Você está na página 1de 8

1

A QUESTÃO DAS METAS DA PSICANÁLISE*


Christopher Bollas * *

===============================================

Um paciente que chega pela manhã bem cedo fala sobre sua progressiva percepção de que a
companheira que ele havia difamado durante tanto tempo era na verdade um suplemento para partes que ele não
conseguia tolerar e conter em si mesmo. Chegar até este ponto custou-nos muito trabalho devido à sua forte
resistência em percebe-la de outra forma que não fosse como uma perdedora total. O próximo paciente, com
dois anos de análise, contrai-se em silêncio, fala sobre trivialidades queixando-se de não saber o que falar.
Porque ficar deitado em silêncio, ele se pergunta, se ninguém ali tinha uma programação para ele? Fico calado.
Sua mãe havia se suicidado quando tinha dois anos e ele demonstra possuir pouca experiência intrapsíquica de
um ambiente protetor1. Ele o substituiu por uma organização vigilante do self que agora está fracassando e estes
são os primeiros silêncios suportáveis que acontecem na análise. O próximo paciente, uma mulher
esquizofrênica em sua segunda análise, está se permitindo agora lembrar da infância, o que faz na forma de uma
narrativa proustiana, movendo-se de um quarto a outro, de uma pessoa a outra, de um evento a outro, de forma
meticulosa e até mesmo cautelosa. Depois dela vem um galanteador típico que sexualizou todas as suas
relações para evacuar coisas em conjunto com instintos eliminados; agora no terceiro mês de um colapso
depressivo. Ele fala pouco, mas é profundamente tocado pela lembrança de haver ferido alguém que tinha
amado recentemente. Após o almoço chega uma adolescente anoréxica com humor maníaco disposta a me
convencer de que o corpo dela não tem importância alguma e representando apenas um obstáculo para a beleza
transcendental do pensamento desmaterializado.
Na medida em que o dia continua vou registrando a experiência de estar com cada um de meus
pacientes. O complexo referente a este registro – ou a contratransferência – marca cada um deles como
diferente na medida em que sou afetado na mente e no corpo pelas “impressões” – uma das palavras favoritas de
Freud – que eles deixam em mim. De mês em mês, semana em semana, sessão em sessão e de segmento de
hora em segmento de hora, surgem na mente certas tarefas que planejo realizar. A analisanda esquizofrênica,
por exemplo, estava envolvida numa recuperação importante do período inicial de sua vida e numa aproximação
de si mesma por meio de lembranças e durante vários dias esta sua mudança de disposição encontrou uma
espécie de silêncio favorecedor de minha parte. Então, pareceu-me que ela mudou de objetivo. Senti pela
excessiva meticulosidade de suas recordações que ela tentava despir a experiência emocional de lembrar-se por
meio do excesso de detalhes, assim, fiquei concentrado algum tempo nisto e depois comecei a interpretar.
A anoréxica começou a hora com um humor maníaco e imediatamente senti que o trabalho seria
enfrentar esta parte dela e trazer a relação com seu próprio corpo para a esfera mental, e a minha maneira de
trabalhar foi informada deste objetivo, mas quando ele foi atingido, e ela estava mais personalizada, minha
disposição mudou e simplesmente passei a ouvi-la.
Seria possível escrever uma espécie de rascunho que registrasse as contínuas mudanças de objetivos ao
trabalhar com um paciente, que refletisse a complexidade da psicanálise?
Estes objetivos, contudo, deveriam incluir também as vicissitudes das aspirações inconscientes do
analista, algumas não muito claras. Com o galanteador, por exemplo, estava consciente de esperar que sua
descoberta de afeição real por uma recente conquista feminina resultasse, quando ele a descartasse, numa
vivência de perda real. E, quando ele experimentou algo desta perda, fiquei satisfeito de que tivesse chegado a
isto. Fiquei satisfeito, igualmente, quando a paciente anoréxica ganhou peso e retomou com algum êxito sua
carreira acadêmica. Assim como fiquei realmente triste muitas vezes quando o paciente da parte da manhã
recaia em suas frequentes e prolongadas brigas corporais com a companheira.
Estes sentimentos indicam todo tipo de desejos em relação aos meus pacientes, alguns compreensíveis,
outros desventurados. O desenvolvimento destas contratransferências é inevitável, algumas são analisáveis e
constituem parte importante do tratamento de qualquer paciente. Elas concorrem em primeiro lugar, contudo,
como um conjunto de metas, para responder parciamente à pergunta do porquê alguém deseja ser analista: para
ajudar pessoas que sofrem, para contatar partes de si mesmo através do outro, para reparar um objeto lesado,
para ... Somente de forma muito parcial cada analista conseguiria responder esta pergunta através de sua análise
pessoal.
Além disso, o que sabemos da contratransferência é extraordinariamente pouco se considerarmos sua
composição, uma vez que nunca seríamos capazes de pensar por intermédio da estrutura patológica de um
paciente da mesma forma em que ela repetidamente modela nossa vida interior com a tremenda força da

* Trabalho apresentado no Encontro com Christopher Bollas – SPRJ – 11 a 13 de setembro de 1997


