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Referencia deste texto:

NUTTI, J. Z. e REALI, A. M. M. R. Professores, especialistas e alunos diante do fracasso


escolar: um estudo no cenário das “Classes de Aceleração”. In: MARTINS, J. P.;
CASTELLANO, E. G. (Orgs.) Educação para a cidadania. São Carlos: EDUFScar: Rima,
2003

PROFESSORES, ESPECIALISTAS E ALUNOS DIANTE DO FRACASSO


ESCOLAR: UM ESTUDO NO CENÁRIO DAS “CLASSES DE ACELERAÇÃO”

Juliana Zantut Nutti 1

Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali 2

Professora, lembra quando eu ficava ali no cantinho, no


começo do ano, e eu não queria sentar junto com ninguém e
na hora em que todo mundo mexia a boca, eu também mexia?
Eu morria de vergonha porque eu não sabia ler e eu não
aceitava isso. Se não fosse a senhora insistir tanto... Agora eu
sinto o maior orgulho de mim mesmo, porque agora, sim, eu
sou gente. Agora eu sou gente... (Depoimento de um aluno de
Classe de Aceleração à sua professora).

O objetivo deste capítulo é relatar e discutir alguns dos achados da pesquisa


realizada por uma das autoras como uma das exigências para a obtenção do título de Doutora
em Educação , intitulada “Professores e Especialistas diante do Fracasso Escolar: um estudo
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no cenário das Classes de Aceleração” (NUTTI, 2001), de modo a contribuir para a


discussão sobre os efeitos das políticas ou projetos educacionais que visam a superação do
fracasso escolar, persistente problema socioeducacional que tem impedido que uma grande
parcela da população se aproprie de conhecimentos essenciais para o pleno exercício da
cidadania.

Breve panorama do fracasso escolar

1
Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Docente do curso de Pedagogia e coordenadora
do curso de especialização em Psicopedagogia da ASSER/UNICEP de São Carlos.
2 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Docente do Departamento de Metodologia de Ensino e
do Programa de Pós - Graduação da Universidade Federal de São Carlos.
3 Pesquisa realizada como uma das exigências para a obtenção do título de Doutora em Educação junto ao
Programa de Pós - Graduação em Educação, área de concentração em Metodologia de Ensino, da Universidade
Federal de São Carlos. Orientadora: Profa. Dra. Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali.
2

Primeiramente, faz-se necessário situar o leitor acerca do que se entende


atualmente como fracasso escolar, mediante a apresentação de um breve panorama sobre as
definições e teorias explicativas que vêm sendo atribuídas a esse fenômeno, o qual desafia o
sistema educacional e a sociedade brasileira há, pelo menos, cinco décadas.
RIBEIRO (1993) coloca que o fracasso escolar pode ser entendido como as
sucessivas repetências, excessiva permanência e o posterior abandono da escola pelo aluno
pertencente, em sua maioria  mas não exclusivamente , às classes economicamente
desfavorecidas da população.
DANI & ISAÍA (1997) refletem sobre uma concepção de fracasso escolar que não
se relaciona somente à questão da repetência ou reprovação do aluno, mas à situação na qual o
aluno, em seu cotidiano escolar, não pensa a partir de suas próprias elaborações mentais e não
se sente autorizado a expressar o seu próprio pensamento. Em termos pedagógicos, essa
situação se reflete, por exemplo, nas dificuldades que o aluno apresenta para escrever com
autonomia, levando-o a apenas registrar ou copiar o pensamento dos outros, principalmente o
de seu professor. Entretanto, o aluno é visto como bem - sucedido, justamente por se
comportar da forma como o professor espera que um “bom” aluno se comporte.
Mais recentemente, o fracasso escolar tem sido representado pela seguinte
situação: o aluno freqüenta normalmente a escola, é promovido de uma série para outra,
concluindo cada um dos ciclos escolares porém, ao concluir a escolarização, não possui um
domínio adequado dos conteúdos escolares.
Com relação às teorias explicativas sobre o fracasso escolar tem-se a visão de
VIAL (1987), a qual afirma que esse fenômeno pode ser explicado por uma ideologia que
encara o sucesso e o insucesso como uma questão do aluno possuir ou não o dom para
aprender. Para essa ideologia dos “dotes”, o problema reside na existência de indivíduos mais
ou menos dotados para aprender. Na escola, essa ideologia permearia a concepção de que
sempre existiram “bons” e “maus” alunos e, sendo assim, é absolutamente desnecessário
buscar-se explicações pedagógicas, científicas ou políticas para justificar essa situação.
PATTO (1993), por sua vez, acredita que o fracasso escolar é um fenômeno
produzido no interior da própria escola e que o fracasso da escola seria o resultado de uma
situação perversa na qual o sistema educacional criaria os obstáculos à realização de seus
próprios objetivos. Assim, as relações hierárquicas de poder, a segmentação e burocratização
do trabalho pedagógico criariam as condições no interior da instituição escolar para a adesão
dos professores a uma prática direcionada a interesses particulares e ao descompromisso
social.
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CARRAHER, CARRAHER & SCHILEMANN (1995) igualmente direcionam o


