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B. F.

Skinner
CIÊNCIAS DO HOMEM

Colecção plural,
porque atenta a todos os saberes do homem
na sua convergência e nas suas tensões;
crítica,
porque ao serviço
da genuína ilustração intelectual;
actual,
ao ritmo da investigação em curso,
mas sem renegar a riqueza
das obras relevantes do passado.
PARA ALEM DA
A

E DA
DIGNIDA
D
E
Título original:
B e y o n d F ree dom a n d Dignity

© B. F. Skinner Foundation

Tradução: Joaquim Lourenço Duarte Peixoto

Capa de Arcângela Marques

Depósito Legal n.° 151679/00

ISBN 972-44-1051 - X

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B. F. Skinner

JT

PARA ALEM DA
i

DA
A

edições 70
U M A T E C N O L O G IA D O C O M PO R TA M EN TO

Ao tentarmos resolver os assustadores problemas que se nos deparam


no mundo actual, naturalmente recorremos àquilo que melhor fazemos.
A nossa actuação tem por base a força, e a nossa força é a ciência e
a tecnologia. Para contermos a explosão demográfica procuramos melhores
métodos de controlo da natalidade. Ameaçados por um holocausto nuclear,
criamos forças de dissuasão mais poderosas e sistemas antimísseis. Tentamos
proteger o mundo da fome com novos alimentos e melhores métodos
de os produzir. Depositamos esperança num futuro em que o aperfei­
çoamento dos serviços sanitários e da medicina controlem as doenças;
melhores condições de habitação e transporte resolvam os problemas dos
guetos e novos meios de redução e eliminação de detritos detenham a
poluição ambiental. Podemos apontar realizações notáveis em todos esses
campos e não constitui surpresa que procuremos expandi-las. Todavia,
a situação evolui inflexivelmente para pior e é desalentador verificarmos
que se avolumam os erros da própria tecnologia. As medidas de saúde
pública e a medicina tomaram os problemas das populações mais evidentes;
a guerra adquiriu uma nova feição de horror com a invenção das armas
nucleares e a busca de uma felicidade opulenta é, em grande parte,
responsável pela poluição. Darlington1 afirmou já que «cada novo recurso
aproveitado pelo homem para aumentar o seu poder sobre a natureza
tem servido para diminuir as perspectivas dos seus sucessores. Todo o
seu progresso foi alcançado à custa de prejuízos causados ao ambiente,
prejuízos que não pode reparar nem pôde prever».

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PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

Quer tivesse podido prever tais danos, quer não, o homem deve repará-
-los ou tudo estará perdido. No entanto, para que tal reparação seja possível,
é necessário que reconheça a natureza da dificuldade. Apenas pela aplicação
das ciências físicas e biológicas não resolveremos os nossos problemas, uma
vez que as soluções residem noutro campo. Melhores contraceptivos só
controlarão o crescimento populacional se forem usados. Novos armamentos
poderão equilibrar-se com novos sistemas de defesa e vice-versa, mas só
poderemos evitar o holocausto nuclear se as condições de antagonismo bélico
entre as nações forem alteradas. Novos métodos de agricultura e medicina
não terão qualquer valia se não forem postos em prática, do mesmo modo
que o problema habitacional não se resume apenas à construção de edifícios
e cidades, pois envolve igualmente o modo de vida das pessoas. Só se resolverá
o problema da aglomeração populacional excessiva convencendo-se as pessoas
a não se aglomerarem; por seu turno, o ambiente continuará a deteriorar-se
enquanto não se abandonar as práticas que conduzem à poluição.
Em suma, precisamos de alterar consideravelmente o comportamento
humano, mas não poderemos fazê-lo recorrendo exclusivamente à física e à
biologia, por mais esforços que fizermos. (E há outros problemas, como o
colapso do nosso sistema educacional e a alienação e revolta dos jovens,
problemas para os quais as tecnologias física e biológica são tão obviamente
irrelevante que jamais foram aplicadas.) Não basta «usar a tecnologia com
um entendimento mais profundo dos problemas humanos» nem «consagrar
a tecnologia às necessidades espirituais do homem», ou tão-pouco «encorajar
os tecnólogos a debruçarem-se sobre os problemas humanos». Tais expressões
significam que a tecnologia cessa onde começa o comportamento humano e
que devemos prosseguir, como acontecia no passado, com o que aprendemos
através da experiência pessoal, da compilação de experiências pessoais
chamada história ou com o uso selectivo de experiências encontradas na
sabedoria popular e nas normas consuetudinárias. Tudo isto esteve à nossa
disposição durante séculos, e tudo o que temos paramostrar é o estado do
mundo actual.
O que precisamos é de uma tecnologia do comportamento. Poderíamos
resolver rapidamente os nossos problemas se pudéssemos regular o
crescimento da população mundial com a mesma precisão com que
regulamos o rumo de uma nave espacial, aperfeiçoar a agricultura e a
indústria com um pouco da confiança com que aceleramos partículas de
alta energia ou caminhar para um mundo de paz com uma progressão
regular e constante como a da física na sua aproximação do zero absoluto
(ainda que, presumivelmente, quer o mundo de paz, quer o zero absoluto

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UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

permaneçam fora do nosso alcance). Não existe, entretanto, uma tecnologia


do comportamento comparável em poder e precisão à tecnologia física
e biológica e aqueles que não consideram tal possibilidade ridícula sentirão
provavelmente mais temor do que tranquilidade. É esta a distância a
que nos encontramos da «compreensão dos problemas humanos», no sentido
em que a física e a biologia entendem os seus campos, e de evitarmos
a catástrofe para a qual parece caminhar inexoravelmente o mundo.
Há 2500 anos poderia talvez dizer-se que o homem se compreendia
a si mesmo tão bem quanto a qualquer outra parte do seu mundo. Hoje,
é a si mesmo que menos entende. A física e a biologia atingiram um
grau de desenvolvimento considerável, mas não se verificou qualquer criação
correspondente a uma ciência do comportamento humano. O interesse
suscitado pela física e biologia helénicas é hoje meramente histórico
(nenhum físico ou biólogo moderno recorreria ao saber aristotélico); todavia,
os diálogos de Platão são ainda recomendados aos estudantes e citados
como se lançassem alguma luz sobre o comportamento humano. Aristóteles
talvez não entendesse uma página da física ou biologia modernas, mas
Sócrates e os seus discípulos poucas dificuldades encontrariam em
acompanhar os actuais debates sobre problemas humanos. Quanto à
tecnologia, realizamos já enormes progressos no controlo do mundo físico
e biológico, mas as nossas práticas políticas, educacionais e mesmo
económicas, embora adaptadas a condições muito diferentes, não
melhoraram muito.
Não podemos explicar tal facto com a alegação de que os gregos
sabiam tudo o que era possível saber a respeito do comportamento humano.
Certamente que o conheciam mais do que ao mundo físico, mas ainda
assim não era muito. Além disso, a sua maneira de pensar sobre o
comportamento humano deve ter incorrido num erro fatal. Enquanto a
física e a biologia gregas, mesmo tomando em consideração os seus aspectos
mais toscos, evoluíram até à ciência moderna, as teorias gregas do
comportamento humano não conduziram a parte nenhuma. Se ainda hoje
as aceitamos, não é por encerrarem qualquer verdade eterna, mas por
não conterem os gérmenes de algo melhor.
Pode sempre argumentar-se que o comportamento humano é um campo
particularmente difícil. E assim é na verdade e somos levados a pensar
desta maneira justamente por não estarmos aptos a lidar com ele. No
entanto, a física e a biologia modernas ocupam-se com êxito de assuntos
por certo tão complexos quanto muitos aspectos do comportamento humano.
A diferença é que os instrumentos e métodos por elas utilizados são de

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PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

complexidade proporcional. Por outro lado, o facto de a esfera do


comportamento humano não dispor de instrumentos e métodos igualmente
poderosos também não constitui uma explicação; é, antes, parte do enigma.
Colocar um homem na lua é realmente mais fácil do que melhorar o
nível educacional das nossas escolas públicas? Ou do que construir melhores
casas para todos? Ou do que proporcionar a todos empregos bem
remunerados para que, consequentemente, possam desfrutar de um mais
elevado padrão de vida? A opção não foi uma questão de prioridades,
porquanto ninguém poderia afirmar ser mais importante chegar à lua.
O estimulante na viagem à lua foi a sua viabilidade. A ciência e a técnica
haviam atingido um tal ponto que, com um grande impulso, a coisa poderia
ser posta em prática. Em contrapartida, não existe nenhum estímulo
comparável nos problemas levantados pelo comportamento humano. Não
existem soluções à vista.
É fácil concluirmos que existe algo no comportamento humano que
impossibilita uma análise científica, e daí uma tecnologia eficaz; contudo,
o facto é que de modo nenhum esgotámos as possibilidades. Em certo
sentido, podemos afirmar que os métodos da ciência mal começaram ainda
a ser aplicados ao comportamento humano. Usamos os instrumentos da
ciência; contamos, medimos e comparamos; falta, porém, algo de essencial
à prática científica em quase todos os debates actuais sobre o comportamento
humano. E tal omissão está relacionada com o nosso modo de tratar
as causas do comportamento. (O termo " causa"2 deixou de ser corrente
na linguagem científica sofisticada, mas poderá servir aqui.)
A primeira experiência do homem com a causalidade decorreu
provavelmente do seu próprio comportamento: as coisas moviam-se porque
ele as movia. Se outras coisas se moviam, era porque outra pessoa as
movia e, se esse motor não podia ser visto, é porque era invisível. Deste
modo, os deuses gregos serviam de causas aos fenómenos físicos.
Encontravam-se geralmente fora das coisas que moviam, ainda que
pudessem penetrá-las e «possuí-las»3. A física e a biologia cedo
abandonaram este tipo de explicação, passando a recorrer a espécies mais
vantajosas de causas; no âmbito do comportamento humano, porém, não
foi ainda dado esse passo decisivo. As pessoas instruídas já não acreditam
que os homens sejam possuídos por demónios (se bem que ainda seja
ocasionalmente praticado o exorcismo de demónios e o possesso tenha
ressurgido nos escritos de determinados psicoterapeutas), mas continua
a ser corrente atribuir-se o comportamento humano a agentes internos.
Diz-se, por exemplo, que um delinquente juvenil sofre de personalidade

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UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

perturbada, mas não haveria razão para dizê-lo se a personalidade não


fosse de algum modo distinta do corpo que se meteu em dificuldades.
A distinção é evidente quando se afirma que um corpo contém várias
personalidades que o controlam de modos diversos em momentos diferentes.
Os psicanalistas identificam três destas personalidades o ego, o superego
e o id e afirmam que as interacções entre elas são responsáveis pelo
comportamento do indivíduo.
Embora a física cedo tenha deixado de personificar as coisas desta
maneira, continuou durante muito tempo a considerá-las como se possuíssem
vontades, impulsos, sentimentos, desígnios e outros atributos fragmentários
de um agente interno. Segundo Butterfieldl4, Aristóteles argumentava que
a aceleração de um corpo cadente era devida ao crescente júbilo que
sentia por se aproximar de «casa»; do mesmo modo, certas autoridades
de uma época posterior supunham que um projéctil era impelido por um
dado ímpeto, a que davam por vezes o nome de «impetuosidade». Todas
estas concepções acabaram por ser postas de parte (ainda bem que o
foram), mas as ciências de comportamento continuam a apelar para estes
estados internos, comparáveis aos referidos acima. Ninguém se surpreende
ao ouvir dizer que um portador de boas notícias caminha mais depressa
por se sentir jubiloso, ou que age descuidadamente devido à sua
impetuosidade, ou que teimosamente adere a determinado modo de agir
por mera força de vontade. Ainda deparamos com referências pouco
cuidadosas quanto a propósitos tanto na física como na biologia, mas
na prática correcta não há lugar para essas referências; ainda assim, é
quase unânime a atribuição do comportamento humano a intenções,
propósitos, objectivos e metas. Se ainda é possível admitir que uma máquina
possa manifestar uma intenção, esta suposição implica, de um modo
pertinente, que tal máquina será ainda mais intimamente semelhante ao
homem.
A física e a biologia afastaram-se mais das causas personificadas
quando começaram a atribuir o comportamento dos objectos a essências,
qualidades ou naturezas. Para o alquimista medieval, por exemplo, algumas
das propriedades de uma substância poderiam dever-se à essência do
mercúrio; além disso, as substâncias eram comparadas dentro do que se
poderia ter designado por «uma química das diferenças individuais».
Newton lamentou tal prática seguida pelos seus contemporâneos: «Dizerem-
nos que toda a espécie de coisa é dotada de uma qualidade específica
oculta, pela qual actua e produz efeitos manifestos, é o mesmo que não
-nos dizerem nada». (As qualidades ocultas foram exemplos das hipóteses

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PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

que Newton rejeitou quando afirmava que hypotheses non fingo - «não
formulo hipóteses» - ainda que nem sempre agisse estritamente de acordo
com as suas palavras.) Durante muito tempo, a biologia continuou a apelar
para a natureza das coisas vivas e só no século XX veio a abandonar
totalmente as forças vitais. Todavia, atribui-se ainda o comportamento
à natureza humana, subsistindo uma desenvolvida «psicologia das diferenças
individuais», segundo a qual os indivíduos são comparados e descritos
em termos de traços de carácter, capacidades e aptidões.
Quase todos os que se interessam pelos problemas humanos - o
cientista político, o filósofo, o homem de letras, o economista, o psicólogo,
o linguista, o sociólogo, teólogo, o antropólogo, o educador ou o
psicoterapeuta - continuam a falar do comportamento humano nestes termos
pré-científicos. Todas as edições de jornais diários, revistas, publicações
especializadas e todos os livros que abordem de algum modo o
comportamento humano fornecer-nos-ão exemplos. Dizem-nos que para
controlar o crescimento demográfico mundial precisamos de mudar as
nossas atitudes em relação aos filhos, superar o orgulho pelo tamanho
da fam ília ou pela potência sexual, criar um certo sentido de
responsabilidade em relação aos nossos descendentes e reduzir o papel
desempenhado pelas famílias grandes em minorar a preocupação com
a velhice. A fim de trabalhar pela paz, devemos fazer face à sede de
poder ou às ilusões paranóicas dos dirigentes; devemos recordar-nos de
que as guerras principiam na mente dos homens, de que existe algo de
suicida no homem - talvez um instinto da morte - que conduz à guerra
e de que o homem é agressivo por natureza. Para resolver os problemas
da pobreza, devemos incutir amor-próprio, encorajar o espírito de iniciativa
e reduzir a frustração. Para atenuar o descontentamento dos jovens, devemos
proporcionar-lhes um certo sentido de finalidade e minorar os sentimentos
de alienação ou desânimo. Ao verificarmos que não dispomos de quaisquer
meios eficazes para materializar tais medidas, nós próprios podemos sofrer
uma crise de convicção ou perda de confiança, o que somente poderá
obviar-se com o retomo à fé nas capacidades inatas do homem. Tudo
isto se refere a verdades fundamentais, que quase ninguém põe em causa.
Todavia, não encontramos nada de semelhante na física moderna nem
na maior parte do âmbito da biologia, o que pode muito bem explicar
as razões por que foram durante tanto tempo proteladas uma ciência e
uma tecnologia do comportamento.
Costuma supor-se que a objecção «behaviorística» às ideias,
sentimentos, traços de carácter, vontade, etc., diz respeito à matéria de

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UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

que consta serem feitos. Durante mais de dois mil e quinhentos anos
não deixou por certo de debater-se certas questões obstinadas acerca da
natureza da mente que continuam sem resposta. Como, por exemplo, pode
a mente mover o corpo? Ainda em 1965, Karl Popper5 formulou a questão
nos seguintes termos: «O que pretendemos é compreender como certas
coisas imateriais como propósitos, deliberações, planos, decisões, teorias,
tensões e valores podem desempenhar um dado papel na produção de
mudanças físicas no mundo material.» Além disso, como é natural,
queremos saber de onde provêm esses elementos imateriais. Para essa
pergunta, os gregos tinham uma resposta simples: dos deuses. Como
salientou Dodds6, os gregos acreditavam que, se um indivíduo procedia
de um modo insensato, era porque um deus hostil implantara (paixão
desmedida) no seu peito. Um deus amistoso poderia conceder a um guerreiro
uma quantidade adicional de m e n o z que o ajudaria a combater
fulgurantemente. Aristóteles pensava existir algo de divino no pensamento
e, por sua vez, Zenão sustentava que o intelecto era Deus.
Actualmente, não podemos adoptar esta linha de pensamento.
A alternativa mais comum consiste em apelar para acontecimentos físicos
precedentes. Afirma-se que a herança genética do indivíduo produto da
evolução da espécie - explica parte do funcionamento da sua mente e
que a sua história pessoal explica o restante. Por exemplo, em consequência
da competição (física) no decurso da evolução, os homens têm agora
sentimentos (não-físicos) de agressividade que conduzem a actos (físicos)
de hostilidade. Outro exemplo: o castigo (físico) que uma criança pequena
recebe quando se entrega a experiências sexuais gera sentimentos de
ansiedade (não-físicos) que afectarão o seu comportamento sexual (físico)
quando adulto. O estádio não-fisico abarca evidentemente longos períodos
de tempo: a agressividade remonta a milhões de anos da história da evolução
e a ansiedade adquirida na infância subsiste até à velhice.
Poderia evitar-se o problema de passar de uma coisa para outra se
tudo fosse ou mental ou físico, e foram já consideradas ambas as
possibilidades. Alguns filósofos procuraram circunscrever-se ao mundo
da mente, argumentando que só a experiência imediata é real, pelo que
a psicologia experimental teve início como tentativa para descobrir as
leis mentais que regiam as interacções entre os elementos mentais. As
teorias «intrapsíquicas» da psicoterapia contemporânea dizem-nos como
um sentimento conduz a outro (como a frustração gera agressividade,
por exemplo), como os sentimentos se inter-relacionam e como os
sentimentos expulsos da mente lutam por aí reentrar. Foi Freud quem,

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PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

curiosamente, escolheu a linha complementar de pensamento de que o


estádio mental é, na realidade, físico, acreditando que a fisiologia viria
a explicar o funcionamento da aparelhagem mental. Dentro de uma
tendência semelhante, muitos psicólogos fisiologistas continuam a falar
livremente de estados de alma, sentimentos e assim por diante, na crença
de que a compreensão da sua natureza física é exclusivamente uma questão
de tempo.
As dimensões do mundo da mente7 e a transição de um mundo para
o outro suscitam problemas embaraçosos; de um modo geral, porém, é
possível ignorá-los, o que pode ser boa estratégia, já que a objecção
importante levantada ao mentalismo é de natureza bem diferente. O mundo
da mente é o centro de todas as atenções. O comportamento não é
reconhecido como objecto de estudo por direito próprio. Na psicoterapia,
por exemplo, as coisas inquietantes que as pessoas fazem ou dizem são
quase sempre consideradas como meros sintomas e, comparado com os
dramas fascinantes encenados nas profundezas da mente, o próprio
comportamento parece nesmo superficial. Para a linguística e a crítica
literária, aquilo que o indivíduo articula é quase sempre tratado como
a expressão de ideias ou sentimentos. No âmbito da ciência política, teologia
e economia, encara-se geralmente o comportamento como o material de
que se inferem atitudes, intenções, necessidades, etc. Durante mais de
dois mil e quinhentos anos a vida mental foi objecto de uma atenção
aturada, mas só recentemente se fez um esforço no sentido de estudar
o comportamento humano como algo mais do que um simples produto
secundário.
Também não fazemos caso das condições de que, comportamento
constitui uma função. A explicação mental faz cessar a curiosidade, como
podemos observar em conversas casuais. Se perguntarmos a alguém «Porque
foi ao teatro?» e essa pessoa responder «Porque me apeteceu ir», somos
levados a tomar esta resposta como uma espécie de explicação. Viria
muito mais a propósito apurar o que aconteceu nas vezes em que essa
pessoa foi ao teatro, o que ela ouviu ou leu sobre a peça que foi ver
e que outros elementos do seu ambiente presente ou passado poderiam
tê-la induzido a ir (em vez de fazer qualquer outra coisa), mas aceitamos
o «apeteceu-me ir» como uma espécie de síntese de tudo isso e
provavelmente não pediremos pormenores.
O psicólogo profissional detém-se geralmente no mesmo ponto. Já
há muito tempo, William James8 corrigiu uma opinião predominante sobre
a relação entre os sentimentos e a acção ao sustentar, por exemplo, que

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UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

não fugimos porque temos medo, mas sim que temos medo porque fugimos.
Por outras palavras, o que sentimos quando temos medo é o nosso
comportamento, o mesmo comportamento que, do ponto de vista tradicional,
exprime o sentimento e é explicado por ele. Mas quantos dos que
examinaram o argumento de James observaram que na realidade não se
assinalou qualquer facto antecedente? Nenhum dos «porque» deveria ser
tomado a sério, pois não se deu qualquer explicação para a razão por
que fugimos e sentimos medo.
Quer nos encaremos como sentimentos que se explicam por si mesmos,
quer consideremos o comportamento motivado pelos sentimentos, prestamos
muito pouca atenção às circunstâncias precedentes. O psicoterapeuta toma
conhecimento dos primórdios da vida do seu paciente quase exclusivamente
através das recordações deste, as quais sabemos serem passíveis de falhas,
chegando a argumentar que o importante não é o que aconteceu na realidade,
mas aquilo de que o paciente se recorda. Deve haver, na literatura
psicanalítica, pelo menos cem referências à sensação de ansiedade para
cada referência a um episódio envolvendo punição ao qual se remonta
na explicação da ansiedade. Parece até dar-se preferência a antecedentes
que estejam claramente fora do nosso alcance. Actualmente, por exemplo,
verifica-se um grande interesse pelo que deve ter ocorrido durante a evolução
da espécie com vista a explicar o comportamento humano e damos a
impressão de falar com especial convicção, precisamente por apenas
podermos inferir o que efectivamente aconteceu.
Incapazes de compreender a maneira ou a razão de uma dada pessoa
proceder, atribuímos o seu comportamento a outra pessoa que não podemos
ver e cujo comportamento também não podemos explica» mas sobre a
qual não somos levados a fazer perguntas. Adoptamos provavelmente esta
estratégia não tanto por falta de interesse ou capacidade, mas devido
à perene convicção de que não existem antecedentes relevantes para grande
parte do comportamento humano. A função do homem interior consiste
em fornecer uma explicação que, por sua vez, não será explicada.
A explicação cessa com ele. Ele não é um mediador entre história passada
e comportamento presente, mas sim um centro do qual emana o
comportamento. Ele inicia, dá origem e cria e, enquanto o faz, permanece
divino, como o era para os gregos. Afirmamos que é autónomo e, do
ponto de vista de uma ciência do comportamento, isso quer dizer milagroso.
Esta posição é, evidentemente, vulnerável. O homem autónomo serve
para explicarmos unicamente aquilo que não somos ainda capazes de
explicar de outro modo. A sua existência depende da nossa ignorância,

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PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

pelo que ele perde naturalmente terreno à medida que aumentamos os


nossos conhecimentos sobre o comportamento. A tarefa de uma análise
científica consiste em explicar como o comportamento de uma pessoa,
considerada como sistema físico, se relaciona com as condições em que
evoluiu a espécie humana e com as condições em que vive o indivíduo.
A menos que efectivamente se dê qualquer intervenção caprichosa ou
criadora, tais ocorrências deverão estar relacionadas, pelo que se toma
realmente desnecessária qualquer intervenção. As contingências de
sobrevivência responsáveis pela constituição genética do homem
produziriam tendências para agir agressivamente, e não sentimentos de
agressividade. A punição aplicada a formas de comportamento sexual
modifica o comportamento sexual, pelo que quaisquer sentimentos que
porventura surjam serão, na melhor das hipóteses, subprodutos. A nossa
era não sofre de ansiedade, mas sim dos acidentes, crimes, guerras e
outras realidades perigosas e dolorosas a que tantas vezes nos encontramos
expostos. Os jovens abandonam a escola, recusam-se a arranjar emprego
e apenas se associam a indivíduos da sua idade, não porque se sintam
rejeitados, mas sim devido aos ambientes sociais imperfeitos que encontram
no lar, na escola, na fábrica, em toda a parte.
Podemos seguir o caminho tomado pela física e biologia, concentrando-
-nos nas relações entre o comportamento e o ambiente e desprezando
supostos estados de espírito intermediários. A física não progrediu por
examinar mais atentamente o júbilo de um corpo cadente, nem a biologia
por observar a natureza dos espíritos vitais; também nós não precisamos
de tentar descobrir o que realmente são personalidades, estados de espírito,
sentimentos, traços de carácter, planos, propósitos, intenções ou os restantes
atributos tradicionais do homem autónomo para irmos mais longe numa
análise científica do comportamento.
Há razões para termos levado tanto tempo a atingir este ponto. Os
fenómenos estudados pela física e biologia estão muito longe de se
assemelhar ao comportamento das pessoas e não deixa de parecer bastante
ridículo falarmos do júbilo de um corpo cadente ou da impetuosidade
de um projéctil; todavia, as pessoas comportam-se como pessoas e o homem
exterior, cujo comportamento pretendemos explicar, poderia muito bem
assemelhar-se ao homem interior, em cujo comportamento se diz residir
tal explicação. O homem interior foi criado à imagem do exterior.
Uma razão ainda mais importante é que o homem interior às vezes
parece ser directamente observado. Somos forçados a inferir o júbilo de
um corpo cadente, mas não poderemos sentir o nosso próprio júbilo?

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UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

Com efeito, sentimos aquilo que está dentro de nós próprios, mas não
sentimos as coisas que foram inventadas para explicar o comportamento.
O possesso não sente o demónio que o possui e poderá até negar a sua
existência. O delinquente juvenil não sente a sua personalidade perturbada.
O homem inteligente não sente a sua inteligência, nem o introvertido
a sua introversão. (Na realidade, há quem afirme que estas dimensões
da mente ou do carácter só são observáveis mediante complexos processos
estatísticos.) Quem fala não sente as regras gramaticais que aplica na
construção das frases que profere, além de que os homens falaram
gramaticalmente durante milhares de anos sem que soubessem da existência
de regras. Quem responde a um questionário não sente as atitudes ou
opiniões que o levam a assinalar itens de uma determinada maneira.
É certo que sentimos determinados estados do nosso corpo associados
ao comportamento; no entanto, como salientou Freud, actuamos do mesmo
modo quando não os sentimos. São, pois, subprodutos que não devem
ser confundidos com causas.
Existe uma razão muito mais importante para a nossa lentidão em
nos desfazermos das explicações mentalísticas: tem sido difícil encontrarmos
alternativas. Presumivelmente, devemos procurá-las no ambiente exterior,
ainda que o papel desempenhado pelo ambiente não seja de modo nenhum
claro. A história da teoria da evolução ilustra o problema. Até ao século
XIX, o ambiente foi considerado apenas como um cenário passivo do
nascimento, reprodução e morte dos mais diferentes tipos de organismos.
Ninguém notou que o ambiente era responsável pela existência de muitas
espécies diferentes (e atribuía-se tal facto, de modo bastante significativo,
à Mente criadora). O problema é que o ambiente actua de um modo
imperceptível: não impele nem puxa, selecciona. Durante milhares de
anos da história do pensamento humano, o processo de selecção natural
passou despercebido, não obstante a sua extraordinária importância. Quando,
finalmente, foi descoberto, converteu-se naturalmente na chave da teoria
evolucionista.
O efeito exercido pelo ambiente9 no comportamento permaneceu
obscuro durante um período ainda mais longo. Podemos ver o que os
organismos fazem ao mundo que os cerca, ao suprirem por meio dele
as suas necessidades e ao defenderem-se dos seus perigos; porém,
muito mais difícil é apreciar a acção que o mundo exerce sobre eles.
Descartes10 foi quem primeiro sugeriu a possibilidade de o ambiente
desempenhar um papel activo na determinação do comportamento e,
segundo tudo nos leva a crer, apenas o pôde fazer porque se lhe deparou

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PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

uma sugestiva pista. Ele conhecia certas máquinas automáticas dos Jardins
Reais de França, manobradas hidraulicamente por meio de válvulas ocultas.
Conforme a descrição do próprio Descartes, ao entrarem nos jardins, as
pessoas «necessariamente pisam determinados ladrilhos ou lages, de tal
forma dispostos que, ao aproximarem-se de uma Diana no banho, fazem
com que ela se esconda atrás das roseiras e, se tentarem segui-la, fazem
com que Neptuno avance para elas, ameaçando-as com o seu tridente».
As esculturas divertiam precisamente porque procediam como se fossem
pessoas; parecia, por conseguinte, que algo de muito semelhante ao
comportamento humano poderia ser explicado mecanicamente. Descartes
entendeu a sugestão: os organismos vivos poderiam mover-se por motivos
análogos. (Ele excluiu o organismo humano, presumivelmente para evitar
polémicas de ordem religiosa.)
A a ç ã o ativadora do ambiente veio a denominar-se «estímulo» -
que provém da palavra latina que significa «aguilhão» o efeito sobre
um organismo recebeu o nome de «resposta», enquanto ambos passaram
a constituir um «reflexo». Os reflexos foram pela primeira vez demonstrados
em pequenos animais decapitados como, por exemplo, salamandras, e
é significativo que tal princípio tenha sido contestado durante todo o
século XIX, uma vez que parecia negar a existência de um agente autónomo,
a «alma da espinal medula», a que se atribuía o movimento do corpo
decapitado. Quando Pavlov mostrou como se podia formar novos reflexos
através do condicionamento, nasceu uma psicologia do estímulo-
-resposta perfeitamente instituída, segundo a qual todo o comportamento
passou a ser encarado como reacções a estímulos. Determinado escritor
exprimiu-a nos seguintes termos: «Pela vida fora, ou somos aguilhoados
ou chicoteados.»11 Contudo, o modelo estímulo-resposta jamais chegou
a ser muito convincente nem resolveu o problema básico, porquanto algo
de semelhante ao homem interior tinha de ser inventado para converter
um estímulo em resposta. A teoria da informática esbarrou no mesmo
problema quando foi necessário inventar «processador» interno que
convertesse input em output.
É relativamente fácil observar o efeito de um estímulo provocador
e não surpreende que a hipótese de Descartes tenha conservado durante
largo tempo uma posição dominante na teoria do comportamento; não
passou, no entanto, de uma pista falsa, da qual só agora se vai libertando
a análise científica. O ambiente não só aguilhoa ou chicoteia como ainda
selecciona. O seu papel é semelhante ao da selecção natural, embora
numa escala de tempo bastante diferente, e precisamente por essa razão

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UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

foi ignorado. Torna-se agora claro que é importante considerarmos o que


o ambiente produz num organismo, não só antes como ainda depois da
resposta deste. O comportamento é modelado e mantido pelas suas
consequências. Uma vez reconhecido este facto, podemos formular com
muito maior clareza a interacção entre o organismo e o ambiente.
Há a considerar dois resultados importantes. O primeiro diz respeito
à análise básica. O comportamento que actua sobre o ambiente para produzir
consequências (comportamento «operante»12) pode ser estudado através
da criação de ambientes nos quais determinadas consequências específicas
são condicionadas pelo comportamento. As contingências investigadas têm-
-se tomado cada vez mais complexas e, uma a uma, vão assumindo as
funções explicativas anteriormente atribuídas a personalidades, estados
de espírito, sentimentos, traços de carácter, propósitos e intenções.
O segundo resultado é de ordem prática: pode manipular-se o ambiente.
E certo que apenas muito lentamente se pode modificar a constituição
genética do homem, mas as mudanças verificadas no ambiente do indivíduo
têm efeitos rápidos e dramáticos. Como teremos ocasião de verificar,
encontra-se já numa fase bastante adiantada uma tecnologia do
comportamento operante que poderá vir a ser proporcional aos nossos
problemas13.
Contudo, essa possibilidade suscita outro problema, o qual terá de
ser resolvido se quisermos tirar partido das nossas vantagens. Os nossos
progressos têm sido obtidos à custa do desalojamento do homem autónomo,
mas este retirou-se de má vontade, dirigindo uma espécie de acção de
retaguarda, na qual reúne, infelizmente, condições para mobilizar um
formidável apoio. O homem autónomo constitui ainda uma figura
importante na ciência política, no direito, na religião, na economia, na
antropologia, na sociologia, na psicoterapia, na filosofia, na ética, na
história, na educação, na pediatria, na linguística, na arquitectura, no
4

planeamento urbano, e na vida familiar. Cada campo tem os seus


especialistas e cada especialista a sua teoria, pelo que em quase todas
as teorias a autonomia do indivíduo é inquestionável. Os dados obtidos
através da observação casual ou dos estudos da estrutura do comportamento
não constituem ameaça séria para o homem interior; por outro lado, muitos
destes campos tratam somente de grupos de pessoas, pelo que os dados
estatísticos ou actuariais poucas restrições levantam ao indivíduo. Resulta
daqui uma tremenda mole de «conhecimentos» tradicionais que devem
ser corrigidos ou substituídos por uma análise científica.
Duas características do homem autónomo são particularmente

21
PARA ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

problemáticas. Segundo o ponto de vista tradicional, o indivíduo é livre.