** Membro da Sociedade Psicanalítica Britânica.
1 Holding enviroment N.R.
2

redundância. Por outro lado, nossa resposta seria profundamente subjetiva e complexa. Teríamos sempre que
distinguir em nosso inconsciente o idioma específico de cada paciente em particular criado pelas suas
características – ou marcas – sobre nós, mas este é um assunto mais de forma que de conteúdo que conhecemos
pela estranha experiência de sermos profundamente afetados pela maneira pela qual um paciente existe por
nosso intermédio, mesmo quando ele ou ela tenham muito pouco significado para nós. Este conhecimento seria
para sempre não-pensado, mesmo sendo conhecido, simplesmente por não temos os meios para pensá-lo.
Marion Milner acredita que, neste nível, o objetivo do analista muitas vezes é servir de “meio” para o paciente.
Podemos imaginar o analista como sendo criado pelo paciente da mesma forma como um escritor compõe uma
novela, ou um pintor um quadro, ou um músico uma partitura.
As metas do analista no trabalho psicanalítico com qualquer paciente estão sujeitas a várias vicissitudes
psíquicas, parte inevitável da comunicação inconsciente que designamos como transferência e
contratransferência, mas serão estas metas as mesmas “da análise”?
Se saíssemos agora de um determinado psicanalista estabelecendo metas no trabalho com cada um de
seus pacientes particulares para um grupo de analistas – ou analistas em grupos – descobriríamos um outro
conjunto de metas. Estas são planejadas, desenvolvidas, comercializadas e às vezes imperialisticamente
sustentadas pelas chamadas “escolas” de psicanálise. Aqui podemos ver uma diferença de grande amplitude
entre os psicanalistas no que se refere às suas supostas e declaradas metas. Klein (1932), por exemplo, escreve:
“Com respeito ao adulto a função da psicanálise é clara. É de corrigir o mal sucedido curso de seu
desenvolvimento psíquico.” (1975, p.279). A psicanálise como correção de rumo não seria aceita por analistas
de outras escolas, e a meta clara de uma análise kleiniana é analisar com sucesso a posição esquizo-paranóide
para que o paciente possa entrar significativamente em pontos da posição depressiva rumo ao curso preferido.
Na realidade, analistas de diferentes escolas selecionam áreas especiais de interesse que tendem a
dominar seus escritos teóricos e suas relações grupais por determinados períodos. Enquanto a psicanálise
britânica, por exemplo, coloca relativamente pouca ênfase nas observações que registram a atualização do
inconsciente do paciente por meio de enganos, associações livres e fluxo de significantes, esta ênfase constitui
uma parte importante da técnica lacaniana.
Existe uma surpreendente variação nas metas manifestadas por psicanalistas das diferentes escolas de
pensamento. Um kleiniano poderia dizer que a meta é devolver para o indivíduo as partes do self identificadas
projetivamente; um kohutiano, que é alterar relações self-objetais patológicas e substituí-las por relações self-
objetais geradoras; um psicólogo do ego, que ela significa ampliar a área livre de conflitos do ego; um
lacaniano, que é levar o paciente à condição de compreender a verdade dos seus desejos. Estas metas dizem
respeito a um sistema teórico e a uma prática clínica complexas ainda nos bastidores.
Quando consideramos as metas da análise não estaríamos nos referindo às diferentes metas de analistas
“escolarizados”? E se fosse assim, para onde nos levaria? Parece que a um curioso lugar. Um exame detalhado
das diferenças entre as escolas poderia revelar, que tudo que o mundo dos analistas tem em comum é a sala com
o divã. Além disso a psicologia das escolas analíticas que se transformam em movimentos levam, na minha
opinião, ao incômodo exame do extremismo do pensamento, em parte porque cada movimento tem a
necessidade intrínseca de convergir seu foco – que pode resultar numa maior profundidade de insight como na
compreensão kleiniana das relações objetais psicóticas e no alcance lacaniano da articulação do texto através
dos significantes – e em parte porque “escolas” que viram movimentos varias vezes começam um tipo de guerra
entre si que inevitavelmente afeta a mentalidade dos seus participantes. Na verdade, o movimento psicanalítico
de um modo geral – composto por todas as suas escolas e movimentos – é uma coisa já esculpida e,
dificilmente, o indício de um desenvolvimento intelectual esclarecido. Se colocarmos de lado a mediocridade
da rivalidade, a busca do poder e a oposição destrutiva, – postas de lado não por falta de importância, mas por
não serem relevantes para a discussão de hoje – e examinarmos o efeito de tais movimentos sobre o pensar e
sobre o desenvolvimento do pensamento psicanalítico, o que veremos, na minha opinião, serão posições
extremadas tomadas em nome dos instintos, relações de objetos, linguagem, afetos, modo de vida do self
verdadeiro, empatia ou transferência. Mas, como cada um destes interesses é parte vital do quadro total de
qualquer self e do trabalho com qualquer pessoa, existe uma espécie de briga maluca periódica para resgatar
uma ou outra destas áreas que foi colocada à margem pelos efeitos selecionadores de cada um dos grupos que
age em nome de uma parte do self.
Seria possível, ao considerar as metas da psicanálise, fazê-lo independentemente das metas expressas
das escolas que se transformaram em movimentos? E se cada movimento é inevitavelmente extremista, então
não são nossas metas direcionadas de uma forma extremada? Se um homem ou uma mulher jovem quisesse ter
uma análise “completa” teria que viajar por diferentes países durante a sua vida, percorrendo diferentes análises,
cada uma esclarecendo, de acordo com sua especialização, uma parte do self total: as relações objetais internas
do self, a sensibilidade interpessoal, os sinais lingüísticos, os requisitos afetivos, a adaptação integradora, etc.
3

