Você está na página 1de 48

3

módulo
literatura professor
Abaurre • Pontara • Cesila

origens europeias

The Bridgeman / Keystone


Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Uma celebração no palácio: cavalaria e cortesia andam lado a lado nos textos medievais. Iluminuras que ilustram um breviário francês (século XIII).

1
CAPÍTULOs

A literatura na Idade Média


2 O Humanismo

1 • 2 • 3 • 4 • 5 • 6 • 7 • 8 • 9 • 10 • 11 • 12 • 13 • 14 • 15 • 16 • 17 • 18 • 19 • 20 • 21 • 22 • 23 • 24 1
Deus pai como criador.
Iluminura da primeira
metade do século XIII.
Bible Moralisée. Codex
Vindobonensis 2554, fol. 1.

AKG / LatinStock
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

2
Um Deus soberano e um ser humano servil
Se há uma noção que resume toda a concepção de mundo dos homens da
Idade Média, é a de Deus. Não há ideia mais englobante, mais universal, que
essa. Deus compreende, ou melhor, excede todo o campo concebível da
experiência, tudo o que é observável na natureza, incluindo os homens, tudo
o que é pensável, a começar pela própria ideia de Deus. Ele é todo-poderoso,
eterno, onipresente.
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval.
Bauru: Edusc/São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 301.
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Professor: Estimule o aluno a conhecer melhor o momento histórico


medieval e a entender suas particularidades, para que compreenda
os procedimentos e os temas da literatura desse período e do perío-
do seguinte, o Humanismo.

Reis, castelos, nobres cavaleiros lutando em


Objetivos
torneios para merecer a atenção de formosas Ao final deste módulo,
você deverá ser capaz de:
damas e a religiosidade são alguns dos elementos ■ identificar as
características da
que compõem certa representação da Idade produção literária
medieval;
Média. Porém, entre os séculos XIV e XV, uma ■ diferenciar as estruturas
e os temas das cantigas
mudança significativa passa a ocorrer na Europa trovadorescas e das
novelas de cavalaria;
medieval. O ser humano começa a se libertar do ■ saber o que foi o
Humanismo;
poder centralizador da Igreja e a desenvolver uma ■ reconhecer os
elementos marcantes
nova mentalidade, em que cabem preocupações da poesia palaciana;
■ explicar as características
e prazeres mais humanos: é o Humanismo. do teatro de Gil Vicente.

Professor: Consulte o Plano de


Aulas. As orientações pedagógicas
e sugestões didáticas facilitarão
seu trabalho com os alunos.

3

Capítulo


1 A literatura na
Idade Média

Gianni Dagli Orti / Corbis / LatinStock

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Figura 1 • Iluminura france-
sa do torneio dos cavaleiros
da Távola Redonda (séc. XV)
do Romance de Tristão.

Leitura da imagem
1 A imagem de abertura foi retirada de um manuscrito medieval que conta a his-
tória de Tristão, um dos mais renomados cavaleiros da Távola Redonda. Ele vive
uma trágica história de amor com a rainha Isolda, esposa do rei Mark. Descreva
rapidamente o cenário e as figuras retratadas.
Na imagem vemos vários cavaleiros em combate. Tristão aparece no centro da

imagem (a proteção negra de seu cavalo traz o nome “Tristan” bordado),

derrubando outro cavaleiro com sua lança. No alto, as mulheres observam o torneio.

A rainha Isolda ocupa a posição central (vestida de vermelho), cercada por suas

damas de companhia.

4
2 O lugar que cada personagem ocupa na imagem tem relação com sua posição
social?
As personagens pertencentes à nobreza encontram-se no alto, observando os

cavaleiros que combatem em frente do castelo. A posição de superioridade da

nobreza é reforçada pelo lugar que tais personagens ocupam na imagem.

Leitura do texto
Leia agora o seguinte trecho, extraído de um texto do século XIII:

Quando Lancelote ouve chamar, não tarda a se voltar. Vira-se. Vê no alto


a pessoa que, no mundo todo, mais desejava ver, sentada na bancada da
janela. Desde o momento em que a avista, não se move mais nem desvia o Glossário
rosto. Defendia-se por trás, porém Meleagant o acossava o mais que podia,
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Acossava. Perse­
mui jubiloso por pensar que o cavaleiro estava agora sem defesa. (...) guia, atacava.
TROYES, Chrétien de. Lancelot ou O cavaleiro da charrete. Jubiloso. Feliz, con-
tente.
In: Romances da Távola Redonda. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 164.

3 O cavaleiro Lancelote está no meio de um combate, quando ouve alguém cha-


mar. É a voz da rainha Guinevere. Que reação ela provoca no cavaleiro?
Lancelote distrai-se do combate. Fica de costas para o inimigo, preocupado apenas

em contemplar a rainha que o chama.

4 Tanto o trecho quanto a imagem tratam dos dois temas mais importantes nos
textos medievais.
a) Que temas são esses?
Os temas são o amor e a cavalaria (os alunos também podem referir-se ao

“combate entre cavaleiros”, por exemplo).

b) Pelo que você observou no texto e na imagem, de que modo esses temas
serão explorados pela literatura?
Na imagem do manuscrito, o combate aparece no centro, como atividade

importante e valorizada da Idade Média. O amor manifestado pelo cavaleiro e

pela rainha parece idealizado; é capaz de levá-lo a esquecer-se do combate

para contemplar o rosto da amada. O trecho do romance de Chrétien de Troyes

sugere que o amor é um sentimento tão poderoso que é capaz de distrair um

cavaleiro de sua função principal: combater. Há, nessa passagem, forte

sugestão de que o amor é uma “ameaça” ao mundo da cavalaria.

5
1 Religião e poder na Idade Média
A Idade Média tem início com a conquista de Roma, capital do Império Ro-
mano do Ocidente, pelos comandantes germânicos, em 476 (século V), e termina
com a queda de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, tomada
pelos turcos em 1453.
Uma das heranças do período de dominação romana na Europa durante a Idade
Média foi o cristianismo. Aos poucos, a Igreja católica cresceu, acumulou vastas
extensões de terra, enriqueceu e concentrou grande poder religioso e secular. Essa
herança conviveu com mudanças na ordem social, que tiveram expressão signifi-
cativa na literatura do período.

1.1 O poder da Igreja


No período conhecido como Alta Idade Média (séculos XII e XIII), o poder da
Igreja era tão grande que o papa Inocêncio III (1198-1216) afirmou:

Os príncipes têm poder na terra; os sacerdotes, sobre a alma. E assim

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


como a alma é muito mais valiosa do que o corpo, assim também mais valio-
so é o clero do que a monarquia (…). Nenhum rei pode reinar com acerto a
menos que sirva devotamente ao vigário de Cristo.
Figura 2 • O escriba inglês PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa.
Eadwine de Canterbury, São Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 218. (Fragmento.)
c. 1150. Biblioteca da Uni­
versidade, Cambridge. Na
imagem, vemos o copista
em sua ocupação diária de O papado de Inocêncio III tornou-se o centro da vida política europeia. Era ele
registrar os saberes, tra­duzi-
-los e mantê-los a salvo para
quem coroava os reis, decidia disputas territoriais e excomungava príncipes que dis-
as gerações seguintes. cordassem de suas decisões políticas.
O clero ainda estimulava as pessoas a acreditar que
Biblioteca da Universidade, Cambridge

eram imperfeitas e inferiores e a buscar a redenção na


total submissão à Igreja, que representava, no mundo,
a vontade de Deus. Essa postura servil perante Deus e
a Igreja é denominada teocêntrica.

1.2 Religião e cultura


Uma importante manifestação do poder da Igre-
ja medieval era seu controle quase absoluto sobre
a produção cultural. Numa época em que apenas
2% da população europeia era alfabetizada, a es-
crita e a leitura estavam praticamente restritas a
mosteiros e abadias. Os religiosos reproduziam ou
traduziam textos sagrados do cristianismo e obras
de grandes filósofos da Antiguidade, como Platão
e Aristóteles, que não representassem uma ameaça
ao poder da Igreja.
Como a circulação dos textos dependia de sua
reprodução manuscrita, quase sempre feita sob
encomenda, a divulgação da cultura era muito di-
fícil, já que o número de cópias em circulação era
bem pequeno.

6
Isto é essencial!

O teocentrismo (derivado do termo grego théos: “deus” ou “divindade”) refere-se a


uma visão de mundo cristã, que afirma a perfeição e a superioridade de Deus, centro
de todas as coisas, e vê o ser humano como imperfeito e pecador.

O uso do latim como língua literária, outra herança do longo período de domina-
ção romana na Europa, também contribuía para dificultar o acesso aos textos. Poemas
Figura 3 • Enquanto foi
e canções eram compostos em latim por monges eruditos que vagavam de feudo em imperador, Carlos Magno
feudo, divulgando, desse modo, suas composições. A maior parte dessa produção fortaleceu o poder central e
conteve as invasões bárba-
abordava temas religiosos. ras que ameaçavam a socie-
dade europeia. Sua morte
deu início a um período de

1.3 Uma nova organização social instabilidade política e reor-


ganização social.

A morte do imperador Carlos Magno,

Gianni DagLI Orti / Corbis – Latinstock


em 814, desencadeou o processo de en-
fraquecimento do poder central e obrigou
a sociedade medieval a reorganizar-se em
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

torno dos grandes proprietários de terra,


os senhores feudais.
Uma pequena corte passou a reunir-se
em torno do senhor feudal. Dela faziam
parte membros empobrecidos da nobreza,
cavaleiros, camponeses livres e servos. Es-
tavam unidos por uma relação de depen-
dência pessoal: a vassalagem. Os morado-
res do feudo juravam defender as terras do
senhor (seu suserano) e, como vassalos,
tinham o direito de viver na propriedade
e cultivar parte das terras, além de receber
proteção do suserano. A posição de des-
taque nessas cortes era ocupada pelos cavaleiros, que, em tempos de ataques e
Professor: Sugerimos
invasões bárbaras, formavam o exército do senhor feudal. que você assista a al-
As relações entre nobres, cavaleiros e senhores feudais eram regidas por um gumas cenas do filme
código de cavalaria baseado na lealdade, na honra, na bravura e na cortesia. com os alunos como
forma de apresentá-los
O servilismo dos vassalos ao seu suserano e dos fiéis a Deus dá origem ao ao “mundo” medieval. A
princípio básico da literatura medieval: a afirmação da total subserviência de um partir da temática abor-
dada por Umberto Eco,
trovador à sua dama (no caso da poesia) ou de um cavaleiro à sua donzela (no caso fica mais fácil criar uma
das novelas de cavalaria). É o que veremos a seguir. representação do que fo-
ram o poder, a riqueza e
os interesses da Igreja, as
diferenças entre servos e
Sala de cinema
Reprodução

senhores; a atuação dos


Adaptação do ro­mance de Umber­to Eco, no qual o monge fran- monges copistas; enfim,
ciscano William de Baskerville investiga uma série de estranhas vários aspectos impor-
tantes para a compreen-
mortes ocorridas num mosteiro medieval. O filme cria um in- são do funcionamento
teressante quadro da sociedade da época e mostra o poder da da sociedade medieval
Igreja católica ao tematizar a disputa entre franciscanos e do- e do contexto em que
minicanos sobre a opção de Cristo pela pobreza. Além disso, ao foram produzidas as can-
retratar o mundo dos monges copistas medievais, ilustra o con- tigas dos trovadores e as
novelas de cavalaria. O
texto de produção e circulação da cultura. filme contém referências
Figura 4 • Cartaz do fil­me O nome da rosa, direção ao homossexualismo
de Jean-Jacques Annaud. Alemanha, 1986. dos monges e uma cena
que retrata uma relação
sexual.

7
2 O projeto literário do Trovadorismo
No século XII, o período das grandes invasões na Europa havia passado, e isso
permitiu o ressurgimento das cidades e facilitou o progresso econômico e o inter-
câmbio cultural. Os cavaleiros viram-se de uma hora para outra sem função social.
Era preciso criar para eles um novo papel.

Isto é essencial!

Quem idealizou o amor cortês foi Guilherme IX, nobre e senhor de um dos mais pode-
rosos feudos da Europa. Esse código transferia a relação de vassalagem entre cavalei-
ros e senhores feudais para o louvor às damas da sociedade.
Os praticantes do amor cortês teriam a chance de demonstrar, diante da corte, que o
valor pessoal não se fundamentava apenas no sangue ou nas proezas militares, mas
podia ser identificado no comportamento social: a cortesia.

A solução para essa situação veio com a idealização de um código de compor-


tamento amoroso, que ficou conhecido como amor cortês.
Na origem nobre do Trovadorismo, em seu contexto de produção e circulação, no

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


público a que se destinava e na linguagem utilizada, podemos identificar os elemen-
tos definidores de seu projeto literário: legitimar, por meio da literatura, uma nova
ordem que redefinisse as funções sociais dos cavaleiros na corte do senhor feudal.

2.1 O Trovadorismo e o público


A lírica trovadoresca é uma poesia de sociedade. Seu forte convencionalismo pode
ser mais bem entendido se lembrarmos da interação constante entre um trovador e
seu público. A reação dos nobres e, principalmente, das mulheres da corte a uma
cantiga era imediata e representava um julgamento da maior ou menor cortesia do
artista. Num mundo governado por fórmulas, não havia espaço para a originalidade:
ser cortês significava seguir as regras do “jogo” amoroso criado por Guilherme IX.
Como testemunhas do comportamento do trovador e da dama a quem dirigia
seus galanteios, os membros da corte julgavam o comportamento social de ambos.
Era função da dama reconhecer e recompensar o trovador que cumprisse todas as
regras do amor cortês. Se ela não fizesse isso, ele tinha o direito de denunciá-la
publicamente por meio de cantigas satíricas. Outros trovadores também podiam
censurar, em suas cantigas, o comportamento inadequado de trovadores que não
seguissem as regras do amor cortês.