E autónomo no sentido em que o seu comportamento é imotivado. Pode,
portanto, ser responsabilizado pelo que fizer e justamente punido se
transgredir. Este ponto de vista, assim como as práticas dele decorrente
deve ser reexaminado a partir do momento em que uma análise científica
descobre relações insuspeitas de controlo entre o comportamento e o
ambiente. Pode tolerar-se o controlo externo até certo ponto. Os teólogos
aceitaram o facto de o homem estar predestinado a fazer o que um Deus
omnisciente sabe que ele fará; por sua vez, os dramaturgos gregos fizeram
do inexorável destino o seu tema favorito. Adivinhos e astrólogos
atribuem-se frequentes vezes o dom de predizer o comportamento humano,
pelo que sempre foram muito procurados. Biógrafos e historiadores têm
procurado detectar «influências» nas vidas dos indivíduos e dos povos.
A sabedoria popular e o discernimento de ensaístas, tais como Montaigne
e Bacon, subentendem uma espécie de previsibilidade na conduta humana,
e por outro lado os dados estatísticos e actuariais das ciências sociais,
encaminham-nos na mesma direcção.
Apesar de tudo o que apontámos, o homem autónomo sobrevive por
ser a feliz excepção. Os teólogos reconciliaram a predestinação com o
livre arbítrio e os espectadores gregos, movidos pela representação de
um destino inevitável, saíam do teatro como homens livres. A morte de
um chefe político ou uma tempestade no mar modificam o curso da história,
assim como um professor ou um caso amoroso transformam uma vida.
Contudo, isto não acontece a toda a gente nem afecta toda a gente da
mesma maneira. Alguns historiadores fizeram da imprevisibilidade da
história uma virtude. Despreza-se com facilidade dados actuariais: lemos
que centenas de pessoas morrerão em acidentes de viação num dado fim-
-de-semana, mas fazemo-nos à estrada como se estivéssemos livres desse
risco. Apenas uma pequena parte da ciência do comportamento ergue
«o espectro do homem predizível». Inversamente, muitos antropólogos,
sociólogos e psicólogos utilizam os seus conhecimentos específicos para
provar que o homem é livre, resoluto e responsável. Freud foi um
determinista - podemos supô-lo - mas muitos dos seus seguidores não
hesitam em asseverar aos seus pacientes que são livres para escolher entre
diferentes modos de agir e que, no fim de contas, são os arquitectos
dos seus próprios destinos.
Esta saída fecha-se lentamente, à medida que se descobre novas provas
da previsibilidade do comportamento humano. Simultaneamente, à medida
que progride a análise científica, em especial no que diz respeito ao

22
UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

esclarecimento do comportamento do indivíduo, revoga-se a ideia da isenção


pessoal de um determinismo total. Joseph Wood Krutch14 reconheceu o
valor dos factos actuariais ao mesmo tempo que insistia na liberdade
pessoal: «Podemos predizer, com um considerável grau de rigor, quantas
pessoas irão à praia num dia em que a temperatura atingir determinado
ponto e até mesmo quantos se atirarão de uma ponte... ainda que nem
eu nem vocês sejamos compelidos a isso». Contudo, não me parece que
queira dizer que os indivíduos que vão à praia o não façam por uma
razão pessoal ou que circunstâncias da vida de um suicida não tenham
qualquer relação com o seu acto de se atirar de uma ponte. A distinção
só será sustentável enquanto uma palavra como «compelir» sugerir uma
forma de controlo particularmente ostensivo e enérgico. Qualquer análise
científica caminha naturalmente no sentido de esclarecer todos os tipos
de relações de controlo.
Ao contestar o controlo exercido pelo homem autónomo e ao
demonstrar o controlo exercido pelo ambiente, a ciência do comportamento
parece também pôr em causa a dignidade ou o valor. Uma pessoa é
responsável pelo seu comportamento, não só no sentido em que pode
ser justamente censurada ou punida quando procede mal, mas também
no sentido em que merece ser elogiada e admirada pelas suas realizações.
Uma análise científica transfere tanto os elogios como as críticas para
o ambiente, pelo que as práticas tradicionais deixarão de poder justificar-
-se. Perante tais mudanças radicais, aqueles que estão comprometidos com
as teorias e práticas tradicionais não deixam naturalmente de lhes oferecer
resistência.
Existe ainda uma terceira fonte de problemas. À medida que se
transfere a ênfase para o ambiente, o indivíduo parece ficar exposto a
uma nova espécie de perigo.
Quem deverá construir o ambiente de controlo e com que fins? Como
se presume, o homem autónomo autocontrola-se de acordo com um conjunto
intrínseco de valores: ele trabalha por aquilo que, a seu ver, é bom. Mas
aquilo que o suposto agente de controlo achar bom sê-lo-á também para
aqueles que controla? Afirma-se, naturalmente, que as respostas a perguntas
deste tipo requerem juízos de valor.
A liberdade, a dignidade e o valor são questões primordiais, que
infelizmente se tomam mais críticas à medida que o poder da tecnologia
do comportamento se toma proporcional aos problemas a resolver. A mesma
mudança que trouxe uma certa esperança de solução é responsável por
uma crescente oposição ao tipo de solução apresentada. Tal conflito é

23
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

em si mesmo um problema de comportamento humano e, como tal, pode


ser focado. A ciência do comportamento não está, de modo nenhum, tão
adiantada quanto a física ou a biologia, mas tem a vantagem de poder
alcançar alguma luz sobre as suas próprias dificuldades. A ciência é
comportamento humano, e também o é a oposição à ciência. O que tem
acontecido na luta do homem pela liberdade e dignidade e que problemas
surgem quando os conhecimentos científicos começam a ser relevantes
nesta luta? As respostas a tais perguntas poderão ajudar-nos a abrir o
caminho para a tecnologia de que tão terrivelmente necessitamos.
A partir deste ponto, tais problemas serão debatidos «de um ponto
de vista científico», sem que isso signifique que o leitor precise de conhecer
as minúcias de uma análise científica do comportamento. Uma simples
interpretação será suficiente; contudo, a natureza dessa interpretação é
facilmente mal compreendida. Referimo-nos muitas vezes a coisas que
não podemos observar ou medir com a precisão exigida por uma análise
científica e, com tal prática, muito temos a lucrar com o uso de termos
e princípios que foram forjados em condições mais precisas. Ao anoitecer,
o mar apresenta uma cintilação estranha; a geada que se acumula nas
vidraças tem um aspecto invulgar e a sopa não engrossa enquanto está
ao lume - para todos estes fenómenos dispomos de justificações dadas
por especialistas. Podemos, no entanto, lançar-lhes um desafio: não têm
«os factos» nem podem «provar» o que afirmam. Mesmo assim, têm mais
probabilidades de estar certos do que aqueles que carecem de bases
experimentais e só eles poderão orientar-nos no sentido de um estudo
mais preciso, se tal parecer valer a pena.
Uma análise experimental do comportamento oferece vantagens
semelhantes. Depois de havermos observado processos comportamentais
sob condições controladas, podemos mais facilmente descobri-los no mundo
em geral. Podemos assim identificar aspectos relevantes do comportamento
e do ambiente, o que nos possibilita desprezar os irrelevantes, por mais
fascinantes que sejam. Podemos rejeitar explicações tradicionais que tenham
sido testadas e consideradas deficientes numa análise experimental, para
então prosseguirmos com a nossa investigação com inabalável curiosidade.
Os exemplos mencionados nos capítulos seguintes não são oferecidos como
«prova» da interpretação, uma vez que esta deverá ser encontrada na
análise básica, Os princípios seguidos na interpretação dos exemplos têm
um carácter plausível que faltaria a princípios exclusivamente extraídos
da observação casual.
O texto parecerá amiudadas vezes inconsistente. O inglês, tal como

24
UMA TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO

todas as línguas, está pejado de termos pré-científicos que normalmente


suprem as necessidades da conversação casual. Ninguém olha com
desconfiança o astrónomo quando diz que o sol nasce ou que as estrelas
aparecem à noite, já que seria, ridículo insistir que dissesse sempre que
o sol surge no horizonte à medida que a terra gira ou que as estrelas
se tomam visíveis à medida que a atmosfera deixa de refractar a luz
solar. Tudo o que pedimos é que seja capaz de dar-nos uma explicação
mais precisa, se tal for necessário. A língua inglesa contém um número
muito maior de expressões referentes ao comportamento humano do que
a outros aspectos do mundo; por outro lado, as alternativas técnicas são
muito menos familiares. Existe, portanto, uma probabilidade muito maior
de nos contestarem o emprego de expressões casuais. Pode parecer
contraditório pedirmos ao leitor que «conserve algo em mente» quando
lhe dissemos que a mente é uma ficção explanatória ou que «considere
a ideia de liberdade» se uma ideia constitui simplesmente um precursor
imaginado de comportamento e falarmos em «tranquilizar aqueles que
temem uma ciência do comportamento» quando tudo o que está em causa
é a mudança do seu comportamento em função dessa ciência.
O livro poderia ter sido escrito para um leitor de formação técnica
sem expressões desse tipo, mas os problemas são importantes para o não-
-especialista e precisam de ser debatidos de uma maneira não-técnica.
Não há dúvida de que muitas das expressões mentalísticas arraigadas
na língua inglesa não podem ser traduzidas, com o mesmo rigor que
«o nascer do sol», embora possamos chegar a traduções aceitáveis.
Quase todos os nossos problemas mais importantes envolvem o
comportamento humano e não é possível resolvê-los apenas com a tecnologia
física e biológica. O que é necessário é uma tecnologia do comportamento
mas tem sido lento o desenvolvimento da ciência da qual se poderá extrair
essa tecnologia. Uma das dificuldades é que quase tudo o que recebe
o denominador comum de ciência do comportamento continua a atribuir
o comportamento a estados de espírito, sentimentos, traços de carácter,
natureza humana, etc. A física e a biologia seguiram já práticas análogas
e só progrediram quando as abandonaram. As ciências do comportamento
têm vindo a sofrer uma transformação muito lenta, em parte porque, com
frequência, os aspectos explicativos parecem ser directamente observáveis
e também porque tem sido difícil encontrar outras espécies de explicações.
Ainda que o seu papel tenha permanecido obscuro, o ambiente é obviamente
importante. Não impele nem puxa, mas selecciona, e é difícil descobrir
e analisar tal função. Só há pouco mais de um século foi estabelecido

25
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

o papel da selecção natural na evolução e apenas agora começa a ser


reconhecido e estudado o papel selectivo do ambiente na formação e
manutenção do comportamento do indivíduo. Contudo, à medida que se
vai compreendendo a interacção entre o organismo e o ambiente, os efeitos
anteriormente atribuídos a estados de espírito, sentimentos e traços de
carácter começam a ser vinculados a condições acessíveis, pelo que se
toma exequível uma tecnologia do comportamento. Todavia, ela não
resolverá os nossos problemas enquanto não substituir os pontos de vista
pré-científicos tradicionais, fortemente defendidos. A liberdade e a dignidade
ilustram a dificuldade. São propriedade do homem autónomo. da teoria
tradicional e essenciais às práticas nas quais uma pessoa é responsabilizada
pela sua conduta ou elogiada pelas suas realizações. Uma análise científica
transfere tanto a responsabilidade como a realização pessoal para o ambiente,
ao mesmo tempo que põe questões referentes aos «valores». Quem usará
a tecnologia e com que objectivos? Enquanto não forem resolvidos tais
problemas, continuará a ser rejeitada uma tecnologia do comportamento
e, com ela, possivelmente, o único modo de resolvermos os nossos
problemas.

26
A L IB E R D A D E

Quase todos os seres vivos agem no sentido de livrar-se dos contactos


prejudiciais. Atinge-se uma espécie de liberdade através de formas
relativamente simples de comportamento denominadas actos-reflexos. Uma
pessoa espirra para livrar as vias respiratórias de substâncias irritantes.
Vomita para livrar o estômago de alimentos indigestos ou venenosos. Retira
a mão de um objecto contundente ou escaldante. Existem formas mais
complexas de comportamento com efeitos sem elhantes. Quando
aprisionadas, as pessoas lutam («em fúria») e procuram libertar-se. Em
perigo, fogem dele ou atacam a sua origem. É provável que esta espécie
de comportamento se tenha desenvolvido pelo seu valor para a
sobrevivência; integra o que denominamos a constituição genética humana
do mesmo modo que a respiração, a transpiração ou a digestão. E, através
do condicionamento, é possível adquirir um comportamento semelhante
em relação a novas circunstâncias que não desempenharam qualquer papel
na evolução. Conquanto sejam, indubitavelmente, exemplos secundários
da luta pela liberdade, não deixam de ser significativos. Não os atribuímos
a qualquer espécie de amor à liberdade; são apenas formas de
comportamento que provaram ser úteis na redução das várias ameaças
ao indivíduo e, logo, à espécie no curso da sua evolução.
Diversamente, o comportamento que enfraquece estímulos nocivos
desempenha um papel muito mais importante. Não é adquirido sob a
forma de reflexos condicionados, mas como produto de um processo diverso
denominado condicionamento operante15. Quando um certo comportamento

27
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

é seguido por uma dada consequência, tem mais probabilidades de


repetir-se. À consequência que produz tal efeito damos o nome de reforço.
A comida, por exemplo, constitui um reforço para o organismo faminto;
tudo aquilo que o organismo fizer tem mais probabilidades de voltar a
ocorrer se receber alimentos, sempre que tenha fome. Certos estímulos
são denominados reforços negativos: qualquer resposta que reduza (ou
elimine) a intensidade desse estímulo repetir-se-á com maior probabilidade
quando o estímulo voltar a ocorrer. Assim, se alguém evita o calor do
sol ao caminhar abrigado, será mais provável que se abrigue quando o
sol estiver de novo muito quente. A diminuição de temperatura reforça
o comportamento de que «depende», isto é, o comportamento que lhe
sucede. Verifica-se igualmente condicionamento operante quando uma
pessoa evita simplesmente o sol escaldante ou, para usarmos uma expressão
aproximada, foge da ameaça do sol muito quente.
Os reforços negativos denominam-se aversivos no sentido em que
constituem aquilo de que «se afasta» os organismos. O termo sugere uma
separação espacial (movimento ou fuga para longe de algo), mas a relação
essencial é temporal. Num aparelho padrão utilizado para o estudo
laboratorial do processo, uma resposta arbitrária simplesmente enfraquece
ou faz cessar o estímulo aversivo. Grande parte da tecnologia física resultou
desta espécie de luta pela liberdade. Ao longo dos séculos, errando por
caminhos desordenados, os homens construíram um mundo onde se acham
relativamente livres de muitas espécies de estímulos ameaçadores ou nocivos
- temperaturas extremas; fontes de infecção; trabalho pesado; perigo e
até aqueles estímulos aversivos secundários que genericamente englobamos
sob a designação de desconforto.
A fuga e a evitação desempenham um papel muito mais importante
na luta péla liberdade quando as condições aversivas são produzidas por
outras pessoas. Há indivíduos que podem ser aversivos sem, por assim
dizer, o tentarem ser: fugimos deles ou evitamo-los por serem grosseiros,
perigosos, contagiosos ou fastidiosos. Outros são «intencionalmente»
aversivos, quer dizer, tratam as outras pessoas de modo aversivo por causa
das consequências. Deste modo, o feitor de escravos utiliza o chicote
para obrigar o escravo a prosseguir no trabalho; retomando-o, o escravo
escapa do chicote (e, consequentemente, reforça o comportamento do fiscal
em usar o chicote). O pai repreende o filho enquanto não executar uma
dada tarefa; ao cumpri-la, o filho escapa às repreensões (reforço o
comportamento do pai). O chantagista ameaça fazer revelações se a vítima
não lhe pagar o que ele pede; ao pagar, a vítima afasta a ameaça (e

28
A LIBERDADE

reforça a prática). Um professor ameaça os seus alunos com castigos


corporais ou repreensões enquanto não lhe prestarem atenção; ao
obedecerem, evitam a ameaça de castigo (e reforçam o seu emprego por
parte do professor). De uma forma ou de outra, o controlo aversivo
intencional constitui o padrão da maior parte do ajustamento social -
na ética, na religião, no governo, na economia, na educação, na psicologia
e na vida familiar.
Um indivíduo evita ou foge a um tratamento aversivo, comportando-
-se de modo a reforçar aqueles que o trataram aversivamente; existem,
porém, outros meios de fuga. Pode, por exemplo, colocar-se simplesmente
fora do seu alcance. Uma pessoa pode fugir à escravatura, emigrar ou
deixar de apoiar um governo, pode desertar de um exército, tornar-se
apóstata de uma religião, faltar às aulas, abandonar o lar ou abdicar
de uma cultura para se transformar em vagabundo, eremita ou hippie.
Tal comportamento é tanto um produto das condições aversivas quanto
o comportamento que tais condições se destinavam a suscitar e só se
manterá através do recrudescimento das contingências ou do uso de
estímulos aversivos mais poderosos.
Outra forma anómala de fuga consiste em atacar os responsáveis
pelas condições aversivas e enfraquecer ou destruir o seu poder. Podemos
atacar aqueles que se aglomeram à nossa volta ou nos aborrecem, assim
como atacamos as ervas daninhas do nosso jardim. No entanto, uma vez
mais a luta pela liberdade visa principalmente os agentes de controlo
intencionais, ou seja, aqueles que tratam os semelhantes de uma maneira
aversiva, com o fim de induzi-los a comportarem-se de determinados modos.
Assim, um filho pode rebelar-se contra os pais; um cidadão pode derrubar
um governo; um adepto pode reformar uma religião; um aluno pode agredir
um professor ou depredar uma escola e um marginal pode trabalhar com
vista à destruição de uma cultura.
É possível que a herança genética do homem apoie esta espécie de
luta pela liberdade: tratadas de um modo aversivo, as pessoas tendem
a agir agressivamente ou a ser reforçadas por indícios de haverem sofrido
danos causados pela agressividade. Ambas as tendências, as quais devem
ter tido vantagens na evolução, podem ser facilmente demonstradas. Se
dois organismos que tenham coexistido pacificamente sofrerem choques
dolorosos, apresentam im ediatam ente padrões característicos de
agressividade, reciprocamente dirigidos16. O comportamento agressivo não
se dirige necessariamente contra a verdadeira origem dos estímulos, podendo
ser «deslocado» em direcção a qualquer pessoa ou objecto conveniente.

29
PARA ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

Os actos de vandalismo e tumultos são frequentes vezes formas de


agressividade desgovernada ou mal dirigida. O organismo que receba um
choque doloroso agirá igualmente, quando possível, no sentido de se
aproximar de outro organismo contra o qual possa actuar agressivamente.
Não se esclareceu ainda até que ponto a agressividade humana exemplifica
tendências inatas; em contrapartida, é de um modo perfeitamente óbvio
que as pessoas aprendem muitos dos meios de atacar e, por conse­
guinte, enfraquecer ou destruir o poder dos agentes de controlo
intencionais.
A assim chamada «literatura da liberdade» tem visado induzir as
pessoas a atacar ou a fugir daqueles que agem no sentido de controlá-
-las aversivamente. O seu conteúdo é a filosofia da liberdade, mas as
filosofias estão incluídas no número das causas internas que precisam
de ser examinadas. Afirmamos que um dado indivíduo procede de deter­
minado modo graças à filosofia que tem ou adopta; no entanto, dado
que inferimos a filosofia a partir do comportamento, não podemos
usá-la satisfatoriamente como explicação, pelo menos enquanto ela própria
não for explicada. Por outro lado, a literatura da liberdade apresenta um
simples status objectivo. Abrange livros, panfletos, manifestos, discursos
e outros produtos verbais destinados a induzir as pessoas a agirem de
modo a libertarem-se de vários tipos de controlo intencional. Não divulga
uma filosofia da liberdade, apenas induz as pessoas a agirem.
É com frequência que esta literatura põe em relevo as condições
aversivas em que determinadas pessoas vivem, fazendo-as por vezes
contrastar com as condições de um mundo mais livre. Deste modo, torna
as condições ainda mais aversivas, «aumentando a miséria» daqueles que
procura salvar. Identifica também aqueles de quem se deve fugir ou cujo
poder deve ser combatido. Tiranos, sacerdotes, generais, capitalistas,
professores excessivamente severos e pais dominadores constituem os vilões
característicos desta literatura.
A literatura da liberdade prescreve ainda modos de acção. Por um
lado, pouco interesse tem manifestado pela fuga, talvez por isso dispensar
conselhos; por outro lado, tem salientado os meios de enfraquecer ou
destruir o poder controlador. Os tiranos devem ser derrubados, condenados
ao ostracismo ou assassinados. Deve questionar-se a legitimidade de um
governo e a capacidade de uma instituição religiosa como mediadora de
sanções sobrenaturais. Deve organizar-se greves e boicotagens destinadas
a enfraquecer o poder económico que sustente práticas aversivas. Reforça-
se os argumentos exortando as pessoas a agir, descrevendo resultados

30
A LIBERDADE

prováveis e rememorando casos bem sucedidos, para servirem de pro­


paganda, e assim sucessivamente.
Como é evidente, os supostos agentes de controlo não permanecem
inactivos. Os governos impossibilitam a fuga através da proibição de
viagens, aplicando severas punições ou encarcerando aqueles que lhe retiram
o seu apoio. Conservam as armas e outras fontes de poder longe das
mãos dos revolucionários. Quanto à literatura da liberdade, as suas obras
são destruídas e os que a transmitem oralmente são aprisionados ou mortos.
A luta pela liberdade deverá então ser intensificada para ter êxito.
Dificilmente poderá pôr-se em causa a importância desta literatura.
Sem ajuda ou orientação, as pessoas submetem-se de uma forma
extremamente surpreendente a condições aversivas. E isto acontece mesmo
nos casos em que tais condições fazem parte do ambiente natural. Darwin
observou, por exemplo, que os habitantes da Terra do Fogo17 não pareciam
esforçar-se por se proteger do frio, pois usavam um vestuário muito reduzido,
sem o adequarem às condições climatéricas. Neste contexto um dos aspectos
que mais nos impressionam é a frequente inexistência de luta pela liberdade
de um controlo intencional. Muitas pessoas submeteram-se, durante séculos,
às mais óbvias formas de controlo religioso, governamental e económico,
apenas lutando pela liberdade de um modo esporádico, se é que alguma
vez o fizeram. A literatura da liberdade contribuiu de uma forma essencial
para a eliminação de muitas práticas aversivas no governo, na religião,
na educação, na vida familiar e na produção de bens.
Contudo, não se descreve geralmente nestes termos as contribuições
da literatura da liberdade. Poderíamos aventar que algumas teorias
tradicionais definiriam a liberdade como a ausência de controlo aversivo;
porém, o que se salientou foi a maneira como esta condição se faz sentir18.
Poderemos aventar ainda que outras teorias tradicionais definiriam a
liberdade como o estado do indivíduo que procede sob controlo não-aversivo;
contudo, o que se pôs em relevo foi um estado de espírito associado
ao facto de se fazer o que se quer. Segundo John Stuart Mill19, «a liberdade
consiste em fazer o que se deseja». A literatura da liberdade tem
desempenhado um papel importante na modificação de certas práticas
(modificou-as sempre que produziu qualquer efeito); mesmo assim, a sua
missão foi definida como sendo a de modificar estados de espírito e
sentimentos. A liberdade é uma «posse». A pessoa destrói ou foge do
poder de um agente de controlo a fim de se sentir livre; uma vez que
o consiga e possa fazer o que deseja, não se recomenda qualquer conduta
posterior. E a literatura da liberdade não prescreve nenhuma acção, a

31
A LIBERDADE E DA DIGNIDADE

n ã o se r talvez uma vigilância incessante, para que o controlo não volte


a ser assumido.
0 sentimento de liberdade converte-se num guia de conduta pouco
digno de confiança logo que os supostos agentes de controlo recorrem
a medidas não-aversivas, como é provável que o façam para evitar os
problemas suscitados pela fuga ou ataque dos elementos controlados. Tais
m ed id as não são tão perceptíveis quanto as aversivas e actuam
provavelmente de um modo mais lento, mas não deixam de revestir-se
de vantagens óbvias que fomentam a sua aplicação. O trabalho produtivo,
por exemplo, foi em tempos o resultado de punições: o escravo trabalhava
para evitar as consequências que adviriam de não o fazer. Os salários,
por sua vez, exemplificam um princípio diferente: o indivíduo é pago
quando procede de um determinado modo, a fim de que continue a proceder
desse modo. Embora desde há muito se reconheça as vantagens das
remunerações, foi lenta a evolução dos sistemas de salários. Acredi­
tava-se no século XIX que uma sociedade industrial requeria uma mão-
-de-obra faminta: a eficácia dos salários só se faria sentir se o trabalhador
faminto pudesse trocá-los por alimentos. Tomado o trabalho menos aversivo
- pela redução das horas e melhoria das condições de trabalho - tem
sido possível obter mão-de-obra por motivação menos importante. Até
há bem pouco tempo, o ensino era quase inteiramente aversivo, uma vez
que o aluno, estudava para fugir às consequências da falta de estudo;
paulatinamente, porém, têm vindo a descobrir-se e utilizar-se técnicas
não-aversivas. Os pais hábeis aprendem que é preferível recompensar uma
criança pelo seu bom comportamento a puni-la por se portar mal. As
instituições religiosas abandonam a ameaça do fogo infernal, dando ênfase
ao amor de Deus, enquanto os governos renunciam às sanções aversivas
em favor de vários tipos de persuasão, como adiante veremos. Aquilo
a que o leigo dá o nome de remuneração (ou recompensa) é um «reforço
positivo»20, cujos efeitos têm sido exaustivamente estudados na análise
experimental do comportamento operante. Como esses efeitos tendem a
manifestar-se a longo prazo, não são reconhecidos com tanta facilidade
como os das contingências aversivas e, por conseguinte, tem-se protelado
a sua aplicação. Todavia, dispomos actualmente de técnicas tão poderosas
quanto as antigas técnicas aversivas21.
O comportamento gerado por reforços positivos que apenas retarde
consequências aversivas cria problemas ao defensor da liberdade. E isto
passa-se com elevada probabilidade quando se emprega o processo no
controlo intencional, no qual o agente de controlo geralmente beneficia

32
A LIBERDADE

em detrimento do controlado. Os chamados reforços positivos condicionados


podem muitas vezes ser utilizados com resultados aversivos retardados.
O dinheiro constitui um exemplo. Só é reforçante depois de haver sido
trocado por outros reforços, ainda que possa ser usado como reforço nos
casos em que tal troca é impossível. Uma nota falsa, um cheque sem
cobertura ou com pagamento suspenso ou ainda uma promessa não cumprida
são reforços condicionados, se bem que, de uma maneira geral, as suas
consequências aversivas sejam rapidamente descobertas. O arquétipo é
o «burlão». O contracontrolo actua prontamente: evitamos ou atacamos
aqueles que deste modo abusam dos reforços condicionados. Acontece,
porém, frequentemente passar despercebido o abuso de vários reforços
sociais. De uma maneira geral, as atenções pessoais, o apreço e a afeição
só são reforçantes quando apresentam qualquer relação com reforços que
já tenham dado provas, conquanto possam ser usados quando essa relação
não existe. São falsos o apreço e o afecto simulados que costumam ser
recomendados aos pais e professores para a solução de problemas de
comportamento, assim como o são igualmente a adulação, as palmadinhas
nas costas e muitos outros processos de «conquistar amigos».
Por outro lado, pode usar-se reforços genuínos de tal modo que se
revistam de consequências aversivas. Um governo pode tomar a vida mais
agradável para evitar a defecção popular, proporcionando pão e circo e
fomentando os desportos, o jogo, o consumo de bebidas alcoólicas e outras
drogas, bem como vários tipos de comportamento sexual, quando o efeito
desejado é conservar as pessoas ao alcance de sanções aversivas.
Apercebendo-se da disseminação da pornografia na França do seu tempo,
os irmãos Goncourt22 observavam: «A literatura pornográfica é útil a um
Baixo Império... doma-se um povo como se doma leões, pela masturbação.»
O reforço positivo genuíno pode igualmente prestar-se a abusos, dado
que a quantidade total dos reforços não é proporcional ao efeito exercido
sobre o comportamento. De um modo geral, o reforço é apenas intermitente,
pelo que o programa de reforço23 (schedule o f reinforcement) é mais
importante do que a quantidade recebida. Certos programas geram um
comportamento bastante satisfatório em troca de um pequeno reforço,
possibilidade essa que naturalmente não é desprezada pelos presumíveis
agentes de controlo. Consideremos dois exemplos de programas que são
facilmente aplicados com desvantagem para os indivíduos reforçados.
No sistema de incentivo conhecido como pagamento por peça, o
operário recebe determinada quantia por unidade executada. O sistema
parece garantir o equilíbrio entre os bens produzidos e o dinheiro recebido.

33
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

0 programa é atraente quer do ponto de vista da gerência, que pode


de antemão calcular o custo da mão-de-obra, quer do operário, que pode
controlar quanto ganha. Contudo, a aplicação deste programa de reforço
de «razão fixa» pode ser usado para obter um elevado índice de actividade
em troca de uma compensação muito pequena. Uma vez que induz o
operário a trabalhar em ritmo acelerado, este programa permite o
«alargamento» da razão, isto é, possibilita a exigência de maior quantidade
de trabalho por unidade de pagamento, sem se correr o risco de que
o operário deixe de trabalhar. A situação final - trabalho árduo e
remuneração muito baixa - pode tornar-se altamente aversiva.
No âmago de todos os sistemas de jogo deparamos com outro programa
cognato, denominado ratio variável. A empresa que explora o jogo paga
às pessoas por lhe darem dinheiro, isto é, paga-lhes quando fazem apostas.
Contudo, esse pagamento processa-se num tipo de programa que favorece
as apostas, ainda que, a longo prazo, a quantia paga seja menor do que
a investida nas apostas. A princípio, a ratio média pode ser favorável
ao apostador: ele «ganha». É possível, no entanto, manipular essa ratio
de modo que o apostador continue a jogar, mesmo depois de haver começado
a perder. O alargamento da ratio pode ser acidental (um período inicial
de boa sorte que piora irreversivelmente pode criar um jogador inveterado)
ou deliberadamente produzido por alguém que controle os lances. No
fim de contas, a «utilidade» é negativa: o jogador perde tudo.
Torna-se difícil lidar eficazmente com consequências aversivas
retardadas, já que não ocorrem num momento em que a fuga ou o ataque
sejam exequíveis (quando, por exemplo, se pode identificar ou alcançar
o agente de controlo). Contudo, o reforço imediato é positivo e ninguém
o põe em causa. O problema que os interessados na liberdade têm para
resolver é o da criação de consequências aversivas imediatas. Um dos
problemas clássicos diz respeito ao «autocontrolo»24. É o caso do indi­
víduo que come em excesso, adoece, mas sobrevive para voltar a
empanturrar-se. É forçoso que as iguarias, ou o comportamento que
suscitam, se tomem suficientemente aversivas para que a pessoa possa
«fugir delas», deixando de comê-las. (Poderíamos supor que a fuga só
fosse possível antes de comer, mas os romanos escapavam depois, utilizando
o vomitório.) Torna-se possível condicionar estímulos aversivos comuns,
o que se verifica, por exemplo, quando se diz ser um erro, pecado ou
gula comer em demasia. Pode ainda declarar-se ilegais e, nessa
conformidade, punir outros tipos de comportamento a suprimir. Quanto
mais retardadas são as consequências, maior se toma o problema. Foram

34
A LIBERDADE

necessárias muitas «maquinações» para que os efeitos a longo prazo do


consumo de cigarros acabassem por actuar sobre o comportamento. Um
passatempo fascinante, um desporto, um caso amoroso ou uma remuneração
elevada podem competir com actividades que, a longo prazo, provariam
ser mais reforçantes, mas o prazo é excessivamente longo para possibilitar
qualquer contracontrolo. É por esse motivo que esta forma de controlo
apenas é exercida (quando chega a sê-lo) por aqueles que sofrem
consequências aversivas, mas não estão sujeitos a reforços positivos.
Aprovam-se leis contra o jogo; os sindicatos opõem-se ao pagamento por
peça executada; proíbe-se o emprego de crianças em trabalhos assalariados
ou a prática remunerada de actos imorais; estas medidas, porém, podem
suscitar uma firme oposição por parte daqueles que visam proteger.
O jogador opõe-se às leis contra o jogo e o alcoólico rebela-se contra
qualquer tipo de proibição, do mesmo modo que uma criança ou uma
prostituta podem estar dispostas a trabalhar pelo que lhes é oferecido.
A literatura da liberdade jamais chegou a entrar em conflito com
as técnicas de controlo que não provocam fuga ou contra-ataque, uma
vez que tem abordado o problema em termos de estados de espírito e
sentimentos. No seu livro Sovereignty25, Bertrand de Jouvenel cita dois
expoentes dessa literatura. Segundo Leibnitz, «a liberdade consiste em
poder fazer-se o que se deseja» e, para Voltaire, «quando posso fazer
o que desejo, aí está a minha liberdade». Mas ambos os autores rematam
assim as suas concepções: (Leibnitz) « ... ou no poder desejar-se aquilo
que se pode obter»; (Voltaire, de modo mais franco) « ... mas não consigo
deixar de querer aquilo que desejo». Jouvenel relega tais comentários
para uma nota de fundo de página, afirmando que o poder de desejar
é uma questão de «liberdade interior», (a liberdade do homem interior!)
que se situa fora do «gambito da liberdade».
A pessoa quer uma coisa se age no sentido de obtê-la quando se
lhe depara uma ocasião. Se uma pessoa diz: «quero comer alguma coisa»,
presumivelmente comerá assim que dispuser de comida. Se ela diz: «quero
aquecer-me», presume-se que vá para um lugar quente quando puder.
Tais actos foram reforçados no passado por tudo quanto ela tenha desejado.
O que a pessoa sente ao ter a sensação de que quer algo depende das
circunstâncias. A comida só é reforçante num estado de privação e um a
pessoa com vontade de comer pode experimentar sintomas desse estado
como, por exemplo, dores de estômago. Presumimos que a pessoa com
vontade de se aquecer sinta frio. Também se pode sentir determinadas
condições associadas a uma grande probabilidade de resposta, a par de

35
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

aspectos da ocasião actual que se assemelhem a ocasiões passadas em


que o comportamento tenha sido reforçado. O querer não é, todavia, um
sentimento, como não é um sentimento o motivo que leva a pessoa a
agir para alcançar o que quer. Determinadas contingências suscitaram
a probabilidade de um dado comportamento e, ao mesmo tempo, criaram
condições que podem ser sentidas. A liberdade é uma questão de
contingências de reforço, e não dos sentimentos que as contingências
geram. Tal distinção torna-se particularmente importante quando as
contingências não suscitam fuga ou contra-ataque.
E fácil de exemplificar a incerteza que envolve o contracontrolo de
medidas não-aversivas. Na década dos anos 30, pareceu necessário reduzir
a produção agrícola (americana). Pelo Agricultural Adjustement Act, o
Secretário da Agricultura foi autorizado a efectuar «pagamentos de rendas
ou subsídios» a agricultores que concordassem em produzir menos (na
realidade, a indemnizar os agricultores pelo que poderiam ter ganho com
os alimentos que concordaram em não produzir). Teria sido inconstitucional
compeli-los a diminuir a produção, mas o governo alegou que tal medida
constituía somente um convite a fazê-lo. Entretanto, o Supremo Tribunal
reconheceu que a indução positiva podia ser tão irresistível quanto as
medidas aversivas, ao dispor que «o poder que confere ou denega benefícios
ilimitados é o mesmo que coage ou destrói»26. Posteriormente, porém,
aquele tribunal revogou a decisão ao afirmar que «sustentar que a motivação
ou a tentação equivalem à coerção é mergulhar o direito em dificuldades
sem fim»27. Estamos, pois, a analisar algumas dessas dificuldades.
Depara-se-nos a mesma questão quando um governo administra uma
lotaria com vista a aumentar a receita e, consequentemente, reduzir os
impostos. Em ambos os casos, o governo retira aos seus cidadãos a mesma
im portância em dinheiro, ainda que os contribuintes não sejam
necessariamente os mesmos. Ao administrar uma lotaria, esse governo
evita consequências indesejáveis, dado que as pessoas tanto podem
furtar-se ao agravamento tributário mudando-se como podem contra-atacar,
derrubando o governa que tenha lançado impostos extraordinários. A lotaria,
que segue um programa de reforço de razão variável e elástica, não se
reveste de qualquer desses efeitos. A única oposição provém daqueles
que normalmente se opõem ao jogo e que raramente jogam.
Um terceiro exemplo é constituído pela prática de convidar presos
a servirem como voluntários em experiências que envolvem um risco
possível (de novas drogas, por exemplo), oferecendo-se-lhes como
recompensa melhores condições de vida ou comutações de penas.