foco da atribuição do fracasso escolar para a própria escola. Para esses autores, o fracasso
escolar seria o fracasso da escola. A estrutura e organização escolar predisporiam ao fracasso
do aluno, na medida em que não são valorizados os saberes informais que os escolares trazem
para a escola e o tipo de raciocínio que utilizam para solucionar os problemas do cotidiano.
PERRENOUD (1996) considera o sucesso, o fracasso e as desigualdades entre os
alunos como realidades construídas pelo próprio sistema educacional. Esboça uma sociologia
da avaliação escolar, dos procedimentos e normas mediante as quais a escola elabora suas
hierarquias de excelência e decidem o fracasso ou o sucesso escolar e suas conseqüências.
Segundo o autor, na busca de respostas sobre as possíveis causas da existência de bons e maus
alunos, a sociologia da educação analisa os mecanismos que transformam as diferenças
culturais em desigualdades escolares, as quais são reais, no que diz respeito ao saber e saber
fazer que se valoriza na escola, mas que não teriam a mesma importância simbólica, nem as
mesmas conseqüências práticas, caso a avaliação escolar não as traduzisse em hierarquias
explícitas.
O autor faz uma analogia da construção do fracasso escolar com a construção da
loucura e da delinqüência juvenil e, apesar de relativizar o impacto do julgamento da
excelência escolar em relação ao diagnóstico psiquiátrico ou ao processo penal, acredita que
determinados tipos de inadaptação escolar poderiam ocasionar problemas psiquiátricos ou
penais. Em dimensões um pouco menos dramáticas, o poder da escola também é capaz de se
impor aos escolares com o mesmo peso de um diagnóstico psiquiátrico ou de um veredicto
pois, por meio das hierarquias de excelência, tem força de lei.
Apesar da existência de diferentes definições e teorias explicativas sobre o
fracasso escolar, é consensual a opinião de que esse fenômeno tem trazido conseqüências
extremamente danosas aos escolares e suas famílias, às escolas e à sociedade, na medida em
que interfere negativamente no desenvolvimento psicológico e social dos alunos e que impõe
limites rigorosos ao processo de apropriação dos conteúdos pedagógicos e das habilidades
acadêmicas necessárias para a inserção social e o exercício da cidadania.

As Classes de Aceleração no contexto das políticas educacionais de superação


do fracasso escolar
No contexto das políticas educacionais que objetivam o combate ao fracasso
escolar, projetos de aceleração de aprendizagem vêm sendo implementados na rede pública de
ensino de vários Estados brasileiros. Tais projetos procuram, de modo geral, corrigir o fluxo
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escolar, recolocando os alunos multirrepetentes (conseqüentemente, com grande defasagem