De certa forma este ensaio poderia terminar aqui. Talvez devesse. Mas se agora nos perguntarmos que
outra meta ou outras metas a análise poderia ter – outras além daquelas das diferentes escolas – qual a possível
resposta? Só podemos encontra-la se considerarmos as escolas como concentrados necessários que
desenvolveram substancialmente uma determinada área particular – relação com o objeto, chegada de
significantes, transferência, espontaneidade de ser – e se considerarmos os movimentos como parcialmente
destruidores das realizações dos concentrados de qualquer escola, por que uma teoria de objeto parcial é
proposta como uma realização de objeto total.
Deve ser deixada para os psicanalistas, então, a ação de se recuperarem dos psicanalistas e de seus
movimentos. Uma recuperação para a qual pode concorrer a pergunta feita hoje. Quais são as metas da
psicanálise? Não do psicanalista em particular, embora ele ou ela as tenha; não aquelas do indivíduo dentro de
um grupo de colegas com a mesma ideologia, embora alguém possa se encontrar na situação, mas aquelas de
um objeto – psicanálise – que está fora de qualquer prática individual, ou das aspirações próprias de qualquer
grupo.
Há ou havia alguma coisa na psicanálise que parecia ser sua meta, antes que a psicologia do ego, as
relações de objetos, a psicologia do self, a teoria lacaniana, ou a teoria das relações tenham se apossado dela e a
redefinido? Aceitando os avanços alcançados em nome destas revisões, havia alguma coisa, ou há alguma coisa
que não somente não pode ser revisada, mas que na essência seria a quinta-essência do empreendimento
psicanalítico? Há alguma coisa a respeito da qual pudéssemos perguntar à musa psicanálise, qual é a sua meta?
Não acredito que esta musa dissesse, como Klein disse, que a meta da psicanálise era corrigir o curso do
desenvolvimento psicológico. Nem acho, que a musa isolasse um dos elementos do self – seja ele suas relações
de objetos, linguagem, capacidades relacionais, natureza do seu ser, ou arquitetura afetiva – para privilegiar.
Não acredito que isto significasse progresso em qualquer lugar. O desejo de aliviar sofrimentos, de corrigir
processos destrutivos, de curar sintomas, pode ser uma meta do psicanalista individual, mas não constitui uma
meta psicanalítica em especial, ou seja, uma aspiração que somente a psicanálise possa trazer à existência.
Que meta é a meta da psicanálise? O que é que apenas ela pode fazer?
Para responder a isto penso que devemos examinar seu método e perguntar se há alguma coisa que ele
requer de si mesmo e que somente ele pode dar.
A psicanálise sempre teve apenas uma exigência, uma finalidade, uma meta própria. Sempre houve
uma única exigência. Uma solicitação que Freud enunciou, freqüentemente difícil de ser seguida, mas que era
realizável para cada participante. Em nome da psicanálise ele pediu ao paciente para falar seja o que for que lhe
ocorresse na mente. A meta era a associação livre. Nos “Dois Artigos para a Enciclopédia” de 1923
reafirmando as metas da psicanálise ele examinou “A ‘Regra Técnica Fundamental’ da... ‘associação livre’”.
"O tratamento é iniciado pedindo-se ao paciente que se coloque na posição de um auto-observador
atento e imparcial, simplesmente comunicando durante todo o tempo a superfície da sua consciência,
comprometendo-se a ter a maior honestidade por um lado, e pelo outro, a não reter qualquer idéia a ser
comunicada mesmo que (1) sinta que ela seria desagradável demais, ou (2) ache que seria absurda, ou (3)
insignificante demais, ou (4) irrelevante para o que está sendo buscado. Descobre-se invariavelmente que
exatamente aquelas idéias que provocam as reações recém-mencionadas é que são de valor especial para a
descoberta do material esquecido.” (p. 238).
Estabelecendo esta regra fundamental, Freud implicitamente direciona os tipos de resistência para a
associação livre, incluindo as de oposição completa, mas também a vergonha de dizer alguma coisa
aparentemente idiota, ou confusa, ou longe dos altos objetivos da psicanálise. Posteriormente, Freud
acrescentou muitas mais a esta lista, especialmente as criadas pela transferência, e as determinadas pelo caráter
particular do analisando.
Mas o foco subsequente de Freud e de outros psicanalistas nas resistências e nas tarefas técnicas
envolvidas – que afinal de contas dá o que fazer ao analista! – não deveria obscurecer o momento
revolucionário criado com a meta da psicanálise. Quando Freud chegou neste ponto da sua técnica ele talhou
um método que não apenas iria ser para sempre caracteristicamente psicanalítico, mas a psicanálise também
fundou, como um momento da cultura ocidental, um novo e radicalmente libertador estado mental. Poucas
tradições intelectuais têm sido tão lineares e condicionadas por um objetivo quanto a consciência ocidental, que,
convém lembrar, até hoje é altamente focalizada e dirigida, aspirando por um dia especial de redenção em que
os crentes poderiam marchar para terra prometida. Pedir a um homem ou a uma mulher ocidental para descobrir
a verdade abandonando o esforço de encontrá-la e em vez disso adotar uma tarefa inútil – de descrever o que se
passa na mente em cada momento – era minar toda a estrutura da epistemologia ocidental.
Para que o paciente pudesse empreender a associação livre o analista tinha que adotar uma posição
especial. Assim como Freud especificou uma meta para o paciente, ele logo descobriu uma correspondente para
o analista.
4