36
A LIBERDADE

Toda a gente protestaria se os prisioneiros fossem forçados a participar,


mas serão efectivamente livres enquanto reforçados positivamente, em es­
pecial quando as condições a melhorar ou as penas a comutar foram
impostas pelo estado?
Este problema reveste-se frequentes vezes de facetas mais subtis.
Argumenta-se, por exemplo, que as práticas anticoncepcionais e o aborto
não controlados não «conferem liberdade ilimitada nem para reproduzir
nem para não reproduzir, por custarem tempo e dinheiro». Os membros
pobres da sociedade deveriam ter uma compensação para que pudessem
usufruir de uma genuína «livre escolha». Caso uma compensação justa
obvie o tempo e o dinheiro necessários à prática do controlo da natalidade,
então as pessoas ficam verdadeiramente livres do controlo correspondente
à perda de tempo e dinheiro. Todavia, o facto de terem ou não filhos
dependerá ainda de outras condições que não foram especificadas. Se
uma nação reforça generosamente as práticas anticoncepcionais e o
aborto, em que medida serão livres os seus cidadãos para terem ou não
filhos?
A incerteza que rodeia o controlo positivo transparece em dois
comentários que aparecem amiúde na literatura da liberdade. Afirma-
-se que, conquanto o comportamento seja completamente determinado,
é preferível que o homem «se sinta livre» ou que «acredite que é livre».
Se tais palavras querem dizer que é melhor ser-se controlado por meios
que dêem origem a quaisquer consequências aversivas, podemos estar
de acordo; porém, se significam que é preferível ser-se controlado por
processos contra os quais ninguém se revolta, então não levam em conta
a possibilidade da existência de consequências aversivas retardadas.
Encontrámos um outro comentário que nos parece mais apropriado:
«É preferível ser um escravo consciente do que um escravo feliz».
O termo «escravo» aclara a natureza das consequências extremas a
considerar: são exploradoras, portanto aversivas. Aquilo de que o escravo
deve ser consciente é da sua miséria; além disso, um sistema de escravidão
tão bem concebido que não gera revolta constitui a verdadeira ameaça.
A literatura da liberdade tem pretendido tomar o homem «consciente»
das formas de controlo aversivo, mas, em consequência da sua escolha
de métodos, acabou por não libertar o escravo feliz.
Um dos grandes vultos da literatura da liberdade, Jean-Jacques
Rousseau, não temia o poder do reforço positivo. Na sua obra notável,
É mile19y deu os seguintes conselhos aos professores:

37
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

«Deixai-a (a criança) acreditar que é sempre ela que detém


o controlo, ainda que sejais vós professores quem realmente o
faz. Não existe subjugação tão perfeita como aquela que mantém
a aparência de liberdade, pois desse modo se apreende a própria
volição. Não estará à vossa mercê a criancinha, que nada sabe
e nada pode fazer, se nada tiver aprendido? Não podereis
superintender em tudo quanto faz parte do mundo que a cerca?
Não podereis influenciá-la como quiserdes? O seu trabalho, as
suas brincadeiras, os seus prazeres, as suas dores, não estará tudo
isso nas vossas mãos e sem que ela o saiba? Ela deverá, sem
dúvida, fazer apenas o que quer, mas deverá querer fazer somente
aquilo que quiserdes que ela faça; não deverá dar um passo que
não tenhais previsto; não deverá abrir a boca sem que saibais
o que ela irá dizer».

Rousseau pôde seguir esta linha de pensamento porque tinha uma


fé ilimitada na benevolência dos professores, que deviam pôr o seu controlo
absoluto ao serviço do bem dos alunos. Porém, como veremos adiante,
a benevolência não constitui qualquer garantia contra o mau uso do poder
e foram muito poucas as figuras que, na história da luta pela liberdade,
evidenciaram uma despreocupação semelhante à de Rousseau. Pelo
contrário, optaram pela posição diametralmente oposta de que todo o
controlo é condenável e, procedendo desse modo, exemplificam um processo
comportamental denominado generalização. Muitas instâncias de controlo
são aversivas, quer na sua natureza, quer nas suas consequências, pelo
que deverá evitar-se todas as formas de controlo. Os puritanos levaram
ainda mais longe a generalização, ao argumentarem que o reforço positivo
era, na maioria dos casos, condenável, fosse ou não um produto intencional,
precisamente porque criava por vezes problemas às pessoas.
A literatura da liberdade tem encorajado tanto a fuga como o ataque
a todos os agentes de controlo, apelidando de aversivo qualquer assomo
de controlo. Afirma-se que os manipuladores do comportamento humano
são homens malignos, necessariamente decididos a explorar os outros.
O controlo constitui a antítese perfeita da liberdade e, se a liberdade
é boa, o controlo terá de ser mau. Esta apreciação despreza as formas
de controlo que não se revestem em caso algum de consequências aversivas.
Muitas práticas sociais, essenciais ao bem-estar da espécie, implicam o
controlo de uma pessoa por outra, pelo que ninguém que tenha um mínimo
de interesse pelas realizações humanas poderá suprimir tais práticas.

38
A LIBERDADE

Veremos adiante que, para se manter a posição de que todo o controlo


é condenável, foi necessário disfarçar ou ocultar a natureza de práticas
vantajosas, dar preferência a práticas medíocres, apenas por serem
susceptíveis de disfarce ou ocultação, e (resultado genuinamente
extraordinário!) perpetuar medidas punitivas.
O problema consiste em libertar o homem, não de todo o controlo,
mas sim de certas espécies de controlo, e apenas poderá ser resolvido
se a nossa análise tomar em consideração todas as consequências. O que
as pessoas sentem em relação ao controlo, antes ou depois de a literatura
da liberdade haver actuado sobre os seus sentimentos, não conduz a
distinções proveitosas.
Se não se tivesse chegado à generalização injustificada de que todo
o controlo é condenável, lidaríamos com o ambiente social com a mesma
simplicidade com que actuamos sobre o não-social. Se bem que a tecnologia
tenha libertado o homem de certas características aversivas do ambiente,
não o libertou do ambiente. Como aceitamos o facto de que dependemos
do mundo que nos rodeia, limitamo-nos a alterar a natureza dessa
dependência. Do mesmo modo, para libertarmos tanto quanto possível
o ambiente social de estímulos aversivos, não precisamos de destruir esse
ambiente nem de fugir-lhe, mas sim de planeá-lo de novo.
A luta do homem pela liberdade não decorre de um desejo de ser
livre, mas de determinados processos comportamentais característicos do
organismo humano, cujo principal efeito é a evitação ou a fuga às
particularidades «aversivas» do ambiente. As tecnologias física e biológica
têm-se ocupado principalmente de estímulos aversivos naturais; a luta
pela liberdade visa os estímulos intencionais criados por outros indivíduos
e propõe meios de lhes fugir ou de enfraquecer ou destruir o seu poder.
Ainda que tenha conseguido reduzir os estímulos aversivos utilizados no
controlo intencional, a literatura da liberdade cometeu o erro de definir
a liberdade em termos de estados de alma ou sentimentos, pelo que se
tem revelado impotente para obstar eficazmente às técnicas de controlo
que não incitam à fuga ou à revolta, mas que continuam a ter consequências
aversivas. Tem sido forçada a estigmatizar todo o controlo como condenável
e a deformar muitas das vantagens a desfrutar de um ambiente social.
Não se encontra preparada para o passo seguinte, o qual não consistirá
em libertar o homem de todo o controlo, mas antes em analisar e modificar
os tipos de controlo a que se encontra exposto.

39
A D IG N ID A D E

A dignidade e o valor de uma pessoa parecem comprometidos quando


dispomos de indícios de que o seu comportamento pode ser atribuído
a circunstâncias externas. Com efeito, somos levados a não reconhecer
merecimento à pessoa cujas realizações se devem a forças sobre as quais
ela não exerce qualquer controlo. Dado que aceitamos tranquilamente
certas provas de que o homem não é livre, conformamo-nos com alguns
desses indícios. Ninguém fica chocado quando se atribui pormenores
importantes de obras de arte ou de obras literárias, de carreiras políticas
e descobertas científicas a «influências» exercidas respectivamente na vida
de artistas, escritores, estadistas e cientistas. Porém, à medida que uma
análise de comportamento descobre novos indícios, as realizações pelas
quais a pessoa é considerada parecem aproximar-se do ponto zero, pelo
que tanto os indícios como a própria ciência que os aponta são postos
em causa.
A liberdade é uma questão levantada pelas consequências aversivas
do comportamento, ao passo que a dignidade diz respeito ao reforçamento
positivo. Quando alguém age de um modo que consideramos reforçante,
aumentamos as probabilidades de que volte a agir do mesmo modo,
concedendo-lhe elogios ou louvores. Aplaudimos um artista precisamente
para induzi-lo a repetir a sua actuação, como o atestam as expressões
«Outra vez!» e «Bis!». Confirmamos o valor do comportamento de um
indivíduo dando-lhe pancadinhas nas costas, exclamando «Muito bem!»

41
ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

ou «Óptimo!» ou concedendo-lhe como «símbolo do nosso apreço» um


prémio, galardão ou honrarias. Alguns destes meios constituem reforços
por direito próprio - a pancadinha nas costas pode ser uma espécie de
carícia e os prémios incluem reforços já reconhecidos; outros são
condicionados, porquanto apenas reforçam por terem sido acompanhados
ou substituídos por reforços já reconhecidos como tal. O elogio e o apreço
são geralmente reforçantes porque quem elogia determinado indivíduo
ou dá apreço àquilo que este fez tende a reforçá-lo de outros modos.
(O reforço pode corresponder à atenuação de uma ameaça: aprovar um
projecto de uma dada resolução não é muitas vezes mais do que deixar
de se lhe opor.)
É possível que exista uma tendência natural para reforçarmos quem
nos reforça, assim como parece haver a de atacarmos quem nos ataca;
no entanto, tal comportamento é gerado por muitas contingências sociais.
Louvamos aqueles que trabalham em nosso benefício, uma vez que
somos reforçados enquanto continuam a fazê-lo. Quando louvamos uma
pessoa por algo que lhe diz respeito, estamos a identificar uma consequência
reforçante adicional. Atribuir a alguém a vitória em terminado jogo é
realçar o facto de que a vitória dependeu de algo que a pessoa fez, pelo
que a vitória pode então tornar-se mais reforçante para o vencedor.
O mérito reconhecido a uma dada pessoa está curiosamente relacionado
com a visibilidade das causas do seu comportamento. Assim, negamos
mérito quando essas causas são evidentes. Não costumamos, por exemplo,
louvar uma pessoa por actos reflexos: não aplaudimos ninguém por tossir,
espirrar ou vomitar, mesmo que os resultados sejam valiosos. Pela mesma
razão, dificilmente elogiamos um dado comportamento, mesmo vantajoso,
que seja claramente controlado de modo aversivo. Tal como observou
Montaigne30, «tudo quanto seja praticado por imposição alheia imputar-
-se-á mais ao mandante do que ao executante». Não elogiamos o indivíduo
abjecto, mesmo que desempenhe uma função importante.
Tão-pouco louvamos o comportamento que possamos atribuir a reforço
positivo evidente. Partilhamos do desprezo de lago pelo ...

«... lacaio submisso, sempre pronto a dobrar o joelho,


Que, no transporte da sua obsequiosa servidão,
Consome o tempo, como o asno do seu amo,
Em troca apenas de um punhado de forragem . ..»31

Encontrar-se sob excessivo controlo de um reforço sexual é estar

42
A DIGNIDADE

«loucamente apaixonado» ( infatuated do lat. infatuare) e a etimologia


do termo foi imortalizada por Kipling nestes versos: «Houve um tolo
que fez as suas orações ... / A um farrapo, um osso e uma madeixa
de cabelo De uma maneira geral, os membros das classes ociosas
. . . » 3 2

perderam status ao submeter-se ao reforço pecuniário, «tornando-se


negociantes». Entre aqueles que são reforçados pelo dinheiro, o mérito
varia normalmente consoante a conspicuidade do reforço: é menos louvável
trabalhar com um salário semanal do que com uma remuneração mensal,
mesmo que as quantias recebidas se equacionem. A perda de status pode
constituir explicação para o facto de a maior parte das profissões só
lentamente se ter submetido a um controlo económico. Durante muito
tempo, os professores não receberam qualquer rem uneração,
presumivelmente porque isso seria incompatível com a sua dignidade.
Do mesmo modo, o empréstimo de dinheiro a juros foi estigmatizado
durante séculos, tendo chegado a ser punido como usura. Não dispensamos
muitos elogios a um escritor por uma obra que apenas visa o sucesso
comercial nem ao artista que pinta um quadro obviamente destinado a
agradar ao público comprador. E, acima de tudo, não prezamos quem
conspicuamente trabalha na mira de elogios.
Não regateamos, todavia, elogios quando não existem razões óbvias
para um determinado comportamento. À semelhança do amor não
correspondido, também a arte, a música e a literatura não apreciadas
são mais dignas de encómios. Os nossos elogios são inexcedíveis quando
existem motivos bem claros para um comportamento diverso: por exemplo,
quando o amante é maltratado ou a arte, a música e a literatura são
reprimidas. Se enaltecemos quem coloca o dever acima do amor é porque
o controlo exercido pelo amor é facilmente identificado. Temos por hábito
louvar aqueles que vivem como celibatários, renunciam a fortunas próprias
ou permanecem leais a uma causa quando perseguidos, uma vez que existem
motivos óbvios para procederem de uma maneira diferente. Os nossos
elogios variam consoante a amplitude das condições antagónicas. Exaltamos
a lealdade segundo a intensidade da perseguição, a generosidade segundo
os sacrifícios que a acompanham e o celibato segundo a propensão que
o indivíduo manifesta para o comportamento sexual. Como observou La
Rochefoucauld33 «nenhum homem merece ser louvado pela sua bondade,
a não ser que tenha a força de carácter para ser perverso. Todas as outras
virtudes não são geralmente mais do que indolência ou abulia».
Quando o comportamento é explicitamente controlado por estímulos,
torna-se particularmente óbvia a relação inversa entre a nossa consideração

43
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

e a evidência das causas desse comportamento. A forma como consideramos


o indivíduo que maneja um aparelho complexo varia em função das
circunstâncias. Se é evidente que se limita a imitar outro operador, isto
é, que outrem «lhe mostra o que deve fazer», apenas o consideramos,
quando muito, por ser capaz de imitar e executar o comportamento em
causa. Se estiver a seguir instruções orais de outra pessoa «que lhe diz
o que deve fazer», consideramo-lo um pouco mais, pelo menos por entender
o que lhe é transmitido a ponto de seguir cabalmente as instruções. Se
estiver a seguir instruções escritas, consideramo-lo ainda mais por saber
ler. Contudo, só o consideraremos por «saber manejar o aparelho» se
o fizer sem qualquer orientação, ainda que tenha aprendido por imitação
ou pela observância de instruções orais ou escritas. Por último, a nossa
consideração atingirá o seu ponto culminante se foi capaz de descobrir
o manejo do aparelho sem necessidade de auxílio, uma vez que desse
modo não ficou em débito para com nenhum instrutor. O seu comportamento
foi inteiramente moldado pelas contingências relativamente obscuras
fornecidas pelo próprio aparelho, sobre as quais já não nos debruçamos.
Deparam-se-nos exemplos semelhantes no comportamento verbal.
Reforçamos as pessoas ao actuarem verbalmente, ou seja, pagamos-lhes
para que leiam para nós, realizem conferências ou actuem em filmes
e peças; usamos, porém, os elogios mais para reforçar as palavras proferidas
do que o acto de falarem. Suponhamos que uma pessoa emite uma
declaração importante. Será mínimo o seu mérito se ela se limitar a repetir
o que outrem acabou de dizer. Se estiver a ler o texto da declaração,
o seu mérito aumenta ligeiramente, em parte pelo facto de «saber ler».
Se essa pessoa estiver «a falar de cor», não descortinamos qualquer estímulo,
pelo que terá o mérito de «saber a declaração». Caso seja evidente que
a declaração é original, que parte alguma da mesma derivou do
comportamento verbal de outro indivíduo, o seu merecimento será
inexcedível.
A criança diligente recebe mais elogios do que aquela a quem temos
de lembrar os seus deveres, já que a advertência constitui uma característica
particularmente visível das contingências temporais. Reconhecemos maior
mérito a quem faz cálculos «de cabeça» do que a quem os faz no papel,
porquanto neste caso são evidentes os estímulos que controlam as sucessivas
fases das operações. Damos mais apreço ao físico teórico do que ao
experimental, uma vez que o comportamento do segundo depende
nitidamente da prática e observação laboratoriais. Concedemos mais elogios
aos que procedem bem sem necessidade de vigilância do que àqueles

44
A DIGNIDADE

que precisam de ser vigiados, do mesmo modo que apreciamos mais quem
fala uma língua naturalmente do que quem precisa de consultar regras
gramaticais.
Ao ocultarmos o controlo a fim de evitar a perda de prestígio ou
reivindicar mérito que não nos pertence, estamos a reconhecer essa curiosa
relação entre o mérito e a imperceptibilidade das condições controladoras.
Qualquer general faz o possível por conservar a sua dignidade quando
se faz transportar num jeep por terreno irregular, do mesmo modo que
o flautista continua a tocar mesmo que lhe passeie pelo rosto uma mosca.
Evitamos espirrar ou rir em momentos solenes e, depois de cometer um
erro crasso, procuramos agir como se não o tivéssemos cometido.
Submetemo-nos à dor sem titubear, comemos com afectação embora
estejamos com um apetite devorador, retiramos displicentemente os nossos
ganhos da mesa de jogo e corremos o risco de queimar-nos ao pousar
cuidadosamente uma travessa que escalda. (Ao cuspir um pedaço de batata
muito quente, Dr. Johnson pôs em causa o valor deste acto, exclamando
para os surpreendidos convivas: «Um tolo tê-lo-ia engolido!») Por outras
palavras, resistimos a quaisquer condições em que actuemos de modo
pouco digno.
Procuramos aumentar o nosso valor disfarçando ou encobrindo formas
de controlo. O locutor de televisão utiliza uma espécie de ponto que é
invisível para o espectador, do mesmo modo que o conferencista só sub-
-repticiamente relanceia os olhos pelas suas notas, pelo que ambos dão
a impressão de falar de memória ou improvisar quando, na realidade,
(o que é menos louvável) estão a ler. Tentamos fazer com que nos tenham
em melhor conta inventando motivos menos coercivos para a nossa conduta.
«Salvamos as aparências», atribuindo o nosso comportamento a causas
menos visíveis ou menos imperiosas - comportando-nos, por exemplo,
como se não nos encontrássemos sob uma ameaça. Para imitarmos São
Jerónimo, fazemos da necessidade uma virtude, agindo com prontidão
quando nos forçam a agir como se estivéssemos livres de qualquer coacção.
Encobrimos a coacção fazendo mais do que somos obrigados: «Se alguém
te obrigar a caminhar uma milha, acompanha-o em duas»34. A fim de
evitarmos o descrédito motivado por procedimento censurável, alegamos
motivos irresistíveis, como observou Choderlos de Laclos em As Ligações
Perigosas: «A mulher tem de ter um pretexto para entregar-se ao homem.
E qual deles será melhor do que parecer ceder à força?»
Aumentamos a consideração que nos é devida expondo-nos a situações
que habitualmente suscitam comportamento indigno, ao mesmo tempo

45
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

que nos eximimos a agir dessa forma. Buscamos condições que tenham
reforçado positivamente determinado comportamento para, em seguida,
nos abstermos de adoptá-lo. Cortejamos a tentação, do mesmo modo que
o santo exacerbava as virtudes da vida eremítica através da proximidade
voluntária de belas mulheres ou deliciosas iguarias. Continuamos a
mortificar-nos, à semelhança do que fazem os flageladores, se bem que
pudéssemos deixar de fazê-lo de um momento para o outro, ou a submeter-
-nos ao destino do mártir quando poderíamos evitá-lo.
Quando está em causa a consideração a tributar aos outros,
minimizamos a evidência das causas do seu comportamento. Preferimos
recorrer a admoestações suaves do que a castigos, já que os reforços
condicionados dão menos nas vistas do que os não-condicionados e a
evitação constitui um procedimento mais louvável do que a fuga. Preferimos
dar ao aluno uma pista a dizer-lhe toda a resposta, pela qual será
considerado caso a sugestão lhe baste. Limitamo-nos a sugerir ou aconselhar
de preferência a dar ordens. Damos o nosso beneplácito àqueles que,
inevitavelmente, vão proceder de forma repreensível, como sucedeu com
aquele bispo que, ao presidir a um jantar, declarou: «Podem fumar os
que tiverem de fazê-lo». Ao aceitar as explicações que nos dão sobre
o seu comportamento, por mais inverosímeis que sejam, estamos a ajudar
aqueles que procuram salvaguardar o seu prestígio. Pomos à prova o
merecimento de uma dada pessoa, proporcionando- lhe razões para que
proceda de modo pouco louvável. A paciente Griselda, figura feminina
da galeria chauceriana, provou a sua fidelidade ao marido, resistindo às
prodigiosas razões que este lhe deu para ser infiel.
Elogiar em proporção inversa à evidência das causas do comportamento
poderá constituir uma simples questão de boa administração. Como é
natural, somos criteriosos na utilização dos nossos recursos: não há o
mínimo interesse em louvarmos alguém por determinado acto que de
qualquer modo iria praticar e avaliamos as probabilidades pelos dados
de que dispomos. Sentimo-nos particularmente inclinados a louvar uma
dada pessoa quando não conhecemos outro meio de conseguir resultados
ou não existem outros motivos que a levem a agir de modo diferente.
Não dispensamos elogios que não produzam efeitos. Não desperdiçamos
encómios com actos reflexos, já que só muito dificilmente poderão ser
consolidados (se é que alguma vez chegam a sê-lo) através de reforço
operante. Não elogiamos as pessoas por actos casuais, e calamo-nos quando
o seu mérito é reconhecido por outrem. Não louvamos, por exemplo,
as pessoas que dão esmolas e o apregoam antecipadamente35, uma vez

46
A DIGNIDADE

que «isso é que é a recompensa». (Um judicioso emprego de recursos


torna-se amiúde mais perceptível no que diz respeito às punições. Não
desperdiçamos castigos que não sirvam para operar qualquer efeito, como
no caso de comportamento acidental ou proveniente de um atrasado ou
psicopata.)
A boa administração dos nossos recursos pode também explicar por
que não concedemos aplausos a quem obviamente só trabalha para obtê-
los. Um comportamento só é digno de elogios quando ultrapassa os limites
do meramente louvável. Se aqueles que trabalham por elogios só conseguem
produzir desta maneira, então o elogio está a ser malbaratado, podendo
ainda interferir nos efeitos de outros aspectos. O jogador que só busca
os aplausos, que «joga para a bancada», é menos susceptível às
contingências do jogo em que participa. Parecemos interessar-nos por
esse emprego criterioso quando qualificamos recompensas ou punições
de me- recidas ou imerecidas, de justas ou injustas. Preocupamo-nos com
o «merecimento» de uma dada pessoa ou, segundo o dicionário, com
«aquilo de que é legitimamente digna, ou a que tenha justamente direito,
ou que possa reivindicar legitimamente por acção praticada ou qualidades
demonstradas». Uma recompensa excessivamente generosa ultrapassa o
necessário para manter o comportamento e torna-se particularmente injusta,
quando nada se fez para justificá-la ou quando o comportamento merece
castigo. Uma punição exagerada constitui igualmente uma injustiça,
especialmente quando nada se fez para merecê-la ou quando se procedeu
bem. As consequências desproporcionais podem criar problemas - a boa
fortuna reforça muitas vezes a indolência, ao passo que o infortúnio não
poucas vezes vem munir a diligência. (Os reforços em questão não são
necessariamente administrados por outras pessoas. A boa ou má sorte
causam problemas quando imerecidas.)
Tentamos corrigir contingências imperfeitas quando alvitramos que
uma pessoa deveria apreciar a sua boa sorte. Queremos com isso dizer
que, daí em diante, ela deveria agir de maneira que todos os seus actos
fossem justamente reforçados pelo que já recebeu. Com efeito, sustentamos
que o homem só pode apreciar aquilo que se esforçou para conseguir.
(E significativa a etimologia do termo «apreciar»: apreciar o comportamento
de uma dada pessoa consiste em dar-lhe um preço. «Consideração» e
«respeito» são termos aparentados. «Consideramos» o comportamento,
no sentido em que aferimos a adequação do reforçamento. «Respeitamos»
por simples observação. Assim, respeitamos um adversário poderoso, no
sentido de que fazemos caso da sua força. O indivíduo conquista respeito

47
PARA ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

ao tornar-se notado e não respeitamos aqueles a quem «não prestamos


atenção». Não há dúvida de que reparamos naquilo que consideramos
ou apreciamos, mas isso não significa que, agindo desse modo, estejamos
necessariamente a atribuir-lhe qualquer valor.)
Na nossa preocupação com a dignidade ou o mérito existe algo
para além da administração racional ou da avaliação adequada de reforços.
Não só louvamos, elogiamos, consideramos ou aplaudimos uma dada pessoa,
como ainda a «admiramos», termo este que tem quase o sentido de
«maravilhar-se com» ou «deslumbrar-se com». Dado que reverenciamos
o inexplicável, não causa surpresa que a nossa admiração tenda a aumentar
à medida que diminui a nossa compreensão. E, claro, atribuímos ao homem
autónomo aquilo que não entendemos. Ao recitar um longo poema, o
antigo trovador devia dar a impressão de possesso (chegando mesmo a
invocar uma musa para que o inspirasse), assim como o actor que recita
falas decoradas parece possuído pela personagem que representa. Os deuses
falavam através de oráculos e sacerdotes que divulgavam os textos sagrados.
As ideias surgem milagrosamente nos processos mentais inconscientes
dos matemáticos intuitivos, que, por essa razão, são alvo de uma admiração
maior do que a consagrada aos matemáticos que empregam um método
racional. O génio criador36 de um artista, compositor ou escritor é uma
espécie de génio mitológico.
Damos a impressão de recorrer ao «miraculoso» quando admiramos
um certo comportamento, pois não dispomos de outro modo de forta­
lecê-lo. Podemos coagir soldados a arriscar a vida, ou pagar-lhes
generosamente para que o façam, sem que os admiremos em qualquer
destes casos; porém, nada parece existir, além da admiração, para induzir
um indivíduo a arriscar a vida quando não é «forçado», a isso ou não
existe qualquer recompensa óbvia. Torna-se clara uma diferença entre
exprimir admiração e elogiar quando admiramos um comportamento que
não possa ser influenciado por tal admiração. Podemos apelidar de
admirável uma realização cientíca, uma obra de arte, uma peça musical
ou um livro, mas de tal modo ou num momento em que não influenciemos
o cientista, o artista, o compositor ou o escritor, mesmo que os elogiássemos
e lhes oferecêssemos outras formas de apoio se estivessem ao nosso alcance.
Admiramos os dons genéticos - a beleza física, habilidade ou bravura
de uma raça, família ou indivíduo - mas sem o propósito de modificá-
-los. (A admiração pode acabar por modificar a herança genética através
da mudança dos espécimes de criação seleccionados, se bem que numa
escala de tempo muito diversa.)

48
A DIGNIDADE

O que podemos designar por luta pela dignidade apresenta muitas


características comuns à luta pela liberdade. A remoção de um reforço
positivo é aversiva, pelo que, quando se retira a um dado indivíduo
consideração ou admiração ou ainda oportunidade de ser elogiado ou
admirado, este reage em conformidade: ou foge daqueles que lhe causam
tal privação ou ataca-os com o propósito de diminuir a sua eficácia.
A literatura da dignidade identifica os infractores do mérito alheio, descreve
as suas práticas e sugere medidas a tomar. À semelhança da literatura
da liberdade, aquela não se ocupa desenvolvidamente da simples fuga,
provavelmente porque são dispensáveis instruções. Em seu lugar, a literatura
da dignidade concentra-se em enfraquecer aqueles que menosprezam os
outros. Raramente as suas medidas são tão violentas quanto as preconizadas
pela literatura da liberdade, talvez pelo facto de a desconsideração ser
de um modo geral menos aversiva do que a dor ou a morte. Na verdade,
tais medidas costumam ser meramente verbais: reagimos contra aqueles
que nos recusam elogios a que nos sentimos com direito e, para tanto,
protestamos, impugnamo-los ou condenamo-los e às suas práticas. (Damos
habitualmente o nome de ressentimento àquilo que uma pessoa sente quando
protesta e que, significativamente, se define como «a expressão de vivo
melindre» porém, não protestamos porque sentimos ressentimento.
Protestamos e sentimos ressentimento por termos sido privados da
oportunidade de ser admirados ou considerados.)
Grande parte da literatura da dignidade ocupa-se da justiça e adequação
de recompensas e punições. Tanto a liberdade como a dignidade estão
em jogo quando se analisa a conveniência de uma punição. Introduzem-
se nesta literatura práticas económicas com vista à determinação de um
preço ou salário justo. O primeiro protesto da criança - «Isso não é justo!»
- diz geralmente respeito à amplitude de uma recompensa ou punição.
Interessamo-nos neste ponto pela parte da literatura da dignidade que
protesta contra a usurpação do valor pessoal. A pessoa protesta
(e eventualmente sente-se indignada) quando desnecessariamente a
acotovelam, fazem cair ou empurram, quando a forçam a trabalhar com
ferramentas impróprias, fazem com que se tome ridícula com novidades
do género carnavalesco ou coagem a comportar-se de modo aviltante,
como numa prisão ou campo de concentração. Protesta e ressente-se com
qualquer acréscimo de controlo desnecessário. Ofendemo-la quando
pretendemos pagar-lhe serviços que desempenhou como um favor, dado
que subentendemos menos generosidade ou boa vontade da sua parte.
O aluno protesta quando lhe fornecemos uma resposta que sabia, porque

49
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

destruímos o elogio que merecia por sabê-la. Dar a um devoto uma prova
da existência de Deus é destruir a sua pretensão de fé pura. O místico
não vê com bons olhos a ortodoxia; o antinomismo defendia que proceder
bem em obediência a normas não constitui sinal de genuína bondade.
Não é com facilidade que demonstramos virtudes cívicas na presença
da polícia. Exigir a um cidadão que assine um juramento de lealdade
é destruir parte da lealdade que poderia de outro modo reivindicar, uma
vez que todo o comportamento leal subsequente poderá ser atribuído ao
juramento.
O artista põe objecções (e leva a mal) quando lhe dizem estar a
pintar um tipo de quadro que se vende bem. Do mesmo modo reage
o escritor a quem apontam produzir obras puramente comerciais ou ainda
o deputado a quem acusam de apoiar determinada medida com vista a
obter votos. É provável que protestemos (com ressentimento) se nos disserem
que estamos a imitar uma pessoa admirada ou que nos limitamos a repetir
o que ouvimos dizer ou lemos em livros. Opomo-nos (com ressentimento)
a qualquer referência de que as consequências aversivas a despeito das
quais procedemos bem não são importantes. Assim, não admitimos que
nos digam que a montanha que estamos prestes a escalar não é realmente
difícil, que o inimigo que vamos atacar não é efectivamente temível, que
o trabalho que temos em mãos não é verdadeiramente árduo ou, como
La Rochefoucauld, que procedemos bem porque não temos a força de
carácter necessária para proceder mal. Quando R W. Bridgman argumentava
que os cientistas sentem-se particularmente inclinados a admitir e corrigir
os seus erros visto que na ciência um erro não demora a ser descoberto,
pensou-se que ele contestava a virtude dos cientistas.
De longe em longe, os progressos verificados na tecnologia física
e biológica deram a impressão de ameaçar o valor ou a dignidade ao
reduzirem as oportunidades do homem receber louvores ou ser alvo de
admiração. A ciência médica restringiu a necessidade de se sofrer em
silêncio e, portanto, as oportunidades de se ser admirado por tal. As
edificações à prova de fogo não deixam lugar a bombeiros corajosos,
assim como barcos e aviões seguros tomam desnecessários marinheiros
e pilotos corajosos. Os modernos estábulos de gado leiteiro não precisam
dos recursos de um Hércules37. Quando se toma desnecessário qualquer
trabalho exaustivo e perigoso, as pessoas que se distinguiam pela sua
capacidade de trabalho e coragem parecem-nos simplesmente ridículas.
Neste ponto, a literatura da dignidade entra em conflito com a literatura
da liberdade, a qual favorece uma redução dos aspectos aversivos da vida

50
A DIGNIDADE

quotidiana, tornando o comportamento menos árduo, perigoso ou doloroso;


contudo, acontece por vezes que um certo interesse pelo valor pessoal
triunfa sobre a libertação de estímulos aversivos. É o caso, por exemplo,
quando o parto sem dor, independentemente da problemática médica, não
é tão prontamente aceite quanto a cirurgia dentária indolor. J. F. C. Fuller,
perito militar, escreveu: «Concede-se as mais altas recompensas militares
por bravura e não por inteligência, do mesmo modo que a introdução
de qualquer arma moderna que prejudique o valor individual suscita
oposição.» Há ainda quem se oponha a certos instrumentos destinados
a poupar trabalho humano, baseando-se no facto de que reduzem o valor
do produto. Presumimos que os serradores manuais se tenham oposto
à introdução de serrações e tenham-nas destruído porque sentiam os seus
empregos ameaçados, mas não deixa igualmente de ser significativo que
as serrações reduziram o «valor» do trabalho manual ao fazerem baixar
o valor das pranchas serradas. Neste conflito, porém, a liberdade geralmente
triunfa sobre a dignidade. As pessoas têm sido admiradas por se sujeitar
ao perigo, a trabalhos penosos e à dor, mas quase toda a gente está pronta
a renunciar aos aplausos que recebe em tais circunstâncias.
Uma tecnologia comportamental não é tão facilmente aceite quanto
a tecnologia física e biológica, dado que constitui uma ameaça para um
excessivo número de qualidades ocultas. A grande invenção que foi o
alfabeto possibilitou ao homem armazenar e transmitir registos do seu
comportamento verbal e ainda aprender com pequeno esforço aquilo que
outros aprenderam de modo mais árduo, isto é, colher ensinamentos de
livros e não de um contacto directo, possivelmente doloroso, com o mundo
real. Todavia, enquanto o homem não compreendeu as extraordinárias
vantagens de ser capaz de aprender através das experiências alheias, esteve
em causa a aparente destruição do mérito pessoal. No Fedro de Platão,
Thamus, rei egípcio, protesta, afirmando que quem aprende por livros
apenas tem uma amostra de sabedoria e não a própria sabedoria. Ler
simplesmente o que outrem escreveu é menos louvável do que dizer o
mesmo por razões ocultas. A pessoa que lê um livro parece ser omnisciente,
mas, segundo Thamus, ela «não sabe nada». E, no caso de se usar um
texto como auxiliar de memória, Thamus sustentava que esta cairia em
desuso. A leitura é menos louvável do que a recitação do que já se aprendeu.
E existem muitos outros processos de uma tecnologia comportamental
reduzir as oportunidades de sermos admirados, limitando as necessidades
de trabalho exaustivo, doloroso e perigoso. A régua de cálculo, a máquina
de calcular e o computador são inimigos da mente aritmética; neste caso,

51
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

porém, os ganhos conseguidos com a libertação de estímulos aversivos


poderão compensar qualquer perda de admiração.
Podemos ter a impressão de que não existem compensações quando
a dignidade ou o valor parecem ficar diminuídos em consequência de
uma análise científica de base, isto para além de quaisquer aplicações
tecnológicas. É da natureza do progresso científico que o homem autónomo
perca, uma a uma, as suas funções à medida que vamos compreendendo
melhor o papel do ambiente. As concepções científicas parecem aviltantes
porquanto nada é deixado para crédito do homem autónomo. E, quanto
à admiração no sentido de deslumbramento, o comportamento que
admiramos é aquele que não somos ainda capazes de explicar. A ciência
procura naturalmente dar uma explicação mais pormenorizada desse
comportamento: o seu propósito consiste na destruição do misterioso. Os
defensores da dignidade protestarão, mas, ao fazê-lo, estão a adiar uma
realização pela qual, para empregarmos termos tradicionais, o homem
receberia os maiores louvores e seria alvo da maior admiração.
Reconhecemos a dignidade ou o valor de um indivíduo quando o
louvamos pelo que fez. Os elogios que lhe dedicamos são inversamente
proporcionais à evidência das causas do seu comportamento. Se ignoramos
por que razão uma pessoa age de uma dada maneira, atribuímos o
comportamento à própria pessoa. Tentamos granjear um mérito maior
para nós próprios ocultando as razões por que procedemos de determinado
modo ou alegando ter actuado por motivos menos poderosos. Evitamos
privar os outros do reconhecimento a que têm direito, controlando-os
de uma forma imperceptível. Admiramos as pessoas na medida em que
somos incapazes de explicar o que fazem, pelo que neste caso o termo
«admirar» significa «maravilhar-se com». O que podemos designar por
literatura da dignidade tem por objecto a preservação da consideração
devida a alguém. Poderá opor-se aos progressos tecnológicos, inclusive
a uma tecnologia comportamental, uma vez que estes destroem
oportunidades de sermos admirados, e a uma análise básica, já que esta
oferece uma outra explicação de formas de comportamento pelas quais
o indivíduo fora anteriormente prezado. Deste modo, a literatura da
dignidade estorva ulteriores realizações humanas.