série/idade) de volta às suas séries originais.
Esse é o caso da “Reorganização da Trajetória Escolar no Ensino Fundamental:
Classes de Aceleração”, projeto educacional implementado em 1997 na rede de ensino
estadual paulista que, através de uma proposta de aceleração da aprendizagem realizada nas
chamadas Classes de Aceleração, buscou a recuperação da trajetória dos alunos em situação
de defasagem série/idade e sua reintegração ao percurso escolar regular (SÃO PAULO -
Estado, 1997a).
A concepção de fracasso escolar que permeia a proposta das Classes de
Aceleração atribui a origem do fracasso à escola devido, dentre outros fatores, à inadequação
da metodologia de ensino em relação à clientela escolar atendida.
A marca fundamental das Classes de Aceleração é o oferecimento de um ensino
adequado à clientela de alunos com altos índices de defasagem série/idade. Adequar a
proposta pedagógica à realidade do educando, entretanto, não significa o rebaixamento das
expectativas escolares, mas a elaboração de uma abordagem que parta das necessidades reais
dos alunos. Também é necessário que sejam criadas condições favoráveis de ensino e
aprendizagem e que se utilize um processo de avaliação do trabalho pedagógico que considere
mais do que a simples verificação da quantidade de informações memorizadas.
O ponto de partida para a realização da proposta pedagógica de Classes de
Aceleração é um claro entendimento a respeito do fracasso escolar, das conseqüências da
defasagem série/idade e do processo de aceleração da aprendizagem, além da necessidade de
observação cuidadosa das crianças que compõem as classes. Torna-se imperativo que se
minimize os efeitos dos rótulos que os alunos carregam, através da compreensão social e
pedagógica de suas dificuldades de aprendizagem.
Em linhas gerais, as premissas básicas das Classes de Aceleração relacionam-se
ao compromisso da escola com o processo ensino - aprendizagem dos alunos que estão
estacionados no percurso acadêmico, de maneira que os mesmos adquiram os instrumentos
(via conteúdos pedagógicos) que a escola oferece e que podem contribuir para a inserção
adequada no seu tempo e na sua realidade, e à crença na idéia de que “todo professor é capaz
e que todo aluno é capaz de aprender” (SÃO PAULO - Estado, 1997b).
De acordo com a proposta das Classes de Aceleração, o professor é o principal
responsável pela identificação das necessidades dos alunos e pelo desenvolvimento de um
trabalho flexível, porém norteado por claros referenciais teórico - metodológicos.
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A pesquisa realizada
Colocou-se anteriormente que a pesquisa que deu origem a este capítulo utilizou
como cenário de investigação o projeto “Reorganização da Trajetória Escolar no Ensino
Fundamental: Classes de Aceleração”.
O objetivo geral da pesquisa realizada foi analisar como as políticas ou projetos
de superação do fracasso escolar estão sendo traduzidos para a prática pedagógica, sob a ótica
de professores e especialistas educacionais inseridos nesse contexto. Os objetivos específicos
relacionam-se à identificação e análise de aspectos do pensamento de professores que atuam
em situação de fracasso escolar, assim como dos fatores que podem estar relacionados ao
sucesso desses professores na tradução de políticas ou projetos educacionais de superação do
fracasso escolar para a prática pedagógica.
O papel dos professores no processo de implementação de políticas educacionais
que almejam a superação do fracasso escolar tem sido fundamental, especialmente devido ao
fato de que esses profissionais são considerados os grandes responsáveis pela concretização
dos objetivos almejados pelas reformas educativas.
No entanto, partindo-se da suposição de que os professores possuem as suas
próprias teorias sobre o ensino, as quais influenciam intensamente a sua prática pedagógica e
que são construídas ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional, torna-se relevante
compreender-se de que maneira esses profissionais traduzem as políticas educacionais para a
sua própria prática.
Nessa perspectiva, o eixo teórico que fundamentou a pesquisa está voltado para as
recentes tendências na pesquisa educacional sobre o pensamento do professor (PÉREZ
GÓMEZ, 1995; SCHÖN, 1995; GARCÍA, 1995; PERRENOUD, 1997) e para o estudo das
crenças de professores e suas relações com a ações pedagógicas (KNOWLES, COLE &
PRESSWOOD, 1994; STUART & THURLOW, 2000). Apesar da diversidade teórica e
conceitual existente, essas tendências procuram valorizar o conhecimento do pensamento, das
crenças e dos valores dos professores sobre o ensino, por acreditarem que esses elementos têm
uma forte influência nas ações e decisões tomadas pelos docentes em sala de aula.
Estudos e pesquisas específicas sobre o projeto Classes de Aceleração (SOUZA,
VIÉGAS & BONADIO, 1999; PLACCO, ANDRÉ & ALMEIDA, 1999) também foram
importantes referenciais para a realização da investigação.
Participaram da pesquisa, de tipo qualitativo, sete professoras de Classes de
Aceleração de duas escolas, a coordenadora pedagógica de uma dessas escolas, além de duas
especialistas educacionais da Diretoria Regional de Ensino, que foram as principais
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responsáveis pela implementação e acompanhamento das Classes de Aceleração em escolas


