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1) Cap Livro Deleuze
1) Cap Livro Deleuze
RESUMO
ABSTRACT
The purpose of the present work is to update some notions stated in Wilhelm Reich’s
theory. Starting from a new reading of fundamental reichian concepts, we intend to show
limits and to promote theoretical and practical developments that may form new knowledge
nets. Our instruments include philosopher Gilles Deleuze’s work and also contributions from
authors such as Foucault and Guattari. With the criticism here carried out, we aim to
collaborate to an evaluation of the importance of Reich’s work in contemporary scene.
Outubro / 1997
*
Psicoterapeuta Corporal e Doutorando do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ. Este trabalho foi
apresentado em 02/06/98 na APCRJ.
“Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre
aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É
necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo
a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso
próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso
saber e nossa ignorância e que transforma um no
outro. É só deste modo que somos determinados a
escrever.”
Gilles Deleuze
Sumário
I - Introdução .....................................................................................................................p. 1
3. O Orgonoterapeuta ..........................................................................................p. 9
I - Introdução
Wilhelm Reich tem sua primeira fissura com Freud, formulando o conceito de
potência orgástica. O quantum de energia referido na noção de potência orgástica propicia
uma ponte para a teoria deleuzeana no que diz respeito ao sentido de força e intensidade
contido nessa idéia.
A concepção energética atravessa a relação corpo-mente. De acordo com Reich, a
psique-soma seria uma unidade funcional, quebrando, dessa forma, a cisão da ótica
tradicional, psicanalítica. Já Deleuze parece recuperar a configuração psicanalítica de muitas
almas em um só corpo e de uma alma em muitos corpos, não atrelando um espírito a um
único soma.
Certa limitação do ponto de vista reichiano igualmente pode ser observada no enfoque
sobre a sexualidade. Daqui decorre uma naturalização da genitalidade e uma patologização -
ou, ao menos, uma afirmação de deficiência ou dificuldade - de tudo o que é “não-genital”
como (im)possibilidade de se chegar ao orgasmo. Desse modo, Reich desconsidera a produção
de comportamentos singulares, de multiplicidades.
Em Deleuze, as singularidades pré-pessoais e pré-individuais contrapõem-se às idéias
de identidade e estrutura, uma vez que tais conceitos cristalizam a possibilidade de fluidez.
Para este autor, a noção mais apropriada à concepção de que tudo está em movimento é a idéia
de devir. Este, por sua vez, produz acontecimentos.
Acontecimentos são jatos de singularidades que contradizem às essências como
núcleos das estruturas. Os múltiplos acontecimentos se expressam constituindo a univocidade,
a integração com o ser unívoco. Na verdade pode-se fazer um paralelo entre esta relação e a
perspetiva reichiana da descarga orgástica como integração ao Cosmos. Segundo Reich, a
descarga orgástica é produto da pulsação natural do corpo, de sua auto-regulação.
Auto-regulação implica em equilíbrio, que é função da carga e descarga energética no
organismo. Assim, enquanto Reich busca harmonia, Deleuze elege o desejo como propiciador
de fluxos que tudo atravessam.
Quando o organismo está mal regulado, perde o contato psíquico e, inibindo-se,
desencadeia a angústia do orgasmo e o encouraçamento muscular. Reich passa a trabalhar no
limiar entre a psique e o soma. Deleuze também parte da superfície para compreender o
incorporal. O espaço, o território, a extensão são os focos de sua atenção.
2
1. Reich Psicanalista
Não que Reich não quisesse ser visto como psicanalista, ele o desejava e muito, porém
já em 1924 era produzida a primeira fissura entre ele e Freud com a formulação do conceito
de potência orgástica. O último estava lá a se preocupar com a qualidade, o simbólico,
enquanto que a quantidade já merecia uma atenção especial de Reich.
A potência orgástica1 como a capacidade de descarregar a energia acumulada de
forma plena e contínua marcava o sentido da intensidade, da força, do quantum de energia.
Gilles Deleuze igualmente valoriza a potência quando, citando Nietzsche, aponta a vontade de
potência como “elevar o que se quer à enésima potência, isto é, extrair sua forma superior...”2.