52
A PU N IÇ Ã O

Definimos por vezes a liberdade como a ausência de resistência ou


toihimento. Uma roda gira livremente se houver pouca fricção no rolamento,
um cavalo liberta-se do poste a que o amarraram, um homem solta-se
do galho a que ficou preso ao trepar a uma árvore. O toihimento físico
é uma situação óbvia, que parece da maior utilidade na definição da
liberdade; porém, no tocante a questões importantes não passa de uma
metáfora pouco adequada. É certo que se tolhe os movimentos dos
indivíduos por meio de cadeias, algemas, coletes-de-forças e muros de
prisões e de campos de concentração, mas aquilo a que podemos chamar
controlo comportamental - as limitações impostas mediante contingências
de reforço - constitui algo muito diferente.
À excepção dos casos em que é submetido a limitações de natureza
física, o indivíduo atinge o seu estado de menor liberdade ou dignidade
quando se encontra sob a ameaça de punição, o que, infelizmente, é
frequente acontecer à maior parte das pessoas. A punição38, muito comum
na natureza, ensina-nos muito. A criança corre desajeitadamente, cai e
magoa-se; toca numa abelha e sofre uma ferroada; tira um osso a um
cão e é mordida. Daí que aprenda a não reincidir. Foi sobretudo com
vista a evitar diversas formas de punição natural que o homem construiu
um mundo mais confortável e menos perigoso.
O term o punição circunscreve geralm ente contingências
intencionalmente criadas por outras pessoas, já que os resultados constituem
reforços para elas. (As contingências punitivas não devem ser confundidas
com controlo aversivo, mediante o qual se induz as pessoas a agir de

53
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

determinada maneira. A punição é utilizada a fim de induzir as pessoas


a não agir de determinado modo.) Recorre-se à punição quando se critica,
ridiculariza, censura ou ataca fisicamente outrem com vista a reprimir
um comportamento indesejável. É frequente definir-se o governo em termos
de poder punitivo, enquanto algumas religiões ensinam que a um
comportamento pecaminoso se seguirão horrendos castigos eternos.
Seria de esperar que as literaturas da liberdade e da dignidade se
opusessem a tais medidas e trabalhassem por um mundo onde a punição
fosse menos comum ou mesmo inexistente e, até certo ponto, é o que
têm feito. Todavia, são ainda usuais as sanções punitivas. Para nos
controlarmos reciprocamente, ainda recorremos com mais frequência à
repreensão ou à acusação do que ao elogio ou ao louvor; as forças armadas
e a polícia continuam a ser as armas mais poderosas do governo;
ocasionalmente, os devotos são ainda levados a pensar no fogo do inferno,
enquanto os professores puseram de lado as reguadas apenas para substituí­
das por formas mais subtis de punição. E o que constitui facto curioso
é que os defensores da liberdade e da dignidade não só não se opõem
a tais medidas como ainda são, em grande parte, responsáveis por
continuarem a vigorar entre nós. Só poderemos entender este estranho
estado de coisas se analisarmos o modo como os organismos reagem a
contingências punitivas.
As punições visam eliminar, de um dado conjunto, formas de
comportamento ineptas, perigosas ou de outro modo indesejáveis, partindo
para isso do pressuposto de que o indivíduo punido terá menos
probabilidades de reincidir. Infelizmente, a questão não é tão simples
como isso. Recompensas e castigos não diferem somente na orientação
das modificações que produzem. A criança que tenha sido severamente
castigada por práticas sexuais não se sente necessariamente menos inclinada
a persistir nessas práticas, do mesmo modo que o indivíduo preso por
agressão violenta não sentirá uma propensão menor para a violência. Os
comportamentos que foram sujeitos a punição ressurgem provavelmente
após a remoção das contingências punitivas.
O que parecem ser os desejados resultados da punição podem muitas
vezes explicar-se de outras formas.
A punição pode, por exemplo, gerar emoções incompatíveis. Um rapaz
severamente punido por práticas sexuais poderá perder a «disposição»
para continuar, e a fuga ao agente de punição é incompatível com a
acção de atacá-lo. Através do condicionamento, futuras ocasiões para
práticas sexuais ou agressões violentas poderão evocar um comportamento

54
A PUNIÇÃO

também incompatível. O efeito sentido será vergonha, culpa ou um


sentimento de pecado consoante a punição tenha sido aplicada pelo pai,
mãe ou companheiro, pelo governo ou pela igreja, res-pectivamente.
A condição aversiva suscitada pela punição (e sentida daquelas
diferentes maneiras) tem um efeito muito mais importante. Literalmente
falando, o indivíduo pode passar a agir «de molde a evitar ser punido»,
deixando de praticar actos passíveis de punição. Existem, todavia, outras
possibilidades, algumas das quais são desagregadoras e prejudiciais à
adaptação ou neuróticas, tendo sido por essa razão objecto de aturados
estudos. Afirma-se que os chamados «dinamismos» freudianos39 são
processos segundo os quais se manifestam desejos reprimidos que escapam
ao censor embora possam ser simplesmente interpretados como meios
de se evitar castigos. Deste modo, a pessoa pode agir de maneiras que
não serão punidas porque não podem ser vistas como, por exemplo, se
fantasiar ou sonhar. Pode sublimar desde que se entregue a um
comportamento de efeitos igualmente reforçantes, mas que não é punível.
Pode transferir (displace) um comportamento punível, orientando-o para
objectos que não sejam susceptíveis de infligir punição: pode, por exemplo,
agir agressivamente contra objectos, crianças ou animais pequenos. Pode
observar outras pessoas que pratiquem actos puníveis, assim como ler
a seu respeito, identificando-se com elas, ou ainda interpretar o
comportamento alheio como passível de punição, projectando assim as
suas próprias tendências. Pode ainda racionalizar o seu comportamento,
procurando, para si ou para os outros, motivos que o tomem impunível,
como sucede se alegar que castiga uma criança para beneficiá-la.
Existem meios mais eficazes de evitar punições. Podemos evitar
circunstâncias em que é provável agirmos de um modo punível. Aquele
indivíduo que já foi punido por embriaguez poderá «voltar costas à
tentação», mantendo-se afastado de lugares onde possa beber demais; o
estudante que tenha sido punido por não estudar poderá evitar situações
que o distraiam do seu trabalho. Outra estratégia consiste em modificar
o ambiente para que o comportamento tenha menos probabilidades de
ser punido. Quando consertamos uma escada partida a fim de diminuirmos
as nossas probabilidades de queda, estamos a reduzir contingências punitivas
naturais, do mesmo modo que enfraquecemos contingências punitivas sociais
ao associarmo-nos a amigos mais tolerantes.
Uma outra estratégia consiste em alterar as probabilidades de que
ocorra determinado comportamento passível de punição. O indivíduo que
é frequentemente castigado por se encolerizar facilmente poderá contar

55
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

até dez antes de passar à acção e, se a sua inclinação para a agressividade


baixar, durante a contagem, até um nível fácil de governar, evitará deste
modo a punição. Ou poderá reduzir as probabilidades de ocorrência desse
comportamento pela modificação do seu estado psicológico, controlando,
por exemplo, a agressividade por meio de um tranquilizante. Os homens
têm mesmo recorrido a meios cirúrgicos (castrando-se, por exemplo, ou
cortando a mão que ofende, em obediência à injunção bíblica)40. As
contingências punitivas podem também induzir o indivíduo a procurar
ou a construir ambientes onde tenha probabilidades de praticar actos que
substituam comportamentos passíveis de punição. Pode evitar complicações
mantendo-se ocupado com actividades impuníveis, obstinando-se em «jogar
pelo seguro». (Muitas formas de comportamento que se nos afiguram
irracionais, no sentido em que parecem não ter quaisquer consequências
positivamente reforçadoras, podem ter o efeito de substituir comportamentos
sujeitos a punição.) A pessoa pode mesmo recorrer ao fortalecimento de
contingências que a ensinam a deixar de praticar actos passíveis de punição:
pode, por exemplo, ingerir drogas sob cuja influência o fumo ou o álcool
produzem fortes consequências aversivas, como a náusea, ou submeter-
se a mais pesadas sanções éticas, religiosas ou governamentais.
A tudo isto podemos recorrer a fim de reduzir as probabilidades
de punição, ainda que também possamos ficar a dever tais estratégias
aos outros. A tecnologia física reduziu o número de ocasiões em que
somos punidos por agentes naturais, assim como o ambiente social tem
sido transformado de modo a diminuir as probabilidades de punição por
parte de outras pessoas. Consideremos agora algumas estratégias que nos
são familiares,
Um comportamento punível poderá ser minimizado se criarmos
circunstâncias em que a sua ocorrência seja improvável. O arquétipo para
este caso é o claustro. Num mundo onde apenas se dispõe de uma
alimentação simples e em quantidade moderada, ninguém está sujeito
à punição natural decorrente de comer em excesso, à punição social
representada pela reprovação ou à punição religiosa da gula como pecado
venial. Com a segregação dos sexos, tornam-se impossíveis práticas
heterossexuais, do mesmo modo que a ausência de material pornográfico
impossibilita o comportamento sexual substituto despertado pela
pornografia. A «Lei Seca» (americana) constituiu um esforço para controlar
o consumo do álcool removendo-o do ambiente. Continua a ser adoptada
em alguns estados e quase universalmente, na medida em que é proibida
a venda de álcool a menores ou a qualquer indivíduo a certas horas do

56
A PUNIÇÃO

dia ou em determinados dias. Os cuidados com os alcoólicos hospitalizados


implicam geralmente o controlo do abastecimento de bebidas alcoólicas.
Também é deste modo controlado o uso de outras drogas que originam
viciação. Através do confinamento em solitária, onde não pode agredir
ninguém, suprime-se um comportamento agressivo que, de outro modo,
seria incontrolável. Controla-se o roubo trancando tudo quanto tenha
probabilidades de ser roubado.
Outra possibilidade consiste em eliminar as contingências que reforçam
um comportamento sujeito a punição. Os acessos de ira esvaem-se muitas
vezes quando deixamos de lhes prestar atenção; o comportamento agressivo
enfraquece quando se tem a certeza de que nada se ganha com ele e
controla-se a gula tomando os alimentos menos saborosos. Outra técnica
consiste em organizar circunstâncias em que um dado comportamento
possa ocorrer sem que seja punido. São Paulo recomendava o casamento
como meio de reduzir formas repreensíveis de comportamento sexual,
assim como se tem recomendado a pornografia pelas mesmas razões.
A literatura e a arte permitem a «sublimação» de outros tipos de
comportamento problemático. Um comportamento punível é igualmente
susceptível de repressão através do reforçamento intenso de qualquer
comportamento que o substitua. Promove-se por vezes desportos com a
justificação de que criam um ambiente onde os jovens se encontram
demasiado ocupados para levantar problemas. Caso falhem todas estas
técnicas, pode ainda reduzir-se as probabilidades de ocorrência de um
comportamento punível através da alteração das condições psicológicas.
Pode usar-se hormonas para modificar o comportamento sexual, a cirurgia
(como é o caso da leucotomia ou lobotomia) para refrear a violência,
tranquilizantes para controlar a agressividade e drogas que reduzem o
apetite a fim de combater a gula.
Não há dúvida de que tais medidas são muitas vezes incompatíveis
entre si, além de que podem revestir-se de consequências imprevisíveis.
Ficou provado durante a «Lei Seca» que é impossível controlar o
abastecimento de álcool e a separação dos sexos pode conduzir a um
indesejável homossexualismo. A excessiva repressão de um dado
comportamento que, caso contrário, seria intensamente reforçado poderá
suscitar rebelião em relação a quem pune. Todavia, tais problemas são,
em princípio, solúveis e deveria ser possível construir um mundo onde
raramente ou nunca ocorressem comportamento passíveis de punição.
Tentamos criar um mundo como esse para aqueles que são incapazes,
por si próprios, de resolver o problema da punição, como os bebés, os

57
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

atrasados ou os psicopatas. E, se tal projecto pudesse ser extensível a


toda a gente, muito tempo e energia seriam poupados.

Os defensores da liberdade e da dignidade opõem-se a esta maneira


de resolver o problema da punição, pois são de opinião de que um mundo
assim só produz bondade automática. T. H. Huxley nada via de errado
nesse projecto: «Se um alto poder concordasse em fazer-me pensar sempre
no que é verdadeiro e fazer sempre o que é justo, com a condição de
me transformar numa espécie de relógio a que se desse corda todas as
manhãs antes de sair da cama, eu aceitaria sem demora tal oferta.»41
Todavia, Joseph Wood Krutch refere-se-lhe como a posição quase
inacreditável de um «protomoderno», partilhando do desprezo de T. S.
Eliot pelos «sistemas tão perfeitos que ninguém precisará de ser bom.»42
O problema é que, quando castigamos alguém por haver procedido
mal, deixamos que lhe caiba a descoberta do modo como proceder bem,
pelo que passará então a ter mérito pelo seu comportamento. Contudo,
se o indivíduo proceder bem pelas razões que acabamos de examinar,
é o ambiente que se toma credor de louvores. Está, portanto, em causa
um dos atributos do homem autónomo: o homem só procederá bem porque
é bom. Sob um sistema «perfeito», ninguém precisa de ser bom.
É claro que existem razões válidas para que prezemos menos uma
pessoa que seja apenas automaticamente boa, já que o seu mérito é menor.
Num mundo em que não precise de trabalhar aturadamente, ela não
aprenderá a suportar trabalho árduo. Num mundo em que a ciência médica
tenha aliviado o sofrimento, não aprenderá a receber estímulos dolorosos.
Num mundo que promova a bondade automática, não aprenderá a associar
as punições ao comportamento mau. A fim de preparar as pessoas para
um mundo em que não sejam automaticamente boas, precisamos de uma
instrução adequada, sem que isso implique a criação de um ambiente
permanentemente punitivo; também não existem razões que impeçam a
evolução em direcção a um mundo onde as pessoas sejam automaticamente
boas. O problema reside, sim, em induzir as pessoas não a serem boas,
mas a procederem bem.
O problema volta a ser a visibilidade do controlo. A medida que
as contingências ambientais se tomam mais difíceis de apreender, a bondade
do homem autónomo torna-se mais aparente e existem várias razões para
que o controlo punitivo se tome menos evidente. Uma maneira simples
de evitar a punição consiste em evitar agentes de punição: as práticas
sexuais tornam-se sub-reptícias e um indivíduo violento só ataca quando

58
A PUNIÇÃO

a polícia não estiver perto. O agente punitivo pode, no entanto, obviar


tais situações pela dissimulação. É frequente os pais espiarem os filhos,
enquanto os polícias vestem à paisana, pelo que nestes casos a fuga assume
formas mais subtis. Se os automobilistas só obedecem às leis de limitação
de velocidade sob vigilância policial, a velocidade pode ser verificada
por radar; porém, os automobilistas podem instalar um instrumento
electrónico que lhes assinale o funcionamento do radar. Um estado que
transforme todos os cidadãos em espiões ou uma religião que defenda
o conceito de um Deus que tudo vê tomam a fuga ao agente punitivo
praticamente impossível, pelo que as contingências punitivas atingem desse
modo a sua máxima eficácia. As pessoas procedem bem mesmo que não
haja qualquer supervisão visível. Contudo, a ausência de um supervisor
é facilmente mal interpretada. É corrente afirmar-se que o controlo se
torna interiorizado, o que é somente uma nova maneira de dizer que
passa do ambiente para o homem autónomo; o que sucede, porém, é
que se torna menos visível. Um tipo de controlo dito interiorizado é
representado pela consciência judaico-cristã e pelo superego freudiano.
Estes agentes interiores falam numa voz fraca e inaudível, ditando à pessoa
o que fazer e, em especial, o que não fazer. As suas palavras são adquiridas
na comunidade. A consciência e o superego são os delegados da sociedade,
sendo as suas origens externas reconhecidas tanto por teólogos como
por psicanalistas. Enquanto o velho Adão ou o id falam a favor do bem
pessoal, determinado pela constituição genética do homem, a consciência
ou o superego falam em favor do que é bom para os outros.
A consciência ou superego não resulta simplesmente da ocultação
em relação a agentes punitivos, já que representa uma série de práticas
auxiliares que tomam as sanções punitivas mais eficazes. Ajudamos uma
pessoa a evitar ser punida, referindo-lhe contingências punitivas; adver­
timo-la para que não proceda de molde a ter probabilidades de ser punida
e aconselhamo-la a proceder de modos que não serão punidos. São em
grande número as leis, religiosas e seculares, que têm tais consequências:
descrevem as contingências nas quais se pune certas formas de
comportamento e outras não. As máximas, provérbios e outras formas
da sabedoria popular fornecem-nos geralmente normas úteis. «Olha antes
de saltar» é um conselho derivado da análise de certos tipos de
contingências: quando salta sem olhar, a pessoa tem mais probabilidades
de ser punida do que se olhar e, possivelmente, não saltar ou se saltar
com mais perícia. «Não roubarás» é uma injunção decorrente de
contingências sociais: a sociedade pune quem rouba.

59
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

Ao respeitar as regras que outros formularam a partir de contingências


punitivas dos ambientes natural e social, a pessoa pode muitas vezes evitar
ou escapar a punições. Tanto as normas como as contingências que suscitam
um comportamento de observância a normas podem ser evidentes, embora
possam igualmente ser aprendidas e recordadas posteriormente, pelo que
tal processo se toma então invisível. O indivíduo diz a si próprio o que
fazer e o que não fazer, logo é fácil passar-lhe despercebido o facto de
que tal comportamento foi-lhe ensinado pela comunidade verbal. Quando
a pessoa extrai, de uma análise das contingências punitivas, as suas próprias
regras, há maiores probabilidades de a louvarmos pelo bom comportamento
que se seguir, mas o que aconteceu foi que os estádios visíveis mergulharam
já na história.
Quando as contingências punitivas fazem simplesmente parte do
ambiente não-social, torna-se razoavelmente evidente o que decorre à nossa
volta. Não permitimos que o indivíduo aprenda a conduzir um automóvel
expondo-o a sérias contingências punitivas: não o mandamos sem
preparação para uma auto-estrada movimentada, considerando-o responsável
por tudo quanto suceder. Instruímo-lo a fim de que guie com segurança
e perícia. Ensinamos-lhe regras. Fazemos com que comece a conduzir
num aparelho de treino em que as contingências punitivas são reduzidas
ao mínimo ou totalmente inexistentes. É então que o levamos para uma
auto-estrada relativamente segura. Se formos bem sucedidos, podemos
habilitar um condutor seguro e destro sem recorrer a punições, se bem
que as circunstâncias nas quais irá conduzir durante o resto da vida sejam
altamente punitivas. Ainda que não tenhamos uma garantia, diremos
provavelmente que ele adquiriu os «conhecimentos» de que precisa para
conduzir com segurança ou então que é um «bom volante» e não uma
pessoa que conduz bem. Quando as circunstâncias são de natureza social,
e particularmente quando decorrem de agentes religiosos, há muito mais
probabilidades de inferirmos um «conhecimento interior do que é recto»,
ou uma bondade interior.
A bondade a que se atribui o bom comportamento constitui parte
do valor ou da dignidade da pessoa e denota a mesma relação inversa
com a visibilidade do controlo. Atribuímos a máxima bondade às pessoas
que nunca procederam mal e, consequentemente, nunca foram punidas,
àquelas que procedem bem sem necessidade de seguir regras. Jesus costuma
ser retratado como uma pessoa assim. Inferimos uma bondade menor
naqueles que procedem bem apenas porque foram punidos. O pecador
regenerado poderá assemelhar-se a um indivíduo naturalmente santo, mas

60
A PUNIÇÃO

o facto de haver estado exposto a contingências punitivas limita, até certo


ponto, a sua bondade natural. Próximo do pecador regenerado ficam aqueles
indivíduos que analisaram as contingências punitivas presentes nos seus
ambientes e delas extraíram normas a que se submetem a fim de evitar
punições. Atribuímos uma bondade menor àqueles que seguem regras
formuladas por outros e uma bondade ínfima caso sejam evidentes as
normas e as contingências que enquadram o comportamento em questão.
Não atribuímos nenhuma bondade àqueles que só procedem bem sob a
fiscalização constante de um agente punitivo como, por exemplo, a polícia.
A semelhança de outros aspectos da dignidade ou do valor, a bondade
aumenta à medida que o controlo visível enfraquece e, naturalmente, o
mesmo acontece com a liberdade. Resulta daí que a bondade e a liberdade
tendem a associar-se. John Stuart Mill43 sustentava que a única bondade
digna desse nome era a evidenciada por quem procedesse bem mesmo
que lhe fosse possível proceder mal e que somente tal pessoa era livre.
Mill não advogava o encerramento das casas de prostituição: deveriam
permanecer abertas para que as pessoas pudessem atingir a liberdade e
a dignidade através de autocontrolo. Todavia, tal argumento apenas será
convincente se não fizermos caso das razões por que as pessoas procedem
bem quando lhes é aparentemente possível proceder mal. Uma coisa é
proibir o jogo de dados e de cartas, proibir a venda de álcool e encerrar
os prostíbulos; outra coisa é tornar o jogo, o álcool e a prostituição aversivos,
punindo o comportamento que evocam - chamando-lhes tentações
diabólicas, narrando o trágico destino dos alcoólicos ou descrevendo as
doenças venéreas transmitidas por prostitutas. O efeito pode ser o mesmo:
as pessoas podem não jogar, beber ou procurar prostitutas, mas o facto
de não poderem fazê-lo num ambiente e de o não fazerem no outro é
uma questão de técnicas de controlo e não de bondade ou liberdade. Num
dos ambientes, são claras as razões para se proceder bem; no outro, são
facilmente negligenciadas ou esquecidas.
Afirma-se por vezes que as crianças não estão prontas para a liberdade
ou autocontrolo enquanto não atingem a idade da razão e que, entrementes,
devem ser ou mantidas num ambiente seguro ou castigadas. Se a punição
pode ser adiada até que atinjam a idade da razão, poderá também ser
totalmente dispensada. No entanto, isto quer simplesmente dizer que os
ambientes seguros e a punição constituem as únicas medidas disponíveis
enquanto a criança não estiver exposta a contingências que lhe proporcionem
outras razões para proceder bem. Torna-se muitas vezes impossível criar
contingências apropriadas para sociedades primitivas e verifica-se a mesma

61
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

confusão entre a visibilidade e o controlo interiorizado quando se alega


que os povos primitivos não estão preparados para a liberdade. Se algo
existe para que não estejam preparados, é para um tipo de controlo que
exige um determinado registo diacrónico de contingências.

Muitas das questões do controlo punitivo são levantadas pelo conceito


da responsabilidade, atributo esse que, segundo se crê, distingue o homem
dos outros animais. A pessoa responsável é uma pessoa «merecedora».
Consideramo-la quando procede bem a fim de que continue a fazê-lo;
empregamos, todavia, o termo com mais probabilidades quando o que
ela merece é uma punição. Responsabilizamos um indivíduo pela sua
conduta, no sentido em que ele pode ser justa ou legitimamente punido.
Volta aqui a deparar-se-nos uma questão de boa administração, de uso
judicioso de reforços, de «ajustar o castigo ao crime». Uma punição que
exceda o necessário torna-se dispendiosa e poderá suprimir um compor­
tamento desejável, ao passo que uma punição insuficiente é um desperdício
se não produzir qualquer efeito.
O apuramento legal da responsabilidade (e da justiça) interessa-se
em parte por factos. Procedeu a pessoa realmente de determinado modo?
As circunstâncias foram tais que o comportamento é punível perante a
lei? Nesse caso, que leis são invocadas e quais são as punições prescritas?
Outras questões, porém, parecem dizer respeito ao homem interior.
O acto foi intencional ou premeditado? Foi cometido num acesso de ira?
A pessoa sabia distinguir o bem do mal? Estava cônscio das possíveis
consequências do seu acto? Todas estas interrogações acerca de propósitos,
sentimentos, conhecimentos e outros aspectos podem ser feitas, mas em
função do ambiente a que a pessoa tenha estado exposta. O que a pessoa
«tenciona fazer» depende daquilo que fez no passado e do que então
aconteceu. A pessoa não age porque se «sente furiosa»; age e sente-se
encolerizada por uma razão comum, não especificada. Se ela merece ou
não ser punida quando todos estes quesitos são tomados em consideração
é uma questão de resultados prováveis: caso seja punida, agirá de um
modo diferente quando voltarem a ocorrer circunstâncias análogas? Existe
uma tendência comum para se substituir a «c o n t a b i l i d a d e » pela
responsabilidade, mas não é tão provável que aquela seja considerada
como uma característica do homem autónomo, dado que explicitamente
alude a condições que lhe são exteriores.
A asserção de que «só o homem livre pode ser responsável pela
sua conduta» reveste-se de dois significados que dependem do facto de

62
A PUNIÇÃO

estarmos interessados na liberdade ou na responsabilidade. Se queremos


dizer que as pessoas são responsáveis, não devemos fazer nada que
transgrida a sua liberdade, já que, se não são livres para agir, não podem
ser responsabilizadas pelos seus actos. Se queremos dizer que são livres,
devemos responsabilizá-las pelo seu comportamento, mantendo
contingências punitivas, uma vez que, se procedessem do mesmo modo
em circunstâncias não-punitivas evidentes, seria óbvio que não eram livres.
Qualquer passo na direcção de um ambiente em que os homens sejam
automaticamente bons ameaça a responsabilidade. No controlo do
alcoolismo, por exemplo, a prática tradicional é punitiva. A embriaguez
é estigmatizada e são-lhe impostas sanções éticas pela sociedade (o indivíduo
sente, nestas circunstâncias, vergonha), ou é classificada de ilícita e sujeita
a sanções legais (a pessoa experimenta, neste caso, um sentimento de
culpa), ou é encarada como pecado e punida por instituições religiosas
(a pessoa experimenta, nestas circunstâncias, um sentimento de pecado).
Dado que tais práticas não têm sido marcadas por um êxito assinalável
têm-se procurado outras medidas de controlo. Certos dados médicos dão
a impressão de ser pertinentes. As pessoas diferem entre si quanto à
tolerância e à viciação ao álcool. Depois de se tomar um alcoólico, o
indivíduo pode beber para aliviar instantes sintomas de privação que nem
sempre são levados em conta por quem nunca os experimentou. Os aspectos
médicos põem a questão da responsabilidade: em que medida é justo
punir um alcoólico? De um ponto de vista de administração, será lícito
esperar que a punição seja eficaz contra as contingências positivas
contrárias? Não seria preferível tratar do problema médico? (A nossa cultura
difere da dos utópicos de Erewhon, de Samuel Butler, por não aplicar
quaisquer sanções punitivas à doença.) À medida que a responsabilidade
diminui, afrouxa a punição.
A delinquência juvenil constitui outro exemplo. Segundo o ponto
de vista tradicional, o jovem é responsável pelo cumprimento da lei e
pode ser legitimamente punido se a desrespeitar; é, porém, difícil manter
em vigor contingências punitivas eficazes, pelo que se tem procurado
outras soluções. Parece pertinente o facto de haver provas de que a
delinquência é mais comum em certos tipos de áreas residências e entre
camadas mais pobres da população. É mais provável que o indivíduo
roube se pouco ou nada tem de seu; se a sua educação o não preparou
para conseguir e conservar um emprego que lhe permita comprar aquilo
de que precisa; se não houver empregos disponíveis; se não lhe ensinaram
a respeitar a lei ou se vê, amiúde, outros transgredirem a lei impunemente.