2.2 As regras do amor cortês na literatura


Segundo o código do amor cortês, um trovador deveria expressar seus elogios e
suas súplicas a uma mulher da nobreza, casada, que tivesse posição social reconhecida.
Tal posição era necessária para que fosse criada, nos textos literários, uma estrutura
lírica equivalente à da relação de vassalagem. Por esse motivo, os termos que definiam
as relações feudais foram transpostos para as cantigas, caracterizando a linguagem
do Trovadorismo: a mulher era a senhora, o homem era seu servidor; prezavam-se a
generosidade, a lealdade e, acima de tudo, a cortesia. A avareza e a vilania eram com-
portamentos desprezados, que desqualificavam o trovador diante da corte.
O amor era visto como forma de sublimação dos desejos que transformava o
trovador em homem cortês. A dama era vista sob uma perspectiva idealizada, de
perfeição absoluta.

8
Biblioteca Nacional, Paris
As regras do amor
Escrito no final do século XII por André Capelão, o Tratado
do amor cortês codificou as regras da arte de amar. O tex-
to teve grande circulação e contribuiu para consolidar o
amor cortês na Europa. Algumas das regras podem ser
identificadas nas cantigas dos trovadores.
■ O amor sempre abandona o domicílio da avareza. (...);
■ A conquista fácil torna o amor sem valor; a conquista
difícil dá-lhe apreço. (...);
■ Todo amante deve empalidecer em presença da aman-
te. (...);
■ Só a virtude torna alguém digno de ser amado. (...);
■ Quem é atormentado por cuidados de amor come me-
nos e dorme pouco.
CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 261-262. Coleção Gandhara. (Fragmento.)
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Figura 5 • Alegoria do jo­


go do amor cortês que
2.3 A linguagem do Trovadorismo mostra o amante dividido
entre o amor e a cortesia.
Iluminura medieval.
Unindo poesia e música, os textos medievais eram divulgados oralmente. Tal
forma de circulação determinou algumas de suas principais características estru-
turais, como o emprego de metros regulares e a presença constante de rimas, que
facilitavam a memorização das cantigas.
Outra característica dessa produção literária era a obediência a certas regras no
uso de termos que definiam a vassalagem amorosa. O trovador não devia revelar,
em sua cantiga, o nome da dama a quem dirigia elogios, mas precisava apresentá-la
de modo que permitisse que os membros da corte a identificassem. Uma série de
expressões era usada para nomear a dama (senhor, mia senhor, senhor fremosa etc.),
em função da posição que ela ocupava socialmente.
Também é frequente identificarmos, nas cantigas de amor, a referência aos prin-
cipais valores da sociedade cortês. Assim, o trovador fala da mesura (mérito, valor)
de sua dama, pede que ela reconheça sua cortezia (ou prez) e lhe garanta o galar-
dam (prêmio) a que tem direito por seguir as regras da vassalagem amorosa.

3 O nascimento da literatura portuguesa


Professor: Hoje, os mais
Em 1140, Portugal separou-se do reino de Leão e Castela para tornar-se um es- conhecidos estudiosos da
tado independente. Essa separação política não rompeu os profundos laços econô- lírica galego-portuguesa
medieval questionam a
micos, sociais e culturais que mantinha com o resto da península Ibérica. O mais autoria e a datação da
forte deles era a língua: o galego-português. “Cantiga da Ribeirinha”.
É quase certo que seu
O nascimento da literatura portuguesa coincide com o nascimento do próprio autor tenha sido Martim
país. É nas cortes dos reis e dos fidalgos portugueses, galegos e castelhanos que o Soares, e não Paay Soa­res
lirismo galego-português germina. Os trovadores galego-portugueses desenvolvem de Ta­veiroos, mas, como
as obras didáticas conti-
sua lírica amorosa claramente influenciados pela literatura provençal. nuam seguindo a classifi-
Acredita-se que o primeiro texto literário galego-português seja a “Cantiga da cação feita no século XIX
por Carolina Michaëlis de
Ribeirinha” (também conhecida como “Cantiga da Guarvaia”), que se supõe tenha Vasconcelos, mantive-
sido composta em 1198. mos a referência.

9
No mundo non me sei parelha, Não há no mundo ninguém que se
mentre me for’ como me vay, compare a mim em infelicidade,
ca ja moiro por vos – e¡ ay enquanto a minha vida continuar
mia senhor branca e vermelha, assim, porque morro por vós e, ai,
queredes que vos retraya minha senhora branca e de faces
quando vus eu vi em saya! rosadas, quereis que vos retrate
¡Mao dia me levantei, quando vos vi sem manto. Mau dia
que vus enton non vi fea! foi esse em que me levantei, porque
vos vi tão bela (ou seja: melhor seria
E, mia senhor, des aquel di’, ¡ay! se vos tivesse visto feia).
me foi a mi muyn mal,
e vos, filha de don Paay E, minha senhora, desde aquele
Moniz, e ben vus semelha dia, ai, tudo para mim foi muito
d’aver eu por vós guarvaya, mal, mas vós, filha de D. Paio Moniz,
pois eu, mia senhor, d’alfaya parece-vos muito bem que eu
nunca de vos ouve nem ei tenha de vós uma garvaia [manto
valía d’ũa correa. de luxo] quando nunca recebi de
vós o simples valor de uma correia.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


TAVEIROOS, Paay Soares de.
In: VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. Tradução livre das autoras.
Cancioneiro da Ajuda. Reimpressão da edição
de Halle (1904). Lisboa: Imprensa Nacional/
Casa da Moeda, 1990. v. I. p. 82.

A “Cantiga da Ribeirinha” ilustra o tema mais frequente dessa produção literá-


ria: a coita de amor. Nela, o eu lírico masculino fala de seu sofrimento, que teve
início no dia em que avistou, sem seu manto luxuoso, a bela senhora. Desde então,
suspira por ela sem receber qualquer recompensa.

4 As cantigas líricas e satíricas


4.1 Cantigas de amor
Professor: Usamos o Como as cantigas provençais, das quais se originam, as cantigas de amor ga-
conceito de estrutura,
no caso das cantigas tro-
lego-portuguesas exprimem a paixão infeliz, o amor não correspondido que um
vadorescas, para fazer trovador dedica a sua senhora, como na “Cantiga da Ribeirinha”.
referência aos aspectos A estrutura da cantiga de amor apresenta elementos característicos. O eu lírico é
de forma (características
da linguagem e organi- sempre masculino e representa o trovador que dirige elogios a uma dama. O trova-
zação dos versos) e con- dor, que sofre com frequência, se autodenomina coitado, cativo, aflito, enlouquecido,
teúdo (temas aborda-
dos) que definem cada
sofredor. A dama é identificada por termos que destacam suas qualidades físicas
uma das cantigas líricas. (fremosa, delgada, de bem parecer), morais (bondade, lealdade, comprida de bem),
sociais (bom sen, falar mui ben). Ao comparar sua dama com as outras da mesma
corte, o eu lírico a apresenta como superior. As comparações também servem para
acentuar as características do trovador: sua dor é maior que a de todos os outros,
e seus talentos superam os de seus rivais.
As cantigas de amor trazem poucas referências ao cenário, mas, quando elas
aparecem, costumam falar do ambiente da corte ou de uma natureza idealizada.
Outra característica de sua estrutura é a presença de um número reduzido de per-
sonagens, além do trovador e da senhora: em geral são feitas referências a algum
rival ou a Deus.

10
Normalmente, os trovadores galego-portugueses empregavam versos com sete
sílabas métricas (redondilha maior). Como inovação em relação às cantigas pro-
vençais, muitas cantigas apresentam refrão, que é o conjunto de versos que se
repetem no final das estrofes, com a função de enfatizar o sofrimento do eu lírico
ou reafirmar a beleza da senhora a quem ele se dirige.
Observe algumas dessas características na cantiga de João Garcia de Guilhade.

Cantiga d’amor de refran


Quantos an gran coita d’amor Definição do tema: o sofrimento (coita)
eno mundo, qual og’ eu ei, de amor.
querrian morrer, eu o sei, Vassalagem amorosa: os termos utiliza-
o averian én sabor. dos para identificar a dama fazem referên-
Mais mentr’ eu vos vir’, mia senhor, cia às relações de vassalagem da sociedade
feudal.
sempre m’eu querria viver,
e atender e atender! Refrão: os versos repetidos no final de ca-
da estrofe reforçam a subordinação do eu
lírico a sua senhora. Ele vive à espera de
Pero ja non posso guarir, uma nova possibilidade de vê-la.
ca ja cegan os olhos meus
Cegueira do olhar: desdobramento da te-
por vos, e non me val i Deus
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mática do sofrimento amoroso. Após ver a


nem vos; mais por vos non mentir, amada, o eu lírico fica “cego” para todas as
enquant’ eu vos, mi senhor, vir’, outras pessoas. O desejo de morrer, asso-
ciado nessa cantiga ao comportamento de
sempre m’eu querria viver, outros trovadores, também é uma expres-
e atender e atender! são da coita de amor.

E tenho que fazen mal-sen Comparação com os demais trovadores:


procedimento frequente nas cantigas de
quantos d’amor coitados son amor, como recurso expressivo para ressal-
de querer sa morte, se non tar uma prova de maior cortesia do eu lírico,
ouveron nunca d’amor ben, porque ele sofre mais que todos os outros
pelo amor de sua dama, ou está disposto a
com’ eu faç’. E, senhor, por én fazer o que ninguém mais faz. No caso des-
sempre m’eu querria viver, sa cantiga: continuar esperando ser recom-
e atender e atender! pensado com um olhar da dama.

GARCIA DE GUILHADE, João. In: CORREIA,


Natália (Sel., intr., adapt. e notas).
Cantares dos trovadores galego-portugueses.
2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 124.

Cantiga de amor de refrão


Quantos o amor faz padecer Sei que a sofrer estou condenado Esses que veem tristemente
penas que tenho padecido, e por vós cegam os olhos meus. desamparada sua paixão,
querem morrer e não duvido Não me acudis; nem vós, nem Deus. querendo morrer, loucos estão.
que alegremente queiram morrer. Mas, se sabendo-me abandonado, Minha fortuna não é diferente;
Porém enquanto vos puder ver, ver-vos, senhora, me for dado, porém eu digo constantemente:
vivendo assim eu quero estar vivendo assim eu quero estar vivendo assim eu quero estar
e esperar, e esperar. e esperar, e esperar. e esperar, e esperar.
CORREIA, Natália (Sel., intr., adapt. e notas). Cantares dos trovadores
galego-portugueses. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 125.

O servilismo amoroso é simbolizado, no texto, pela expressão mia senhor, presente


em todas as produções do gênero. A coita de amor, nomeada no primeiro verso, é
caracterizada principalmente pela declaração do desejo de morrer que toma conta dos
amantes não correspondidos. O eu lírico dessa cantiga considera que viver sem o amor
de sua senhora é um castigo pior que a morte. Afirma, por isso, a determinação de per-
manecer vivo, sofrendo, somente pela possibilidade de continuar vendo sua senhora.

11
4.2 Cantigas de amigo
De modo geral, as cantigas de amigo falam de uma relação amorosa concreta,
que acontece entre pessoas simples, que vivem no campo. O tema central dessas
cantigas é a saudade.
As personagens, o ambiente e a linguagem das cantigas líricas representam di-
ferentes universos da sociedade medieval.
Se nas cantigas de amor todas as referências dizem respeito aos membros da
corte, à vida palaciana, às damas sofisticadas e ricas, nas cantigas de amigo elas
aludem aos sentimentos e à vida campesina, às moças simples que vivem nas al-
deias e nos campos.
O eu lírico das cantigas de amigo é sempre feminino e representa a voz de uma
mulher (amiga), que manifesta a saudade pela ausência do amigo (namorado ou
amante). Como o trovador que compõe essas cantigas é um homem, a adoção de
um eu lírico feminino acaba por apresentar, para os membros da corte, o que os
compositores consideravam a visão feminina da saudade e do amor.
O cenário é muito importante nesses textos e sempre caracteriza um am-
biente campesino. Várias personagens participam do “universo amoroso” criado
na cantiga de amigo, além da donzela e de seu amante: mãe, amigas, damas de

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


companhia. Essas personagens são testemunhas do amor que a amiga dedica ao
namorado. A mãe, às vezes, representa um obstáculo para a realização dos en-
contros entre os amigos.
Alguns termos são empregados para caracterizar a mulher que fala nessas can-
tigas. Ela se identifica como louçã (clara, branca), velida (bonita), fremosa, delgada,
de bem parecer. O tom das cantigas de amigo é mais positivo e otimista que o das
cantigas de amor, porque, embora elas falem da saudade, tratam de um amor que é
real e ocorre entre pessoas de condição social semelhante. Por esse motivo, a amiga
se define frequentemente como alegre (leda).
Essas canções sempre apresentam refrão. Os versos nelas utilizados costumam ter
cinco sílabas métricas (redondilha menor). A organização dos versos e das estrofes
nas cantigas de amigo é muito mais regular que nas outras cantigas. Os trovadores
usam versos muito semelhantes em estrofes diferentes, criando assim uma estrutura
com paralelismo.
O refrão é repetido no final de todas as estrofes e não sofre as alterações de po-
sição que criam o paralelismo entre os versos da cantiga:

Paralelismo: repetição do
Levad’, amigo, quer dormides as manhãas frias; A verso inicial com a parte fi-
todas-las aves do mundo d’amor dizian: B nal ligeiramente alterada.
leda m’and’eu. O objetivo é manter o pa-
ralelismo sem alterar muito
os sentidos dos versos.
Levad’, amigo, que dormide’-las frias manhãas; A’
toda-las aves do mundo d’amor cantavan: B’ Leixa-pren: tipo especial
leda m’and’eu. de paralelismo no qual
se repete o último verso
da estrofe anterior ou
Toda-las aves do mundo d’amor dizian; B’’ parte dele.
do meu amor e do voss’en ment’avian:
leda m’and’eu. Refrão

TORNEOL, Nuno Fernandes. In: CORREIA, Natália (Sel., intr.,


adapt. e notas). Cantares dos trovadores galego-portugueses. 2. ed.
Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 218. (Fragmento.)