“A experiência logo demonstrou que a atitude mais vantajosa, que o médico analista podia adotar, era
de se render-se à sua própria atividade mental inconsciente, num estado de atenção igualmente suspensa, para
evitar tanto quanto possível a reflexão e a construção de expectativas conscientes tentando não se fixar em
nada do que ouviu, especialmente em sua memória e desta forma tentar alcançar o fluxo inconsciente do
paciente com o seu próprio inconsciente” (p. 239).
A psicanálise não apenas pediu aos pacientes para ocupar uma posição até então nunca ocupada desta
maneira radical; ela reivindicava do médico agora que se juntasse a eles na mesma construção mental. Uma vez
aí, neste estado desligado e sonhador, o analista descobriria, sem focalizar sua atenção, que as “associações
emergiam como se fossem alusões a um tema em especial”. Assim, ao contrário dos estados similares à mantra
de certas religiões orientais, o devaneio 2 criado pela psicanálise revelava temas do interior do self, que de outra
forma teriam ficado fora da consciência. Isso não foi um mero desenvolvimento recreativo; foi um enorme
passo para a epistemologia ocidental.
A associação livre era a única meta da psicanálise. Era também a característica mais específica da
psicanálise, que de forma radical e imediata reposicionava a relação do homem ocidental com relação a si
próprio. Era o método pelo qual sucessões de pensamentos inconscientes – no paciente e no analista – poderiam
vir ao consciente. Muitas observações foram acrescentadas a esta descoberta. Sabemos que ela patrocina a
regressão transferencial já que a pessoa fica mais infantilizada ao voltar a formas de expressão mais típicas do
primeiro período de vida. Ela também deixa aquele que fala mais propenso a deslizes, a fragmentos de frases e
imagens, e convida o self a experimentar a forma do seu próprio inconsciente. Ela repele também o falso self,
como se, na espontaneidade da associação livre do analisando pudesse se perceber o que Winnicott quis dizer
com self verdadeiro: neste caso, a fala, como gesticulação verbal, como um movimento das possibilidades que
vêm do interior e que se efetivam em linguagem. Acrescentaríamos, além disto, o processo de associação livre
que se movimenta tanto num silêncio pesado quanto na fala solta, e o processo associativo que opera de acordo
com o uso do objeto na transferência e na contratransferência. Algo do que foi acrescentado poderia dar a
impressão de modificar a regra básica.
Certos pacientes em associação, por exemplo, parecem estar evacuando os conteúdos da sua mente.
Outros parecem fazê-lo de uma maneira sutil para se acomodarem aos desejos interpretativos do analista.
Outros funcionam de forma tão concreta, que o seu discurso dificilmente parece livre e muito menos
associativo. Em “Uma breve descrição da psicanálise” (1924) Freud escreveu:
"A escolha da associação livre como meio de investigação do material inconsciente esquecido parece tão
estranha que uma palavra para justificá-la não estaria fora do lugar. Freud foi levado a ela pela expectativa de
que a chamada associação ‘livre’ provaria, de fato, não ser livre, uma vez que se todos os propósitos
intelectuais conscientes fossem suprimidos as idéias emergentes ainda pareceriam estar determinadas pelo
material inconsciente" (p.195).
As associações, como ele viria a assinalar em outros trabalhos, não poderiam ser tão livres por causa da
resistência. Na realidade, boa parte da história posterior das teorias da técnica poderia ser entendida em termos
de se perceber por que a associação livre ideal não é possível. Ainda que as restrições à associação livre – tanto
aquelas criadas pela linha de pensamento interliga algumas delas como aquelas impostas pela resistência –
revelem as suas formas livremente. Elas se estabelecem na atmosfera psíquica de um tipo de liberdade que
revela abertamente suas restrições. A associação livre, então, nunca teve a intenção de produzir uma fala ideal
através da qual o observador pudesse notar, do trem, todas as paisagens. Considerando as ansiedades fóbicas de
Freud sobre viagens de trem, talvez ele tenha percebido a presença de resistência em sua escolha deste veículo
metafórico. Na teoria dever-se-ia ter a possibilidade de viajar neste trem sem obstáculos. Na prática geraria e
difundiria os conflitos inconscientes da mente.
No sentido mais simples embora mais importante, as associações livres acontecem quando qualquer
pessoa que fala começa a perder o fio do pensamento falado quando outros pensamentos surgem e interrompem
a continuidade das idéias manifestas unicamente para revelar a tempo as escondidas – ou misteriosas – linhas de
pensamento. Qualquer um a quem se dê tempo suficiente para falar associará livremente quando a coerência
verbal for interrompida e novas e divergentes idéias – se não conflitantes – assumirem a palavra.
Com o passar do tempo os psicanalistas tentaram minimizar a importância da associação livre baseados
em que os pacientes não conseguiam praticá-la, apesar da idéia básica de que o que estabelece a associação livre
é um ideal fácil de ser desfeito. Ninguém pode relatar os seus pensamentos da forma desligada sugerida por
Freud a não ser que, de forma bastante irônica, tal associação “pura”, mesmo se conseguida, fosse um estranho
ato de dissociação a escoar das paixões e resistências daquele que fala. Fica para cada geração de psicanalistas
a procura do associativo no analisando e o desenvolvimento de uma arte destinada à sua prática. Os pacientes
têm que ser ensinados a praticá-la.