63
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

Em tais circunstâncias, um comportamento delinquente é poderosamente


reforçado e não é provável que sanções legais o suprimam. As con­
tingências são, por conseguinte, relaxadas: o delinquente poderá ser
meramente advertido ou ficar com a pena suspensa. A responsabilidadee
a punição declinam simultaneamente.
O verdadeiro problema reside na eficácia das técnicas de controlo.
Não é aumentando o sentido das responsabilidades que resolveremos os
problemas do alcoolismo e da delinquência juvenil. O ambiente é que
é «responsável» pelo comportamento censurável e é o ambiente, e não
qualquer atributo do indivíduo, que tem de sofrer modificações.
Reconhecemos isso quando nos referimos às contingências punitivas do
ambiente natural. Se bem que a punição para quem se precipita de cabeça
contra uma parede seja uma pancada no crânio, não consideramos o
indivíduo responsável por não chocar com as paredes nem dizemos que
a natureza o considera. A natureza pune-o simplesmente quando ele corre
de encontro a uma parede. Quando tomamos o mundo menos punitivo
ou ensinamos as pessoas a evitar punições naturais dando-lhes, por exemplo,
normas a que se ater, não estamos a destruir a responsabilidade ou a
ameaçar qualquer outra qualidade oculta: estamos simplesmente a tomar
o mundo mais seguro.
O conceito da responsabilidade revela-se particularmente vulnerável
quando fazemos remontar o comportamento a determinantes genéticos.
Podemos admirar a beleza, a graça e a sensibilidade, mas não culpamos
uma pessoa por ser feia, convulsiva ou daltônica. No entanto, certas formas
menos perceptíveis da constituição genética causam problemas. Presumimos
que os indivíduos diferem, como sucede com as espécies, no modo como
respondem agressivamente ou são reforçados quando a sua agressividade
causa dano a outrem, ou ainda no modo como se entregam a práticas
sexuais ou são afectados pelo reforçamento sexual. Serão, por conseguinte,
igualmente responsáveis pelo controlo do seu comportamento agressivo
ou sexual e será justo puni-los pela mesma bitola? Se não punimos uma
pessoa por ter um pé torto, deveremos puni-la por ser irascível ou altamente
susceptível ao reforço sexual? O problema foi recentemente levantado pela
possibilidade de muitos criminosos apresentarem anomalias nos seus
cromossomas. Como é óbvio, o conceito da responsabilidade oferece-nos
uma ajuda limitada. O problema centra-se na controlabilidade. Não podemos
modificar defeitos genéticos através da punição; só podemos agir por meio
de medidas genéticas que actuam numa escala de tempo muito mais vasta.
O que tem de ser mudado não é a responsabilidade do homem autónomo,

64
A PUNIÇÃO

mas sim as condições, ambientais ou genéticas, em função das quais se


desenha o comportamento humano.
Embora as pessoas levantem objecções quando uma análise científica
faz remontar o seu comportamento a condições externas, o que as priva
de mérito e da oportunidade de serem admiradas, raramente se opõem
quando a mesma análise as absolve da culpa. O tosco ambientalista
dos séculos XVIII e XIX foi rapidamente posto ao serviço de propósitos
exonerarmos e justificativos. G e r e Eliot meteu-o a ridículo quando,
no romance Adam Bede, põe as seguintes palavras na boca do reitor:
«Ora, um homem não pode realmente roubar uma nota, a menos que
ela esteja convenientemente ao seu alcance; contudo, não nos levará a
crer tratar-se de um homem honesto lá porque começa a gritar que a
nota lhe caiu aos pés». O alcoólico é o primeiro a declarar que é um
doente, do mesmo modo que o delinquente juvenil alega ser vítima de
um meio desfavorável. Logo, se não são responsáveis, não podem ser
legitimamente punidos.
A demissão é em certo sentido o anverso da responsabilidade. Aqueles
que se propõem fazer algo em relação ao comportamento humano (quaisquer
que sejam as suas razões) passam a fazer parte do ambiente que assume a
responsabilidade. Segundo o ponto de vista antigo, era o estudante que
fracassava, a criança que procedia mal, o cidadão que transgredia a lei e os
pobres que eram pobres por serem indolentes; agora, porém, é frequente
dizer-se que não há estudantes lentos, mas apenas professores medíocres;
que não existem crianças ruins, mas somente maus pais; que não há
delinquência, excepto por parte das instituições que fazem cumprir a lei e
que não há homens indolentes, mas apenas incentivos inadequados. Contudo,
como é natural, vemo-nos na obrigação de indagar porque são maus os
professores, os pais, os governantes e os empresários. O erro, como veremos
adiante, consiste em colocar a responsabilidade num determinado ponto, em
supor que a sequência causal se inicia algures.
A Rússia comunista constituiu um interessante caso histórico para a
relação entre o ambientalismo e a responsabilidade pessoal, conforme
salientou Raymond Bauer44 . Imediatamente após a revolução, o governo
pôde alegar que, se muitos russos não tinham recebido instrução, eram
improdutivos, mal comportados e infelizes, era porque o seu ambiente os
havia feito assim. Aproveitando os trabalhos de Pavlov sobre os reflexos
condicionados, o novo governo propôs-se transformar o ambiente, pelo que
tudo se rectificaria. Porém, nos princípios da década de trinta, depois de o
governo ter posto em prática as suas medidas, muitos russos não acusavam

65
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

ainda qualquer melhoria evidente na sua instrução e produtividade nem eram


nitidamente mais bem comportados ou mais felizes. A orientação oficial foi
então alterada e Pavlov caiu em desgraça. Em seu lugar foi introduzida uma
psicologia intensamente «proposital» (purposive): cabia ao cidadão russo
instruir-se, trabalhar produtivamente, comportar-se bem e ser feliz. Competia
ao educador russo assegurar-se de que o cidadão arcaria com tal
responsabilidade, sem que para isso fosse condicionado. Os êxitos conseguidos
durante a Segunda Grande Guerra restauraram, no entanto, a confiança no
princípio anterior, pois o governo acabara por ser bem sucedido. Podia não
ser ainda inteiramente eficaz, mas prosseguia na direcção certa. Pavlov voltou
a ser aprovado.
A demissão do agente de controlo raras vezes se encontra tão facilmente
documentada, ainda que seja provável que algo semelhante esteja na origem
do persistente uso de métodos punitivos. Os ataques que visam a bondade
automática podem demonstrar preocupação com o homem autónomo, mas
as contingências práticas são mais reveladoras. As literaturas da liberdade e
da dignidade converteram o controlo do comportamento humano numa ofensa
punível, por responsabilizarem em larga medida o agente de controlo pelos
resultados aversivos. O agente de controlo poderá fugir à responsabilidade
se conseguir manter a posição de que é o próprio indivíduo que detém o
controlo. O professor que louva o aluno por aprender também pode culpá-lo
de não aprender; os pais que elogiam os filhos pelas suas realizações podem
igualmente censurá-los pelos seus erros. Nem o professor nem os pais podem
ser tomados como responsáveis.
As origens genéticas do com portam ento humano tornam -se
particularmente úteis à demissão. Se certas raças são menos inteligentes do
que outras, o professor não pode ser censurado por não as ensinar tão bem.
Se certos homens já nascem criminosos, a lei não deixará nunca de ser
transgredida, por mais perfeitos que sejam os agentes que fazem respeitá-la.
Se os homens fazem a guerra porque são por natureza agressivos, não devemos
envergonhar-nos do nosso fracasso em conservar a paz. O facto de apelarmos
com mais frequência para a constituição genética do que para realizações
positivas a fim de explicar resultados indesejáveis demonstra uma certa
preocupação com a demissão. Aqueles que estão constantemente interessados
em fazer algo pelo comportamento humano não podem ser louvados ou
culpados por consequências que possam ser remontadas a origens genéticas;
se têm alguma responsabilidade, será em relação ao futuro da espécie.
A prática de atribuir o comportamento à constituição genética (no caso da
espécie como um todo ou de qualquer subdivisão como raça ou família)

66
A PUNIÇÃO

poderá afectar determinadas práticas genéticas e, eventualmente, outros


modos de modificar essa constituição, pelo que o homem contemporâneo
pode, num certo sentido, ser responsabilizado pelas consequências se agir
ou deixar de o fazer; tais consequências são, todavia, remotas e põem um
problema de natureza diversa, sobre o qual nos debruçaremos oportunamente.
Quem usa a punição parece estar sempre do lado seguro. Todos aprovam
a repressão do crime, à excepção do criminoso. Se aqueles que são punidos
reincidem, não é por culpa do agente de punição. A demissão não é, no
entanto, completa. Mesmo aqueles que procedem bem podem levar muito
tempo a descobrir o que devem fazer e pode mesmo acontecer que nunca o
façam bem. Perdem tempo enleados em factos irrelevantes e lutando com o
demónio, numa desnecessária exploração por tentativa-e-erro. Além disso,
a punição causa dor e não há ninguém que lhe escape inteiramente ou
permaneça intocável, mesmo quando a dor é experimentada por outrem.
Quem pune não pode, pois, escapar inteiramente à crítica, mas pode
«justificar» a sua acção, apontando consequências da punição que anulam
os seus aspectos aversivos.
Seria absurdo incluir os escritos de Joseph de Maistre nas literaturas da
liberdade e da dignidade, já que foi um adversário implacável dos seus
princípios fundamentais, em especial os defendidos pelos escritores do
lluminismo. Não obstante, pelo facto de contraporem alternativas eficazes à
punição alegando que só a punição deixa ao indivíduo a liberdade de optar
por proceder bem, tais literaturas criaram a necessidade de uma espécie de
justificação, no que de Maistre primou. Eis a sua defesa daquele que é talvez
o mais horrendo de todos os agentes de punição: o torturador e carrasco.
«É dado um sinal lúgubre: um abjecto funcionário judicial vem bater-
-Ihe à porta e informa-o de que exigem a sua presença. Ele parte; chega à
praça pública, que está apinhada de gente ávida e excitada. Um prisioneiro,
um assassino ou um blasfemo é-lhe então entregue. Ele agarra-o, estende-o
e amarra-o a uma cruz horizontal; ergue o braço e faz-se um silêncio medonho.
Nada se ouve a não ser os ossos que estalam sob a pesada vara e os gritos da
vítima. Em seguida, desamarra-o e transporta-o para a roda; os membros
despedaçados são retorcidos nos raios; a cabeça da vítima pende; os cabelos
soltam-se-lhe; e da boca, escancarada como um forno, brotam golfadas de
sangue e palavras que a espaços pedem a morte. O carrasco terminou o seu
trabalho; o seu coração bate, mas de alegria; ele congratula-se e diz no seu
íntimo: «Ninguém é melhor no manejo da roda que eu!». Desce e estende a
mão manchada de sangue. A Justiça lança-lhe, de longe, algumas moedas
de ouro que ele leva consigo através de duas alas de pessoas, que recuam

67
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

apavoradas. Senta-se à mesa e come; depois, deita-se e adormece. Quando


acorda no dia seguinte, começa a pensar em algo muito diferente do trabalho
que executou na véspera... Toda a grandeza, todo o poder, toda a disciplina
assentam no executor. Ele é o horror da sociedade humana e o elo que a une.
Removei do mundo este incompreensível agente e, nesse instante preciso, a
ordem dará lugar ao caos, os tronos abater-se-ão e a sociedade desaparecerá.
Deus, que é a origem de toda a soberania, é também, por conseguinte, a
origem da punição.»45
Se já não recorremos à tortura no que designamos por mundo civilizado,
nem por isso deixamos de fazer desenvolvido uso de técnicas punitivas tanto
nas relações domésticas como nas exteriores. E tudo leva a crer que por boas
razões. A natureza (ou Deus se preferirem) criou o homem de tal modo que
ele é susceptível de ser controlado por meio de punições. As pessoas
convertem-se rapidamente em hábeis agentes de punição (ou então,
concomitante mente, em hábeis agentes de controlo), ao passo que aprendem
medidas positivas alternares. A necessidade de punições parece ter o apoio
da história e as práticas alarmantes constituem uma ameaça para os tão
apreciados valores da liberdade e da dignidade. E assim continuamos a
punir... e a defender a punição. Um coevo de Maistre poderia ter defendido
a guerra em termos análogos: «Toda a grandeza, todo o poder, toda a disciplina
assentam no soldado Ele é o horror da sociedade humana e o elo que a une.
Removei do mundo este incompreensível agente e, nesse instante preciso, a
ordem dará lugar ao caos, os governos abater-se-ão e a sociedade desaparecerá.
Deus, que é a origem de toda a soberania, é também, por conseguinte, a
origem da guerra.»
Mesmo assim há melhores soluções, mas as literaturas de liberdade e
de dignidade não apontam para elas.
A não ser quando fisicamente coagida, é sob a ameaça de punição que
a pessoa atinge a sua ínfima dignidade ou liberdade. Seria de esperar que as
literaturas da liberdade e da dignidade se opusessem às técnicas punitivas,
mas efectivamente têm actuado no sentido de preservá-las. A pessoa que
tenha sido punida nem por isso se sente menos propensa a proceder de um
dado modo; na melhor das hipóteses, aprende a evitar a punição. Alguns
meios de evitá-la são prejudiciais à adaptação ou neuróticos, como nos
chamados dinamismos freudianos. Outros incluem a evitação de situações
nas quais é provável que ocorram quer um comportamento punido quer outros
incompatíveis com esse. Outros indivíduos podem tomar medidas análogas
para reduzir a probabilidade de uma pessoa ser punida, mas as literaturas da
liberdade e da dignidade opõem-se a tais medidas, alegando que só conduzem

68
A PUNIÇÃO

à bondade automática. Exposta a contingências punitivas, a pessoa parece


ser livre para proceder bem e merecer louvores quando assim procede. As
contingências não-punitivas produzem o mesmo comportamento, mas neste
caso não se pode dizer que a pessoa seja livre quando procede bem pois o
mérito pertence às contingências. Pouco ou nada resta já que o homem
autónomo possa fazer e por que seja considerado. Como não se envolve numa
luta moral, não tem oportunidade de ser reconhecido um herói moral ou
credor de qualidades interiores. Todavia, a nossa tarefa não consiste em
fomentar lutas morais ou em construir ou demonstrar qualidades interiores;
consiste antes em tomar a vida menos punitiva e, assim fazendo, libertar
para actividades mais reformates o tempo e a energia consumidos em evitar
punições. Até um certo ponto, as literaturas da liberdade e da dignidade têm
contribuído para a lenta e errática suavização dos aspectos aversivos do
ambiente humano, incluindo os aspectos aversivos usados no controlo
intencional. Contudo, formularam a tarefa de tal maneira que são agora
incapazes de aceitar o facto de que todo o controlo é exercido pelo ambiente
e, portanto, passar antes à concepção de melhores ambientes do que de
melhores homens.

69
ALTERNATIVAS PARA A PU N IÇ Ã O

Como é natural, os adeptos da liberdade e da dignidade não se limitam


a combater as medidas punitivas. Recorrem também a alternativas mas
com insegurança e timidez. O seu interesse pelo homem autónomo faz
com que se empenhem somente em medidas ineficazes, algumas das quais
podemos agora examinar.

A PERMISSIVIDADE

Tem sido objecto de sérias propostas uma permissiv idade sem reservas
como alternativa para a punição. Dado que não deverá exercer-se qualquer
controlo, a autonomia do indivíduo será incontestável. Se a pessoa procede
bem, é porque é por natureza boa ou possui autocontrolo. A liberdade
e dignidade encontram-se garantidas. Um homem livre e virtuoso não
precisa de ser governado (os governos apenas corrompem) e no seio da
anarquia poderá ser naturalmente bom e admirado por tal. Não precisa
de nenhuma religião ortodoxa, pois é piedoso e procede piamente sem
obedecer a normas, talvez com a auxílio de uma experiência mística directa.
Não necessita de incentivos económicos organizados, pois é por natureza
laborioso e trocará com os outros parte do que possui, em bases justas
e segundo as condições naturais da oferta e da procura. Não necessita
de mestres; aprende porque gosta de aprender e a sua curiosidade natural
estipula o que ele precisa de saber. Se a vida se tornar excessivamente
complexa ou se o seu status natural for perturbado por ocorrências fortuitas

71
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

ou pela intrusão de pretensos agentes de controlo, poderá ter problemas


de ordem pessoal, mas encontrará as soluções, por si próprio, sem a
orientação de um psicoterapeuta.
As práticas permissivas apresentam muitas vantagens. Poupam o
trabalho de supervisão e a imposição de sanções. Não geram contra-ataques.
Aquele que as utiliza não se arrisca a ser acusado de restringir a liberdade
ou destruir a dignidade, além de não ser inculpado quando as coisas
correm mal. Se, num mundo permissivo, os homens procedem mal uns
para com os outros, é porque a natureza humana não é perfeita. Se lutam
quando não existe governo para manter a ordem, é porque têm instintos
agressivos. Se uma criança se torna delinquente quando os pais não
envidaram qualquer esforço no sentido de controlá-la, é porque se juntou
a más companhias ou possui tendências criminosas.
A permissividade não é, todavia, uma política. É antes a renúncia
a uma política e as suas vantagens evidentes são ilusórias. Renunciar
ao controlo é deixar essa tarefa, não para a própria pessoa, mas para
outros componentes dos ambientes social e não-social.
r

O AGENTE DE CONTROLO COMO PARTEIRA

Um dos métodos de modificar o comportamento sem que se exerça


um controlo visível é representado pela metáfora socrática da parteira:
uma pessoa ajuda outra a dar à luz um comportamento. Uma vez que
a parteira não desempenha qualquer papel na concepção e apenas um
pequeno papel durante o parto, a pessoa que dá à luz o comportamento
é credora de todo o mérito. Sócrates46 demonstrou a arte da obstetrícia,
ou maiêutica, na educação. Pretendia mostrar como um escravo inculto
poderia ser levado a demonstrar o teorema de Pitágoras. O rapaz seguiu
todos os passos da demonstração e Sócrates sustentou que o fizera sem
que lho tivessem dito ou, por outras palavras, que, em certo sentido,
sempre «conhecera» o teorema. Sócrates sustentava ainda que até o
conhecimento comum poderia ser obtido da mesma maneira, porquanto,
como a alma conhecia a verdade, apenas precisava que a levassem a
ter consciência disso. Refere-se frequentemente este episódio como se ele
fosse relevante para a moderna prática educacional.
A metáfora aparece igualmente em teorias da psicoterapia. Não se
deve dizer ao paciente como proceder de maneira mais eficaz nem se
lhe faculta directivas para solucionar os seus problemas. Existe já dentro

72
ALTERNATIVAS PARA A PUNIÇÃO

dele uma solução, a qual precisa apenas de ser extraída com a ajuda
do terapeuta-parteiro. Como afirmou determinado escritor: «Freud e Sócrates
partilharam três princípios: conhece-te a ti mesmo; a virtude é conhecimento
e o método maiêutico, ou a arte da obstetrícia, que é, obviamente, o
processo (psic ... ) analítico.»47 No âmbito religioso, estão associadas ao
misticismo práticas semelhantes: a pessoa não necessita de obedecer a
normas, como disporia a ortodoxia, uma vez que o comportamento correcto
emanará de fontes interiores.
A obstetrícia intelectual, terapêutica e moral pouco mais fácil é do
que o controlo punitivo, dado que exige artes bastante subtis e atenção
concentrada, embora tenha também as suas vantagens. Parece conferir
um estranho poder àquele que a pratica. A semelhança do uso cabalístico
de sugestões e alusões, alcança resultados aparentes desproporcionais às
medidas empregues. Não diminui, no entanto, a aparente contribuição
do indivíduo. Ele é digno de todo o mérito pelo facto de saber antes
de aprender, por ter dentro de si as sementes de uma boa saúde mental
e pela sua capacidade de entrar em comunicação directa com Deus. Quem
pratica a maiêutica tem ainda a importante vantagem de evitar
responsabilidades. Assim como a parteira não tem culpa se o bebé é um
nado-morto ou apresenta deformidade, também o professor não é responsável
pelo fracasso do estudante, o psicoterapeuta pela incapacidade do paciente
em resolver os seus problemas ou o chefe religioso místico pelo mau
comportamento dos seus discípulos.
As práticas maiêuticas não deixam, todavia, de ter o seu lugar próprio.
Determinar até que ponto o professor deve ajudar o aluno à medida que
este adquire novas formas de comportamento constitui problema delicado.
O professor deverá esperar pela resposta do aluno, de preferência a
apressar-se a transmitir-lhe o que deve fazer ou dizer. Como dizia Coménio,
quanto mais o professor ensina, tanto menos o aluno aprende. Este lucra
de outras maneiras. De um modo geral, não gostamos que nos contem
quer o que já sabemos quer o que provavelmente nunca viremos a saber
bem ou com bons resultados. Não lemos livros que versem assuntos com
que estejamos já perfeitamente familiarizados ou com que estejamos tão
pouco familiarizados que é provável nunca chegarmos a entendê-los. Lemos
obras que nos ajudam a dizer aquilo que, de qualquer modo, estávamos
na iminência de expressar, embora não o fizéssemos sem ajuda.
Compreendemos o autor, ainda que tivéssemos sido incapazes de formular
o que compreendemos antes que ele o confiasse ao papel. Existem vantagens
semelhantes para o paciente da psicoterapia. As práticas maiêuticas são

73
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

ainda vantajosas, na medida em que exercem um controlo maior do que


normalmente se reconhece, parte do qual pode ser valiosa.
Contudo, tais vantagens ficam ainda muito aquém das reivindicadas.
O escravo de Sócrates nada aprendeu. Não houve qualquer prova de que,
posteriormente, pôde demonstrar sozinho o teorema. E, não só em relação
à maiêutica como ainda quanto à permissividade, a verdade é que os
resultados positivos devem ser atribuídos a outras formas de controlo não
reconhecidas. Se o paciente encontra uma solução sem a ajuda do terapeuta,
é porque esteve exposto a determinado ambiente que lhe foi proveitoso.

A ORIENTAÇÃO

A horticultura fornece-nos outra metáfora associada a práticas pouco


eficazes. O comportamento que se deu à luz cresce, podendo ser orientado
ou «podado», como uma planta em crescimento. O comportamento é
susceptível de ser «cultivado».
Esta metáfora é particularmente corrente no âmbito educacional.
A escola para crianças pequenas damos o nome de jardim de infância.
O comportamento da criança «desenvolve-se» até que atinge a
«maturidade». O professor pode acelerar o processo ou orientá-lo para
direcções ligeiramente diferentes; porém, segundo a expressão clássica,
não pode ensinar: pode somente ajudar o aluno a aprender. A metáfora
da orientação também é comum na psicoterapia. Freud argumentava que
a pessoa tem de passar por vários estádios de desenvolvimento e que,
se o paciente -se «fixou» num determinado estádio, o terapeuta deve
ajudá-lo a libertar-se e a prosseguir. Também os governos recorrem à
orientação, por exemplo, quando fomentam o «desenvolvimento» indus­
trial através de isenções de impostos ou proporcionam um «clima» favorável
à melhoria das relações entre as raças.
A orientação não é tão fácil como a permissividade, mas costuma
sê-lo mais do que a obstetrícia, além de apresentar algumas das suas
vantagens. Quem se limita a orientar um desenvolvimento natural
dificilmente poderá ser acusado de tentar controlá-lo. O desenvolvimento
permanece como uma realização do indivíduo, a testemunhar a sua liberdade
e valor, as suas «propensões ocultas», e, do mesmo modo que o jardineiro
não é responsável pelo aspecto final do que cultiva, aquele que apenas
orienta fica isento de culpa quando as coisas correm mal. No entanto,
a orientação só é eficaz na medida em que se exerce determinado controlo.

74
ALTERNATIVAS PARA A PUNIÇÃO

Orientar consiste em facultar novas oportunidades ou bloquear o crescimento


em determinadas direcções. Criar uma oportunidade não constitui um
acto muito positivo; não deixa, porém, de ser uma forma de controlo
se aumentar as probabilidades de que ocorra um dado comportamento.
O professor que se limita a seleccionar a matéria que o aluno deve estudar
ou o terapeuta que apenas sugere um emprego diferente ou uma mudança
de cenário estão a exercer controlo, ainda que seja difícil detectá-lo.
O controlo torna-se mais evidente quando se frustra o crescimento
ou o desenvolvimento. A censura bloqueia o acesso a material necessário
para que o desenvolvimento se processe numa determinada direcção, isto
é, destrói oportunidades. De Tocqueville48 apercebeu-se deste estado de
coisas na América do seu tempo: «A vontade do homem não é destruída,
mas sim amolecida, curvada e dirigida. Raramente os homens são forçados...
a agir, mas são constantemente impedidos de agir.» Como afirmou Ralph
Barton Perry, «quem quer que determine as alternativas que devem ser
reveladas ao homem controla as suas opções. O homem é destituído de
liberdade na medida em que lhe negam acesso a quaisquer ideias ou
o limitam a uma série de ideias que não corresponde à totalidade das
possibilidades pertinentes.»49 Em lugar de «destituído de liberdade»
leia-se «controlado».
É sem dúvida vantajoso criar um ambiente em que a pessoa adquira
rapidamente um comportamento eficaz e continue a agir eficazmente.
Ao criar um tal ambiente, podemos eliminar confusões e diversões e
proporcionar oportunidades que são pontos-chave na metáfora da orientação,
do crescimento ou do desenvolvimento; no entanto, são as contingências
que criamos, mais do que o desdobramento de qualquer padrão
predeterminado, que são responsáveis pelas mudanças observadas.

CRIANDO UMA DEPENDÊNCIA DAS COISAS

Jean-Jacques Rousseau apercebeu-se dos perigos do controlo social


e acreditava na possibilidade de evitá-los tomando o indivíduo dependente,
não dos outros, mas de objectos. Em Émile, mostra-nos como uma criança
pôde adquirir conhecimentos sobre os objectos mais através dos próprios
objectos do que por meio de livros. As práticas que ele descreveu são
ainda correntes, em grande parte devido à relevância dada por John Dewey
ao contacto com a vida real na escola.
Uma das vantagens de se depender mais de objectos do que de outras

75
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

pessoas é a economia de tempo e energia alheios. A criança a quem


é necessário lembrar que são horas de ir para a escola é dependente
dos pais, enquanto que aquela que aprendeu a responder aos estímulos
proporcionados por relógios e a outros atributos temporais do mundo que
a rodeia (e não a um «sentido de tempo») depende de objectos, pelo
que exige menos dos pais. Ao aprender a conduzir um automóvel, a pessoa
está na dependência de um instrutor enquanto precisar que ele lhe diga
quando deve usar os travões, acender a luz de mudança de direcção,
mudar de velocidade e assim por diante; quando o seu comportamento
passa a ser controlado pelas consequências naturais de conduzir um carro,
ela pode dispensar o instrutor. Entre os «objectos», de que deveríamos
tornar-nos dependentes estão as outras pessoas, desde que não actuem
especificamente no sentido de modificar o nosso comportamento. A criança
à qual se tem de recomendar o que dizer e como proceder em relação
aos outros depende de quem a orienta; a criança que aprendeu a dar-
se com os outros pode dispensar tais conselhos.
Outra vantagem importante de estarmos na dependência de objectos
é que as contingências que os envolvem são mais precisas e modelam
um comportamento mais vantajoso do que as contingências criadas por
outros indivíduos. Os atributos temporais do ambiente são mais penetrantes
e subtis do que qualquer série de advertências. A pessoa cujo comportamento
na condução de um automóvel seja determinado pelas respostas do carro
procede com mais destreza do que outra que esteja a seguir instruções.
As pessoas que se dão bem com quem mantêm relações em consequência
da exposição directa a contingências sociais são mais hábeis no trato
do que aquelas a quem apenas se recomendou o que dizer e fazer.
Tais vantagens são importantes e um mundo no qual todo o
comportamento dependa de objectos constitui uma perspectiva atraente.
Num mundo como esse, todos procederiam bem em relação ao próximo
segundo aquilo que tivessem aprendido a fazer quando expostos ao seu
agrado ou desagrado; todos se entregariam a trabalhos produtivos e
cuidadosos e permutariam entre si objectos com base nos seus valores
naturais; aprenderiam aquilo que naturalmente os interessasse e fosse
naturalmente proveitoso. Tudo isto seria preferível a proceder bem em
obediência à lei que a polícia faz cumprir, a trabalhar produtivamente
pelos reforços existentes (o dinheiro) e a estudar para se obter notas e
aprovações.
Os objectos, no entanto, não assumem facilmente o controlo. Os
processos descritos por Rousseau não são simples e raramente resultam.

76
ALTERNATIVAS PARA A PUNIÇÃO

As complexas contingências que envolvem os objectos (incluindo as pessoas


que agem «sem intenção») podem, quando não ajudados, produzir apenas
um efeito mínimo durante toda a existência do indivíduo, facto que se
reveste de grande importância por motivos que consideraremos adiante.
Devemos também recordar que o controlo exercido pelas objectos pode
ser destrutivo, que o mundo dos objectos pode ser tirânico. As contingências
naturais induzem as pessoas a agir de modos supersticiosos, a correr riscos
cada vez maiores, a trabalhar inutilmente até à exaustão e assim
sucessivamente. Somente o contracontrolo exercido por um ambiente social
oferece alguma protecção contra tais consequências.
A dependência de objectos não é independência. A criança que não
precisa que lhe digam serem horas de ir para a escola passou a ser controlada
por estímulos mais subtis e mais proveitosos. Aquela que aprendeu o
que deve dizer e como proceder no trato social está sob o controlo de
contingências sociais. As pessoas que se dão bem sob as brandas
contingências do agrado e desagrado estão sujeitas a um controlo tão
eficaz (e sob muitos aspectos mais eficaz) quanto os cidadãos de um
estado-polícia. A ortodoxia exerce controlo através do estabelecimento
de normas, mas o místico não é mais livre pelo facto de as contingências
modeladoras do seu comportamento serem mais pessoais ou idiossincrásicas.
Aqueles que se entregam a um trabalho produtivo devido ao valor reforçante
daquilo que produzem estão sob o controlo subtil mas poderoso dos produtos
do seu trabalho. Aqueles que aprendem no ambiente natural estão sujeitos
a uma forma de controlo tão poderosa como a que o professor exerce
em quaisquer circunstâncias.
A pessoa nunca chega a tornar-se verdadeiramente dependente apenas
de si própria. Mesmo que lide eficazmente com determinados objectos,
depende necessariamente daqueles que a ensinaram a fazê-lo, pois foram
eles que seleccionaram os objectos de que ela depende e determinaram
os tipos e graus dessa dependência. (Não podem, por conseguinte,
eximir-se de responsabilidade pelos resultados.)

MEIOS DE MANIPULAÇÃO MENTAL

Aqueles indivíduos que se opõem do modo mais violento à manipulação


do comportamento envidam, paradoxalmente, os mais vigorosos esforços
no sentido de manipular a mente alheia. Como é óbvio, só se ameaça
a liberdade ou a dignidade quando se modifica o comportamento através

77
P
A
R
A ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

de alterações físicas introduzidas no ambiente. Parece não haver qualquer


ameaça quando se modifica os estados de espírito que nos considera
responsáveis por certas formas de comportamento, presumivelmente porque
o homem autónomo possui poderes miraculosos que o tomam susceptível
de ceder ou resistir.
Ainda bem que aqueles que se opõem à manipulação do comportamento
se sentem livres para manipular a mente alheia, já que de outro modo
teriam de guardar silêncio. Todavia, ninguém produz Direitamente
alterações na mente. Através da manipulação das contingências ambientais,
produz-se modificações que, segundo se crê, revelam uma mudança de
estado de espírito; porém, se é que se produz algum efeito, é sobre o
comportamento. O controlo não é evidente nem muito eficaz, pelo que
parte dele parece ser assumido pelo indivíduo em tais circunstâncias.
Examinemos agora alguns processos característicos de manipulação mental.
Induzimos por vezes uma pessoa a agir de uma dada maneira dando-
-Ihe indicações (quando, por exemplo, não é capaz de resolver um problema)
ou sugerindo-lhe uma linha de acção (quando, por exemplo, está perplexa
em relação ao que fazer). Indicações, insinuaçõesS0 e sugestões são estímulos,
geralmente mas nem sempre verbais, e revestem-se da importante vantagem
de exercer apenas um controlo parcial. Ninguém responde a uma indicação,
insinuação ou sugestão a não ser que tenha já uma tendência para agir
de uma dada maneira. Quando não se identifica as contingências que
explicam a tendência predominante, parte do comportamento pode, ser
atribuída à mente. O controlo interior é particularmente convincente quando
o exterior não é explícito, como acontece quando contamos uma história
aparentemente irrelevante, mas que serve de indicação, «deixa» ou sugestão
a outra pessoa. A apresentação de um exemplo exerce uma forma de
controlo análoga, pois explora a tendência geral para agirmos
imitativamente. Os depoimentos publicitários «controlam a mente» deste
modo.
Damos também a impressão de actuar sobre a mente alheia quando
surgimos (urge) ou persuadimos alguém a agir. Etimologicamente, urgir
significa pressionar ou impelir; é tomar uma situação aversiva mais urgente.
Urgimos uma pessoa a agir como poderíamos empurrá-la com o cotovelo
para que o fizesse. Os estímulos são, neste caso, geralmente brandos,
mas serão eficazes se estiverem associados no passado a consequências
aversivas mais prementes. Assim, instamos um mandrião dizendo-lhe:
«Olhe para as horas que são!» e seremos bem sucedidos em induzi-lo
a apressar-se caso já tenha sido castigado por atrasos precedentes. Instamos

78
ALTERNATIVAS PARA A PUNIÇÃO

com alguém para que não gaste dinheiro, chamando-lhe a atenção para
o seu baixo saldo bancário e alcançaremos o nosso objectivo se, no passado,
sofreu por se lhe ter acabado o dinheiro. Em contrapartida, persuadimos
os outros recorrendo a estímulos associados a consequências positivas.
Etimologicamente, o termo está relacionado com o verbo adoçar.
Persuadimos alguém quando tornamos uma dada situação mais propícia
à acção, descrevendo-lhe prováveis consequências reforçadoras. Volta a
deparar-se-nos aqui uma aparente discrepância entre a força dos estímulos
que empregamos e a amplitude do efeito alcançado. Tanto o acto de urgir
como a persuasão só serão eficazes se existir já alguma tendência para
agir e, somente enquanto esta permanecer sem explicação, o comportamento
poderá ser atribuído ao homem interior.
Crenças, preferências, percepções, necessidades, propósitos e opiniões
são outros atributos do homem autónomo que se alteram (segundo se
crê) quando manipulamos a mente alheia. Todavia, o que se modifica
em qualquer dos casos é uma probabilidade de acção. A crença de uma
dada pessoa de que um soalho a sustentará quando caminhar sobre ele
depende das suas experiências passadas. Se já caminhou sobre ele muitas
vezes sem que tivesse havido qualquer incidente, voltará a fazê-lo
prontamente e o seu comportamento não gerará qualquer dos estímulos
aversivos reconhecidos como ansiedade. A pessoa pode afirmar que tem
«fé» na solidez do soalho ou «confiança» em que a sustentará; porém,
o que sente como fé ou confiança não são estados de espírito mas, na
melhor das hipóteses, subprodutos do comportamento em relação a
acontecimentos anteriores e não explicam porque a pessoa caminha de
uma dada maneira.
Consolidamos uma «crença» quando aumentamos as probabilidades
de acção através do reforço do comportamento. Quando consolidamos
a confiança de determinada pessoa em que o soalho a sustentará
induzindo-a a caminhar sobre ele, não se pode dizer que estejamos a
modificar uma crença, mas, segundo a perspectiva tradicional, fazêmo-
-lo quando lhe garantimos verbalmente que o soalho é sólido, demonstramos
a sua solidez caminhando nós próprios sobre ele ou descrevemos a sua
estrutura e estado. A única diferença reside na evidência das medidas
tomadas. A mudança que ocorre quando a pessoa «aprende a confiar
no soalho» caminhando sobre ele constitui o efeito característico do
reforçamento. A mudança que se verifica quando lhe dizem que o soalho
é sólido, quando vê outra pessoa andar por cima dele ou quando é
«convencido» pela garantia de que o soalho a sustentará depende de

79
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

experiências passadas que já não fornecem na altura uma contribuição


evidente. A pessoa que caminha por superfícies cuja solidez está sujeita
a variações mais ou menos prováveis (como por exemplo, a de um lago
gelado) depressa estabelece uma distinção51 entre superfícies sobre as quais
outras pessoas caminham e aquelas que ninguém pisa, isto é, entre
superfícies consideradas seguras e outras consideradas perigosas. Aprende
assim a andar com confiança no primeiro caso e cautelosamente no segundo.
Ver alguém caminhar por uma dada superfície gelada ou a garantia de
que esta é segura transfere-a da segunda categoria para a primeira. O
processo histórico que conduziu à discriminação poderá ter sido esquecido,
pelo que o efeito parece então envolver um acontecimento interior designado
por «mudança de ideias».
As mudanças verificadas nas preferências, percepções, necessidades,
propósitos, atitudes, opiniões e outros atributos da mente podem ser
analisadas do mesmo modo. Modificamos a maneira como a pessoa olha
para um dado objecto assim como o que vê quando olha, modificando
as contingências; não modificamos aquilo a que se dá o nome de percepção.
Modificamos a força relativa das respostas, reforçando diferencialmente
cursos de acção alternantes; não modificamos aquilo a que chamamos
preferência. Alteramos as probabilidades de uma acção modificando uma
condição de privação ou estimulação aversiva; não modificamos uma
necessidade. Reforçamos o comportamento de diferentes maneiras; não
damos à pessoa um propósito ou uma intenção. Modificamos um
comportamento em relação a um determinado objecto e não uma atitude
em relação ao mesmo objecto. Exemplificamos (sample) e modificamos
o comportamento verbal e não as opiniões.
Outro meio de manipular a mente consiste em apontar razões pelas
quais a pessoa deverá proceder de determinado modo. Tais razões são
quase sempre consequências que têm probabilidades de variar em função
do comportamento. Partamos do princípio de que uma criança está a
usar uma faca de um modo perigoso. Podemos evitar complicações se
tomarmos o ambiente mais seguro, retirando-lhe a faca ou dando-lhe
outra menos perigosa, mas tais soluções não a prepararão para um mundo
em que se usa facas perigosas. Se a deixamos entregue a si própria,
poderá aprender a usar a faca apropriadamente, cortando-se sempre que
a use de uma maneira inadequada. Podemos ajudá-la recorrendo a uma
forma menos perigosa de punição: damos-lhe uma palmada, por exemplo,
ou envergonhamo-la quando a vemos usar uma faca de um modo perigoso.
Podemos dizer-lhe que certos usos são maus e outros bons, se «Bom!»

80
ALTERNATIVAS PARA A PUNIÇÃO

e «Mau!» foram já condicionados como reforços positivo e negativo.