12
O uso de uma estrutura paralelística faz com que os versos das cantigas de ami-
go variem muito pouco em relação ao vocabulário utilizado. Isso torna a linguagem
dessas composições mais simples que a das outras composições trovadorescas.
A cantiga de Nuno Fernandes Torneol é um exemplo de estrutura paralelística
perfeita e demonstra a grande habilidade do trovador para intercalar os versos,
garantindo equivalência de estrutura e de sentido entre as estrofes.
As cores diferentes mostram como a estrutura paralelística é construída na cantiga.

Cantiga d’amigo Cantiga de amigo (alba)


Levad’, amigo, que dormides as manhãas frias; Ergue-te, amigo, que dormes nas manhãs frias!
toda-las aves do mundo d’amor dizian: Todas as aves do mundo, de amor, diziam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.
Levad’, amigo, que dormide’-las frias manhãas; Ergue-te, amigo, que dormes nas manhãs claras!
toda-las aves do mundo d’amor cantavan: Todas as aves do mundo, de amor, cantavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.
Toda-las aves do mundo d’amor dizian; Todas as aves do mundo, de amor, diziam;
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do meu amor e do voss’en ment’avian: do meu amor e do teu se lembrariam:


leda m’and’eu. alegre eu ando.
Toda-las aves do mundo d’amor cantavan; Todas as aves do mundo, de amor, cantavam;
do meu amor e do voss’i enmentavan: do meu amor e do teu se recordavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.
Do meu amor e do voss’en ment’avian; Do meu amor e do teu se lembrariam;
vós lhi tolhestes os ramos en que siian: tu lhes tolheste os ramos em que eu as via:
leda m’and’eu. alegre eu ando.
Do meu amor e do voss’i enmentavan; Do meu amor e do teu se recordavam;
vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan: tu lhes tolheste os ramos em que pousavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.
Vós lhi tolhestes os ramos en que siian Tu lhes tolheste os ramos em que eu as via;
e lhis secastes as fontes em que bevian: e lhes secaste as fontes em que bebiam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan Tu lhes tolheste os ramos em que pousavam;
e lhis secastes as fontes u se banhavan: e lhes secaste as fontes que as refrescavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.
TORNEOL, Nuno Fernandes.
In: CORREIA, Natália (Sel., int., adapt. e notas).
Cantares dos trovadores galego-portugueses.
2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 218-220.

13
4.3 Cantigas de escárnio
Nas cantigas de escárnio, o trovador critica alguém por meio de palavras de
duplo sentido, para que não sejam facilmente compreendidas. O efeito satírico
que caracteriza essas cantigas é obtido mediante ironias, trocadilhos e jogos se-
mânticos. De modo geral, ridicularizam o comportamento de nobres ou denun-
ciam as mulheres que não seguem o código do amor cortês.

4.4 Cantigas de maldizer


Nas cantigas de maldizer, o trovador faz suas críticas de modo direto, explícito,
identificando a pessoa satirizada. Essas cantigas costumam apresentar linguagem
ofensiva e palavras de baixo calão. Muitas vezes, tratam das indiscrições amorosas
de nobres e membros do clero.

Ai, dona fea, fostes-vos queixar


1
Que nunca vos louvei que vos nunca louv’en (o) meu cantar1;
em meu cantar.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

2
Que Deus me perdoe. Dona fea, se Deus mi pardon2,
pois avedes (a) tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!

GARCIA DE GUILHADE, João. In: CORREIA, Natália (Sel., intr.,


adapt. e notas). Cantares dos trovadores galego-portugueses. 2. ed.
Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 136.

Glossário
O trovador, nessa cantiga, manifesta seu descontentamento com o fato de
Loarei. Louvarei.
Sandia. Louca.
uma senhora ter-se queixado de que ele não a elogiava em suas composições.
Coraçon. Vontade.
Para revidar a ofensa sofrida, ele promete louvá-la e diz que ela é feia, velha
Loaçon. Elogio, lou- e louca. Não há, no texto, a nomeação da mulher a quem o eu lírico se dirige,
vação. e, embora a linguagem seja ofensiva, o trovador prefere recorrer à ironia em
lugar da grosseria.

14
5 As novelas de

RMN / René-Gabriel Ojéda / OtherImages


cavalaria
As novelas de cavalaria são os primei-
ros romances, ou seja, longas narrativas
em versos, surgidas no século XII. Elas
contam as aventuras vividas pelos cava-
leiros andantes e tiveram origem no de-
clínio do prestígio da poesia dos trovado-
res. Circularam intensamente nas cortes
medievais e ajudaram a divulgar os valo-
res e a visão de mundo característicos da
sociedade do período.
Estão organizadas em três ciclos, de Figura 6 • As cenas de
acordo com o tema que desenvolvem e com batalha são re­c orrentes
nas novelas de cavalaria.
o tipo de herói que apresentam: Lancelote no castelo de Uter,
■ Ciclo clássico: novelas que narram a guerra de Troia e as aventuras de Ale-
de Everard de Espinques,
século XV.
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

xandre, o Grande. O ciclo recebe essa denominação porque seus heróis vêm do
mundo clássico mediterrâneo.
■ Ciclo arturiano ou bretão: histórias envolvendo o rei Artur e os cavaleiros

da Távola Redonda. Nessas novelas podem ser identificados vários núcleos te-
máticos: a história de Percival, a história de Tristão e Isolda, as aventuras dos
cavaleiros da corte do rei Artur e a demanda do Santo Graal.
■ Ciclo carolíngio ou francês: histórias sobre o rei Carlos Magno e os 12 pares

de França.

Giuseppe Giorcelli / CID


Dos três ciclos, o arturiano per-
manece como um dos temas lite-
rários mais explorados, sendo até
hoje objeto de romances, poemas,
filmes e óperas.
Como acontecia com as cantigas
dos trovadores, as novelas de ca-
valaria eram apresentadas para os
membros da corte. Por se tratar de
textos mais longos, eram geralmente
lidos por seu autor para os nobres e
as damas, que ouviam, fascinados, Figura 8 • Imagem do filme
Excalibur, direção de John
as aventuras vividas pelos cavaleiros Boorman. EUA, 1981.
andantes, que enfrentavam toda sor-
John Boorman. Excalibur. 1981. EUA

te de monstros e perigos para salvar Figura 7 • O rei Artur e os cavaleiros da Távola


damas e donzelas. Redonda diante da aparição do Graal.

Sala de cinema
O filme narra as fantásticas aventuras do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda.
Excalibur, a espada de poder, que daria o título de rei a quem a removesse da rocha em que
estava cravada, é retirada dali pelo jovem Artur, ainda um simples escudeiro. A partir daí,
são apresentadas a formação de Camelot, a causa nobre da Távola Redonda na busca pelo
Santo Graal e a disputa pelo poder entre Merlim e Morgana.

15
Exercícios dos conceitos
O texto a seguir refere-se às questões de 1 a 4.

Canção
Ao ver a ave leve mover
Alegres as alas contra a luz,
Que se olvida e deixa colher
Pela doçura que a conduz,
Ah! tão grande inveja me vem
Desses que venturosos vejo!
É maravilha que o meu ser
Não se dissolva de desejo.

Ah! tanto julguei saber


De amor e menos que supus

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Sei, pois amar não me faz ter
Essa a que nunca farei jus.
A mim de mim e a si também
De mim e tudo o que desejo
Tomou e só deixou querer
Maior e um coração sobejo.

(...)
Bem feminino é o proceder
Dessa que me roubou a paz.
Não quer o que deve querer
E tudo o que deve não faz.
Má sorte enfim me sobrevém,
Fiz como um louco numa ponte,
E tudo me foi suceder
Só porque quis mais horizonte.

Piedade já não pode haver


No universo para os mortais.
Se aquela que a devia ter
Glossário Não tem, quem a terá jamais?
Alas. Asas (forma
Ah! como acreditar que alguém
arcaica). De olhar tão doce e clara fonte
Olvida. Esquece Deixe que eu morra sem beber
a si mesmo, aban-
dona-se. Água de amor em sua fonte?
Venturosos. Feli­
zes, afortunados. (...)
Sobejo. Audaz, VENTADORN, Bernart de. Trad. Augusto de Campos.
ousado. In: Verso reverso controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 83-87. (Fragmento.)

16
1 Na primeira estrofe da cantiga transcrita, o eu lírico mostra o estado de espírito
em que se encontra.
a) Descreva esse estado de espírito.
O eu lírico manifesta inveja da alegria das pessoas afortunadas e se espanta por

não ser “dissolvido” pelo desejo que o consome.

b) Transcreva os versos em que esse estado de espírito é sugerido.


“Ah! tão grande inveja me vem / Desses que venturosos vejo! / É maravilha que

o meu ser / Não se dissolva de desejo.”

2 Por que razão o eu lírico se sente dessa maneira? Explique.


O eu lírico sofre por um amor não correspondido. Imaginou que soubesse tudo

acerca desse sentimento, mas descobre que isso não é verdade e que o amor não

lhe trará sua amada.


Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

3 Na cantiga, o eu lírico caracteriza o objeto de seu amor.


a) Como essa mulher é descrita?
Ela é caracterizada como uma mulher que roubou a paz do trovador e a

quem ele nunca fará jus. Além disso, ela tem, segundo o eu lírico, um

comportamento tipicamente feminino: “Não quer o que deve querer / E tudo

o que deve não faz”.

b) Explique por que essa descrição da amada é característica das cantigas que
desenvolvem o tema da coita de amor (fin’amors).
Na descrição que o trovador faz de sua amada, ele deixa claro que se põe em

posição de inferioridade em relação a ela (“Essa a que nunca farei jus”) e sofre

por ter se apaixonado por alguém que não corresponde ao seu amor, um amor

que o leva à loucura (e a uma morte simbólica: “Fiz como um louco numa

ponte, / E tudo me foi suceder / Só porque quis mais horizonte”).

4 Releia:

Piedade já não pode haver


No universo para os mortais.

a) Por que o eu lírico faz tal afirmação?


Para o eu lírico, não pode haver piedade no mundo se a amada não corresponde

às suas expectativas, ou seja, rejeita seu amor e louvor a ela.

17
b) De que maneira essa afirmação comprova a relação de subordinação do tro-
vador em relação à dama que louva? Explique.
O amor do trovador por sua senhora é imenso. Como ela não responde às suas

súplicas e despreza a homenagem que lhe é feita, ele passa a questionar

valores universais: se a amada não demonstra piedade, não pode haver piedade

no mundo.

O texto a seguir refere-se às questões de 5 a 7.

Joana
Eu não gosto de Joana
Joana tem uma cara esquisita
Joana tem uma risada careta e maldita
Eu não gosto de suas unhas

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


E seu jeitinho de ainda vencerei
Joana é meio problemática
Perde tempo estudando física e matemática
Joana lá com seus cadernos

Olha eu detesto Joana


E seu rosto pálido de batom rosa
Joana nem gosta de prosa
Joana implica quando eu boto Billie Holiday na vitrola
Joana não gosta quando eu escuto Billie Holiday na vitrola
Joana emburra quando eu escuto Billie Holiday na vitrola
Joana lá com seus cadernos

Essa é a canção que eu fiz no dia que tirei


Pra falar mal de Joana
Dedico também minha implicância
A essa canção sem importância
Mas sei que seremos eternos
Eu
Billie Holiday
E Joana lá com seus cadernos
CAROLINA, Ana. Joana. Ana Rita Joana Iracema e Carolina.
Disponível em: <anacarolina.uol.com.br>. Acesso em: 12 mar. 2008.
© Copyright 2001 by BMG.

5 A canção apresentada foi composta com um objetivo específico.


a) Qual é ele?
A compositora Ana Carolina escreveu a canção para criticar, satirizar uma

pessoa: Joana.

18
b) Transcreva o verso em que esse objetivo é explicitado.
“Essa é a canção que eu fiz no dia que tirei / Pra falar mal de Joana.”

6 O tema da canção e seu objetivo evocam um tipo de cantiga produzida na Idade


Média.
a) Qual é ela?
Uma cantiga de maldizer.

b) Que elementos da canção permitem compará-la a esse tipo de cantiga?


Em primeiro lugar, identifica-se a pessoa satirizada (Joana), uma marca formal

das cantigas de maldizer. A autora explicita, também, seu desagrado em

relação a Joana (“Eu não gosto de Joana”). Além disso, são feitas críticas diretas
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a Joana e à sua maneira de ser, por meio da apresentação das características

da moça: “Joana tem uma cara esquisita / Joana tem uma risada careta e

maldita” etc.

c) Explique de que maneira a caracterização de Joana na canção explicita a in-


tenção satírica da autora.
Para provocar o efeito cômico e satírico, Ana Carolina ridiculariza a moça,

apresentando pejorativamente suas características (“Eu não gosto de suas

unhas / E seu jeitinho de ainda vencerei”). Ao apresentá-la como alguém que

tem “uma cara esquisita”, um “rosto pálido de batom rosa” e que é “meio

problemática” porque “Perde tempo estudando física e matemática”, a

compositora sugere que considera a postura e os valores da moça inadequados

e que isso determina seus sentimentos em relação a ela.