2 Reverie, no original (N.R.)


5

Algumas das formas mais complexas de associação livre, por exemplo, passaram despercebidas e pouco
faladas devido em grande parte ao desinteresse do psicanalista. Ao falar, todos acham que os pensamentos
profundos surgem do fundo da mente, que são discordantes da narrativa falada. Colocando de uma forma mais
simples encontramo-nos pensando em alguma outra coisa. Estes pensamentos estão em associação livre
completa embora aquele que fala esteja seguindo outra linha de pensamento ainda que totalmente interrompida
por novos pensamentos que parecem ser apenas distraídos e inoportunos. Os psicanalistas geralmente “vêem”
estes pensamentos pela mudança no tom de voz do paciente uma vez que a palavra falada sairá com menor
investimento. “Outros pensamentos estão lhe ocorrendo”, é tudo que o analista precisa dizer para ajudar o
paciente a abandonar uma linha de pensamento por outra que estará mais diretamente carregada de sentimentos
e de significados. Levará algum tempo para que o paciente se dê conta, verdadeiramente, de que estará em
consonância com o analista que ele troque uma narrativa por outra, mesmo que o resultado seja ocasionalmente
uma confusão causada interesse de “materializar” o inconsciente.
Quando o paciente percebe que pode quebrar o sentido manifesto da narrativa para expressar o que
acabou de chegar – da mesma forma que ele pode se interromper para relatar pensamentos que estão passando
pela sua mente – e que não precisa se obrigar a ter que “explicar” ao analista – como quando tenta dar uma
explicação para uma mudança de pensamento ou completar uma narrativa pelo analista antes de revelar os
pensamentos que atravessam a sua mente – ele está , no sentido de Winnicott “usando” o objeto. A associação
livre num uso como este do objeto é entendida tanto pelo analista como pelo paciente como sendo uma
destruição necessária do relato porque o paciente precisa criar-se na presença do outro sem ser obstruído pelas
supostas convenções do relacionamento.
As crianças pequenas, por exemplo, usam a mãe como objeto sempre que “destroem” a integridade ou a
realidade dela para imaginá-la de forma diferente. Construir um mundo interno próprio envolve a destruição
essencial e contínua da integridade dos objetos para transformar o universo objetivo em um mundo subjetivo.
Às vezes as livres associações dos pacientes são na realidade atos de representação cuja intenção
fundamental é impressionar o analista "requerendo" interpretação das associações como formas de
relacionamento ou anti-relacionamento encenados, mas se o paciente está realmente livre na associação livre,
então ele ou ela deve se esquecer momentaneamente da presença do analista como o outro da relação o que o
deixa mais parecido com a “tela” descrita nas teorias clássicas sobre a função do analista. Certamente, nestas
ocasiões o analista não deve sentir-se ofendido com o paciente que não está se “relacionando” com ele uma vez
que esta é exatamente a questão. A fala das associações livres profundas utiliza o analista-outro como um
objeto, explorando sua suspensão da perspectiva de um relacionamento para liberar força, enquanto o self
encontra nesta intimidade paradoxal um profundo e mútuo envolvimento em um processo que desfaz as
possibilidades de relação no exato momento em que junta duas subjetividades em mundos separados de
pensamento. Além disso, como descrito no capítulo dez 3, o paciente, falando das associações, revela por meio
da poética inconsciente da voz, os sentidos diferenciados que operam por intermédio dos sentimentos. Tanto o
paciente quando o analista estarão em grande parte inconscientes desta forma de expressão, mesmo que ela seja
profundamente efetiva e significativa.
“O curso da associação livre produziu uma vasta provisão de idéias”, escreveu Freud (1923, p. 196).
Incluída nesta provisão estariam também idéias que contrapõem tanto a disseminação ulterior de pensamentos
latentes quanto os silêncios, hesitações, intervalos, e recusas que expressam as resistências do paciente. Mas
concluindo este posicionamento – a liberdade para falar sem preparação outra que a de expressar o que está na
mente naquele momento – sempre será uma questão de grau. O que não era equívoco era o posicionamento. Na
verdade, o lugar ocupado em nome da associação livre, já era uma realização psíquica, uma obra consumada e
abandonada de diferentes maneiras, mas que sempre abria o self de uma forma nunca antes imaginada. Isso era
e ainda é a mais revolucionária aquisição da psicanálise. E se ela parece desaparecer da situação psicanalítica,
como quando o paciente fala e não parece usar a associação livre para se expressar, então ela existirá
fundamentalmente na mente do psicanalista sendo trazida à realidade falada por meio de trabalho associativo
com o “material” do paciente.
Talvez a meta da psicanálise, por ser conseguida, em parte, de modo tão fácil e imediato, seja também
tão facilmente marginalizada. Além disso ela não cura o paciente. A enfermidade do analisando ainda é um
desafio às habilidades do analista e ela é tão absorvente que é compreensível que o analista tenha se inclinado
pouco a dar crédito à momentosa mudança no paciente que decidiu – e entrou – em análise. Esta entrada pode
ser uma das maiores conquistas da nossa civilização, mas o paciente continua a apresentar sua doença e o
analista a se preparar para sua tarefa.
Apesar disto, acredito que sob a influência da demanda do paciente e da nossa própria ambição
terapêutica tenhamos marginalizado a conquista que foi a associação livre. O problema certamente também está
presente no pensamento do próprio Freud. Assim não chega a surpreender que ele tenha revisado seus próprios
3 N.R. Referência ao capitulo 10 de um livro que ainda será editado, do qual a presente conferência é também um capítulo.
6

