível. Estamos na Terra para melhor aspirar ao céu.
os testemunhos que eles dão ao retornarem. Trata-se de uma escolha voluntária. A escolha da pessoa que
compreende que este mundo é apenas "vaidade e perseguição
Uma história sufi usa o símbolo da borboleta da noite, que de ven to”.
gosta tanto da luz da vela que tenta se aproximar dela, até que
acaba queimando as asas e, por fim, morrendo. A alma é como A busca do Único e o esforço para guiar outras pessoas rumo
essa borboleta, com uma diferença: sua própria natureza é a a Ele são louváveis e provavelmente louvadas... em algum outro
luz. Assim, longe de se aniquilar em seu contato, ela se encontra lugar. Neste mundo aqui, nada é estável. Tão logo a pessoa
consigo mesma, em sua natureza suprema e verdadeira. Longe acha que se apossou de uma situação, esta lhe escapa. Perde-
de morrer para sempre, ela se põe a viver sua vida própria. se um amigo, sofre-se uma provação terrível. Num dado
Longe de se deslumbrar na pequenez de um ego ilusório, ela momento, as pessoas se questionam sobre o sentido de suas
abre suas asas imensas e voa rumo à eternidade. dificuldades e depois esquecem, até que a aspereza do mundo
as apanhe de novo. De tempos em tempos, uma guerra é
No continente norte-americano, existe uma raça de disparada, elevando o nível do so frim en to humano. Não
borboletas, as monarcas, que voam, a cada dois anos, do Canadá obstante, muitos vivem às cegas nesta terra. Os mais lúcidos,
até o México. A migração, uma das mais extraordinárias de porém, sabem que não há muito o que esperar. Somente uma
todas na Terra, abrange várias gerações desses insetos. Aos atitude plena de espiritualidade e de gratidão para com o
milhões, elas levantam vôo para uma viagem de vários milhares Criador santifica a passagem neste mundo.
de quilômetros, cujo circuito é conhecido dos observadores.
Em sua chegada ao México, elas são objeto de grandes festejos, A vida só pode ser verdadeiramente feliz e bela se o ser
pois os mexicanos acreditam que essas borboletas são as almas humano situá-la no coração de um desígnio mais vasto que ele
de seus ancestrais voltando ao país. mesmo. Senão, ela corresponde tão-somente a uma busca de
vãs quimeras. A felicidade não pode ser puramente um produto
Observando as manifestações de sofrimento, destruição e da matéria. Ela pode vir somente da contemplação do espiritual,
morte neste mundo, comparáveis às nossas atividades e à inclusive do espiritual contido - por que não? - na matéria. A
incessante competição, ficamos tentados a acreditar que ação sem a contemplação não é nada.
vivemos no planeta da agitação, ao largo dos verdadeiros valores
da vida. Podemos viver e agir dentro do mundo, mas a meta de
todas as atividades é e será sempre nos fazer tomar consciência
£ S ¿6 / w < / ia / ía

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SCHURÉ (Édouard): L esgrands initiés, Pocket, 1983.
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A Ordem Rosacruz, AMORC é uma


Organização Internacional de caráter
místico-filosófico, que tem por MIS SAO
despertar o potencial interior do ser
humano, auxiliando-o em
seu desenvolvimento, em espírito de
fraternidade, respeitando a liberdade
individual, dentro da Tradição e
da Cultura Rosacruz.
morte constitui, tanto no plano individual
como no social, um dos principais eventos da
S " vida. Em todas as crenças, épocas e lugares, ela
é um p o rt a l cu ja p a ssa g em su scita p e rg u n ta s
fundamentais: que há depois da morte? Que acontece
com a alma e a personalidade? Seria a morte apenas uma
espécie de sono? Que existe no “intervalo'' entre duas
vidas? E possível preparar-se para m orrer ou ajudar
alguém a faze-lo? C om o combater o medo da morte? E
possível contatar os mortos? Se a reencarnação existe,
qual parte de nós reencarna?
Este livro , s in g u la rm e n te c o m p le to , é fr u to de
p e s q u is a s e fe tu a d a s na U n i v e r s i d a d e R o s a c ru z
Internacional. É um a síntese não apenas cultural e
sociológica, mas tam b ém filosófica e espiritual, de
reflexões sobre a morte e seus mistérios. Ele nos incita,
pela riqueza das análises apresentadas, à compreensão
da alma e do destino humano.

\ s è DIFFUSION
VROSICRUCIENNE

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