7 A irreverência presente na canção atinge também a própria composição. De que


maneira isso ocorre?
Ao afirmar que dedica também sua “implicância / A essa canção sem importância”,

Ana Carolina transpõe seu olhar crítico para a música que escreveu, satirizando sua

própria composição.

19
Retomada dos conceitos Professor: Consulte o Banco de Questões e incentive
os alunos a usar o Simulador de Testes.

Instrução: As questões de números 1 a 3 tomam por base uma cantiga do trovador


galego Airas Nunes de Santiago (século XIII) e o poema “Confessor medieval”, de
Cecília Meireles (1901-1964).

Cantiga
Bailemos nós já todas três, ai amigas,
So aquestas avelaneiras frolidas,
E quem for velida, como nós, velidas,
Se amigo amar,
So aquestas avelaneiras frolidas
Verrá bailar.
Bailemos nós já todas três, ai irmanas,
So aqueste ramo destas avelanas,
E quem for louçana, como nós, louçanas,

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Se amigo amar,
So aqueste ramo destas avelanas
Verrá bailar.
Por Deus, ai amigas, mentr’al non fazemos,
So aqueste ramo frolido bailemos,
E quem bem parecer, como nós parecemos
Se amigo amar,
So aqueste ramo so lo que bailemos
Verrá bailar.
SANTIAGO, Airas Nunes de. In: SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa – I.
Era Medieval. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1966.

Confessor medieval
(1960)
Irias à bailia com teu amigo,
Glossário
Se ele não te dera saia de sirgo?
Aquestas. Estas.
Frolidas. Floridas. Se te dera apenas um anel de vidro
Velida. Formosa. Irias com ele por sombra e perigo?
Verrá. Virá. Irias à bailia sem teu amigo,
Irmanas. Irmãs. Se ele não pudesse ir bailar contigo?
Aqueste. Este.
Avelanas. Avela­ Irias com ele se te houvessem dito
neiras. Que o amigo que amavas é teu inimigo?
Louçanas. For­
mo­sas. Sem a flor no peito, sem saia de sirgo,
Mentr’al. En­quan­ Irias sem ele, e sem anel de vidro?
to outras coisas.
Bem parecer. Ti­
Irias à bailia, já sem teu amigo,
ver belo aspecto. E sem nenhum suspiro?
Sirgo. Seda. MEIRELES, Cecília. Poesias completas de Cecília Meireles. v. 8.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

20
1 (Vunesp) Tanto na cantiga como no poema de Cecília Meireles verificam-se dife-
rentes personagens: um eu poemático, que assume a palavra, e um interlocutor
ou interlocutores a quem se dirige. Com base nessa informação, releia os dois
poemas e, a seguir:
a) indique o interlocutor ou interlocutores do eu poemático em cada um dos
textos.
Na “Cantiga”, o eu lírico se dirige a duas outras moças, chamadas ora de

amigas, ora de irmãs. No poema de Cecília Meireles, o eu lírico apresenta-se

como um confessor ou confidente que se dirige a uma moça apaixonada.

b) identifique, em cada poema, com base na flexão dos verbos, a pessoa gra-
matical utilizada pelo eu poemático para dirigir-se ao interlocutor ou inter-
locutores.
Na “Cantiga”, o eu lírico, para referir-se aos interlocutores, emprega a
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

primeira pessoa do plural: “bailemos”, “nós”. No segundo texto, a pessoa

gramatical utilizada para referir-se ao interlocutor é a segunda do singular:

“irias”, “tu”, “teu”.

2 (Vunesp, adaptada) A leitura da cantiga de Airas Nunes e do poema “Con­fessor


medieval”, de Cecília Meireles, revela que esse poema, mesmo tendo sido escrito
por uma poeta modernista, apresenta intencionalmente algumas características
da poesia trovadoresca, como o tipo de verso e a construção baseada na repeti-
ção e no paralelismo.
Releia com atenção os dois textos e, em seguida, considerando que o efeito
de paralelismo em cada poema se torna possível a partir da retomada, estro-
fe a estrofe, do mesmo tipo de frase adotado na estrofe inicial (no poema de
Airas Nunes, por exemplo, a retomada da frase imperativa), aponte o tipo de
frase que Cecília Meireles retomou de estrofe a estrofe para possibilitar tal
efeito.
No poema de Cecília Meireles, a oração subordinada adverbial condicional
que aparece no segundo verso da primeira estrofe (“Se ele não te dera saia
de sirgo”) é retomada a cada estrofe com alterações. Na segunda e na
terceira estrofes, as orações são: “Se te dera apenas um anel de vidro” e
“Se ele não pudesse ir bailar contigo?”. Na penúltima estrofe, a oração aparece
com estrutura mais simples, com a condição apresentada pela preposição sem:
“Sem a flor no peito, sem saia de sirgo / Irias sem ele, e sem anel de vidro?”.
Assim, o paralelismo se constrói pela repetição de enunciados interrogativos
(sempre com a forma verbal irias), dentro dos quais há sempre um
elemento condicional.

21
3 (Vunesp) As cantigas que focalizam temas amorosos apresentam-se em dois
gêneros na poesia trovadoresca: as “cantigas de amor”, em que o eu poemático
representa a figura do namorado (o “amigo”), e as “cantigas de amigo”, em que
o eu poemático representa a figura da mulher amada (a “amiga”) falando de seu
amor ao “amigo”, por vezes dirigindo-se a ele ou dialogando com ele, com outras
“amigas” ou, mesmo, com um confidente (a mãe, a irmã etc.). De posse dessa
informação:
a) classifique a cantiga de Airas Nunes em um dos dois gêneros, apresentando a
justificativa da resposta.
Essa cantiga é uma das mais conhecidas do cancioneiro medieval, classificada

como cantiga de amigo. Os elementos que justificam a resposta são: presença

do eu lírico feminino, estrutura paralelística (repetição quase integral dos

versos) e refrão.

b) identifique, levando em consideração o próprio título, a figura que o eu poe-


mático do poema de Cecília Meireles representa.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Pelo título do poema (“Confessor medieval”), reconhece-se como o eu

lírico do texto a figura de um religioso ou confidente que aconselha a moça

a ser cuidadosa no envolvimento amoroso e aponta as possíveis

dificuldades do amor.

Leia a cantiga seguinte, de João Garcia de Guilhade.

Un cavalo non comeu


á seis meses nen s’ergueu
mais prougu’a Deus que choveu,
creceu a erva,
e per cabo si paceu,
e já se leva!

Seu dono non lhi buscou


cevada neno ferrou:
mai-lo bon tempo tornou,
creceu a erva,
e paceu, e arriçou,
e já se leva!

Seu dono non lhi quis dar


cevada, neno ferrar;
mais, cabo dum lamaçal
creceu a erva,
e paceu, e arriç’ar,
e já se leva!
Cantigas from the Court of Dom Dinis.
USA: Harmonia Mundi, 1995.

22
4 (Unifesp) A leitura permite afirmar que se trata de uma cantiga de: O poe­m a de João
Garcia de Guilhade
a) escárnio, em que se critica a atitude do dono do cavalo, que dele não cuidara, pode ser classifica-
mas, graças ao bom tempo e à chuva, o mato cresceu e o animal pôde recupe- do como cantiga de
rar-se sozinho. escárnio, pertencen-
te ao Trovadorismo
b) amor, em que se mostra o amor de Deus com o cavalo que, abandonado pelo gale­g o-português.
dono, comeu a erva que cresceu graças à chuva e ao bom tempo. Trata-se de uma com-
posição satírica, em
c) escárnio, na qual se conta a divertida história do cavalo que, graças ao bom que não se identifica
tempo e à chuva, alimentou-se, recuperou-se e pôde, então, fugir do dono claramente a pessoa
criticada – no caso, o
que o maltratava. relapso dono que não
d) amigo, em que se mostra que o dono do cavalo não lhe buscou cevada nem cuida de seu cavalo.
o ferrou por causa do mau tempo e da chuva que Deus mandou, mas, mesmo Não é cantiga de mal-
dizer porque as pes-
assim, o cavalo pôde recuperar-se. soas criticadas não
e) maldizer, satirizando a atitude do dono que ferrou o cavalo, mas esqueceu-se estão explicitamente
mencionadas.
de alimentá-lo, deixando-o entregue à própria sorte para obter alimento.

5 (UFMA)

Hun tal home sei eu, ai, bem talhada,


Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que por vós ten a sa morte chegada;


vedes quem é e seed’em nembrada:
eu, mia dona!
Hun tal home sei eu que preto sente
de si morte chegada certamente:
vedes quem é e venha-vos em mente:
eu, mia dona!
Hun tal home sei eu, aquest’oide:
que por vós morr’e vo-lo en partide;
vedes quem é, non xe vos obride:
eu, mia dona!
Cancioneiro d’el-Rei D. Dinis.

No poema acima, o final dos últimos versos – mia dona! – caracteriza um cantar Trata-se de uma can-
tiga de amor, porque
medieval, que se classifica como: “mia dona” é equiva-
lente a “mia senhor”,
a) cantiga satírica. d) cantiga de maldizer. expressão utilizada
b) cantiga de escárnio. e) cantiga de amor. de modo recorrente
nessas cantigas.
c) cantiga de amigo.

Em A demanda do Santo Graal são narradas as façanhas dos


Coleção Particular. Foto: The Bridgeman / Keystone

mais conhecidos cavaleiros do rei Artur em busca do cálice


sagrado. Lancelote, Tristão, Perceval, Galaaz e outras perso-
nagens lendárias participam da busca do Graal, o cálice no
qual teria sido recolhido o sangue de Cristo crucificado.
Galaaz, filho de Lancelote, é o herói da demanda por apre-
sentar todas as qualidades e virtudes adequadas ao sim-
bolismo religioso dessa narrativa. Ele encarna a figura do
cavaleiro a serviço de Deus e por ele abençoa­do por sua
pureza de alma e de corpo. Na sua primeira aparição na
corte do rei Artur, o eleito surge entre os cavaleiros sem
que nenhuma porta lhe seja aberta e ocupa seu lugar na
Távola Redonda.
A conquista do Santo Graal, 1893-1894, ilustração de Aubrey Beardsley.

23
O texto a seguir, extraído de A demanda do Santo Graal, refere-se às questões
de 6 a 9.

Como Galaaz entrou no paço e acabou com o assento perigoso


Eles (...) olharam e viram que todas as portas do paço se fecharam e to-
das as janelas, mas não escureceu por isso o paço, porque entrou um tal raio
de sol, que por toda a casa se estendeu. E aconteceu então uma grande ma-
ravilha, não houve quem no paço não perdesse a fala; e olhavam-se uns aos
outros e nada podiam dizer, e não houve quem saísse do assento, enquanto
isso durou. Aconteceu que entrou Galaaz armado de loriga e brafoneiras e
de elmo e de duas divisas de veludo vermelho; e, depôs ele, chegou o ermi-
tão, que lhe rogara que o deixasse andar com ele, e trazia um manto e uma
garnacha de veludo vermelho em seu braço.
Mas tanto vos digo que não houve no paço quem pudesse entender por
onde Galaaz entrara, que em sua vinda não abriram porta nem janela. Mas
do ermitão vos digo, porque o viram entrar pela porta grande. E Galaaz,
assim que chegou ao meio do paço, disse de modo que todos ouviram:
– A paz esteja convosco.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


E o homem bom pôs as vestes que trazia sobre um tapete, e foi ao rei
Artur e disse-lhe:
– Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquele que vem da alta
linhagem do rei Davi e de José de Arimateia, pelo qual as maravilhas desta
terra e das outras terão fim.
Glossário E com isto que o homem bom disse, ficou o rei muito alegre. E disse:
Paço. Habitação – Se isto é verdade, sede bem-vindo. E bem seja vindo o cavaleiro, por-
luxuosa da reale-
za, palácio.
que este é o que há de dar cabo às aventuras do Santo Graal. Nunca foi feita
Loriga. Tipo de nesta corte tanta honra como nós lhe faremos; e quem quer que ele seja, eu
couraç a us ada quereria que lhe fosse muito bem, pois de alta linhagem vem como dizeis.
na Idade Média – Senhor, disse o ermitão, cedo o vereis em bom começo.
p a r a p r o te ç ã o
em combate. Então fê-lo vestir os panos que trazia e foi assentá-lo no assento perigo-
Brafoneiras. Pe­ so. E disse:
ças da armadura – Filho, agora vejo o que muito desejei, quando vejo o assento perigoso
que cobriam a ocupado.
par te sup erior
dos braços dos (...)
cavaleiros.
Garnacha. Há­bito
ou traje lon­g o,
usado por mon­
ges, magistrados
etc.
A s s e nt o p e r i -
goso. Cadeira da
Távola Redonda
destinada ao ca-
valeiro escolhido
p or D eus p ar a
pôr fim a todas
as maravilhas do
reino de Logres.
Qualquer outra
p ess o a qu e s e
sentasse nessa
cadeira era ime-
diatamente ful-
minada.

24
O cavaleiro de quem Merlim e todos os profetas falaram
O rei, assim que viu no assento perigoso o cavaleiro de quem Merlim e
todos os profetas falaram na Grã-Bretanha, então bem soube que aquele era
o cavaleiro por quem seriam acabadas as aventuras do reino de Logres, e
ficou com ele tão alegre e tão feliz, que bendisse a Deus: Glossário
– Deus, bendito sejas tu que te aprouve de tanto viver eu que, em minha Logres. Reino
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

casa, visse aquele de quem todos os profetas desta terra e das outras profeti- go­­vernado por
zaram, tão longo tempo há já. Artur onde se si-
tuava a cidade de
(...) Camelot, sede do
MEGALE, Heitor (texto sob os cuidados de). A demanda do Santo Graal: manuscrito seu reinado.
do século XIII. São Paulo: T. A. Queiroz/Ed. da USP, 1988. p. 35-36. (Fragmento.)