Suponhamos, no entanto, que todos estes métodos apresentam subprodutos
indesejáveis, tais como uma mudança nas suas relações connosco, pelo
que decidimos apelar para a «razão». (É óbvio que tal só será possível
se ela tiver atingido a «idade da razão».) Explicamos-lhe as contingências;
demonstrando o que sucede quando se usa uma faca de uma forma e
não de outra, e podemos ainda mostrar-lhe como se pode extrair regras
das contingências: («Nunca deves cortar na tua direcção»). Podemos assim
induzir a criança a usar a faca de uma maneira adequada e diremos
provavelmente que lhe transmitimos o conhecimento do seu uso apropriado.
Tivemos, porém, de tirar partido de um extenso condicionamento precedente
no que se refere a instruções, direcções e outros estímulos verbais, que
facilmente negligenciamos, do que resulta que a sua contribuição possa
então ser atribuída ao homem autónomo. Um argumento ainda mais
complexo diz respeito às novas razões que extraímos de antigas, o que
constitui o processo próprio da dedução, que depende de uma evolução
verbal muito mais longa e tem muitas probabilidades de se designar por
mudança de ideias.
Raramente se tolera os meios de modificar o comportamento pela
manipulação mental quando são perfeitamente explícitos, apesar de tudo
levar a crer que é a mente que está a ser manipulada. Não aprovamos
a manipulação mental quando os contende dores demonstram forças
desiguais: trata-se de uma «influência indevida». Tão-pouco admitimos
uma manipulação mental exercida sub-ceticamente. Se o indivíduo não
for capaz de aperceber-se da acção desenvolvida pelo aspirante a
manipulador mental (wotdd-be changer o f minds), também não poderá
esquivar-se nem contra-atacar: está a ser submetido a «propaganda». A
«lavagem ao cérebro» é proscrita por aqueles que de outro modo toleram
a manipulação mental, só porque o controlo é obviamente exercido. Uma
técnica comum consiste em criar uma forte condição aversiva como, por
exemplo, a fome ou o sono, e, ao mitigá-la, reforçar qualquer comportamento
que «denote uma atitude positiva» em relação a um dado sistema político
ou religioso. Estabelece-se uma «opinião» favorável através do simples
reforço de afirmações favoráveis. O método poderá não ser óbvio para
quem lhe é submetido, mas, para os outros, é demasiado óbvio para que
seja aceite como meio permissível de manipulação mental.
A ilusão de que a liberdade e a dignidade são respeitadas quando
o controlo parece ser incompleto deriva em parte da natureza probabilística
do comportamento operante. Urna dada condição ambiental raramente

81
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

gera» comportamento à maneira do tudo ou nada de um acto reflexo;


faz simplesmente com que aumentem as probabilidades de que ocorra
uma pequena parte do comportamento. Uma insinuação não basta por
si só para desencadear uma resposta (reacção), mas robustece uma resposta
débil que pode então manifestar-se. A insinuação é perceptível, mas
os outros acontecimentos responsáveis pelo aparecimento da resposta
não o são.
Tal como a permissividade, a maiêutica, a orientação e a criação
de uma dependência dos objectos, a manipulação mental é aceite pelos
defensores da liberdade e da dignidade por constituir um meio ineficaz
de modificar o comportamento. Além disso, o manipulador mental pode
esquivar-se à acusação de que exerce controlo sobre outros indivíduos
e eximir-se de responsabilidade quando as coisas correm mal. O homem
autónomo sobrevive para ser louvado pelas suas realizações e inculpado
pelos seus erros.
A aparente liberdade respeitada por medidas débeis não é senão
controlo imperceptível. Quando damos a impressão de delegar controlo
na própria pessoa, limitamo-nos a substituir uma modalidade de controlo
por outra. Certo semanário, ao debater o controlo legal do aborto, sustentava
que «a maneira directa de abordar o problema é em termos que permitam
ao indivíduo, orientado pela consciência e pela inteligência, fazer uma
opção desembaraçada de conceitos e estatutos arcaicos e hipócritas»52.
O que se recomendava não era uma substituição do controlo legal por
uma «opção», mas pelo controlo previamente exercido pelas instituições
religiosas, éticas, governamentais e educacionais. «Permite-se» ao indivíduo
resolver o problema por si mesmo, apenas no sentido de que agirá em
face das consequências, às quais deixou de juntar-se a punição legal.
Um governo permissivo é aquele que deixa o controlo para outras
fontes. Se as pessoas procedem bem sob tal governo, é porque foram
submetidas a um controlo ético eficaz ou ao controlo exercido por objectos
ou foram então induzidas pela acção das instituições educacionais e outras
a proceder de modo leal, patriótico e cumpridor da lei. Só quando se
dispõe de outras formas de controlo é que o melhor governo é aquele
que menos governa. Na medida em que o governo é definido como o
poder de punir, tem sido valioso o contributo da literatura da liberdade
ao advogar a adopção de outras medidas, mas em nenhum outro sentido
tem libertado as pessoas do controlo governamental.
Uma economia livre não quer dizer ausência de controlo económico,
uma vez que nenhuma economia é livre enquanto as mercadorias e o

82
ALTERNATIVAS PARA A PUNIÇÃO

dinheiro valerem como reforços. Quando nos recusamos a exercer controlo


sobre salários, preços e o aproveitamento das riquezas naturais a fim
de não interferir na iniciativa individual deixamos o indivíduo sob o controlo
de contingências económicas não planeadas. Tão-pouco é «livre» qualquer
escola. Quando o professor não ensina os alunos, eles só aprenderão se
prevalecerem contingências menos explícitas, mas ainda assim eficazes.
O psicoterapeuta que não procura orientar os seus pacientes pode libertá-
los de certas contingências nocivas existentes no seu quotidiano, mas
os pacientes só «encontrarão as suas próprias soluções» se a isso os
induzirem contingências éticas, governamentais, religiosas, educacionais
ou outras.
(A relação entre terapeuta e paciente constitui assunto delicado.
O terapeuta, por mais esforços «não-orientadores» que en vide, vê o seu
paciente, fala com ele e escuta-o. Interessa-se profissionalmente pelo seu
bem-estar e, por uma questão de simpatia, pode até preocupar-se com
ele. Tudo isto é reforçante em relação ao paciente. Sugeriu-se, no entanto,
que o terapeuta poderia evitar modificar o comportamento do paciente
se tomasse tais reforços não casuais, isto é, se evitasse que se seguissem
a qualquer forma especial de comportamento (do paciente). Conforme
observou determinado escritor: «O terapeuta reage como uma pessoa
coerente, com profunda compreensão e um interesse sem reservas, e, em
termos de teoria da aprendizagem, recompensa o cliente tanto por um
dado comportamento como por qualquer outro.» Tal missão é provavelmente
impossível e em caso algum teria o efeito reivindicado. Os reforços casuais
não são ineficazes, pois todo o reforço reforça sempre alguma coisa. Quando
o terapeuta mostra que se preocupa com o paciente, reforça qualquer
comportamento que este acabe de emitir. Qualquer reforço, mesmo que
seja acidental, robustece um dado comportamento, que terá então mais
probabilidades de ocorrer e ser novamente reforçado. A «superstição» daí
resultante pode ser demonstrada com pombos e não é provável que o
homem se tenha tornado menos susceptível a reforços casuais. Proceder
com bondade para com uma dada pessoa sem que haja razões para tal,
tratando-a com afecto quer ela seja boa ou má, tem até o apoio bíblico:
a graça não deve ser condicionada por obras ou então não será graça.
Há, contudo, processos comportamentais a levar em conta.)
O erro fundamental cometido por quantos optam por métodos de
controlo débeis é o de pressupor que o equilíbrio do controlo fica nas
mãos do indivíduo, quando na realidade fica na dependência de outras
condições. É geralmente difícil apercebermo-nos das outras condições,

83
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

mas continuar a negligenciá-las e a atribuir os seus efeitos ao homem


autónomo é procurar o perigo. Quando se oculta ou disfarça tais práticas
torna-se difícil exercer qualquer contracontrolo: não é fácil identificar
a quem se deve fugir ou atacar. As literaturas da liberdade e da dignidade
já foram brilhantes exercícios de contracontrolo, mas as medidas que
preconizavam deixaram de ser apropriadas para a tarefa. Pelo contrário,
podem ter sérias consequências, sobre as quais iremos debruçar-nos
seguidamente.
A liberdade e a dignidade do homem autónomo só parecem preservadas
quando se adopta formas brandas de controlo não-aversivo. Aqueles que
as utilizam dão a impressão de se defender da acusação de que procuram
controlar o comportamento e eximem-se de responsabilidade quando as
coisas correm mal. A permissividade é a ausência de controlo e, se parece
conduzir a resultados positivos, é apenas devido a outras contingências.
A maiêutica, ou a arte da obstetrícia, parece permitir que o indivíduo
seja credor de mérito pelo comportamento que dá à luz, enquanto aqueles
que desenvolvem o comportamento são credores de mérito pela orientação
desse desenvolvimento. A intervenção humana parece ser minimizada
quando se faz com que a pessoa fique na dependência de objectos e não
de outras pessoas. Vários processos de modificar o comportamento através
da manipulação mental não são apenas aprovados mas também
vigorosamente praticados pelos defensores da liberdade e da dignidade.
Há muito para dizer a favor da minimização das actuais formas de controlo
por parte de outras pessoas, mas vigoram ainda outras medidas. A pessoa
que responde de uma maneira aceitável a formas débeis de controlo poderá
ter sido influenciada por contingências que deixaram de actuar. Enquanto
se recusarem a reconhecê-las, os defensores da liberdade e da dignidade
estão a encorajar o abuso de práticas de controlo e a bloquear o progresso
em direcção a uma mais eficaz tecnologia do comportamento.

84
O S V A LO RES

Segundo o que podemos considerar o ponto de vista pré-científico


(e o termo não é necessariamente pejorativo), o comportamento do indivíduo
é, pelo menos em certa medida, uma realização sua. Ele é livre para
deliberar, tomar decisões e agir, possivelmente de mais do que uma maneira
original, devendo ser louvado pelos seus sucessos e inculpado pelos seus
fracassos. Do ponto de vista científico (e o termo não é necessariamente
honorífico), o comportamento do indivíduo é determinado por uma
constituição genética que podemos fazer remontar à história da evolução
da espécie e pelas circunstâncias ambientais a que esteve exposto. Nenhuma
destas perspectivas pode ser provada, mas decorre da natureza da
investigação científica que as provas apoiem a segunda. À medida que
aumentamos os nossos conhecimentos sobre os efeitos do ambiente, temos
menos razões para atribuir qualquer parcela do comportamento humano
a um agente de controlo autónomo. Além disso, o segundo ponto de
vista apresenta uma vantagem nítida quando principiamos a actuar sobre
o comportamento. Não é com facilidade que modificamos o homem
autónomo: com efeito, na medida em que é autónomo, não é por definição
susceptível de sofrer modificações. Contudo, o ambiente pode ser modificado
e estamos a aprender a fazê-lo. As medidas de que nos servimos são
as da tecnologia física e biológica, mas utilizamo-las de uma maneira
especial com vista a afectar o comportamento.
Existe uma lacuna nesta transferência de controlo interno para externo.
Presume-se que o controlo interno é exercido não só pelo homem autónomo

85
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

com
otambém a seu favor. Mas a favor de quem deverá ser posta em
práti ca uma poderosa tecnologia do comportamento? Quem deverá
em prática e com que fins? Temos deixado implícito que os efeitos
de uma prática são melhores do que os da outra, mas em que nos baseamos
para tanto? O que é este «bom», em relação ao qual se diz que algo
diferente é «melhor»? Poderemos definir o que seja uma vida boa? Ou
o progresso em direcção a uma vida boa? E, na verdade, o que é o progresso?
Qual é, em suma, o significado da vida tanto para o indivíduo como
para a espécie?
As interrogações deste tipo parecem apontar para o futuro e dizer
respeito não às origens do homem mas ao seu destino. Afirma-se
naturalmente que elas implicam «juízos de valor», pois põem questões
que não dizem respeito a factos, mas ao modo como os homens encaram
os factos, que não dizem respeito àquilo que o homem é capaz de fazer,
mas àquilo que deve fazer. Costuma sugerir-se que as respostas estão
fora do alcance da ciência, com o que estão muitas vezes de acordo físicos
e biólogos com uma certa justificação, dado que efectivamente as suas
ciências não detêm as respostas. A física pode dizer-nos como se constrói
uma bomba nuclear, mas não nos diz se deverá construir-se. A biologia
pode dizer-nos como controlar a natalidade e adiar a morte, mas não
se deveríamos fazê-lo. As decisões que envolvem os empregos da ciência
parecem exigir um tipo de sabedoria que, por qualquer razão curiosa,
é negada aos cientistas. Caso lhes seja permitido emitir qualquer juízo
de valor, terão de o fazer apenas da sabedoria que partilham com o vulgo.
O cientista do comportamento cometeria um erro se anuísse. O que
as pessoas sentem em relação aos factos ou o que significa sentir algo
são questões para que uma ciência do comportamento deveria ter resposta.
É indubitável que um facto é diferente do que a pessoa sente a seu respeito,
mas o que a pessoa sente também é um facto. A origem das complicações
(aqui como em outros campos) reside no apelo para o que as pessoas
sentem. Uma maneira mais vantajosa de formular a questão seria esta:
se uma análise científica é capaz de nos dizer como modificar o
comportamento, poderá indicar-nos quais as modificações a fazer? Trata-
-se de uma pergunta sobre o comportamento daqueles que efectivamente
propõem e produzem modificações. Entre as boas razões que nos levam
a agir no sentido de melhorar o mundo e a progredir com vista a uma
melhor maneira de viver figuram certas consequências do nosso
comportamento, das quais fazem parte as coisas a que damos valor e
classificamos de boas.

86
OS VALORES

Podemos começar por alguns exemplos simples. Existem coisas que


quase toda a gente classifica de boas. Certas coisas têm bom paladar,
são agradáveis ao tacto ou têm bom aspecto. Afirmamos isso com a mesma
prontidão com que declaramos serem doces, ásperas ou vermelhas. Existirá
então alguma propriedade física inerente a todas as coisas boas? É quase
certo que não. Não há mesmo qualquer propriedade comum que seja inerente
a todas as coisas doces, ásperas ou vermelhas. Uma superfície cinzenta
parece-nos vermelha se tivermos estado a olhar para uma verde-azulada;
o papel comum parece-nos macio depois de termos estado a tocar em
lixa ou então áspero se estivemos a tactear vidro liso; a água da torneira
parece-nos doce se comemos antes alcachofras. Parte daquilo que
consideramos vermelho, macio ou doce deverá estar, por conseguinte, nos
olhos, nas pontas dos dedos ou na língua de quem vê, tacteia ou prova.
O que atribuímos a um dado objecto quando o rotulamos de vermelho,
áspero ou doce é em parte uma condição do nosso próprio corpo, resultante
(nos exemplos dados) de estímulos recentes. Ao classificarmos algo de
bom, as condições do nosso corpo revestem-se de uma importância muito
maior e por uma razão diferente.
As coisas boas constituem reforçadores positivos53. A comida saborosa
reforça-nos quando a provamos. As coisas que nos provocam uma agradável
sensação táctil reforçam-nos quando as tacteamos. As coisas que têm boa
aparência reforçam-nos quando as olhamos. Quando, em linguagem
coloquial, dizemos que nos «perdemos» por tais coisas, estamos a identificar
um tipo de comportamento frequentemente reforçado por elas. (As coisas
que classificamos de ruins também não apresentam qualquer propriedade
comum. Constituem todas reforçadores negativos, e somos reforçados
quando lhes fugimos ou as evitamos.)
Quando afirmamos que um juízo de valor é uma questão não de
facto mas do que a pessoa sente em relação aos factos, estamos simplesmente
a estabelecer uma distinção entre um objecto e o seu efeito de reforço.
A física e a biologia estudam as coisas por si mesmas, geralmente sem
se reportar ao seu valor; porém, os efeitos de reforço das coisas constituem
o campo da ciência do comportamento, a qual, na medida em que se
interessa pelo reforço operante, é uma ciência de valores.
As coisas são boas (positivamente reforçantes) ou más (negativamente
reforçantes)54 presumivelmente devido às contingências de sobrevivência
sob as quais a espécie evoluiu. Existe um óbvio valor de sobrevivência
no facto de determinados alimentos serem reforçadores; isto significa que
o homem aprendeu mais depressa a encontrá-los, cultivá-los ou apanhá-

87
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

-los. E igualmente importante uma certa susceptibilidade ao reforço


negativo: quem foi mais intensamente reforçado ao evitar ou fugir a
situações potencialmente perigosas desfrutou de vantagens óbvias.
Consequentemente, certos efeitos produzidos por determinados reforçadores
específicos constituem uma parcela da herança genética a que damos o
nome de «natureza humana». (Integra também essa herança o facto de
novos estímulos se tomarem reforçantes através de um condicionamento
«respondente»55 - a visão de uma dada peça de fruta, por exemplo,
torna-se reformate se, depois de olhá-la, lhe dermos uma dentada e a
acharmos boa. A possibilidade de condicionamento respondente não altera
o facto de todos os reforçadores acabarem por receber o seu poder da
selecção que decorre da evolução.)
Fazer um juízo de valor qualificando algo de bom ou mau é classificá-
-lo em termos dos seus efeitos reformates. A classificação torna-se
importante, como veremos adiante, quando os reforçadores começam a
ser usados por outras pessoas (quando, por exemplo, as respostas verbais
«Muito bem!» e «Péssimo!» começam a funcionar como reforçadores),
mas na realidade as coisas já eram reformates muito antes de serem
classificadas de boas ou más, do mesmo modo que o são para os animais,
que não as qualificam de boas ou más, para, os bebés e outras pessoas
que não são capazes de o fazer. O efeito reforçante é que é o aspecto
importante, mas será isso que queremos dizer com as palavras «a maneira
de sentir das pessoas em relação às coisas»? Não serão reforçantes porque
são sentidas como boas ou más?
Afirma-se que os sentimentos fazem parte do equipamento do homem
autónomo, pelo que se justificam alguns comentários adicionais. Sentimos
coisas no interior do nosso corpo como sentimos outras à sua superfície.
Sentimos um músculo dorido como sentimos uma bofetada no rosto,
sentimo-nos abatidos como sentimos um vento frio. Das diferenças de
localização decorrem duas diferenças importantes. Em primeiro lugar,
podemos sentir coisas fora da nossa pele num sentido activo; podemos
sentir uma superfície passando os dedos por ela a fim de enriquecermos
os estímulos que recebemos; contudo, ainda que disponhamos de maneiras
de «intensificar a nossa consciência» das coisas que se passam dentro
de nós, não as sentimos activamente do mesmo modo.56
Uma diferença mais importante reside na forma como aprendemos
a sentir as coisas. A criança só aprende a distinguir cores, sons, odores,
gostos, temperaturas e outros aspectos do mundo físico quando passam
a integrar contingências de reforço. Se determinados rebuçados vermelhos

88
OS VALORES

tiverem um paladar reforçante que os verdes não possuem, a criança apanha


e come rebuçados vermelhos. Algumas contingências importantes são de
natureza verbal. Os pais ensinam os filhos a designar as cores através
do reforçamento das respostas correctas. Se uma criança disser «Azul!»
e o objecto que tem à sua frente é dessa cor, os pais dizem «Muito bem!»
ou «Certo!». Se o objecto for vermelho, os pais dirão «Errado!». Tal
não é possível fazer-se quando a criança aprende a reagir a coisas do
interior do seu corpo. Ensinar uma criança a estabelecer distinções entre
os seus sentimentos é um pouco como o que aconteceria se fosse um
daltónico que ensinasse a criança a designar as cores. O professor não
pode estar seguro da presença ou ausência da condição que determina
se uma dada resposta deve ou não ser reforçada.
De uma maneira geral, a comunidade verbal não é capaz de criar
as contingências subtis que são necessárias ao ensino de distinções ténues
entre estímulos que lhe sejam acessíveis. Tem de apoiar-se nos indícios
visíveis da presença ou ausência de uma dada condição pessoal. Os pais
podem ensinar um filho a dizer «Tenho fome», não porque sintam o
que a criança sente, mas porque a vêem comer com sofreguidão ou agir
de outro modo que esteja relacionado com a privação de alimento (ou
com o reforçamento mediante a ingestão de alimentos). Os indícios podem
ser válidos e a criança pode aprender a «expressar os seus sentimentos»
com certa precisão. Nem tudo se passa, porém, deste modo, pois muitos
sentimentos apresentam manifestações comportamentais imperceptíveis.
Por este motivo é inexacta a linguagem das emoções: somos levados a
descrever as nossas emoções em termos que foram aprendidos em ligação
com outros tipos de coisas e quase todas as palavras que utilizamos foram
originalmente metáforas.
Podemos ensinar uma criança a qualificar certas coisas como boas,
reforçando-a de acordo com as nossas sensações gustativas, visuais e tácteis,
mas nem toda a gente acha boas as mesmas coisas, pelo que podemos
estar errados. Os outros indícios de que dispomos provêm exclusivamente
do comportamento da criança. Se dermos à criança um novo alimento
e ela começar a comê-lo de livre vontade, o primeiro gosto foi naturalmente
reforçante. Dizemos-lhe então que a comida é boa e concordamos com
ela quando disser o mesmo. Todavia a criança dispõe de outras informações.
Ela sente outros efeitos e mais tarde qualificará outras coisas de boas
se produzirem os mesmos efeitos, ainda que esse comer de livre vontade
não figure entre eles.
Não existe qualquer ligação casual importante entre o efeito reforçante

89
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

de um estímulo e os sentimentos que suscita. De acordo com a


reinteipretação da emoção por parte de William James, poderíamos sentir-
-nos tentados a dizer que um dado estímulo não é reformate por fazer
com que nos sintamos bem, mas sim que faz com que nos sintamos
bem por ser reform ate. Contudo, os «porquês» seriam novamente
enganadores. Os estímulos são reforçantes e produzem condições que
sentimos como boas por uma única razão, que deverá ser encontrada
numa análise da sua evolução.
Mesmo como simples pista, o que é importante não é a sensação
mas o objecto sentido: é o vidro que sentimos liso e não uma «sensação
de lisura»; é o reforçador que nos dá uma sensação agradável e não
a sensação agradável. O homem generalizou os sentimentos produzidos
pelas coisas boas, dando-lhes o nome de prazer, e os produzidos pelas
coisas más, dando-lhes o nome de dor; no entanto, não proporcionamos
a uma pessoa prazer ou dor, mas sim coisas que ela sente como agradáveis
ou dolorosas. O homem não visa aumentar ao máximo o prazer e reduzir
ao mínimo a dor, como defendiam os hedonistas; trabalha antes com
vista a produzir coisas agradáveis e evitar coisas dolorosas. Epicuro não
estava totalmente certo: o prazer não constitui o bem supremo nem a
dor o mal extremo; as coisas que são apenas boas constituem reforçadores
positivos, enquanto as que são apenas más constituem reforçadores
negativos. O que se aumenta ao máximo ou reduz ao mínimo, ou o que
é em última análise o bem ou o mal são as coisas e não os sentimentos.
Os homens trabalham para alcancá-las ou para evitá-las, não pelo que
sentem, mas porque elas constituem reforçadores positivos ou negativos.
(Quando qualificamos algo de agradável, podemos estar a descrever uma
sensação, mas esta é apenas um subproduto do facto de uma dada coisa
agradável ser, literalmente falando, uma coisa reforçante. Referimo-nos
ao prazer (gratification) sensorial como se fosse uma questão de sensações;
porém, deleitar (gratify) é reforçar e a gratidão diz respeito a um reforço
recíproco. Classificamos um reforçador de satisfatório (satisfying) como
se nos referíssemos a uma sensação, mas a palavra reporta-se literalmente
a uma alteração do estado de privação que torna um dado objecto reforçante.
Estar satisfeito é estar saciado.)
Algumas das coisas boas e simples que funcionam como reforça­
dores provêm de outras pessoas: as pessoas aquecem-se ou protegem-
se mantendo-se juntas, reforçam-se umas às outras sexualmente e partilham,
pedem emprestados ou roubam os haveres dos outros. O reforçamento
que parte de outra pessoa não é necessariamente intencional. A pessoa

90
OS VALORES

aprende a bater palmas a fim de atrair a atenção de outrem, mas a outra


pessoa não se volta com o intuito de induzi-la a repetir o gesto. As mães
aprendem a acalmar uma criança inquieta afagando-a, mas a criança não
emudece a fim de induzir a mãe a repetir as carícias. A pessoa aprende
a repelir um inimigo batendo-lhe, mas este não se afasta para que lhe
voltem a bater noutra ocasião. Em qualquer destes casos, qualificamos
de não-intencional a acção reforçante. A pessoa age intencionalmente,
como vimos, não no sentido de que possui uma intenção que então põe
em prática, mas sim no sentido de que o seu comportamento foi já
fortalecido por determinadas consequências. A criança que chora até ser
afagada começa a chorar intencionalmente. Um instrutor de boxe poderá
ensinar o seu pupilo a aplicar-lhe determinados golpes, agindo como se
estivesse magoado. Não é provável que prestemos atenção a uma dada
pessoa para induzi-la a bater palmas, mas ela poderá fazê-lo inten­
cionalmente se esse meio de chamar a atenção for menos aversivo do
que outro.
Quando são outras pessoas que criam e mantêm contingências de
reforço, podemos dizer que a pessoa afectada por essas contingências
procede «para o bem dos outros». E provável que as primeiras (e ainda
as mais correntes) contingências geradoras de tal comportamento sejam
aversivas. Qualquer indivíduo que detenha o poder necessário poderá tratar
os outros aversivamente até que estes respondam de maneiras que o
reforcem. Os métodos que empregam um reforço positivo são mais difíceis
de aprender e têm menos probabilidades de ser usados, já que os resultados
são normalmente retardados, embora tenham a vantagem de obviar contra-
ataques. O método a usar depende muitas vezes do poder disponível:
os fortes ameaçam com danos físicos, os feios amedrontam, os fisicamente
atraentes reforçam os outros sexualmente e os ricos pagam. O poder dos
reforçadores verbais provém dos reforçadores específicos concomitantes
e, como são usados com reforçadores diferentes em alturas diferentes,
o efeito pode ser generalizado. Reforçamos positivamente uma pessoa
dizendo-lhe «Bem!» ou «Certo!» e negativamente, dizendo-lhe «Mal!»,
ou «Errado!» e estes estímulos verbais são eficazes porque foram já
acompanhados de outros reforçadores.
(Pode estabelecer-se uma distinção entre aqueles dois pares de palavras.
O comportamento é qualificado de bom ou mau, - e as conotações éticas
não são casuais - segundo o modo como os outros costumam reforçá-
lo. Por outro lado, o comportamento é geralmente qualificado de certo
ou errado relativamente a outras contingências. Existe uma maneira certa

91
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

e outra errada de agir: uma dada manobra na condução de um automóvel


é correcta e não apenas boa e outra é incorrecta e não apenas má. Pode
estabelecer-se uma distinção análoga entre o elogio e a reprovação, de
um lado, e o mérito e a culpa, do outro. De uma maneira geral, louvamos
ou reprovamos as pessoas quando o seu comportamento nos reforça positiva
ou negativamente, independentemente dos produtos do seu comportamento;
porém, quando reconhecemos a alguém mérito por uma realização ou
culpamo-lo de problemas, a nossa atenção incide mais na realização ou
nos problemas e frisamos tratarem-se efectivamente de consequências do
comportamento da pessoa. Apesar disso, usamos «Certo!» e «Bem!» quase
indistintamente e talvez nem sempre valha a pena fazer uma distinção
entre elogiar e reconhecer mérito).
O efeito de um dado reforçador que não possa ser atribuído ao seu
valor de sobrevivência no curso da evolução (o efeito da heroína, por
exemplo) é, presumivelmente, anómalo. Os reforçadores condicionados
parecem talvez sugerir outros tipos de susceptibilidades, mas são eficazes
em consequência de determinadas contingências verificadas numa fase
recuada da vida do indivíduo. Segundo Dodds57, o grego homérico lutava
com inspirado fervor para conquistar, não a felicidade, mas o apreço
dos outros homens. Pode tomar-se a felicidade para representar os
reforçadores pessoais, que podem ser atribuídos ao valor de sobrevivência,
e o apreço para representar alguns dos reforçadores condicionados usados
para induzir a pessoa a agir para o bem dos outros, mas todos os reforçadores
condicionados recebem o seu poder de reforçadores pessoais (em termos
tradicionais, o interesse público baseia-se sempre no interesse privado)
e, por conseguinte, do processo evolutivo da espécie.
O que o indivíduo sente em relação a proceder para o bem alheio
depende dos reforçadores usados. Os sentimentos são subprodutos das
contingências e não, contribuem de modo nenhum para diferençar o que
é público do que é pessoal. Não queremos dizer que os simples reforçadores
biológicos sejam eficazes por causa do amor-próprio e não deveríamos
atribuir a um amor pelos outros o procedimento que visa o bem alheio.
Ao trabalhar para o bem dos outros, a pessoa poderá sentir amor ou
medo, lealdade ou obrigação ou experimentar qualquer outro sentimento
decorrente das contingências responsáveis pelo comportamento. A pessoa
não age para o bem alheio devido a um sentimento de solidariedade nem
se recusa a agir por um sentimento de alienação. O seu comportamento
depende, sim, do controlo exercido pelo ambiente social.
Quando alguém é induzido a agir para o bem de outra pessoa, é

92
OS VALORES

lícito perguntar se o resultado é justo ou merecido. Serão proporcionais


os bens recebidos por ambas as partes? Quando uma dada pessoa controla
outra aversivamente, não existe qualquer bem proporcional e poderá ainda
usar-se reforçadores positivos de tal modo que os ganhos estão longe
de equiparar-se. Nada nos processos comportamentais garante um
tratamento justo, dado que a amplitude do comportamento gerado por
um reforçador depende das contingências em que surge. Num caso extremo,
a pessoa poderá ser reforçada por outras segundo um programa (schedide)
que lhe custará a vida. Suponhamos, por exemplo, que determinado grupo
se encontra sob a ameaça de um predador (o «monstro» da mitologia).
Um dado indivíduo dotado de força ou destreza ataca e mata o monstro
ou repele-o. Livre da ameaça, o grupo reforça o herói com manifestações
de apreço, encómios, honrarias, provas de afecto, celebrações, estátuas,
arcos de triunfo, e a mão da princesa.
Algumas destas manifestações poderão não ser intencionais, mas não
deixam de reforçar o herói: outras poderão ser intencionais, isto é, o
herói é reforçado precisamente para ser induzido a enfrentar outros
monstros. O que se reveste de maior importância em tais contingências
é o facto de que, quanto maior for a ameaça, maior será o apreço votado
ao herói que a conjurar. Deste modo, o herói é incumbido de missões
cada vez mais arriscadas, até que morre. As contingências não são
necessariamente sociais, pois encontramo-las noutras actividades perigosas,
tais como a escalada de montanhas, em que quanto maior for o perigo
mais reforçante se torna a libertação do perigo. (Que um processo
comportamental deva por isso correr mal e conduzir à morte, é tanto
uma violação do princípio da selecção natural como o comportamento
fototrópico da borboleta, o qual tem valor de sobrevivência quando conduz
a borboleta para a luz solar, mas que revela ser letal quando a conduz
para uma chama).
Tal como vimos, o problema do que é justo ou merecido é em muitos
casos uma questão de boa administração. A questão reside em apurar
se os reforçadores estão a ser usados judiciosamente. «Should» e
«ought»s8 são duas outras palavras há muito associadas a juízos de valor,
sem que o seu emprego constitua obviamente uma questão de economia.
Usamo-las antes para esclarecer certas contingências não-sociais. «Para
ir para Coimbra, deverá (shotdd/oughí) seguir por aquela estrada» não
é mais do que uma variante de «Se for reforçado por chegar a Coimbra,
será reforçado ao seguir por aquela estrada». Dizer que determinada estrada
é o caminho «certo» para se chegar a Coimbra não constitui um juízo

93
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

ético ou moral, mas apenas uma afirmação acerca de uma rede rodoviária.
Algo mais próximo de um juízo de valor parece transparecer numa
afirmação como «Dev(er)ia ler David Copperfield», que podemos traduzir
por «Será reforçado se ler David Copperfield». Trata-se de um juízo de
valor na medida em que sugere que o livro será reforçante. Poderemos
tornar explícita tal sugestão se mencionarmos parte das nossas razões:
«Se gostou de Great Expectations, dev(er)ia ler D a v i Copperfield». Tal
juízo de valor é correcto se se considerar verdade generalizada que quantos
são reforçados pela leitura de Great Expectations o são igualmente pela
outra obra de Dickens.
«Should» e «onght», começam a pôr questões mais difíceis quando
nos voltamos para as contingências nas quais a pessoa é induzida a agir
para o bem dos outros. «Deve(ria) dizer a verdade», é um juízo de valor
na medida em que diz implicitamente respeito a contingências reforçantes,
podendo ser traduzido do seguinte modo: «Se é reforçado pela consideração
dos outros, será reforçado quando disser a verdade». O valor encontra-
se nas contingências sociais que vigoram por razões de controlo. Constitui
um juízo moral ou ético no sentido em que ethos e mores se reportam
às práticas consuetudinárias de um dado grupo social.
Encontramo-nos num campo em que é fácil perder de vista as
contingências. Uma pessoa conduz bem um automóvel devido às
contingências de reforço que modelaram e mantêm o seu comportamento.
A explicação tradicional para esse comportamento consiste em afirmar
que a pessoa possui os conhecimentos ou a perícia requeridos para conduzir
um carro, mas tais conhecimentos e tal perícia devem, por sua vez, ser
feitos remontar a contingências que poderão ter sido já usadas para explicar
o comportamento. Não dizemos que a pessoa faz o que «deve fazer»
ao conduzir um cano devido a qualquer noção interior do que é correcto
ou certo. Todavia, é provável que apelemos para qualquer virtude interior
a fim de explicarmos as razões por que a pessoa procede bem para com
os outros. Ora ela procede bem, não porque a sociedade a tenha dotado
de um certo sentido de responsabilidade ou obrigação ou ainda de lealdade
ou respeito pelos outros, mas sim porque criou contingências sociais
eficazes. Os comportamentos classificados de bons ou maus e de certos
ou errados não são devidos à bondade ou à maldade, a um bom ou mau
carácter ou a um conhecimento do que é certo e do que é errado;
devem-se, sim, a contingências que envolvem uma grande diversidade
de reforçadores, que incluem já os generalizados reforçadores verbais
«Bem!», e «Mal!», «Certo!» e «Errado!».