de São Carlos e da região.
Os procedimentos de coleta de dados utilizados foram a entrevista individual e em
grupo, a observação de aulas, o questionário e a análise documental.
Julgou-se oportuno incluir-se, na análise dos dados, as respostas de sessenta e um
alunos egressos de Classes de Aceleração a um questionário elaborado pela Diretoria
Regional de Ensino, localizada no município de São Carlos. Essas respostas foram analisadas
para se ter a dimensão de como esses alunos avaliam a sua experiência nessas classes, o seu
reingresso nas séries regulares e a sua situação acadêmica atual.
Com relação à avaliação das professoras e especialistas sobre o projeto Classes de
Aceleração, esse foi considerado positivo e bem - sucedido. As professoras e especialistas
mencionaram os seguintes fatores de sucesso: a proposta pedagógica, considerada desafiadora
para o professor e o aluno; o material didático, considerado adequado às necessidades dos
alunos; a redução do número de alunos por classe; o oferecimento de uma formação
continuada considerada de alta qualidade.
As dificuldades citadas pelas professoras sobre a tradução do projeto Classes de
Aceleração para a prática estão relacionadas: à falta de interesse e de participação dos alunos;
à mudança do paradigma teórico - metodológico; à falta de tempo dos professores para
assimilar as informações recebidas nas capacitações, para a pesquisa e o planejamento das
atividades a serem realizadas; à composição das turmas com alunos que já poderiam estar
cursando séries mais avançadas.
A ausência de uma figura de apoio consistente na escola, seja o diretor ou o
coordenador pedagógico foi considerada, por uma das professoras, como um dos
dificultadores da tradução do projeto educacional para a prática docente.
As especialistas educacionais consideraram que um dos principais obstáculos à
tradução do projeto para a prática pedagógica foi o processo de seleção dos professores para
as Classes de Aceleração, o que causou a falta de envolvimento de alguns professores com o
trabalho pedagógico a ser desenvolvido.
Com relação ao processo de seleção docente, é importante ressaltar que os
diretores das escolas deveriam destinar as Classes de Aceleração para professores interessados
em atuar no projeto e com experiência em alfabetização. No entanto, segundo as especialistas,
isso não aconteceu em todas as escolas participantes, pois muitos professores com motivação
e experiência aquém do recomendado assumiram aulas em Classes de Aceleração.
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Na avaliação das especialistas, esse desvirtuamento do processo de seleção de


professores trouxe dificuldades tanto para a adequação do projeto nas escolas como para o
trabalho de supervisão e capacitação docente; o fato das Classes de Aceleração entrarem no
processo de atribuição geral de classes, sem uma diferenciação específica, fez com que muitos
professores as escolhessem por não terem outra alternativa de trabalho e não pela
identificação com os seus pressupostos teórico - metodológicos do projeto, como seria o mais
adequado.
Quanto aos alunos, a grande maioria atribuiu às Classes de Aceleração um
sentimento altamente positivo, destacando a atuação da professora e a interação com os
colegas:
Eu me senti muito bem porque se não fosse a professora eu não era nada sem ela,
porque ela me ensinou muito;
Eu senti que lá era muito bom de estudar. Eu gostava muito de lá, a professora
tinha muita paciência com a gente. Todos nós gostamos de lá;
Eu me senti na Classe de Aceleração que as coisas era de uma forma que era uma
professora só e que ela ensinava e ia na carteira ensinar;
Eu me senti muito bem, apesar da bagunça a professora explicava muito bem
conosco. Eu adorei a Aceleração porque a professora trabalhava diferente
conosco;
A Classe de Aceleração foi muito bom, crianças educadas, nós gostamos muito da
professora, ela era muito boa com a gente.