6 Na cena transcrita há um acontecimento central.


a) Qual é ele?
O principal acontecimento da cena é a chegada de Galaaz, já sagrado cavaleiro,

à Távola Redonda.

b) Que fatos extraordinários, relacionados a esse acontecimento, surpreendem


os cavaleiros?
Os cavaleiros são surpreendidos por dois fatos extraordinários: a entrada de

Galaaz na sala sem que nenhuma porta tivesse sido aberta à sua passagem

(embora o ermitão que o acompanhava tenha entrado por uma porta) e o fato

de ele conseguir se sentar no assento perigoso e não morrer por isso.

7 Galaaz é o herói de A demanda do Santo Graal.


a) Que elementos do trecho sugerem que ele será o escolhido para completar a
busca do cálice sagrado? Explique.
Além de sua aparição milagrosa e do fato de ter ocupado o assento perigoso,

a reação dos outros cavaleiros diante de Galaaz é de reverência. O ermitão que o

conduz afirma ser ele o “cavaleiro desejado”, descendente de José de Arimateia

e pertencente a uma linhagem sagrada. O rei Artur, ao receber essa informação,

afirma que ele “há de dar cabo às aventuras do Santo Graal”.

25
Professor: Seria in-
b) Que indícios deixam claro que Galaaz está destinado a realizar feitos maravi-
teressante explicar lhosos em nome de Deus? Justifique.
aos alunos que, na
demanda cristiani- Os milagres (a aparição no meio da Távola Redonda, seu assento na cadeira
zada, Galaaz terá sua
imagem claramente perigosa) que envolvem Galaaz já sugerem sua associação a manifestações do
associada à de Cristo.
Ele representa a sal- poder de Deus. Além disso, a maneira como ele saúda os cavaleiros (“A paz esteja
vação do reino de
Logres e dos cavalei- convosco”) é uma clara alusão à sua “filiação” ao cristianismo, porque reproduz
ros, é o único puro e
casto, saúda os ou-
tros cavaleiros como a saudação cristã que é utilizada nos ritos religiosos. Essa também teria sido a
Jesus costumava sau-
dar seus apóstolos, saudação feita por Cristo aos apóstolos após sua ressurreição. Galaaz é
é definido por Artur
como o “mestre” de descendente de Davi e de José de Arimateia. Todos esses indícios permitem
todos os cavaleiros e
não sucumbe às ten- identificá-lo como um cavaleiro a serviço de Deus.
tações que surgem
durante a demanda.
8 A demanda do Santo Graal é uma versão cristianizada da mais famosa aventura
vivida pelos cavaleiros da Távola Redonda.
a) Que elementos vinculam essa narrativa à religião cristã?

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Em primeiro lugar, temos o próprio título da novela, que se refere à

busca empreendida para encontrar o cálice sagrado em que estaria o

sangue de Cristo derramado na crucificação. Além disso, temos a

aparição inexplicável de Galaaz diante dos cavaleiros, a alusão ao fato de ele

ser o cavaleiro escolhido e de quem falaram todos os profetas, guardando

estreita semelhança com a história de Cristo. A saudação de Galaaz aos

outros cavaleiros é também religiosa (“A paz esteja convosco”) e ele é o

único que consegue sentar-se no “assento perigoso” sem morrer por isso.

Todos esses elementos indicam a presença divina associada a esse

cavaleiro de Deus.

b) De que maneira a presença desses elementos ilustra a perspectiva teocêntrica


característica da literatura medieval?
Todos esses elementos sugerem a visão teocêntrica do homem medieval. A

grande aventura empreendida pelos cavaleiros da Távola Redonda objetiva a

salvação do reino de Logres mediante o cálice sagrado, simbolismo máximo

do cristianismo. Seu herói é um homem puro de alma e de corpo, outro ideal

cristão. Sua aparição pode ser descrita como “milagrosa”, e ele terá de enfrentar

e vencer, nessa busca, inúmeras tentações. Percebe-se que, nessa narrativa, os

dogmas da fé cristã, como o sangue de Cristo crucificado e o cálice da

consagração, são apresentados aos leitores, revelando o processo de cristianização

da demanda e a reafirmação dos valores caros ao homem medieval.

26
9 Por que a grande popularidade de A demanda do Santo Graal, nas cortes medie-
vais, contribuía para fortalecer o poder da Igreja?
A grande circulação e popularidade de A demanda do Santo Graal contribuía para

reforçar, nas cortes medievais, a crença no poder absoluto de Deus e na necessidade

de os seres humanos se curvarem diante de tal poder. Na narrativa, a salvação do

mundo está condicionada à descoberta de um objeto sagrado. Somente o cavaleiro

que se submeter, de corpo e alma, aos mandamentos da Igreja poderá concluir a

demanda. Todas as aventuras narradas nessa novela de cavalaria reforçam,

portanto, a ideia de que é a Igreja o caminho para a salvação da alma.

10 (Mackenzie-SP, adaptada)
Glossário
Ondas do mar de Vigo, Levado. Agita­do.
se vistes meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Ondas do mar levado,


se vistes meu amado!
E ai Deus, se verrá cedo!
Martim Codax

Assinale a afirmativa correta sobre o texto. Trata-se claramente de


a) Nessa cantiga de amigo, o eu lírico masculino manifesta a Deus seu sofrimento uma cantiga de amigo,
com eu lírico feminino,
amoroso. o que se comprova pela
expressão “meu amigo”.
b) Nessa cantiga de amor, o eu lírico feminino dirige-se a Deus para lamentar a Esse eu lírico dirige-se
morte do ser amado. às ondas do mar de
Vigo (vocativo presente
c) Nessa cantiga de amigo, o eu lírico masculino manifesta às ondas do mar sua no primeiro verso), e a
angústia pela perda do amigo em trágico naufrágio. ansiedade pela volta do
amado é demonstrada
d) Nessa cantiga de amor, o eu lírico masculino dirige-se às ondas do mar para na expressão “se verrá
expressar sua solidão. cedo”, que se repete no
sexto verso do poema.
e) Nessa cantiga de amigo, o eu lírico feminino dirige-se às ondas do mar para
expressar sua ansiedade com relação à volta do amado. Trans­mitidas oralmente,
as cantigas trovadores-
11 (Mackenzie-SP) Assinale a afirmativa correta com relação ao Trovadorismo. cas faziam uso da musi-
calidade como recurso
a) Um dos temas mais explorados por esse estilo de época é a exaltação do amor para a memorização.
sensual entre nobres e mulheres camponesas. As demais alternativas
estão incorretas porque
b) Desenvolveu-se especialmente no século XV e refletiu a transição da cultura falam de amor sensual
teocêntrica para a cultura antropocêntrica. (no Trovadorismo pre-
domina o amor platôni-
c) Devido ao grande prestígio que teve durante toda a Idade Média, foi recu- co); porque esse estilo
literário não ocorre no
perado pelos poetas da Renascença, época em que alcançou níveis estéticos século XV nem se ba-
insuperáveis. seia em uma cultura
antropocêntrica; por-
d) Valorizou recursos formais que tiveram não apenas a função de produzir efei- que as cantigas não
to musical, como também a função de facilitar a memorização, já que as com- são retomadas pelo
posições eram transmitidas oralmente. Renascimento e não re-
cuperam os padrões es-
e) Tanto no plano temático como no plano expressivo, esse estilo de época ab- téticos greco-romanos.
sorveu a influência dos padrões estéticos greco-romanos.

27
Capítulo 2 O Humanismo

Palácio Público, Siena

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Figura 1 • Os efeitos de
um bom governo, 1338-

Leitura da imagem
1339, afresco de Ambrogio
Lorenzetti. Nessa obra, o
artista retrata o refloresci-
mento da vida urbana e do
comércio.
1 Que cenário aparece retratado no afresco de Ambrogio Lorenzetti? Justifique
sua resposta com elementos da própria imagem.
O afresco apresenta cenas da vida em uma cidade. Há um conjunto de edificações,

a presença de muitas pessoas em espaços “públicos” (algo semelhante a ruas de

uma cidade), interação entre as pessoas.

2 Observe as pessoas retratadas. Elas parecem pertencer a um mesmo segmento


social? Justifique.
Não. No afresco, vemos pessoas vestidas e agindo de modos diferentes, o que

sugere pertencerem a classes sociais distintas. Em primeiro plano, aparece um

grupo com trajes mais sofisticados que parece dançar (as pessoas estão de mãos

dadas, formando um círculo); no canto esquerdo, há outras trajadas ricamente que

passam a cavalo (a mulher, na frente, usa uma coroa na cabeça); há pessoas vestidas

de modo mais simples que parecem trabalhar (no canto direito inferior, por

exemplo, vemos um homem que cuida de animais; na parte central superior,

também há homens que carregam sacos e trabalham na construção de um telhado).

28
3 No afresco, não há nenhuma referência à religião. O que essa ausência sugere
em relação à perspectiva teocêntrica medieval e ao papel do ser humano na
construção do próprio destino? Explique.
Essa ausência sugere uma mudança. Na perspectiva teocêntrica medieval, todas as

conquistas humanas são, na verdade, dádivas divinas. Por esse motivo, as obras de

arte do período procuram trazer sempre elementos que simbolizam a subordinação

do ser humano a Deus. Quando Lorenzetti retrata a vida em uma cidade e as

atividades ali normalmente desenvolvidas por pessoas comuns, começa a atribuir

um importante papel ao ser humano na condução da própria vida, sugerindo que

nem tudo depende de Deus.

Leitura do texto Professor: Informe aos


alunos que a religião da
Antiguidade era o pa-
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A divina comédia, de Dante Alighieri, ilustra o olhar humanista para a religião e ganismo, caracterizado
o desejo de compreender e explicar as coisas do mundo, da vida e da morte que pelo culto a muitos deu-
ses. Por esse motivo, os
caracterizam a literatura no Humanismo. Leia um trecho dessa obra. poetas Homero, Horácio,
Ovídio, Lucano e o pró-
prio Virgílio são postos
Canto IV no Limbo por Dante.
Segundo a concepção
Após cruzarem o rio Aqueronte e entrarem no Limbo, o primeiro círculo do Infer- cristã, o batismo era a
no, Dante e Virgílio encontram as almas dos grandes mestres gregos e romanos. única forma de livrar os
seres humanos da má-
(...) cula do pecado original.
Como não tinham sido
A vista descansada então lançando batizados, esses poetas
deviam permanecer no
em derredor, olhei detidamente, Limbo, embora não fos-
a ver onde me achava, e como, e quando. sem pecadores.

(...)
Bem à distância estávamos, mas não
tanto que eu não pudesse ver em parte
que a gente ali mostrava distinção.
“Ó tu, que glorificam ciência e arte,
quem são estes”, falei, “com dignidade
tal que os conserva assim dos mais à parte?”
Disse-me, então: “A notabilidade
deles, que soa lá onde tens vida,
do céu lhes houve a justa prioridade.” Glossário
(...) Notabilidade. Atri­
buto de pessoa no-
O meu bom mestre prosseguiu, falando: tável, admirável.
“Olha o que à mão aquela espada traz, Lucano. Poeta épico
à frente dos demais, como em comando: latino, que viveu en-
tre os anos 39 e 65.
É Homero, cantor alto e capaz: Escreveu Farsália,
em que narra episó-
Com Horácio, o satírico, ali vem; dios da guerra civil
Ovídio logo após, Lucano atrás. romana.

29
Reprodução
Figura 2 • Gustave Doré
foi o mais conhecido ar-
tista a elaborar ilustrações
para A divina comédia.
Vemos, na cena ao lado,
o barqueiro conduzindo
Dante e Virgílio em meio
às almas condenadas que
pedem ajuda. Ilustração
para o canto 8, “Inferno”.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


E porque cada um comigo tem
este nome em comum que a voz entoa,
disto me orgulho, e a nada aspiro além.”
Assim reunida a bela escola e boa
eu vi do mestre altíssimo do canto,
que sobre os outros, como a águia, revoa.
Depois de terem conversado a um canto,
volveram-se e fitaram-me, acenando:
e meu mestre sorriu de favor tanto.
E honra maior me foram demonstrando,
tal, que acolhido em sua companhia,
eu era o sexto aos mais ali somando.
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Cristiano Martins. v. 1. 6. ed.
Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 128-134. (Fragmento.)

4 No catolicismo, as almas das pessoas não batizadas são encaminhadas ao Limbo,


pois não podem permanecer em presença de Deus sem ter sido purificadas do
pecado original. Por que razão os poetas gregos e latinos encontram-se separa-
dos das outras almas que estão no Limbo?
Segundo Virgílio, a fama que esses poetas têm no mundo (“lá onde tens vida”) é

tão grande que lhes garantiu distinção entre as outras almas que estão no Limbo.

5 Além de chamar Virgílio de “mestre”, Dante revela, nessa passagem de A divina


comédia, que o considera superior aos outros poetas identificados. Transcreva
os versos que comprovam essa afirmação.
Os versos são: “eu vi do mestre altíssimo do canto, / que sobre os outros, como a

águia, revoa”.

30
6 Que elementos desse trecho ilustram a tentativa de conciliar a religião católica
e as influências da cultura greco-latina? Por quê?
O fato de Dante escrever uma obra para explicar como seriam o Inferno,

o Purgatório e o Paraíso revela a importância do cristianismo para o ser humano

que vive nesse período. O tratamento dado aos poetas clássicos, tratados como

“mestres” formadores da boa escola, revela que a cultura greco-latina era o modelo

inspirador da arte da época. A associação desses elementos ilustra a tentativa de

conciliar o cristianismo e as influências greco-latinas.