desejos terapêuticos, indicando várias metas diferentes através do tempo. Como Sandler e Dreher ressaltam no
livro “O Que os Psicanalistas Desejam”, no início, o objetivo era revelar os desejos instintivos latentes, então
desreprimir idéias proibidas, remover sistematicamente as resistências, liberar a libido de ligações patológicas,
liberar o ego de investimentos perturbados. Estas variações de objetivos refletem uma mudança importante no
modelo de Freud sobre o conflito e, como com os psicanalistas e as escolas que o seguiram, estes objetivos não
são sustentados universalmente por todos os analistas, eles refletem de forma questionável o desejo do analista
dentro da relação amor com a teoria. Mas tais objetivos se esquecem de um ponto essencial. Eles não colocam
a questão do que é precisamente que a psicanálise tem como seu objetivo, que apenas ela pode proporcionar e
pelo qual pode atingir a sua finalidade. Alguns dizem, que a associação livre é o método e não o objetivo da
psicanálise, e que neste ponto, então, um objetivo deve ser estabelecido como, por exemplo, descobrir conflitos
inconscientes. A mesma coisa pode ser dita dos objetivos da ciência. Pode se dizer que o método científico é o
meio para se atingir várias metas, como a descoberta objetiva de fatos físicos. Na realidade, contudo, o método
psicanalítico e o método científico – poderíamos acrescentar o método crítico literário e outros métodos de
pesquisa – são peculiares para si próprios, específicos para si mesmos. A meta de qualquer portador de um
método é colocá-lo no lugar e ter em mente que sempre que qualquer praticante estabelecer metas que
transcendem ao método ele ou ela quase que inevitavelmente estarão em conflito com as condições do método.
Na verdade, quando um praticante – psicanalista, científico, literário – nomeia os objetivos do método,
objetivos para as metas, as finalidades então não justificam os meios, elas os desgastam. Olhando para a
história da psicanálise, penso que podemos apreciar de que modo os resultados das metas articuladas pelos
diferentes praticantes realmente marginalizaram os meios – a associação livre – e que fazendo isto tiraram
inadvertidamente o caráter específico da psicanálise da sua assim denominada prática.
Isto não deveria ser tão surpreendente, especialmente se apreciamos a tensão compreensível e inevitável
entre a meta da associação livre e os desejos do analista de entender o “material” uma vez que a associação livre
desvincula significados – naquilo que Laplanche designa e celebra como a “anti-hermenêutica” da psicanálise –
enquanto a interpretação cria e liga significados. Tão logo estes entendimentos sejam estabelecidos o trabalho
do inconsciente – evidenciado pela associação livre – quebra a interpretação em partículas de significado; uma
quebra que constitui o “uso do objeto”, celebrada com esperança pelo inconsciente do analista – que trabalha de
forma semelhante – mesmo que tal uso disperse suas criações interpretativas.
A sociedade livre associativa baseada em precedentes inconscientes é um tipo de redescoberta de uma
coisa conhecida há muito tempo, uma sociedade que em primeiro lugar é constituída na ordem materna, quando
o self e o outro estão ocupados de forma absorvente na nutrição da comunicação pelas associações. Será em
parte por isso que a livre associação é marginalizada? Será que ela sofre o destino do trabalho da mãe e da
mulher: suposto e não visto? Se for assim, então ele sofrerá o destino de toda suposição profundamente criativa:
cessará de solicitar o pensamento. Mais de uma vez escuta-se: “oh, naturalmente, associação livre, bem,
sabemos que é muito importante ... mas” – e como uma suposição ela é rapidamente deixada de lado. Ela sofre,
assim, o destino de muitas boas idéias que são tão imediatamente convincentes ou efetivas que o pensamento
passa para outras idéias, e por irônico que pareça, idéias más parecem gerar mais pensamentos. Além disso a
hybris da certeza de cada escola analítica de ter a posse da exclusiva verdade da cura, com a sua valorização
política, parece ser uma marca característica da ordem paterna. Desta forma o fato da associação livre – e o que
ela produz – talvez tenha que ser descoberto e redescoberto de novo e de novo, tal como aconteceu com a
observação de Bion de que o analista precisa ficar sem memória e sem desejo – uma outra forma de dizer o que
citamos acima de Freud – na medida em que é deixada de lado e marginalizada sempre de novo.
Até certo ponto, o interesse pela transferência atingiu um extremo quando alguns analistas, em nome do
que algo desajeitadamente é chamado de "interpretação transferencial no aqui e agora", assumem, antes da
sessão, que o discurso do paciente descreverá sua experiência com o analista no momento. A tarefa é de
tradução, da associação do paciente à relação analítica. Para muitos este "desenvolvimento" não deixa de ser
irônico. Como as associações do paciente agora são resolvidas pela sua referência a um texto manifesto
preexistente o trabalho profundo do inconsciente é encerrado com o trabalho recente de relacionamentos
interpretados. A associação livre pode progredir em tal clima de previsibilidade? Talvez apenas se o analista
abandonar a memória desta técnica e o desejo de implementá-la.
Veremos que existem pelo menos três domínios de sustentação para os objetivos na psicanálise: o do
analista individual com o seu paciente, o do analista dentro de um grupo com uma ideologia particular, e o
método fundamental da psicanálise que portanto sobrevive às diferentes aplicações (individuais e grupais).
Qualquer destas séries perde significado quando se afasta das outras duas, constituindo-se, desta forma, numa
família essencial para a prática psicanalítica. Como é possível imaginar esta é uma família que tem que suportar
o conflito entre os seus membros. O analista que está trabalhando com um paciente em particular pode ficar
incomodamente desajustado em relação a sua maneira habitual de trabalhar. Ele pode mudar a técnica e ficar
inseguro de que sua avaliação clínica possa estar bem fundamentada ou não. Os psicanalistas, ao seguir os
7