Outros alunos valorizaram as Classes de Aceleração pela possibilidade de


superarem a defasagem idade/série e de se apropriarem de conteúdos ou habilidades escolares
específicas:
Me senti muito bem e muito feliz por ter tido uma chance de passar para a 5 a série
mais rápido;
Muito bem, porque lá eu aprendi muitas coisas que se eu não tivesse feito
aceleração não poderia aprender e os professores são muito legais;
Eu me senti muito bem. Porque se eu não fosse para a Aceleração eu não tinha
aprendido a ler e escrever;
Eu me senti muito bem por poder recuperar os anos que eu perdi na escola;
Eu senti que lá eu estava aprendendo mais coisas.

Houve, ainda, alunos que destacaram o quanto a sua experiência nas Classes de
Aceleração beneficiou o aumento de sua auto - estima e de seu autoconceito:
Eu me senti uma pessoa importante;
Eu me sentia um aluno muito importante porque só nós estudamos naquela classe
naquela escola;
Eu me senti uma pessoa inteligente na sala. Eu aprendi muitas coisas novas. Eu
gostei muito e eu era muito comportado com os amigos.
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Quanto às diferenças percebidas entre as Classes de Aceleração e as séries


regulares que estão freqüentando, os alunos identificaram diferenças que, à primeira vista,
podem estar relacionadas às características das séries regulares:
Agora é tudo mais puxado. É tudo mais rigoroso;
Eu sinto que agora as matérias estão mais difíceis;
As lições, as contas e as classes, as professoras e os alunos;
Eu percebo que as professoras não pode ensinar todos ao mesmo tempo porque tem
muito aluno.
Ainda com relação às diferenças, um grupo de alunos percebeu que houve uma
melhora em seu rendimento escolar ou em seu comportamento, após a passagem pelas Classes
de Aceleração: eu estou aprendendo melhor as lições; porque eu sei muito mais do que antes;
agora que eu posso ler mudou tudo para mim.
Alguns alunos atribuíram as diferenças percebidas às características
específicas da experiência nas Classes de Aceleração:
As diferenças que eu percebi foi que a Aceleração foi muito bom para mim;
Quando nós entramos na escola nós tomávamos leite com bolacha e aqui não dá
leite e é muito chato, nós chegamos no frio e não tem nada para comer;
As diferenças é que trabalhávamos muito com livros. Durante o ano todo estudamos
só com livros, fazíamos muitas pesquisas etc. Na classe não havia tanta bagunça,
como é agora;
As diferenças que eu percebo foi o jeito de estudar porque antes eu aprendia mais,
agora eu não aprendo quase nada.

Entretanto, dois alunos atribuíram as diferenças percebidas atualmente nas séries


regulares às possíveis deficiências das Classes de Aceleração:
Muitas, porque eu acho que a Classe de Aceleração não ensina muito bem;
Na Aceleração nós fazíamos o livro que não tinha quase nada de Português. A
minha dificuldade é de Português.

De modo geral, as diferenças entre as Classes de Aceleração e as séries regulares


percebidas parecem residir, com maior freqüência, no aumento do número de professores e
disciplinas nessas séries, na metodologia de trabalho do professores, assim como no tipo de
relação existente entre os professores e os alunos, expresso pela falta de paciência dos atuais
docentes.
Como foi comentado anteriormente, algumas dessa diferenças parecem ser
inerentes à transição entre a 4a e a 5a série do Ensino Fundamental, situação que vem sido
apontada por alguns autores (SILVA, 1992) como um período escolar muito complexo, tanto
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para alunos como para professores, o qual que pode vir a trazer conseqüências desastrosas,
como por exemplo, o aumento da evasão escolar.
Em contraposição, alguns alunos atribuíram as diferenças a supostas deficiências
das Classes de Aceleração, o que pode significar que não houve, por parte desses alunos, a
apropriação do conhecimento escolar adequada para que pudessem retomar as séries regulares
com segurança.
De modo geral, as dificuldades sentidas pelos alunos no decorrer das séries
regulares foram atribuídas à problemas de aprendizagem ou à falta de pré - requisitos para o
acompanhamento das disciplinas atuais. A esse respeito, acredita-se que seriam necessárias
novas investigações a fim de avaliar a verdadeira origem dessa falta de pré - requisitos, ou
seja, se estão relacionadas à problemas de aprendizagem individuais ou à deficiências
específicas das Classes de Aceleração em oferecer um ensino de qualidade a esses alunos.
No tocante às dificuldades, os alunos apontaram com maior freqüência a
Matemática, seguido da Língua Portuguesa, História e Inglês, seja pela complexidade do
conteúdo específico ou pela falta de paciência do professor em ensiná-los. Também
atribuíram as suas dificuldades ao clima de trabalho existente nas séries atuais (barulheira,
bagunça), que impediria a concentração e o raciocínio.
Deve-se ressaltar que os alunos, por meio das respostas fornecidas ao
questionário, sinalizaram claramente o que parece facilitar ou dificultar o seu aprendizado e
aproveitamento escolar, além de apontarem os conteúdos ou habilidades escolares que mais
valorizam, como por exemplo, a leitura.