1 O surgimento da burguesia e de uma


cultura leiga
Uma importante transformação na sociedade europeia aconteceu na Itália do
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

século XIII. As cidades-Estado que se desenvolveram no norte do país tornaram-se


prósperos centros comerciais e bancários. Roma, Milão, Florença, Veneza, Mântua,
Ferrara, Pádua, Bolonha e Gênova dominavam o comércio marítimo com o Oriente
e controlavam a economia mercantil. A riqueza passou a ser associada ao capital Figura 3 • Vista de Florença,
obtido pelo comércio e não mais à terra, como ocorria na sociedade feudal. 1558, de Giorgio Vasari.

Erich Lessing / Álbum / LatinStock

31
Muitos camponeses, atraídos pela promessa de prosperidade, transferiram-se
para os burgos (vilarejos que cresciam em torno e ao abrigo de núcleos fortifica-
dos), onde começaram a trabalhar como pequenos mercadores. Surgia, assim, a
burguesia, constituída por todos aqueles que, sem nobreza de sangue, acumula-
vam capital por meio de atividades mercantis. O número de burgueses verdadei-
ramente ricos era pequeno, mas o crescimento das atividades comerciais fez com
que esse grupo se fortalecesse e conquistasse poder político.
A partir do século XIV, as cidades-Estado italianas desenvolveram formas repu-
blicanas de governo. Um magistrado-chefe era eleito pelos cidadãos e administrava
a cidade com poderes definidos por uma constituição. O

Museo del Opera del Duomo, Florença


poder começou a ser repartido entre a aristocracia e os
ricos mercadores.

1.1 A cultura leiga


Enriquecida graças às atividades comerciais, a burgue-
sia necessitava de uma formação cultural mais sólida, que
a ajudasse a administrar a riqueza acumulada.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


O burguês passa a investir em cultura, algo que até en-
tão só a Igreja e os grandes soberanos faziam. Aos poucos,
os leigos começam a conquistar um papel importante na
produção e na circulação da cultura.
A busca por uma formação levou à redescoberta de
textos e autores da Antiguidade clássica, considerada uma
fonte de saber a respeito do ser humano.
Figura 4 • Dante e os três
reinos, de Domenico di
Michelino. O poeta Dante
Alighieri aparece no cen-
tro da imagem, mostrando
2 O conceito de Humanismo
uma cópia de sua obra, A
divina comédia. À esquerda O Humanismo foi um movimento artístico e intelectual que surgiu na Itália no
de Dante, uma procissão
de pecadores se encami- final da Idade Média (século XIV) e alcançou plena maturidade no Renascimento.
nha para os círculos que fa-
zem parte do Inferno. Atrás
Ele buscava reviver os modelos artísticos da Antiguidade clássica, conside-
dele vemos a montanha rados exemplos de afirmação da independência do espírito humano. O foco
do Purgatório, com Adão
e Eva no topo. No alto da dos humanistas, portanto, era o ser humano, o que os afastava do teocentrismo
figura está o Paraíso. Do la- medieval. Resgatava-se, assim, a visão antropocêntrica característica da cul-
do esquerdo do poeta está
Florença, sua cidade natal. tura greco-latina.

Isto é essencial!

Antropocentrismo é a postura ou doutrina que considera o ser humano o centro ou a


medida de todas as coisas.

3 O projeto literário do Humanismo


O Humanismo é um momento de transição entre o mundo medieval e o mundo
moderno. Assim, o projeto literário humanista não tem características completa-
mente definidas: o velho e o novo convivem, provocando uma tensão que se evi-
dencia na produção artística e cultural.
Em linhas gerais, essa produção será marcada pelo abandono da subordinação
absoluta à Igreja católica e pelo resgate dos valores clássicos. Como consequên-

32
cia do estudo das obras greco-latinas, ganha força um olhar mais racional, que

Galleria Sabauda, TuriM.


Foto: The Bridgeman / Keystone
procura na ciência uma explicação para fenômenos até então atribuídos a Deus.
Essa nova visão, que afirma a potencialidade humana e investe na capacidade do
indivíduo de controlar o próprio destino, aparecerá nas obras literárias e artísticas
do período, preparando a sociedade europeia para a grande revolução estética que
virá com o Renascimento.
A obra de Dante Alighieri (1265-1321) e a de Francesco Petrarca (1304-1374),
poetas italianos, constituíram a base para o desenvolvimento da literatura no pe-
ríodo humanista e serviram de inspiração para artistas de outros países europeus.
Figura 5 • Francesco Pe­
trar­ca, poeta humanista.
3.1 O Humanismo e o público
O público das trovas e canções produzidas durante o Humanismo é essencial-
mente o mesmo das cantigas dos trovadores: os nobres.
Aos poucos, porém, o perfil desse público começa a mudar. Com o investimen-
to da burguesia na aquisição de cultura e com a maior facilidade de produção e
circulação do livro, um número maior de pessoas passa a ter acesso à produção
literária, antes restrita ao ambiente das cortes. Essa mudança, no entanto, é lenta e
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

só será consolidada durante o Renascimento.

3.2 A linguagem do Humanismo


A grande novidade da literatura humanista é a adoção do soneto como forma Professor: Reveja com
os alunos as informa-
poética fixa. Essa forma poética conquistará o gosto da elite, por acomodar, em ções sobre a origem e a
uma estrutura fixa, o novo olhar indagador, analítico, que procura explicar racio- estrutura do soneto.
nalmente os sentimentos humanos.
Uma consequência dessa intenção humanista ficará evidente na seleção de ima-
gens trabalhadas em poemas da época. Partes do corpo humano – geralmente
olhos e coração – são mencionadas nos poemas para ilustrar os efeitos do amor,
como na cantiga a seguir e no “Soneto X”, de Dante Alighieri, na página 37.

Cantiga sua partindo-se


Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,


Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
Tão fora d’esperar bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

CASTELO BRANCO, João Ruiz de. Em: SPINA, Segismundo. Era medieval. 8. ed.
São Paulo: Difel, 1985. p. 136. (Coleção Presença da Literatura Portuguesa.)

33
Nesse poema, os olhos são utilizados para demonstrar a tristeza do eu lírico diante
Glossário da partida da amada. Olhos, aqui, seriam uma metonímia do próprio eu lírico.
Metonímia. Figura
de linguagem que
consiste em usar
uma p alav r a em
lugar de outra. É
4 O Humanismo em Portugal
e m p re g a d a , p o r
exemplo, quando Quando o Humanismo chega a Portugal, no início do reinado da dinastia de
a parte é utilizada Avis (1385), a produção poética passa por uma crise. Entre 1350 e 1450 não se
para representar o tem notícia da circulação de textos poéticos no país.
todo. Nas cantigas
do Humanismo, os Nesse período, Portugal vive o apogeu da crônica historiográfica e da prosa
poetas recorrem às doutrinária, tipo de manual escrito por reis e nobres que apresentava normas e
metonímias para modelos de comportamento para os fidalgos da corte.
melhor ilustrar os
efeitos do amor no O ressurgimento da poesia, então separada da música, ocorre durante o reinado
eu lírico. de D. Afonso V, no século XV, impulsionado pela renovação cultural promovida
na corte portuguesa.
Destaca-se ainda nessa produção o teatro de Gil Vicente, que faz um retrato
vivo da sociedade portuguesa da época.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


4.1 A crônica de Fernão Lopes
A nomeação de Fernão Lopes como cronista-mor do reino, em 1434, é con-
siderada o marco inicial do Humanismo português. Sua função era registrar, em
crônicas, a história dos reis que governaram Portugal. Ele permaneceu no cargo até
1454 e escreveu três crônicas:
■ Crônica de El-Rei D. Pedro I: compilação e crítica dos principais acontecimen-

tos do reinado de D. Pedro I. Nesse volume, encontra-se o relato do episódio da


morte de Inês de Castro, amante do rei, assassinada a mando de D. Afonso IV,
pai de D. Pedro.
■ Crônica de El-Rei D. Fernando: reconstituição do período que se inicia com o

casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles e encerra-se com a Revolução


de Avis.
■ Crônica de El-Rei D. João: dividida em duas partes; a primeira começa com a

morte de D. Fernando, em 1383, e termina com a revolução que leva D. João I


ao trono português; na segunda parte é descrito o reinado de D. João até 1411.
Fernão Lopes distinguia-se dos demais cronistas pela importância que dava ao
povo, tratado por ele como coadjuvante da história dos reis. Essa opção do cronis-
ta exemplifica seu espírito humanista.

4.2 A poesia palaciana


A poesia palaciana consistia em composições coletivas, produzidas para se-
rem apresentadas nos serões do Paço Real, diante da corte. Durante o reinado
de D. Afonso V, conhecido como “O Humanista”, esses serões eram frequentes,
com a realização de concursos poéticos, audição de música, recitação de poesia.
Ocorriam também algumas apresentações de caráter mais teatral – espetáculos
de alegorias ou paródias.
Os poemas palacianos apresentaram muitas inovações em relação ao Trova-
dorismo, principalmente no tratamento do tema do amor, agora apresentado de
modo menos idealizado. Esses poemas foram compilados pelo poeta Garcia de
Resende em um único volume, o Cancioneiro geral, em 1516.

34
5 O teatro de Gil Vicente

Banco de Imagens Moderna


Na Idade Média, as peças de teatro eram
todas de caráter religioso e costumavam ser
apresentadas no pátio de igrejas e mosteiros.
Quando o Paço Real adquire maior importân-
cia, torna-se centro da movimentação cultural
e é lá que as peças são encenadas. A atividade
teatral se intensifica e passa a abordar temas
mais variados.
Em Portugal, o grande nome do teatro no
Humanismo é Gil Vicente. Em 71 anos de
vida, estima-se que tenha criado cerca de 44
peças (17 em português, 11 em castelhano e
16 bilíngues).
Escrita em 1502, sua primeira peça foi o
Auto da visitação, em homenagem à rainha D.
Maria pelo nascimento de seu filho, o futuro
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

rei D. João III. Como não se tem notícia de


autores teatrais anteriores a Gil Vicente, ele é
considerado o “pai do teatro português”.

5.1 Teatro, crítica e humor


As peças de Gil Vicente têm caráter mora-
lizante, ou seja, procuram tematizar os com-
portamentos condenáveis e enaltecer as virtudes. A religião católica é tomada como Figura 6 • Gil Vicente na
corte de D. Manuel I, em
referência para a identificação das virtudes e dos erros humanos. Mas, embora ilustração de Roque Gane­
critique o comportamento mundano de membros da Igreja, a formação medieval ro. In: História da literatura
portuguesa ilustrada. Lis­
faz com que as críticas de Gil Vicente sejam sempre voltadas para os indivíduos, boa: Bertrand, 1928.
jamais para as instituições religiosas.
Sem fazer distinção entre os segmentos da sociedade, o teatro vicentino
coloca no centro da cena erros de ricos e pobres, nobres e plebeus. O autor de-
nuncia os exploradores do povo, como o fidalgo, o sapateiro e o agiota do Auto
da barca do inferno; ridiculariza os velhos que se interessam por mulheres mais
jovens, na farsa O velho da horta; enfim, traça um quadro animado da socieda-
de portuguesa do século XVI, procurando sempre, além de divertir, estimular
o comportamento virtuoso.
Um recurso muito explorado por Gil Vicente são as alegorias, ou seja, as re-
presentações, por meio de personagens ou objetos, de ideias abstratas, geralmente
relacionadas a vícios e virtudes humanas. As alegorias facilitam o reconhecimento,
por parte da plateia, do vício ou da virtude a que o texto quer referir. Assim, no
Auto da barca do inferno, o agiota traz consigo uma bolsa cheia de moedas que re-
presenta, alegoricamente, sua ganância.
As obras de Gil Vicente costumam ser divididas em três tipos:
■ Farsas: peças de caráter crítico, que utilizam como personagens tipos populares
e se desenvolvem em torno de problemas da sociedade. As mais populares são a
Farsa de Inês Pereira, história de uma jovem que vê no casamento sua chance de
ascensão social, e a farsa O velho da horta, que ridiculariza a paixão de um velho
casado por uma jovem virgem.

35
■ Autos pastoris (éclogas): gênero a que pertencem algumas das primeiras obras
do autor, entre as quais figuram peças de caráter religioso, como o Auto pastoril
português, e profano, como o Auto pastoril da serra da Estrela.
■ Autos de moralidade: gênero em que Gil Vicente se celebrizou; os mais co-

nhecidos são a Trilogia das Barcas (Auto da barca do inferno, Auto da barca do
purgatório e Auto da barca da glória) e o Auto da alma. Leia um trecho do Auto da
barca do inferno.

Vem um Frade com uma Moça pela mão


(...)
DIABO (...) Essa dama é ela vossa?

FRADE Por minha la tenho eu,


e sempre a tive de meu,
DIABO Fezestes bem, que é fermosa!
E não vos punham lá grosa
no vosso convento santo?

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


FRADE E eles fazem outro tanto!

DIABO Que cousa tão preciosa...


Entrai, padre reverendo!
FRADE Pera onde levais gente?

DIABO Pera aquele fogo ardente


que não temestes vivendo.
FRADE Juro a Deus que nom t’entendo!
1
Esta batina de nada E est’hábito no me val?1
me vale?
DIABO Gentil padre mundanal,
a Berzabu vos encomendo! (...)
FRADE Nom ficou isso n’avença.

DIABO Pois dada está já a sentença!