94
OS VALORES

Uma vez identificadas as contingências que controlam o


comportamento qualificado de bom ou mau e de certo ou errado, torna-
se clara a distinção entre os factos e o que as pessoas sentem em relação
aos factos. O que elas sentem em relação aos factos é um subproduto.
O importante é o que fazem em relação a eles e aquilo que fazem constitui
um facto que deve ser entendido através da análise de contingências
relevantes. Karl Popper59 defendeu uma posição tradicional contrária,
como podemos verificar:
«Perante o facto sociológico de que a maioria das pessoas adoptam
a norma «Não roubarás», é ainda possível optar por essa norma ou pela
antinómica; e é também possível encorajar aqueles que adaptaram a norma
a respeitá-la rigorosamente ou desencorajá-los, persuadindo-os a adoptar
uma outra norma. E impossível extrair uma proposição que exprima uma
norma ou decisão de uma proposição que exprime um facto, o que é
apenas uma outra maneira de dizer que é impossível extrair normas ou
decisões dos factos».
A conclusão só é válida se for na realidade «possível optar por essa
norma ou pela antinómica». Estamos perante o homem autónomo no
desempenho do seu papel que mais respeito infunde; todavia, quer a pessoa
respeite a norma «Não roubarás» quer não, isso depende de contingências
subjacentes, a que não podemos deixar de prestar atenção.
Podemos ilustrar o nosso ponto de vista com alguns factos relevantes.
Muito antes de a «norma» haver sido formulada, já as pessoas atacavam
aqueles que as roubavam. Num dado momento, o roubo passou a ser
qualificado de errado e, como tal, começou a ser punido até por aqueles
que não tinham sido roubados. Um dado indivíduo que estivesse
familiarizado com tais contingências (possivelmente por lhes ter estado
exposto) poderá então ter aconselhado outrem do seguinte modo: «Não
roube». Se esse indivíduo tivesse prestígio ou autoridade suficiente, não
precisaria de acrescentar mais pormenores à descrição das contingências.
A forma mais forte «Não roubarás», como um dos Dez Mandamentos,
sugere sanções sobrenaturais. Por outro lado, encontramos implicações
de contingências sociais relevantes em «Não deve roubar», que poderíamos
traduzir por «Se tende a evitar ser punido, evite roubar» ou ainda por
«Roubar é errado, e todo o comportamento errado é punido». Tal afirmação
tem tanto de normativa como «Se pretende dormir, e o café o mantém
acordado, não o beba».
As normas ou leis incluem afirmações de contingências predominantes,
de ordem natural ou social. Podemos obedecer a uma norma ou respeitar

95
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

uma lei apenas por causa das contingências a que se reportam a norma
ou a lei, mas quem formula as normas e leis inclui geralmente contingências
adicionais. O operário da construção civil obedece a uma dada norma
quando usa um capacete. As contingências naturais, que implicam uma
certa protecção contra a queda de objectos, não são muito eficazes, pelo
que tem de fazer-se cumprir a norma: quem não usar o capacete de protecção
será despedido. Não existe qualquer conexão natural entre o uso de capacete
e a conservação de um emprego; a contingência é mantida a fim de
servir de apoio às contingências naturais mas menos eficazes que justificam
uma dada protecção contra a queda de objectos. Poderíamos apresentar
argumentos paralelos para qualquer norma que envolva contingências
sociais. Ainda que no fim de contas as pessoas procedam de uma maneira
mais eficaz se lhes disserem a verdade, os ganhos são demasiado remotos
para afectar quem lhes diz a verdade e são, portanto, necessárias
contingências adicionais para manter um dado comportamento. Dizer a
verdade é, pois, considerado bom. É a maneira certa de agir, ao passo
que mentir é mau e errado. A «norma» é simplesmente uma afirmação
de contingências.
O controlo intencional «para o bem dos outros» torna-se mais poderoso
quando é exercido por organizações religiosas, governamentais, económicas
e educacionais60. Um dado grupo social mantém um certo tipo de ordem
punindo os seus membros quando procedem mal; porém, quando esta
função é assumida por um governo, a punição é confiada a especialistas,
que têm à sua disposição formas mais poderosas como multas,
encarceramentos ou a morte. O «bom» e o «mau» tornam-se «legal» e
«ilegal» e as contingências são codificadas em leis que especificam
comportamentos e eventuais punições. As leis são úteis àqueles que têm
de respeitá-las, uma vez que especificam o comportamento a ser evitado,
e têm vantagens para aqueles que as fazem cumprir, dado que especificam
o comportamento a ser punido. O grupo social é substituído por uma
organização de contornos muito mais nítidos - um estado ou nação -
cuja autoridade ou poder para punir podem ser assinalados por meio de
cerimónias, bandeiras, música e histórias a respeito de prestigiosos cidadãos
cumpridores da lei e de transgressores infames.
Uma organização religiosa constitui uma forma especial de governo
sob o qual o «bom» e o «mau» se convertem em «piedoso» e «pecaminoso».
As contingências que envolvem reforços positivos e negativos, muitas
vezes exacerbados ao máximo, são codificadas (como mandamentos, por
exemplo) e mantidas por especialistas, que contam geralmente com o

96
OS VALORES

apoio de cerimónias, rituais e histórias. De um modo idêntico, onde os


membros de um grupo não-organizado permutam mercadorias e serviços
em circunstâncias informais, uma instituição ou organização económica
vem esclarecer certas funções especiais, tais como as de patrões,
trabalhadores, compradores e vendedores, e criar tipos especiais de
reforçadores, tais como o dinheiro e o crédito. As contingências passam
a ser descritas em acordos, contratos e outros documentos. Analogamente,
os membros de um grupo não-organizado aprendem uns com os outros,
com ou sem instrução intencional, ao passo que a educação organizada
emprega especialistas chamados professores, os quais actuam em lugares
especiais a que damos o nome de escolas, e cria contingências que implicam
reforçadores especiais, tais como as passagens de ano e diplomas. O «bom»
e o «mau» transformam-se em «certo» e «errado» e o comportamento
a aprender pode ser codificado em sinopses e testes.
À medida que as instituições induzem as pessoas a proceder «para
o bem dos outros» de uma maneira mais eficaz, transformam também
o que a pessoa sente. Uma pessoa não apoia o seu governo por ser leal,
mas sim porque o governo criou contingências especiais. Chamamos-lhe
uma pessoa leal e ensinamo-la a considerar-se leal e a considerar como
«lealdade» quaisquer condições especiais que sinta. Uma pessoa não apoia
uma dada religião por ser devota; dá-lhe o seu apoio devido às contingências
criadas pela instituição religiosa. Chamamos-lhe devota e ensinamo-la
a considerar-se devota e a considerar como «devoção» o que sente. Os
conflitos de sentimentos, como nos temas das literaturas clássicas em
que o amor se opunha ao dever ou o patriotismo à fé, são na realidade
conflitos entre contingências de reforço.
À medida que as contingências que induzem o homem a proceder
«para o bem dos outros» se tomam mais poderosas, elas eclipsam certas
contingências que envolvem reforçadores pessoais. Poderemos então lançar-
-Ihes um repto (contestá-las). O repto é, como se depreende, uma metáfora
que sugere uma contenda ou batalha e o que as pessoas na realidade
fazem em resposta a um controlo excessivo ou incompatível pode ser
descrito de uma forma mais explícita. No Capítulo 2, examinámos o padrão
na luta pela liberdade. A pessoa pode renegar um governo, reme­
tendo-se para o controlo informal de um grupo menor ou para uma
solidão thoreauniana. Pode tornar-se um apóstata da religião ortodoxa,
voltando-se para as práticas éticas de um grupo informal ou para o
isolamento de um eremitério. Pode esquivar-se a um controlo económico
organizado, preferindo uma troca informal de produtos e serviços ou uma

97
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

subsistência solitária. Pode abandonar o saber organizado dos intelectuais


e cientistas em favor da experiência pessoal (trocando o Wissen [saber]
pelo Verstehen [compreender]). Outra possibilidade consiste em enfraquecer
ou destruir aqueles que impõem o controlo, possivelmente através do
estabelecimento de um sistema concorrente.
Tais mudanças são muitas vezes acompanhadas de comportamento
verbal que serve de sustentáculo à acção não-verbal e induz os outros
a participarem. O valor ou validade dos reforçadores usados pelos outros
e pelas instituições poderá ser posto em causa:«Por que razão devo
conquistar a admiração ou evitar a censura dos outros?»; «De que me
serve realmente o meu governo ou qualquer governo?»; «Poderá a igreja
efectivamente determinar se serei eternamente condenado ou bem-
-aventurado?»; «O que é que o dinheiro tem de maravilhoso?»; «Precisarei
de todas as coisas que ele compra?»; «Por que razão devo estudar todas
as coisas apresentadas no programa da faculdade?». Em suma: «Porque
hei-de proceder ‘para o bem dos outros’?».
Quando destruímos ou nos esquivamos deste modo ao controlo exercido
pelos outros, restam-nos apenas os reforçadores pessoais. O indivíduo
entrega-se à experiência de prazeres (gratification) imediatos, possivelmente
através do sexo ou de drogas. Se não precisar de esforçar-se muito para
encontrar comida, abrigo e protecção, produzir-se-á pouco comportamento.
Afirma-se então que ele sofre de uma ausência de valores. Gomo assinalou
Maslow61, a ausência de valores (valuelessness) é «diversamente descrita
como anomia, amoralidade, anedonia, desenraizamento, vacuidade,
desesperança ou falta de algo em que acreditar e a que se devotar». Todos
estes termos parecem reportar-se a sentimentos ou estados de espírito,
mas o que efectivamente falta são reforçadores eficazes. A anomia e a
amoralidade reportam-se a uma ausência de reforçadores já existentes
que induzam as pessoas a respeitar normas. A anedonia, o desenraizamento,
a vacuidade e a desesperança assinalam a ausência de reforçadores de
todos os tipos. O que se exprime como «algo em que acreditar e a que
se devotar» encontra-se entre as contingências já existentes que induzem
as pessoas a agir «para o bem dos outros».
A distinção entre sentimentos e contingências reveste-se de particular
importância quando se tem de passar à acção prática. Se o indivíduo
sofrer na verdade de um vago estado interno chamado ausência de valores,
então só poderemos resolver o problema modificando esse estado:
«reactivando o poder moral», «incutindo-lhe força moral», por exemplo,
ou «fortalecendo-lhe o moral ou as suas opções espirituais. O que tem

98
OS VALORES

de ser alterado são as contingências, quer as encaremos como responsáveis


pelo comportamento deficiente quer pelos sentimentos que se afirma
explicarem o comportamento.
Propõe-se frequentemente fortalecer os controlos originais através da
eliminação de conflitos, da utilização de reforçadores mais imperiosos
e de uma exacerbação das contingências. Se as pessoas não trabalham,
não é porque sejam preguiçosas ou destituídas de expediente, mas porque
não são suficientemente remuneradas ou porque o bem-estar ou a abundância
reduziram já a eficácia dos reforçadores económicos. Crê-se que a solução
para este problema está em fazer com que as coisas boas da vida apenas
sejam convenientemente dependentes do trabalho produtivo. Se os cidadãos
não cumprem a lei, não é porque sejam desrespeitadores da lei ou
criminosos, mas porque se tomaram frouxas as medidas que visam fazer
cumprir a lei; o problema pode resolver-se pela recusa a suspender ou
comutar penas, pelo aumento da força policial e pela aprovação de leis
mais severas. Se os estudantes não estudam, não é porque não se sintam
interessados, mas porque os critérios foram degradados ou as matérias
ensinadas deixaram de ser relevantes para uma vida satisfatória. Em
contrapartida, procurarão activamente instruir-se se for restaurado o
prestígio concedido ao saber teórico e prático. (Como resultado
concomitante, as pessoas passarão a sentir-se diligentes, respeitadoras da
lei e interessadas em instruir-se.)
Tais propostas que visam fortalecer antigas modalidades de controlo
são correctamente classificadas de reaccionárias. A estratégia poderá ter
algum êxito, mas não solucionará os problemas. O controlo organizado
«para o bem dos outros» continuará a competir com os reforçadores pessoais
e, num outro plano, competirão entre si diferentes tipos de controlo
organizado. A diferença dos bens recebidos por quem exerce o controlo
e pelo indivíduo controlado continuará a ser injusto ou iníquo. Se o problema
reside simplesmente em corrigir essa diferença, qualquer medida que torne
o controlo mais eficaz encaminha as coisas na direcção errada, mas qualquer
acção que vise um individualismo total ou uma libertação completa do
controlo seguirá também na direcção errada.
O primeiro passo da resolução do problema consiste em identificar
todos os bens recebidos pelo indivíduo quando controlado para o bem
dos outros. As outras pessoas exercem controlo através da manipulação
dos reforçadores pessoais a que o organismo humano seja susceptível,
assim como de reforçadores condicionados, tais como o eiogio ou a censura,
que deles derivam. Existem, porém, outras consequências que passam

99
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

facilmente despercebidas por não ocorrerem imediatamente. Debatemos


já o problema de tornar eficazes as consequências aversivas de efeito
retardado. Põe-se um problema idêntico quando as consequências retardadas
são positivam ente reforçantes. Trata-se, pois, de um problema
suficientemente importante que justifica alguns comentários adicionais.
Presume-se que o processo do condicionamento operante tenha evoluído
quando aqueles organismos que eram mais susceptíveis às consequências
do seu comportamento se tornaram mais capazes de se adaptar ao ambiente
e sobreviver. Apenas as consequências verdadeiramente imediatas poderiam
ser eficazes. Uma das razões para este facto relaciona-se com as «causas
finais». Com efeito, o comportamento não é susceptível de ser afectado
por algo que lhe suceda, mas, se uma «consequência», for imediata, poderá
sobrepor-se ao comportamento. Uma segunda razão diz respeito à relação
funcional entre o comportamento e as suas consequências. As contingências
de sobrevivência não poderiam gerar um processo de condicionamento
que tomasse em consideração o modo como o comportamento produzia
as suas consequências. A única relação útil foi temporal: desenvolver-
-se-ia o processo no qual um dado reforçador fortalecesse qualquer
comportamento a que se seguisse. Contudo, o processo só seria importante
se fortalecesse um comportamento que efectivamente produzisse resultados.
Daí a importância do facto de que qualquer mudança que suceda
imediatamente a uma resposta tem as maiores probabilidades de haver
sido produzida por ela. Uma terceira razão, relacionada com a segunda
mas de natureza mais prática, é que o efeito reforçante de qualquer
consequência retardada pode ser (por assim dizer) usurpado por um dado
comportamento que sobrevenha, o qual é reforçado apesar de não haver
desempenhado qualquer papel na produção do acontecimento reforçante.
Se bem que o processo do condicionamento operante esteja ligado
aos efeitos imediatos, existem consequências remotas que podem ser
importantes e o indivíduo colhe benefícios se puder ser submetido ao
seu controlo. A distância pode ser anulada mediante uma série de
«reforçadores condicionados», dos quais já examinámos um exemplo.
A pessoa que tenha frequentemente fugido à chuva recolhendo-se debaixo
de um abrigo acabará eventualmente por evitá-la, afastando-se antes que
comece a chover. Os estímulos que frequentemente precedem a chuva
convertem-se em reforçadores negativos (damos-lhes o nome de sinal ou
ameaça de chuva). São mais aversivos quando a pessoa não se encontra
abrigada; deste modo, ao procurar abrigo, a pessoa esquiva-se-lhes e evita
molhar-se. A verdadeira consequência não é a de evitar molhar-se quando

100
OS VALORES

eventualmente chover, mas sim a redução imediata de um estímulo aversivo


condicionado.
Podemos mais facilmente examinar o papel de mediadora de uma
consequência remota quando os reforçadores são positivos. Consideremos,
por exemplo, um fragmento de «paleocomportamento» a que se dá o
nome de abafar o fogo. A prática de amontoar cinza sobre as brasas
à noite, a fim de que possa encontrar-se na manhã seguinte um carvão
ainda incandescente para voltar a acender uma fogueira ou lume, deverá
ter sido muito importante nos tempos em que não era fácil acender um
lume de outra forma. Como teria sido aprendida tal prática? (Como é
óbvio, não serve de explicação dizer que alguém «teve a ideia» de abafar
o fogo, pois teríamos de seguir um caminho paralelo para explicar a
ideia.) O carvão incandescente encontrado de manhã dificilmente poderia
reforçar o comportamento de amontoar cinzas na noite anterior; porém,
esse intervalo de tempo pôde ser anulado por uma série de reforçadores
condicionados. Constitui tarefa fácil aprender a acender um lume a partir
de outro que não esteja ainda completamente apagado; por outro lado,
se o lume parecesse apagado já há algum tempo, deveria ter sido fácil
aprender a escavar a cinza para encontrar uma brasa. Um montão de
cinza ter-se-ia então tornado um reforçador condicionado - a ocasião em
que se pode escavar a cinza e encontrar uma brasa. O amontoar de cinza
teria então sido a automaticamente reforçado. O lapso de tempo poderá
ter sido, a princípio, muito curto (abafou-se um lume de determinada
maneira, tendo sido encontrado pouco tempo depois), mas, à medida que
essa acção se foi convertendo numa prática, os aspectos temporais das
contingências poderão ter mudado.
À semelhança de todas as descrições das origens de formas de «paleo­
comportamento», também esta é altamente especulativa, mas pode servir
para estabelecer um princípio. As contingências nas quais as pessoas
aprenderam a abafar fogos deverão ter sido extremamente raras. Para
garantir a sua plausibilidade, devemos ter em conta o facto de que passavam
centenas de milhares de anos, durante os quais poderiam ter ocorrido.
Todavia, uma vez adquirido o comportamento de abafar o fogo (ou parte
dele) por um dado indivíduo, outros puderam adquiri-lo com muito maior
facilidade, pelo que deixaram de ser necessárias quaisquer outras
contingências acidentais.
Uma das vantagens de sermos animais gregários é a de não precisarmos
de descobrir práticas por nossa conta. Os pais ensinam os filhos, tal como
o artífice ensina o aprendiz, já que desse modo ganham ajudantes úteis,

101
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

mas ao longo desse processo tanto a criança como o aprendiz adquirem


um comportamento útil que muito provavelmente não adquiririam em
contingências não-sociais. Não é provável que as sementeiras sejam feitas
na primavera só pela simples razão de as colheitas serem feitas no outono.
A sementeira não seria adaptativa ou «razoável» se não houvesse qualquer
ligação com a colheita, mas semeia-se na primavera devido a contingências
mais imediatas, a maioria das quais decorre do ambiente social. A colheita
tem, na melhor das hipóteses, o efeito de preservar uma série de reforçadores
condicionados.
Um dos repertórios importantes que é necessariamente adquirido
dos outros indivíduos é o verbal. O comportamento verbal terá,
presumivelmente, surgido sob contingências que envolviam interacções
sociais práticas, mas o indivíduo que se toma tanto um «falante» como
um «ouvinte» possui um repertório de alcance e poder extraordinários,
que pode usar por si mesmo. Partes desse repertório dizem respeito ao
autoconhecimento e ao autocontrolo, que, como veremos no Capítulo 9,
são produtos sociais, muito embora costumem ser mal interpretados como
intensamente individuais e subjectivos.
Ainda outra vantagem importante é que o indivíduo é, afinal de
contas, um dos «outros» que exercem controlo e que assim agem para
seu próprio benefício. Procura muitas vezes justificar-se as instituições
organizadas quando se salienta certos valores gerais. Sob um governo,
o indivíduo desfruta de uma certa medida de ordem e segurança. Um
sistema económico justifica-se pondo em relevo a riqueza que produz,
enquanto um sistema educacional aponta para os conhecimentos teóricos
e práticos que proporciona.
Sem um ambiente social, a pessoa permanece essencialmente selvagem,
como acontece com aquelas crianças que se afirma terem sido criadas
por lobos ou que conseguiram sobreviver por si próprias desde tenra idade
num clima propício. O indivíduo que tenha vivido só desde a nascença
não apresentará comportamento verbal, não terá consciência de si mesmo
como pessoa, não possuirá técnicas de auto-administração e, em relação
ao mundo que o rodeia, só dominará aquelas habilidades rudimentares
que pode adquirir-se, durante uma vida breve, de contingências não-sociais.
No Infemo de Dante, sofrerá as torturas reservadas àqueles que «viveram
sem censura e sem louvor», como os «anjos que existiram... para si
próprios»62. Existir para si próprio é ser quase nada.
Os grandes individualistas tantas vezes citados para mostrar o valor
da liberdade pessoal ficaram a dever os seus sucessos aos ambientes sociais

102
OS VALORES

que precederam o seu isolamento. O individualismo involuntário de um


Robinson Crusoe e o individualismo voluntário de um Henry David Thoreau
revelam que eles estavam obviamente em débito para com a sociedade.
Se Crusoe tivesse chegado à ilha quando criança e se Thoreau houvesse
crescido isolado nas margens de Walden Pond, as suas histórias teriam
sido diferentes. Todos temos de começar como crianças e não há
autodeterminação, auto-suficiência ou autoconfiança que nos tornem, em
sentido algum, indivíduos, a não ser como membros da espécie humana.
O grande princípio de Rousseau - «a natureza fez o homem feliz e bom,
mas a sociedade corrompe-o e toma-o infeliz»63 - estava errado. Não
deixa, porém, de ser irónico que, ao queixar-se de que o seu livro Émile
tivesse sido tão mal compreendido, Rousseau o descreva como «um tratado
sobre a bondade original do homem, destinado a mostrar como o vício
e o erro, estranhos à sua natureza, se introduzem nele e insensivelmente
o modificam», uma vez que o livro constitui na verdade um dos grandes
tratados práticos sobre o modo como pode ser manipulado o comportamento
humano.
Mesmo aqueles que se destacam como revolucionários são quase
integralmente produtos convencionais dos sistemas que derrubam. Falam
a língua, usam a lógica e a ciência, respeitam muitos dos princípios éticos
e jurídicos que a sociedade lhes transmitiu. Só uma pequena parcela do
seu comportamento poderá ser excepcional e talvez o seja até de uma
forma dramática, pelo que temos de procurar razões excepcionais na
evolução das suas idiossincrasias. (Atribuir as suas contribuições originais
a um carácter «prodigioso», de homem autónomo não constitui, como
é óbvio, explicação válida.)
Estes são, portanto, alguns dos lucros a creditar ao controlo exercido
pelos outros, para além dos bens usados nesse controlo. Os lucros mais
remotos são relevantes para qualquer avaliação da justiça ou equidade
do intercâmbio entre o indivíduo e o seu ambiente social. Não se conseguirá
um equilíbrio razoável enquanto os ganhos mais remotos forem
negligenciados por individualistas radicais ou pelos doutrinários do livre
arbítrio, ou ainda enquanto um sistema baseado na exploração fizer pender
violentamente a balança na outra direcção. Presumimos que exista um
estado ideal de equilíbrio, no qual todos sejam reforçados ao máximo.
Contudo, tal afirmação implica outro tipo de valor. Porquê interessar-
-nos por problemas de justiça ou equidade, mesmo que estes possam
reduzir-se a um questão de boa administração na aplicação de reforçadores?
É óbvio que às questões por que começámos não podemos responder com

103
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

a simples indicação do que é bom para o indivíduo e do que é bom


para os outros. Há outro tipo de valor sobre o qual iremos seguidamente
debruçar-nos.
A luta pela liberdade e pela dignidade tem sido formulada mais
como uma defesa do homem autónomo do que como uma revisão das
contingências de reforço que envolvem o homem. Dispomos de uma
tecnologia do comportamento que reduziria com maior sucesso as
consequências aversivas, a curto ou a longo prazo, do comportamento,
além de aumentar ao máximo as realizações de que o organismo humano
é capaz; os defensores da liberdade opõem-se, no entanto, à sua aplicação.
Tal oposição poderá levantar certas questões que dizem respeito a «valores».
A quem cabe decidir o que é bom para o homem? Como será aplicada
uma tecnologia mais eficaz? Por quem e com que fim? Estas inter­
rogações dizem verdadeiramente respeito a reforçadores. Certas coisas
tornaram-se «boas» durante a evolução da espécie e podem ser usadas
com vista a induzir o indivíduo a agir para o «bem dos outros». Quando
usadas em excesso, podem ser contestadas e levar o indivíduo a
refugiar-se em coisas que apenas são boas para ele. A essa contestação
pode então contrapor-se medidas que visam intensificar as contingências
que produzem comportamento para o bem alheio ou chamar a atenção
para determinados ganhos individuais, anteriormente negligenciados, tais
como os que se idealiza como segurança, ordem, saúde, riqueza ou
sabedoria. Possivelmente de uma maneira indirecta, o indivíduo pode ainda
ser submetido pelos outros ao controlo de determinadas consequências
remotas do seu comportamento, pelo que o bem alheio reverterá então
em benefício do indivíduo. Falta-nos analisar outra espécie de bem que
contribui para o progresso humano.

104
A E V O L U Ç Ã O D E U M A CULTURA

Ao nascer membro da espécie humana, cada criança é portadora


de uma herança genética que apresenta muitos aspectos idiossincrásicos,
começando imediatamente a adquirir um repertório de formas de
comportamento sob as contingências de reforço a que se encontra exposta
como indivíduo. A maior parte destas contingências é criada por outras
pessoas. Constituem, com efeito, o que se denomina uma cultura, se bem
que o termo seja habitualmente definido de outras maneiras. Dois eminentes
antropólogos afirmaram, por exemplo, que «o núcleo essencial de uma
cultura64 consiste nas ideias tradicionais (isto é, historicamente extraídas
e seleccionadas) e particularmente nos valores que lhes estão associados.
Contudo, quem estuda culturas não vê ideias nem valores; vê, sim, como
as pessoas vivem, como criam os filhos, como colhem ou cultivam os
alimentos, como são os seus tipos de habitação e vestuário, como se
divertem, como agem entre si, quais são as suas formas de governo e
outros aspectos. Estuda, portanto os costumes, os comportamentos usuais,
de um povo. A fim de explicá-los, somos forçados a debruçar-nos sobre
as contingências que lhes dão origem.
Certas contingências fazem parte do ambiente físico, ainda que actuem
geralmente em combinação com contingências sociais, sendo as últimas
naturalmente postas em relevo por quem estuda uma cultura. As
contingências sociais (os tipos de comportamento que geram) são as «ideias»
de uma cultura, enquanto os reforçadores que emergem das contingências
são os seus «valores».
A pessoa não só se encontra exposta às contingências que constituem

105
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

uma cultura como ainda contribui para a sua manutenção e, na medida


em que as contingências a induzem a fazê-lo, a cultura perpetua-se a
si mesma. Os reforçadores presentes numa dada cultura constituem matéria
de observação que não podemos contestar. O que determinado grupo de
indivíduos classifica de bom é um facto: constitui aquilo que certos membros
do grupo consideram reforçante em consequência da sua constituição
genética e das contingências naturais e sociais a que estiveram expostos.
Toda a cultura tem o seu próprio conjunto de «bens», logo aquilo que
se considera bom numa cultura pode não sê-lo noutra. Reconhecer tal
é assumir a posição do «relativismo cultural». O que é bom para o indígena
da ilha de Trobriand é bom para o indígena da ilha de Trobriand e daí
não passamos.
Os antropólogos têm frequentemente posto em relevo o relativismo
como uma alternativa tolerante para o zelo missionário de converter todas
as culturas num único conjunto de valores éticos, governamentais, religiosos
ou económicos.
Um dado conjunto de valores poderá explicar porque funciona uma
cultura, possivelmente sem apresentar muitas alterações, durante um longo
período de tempo; nenhuma cultura está, porém, em permanente equilíbrio.
As contingências mudam necessariamente. O ambiente físico sofre
modificações à medida que as pessoas se deslocam, o clima se altera,
os recursos naturais se esgotam, são aproveitados para outros fins ou
deixam de ter utilidade, e assim sucessivamente. As contingências sociais
também se modificam à medida que as proporções de um grupo ou as
suas relações com outros grupos se alteram, as instituções de controlo
se tornam mais ou menos poderosas ou competitivas entre si ou o controlo
exercido conduz a formas de contracontrolo como, por exemplo, a fuga
ou a revolta. Caso não se transmita adequadamente as contingências
características de uma dada cultura, não se mantém a tendência para
se ser reforçado por um determinado conjunto de valores e, por conseguinte,
poderá então estreitar-se ou alargar-se a margem de segurança com que
se enfrenta emergências. Em resumo, a cultura pode tornar-se mais forte
ou mais fraca e podemos prever se irá sobreviver ou perecer. A sobrevivência
de uma cultura emerge assim como um novo valor a tomar em consideração,
a adicionar aos «bens» pessoais e sociais.
O facto de uma cultura poder sobreviver ou perecer sugere uma
evolução, pelo que, naturalmente, se tem traçado com frequência um
paralelismo com a evolução da espécie. Tal paralelismo deve ser rodeado
de prudência. Uma cultura corresponde a uma espécie e descrevêmo-la

106
A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

enumerando muitas das suas práticas, tal como descrevemos uma espécie
através da enumeração das suas características anatómicas. Duas ou mais
culturas podem partilhar uma prática, do mesmo modo que duas ou mais
espécies podem partilhar uma característica anatómica. À semelhança das
características de uma dada espécie, as práticas de uma cultura são
veiculadas pelos seus membros, que as transmitem a outros. De uma maneira
geral, quanto maior for o número de indivíduos que veiculam uma espécie
ou uma cultura, tanto maiores serão as suas possibilidades de sobreviver.
Tal como uma espécie, uma cultura é seleccionada pela sua adaptação
a um dado ambiente: na medida em que uma cultura ajuda os seus membros
a prover às suas necessidades e a evitar os perigos, ela ajuda-os a sobreviver
e a transmitir a cultura. Os dois tipos de evolução estão intimamente
entrelaçados. Os mesmos indivíduos transmitem tanto uma cultura como
uma constituição genética, se bem que de maneiras muito diferentes e
durante períodos diferentes das suas vidas. A capacidade de sofrer as
modificações comportamentais que tornam possível uma cultura foi
adquirida durante uma evolução da espécie e, reciprocamente, a cultura
determina muitas das características biológicas transmitidas. Muitas culturas
actuais, por exemplo, possibilitam aos indivíduos (que de outro modo
não o conseguiriam) sobreviver e procriar. Nem todas as práticas de uma
cultura assim como nem todas as características de uma espécie são
adaptativas, já que determinadas práticas e características não-adaptativas
podem ser veiculadas por outras adaptativas. Deste modo, certas culturas
e espécies que são pouco adaptativas podem sobreviver durante muito
tempo.
A mutações genéticas correspondem novas práticas. Uma nova prática
pode enfraquecer uma cultura (por exemplo, conduzindo a um consumo
supérfluo de recursos ou debilitando a saúde dos seus membros) ou forta-
lecê-la (ajudando os seus membros, por exemplo, a utilizar os recursos
naturais de uma maneira mais eficaz ou a melhorar a sua saúde). À
semelhança de uma mutação, uma alteração da estrutura de um gene
não está relacionada com as contingências de selecção que afectam a
característica resultante, pelo que a origem de uma dada prática também
não está necessariamente relacionada com a seu valor de sobrevivência.
A alergia alimentar de um chefe influente poderá dar origem a uma lei
dietética, determinada idiossincrasia sexual a uma prática matrimonial,
as características de um terreno a uma estratégia militar (e as práticas
poderão ser ainda valiosas para a cultura por razões completamente
divorciadas entre si). Como é evidente, as origens de muitas práticas

107
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

culturais remontam a meros acidentes. Como sofresse as incursões de


tribos que desciam das suas fortalezas naturais constituídas pelas colinas
circundantes, a primitiva Roma65, sita numa planície fértil, promulgou
leis relativas à propriedade que sobreviveram ao problema original. Ao
demarcar de novo as terras, após as cheias anuais do Nilo, os egípcios
desenvolveram a trigonometria, que provou ser vantajosa por muitas outras
razões.
O paralelismo entre as evoluções biológica e cultural perde-se quando
confrontamos os aspectos referentes à transmissão. Nada existe de
semelhante ao mecanismo cromossoma-gene na transmissão de uma prática
cultural. A evolução cultural é lamarckiana no sentido em que as práticas
adquiridas se transmitem. Para citar um exemplo já muito usado, a girafa
não estica o pescoço para alcançar alimentos que, de outro modo, se
encontram fora do seu alcance, transmitindo depois um pescoço mais
longo à sua prole; em vez disso, aquelas girafas nas quais a mutação
produziu pescoços mais compridos têm mais probabilidades de chegar
a alimentos disponíveis e, portanto, de transmitir a mutação. A cultura
que desenvolva uma dada prática que lhe permite alcançar fontes
alimentares (que de outro modo continuariam inacessíveis) pode, no entanto,
transmitir essa prática não só a novos membros como também a
contemporâneos ou a sobreviventes de uma geração precedente. E, o que
é mais importante, uma prática pode ainda ser transmitida a outras culturas
por «difusão» (como se os antílopes, apercebendo-se da utilidade de um
pescoço comprido nas girafas, viessem a ter pescoços mais compridos).
As espécies estão isoladas entre si pela intransmissibilidade das
características genéticas, mas não existe isolamento comparável entre as
culturas. Uma cultura é um conjunto de práticas, mas não um conjunto
que não seja susceptível de misturar-se com outros.
Somos levados a associar uma cultura a um grupo de indivíduos:
torna-se mais fácil ver as pessoas do que o seu comportamento, do mesmo
modo que é mais fácil observar o comportamento do que as contingências
que o produzem. (Também facilmente observáveis, e por isso frequentemente
invocados quando se define uma cultura, são a língua falada e os objectos
usados pela cultura, tais como utensílios, armas, vestuário e objectos de
arte.) Só na medida em que identificarmos uma dada cultura com os
indivíduos que a praticam podemos falar de um «membro de uma cultura»,
uma vez que não se pode ser membro de um conjunto de contingências
de reforço ou de um conjunto de artefactos (ou, ainda pela mesma razão,
de um «conjunto de ideias e dos valores que lhe estão associados»).