A tradução de um projeto educacional de superação do fracasso escolar para


a prática docente
Com relação ao processo de tradução do projeto educacional de superação do
fracasso escolar para a prática docente, objetivo geral da pesquisa realizada, os resultados
obtidos permitem afirmar que, na situação investigada, ocorreram diferentes níveis de
tradução.
Tomando-se como parâmetro básico para a tradução os pressupostos teórico -
metodológicos do projeto Classes de Aceleração, pode-se perceber a existência, por um lado,
de um nível de tradução mais aproximado e, por outro, um nível de tradução mais distanciado
da projeto para a prática docente.
Tal diferenciação nos níveis de tradução parece estar relacionada aos diferentes
momentos ou níveis de aprendizagem e desenvolvimento profissional em que as professoras e
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especialistas educacionais se encontravam no decorrer do processo de implementação do


projeto Classes de Aceleração.
Em uma das escolas pôde-se perceber que a tradução do projeto educacional para
a prática docente ocorreu de forma mais aproximada dos pressupostos teórico - metodológicos
do projeto de Aceleração, principalmente devido ao fato das professoras terem aderido e
adotado esses princípios básicos em suas práticas pedagógicas.
Assim, essas professoras, além de acreditarem na premissa de que “todo professor
é capaz de ensinar e que todo aluno é capaz de aprender”, parecem ter acreditado na sua
capacidade em aprender a ensinar de uma maneira diferente.
Nessa perspectiva, os resultados obtidos possibilitam que se teçam algumas
considerações específicas sobre o perfil pessoal e profissional das professoras consideradas
bem - sucedidas por terem realizado uma tradução mais aproximada dos pressupostos do
projeto para a prática pedagógica.
Em primeiro lugar, foi possível perceber que essas professoras acreditaram no
projeto educacional e procuraram compreender os seus pressupostos teórico - metodológicos,
buscando atuar de acordo com os mesmos, mas não se deixando prender em demasia às
amarras das prescrições e recomendações contidas em tal proposta.
Portanto, mesmo atuando de acordo com esses pressupostos, as professoras bem -
sucedidas não abriram mão dos conhecimentos originados em suas experiências profissionais
anteriores, nem de sua capacidade de improvisação. A respeito da improvisação,
PERRENOUD (1997) coloca que os professores improvisam na medida em que se deparam
com um problema ou uma situação imprevista, ambígua ou complexa, necessitando transpor,
diferenciar, ajustar os esquemas disponíveis ou coordená-los de uma maneira original.
Um outro aspecto a ser mencionado é que essas professoras parecem ter aceitado
com muita naturalidade os desafios impostos pelo trabalho, enfrentando os dilemas da prática
como oportunidades para crescerem profissionalmente.
A esse respeito, deve-se salientar que a busca por novos desafios e maior
comprometimento profissional de professores remete a algumas das características indicadas
por COOPER (1982) como parte do estágio de diversificação da carreira docente (analisados
por HUBERMAN, 1995).
A utilização dos conhecimentos adquiridos ao longo da trajetória profissional, a
capacidade de improvisação e a atitude positiva diante dos dilemas e desafios da prática,
parecem reforçar a idéia de que essas professoras encontravam-se em um momento de
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desenvolvimento profissional mais avançado do que as professoras que realizaram uma