Glossário FRADE (...) Como? Por ser namorado


e folgar com ũa mulher
De meu. Coisa mi-
nha. se há um frade de perder,
Fermosa. For­m o­ com tanto salmo rezado?!...
sa. VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno.
Grosa. Censura. (Intr., sel. e notas: Francisco Achcar.) 3. ed. São Paulo: Sol, 1997. p. 43.
Outro tanto. O mes­
mo.
Pera. Para. Preocupado com a correção dos costumes, Gil Vicente adotava como lema uma
Mundanal. Munda­ famosa frase de Plauto, dramaturgo latino: “Rindo, corrigem-se os costumes”. Ele
n o, a p e g a d o a o escolhia como argumento para uma peça uma situação facilmente reconhecível pela
mundo material. plateia, como a do padre que possui uma amante e se impressiona ao saber que,
Berzabu. Belzebu, depois de morto, seu destino é a barca que vai para o inferno e não para o céu. Tal
o Diabo.
N’avença. No acor-
construção de personagem serve para ridicularizar um comportamento condenado
do. pelos valores da época. O riso desencadeado pelas cenas revelava que o público
Folgar. Ter prazer. identificava e censurava uma conduta socialmente inadequada. Assim, ao mesmo
tempo que suas peças divertiam a nobreza, também contribuíam para educá-la.

36
Exercícios dos conceitos
Pouco se sabe sobre a vida do poeta italiano

Capela de San Brizio, Duomo, Orviet


Foto: The Bridgeman / Keystone
Dante Alighieri (1265-1321), considerado um dos
maiores nomes do Renascimento. A maior parte
das informações sobre ele vem de obras como
Vita nuova e A divina comédia, sua obra-prima.
Sua biografia tem como ponto central o amor
platônico que nutre por Beatriz, dama florentina
e personagem central de sua produção artística.
Escrita entre 1310 e 1321, enquanto Dante se en-
contrava exilado de Florença, A divina comédia é
um poema que resume a cultura cristã medieval.
Nela, o autor pintou a si mesmo como um pere-
grino que, levado pelo poeta Virgílio, conhece o
Inferno, o Purgatório e, por fim, chega ao Paraíso.
A figura de Beatriz, sua eterna amada, simboliza, Dante, por Luca Signorelli, parte do afresco da
no poema, a pureza e a sabedoria divina. capela de San Brizio, Duomo, Orviet.
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O texto a seguir, do poeta Dante Alighieri, refere-se às questões 1 e 2.

Soneto X
Amor e alma gentil estão ligados
como nos diz o sábio na canção.
Só pode um sem o outro ser pensado
Se à alma racional falta razão.
A natureza faz, no Apaixonado,
do Amor, senhor: e sua habitação
é o peito onde adormece repousado
por longo inverno ou por curto verão.
Depois a mulher bela se anuncia
tanto agradando aos olhos, que no peito
se mais agrada, tanto mais se quer;
e ela demora nesta moradia,
tanto, que acorda Amor posto em seu leito.
O mesmo faz um homem à mulher.
ALIGHIERI, Dante. Lírica – Dante. Trad. Jorge
Wanderley. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 271.

1 O “Soneto X” trata do amor. De que maneira esse tema é desenvolvido?


Segundo o soneto, o amor se estabelece no coração de um apaixonado como seu

senhor. Fica ali adormecido até ser despertado quando o apaixonado vê uma bela

mulher e dela se enamora. O mesmo processo amoroso acontece, segundo o

último verso, com o amor que mora no coração de uma mulher após a visão de

um belo homem.

37
2 Dante Alighieri escreveu esse poema numa época que privilegiou a razão como
forma de olhar para a realidade.
a) Transcreva os versos em que podemos identificar uma visão mais racional de
amor.
“Amor e alma gentil estão ligados / (...) Só pode um sem o outro ser pensado /

Se à alma racional falta razão.”

b) Explique por que essa visão de amor não é a manifestação de um sentimento


arrebatado.
O soneto procura analisar, de forma racional, como o processo amoroso ocorre.

Para o eu lírico, essa análise é essencial, já que, como afirma a primeira estrofe,

se faltar razão à alma racional, o amor e a alma gentil não mais estarão ligados.

Não se percebe nenhum arrebatamento, nenhum descontrole na descrição do

amor que faz o eu lírico.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


O texto a seguir, extraído do Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, refere-se às
questões de 3 a 5.

Chega o Parvo ao batel do Anjo e diz:


PARVO Hou da barca!
ANJO Samicas alguém.
PARVO Quereis-me passar além?
ANJO Quem és tu?
PARVO Não sou ninguém.
ANJO Tu passarás, se quiseres;
porque em todos teus fazeres
per malícia não erraste.
1
1
Sua simplicidade tua simpreza t’abaste
seja suficiente. pera gozar os prazeres.
Espera entanto per i:
veremos se vem alguém
merecedor de tal bem
que deva entrar aqui.
VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno.
São Paulo: Ática, 1998. p. 31-32.
(Série Bom Livro.)
Glossário
Samicas. Talvez,
quem sabe (for-
ma arcaica).
Per malícia. Com
malícia, com ma-
landragem.
Per i. Por aí (for-
ma arcaica).

38
3 No trecho transcrito são apresentadas duas personagens: o Anjo e o Parvo.
Considerando que os autos vicentinos caracterizam-se por sua função morali-
zante por meio de ações e características de personagens, identifique o papel
que o Anjo e o Parvo representam.
O Anjo representa o Bem, o caminho espiritual correto, que garante o reino

dos céus, distante da corrupção ou das tentações mundanas. O Parvo representa

os puros de coração, que não cometem pecados por maldade, mas por

ingenuidade.

4 O Anjo é o encarregado de selecionar as almas que irão para o reino dos céus
em sua barca.
a) Que motivos o levam a permitir a entrada do Parvo em sua embarcação?
O Anjo permite que o Parvo embarque porque os erros que ele porventura

tenha cometido em vida não foram intencionais ou determinados pela má-fé.


Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Segundo o Anjo, a simplicidade do Parvo é o que lhe garante a possibilidade

de “gozar os prazeres”.

b) Transcreva a fala do Parvo que o caracteriza como alguém sem vaidade ou


orgulho. Justifique sua resposta.
“Não sou ninguém.” Com essa fala, o Parvo demonstra sua simplicidade, sua

ausência de vaidade e orgulho. Ao contrário de outras personagens que chegam

à barca do Anjo, o Parvo não carrega consigo qualquer símbolo que represente

“pecados” cometidos em vida. Ele vem sem nada, puro e ingênuo.

5 De que maneira a fala do Parvo e os motivos do Anjo para permitir seu ingresso
na barca sugerem o objetivo moralizante do texto?
A fala do Parvo e os motivos do Anjo para permitir seu embarque revelam que a

pureza, a ingenuidade e a ausência de orgulho ou vaidade são elementos que

garantem a salvação dos indivíduos. Por meio dessas personagens, Gil Vicente

critica alguns comportamentos humanos. Na visão do autor, para se obter a

salvação, é preciso ser puro de coração e ter simplicidade.

39
Retomada dos conceitos Professor: Consulte o Banco de Questões e incentive
os alunos a usar o Simulador de Testes.

Jacques Prévert (1900-1977), considera-

Denise Bellon / AKG / LatinStock


do um grande poeta popular da literatura
francesa contemporânea, não se definia
como um homem de letras. Apesar disso,
seus textos, voltados para as situações tri-
viais do cotidiano e para o indivíduo co-
mum, apareceram regularmente em revis-
tas desde 1929. Durante a juventude, em
Paris, ligou-se aos artistas de vanguarda e
integrou um grupo surrealista que conta-
va com muitos nomes importantes da cena
estética do momento.

Jacques Prévert.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


O texto a seguir refere-se às questões de 1 a 3.

O terno e perigoso rosto do amor


O terno e perigoso
rosto do amor
me apareceu numa noite
depois de um dia muito comprido
Talvez fosse um arqueiro
com seu arco
ou ainda um músico
com sua harpa
Não me lembro mais
Nada mais sei
Tudo o que sei
é que ele me feriu
talvez com uma flecha
talvez com uma canção
Tudo o que sei
é que me feriu
feriu aqui no coração
e para sempre
Ardente muito ardente
ferida do amor.
PRÉVERT, Jacques. Poemas.
(Intr., sel. e trad.: Silviano Santiago.)
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

40
1 O poema anterior, como o do poeta italiano Dante (apresentado na primeira
seção de exercícios), também aborda o amor.
a) Como esse sentimento é caracterizado no texto? Justifique.
O amor é caracterizado de modo contraditório: tem o rosto terno e perigoso

e feriu o eu lírico no coração para sempre. Ao dizer que o amor pode ser

personificado como um arqueiro ou um músico, o eu lírico destaca as duas

características essenciais desse sentimento: a capacidade de ferir (própria

do arqueiro) e de encantar (típica do músico).

b) Como o eu lírico do poema se sente depois que foi tomado pelo amor?
Depois de ferido pelo amor, o eu lírico parece perder o controle racional do que

ocorre ao seu redor (“Nada mais sei”). Reconhece, somente, que a ferida aberta
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

em seu coração pelo amor é ardente e eterna.

2 A visão de amor expressa nesse poema é semelhante à do poema de Dante? Por


quê?
Não. No soneto de Dante, a visão que o eu lírico tem do amor é mais analítica,

racional. No poema de Jacques Prévert, o tratamento dado ao amor é mais

emocional, destacando os efeitos do sentimento no indivíduo.

3 Os dois poemas foram produzidos em diferentes épocas: o de Dante Alighieri é


do século XIV; o de Jacques Prévert, do século XX. Que elementos, na forma e no
tratamento dado ao tema, indicam que pertencem a escolas literárias diversas?
Justifique.
Além das diferentes visões de amor apresentadas (uma mais racional e a outra

mais emocional), o que mais chama a atenção é a linguagem utilizada em cada

um: no poema de Dante, os termos mais rebuscados, a inversão das frases,

a forma fixa do soneto (que reforça a visão racional de amor apresentada)

indicam não se tratar de um texto contemporâneo; já no poema de Prévert, temos

uma linguagem mais simples, com frases na ordem direta, versos brancos e forma

livre, o que nos leva a identificar uma estruturação linguística muito próxima da

que utilizamos hoje.

41
4 (Unicamp-SP) Leia os diálogos abaixo, da peça O velho da horta, de Gil Vicente:
Glossário
Corocha. Cober­
MOCINHA Estás doente, ou que haveis?
tura para a cabe­
ça própria das al­ VELHO Ai! não sei, desconsolado,
coviteiras. Que nasci desventurado.
Capela. Grinalda.
MOCINHA Não choreis;
mais mal fadada vai aquela.

VELHO Quem?

MOCINHA Branca Gil.

VELHO Como?

MOCINHA Com cent’açoutes no lombo,


e uma corocha por capela.
E ter mão;
1
Caminha tão cora- leva tão bom coração1,

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


josa. como se fosse em folia.
2
Ó que grandes açoi-
tes que lhe dão!
Ó que grandes que lhos dão!2
VICENTE, Gil. O velho da horta. In: BERARDINELLI, Cleonice (Org.).
Antologia do teatro de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira;
Brasília: INL, 1984. p. 274.

a) A qual desventura refere-se o velho nesse diálogo com a Mocinha?


O velho refere-se ao fato de ter sido malsucedido ao tentar conquistar

uma moça. Nessa tentativa, perdeu parte de seu dinheiro. Além disso, foi

ridicularizado e desprezado pela moça, o que revela, nesse trecho, seu

desconsolo amoroso.

b) A que se deve o castigo imposto a Branca Gil?


Branca Gil é a alcoviteira que foi contratada pelo Velho para servir de

intermediária em sua tentativa de sedução. Como ela guardava para si o dinheiro

que ele lhe entregava para comprar presentes para a Moça, é punida pela prática

de alcovitagem e também por ter roubado o dinheiro do sedutor.

c) Diante do castigo, Branca Gil adota uma atitude paradoxal. Por quê?
A atitude da alcoviteira é considerada paradoxal porque ela revela altivez e

destemor diante da possibilidade de ser presa. Poderíamos afirmar que esse

comportamento se deve à certeza de que, como de outras vezes, o seu castigo

será limitado a açoites, e ela depois voltará a ser livre para continuar exercendo

seu ofício. A cena sugere a corrupção moral que a peça pretende estender a toda

a sociedade portuguesa.

42
5 (UFPI) Sobre Gil Vicente e sua obra, assinale a alternativa correta. A marca do teatro
vi­c entino é a crítica
a) Respeita apenas o poder da Igreja. à sociedade de sua
b) Centra suas críticas nos membros das classes baixas. época com persona-
gens-tipos, identifi-
c) Conserva a lei das três unidades básicas do teatro clássico. cadas, como destaca
d) Identifica suas personagens pela ocupação ou pelo tipo social de cada uma a afirmativa correta,
pela ocupação que
delas. exercem ou pelo pa-
e) Evita fazer um confronto entre a Idade Média e o Renascimento Medievalista pel social que desem-
penham.
(Teocentrismo versus Antropocentrismo).
6 (UEL-PR) O Humanismo renascentista que se destacou pelas suas inovações nas O Hu­manismo se ca-
racterizou por uma
expressões artísticas e literárias representou: visão antropocêntrica
de valorização do ser
a) o movimento cultural que valorizou o homem ativo e criativo. humano.
b) o desenvolvimento técnico voltado para o mecenato na cultura renascentista.
c) a defesa das virtudes do homem contra os vícios intrínsecos à mulher.
d) o homem contemplativo, centro do universo, sujeito às leis divinas.
e) o movimento social com vistas à conquista de direitos.
7 (UFPI)
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

FIDALGO Esta barca onde vai ora,


que assi stá apercebida?
DIABO Vai pera a ilha perdida.
e há-de partir logo ess’ora.
FIDALGO Para lá vai a senhora?
DIABO Senhor, a vosso serviço.
FIDALGO Parece-me isso cortiço...
DIABO Porque a vedes lá de fora.
FIDALGO Porém, a que terra passais?
DIABO Para o inferno, senhor.
FIDALGO Terra é bem sem-sabor.
DIABO Quê? E também cá zombais?
FIDALGO E passageiros achais para tal habitação?
DIABO Vejo-vos eu em feição
para ir ao nosso cais...
VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno. In: Obras-primas do teatro vicentino.
(Edição organizada pelo prof. Segismundo Spina.) São Paulo: Difusão
Europeia do Livro/Edusp, 1970. p. 108-116. (Fragmento.)