ditames de uma ideologia – como a interpretação da transferência no aqui e agora – podem ficar em conflito
com as metas da análise (associação livre). Isso pode ser inquietante. Se for, é uma angústia essencial, porque
as teorias analíticas freqüentemente estarão em conflito aparente (ou real) com os objetivos da análise. Somente
o tempo dirá.
A meta da análise estará inevitavelmente em conflito com os objetivos variáveis do analista com o
paciente individual e com o psicanalista ideologicamente filiado, que pratica em nome de um grupo. Isso
constitui o que nós poderíamos considerar a vulnerabilidade essencial do psicanalista. Ele nunca estará em
posição de declarar satisfatoriamente que está seguindo qualquer das metas acima para realizá-las. Seja qual for
a vicissitude individual encontrada em alguma das três posições acima, elas estarão em conflito uma com a
outra. Um conflito que nunca será resolvido dada sua função essencial de servir a vários senhores: individuais,
grupais e universais.
O objetivo da prática que opera em nome da psicanálise, porém, pode não exaurir o tema das metas da
psicanálise. A psicanálise chegou à nossa cultura em um ponto particular do tempo e foi imediatamente adotada
e usada pela comunidade não clínica, dos pintores surrealistas aos escritores, dos filósofos aos historiadores, dos
sociólogos e antropólogos aos teólogos e advogados. Estamos ainda incertos a respeito do significado
inconsciente da chegada da psicanálise. Sabemos, certamente, que ela significa uma forma de questionamento
que mobilizou aquilo que agora pensamos como sendo o pós-modernismo. Qualquer indivíduo que fale
descobrirá – se ele ou ela escolher – que o discurso fragmenta a coerência narrativa deixando todos menos
convencidos embora muito mais interessados.
Excetuando-se o fato óbvio de certos desenvolvimentos como o mapeamento mais sofisticado de
diferentes tipos de caráter e um entendimento crescente das vicissitudes das relações com objetos, é a
psicanálise de 1900 é a mesma de 2000? Percebemos uma mudança nas metas da psicanálise mesmo durante a
vida de Freud, da liberação dos pensamentos latentes pelo método da associação livre à análise do ego em sua
difícil negociação com as duas realidades: externa e intrapsíquica. E este desenvolvimento, se podemos chamá-
lo assim, não está restrito aos psicanalistas que clinicam. Lacan quase não foi lido pela comunidade clínica dos
Estados Unidos apesar de suas teorias estarem bem incluídas nos Departamentos de Inglês e de Literatura
Comparada. Isto é simplesmente uma outra forma de dizer que a psicanálise continua crescendo ou a questão
colocada pela psicanálise muda de geração a geração, de país a país, e de região a região?
Fastidioso como deve ser para os praticantes da psicanálise, o movimento que a psicanálise é – diferente
agora do movimento psicanalítico da IPA – não pode identificado, regulamentado e antecipado com tanta
facilidade. O que poderíamos imaginar se perguntássemos, sobre este objeto, quais seriam as suas metas?
Quais seriam as metas da psicanálise uma vez que ela impulsiona parte da nossa cultura contemporânea?
Devemos lembrar que nos anos 60 haviam dois eminentes intérpretes do significado cultural do advento
da psicanálise. Tanto Herbert Marcuse como Norman O. Brown a consideraram naquela época como a
oportunidade para uma nova liberação da sexualidade desnecessariamente reprimida. Relativamente poucos
historiadores da cultura têm se esforçado para considerar este objeto especial, a psicanálise operando no campo
social. Mas ela está aí. Se hoje em dia nos Estados Unidos ou na Inglaterra ela aparece nos jornais como
relíquia de uma era pré-científica – e por isso significa atrofia de pensamento – estes mesmos jornais podem
veicular uma outra psicanálise considerada responsável pelo clima de difamação operando em nome da
recuperação de memórias reprimidas. Nos limites do mundo da mídia, uma única página pode declarar que a
psicanálise é uma relíquia irrelevante e a causa imediata da propagação da desordem social.
De uma forma intrigante o movimento abusivo recolocou a psicanálise em torno da sexualidade.
Retorna-se, assim, pelo reprimido a uma tarefa de cem anos atrás quando mais uma vez consideramos como
uma inabilidade sintomática pode ser causada por um conflito sexual. Não é surpreendente? Seria possível para
a psicanálise estar separada de uma de suas tarefas culturais cruciais como o lugar para onde se dirige o conflito
sexual? Parece que não. Na realidade, a psicanálise como objeto cultural parece que deve muito de sua energia
à raiva dirigida a ela por ser totalmente insensível com relação à questão da sexualidade ou totalmente
responsável pelo clima de práticas sexuais perversas e pelos efeitos difamadores de fantasias sexuais grotescas.
Como movimento cultural a psicanálise será investida – ou se investirá – com metas diferentes. Como
objeto cultural será saturada com projeções e contudo inconscientemente será bem entendida. Se alguns a
odeiam da forma que fazem, isto é feito por uma boa razão. Ela fala sobre temas insuportáveis. Como projeto
dirigido à investigação do fenômeno inconsciente ela navegou claramente, desde o começo, em águas agitadas.
Freud rejeitou a noção de uma “Weltanschauung” essencialmente psicanalítica, embora entre pela
colateral do disposicional, quando liga a visão psicanalítica do mundo à visão da ciência. “A psicanálise, na
minha opinião, não é capaz de criar uma Weltanschauung, própria” escreveu nas “Novas Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise” (1932). “Não precisa dela; é uma parte da ciência e pode aderir à
Weltanschauung científica” (p. 181). Mas freqüentemente, quando ele liga a psicanálise à ciência ele sugere o
rumo pelo qual a psicanálise pode auxiliar à cultura. “A nossa melhor esperança para o futuro é que o intelecto
8