tradução mais distanciada do projeto para a prática.
As professoras bem - sucedidas parecem ter compartilhado de uma visão crítica
sobre o fracasso escolar, não compactuando com a concepção de que o fracasso escolar é
causado por fatores individuais. Posicionaram-se contrariamente à discriminação e à exclusão
do aluno, atuando de forma a favorecer o processo de inclusão escolar, mas não se
comportando de maneira onipotente em relação às dificuldades dos alunos.
Dessa forma, pautaram a sua atuação em uma cultura escolar que valoriza o
sucesso do aluno e não naquela que perpetua uma concepção de ensino que sempre espera
pelo fracasso. Na mesma perspectiva, foi possível perceber que a criação e a manutenção de
um bom vínculo afetivo com o grupo de alunos, expresso por gestos e palavras, foi uma
preocupação constante das professoras bem - sucedidas, devido à crença de que a existência
desse vínculo positivo seria crucial para o sucesso do processo ensino - aprendizagem.
Também houve, por parte dessas professoras, a valorização do trabalho em equipe,
através de uma atuação colaborativa com as outras professoras de Classes de Aceleração e, até
mesmo, com as professoras de séries regulares.
Essas mesmas professoras também valorizaram o processo de formação
continuada oferecido no decorrer do projeto, o que foi expresso pelo envolvimento das
mesmas no momento das capacitações.
A análise dos dados indica ainda que, assim como a professora bem - sucedida do
estudo de SOUZA, VIÉGAS & BONADIO (1999), as professoras que já possuíam uma
predileção pessoal pelo trabalho pedagógico junto a alunos com história de sucessivos
fracassos escolares, manifestaram uma atitude mais positiva em relação ao seu próprio
sucesso e ao de seus alunos no processo ensino - aprendizagem.
Entretanto, aquelas que, aparentemente, possuíam uma concepção mais
conservadora do fracasso não parecem ter modificado as suas crenças em relação ao fracasso
dos alunos as quais, ao contrário, podem ter sido reforçadas, mesmo após a experiência nas
Classes de Aceleração.
Ambas as situações parecem confirmar a idéia de MARRERO (1986, citado por
SADALLA, 1998) de que, assim como as crenças que os professores possuem sobre os alunos
influenciam as suas escolhas pedagógicas, as práticas cotidianas acabam por influenciar essas
mesmas crenças, o que possibilita ao professor elaborar e construir continuamente o seu
conhecimento prático e a sua visão pessoal e contextualizada sobre o ensino.
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Concluindo-se o delineamento do perfil pessoal e profissional das professoras bem


- sucedidas, pode-se dizer que os aspectos identificados até o momento se incorporam à
definição de professor ideal para atuar no projeto Classes de Aceleração, na visão das
especialistas educacionais: um professor que seja pesquisador de sua própria prática, capaz de
acreditar e confiar no potencial de sucesso de seu trabalho.
Além disso, acredita-se que os dados revelam, de forma mais clara no caso das
professoras bem - sucedidas no processo de tradução, que o sucesso não parece estar
relacionado apenas aos fatores identificados até o momento, mas também no nível de
desenvolvimento profissional dessas professoras.
Dessa forma, o fato de ter cursado ou de estar cursando um curso de nível superior
parece indicar que possuem uma necessidade de formação continuada e de aprimoramento
pessoal e profissional. Nessa perspectiva, tem-se o exemplo de uma das professoras que, na
época da coleta de dados, participava do processo de seleção para ingressar em um curso de
pós - graduação strito sensu, em nível de mestrado.
Não se pode considerar o perfil pessoal e profissional dessas professoras de forma
isolada, mas também como um produto da cultura escolar a que pertencem. Portanto, além da
dimensão pessoal do processo de tradução, deve-se compreender como a cultura escolar
recebe as mudanças propostas e as traduz, de forma que as inovações se incorporem às
concepções e aos valores já existentes na instituição.
Segundo PATTO (1998), as escolas não podem ser consideradas tábulas rasas ou
folhas em branco, onde as exigências e prescrições das políticas educacionais podem ser
impostas com a garantia de que serão seguidas à risca. Ao serem traduzidas para as salas de
aula, as políticas educacionais muito provavelmente serão ressignificadas para poderem se
adequar às características das culturas escolares.
Ainda segundo PATTO, a tendência de muitas escolas públicas, depois de
décadas expostas a uma série de políticas e reformas educacionais, é possuir uma dinâmica
institucional perversa, a qual acaba por desvirtuar os reais objetivos da educação, atingindo
negativamente a todos os atores envolvidos no processo ensino - aprendizagem,
principalmente, os alunos e suas famílias.
Apesar das instituições escolares estarem há muito tempo descrentes quanto ao
potencial das políticas educacionais públicas em transformar a realidade escolar, podem-se
ainda encontrar escolas onde os profissionais compartilham efetivamente do desejo de
melhorar a qualidade do ensino numa perspectiva ética e que buscam transpor essa intenção
para a prática cotidiana, através de sua competência ou de seu talento artístico profissional,
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expressão cunhada por SCHÖN (2000) para se referir aos tipos de competência que os
profissionais demostram em certas situações da prática que são únicas, incertas e conflituosas.