Com base nesse fragmento, é correto afirmar que: O Dia­bo não gosta da
zom­baria do Fidalgo
a) o Diabo não gostou quando o Fidalgo zombou dele, chamando-lhe de senhora. quando este o chama
de “senhora”.
b) para que o Fidalgo mudasse de atitude, o Diabo inicialmente foi gentil com
seu passageiro.
c) de acordo com o Diabo, vendo o barco de fora, o passageiro sempre se motiva
para a viagem.
d) o Diabo conclui que o Fidalgo deve pegar a barca, porque não tem mais tem-
po de esperar um outro passageiro.
e) a ilha perdida de que fala o Diabo é o nome de uma famosa ilha europeia,
descrita ao longo do Auto da barca do inferno.

43
8 (Fuvest-SP)

E chegando à barca da glória, diz ao Anjo:


BRÍSIDA Barqueiro, mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz!
ANJO Eu não sei quem te cá traz...
BRÍSIDA Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deus, minha rosa?
Eu sou Brísida, a preciosa,
que dava as môças aos molhos.
A que criava as meninas
para os cônegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olhos de perlinhas finas!

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


(...)
VICENTE, Gil. Auto
da barca do inferno.

a) No excerto, a maneira de tratar o Anjo, empregada por Brísida Vaz, relaciona-se à


atividade que ela exercera em vida? Explique resumidamente.
Brísida Vaz é uma alcoviteira. Por isso, tenta seduzir o Anjo com seu discurso,

marcado pela lisonja: “Barqueiro, mano...”; “meu amor, minhas boninas, / olhos

de perlinhas finas!”.

b) No excerto, o tratamento que Brísida Vaz dispensa ao Anjo é adequado à ob-


tenção do que ela deseja – isto é, levar o Anjo a permitir que ela embarque?
Por quê?
Não. O discurso usado por ela não seduz o Anjo, que, na visão de Gil Vicente,

é um ser incorruptível, que não sucumbirá aos elogios de Brísida Vaz.

O Fra­d e, ao contrá- 9 (PUC-SP) Gil Vicente escreveu o Auto da barca do inferno em 1517, no momento em
rio do Fi­­­dalgo, pode que eclodia na Alemanha a Reforma protestante, com a crítica veemente de Lutero
ser con­­siderado um
perdulário. ao mau clero dominante na Igreja. Nesta obra, há a figura do frade, severamente
censurado como um sacerdote negligente. Indique a alternativa cujo conteúdo
não se presta a caracterizar, na referida peça, os erros cometidos pelo religioso.
a) Não cumprir os votos de celibato, mantendo a concubina Florença.
b) Entregar-se a práticas mundanas, como a dança.
c) Praticar esgrima e usar armamentos de guerra, proibidos aos clérigos.
d) Transformar a religião em manifestação formal, ao automatizar os ritos litúrgicos.
e) Praticar a avareza como cúmplice do fidalgo, e a exploração da prostituição
em parceria com a alcoviteira.

44
10 (UEL-PR) A questão refere-se ao texto a seguir.

Não queiras ser tão senhora:


casa, filha, e aproveita;
não percas a ocasião.
Queres casar por prazer
No tempo de agora, Inês?
(...)
sempre eu ouvi dizer:
“Ou seja sapo ou sapinho,
ou marido ou maridinho,
tenha o que houver posses
Este é o certo caminho”.
VICENTE, Gil. Farsa de Inês Pereira. São Paulo: Senac, 1996. p. 82.

Com base nessas palavras e nos conhecimentos sobre o Humanismo, é correto A linguagem utili-
zada nos quatro úl-
afirmar: timos versos “adota
alguns padrões do
a) O Humanismo procura retratar a realidade de forma ingênua, revelando uma
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

discurso popular”,
visão idealizada do mundo expressa pelo verso “casa, filha, e aproveita”. como se afirma na al-
ternativa assinalada.
b) O fragmento citado trata o casamento como resultado de um envolvimento As demais alternati-
amoroso pleno. vas estão incorretas,
porque o trecho re-
c) A leitura do fragmento confirma que o Humanismo, embora dirigido a um pú- vela que a união con-
blico palaciano, adota alguns padrões do discurso popular, como se observa jugal é determinada
nos quatro últimos versos. pelo interesse e não
por uma “motivação
d) O verso “Este é o certo caminho” indica o predomínio de uma visão idílica e sentimental”. Além
idealizada em grande parte do discurso humanista. disso, não há, no ex-
certo, a retratação de
e) O olhar humanista, no fragmento citado, imprime à união conjugal uma moti- uma “realidade ingê-
vação sentimental. Tal postura suplanta o lirismo amoroso presente em algu- nua” ou uma visão
mas cantigas trovadorescas. idealizada do mundo
ou das relações amo-
rosas.
Instrução: para responder à questão de número 11, leia os versos seguintes, da fa-
mosa Farsa de Inês Pereira, escrita por Gil Vicente.

Andar! Pero Marques seja!


Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Meu desejo eu retempero:
asno que me leve quero,
não cavalo valentão:
antes lebre que leão,
antes lavrador que Nero.

11 (Unifesp) Sobre a Farsa de Inês Pereira, é correto afirmar que é um texto de natu-
reza
a) satírica, pertencente ao Humanismo português, em que se ridiculariza a as-
censão social de Inês Pereira por meio de um casamento de conveniências.
b) didático-moralizante, do Barroco português, no qual as contradições huma-
nas entre a vida terrena e a espiritual são apresentadas a partir dos casamen-
tos complicados de Inês Pereira.

45
Nessa farsa, fica clara
c) religiosa, pertencente ao Renascimento português, no qual se delineia o pa-
a intenção de criticar, pel moralizante, com vistas à transformação do homem, a partir das situações
por meio do humor, embaraçosas vividas por Inês Pereira.
a preocupação da
“sociedade mercantil d) reformadora, do Renascimento português, com forte apelo religioso, pois se
emergente, que prio- apresenta a religião como forma de orientar e salvar as pessoas pecadoras.
riza os valores essen-
cialmente materialis- e) cômica, pertencente ao Humanismo português, no qual Gil Vicente, de forma
tas”, que, nesse caso, sutil e irônica, critica a sociedade mercantil emergente, que prioriza os valores
é simbolizada pelo essencialmente materialistas.
desejo de um casa-
mento por interesse.
12 (UFRGS-RS) Entre 1511 e 1516, foram escritas na Europa três das mais funda-
mentais obras da Renascença, Elogio da loucura, de Erasmo de Roterdã, O prín-
cipe, de Nicolau Maquiavel, e Utopia, de Thomas Morus. Diferentes pelo tom e
pelas respostas que trazem, essas obras têm em comum uma constatação bas-
tante sombria da sociedade da época e a ambição de edificar um mundo mais
harmonioso.
Em relação aos ideais intelectuais humanistas e à conjuntura histórica da época,
considere as seguintes afirmações.
I. O pensamento humanista elaborou uma forte crítica à escolástica, embora

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


não tenha rompido com a ideia criacionista, colocando suas esperanças em
uma nova forma de educação.
II. O mundo dos humanistas foi um mundo animado por transformações: a di-
fusão da impressão mecânica, os progressos da navegação e a descoberta de
novas terras, a intensificação das trocas comerciais, a queda de Constantino-
pla e o exílio de letrados gregos na Europa, todos fatores que provocaram
uma reflexão a propósito da condição humana.
III. O humanismo fundamentou-se, em primeiro lugar, na restauração da cultura
antiga, através de manuscritos que se haviam perdido desde a Antiguidade,
os quais são considerados tesouros de uma cultura viva.
Todas as afirmações Quais estão corretas?
acerca do Humanismo
estão corretas. a) Apenas I. c) Apenas I e II. e) I, II e III.
b) Apenas III. d) Apenas II e III.

13 (PUC-SP)

Outras coisas que viu, mui numerosas,


Pedem tempo que o verso meu não dura,
Pois lá encontrou, guardadas e copiosas,
Mil coisas de que andamos à procura.
Só de loucura não viu muito ou pouco
Que ela não sai de nosso mundo louco.
Mostrou-se-lhe também o que era seu,
O tempo e as muitas obras que perdia,
(...)
Viu mais o que ninguém suplica ao céu,
Pois todos cremos tê-lo em demasia:
Digo o siso, montanha ali mais alta
Que as erguidas do mais que aqui nos falta.
ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso. São Paulo: Atelier, 2002. p. 261.

46
O trecho acima, de um livro de 1516, narra parte de uma viagem imaginária à No verso em que o eu
Lua. Lá, o personagem encontra o que não há na Terra e não encontra o que lírico refere-se à lou-
aqui há em excesso. Pode-se identificar o caráter humanista do texto na: cura “que não sai de
nosso mundo”, po-
a) certeza, de origem cristã, de que a reza (“suplica ao céu”) é a única forma de se demos perceber uma
espécie de apelo em
obter o que se busca. defesa da razão, uma
b) constatação da pouca razão (“siso”) e da grande loucura existente entre os das características
mais marcantes do
homens. Humanismo.
c) aceitação da limitada capacidade humana de fazer poesia (“o verso meu não
dura”).
d) percepção do desleixo e da indiferença humanos (“O tempo e as muitas obras
que perdia”).
e) ambição dos homens em sua busca de bens (“Mil coisas de que andamos à
procura”).
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Exercício de integração
Professor: Ao corrigir
Leia, no texto a seguir, uma análise do Auto da Lusitânia, de Gil Vicente, feita ou comentar a respos-
ta dos alunos a esta
pelo crítico literário Massaud Moisés. Nessa peça do teatro vicentino, duas alego- proposta, é importante
rias representam personagens que dialogam, Todo Mundo e Ninguém, e que são observar se eles perce-
beram que o ponto cen-
ouvidas por “assistentes” de Lúcifer (Berzebu e Dinato) a quem tudo o que foi dito tral no deslocamento da
será relatado. perspectiva teocêntrica
para a antropocêntrica
é a responsabilidade
O intuito do comediógrafo salta à vista: empregando o estilete da sátira, atribuída ao ser huma-
pretende atingir o âmago das fraquezas humanas e, por meio de sua de- no sobre seus atos. No
Auto da Lusitânia, por
núncia em forma direta ou metafórica, chamar a atenção dos espectadores meio da alegorização
para os seus vícios e debilidades. Daí a carga de moralidade (...), mas uma das personagens Todo
Mundo e Ninguém, o
moralidade despreconcebida, com os pés na terra, realista e objetiva, como, dramaturgo investe nos
de resto, era o teatro de Gil Vicente. Situado no limiar da Renascença, o jogos de palavras resul-
que equivale a colocar em crise certos valores medievais, e os oportunismos tantes dos diálogos en-
tre os dois para ressaltar
emergentes, seu endereço é o homem como espécie ou como animal gregário os comportamentos
vivendo em grupos sociais comprometidos por conveniências e dissimilações humanos típicos que
seriam condenáveis na
de toda ordem. sociedade da época.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. Na peça, “Todo Mundo”
São Paulo: Cultrix, 1993. p. 61. busca o respeito social,
a mentira, a lisonja etc.
(comportamentos que
Redija um parágrafo argumentativo explicando de que maneira o teatro vicen- representariam o que é
condenável e que carac-
tino, ao criticar a sociedade de seu tempo, ilustra a convivência entre o novo e o terizavam os contempo-
velho que define a literatura do Humanismo. râneos de Gil Vicente);
Para desenvolver seu parágrafo, você pode apoiar-se nas seguintes sugestões: “Ninguém” busca a
verdade, a justiça, a vir-
■ Caracterize brevemente a mudança da perspectiva teocêntrica para a perspecti- tude, a consciência (as
atitudes e os compor-
va antropocêntrica, iniciada no Humanismo. tamentos que sempre
■ Com base em alguma passagem do diálogo entre Todo Mundo e Ninguém, no parecem faltar aos seres
humanos). O autor mos-
Auto da Lusitânia, exemplifique como Gil Vicente, nessa obra, coloca “em crise tra como as pessoas de-
certos valores medievais” para ressaltar a necessidade dos indivíduos de alterar vem se responsabilizar
determinados comportamentos viciosos e inadequados. por seus atos.

47
Navegando no módulo

Projeto literário
do trovadorismo

Novelas de
Cantigas
cavalaria

Cantiga de amor
Cantiga de amigo
Cantiga de escárnio

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Cantiga de maldizer

Maria Luiza M. Abaurre • Marcela Pontara •


Subserviência total a
Criação de Deus (Teocentrismo),
Literatura oral
Redefinição estruturas representada
para entreter
do papel dos literárias literariamente pela
os homens e as

LITERATURA
cavaleiros equivalentes submissão do trovador
mulheres da
nas cortes às da relação à dama (poesia) ou do
nobreza
de vassalagem cavaleiro à donzela
(novelas de cavalaria)

Juliana Sylvestre Cesila

Projeto literário
do humanismo

Resgate de valores Olhar mais racional


clássicos para o mundo

48

Você também pode gostar