Aqui começa a trilha que, indo de um autor ao outro, permite investigar e revigorar o
pensamento de Reich. Esta é a proposta deste trabalho.
A energia era vista como libido e atravessava a unidade corpo-mente. Reich acreditava
que não só o funcionamento da psique, como a própria relação psique-soma era dialética. O
psíquico e o orgânico seriam antíteses complementares. Sem dúvida, a visão reichiana já
representava uma quebra do paradigma tradicional da cisão corpo-mente na psicanálise. No
entanto, quando recorremos a Deleuze, reportando-se a Klossowski, podemos compreender
que a relação psique-corpo não seria conseqüência de um movimento de contrários não-
absolutos, como queria Reich, mas de um corpo que possui muitas almas, como também, de
uma alma que está em muitos corpos, isto é:
“perversidade... pois... várias almas entram no mesmo
corpo e... uma mesma alma possui vários corpos;
perversidade do alto, pois... os próprios corpos se
misturam. Deus não pode garantir nenhuma
identidade! É a grande ‘pornografia’, a desforra dos
espíritos, ao mesmo tempo sobre Deus e sobre os
corpos... Klossowski insiste sobre o seguinte: que
Deus é a única garantia de identidade do Eu e de sua
base substancial, a identidade do corpo. Não
conservamos o eu sem ter que guardar também Deus.
A morte de Deus significa essencialmente... a
dissolução do eu: o túmulo de Deus é também o
túmulo do eu.”3
1
Reich, W. Psicopatologia e Sociologia da Vida Sexual, 1927/1977.*
* Nas obras citadas, a primeira data refere-se ao escrito ou à publicação originais, a segunda à edição referida.
2
Diferença e Repetição, 1968/1988, p. 31.
3
Deleuze, G. Lógica do Sentido, 1969/1994, pp. 301 e 302.
4
4
Op. Cit., 1968/1988.
5
Origens da Moral Sexual, 1932/1988; O Combate Sexual da Juventude, 1932/1986 e outras obras.
6
Escobar, C. H. de. Dossier Deleuze, 1991/1991.
7
Prefácio à 3a edição, pp. XVII e XVIII.
5
que, por sua vez, se reveste de uma identidade. Deleuze8 assinala o quanto o conceito de
identidade aprisiona, cristaliza o que ele compreende como fluxo. Já a noção de devir produz
movimento, fluidez e desconstrói a ótica estruturalista radicada na essência. Na verdade, há
entes em fluxos. Tudo muda, gira, pulsa, se modifica a cada aion - repartição infinita do
tempo, vazio do tempo. Como os homens não têm essência, são muitos em um, não são seres
particulares, são plural. Os contornos estruturais tornam-se nuvens de poeira, não mais
delineamentos e identidades, só devires. Dessa maneira, objetiva-se realçar os simulacros, os
reflexos, as diferenças. É o eterno retorno do outro e isto arrebenta com a repetição cíclica do
idêntico. O que se repete não é a cópia, mas o simulacro; o que se repete não é o passado, mas
o novo, o devir. O sujeito se dissolve, não há identidade. Deleuze9, assim como Nietzsche, não
acredita na unidade do eu, pensa que tudo é máscara. O devir furta-se ao presente, produz
singularidades:
“O que não é nem individual nem pessoal, ao
contrário, são as emissões de singularidades enquanto
se fazem sobre uma superfície inconsciente e gozam
de um princípio móvel imanente de auto-unificação
por distribuição nômade que se distingue
radicalmente das distribuições fixas e sedentárias
como condições das sínteses de consciência. As
singularidades são os verdadeiros acontecimentos
transcendentais. (...) Longe de serem individuais ou
pessoais, as singularidades presidem à gênese dos
indivíduos e das pessoas.”10
Por acontecimento, Deleuze entende não uma história ou um drama, mas por ser
“sempre inatributável ou imprevisível”11. Os acontecimentos são jatos de singularidades que
se opõem à possibilidade da existência de essências. O acontecimento “não é o acidente...,
pois é o problemático”12, ele diz respeito a problemas. O acontecimento não carrega uma
marca. Não é desse ou daquele jeito. Ele é singular. É passado e futuro ao mesmo tempo. “É
por isso que não há acontecimentos privados e outros coletivos, como não há individual e
universal, particularidades e generalidades. Tudo é singular e por isso coletivo e singular e ao
mesmo tempo, particular e geral, nem individual nem universal.”13
8
Op. Cit., 1968/1988.