À guisa de conclusão e reflexão


A pesquisa realizada mostrou que a tradução das políticas ou projetos
educacionais de superação do fracasso escolar para a prática docente não é uma tarefa fácil,
pois envolve desafios e apostas pessoais dos professores e a articulação de crenças que os
mesmos possuem sobre diversos aspectos da prática profissional (alunos, conteúdo curricular,
processo ensino - aprendizagem) com os pressupostos contidos na proposta pedagógica dessas
políticas, reforçando a idéia de não é possível esperar que os professores modifiquem as suas
práticas apenas porque foi decretado que, a partir de um determinado momento, elas deveriam
ser modificadas.
Portanto, diante da complexidade do processo de tradução das políticas ou
projetos de superação do fracasso escolar para a prática, não se pode acreditar que a simples
implementação das políticas irá garantir que essas sejam interpretadas e colocadas em prática
pelo professor da maneira como são previstas pelos órgãos decisórios.
Nesse processo de tradução têm-se, de um lado, os aspectos relacionados ao um
nível pessoal e específico do professor, como as suas crenças ou teorias pessoais, sua
formação acadêmica e trajetória profissional e, de outro, aspectos relacionados a um nível
institucional, como as concepções e valores que a cultura escolar possui sobre o processo
ensino - aprendizagem de alunos com história de fracasso escolar, o apoio dado ao trabalho
docente realizado com os alunos multirrepentes, o investimento que é feito na formação
continuada do corpo docente e a valorização do professor enquanto profissional.
Acredita-se que novas pesquisas sobre os efeitos das Classes de Aceleração
devam ser realizadas, pois apesar da impressão imediata que esse projeto possibilitou uma
melhoria no nível de auto - estima e de motivação dos alunos para aprender, é urgente
verificar como os alunos egressos estão se adaptando às séries regulares e se o conjunto de
conhecimentos, habilidades e valores adquiridos no decorrer de sua passagem por essas
classes foi o suficiente para que venham a obter efetivo sucesso em suas vidas acadêmicas e
no exercício de sua cidadania.
Em outras palavras, apesar dos inegáveis benefícios trazidos pelas Classes de
Aceleração para os professores e os alunos participantes, especialmente no que diz respeito às
condições de trabalho pedagógico (as quais, na opinião das autoras, deveriam ser a regra em
todas as salas de aula) e à adoção de uma concepção de fracasso escolar que procura não
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culpabilizar o aluno, é necessário que se investigue mais profundamente em que medida o


projeto Classes de Aceleração efetivamente contribuiu para que os alunos que delas
participaram se apropriassem dos conteúdos escolares.
A preocupação com a realização desse tipo de pesquisas advém do fato de que, em
linhas gerais, o projeto Reorganização da Trajetória Escolar no Ensino Fundamental - Classes
de Aceleração, enquanto projeto educacional, teve como objetivo maior a correção do fluxo
escolar o que, certamente, implica a alteração das estatísticas e indicadores educacionais mas,
não necessariamente, propicia o oferecimento de um ensino de qualidade ou subsidia a
realização de mudanças estruturais no sistema educacional que venham contribuir para a real
superação do fracasso escolar neste País.

Referências bibliográficas
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