– o espírito científico, razão – possa, no decorrer do tempo, estabelecer uma ditadura da vida mental da
humanidade” (p.171). Isto se parece muito com o Freud iluminista sustentando que a psicanálise como um
ramo da ciência pode contribuir para o bem-estar dos homens aliviando a psique da ignorância
inconscientemente motivada que desvia a personalidade para empreendimentos mais irracionais.
Mas a psicanálise refere uma evolução na estrutura mental. Em “O Futuro de uma Ilusão” (1927)
Freud assinala um “avanço mental”. “É ao ficar com o curso do desenvolvimento humano que a coerção
externa gradualmente é internalizada; através de uma agência mental especial, o superego do homem, ele a
assume e a inclui sob seu comando... Este tipo de fortalecimento do superego é uma das mais preciosas
aquisições no campo psicológico” (p.11). Da mesma forma que o insight no interior do conflito inconsciente é
parte dos desenvolvimentos do superego, a psicanálise pode ser vista como propiciando, na visão de Freud, uma
função no que ele chamou de “evolução da cultura”. A civilização, ele argumenta, atravessa “modificações
psíquicas”, que consiste predominantemente em “um deslocamento progressivo de objetivos instintivos e a
restrição de impulsos instintivos.” Isso leva, como ele mais tarde irá escrever a Einstein (1933) a “um
fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida intelectual, e a uma internalização dos
impulsos agressivos, com todas as vantagens e perigos conseqüentes.” Uma vez que alguém tenha
desenvolvido uma “atitude psíquica” derivada desta evolução em civilização, que melhora a destreza
intelectual sobre a qual escreve e o efeito inibidor do superego, então adquiriu uma “intolerância constitucional
à guerra” (p.215).
Freud comemora este caminho progressivo, mas quando se olha para o método que ele criou as coisas
ficam mais complicadas. “O que chamamos de civilização é responsável, em grande parte, pela nossa
miséria” declara em “Civilização e os Seus Descontentes” (1930, p.86). O preço da civilização é a supressão
de toda vida instintiva com todos os efeitos nocivos subsequentes. Uma perda é a relação mais harmoniosa do
homem com seus processos corporais, especialmente em relação à sua analidade. Antes de caminhar ereto,
segundo Freud, a relação do homem com suas fezes era de prazer olfativo. Com o progresso da civilização ele
se torna alienado de seu próprio corpo.
É de certo interesse que o método de Freud recoloque o homem na posição horizontal – embora de
costas em vez de quatro – e provoque uma forma de pensar e expressar que evoque estados instintivos (e suas
resistências), que enche a mente com material das várias partes do self que a civilização preferiria lavar e
passar. Para Marcuse e Brown este era o ponto de partida de uma visão radicalmente nova do homem liberado.
E Freud com certeza abafou a valorização anti-civilizatória da psicanálise. Ele tendia a comemorar a
dominância do ego sobre os instintos, e o papel do insight neste processo. Ele passou a comentar cada vez
menos a função evocativa da psicanálise. Se seguirmos este argumento, a psicanálise passa a ser uma espécie
de ação “nachtraeglich” ou adiada, um momento posterior ao trauma da renúncia realizado pela civilização no
qual a perda não é apenas pensável, mas também traumática. A psicanálise se transforma em um tipo de
momento profundamente sintomático no qual o self percebe sua doença na presença de alguém que
presumidamente sabe, que sustenta o self no lugar e que progressivamente interpreta a natureza do trauma ao
paciente. Gradualmente o self deitado consegue se levantar. Somente ao sair do consultório pela última vez ele
o fará não como um participante sem juízo da supressão cultural, mas como cúmplice sensato de um ato de
renúncia que poderia tê-lo deixado doente.
A psicanálise pode, então, ter se tornado parte da meta da civilização se concordarmos com Freud de
que há desenvolvimento mental. Se fosse assim, ela seria uma servidora rebelde em relação à meta. De uma
forma questionável ela estaria desligando o self das suas limitações, liberando-o por meio de associações, e
colocando-o frente a mistérios que possivelmente não pode entender, uma vez que este empreendimento
aprofunda o homem. O método, então, é o inimigo de tal meta. Se o ganho é um fortalecimento não patológico
do superego por meio do trabalho mediador do ego, isto é conseguido por intermédio de uma formação de
compromisso na qual a associação livre serve às necessidades instintivas do self a serem criadas novamente, a
cada dia, numa liberdade de vida mental que não está a disposição dos objetivos organizacionais de um self ou
de uma sociedade.

Você também pode gostar