9
Nietzsche, 1965/1994.
10
Deleuze, G. Op. Cit., 1969/1994, p. 105.
11
Escobar, C. H. de. Op. Cit., 1991/1991, p. 59.
12
Deleuze, G. Op. Cit., 1969/1994, pp. 56 e 57.
13
Id., p. 155.
6
14
Reich, W. Op. Cit., 1934/1988.
15
Análise do Caráter, 1933/s/d, p. 59.
7
16
Op. Cit., 1969/1994.
17
Reich, W. Op. Cit., 1933/s/d, p. 390.
18
Op. Cit., 1991/1991.
19
Op. Cit., 1969/1994, p. 11.
20
Deleuze, G. Espinoza e os Signos, 1970/s/d.
21
Id., p. 27.
8
22
Id., p. 26.
23
Escobar, C. H. de . Op. Cit., 1991/1991.
9
3. O Orgonoterapeuta
24
Éter, Deus e o Diabo.
25
Reich, W. Cosmic Superimposition, 1951/1979.
10
26
Deleuze, G. Op.Cit., 1968/1988.
27
Ver esta noção em Foucault, M. História da Loucura, 1961/1995.
11
28
Reich, W. Op. Cit., 1934/1988.
29
Foucault, M. Vigiar e Punir, 1975/1996.
30
Op. Cit., 1965/1994.
31
Em inglês Listen Little Man!, que foi traduzido como Escuta Zé Ningúem! distorcendo, desta forma, o sentido
original empregado por Reich. No Brasil, em Portugal, por exemplo, Zé Ninguém significa “Ele não é nada”,
enquanto que homem pequeno, tanto para Nietzsche quanto para Reich, pode ser aquele que, abastado ou não,
“poderoso” ou não, é mesquinho, invejoso, enfim não um criador, mas um torturador da vida.
12
Diferença; e se o caráter não fosse mais do que um simulacro; e se a vida não fosse mais do
que um lançamento de dados, nada mais do que o acaso?...
Então existiria o singularizar-se, que é um fenômeno múltiplo, coletivo; a capacidade
seria substituída pela potência, o cronos pelo aion; o bom senso e o senso comum pelo non-
sense e as singularidades nômades; a superfície seria o espaço de problematização e não as
“alturas” ou as “cavernas”; o presente seria roubado pela rapidez da metamorfose e tudo seria
virtual; existiria uma fissura a tudo espreitar, e pregas e dobras que teimariam em insistir;
então, partindo do corporal, da pele, chegaríamos ao profundo, aos efeitos incorporais. Assim,
contra a dominação e o controle sociais33, haveria a aliança com a verdade não-absoluta e o
desejo, e não com a auto-regulação, a harmonia e o equilíbrio; presentificaria-se o insight de
que há acontecimentos e não a busca da essência, do núcleo, do cerne; haveria a expressão de
devires, simulacros, fantasmas, entes e não a existência da identidade, do Mesmo; e lá onde se
pensava haver o particular, haveria, na realidade, o singular que é, ao mesmo tempo, plural.
Finalmente - em off -, se indagaria: É isto um trabalho acadêmico? E se os sujeitos em
dissolução - inclusive o autor desse texto - só estivessem pegando carona nos fluxos
desejantes e fossem eles cavalos de batalha a expressar a intensidade da força que os
precedeu? Então seria a psicose, a psique, o espírito... então não seria o “eu”, não seria o “eu
superior” (Deus-antropomorfo) mas um “ser superior” de tudo que há e, da mesma forma, um
fluxo de desejos e os entes a se “entre-exprimirem”34 em uma univocidade.
IV - Referências Bibliográficas
32
Guattari, F. Revolução Molecular, 1977/1987.
33
Câmara, M. V. Contribuições para a atualização da noção de corpo na teoria de Wilhelm Reich pela ótica
foucaultiana, 1997/1997.
34
Expressão utilizada por Deleuze, G. em Lógica do Sentido, 1969/1994, p. 183.
13