108
A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

Vários tipos de isolamento podem produzir uma cultura bem definida


se limitarem a transmissibilidade das práticas culturais. Sugere-se o
isolamento geográfico quando se fala de uma cultura «samoa», ou
características rácias que podem interferir na permuta de práticas por
parte de uma cultura «polinésica». Uma instituição ou sistema dominante
de controlo poderá conservar intacto um conjunto de práticas, Uma cultura
democrática, por exemplo, é um ambiente social caracterizado por
determinadas práticas governamentais e apoiado em compatíveis práticas
éticas, religiosas, económicas e educacionais. Uma cultura cristã,
muçulmana ou budista sugere um controlo religioso dominante; por sua
vez, uma cultura capitalista ou socialista implica um conjunto predominante
de práticas económicas, cada uma daquelas associada possivelmente a
práticas compatíveis de outras naturezas. Uma cultura definida por um
governo, religião ou sistema económico não exige necessariamente um
isolamento geográfico ou rácico.
Ainda que seja muito menos rigoroso o paralelismo traçado entre
as evoluções biológica e cultural no que toca à transmissibilidade, a noção
de evolução cultural continua a ter utilidade. Surgem práticas novas que
tendem a transmitir-se quando contribuem para a sobrevivência daqueles
que as adoptam. Com efeito, podemos estudar a evolução de uma cultura
de uma maneira mais precisa do que a evolução de uma espécie, uma
vez que as condições essenciais são observadas e não inferidas podem
muitas vezes ser ainda manipuladas directamente. Não obstante, tal como
vimos, só agora começámos a compreender o papel do ambiente; além
disso, raramente é fácil identificar o ambiente social que constitui uma
cultura, já que se encontra em mutação permanente, carece de substância
e confunde-se facilmente com as pessoas que o mantêm e por ele são
influenciadas.
Dado que uma cultura tende a identificar-se com as pessoas que
a praticam, tem-se usado o princípio da evolução para justificar a competição
entre culturas de acordo com a assim chamada «doutrina do darwinismo
social»66. Tem-se defendido guerras que opõem governos, religiões, sistemas
económicos, raças e classes com a justificação de que a sobrevivência
do mais apto é uma lei da natureza, de uma natureza dotada de «dentes
e garras sanguinários». Se o homem existe como espécie superior, porque
não havemos de aspirar a uma subespécie ou raça superior? Se a cultura
evoluiu por um processo idêntico, porque não antever uma cultura superior?
É certo que as pessoas se matam umas às outras, muitas vezes por práticas
que parecem definir culturas. Um dado governo ou forma de governo

109
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

compete com outro(a), competição esta que se traduz principalmente nas


despesas militares. Paralelamente, os sistemas religiosos e económicos
recorrem a medidas de natureza militar. A «solução para o problema
judaico» por parte dos nazis constituiu uma luta competitiva de vida ou
de morte. E, numa competição deste tipo, são os fortes que parecem
sobreviver. Todavia, tal como o homem, nenhuma instituição governamental,
religiosa ou económica sobrevive por um período de tempo muito longo.
O que evolui são as práticas.
A competição com outras formas não constitui, quer na evolução
biológica quer na cultural, a única condição importante de selecção, pois
tanto as espécies como as culturas «competem», antes de mais nada, com
o ambiente físico. A maior parte das características anatómicas e fisiológicas
de uma espécie relaciona-se com a respiração, a alimentação, a manutenção
de uma temperatura adequada, a sobrevivência ao perigo, a luta contra
as infecções, a procriação, etc. Apenas uma pequena parte dessas
características diz respeito ao êxito na luta contra outros membros da
mesma espécie ou de outras espécies e a isso deve a sua sobrevivência.
Analogamente, a maior parte das práticas que compõe uma cultura diz
mais respeito à subsistência e à protecção do que à competição com outras
culturas, tendo sido seleccionadas por contingências de sobrevivência
nas quais o sucesso obtido na competição desempenhou papel de pouca
monta.
Uma cultura não é o produto de um «espírito colectivo» nem a
expressão de uma «vontade geral». Nenhuma sociedade começou com
um contrato social; nenhum sistema económico com um plano de permutas
ou salários; nenhuma estrutura familiar com uma perspectiva das vantagens
da coabitação. Uma cultura evolui quando novas práticas propiciam a
sobrevivência daqueles que as adoptam.
Quando se torna evidente que uma dada cultura é susceptível de
sobreviver ou perecer, pode acontecer que alguns dos seus membros
comecem a actuar com vista a promover a sua sobrevivência. Aos dois
valores que, como vimos, podem afectar quantos se encontram em posição
de utilizar uma tecnologia do comportamento - os «bens» pessoais, que
actuam como reforçadores em consequência da constituição genética
humana, e os «bens» dos outros, que são extraídos de reforçadores pessoais
- devemos agora acrescentar um terceiro: o bem de uma cultura. Mas
porque é ele eficaz? Por que motivo hão-de as pessoas do último quartel
do século XX importar-se com o que serão as pessoas do último quartel
do século XXI? Qual será a sua forma de governo? Como e porque

110
A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

trabalharão produtivamente? Quais serão o seus conhecimentos? Como


serão os seus livros, a sua música e a sua pintura? Não é possível extrair
nenhum reforçador actual de algo tão remoto. Por que motivo há-de,
então, o indivíduo considerar a sobrevivência da sua cultura como um
«bem»?
Como é óbvio, não adianta afirmar que uma pessoa age «porque
se preocupa com a sobrevivência da sua cultura». Os sentimentos que
o indivíduo experimenta em relação a qualquer instituição dependem dos
reforçadores que esta utilizar. O que ele sente em relação a um governo
pode variar entre o patriotismo mais fervoroso e o medo mais abjecto,
consoante a natureza das práticas de controlo. O que um indivíduo sente
em relação a um dado sistema económico pode oscilar entre um apoio
entusiástico e um ressentimento intenso, consoante o modo como esse
sistema utiliza reforçadores positivos ou negativos. E o que o indivíduo
sente em relação à sobrevivência da sua cultura dependerá das medidas
adoptadas por esta para induzir os seus membros a trabalhar pela
sobrevivência da cultura. As medidas explicam o apoio; os sentimentos
são apenas subprodutos. Tão-pouco adianta afirmar que alguém tem
subitamente a ideia de trabalhar para a sobrevivência de uma cultura
e a transmite a outras pessoas. Uma «ideia» é pelo menos tão difícil
de explicar quanto as práticas que dizem expressá-la, além de ser muito
menos acessível. Como devemos, porém, explicar tais práticas?
Muito do que a pessoa faz no sentido de promover a sobrevivência
de uma cultura não é «intencional», isto é, não é feito pelo facto de
aumentar o valor de sobrevivência. Uma cultura sobrevive se aqueles que
a veiculam sobreviverem, e a sobrevivência destes depende em parte de
certas susceptibilidades genéticas ao reforço que têm como resultado a
modelação e preservação de formas de comportamento que contribuem
para a sobrevivência. Segundo se presume, as práticas que induzem o
indivíduo a trabalhar pelo bem alheio propiciam a sobrevivência dos outros
e, por conseguinte, a sobrevivência da cultura que veiculam.
As instituições podem extrair reforçadores eficazes de eventos que
só ocorrerão após a morte do indivíduo. Actuam como mediadoras em
questões de segurança, justiça, ordem, saber, riqueza, saúde e outras, mas
o indivíduo apenas desfrutará de parte dos benefícios possíveis. Nos termos
de um plano quinquenal ou de um programa de austeridade, as pessoas
são induzidas a trabalhar aplicadamente e a prescindir de certos tipos
de reforçadores em troca da promessa de reforçadores futuros, mas muitas
delas não viverão o suficiente para desfrutar dessas consequências futuras.

111
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

(Rousseau chegou à mesma conclusão no tocante à educação: metade das


crianças submetidas às práticas educacionais punitivas do seu tempo não
viviam o suficiente para desfrutar dos supostos benefícios.) As honras
concedidas ao herói vivo sobrevivem-lhe sob a forma de monumentos.
Tal como o saber acumulado, a riqueza acumulada sobrevive àquele que
a acumula: certos homens ricos criam fundações que portam o seu nome,
enquanto a ciência e a erudição têm os seus heróis. A noção cristã da
vida depois da morte poderá ter tido a sua origem no reforço social daqueles
que em vida sofrem pela sua religião. O céu é pintado como uma colecção
de reforçadores positivos e o inferno como uma colecção de reforçadores
negativos, se bem que estejam ligados a acções praticadas antes da morte.
(A sobrevivência pessoal além-túmulo poderá constituir um esboço de
representação metafórica do conceito evolucionista do valor de
sobrevivência.) Como é ev/dente, o indivíduo não é directamente afectado
por tais coisas: apenas colhe benefícios dos reforçadores condicionados
usados por outros membros da sua cultura que lhe sobrevivem e são
directamente afectados.
Nada do que acabamos de debater explica aquilo a que poderíamos
chamar uma preocupação pura com a sobrevivência de uma cultura, mas
na realidade nem precisamos de uma explicação. Do mesmo modo que
não necessitamos de explicar a origem de uma dada mutação genética
a fim de justificar o seu efeito na selecção natural, também não precisamos
de explicar a origem de uma dada prática cultural a fim de demonstrar
a sua contribuição para a sobrevivência de uma cultura. Acontece apenas
que tem mais probabilidades de sobreviver aquela cultura que, por qualquer
razão, induza os seus membros a trabalhar para a sobrevivência dessa
cultura ou de algumas das suas práticas. A sobrevivência é, pois, o único
valor pelo qual se deve eventualmente julgar uma dada cultura e qualquer
prática que contribua para a sobrevivência tem, por definição, valor de
sobrevivência.
Caso se considere pouco satisfatória a afirmação de que qualquer
cultura que, por qualquer razão, induza os seus membros a trabalhar
para a sua sobrevivência apresenta mais probabilidades de sobreviver e
perpetuar tais práticas, devemos recordar-nos de que há muito pouco que
explicar. As culturas raramente geram um interesse puro pela sua
sobrevivência, um interesse totalmente liberto dos enfeites jingoístas,
aspectos raciais, localizações geográficas ou práticas oficializadas com
que as culturas tendem a ser identificadas.
Quando se põe em causa os bens dos outros, em especial os bens

112
A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

de instituições organizadas, não é fácil responder apontando vantagens


a usufruir a longo prazo. Assim, os cidadãos contestam o seu governo
quando se recusam a pagar impostos, a servir nas forças armadas ou
a participar em eleições, por exemplo, mas esse governo poderá responder
ao desafio fortalecendo as contingências que manipula ou levando o
comportamento em questão a ser influenciado por ganhos a longo prazo.
No entanto, como responderá esse mesmo governo à pergunta: «Porque
hei-de importar-me com a sobrevivência do meu governo (ou da minha
forma de governo) muito para além da minha morte?» Analogamente,
os fiéis lançam um repto a uma organização religiosa quando deixam
de ir à igreja, não contribuem para a sua subsistência ou não zelam
politicamente pelos seus interesses, mas a organização religiosa poderá
responder ao repto fortalecendo as contingências que controla ou apontando
para ganhos a longo prazo. Contudo, como responderá à pergunta: «Porque
hei-de contribuir para a sobrevivência a longo prazo da minha religião?»
As pessoas põem em causa um sistema económico quando, por exemplo,
não trabalham produtivamente, mas o sistema económico poderá reagir
tornando as contingências mais acutilantes ou lembrando vantagens a
longo prazo. Mas qual será a sua resposta à pergunta: «Porque hei-de
preocupar-me com a sobrevivência de determinado tipo de sistema
económico?» Quer parecer-nos que a única resposta honesta a tais perguntas
será a seguinte: «Não existe qualquer razão válida para que devamos
preocupar-nos; e, se a nossa cultura não nos convenceu de que existe,
então tanto pior para ela.»
Torna-se ainda mais difícil explicar qualquer acção que vise fortalecer
uma única cultura para toda a humanidade. Uma pax romana ou americana,
um mundo preparado para a democracia, o comunismo mundial ou uma
igreja «católica» inspiram o apoio de instituições poderosas, ao passo
que uma cultura mundial «pura» o não faz nem tem probabilidades de
emergir da competição bem sucedida entre organizações religiosas,
governamentais ou económicas. Apesar disso, podemos apresentar muitas
razões para que nos devamos preocupar com o bem de toda a humanidade.
Os grandes problemas que o mundo actual enfrenta são todos de carácter
global. Uma população excessiva, o esgotamento de certos recursos, a
poluição ambiental e a possibilidade de um holocausto nuclear constituem
as consequências «não-muito-remotas» de determinadas linhas de acção
actuais. Não basta, porém, chamar a atenção para as consequências: devemos
criar contingências nas quais essas consequências actuem de uma dada
maneira. Como poderão as culturas do mundo fazer com que tais

113
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

possibilidades aterradoras afectem de algum modo o comportamento dos


seus membros?
Naturalmente, o processo da evolução cultural não terminaria se
existisse apenas uma cultura, do mesmo modo que a evolução biológica
não se deteria se houvesse apenas uma espécie de maior importância,
presumivelmente a humana. Transformar-se-iam algumas condições
importantes da selecção, enquanto outras seriam eliminadas, sem que
deixasse de verificar-se mutações sobre as quais a selecção exerceria a
sua acção, além de que continuariam a surgir novas práticas. Não haveria,
no entanto, razões para falarmos de uma cultura, pois seria evidente que
lidaríamos apenas com práticas, do mesmo modo que, em relação a uma
única espécie, nos referiríamos somente a características.
A evolução de uma cultura põe certas questões respeitantes aos
chamados «valores» a que se não deu ainda respostas cabais. Será
«progresso» a evolução de uma cultura? Qual é o seu objectivo ou meta?
Será essa meta um tipo de efeito muito diferente das consequências, reais
ou falsas, que induzem os indivíduos a agir para a sobrevivência da sua
cultura?
Pode parecer que uma análise estrutural se esquive a tais interrogações.
Se apenas focarmos a nossa atenção no que as pessoas fazem, somos
levados a pensar que a evolução de uma cultura se processa simplesmente
através de uma sequência de estádios e, mesmo que falte um dado estádio
no desenvolvimento de uma cultura, podemos ainda assim demonstrar
uma certa ordem característica. O estruturalista procura encontrar uma
explicação para o facto de um dado estádio suceder a outro dentro do
padrão da sequência. Tecnicamente falando, tenta encontrar razões para
uma variável dependente sem a relacionar com quaisquer variáveis
independentes. O facto evolução ocorrer no tempo sugere, no entanto,
que este poderá constituir uma variável independente útil. Como explicou
Leslie White, «podemos definir a evolução como uma sequência temporal
de formas: cada forma provém de outra. A cultura avança de um estádio
para outro. Neste processo, o tempo constitui um factor tão integral quanto
a mudança de forma»67.
É com frequência que falamos de «desenvolvimento» quando se trata
de transformações que ocorrem no tempo e denotam determinada orientação.
Os geólogos fazem remontar o desenvolvimento da terra através de várias
eras, enquanto os paleontólogos estudam a evolução das espécies. Os
psicólogos, por sua vez, acompanham o desenvolvimento do ajustamento
psicossexual, por exemplo. Podemos seguir o desenvolvimento de uma

114
A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

cultura através da análise dos materiais utilizados (da pedra ao bronze


e ao ferro), dos modos de obter alimentos (da colheita à caça, à pesca,
ao cultivo), da sua utilização do poder económico (do feudalismo ao
mercantilismo, ao industrialismo, ao socialismo) e assim sucessivamente.
Ainda que tais factos sejam relevantes, as transformações ocorrem,
não devido à passagem do tempo, mas em consequência do que acontece
à medida que o tempo passa. O período cretaico não surgiu num dado
estádio do desenvolvimento da terra como resultado de uma sequência
fixa pré-determinada, mas sim porque uma dada condição precedente da
terra levou a determinadas modificações. O casco do cavalo não se
desenvolveu em virtude da passagem do tempo, mas devido à selecção
de determinadas mutações que favoreceram a sobrevivência do cavalo
no ambiente em que vivia. As proporções do vocabulário de uma criança
ou as formas gramaticais que usa não variam consoante a idade, mas
sim de acordo com as contingências verbais predominantes na comunidade
a que esteve exposta. A criança adquire o «conceito de inércia» numa
certa idade devido apenas às contingências de reforço, sociais ou não,
que produziram o comportamento que se diz denotar a posse de tal conceito.
As contingências «evoluem», tanto quanto o comportamento por elas gerado.
Se os estádios de um dado desenvolvimento se sucedem numa ordem
fixa, é porque cada estádio cria as condições responsáveis pelo seguinte.
A criança precisa de saber andar antes de correr ou pular; tem de possuir
um vocabulário rudimentar para ser capaz de «articular estruturas grama­
ticais»; tem de possuir formas simples de comportamento antes de adquirir
aquele comportamento que se diz revelar a posse de «conceitos complexos».
Põe-se as mesmas questões em relação ao desenvolvimento de uma
cultura. As práticas de colher alimentos precederam naturalmente a
agricultura, não devido a determinado padrão essencial, mas sim porque
as pessoas precisam de subsistir de alguma maneira (colhendo alimentos,
por exemplo) enquanto não adquirem práticas agrícolas. A ordem necessária
presente no determinismo histórico de Kart M a r reside nas contingências
e a luta de classes constitui uma representação grosseira das maneiras
como os homens se controlam reciprocamente. A ascensão dos mercadores,
o declínio do feudalismo e o aparecimento posterior de uma era industrial
(a que sucederá possivelmente o socialismo ou um Estado-providência
(welfare state) dependem em larga medida de transformações ocorridas
nas contingências económicas de reforço.
Um «desenvolvimento» puro, que se satisfaça com padrões de
mudanças sequenciais de estrutura, perde a oportunidade de explicar o

115
\

PARA ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

comportamento em termos genéticos e ambientalmente evolutivos. Perde


igualmente a oportunidade de alterar a ordem por que se sucedem os
estádios de uma evolução ou ainda o ritmo com que o fazem. Num ambiente-
padrão, a criança pode adquirir conceitos numa ordem-padrão, mas tal
ordem é determinada por contingências que poderão ser alteradas. De
um modo idêntico, uma cultura pode desenvolver-se através de uma
sequência de estádios à medida que as consequências evoluem, mas está
ao nosso alcance criar uma ordem diferente de contingências. Não podemos
alterar a idade da terra ou de uma criança; no caso da criança, porém,
não precisamos de esperar pela passagem do tempo para modificar as
coisas que acontecem à medida que este passa.
O conceito de desenvolvimento emaranha-se nos chamados «valores»
quando encaramos como crescimento as mudanças que denotam uma
determinada orientação. Uma maçã em crescimento passa por uma sequência
de estádios, um dos quais será eventualmente o melhor. Rejeitamos as
maçãs verdes e podres; só as maduras são boas. Por analogia, falamos
de pessoas ou culturas amadurecidas. O lavrador trabalha para que as
suas searas amadureçam sem perigo, assim como os pais, professores
e terapeutas se esforçam por produzir uma pessoa amadurecida.
Consideramos multas vezes as transformações no sentido da maturidade
como acções que fazem parte de um «vir a ser». Se essa evolução for
interrompida, referimo-nos a um desenvolvimento bloqueado ou
interrompido, que procuramos remediar. Quando as transformações se
processam lentamente, falamos em atraso e procuramos acelerar o processo.
Todavia, tais valores, altamente apreciados, perdem o seu significado (ou
pior ainda) quando se atinge a maturidade. Ninguém anseia por «vir
a ser» ou tornar-se senil; a pessoa amadurecida ficaria muito satisfeita
se o seu desenvolvimento fosse bloqueado ou interrompido. A partir desse
ponto, não se importaria de se «atrasar».
Constitui erro supor que toda a transformação ou desenvolvimento
é crescimento. Não podemos afirmar que a superfície terrestre tenha atingido
(ou não) a maturidade, do mesmo modo que, tanto quanto sabemos, o
cavalo não alcançou ainda determinado estádio definitivo e presumivelmente
ideal no seu desenvolvimento evolucionário. Se é certo que a linguagem
da criança nos dá a impressão de desenvolver-se como um embrião68,
isso explica-se apenas porque temos negligenciado as contingências
ambientais. A criança selvagem não possui qualquer linguagem69, não
porque o seu isolamento tenha afectado qualquer processo de crescimento,
mas sim em consequência de não haver estado exposta a uma comunidade

116
A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

verbal. Não temos razões para classificar qualquer cultura de madura,


no sentido de que seja improvável qualquer crescimento ulterior ou de
que este assumiria necessariamente uma forma de deterioração.
Consideramos certas culturas como subdesenvolvidas ou imaturas, em
contraste com outras a que damos o nome de «desenvolvidas»; não passa,
no entanto, de uma forma grosseira de jingoísmo sugerir que um dado
governo, religião ou sistema económico atingiu a maturidade.
Ao encararmos tanto o desenvolvimento de um indivíduo como a
evolução de uma cultura, a principal objecção à metáfora do crescimento
reside no facto de esta pôr em relevo um estádio final que não possui
qualquer função. Afirmamos que um organismo cresce no sentido da
maturidade ou a fim de atingir a maturidade. Esta converte-se, por
conseguinte, numa meta e o progresso, em movimento na direcção de
uma dada meta. Meta é literalmente um ponto de chegada, o términus
de algo como, por exemplo, uma corrida pedestre. O único efeito que
produz na corrida é fazê-la terminar. Empregamos a palavra neste sentido
relativamente vazio quando dizemos que a meta da vida é a morte ou
que a meta da evolução é povoar a terra. A morte é, indubitavelmente,
o fim da vida, assim como um mundo povoado poderá constituir o fim
da evolução, mas estes estados finais nada têm a ver com os processos
pelos quais são atingidos. Não vivemos para morrer nem a evolução se
processa para povoar toda a terra.
Confunde-se facilmente a meta como termo de uma corrida com a
vitória e, portanto, com as razões que levaram alguém a participar na
corrida ou com o propósito de quem participou. Numa fase recuada dos
estudos da aprendizagem, os investigadores utilizavam labirintos e outros
instrumentos laboratoriais nos quais uma dada meta dava a impressão
de mostrar a posição de um reforçador em relação ao comportamento
de que resultava - o organismo movimentava-se em direcção a uma meta.
Contudo, a relação importante é temporal, não o persegue nem o ultrapassa.
Explicamos o desenvolvimento de determinada espécie e do comportamento
de um dado membro da espécie assinalando a acção selectiva por parte
das contingências de sobrevivência e reforço. Tanto a espécie como o
comportamento do indivíduo desenvolvem-se quando são modelados e
preservados pelos seus próprios efeitos sobre o mundo que os cerca.
É este o único papel a desempenhar pelo futuro.
Isto não quer, porém, dizer que não haja uma determinada orientação
na evolução. Desenvolveu-se muitos esforços no sentido de caracterizar
a evolução como uma transformação orientada - como um aumento

117
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

incessante de complexidade estrutural, da susceptibilidade à estimulação


ou da utilização eficaz da energia, por exemplo. Existe ainda uma outra
possibilidade importante: ambos os tipos de evolução tornam os organismos
mais sensíveis às consequências das suas próprias acções. Presumimos
que os organismos que têm mais probabilidades de sofrer modificações
devido a certos tipos de consequências tenham estado em vantagem; por
outro lado, uma cultura submete o indivíduo ao controlo de consequências
remotas que não poderiam ter desempenhado qualquer papel na evolução
física da espécie. Um bem pessoal remoto toma-se eficaz quando a pessoa
é controlada para o bem dos outros e aquela cultura que induza alguns
dos seus membros a trabalhar para a sobrevivência da própria cultura
põe em jogo uma consequência ainda mais remota.
A tarefa do planeador cultural consiste em acelerar o desenvolvimento
de práticas que façam com que passem a actuar as consequências remotas
do comportamento. Voltemo-nos ora para alguns dos problemas que se
lhe deparam.
O ambiente social constitui aquilo a que damos o nome de cultura.
Dá forma e preserva o comportamento daqueles que nele vivem. Uma
dada cultura evolui à medida que surgem práticas novas, possivelmente
por motivos irrelevantes, e são seleccionadas pelo seu contributo para
o fortalecimento da cultura à medida que esta «compete» com o meio
físico e com outras culturas. Um passo de maior monta é o aparecimento
de práticas que induzem os membros de determinada cultura a trabalhar
pela sobrevivência desta. Tais práticas não podem fazer-se remontar a
«bens» pessoais, mesmo quando sejam usados para benefício alheio, uma
vez que a sobrevivência de uma cultura para além do tempo de vida
do indivíduo não pode servir como fonte de reforçadores condicionados.
Outras pessoas podem sobreviver àquelas que induzem a agir para seu
benefício e a cultura cuja sobrevivência está em jogo é muitas vezes
identificada com elas ou com as suas organizações; porém, a evolução
de uma cultura introduz outro tipo de bem ou valor. Aquela cultura que,
por qualquer razão, induza os seus membros a trabalhar pela sobrevivência
dela própria tem mais probabilidades de sobreviver. Trata-se, por
conseguinte, de uma questão relativa ao bem da cultura e não do indivíduo.
O planeamento de uma cultura promove esse bem através da aceleração
do processo evolucionário e, uma vez que uma ciência e uma tecnologia
do comportamento contribuem para um planeamento melhor, constituem
«mutações» importantes na evolução de uma cultura. Se podemos falar
de qualquer propósito ou orientação na evolução de uma dada cultura,

118
A EVOLUÇÃO DE UMA CULTURA

esse aspecto dirá respeito aos meios de fazer com que as pessoas fiquem
cada vez mais submetidas ao controlo das consequências do seu próprio
comportamento.

119
PL A N E A M E N T O D E U M A C U LTU R A

São em grande número as pessoas que se ocupam do planeamento


e replaneamento das práticas culturais; modificam as coisas que utilizam
e o modo de utilizá-las; aperfeiçoam ratoeiras e computadores e descobrem
melhores processos de criar crianças, pagar salários, cobrar impostos e
ajudar aqueles que se debatem com problemas. Não precisamos de nos
alongar no termo «melhor»: trata-se do comparativo de «bom» e os bens
são reforçadores. Consideramos determinada máquina fotográfica melhor
do que outra devido ao que sucede quando a utilizamos. O fabricante
induz compradores potenciais a «apreciar» a sua máquina, garantindo
que funcionará de modo satisfatório, para o que cita o que algumas das
pessoas que a compraram disseram acerca do seu funcionamento, e assim
por diante. Como é óbvio, é muito mais difícil classificar uma dada
cultura como melhor do que outra, em parte porque precisamos de tomar
em consideração mais consequências.
Ninguém conhece a melhor maneira de criar crianças, pagar a
trabalhadores, manter a lei e a ordem, ensinar ou tomar as pessoas criativas;
contudo, é possível propor melhores métodos do que os actuais e defendê-
-los, predizendo e eventualmente demonstrando resultados mais reforçantes.
Já foram adaptadas, no passado, algumas medidas com base na experiência
pessoal e na sabedoria popular, o que não impede que uma análise científica
do comportamento humano seja obviamente relevante. A sua contribuição
é dupla: não só define o que deve ser feito como ainda sugere meios
de pô-lo em prática. A urgência de que se reveste a sua aplicação foi
recentemente sugerida num debate, publicado num semanário, sobre o

121
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

que está errado na América. Descrevia-se o problema como «uma perturbada


condição psíquica dos jovens», «uma recessão de espíritos», «um
afundamento psíquico» e «uma crise espiritual», que se atribuía a
«ansiedade», «incerteza», «inquietação», «alienação», «desespero
generalizado» e a diversas outras disposições ou estados de espírito, que
se influenciam reciprocamente segundo o padrão intrapsíquico familiar
- afirmava-se, por exemplo, que a falta de segurança social conduz à
alienação e a frustração à agressão. Na sua maioria, os leitores saberiam
provavelmente a que se referia o autor e terão pensado que ele disse
alguma coisa de útil; contudo, o passo (que não é excepcional) apresenta
dois defeitos característicos que explicam; o nosso malogro em abordar
de um modo adequado problemas culturais: não se chega a descrever
o comportamento que origina os problemas nem se menciona o que se
pode fazer para modificá-lo.
Consideremos um jovem cujo mundo tenha sofrido uma transformação
súbita. Concluiu um curso superior e vai empregar-se ou foi convocado
para prestar o serviço militar. A maior parte do comportamento que adquiriu
até esse momento não tem qualquer utilidade no seu novo ambiente.
O comportamento que exibe pode descrever-se (e a descrição traduzida)
como se segue: ele carece de segurança, sente-se inseguro ou não está
seguro de si (o seu comportamento é fraco e inadequado)', sente-se
insatisfeito ou desencorajado (raramente é reforçado, peto que o seu
comportamento está sujeito a extinção), sente-se frustrado (a extinção
é acompanhada de respostas emocionais); sente-se desassossegado ou
inquieto (o seu comportamento tem muitas vezes consequências aversivas
inevitáveis, que têm efeitos emocionais); não existe nada que queira fazer
ou goste de fazer bem, não tem qualquer sensação de profissionalismo,
de levar uma vida útil, de realização (raramente é reforçado por fazer
alguma coisa); sente-se culpado ou envergonhado (foi anteriormente punido
por indolência ou fracasso, o que evoca agora respostas emocionais)’,
sente-se desapontado ou desgostoso consigo próprio (já não é reforçado
pela admiração alheia, pelo que a extinção que se lhe segue tem efeitos
emocionais)', torna-se hipocondríaco (conclui que está doente) ou neurótico
(entrega-se a uma variedade de processos de fuga ineficazes) e experimenta
uma crise de identidade (não reconhece a pessoa a que antes cha­
mava «Eu»).
As paráfrases em itálico são demasiado sucintas para ser precisas,
mas sugerem ainda assim a possibilidade de uma justificação diferente,
o que só por si nos encaminha para medidas eficazes. Para o próprio

122
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

jovem, o que importa é o, sem dúvida, os vários estados do seu corpo.


São estímulos evidentes e, como tal, aprendeu a utilizá-los segundo os
moldes tradicionais a fim de explicar o seu comportamento a si próprio
e aos outros. O que ele nos disser acerca dos seus sentimentos poderá
permitir-nos formular certas conjecturas a respeito do que há de errado
nas contingências, mas são as contingências que devemos examinar
directamente se queremos ter certezas e são as contingências que têm
de ser modificadas se pretendemos que o seu comportamento se modifique.70
Os sentimentos e estados de espírito dominam ainda, por muitas
razões, os debates sobre o comportamento humano. Por um lado, eclipsaram
durante muito tempo as alternativas que poderiam substituí-los e, por
outro lado, é difícil analisar o comportamento como tal, sem que se introduza
nele muitas das coisas que se diz exprimir. Foi devido à sua natureza
que a acção selectiva do ambiente permaneceu obscura. Tornava-se
absolutamente necessário dispor de uma análise experimental a fim de
se descobrir a importância das contingências de reforço, mas as
contingências permanecem quase integralmente fora do alcance da
observação casual, o que se pode demonstrar facilmente. As contingências
criadas num laboratório operante são muitas vezes complexas, mas apesar
disso mais simples do que muitas contingências observadas no mundo
em geral71. Contudo, quem não estiver familiarizado com as práticas
laboratoriais sentirá dificuldades em perceber o que decorre num espaço
experimental. O observador contempla um dado organismo que se comporta
de maneiras simples perante diversos estímulos que se modificam de tempos
a tempos e pode, por conseguinte, presenciar um acontecimento reforçante
ocasional (por exemplo, o aparecimento de alimentos, que o organismo
ingere). Embora todos os factos sejam evidentes, a observação casual só
por si raramente revela as contingências. O nosso observador não será
capaz de explicar por que é que o organismo actua de determinadas
maneiras. E, se é incapaz de compreender o que vê num ambiente
laboratorial sim plificado, como poderemos esperar que entenda o que
se passa na vida quotidiana?
Por seu turno, o experimentador dispõe, naturalmente, de informações
adicionais. Ele sabe alguma coisa da génese do organismo submetido
às experiências, pelo menos na medida em que estudou já outros indivíduos
da mesma espécie. Ele está na posse de alguns dados relativos aos
antecedentes históricos - contingências anteriores a que o organismo esteve
exposto, o seu programa (schedule) de privação e outros aspectos. No
entanto, o nosso observador não falhou por lhe faltarem esses factos
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

adicionais, mas sim porque foi incapaz de entender o que se passava


diante dos seus olhos. Numa experiência sobre o comportamento operante,
os dados importantes são as diferentes probabilidades de uma dada resposta,
geralmente observáveis como variações de frequência; é, porém, difícil
(se não impossível) acompanhar, através de uma observação casual, uma
variação de frequência. Não estamos suficientemente equipados para
observar modificações que ocorram durante lapsos de tempo bastante longos.
Em contrapartida, o experimentador pode verificar tais modificações nos
seus registos. Aquilo que parece mais uma sucessão de respostas esporádicas
poderá revelar-se como uma fase de um processo regular. O experimentador
sabe igualmente alguma coisa das contingências predominantes (com efeito,
foi ele próprio que construiu o instrumento que as origina). Se o nosso
observador casual despendesse tempo suficiente, poderia descobrir algumas
dessas contingências; contudo, apenas o conseguiria se soubesse o que
deveria procurar. Enquanto não foram criadas contingências e estudados
os seus efeitos nos laboratórios, poucos foram os esforços envidados no
sentido de encontrá-las na vida quotidiana. É neste sentido que, como
observámos no Capítulo I, uma análise experimental possibilita uma
interpretação eficaz do comportamento humano, a qual nos permite
desprezar pormenores irrelevantes, por mais palpitantes que nos pareçam,
e fazer sobressair aspectos que, sem o auxílio dessa análise, seriam postos
de lado como triviais.
(É possível que o leitor se tenha sentido já tentado a desprezar as
frequentes referências a contingências de reforço como uma nova moda
de calão técnico; todavia, não se trata apenas de uma questão de falar
de coisas antigas em moldes modernos. As contingências são ubíquas,
pois abrangem os âmbitos clássicos da intenção e do propósito, ainda
que de um modo muito mais vantajoso, além de nos fornecer outras
formulações dos chamados «processos mentais». Dado que não foram ainda
abordados muitos pormenores, não dispomos de termos tradicionais para
debatê-los. O conteúdo integral do conceito está, sem dúvida, ainda longe
de haver sido adequadamente reconhecido.)
A seguir à interpretação situa-se a acção. As contingências são
acessíveis e, à medida que começamos a compreender as relações entre
o comportamento e o ambiente, vamos descobrindo novos modos de
modificar o comportamento. Já se desenham os contornos de uma tecnologia.
Ao estipular-se uma dada missão - a produção ou modificação de um
comportamento, por exemplo - cria-se contingências relevantes, as quais
poderão ter de obedecer a uma sequência programada. Esta tecnologia
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

tem-se mostrado muito bem sucedida nos casos em que o comportamento


possa ser especificado com relativa facilidade e se possa criar contingências
apropriadas como, por exemplo, nas instituições pediátricas, escolas e
no tratamento de atrasados e de doentes mentais hospitalizados. Todavia,
aplica-se já os mesmos princípios na preparação de material didáctico
a todos os níveis educacionais, na psicoterapia para além do simples
tratamento, na reabilitação, na gestão industrial, no planeamento urbanístico
e em muitos outros campos do comportamento humano. Existe uma grande
diversidade de «modificações de comportamento» e muitas formulações
diferentes, se bem que todas concordem num ponto essencial: pode
modificar-se o comportamento se se modificar as condições em função
das quais ocorre72.
Uma tecnologia deste tipo é eticamente neutra. Tanto pode ser usada
com a melhor como com a pior das intenções. Nada existe numa
metodologia que determine os valores que presidem ao seu uso. Contudo,
não nos interessamos neste caso apenas por práticas mas também pelo
traçado de toda uma cultura. Resulta daqui que a sobrevivência de uma
cultura se converte num tipo especial de valor. Podem conceber-se melhores
processos de criar crianças fundamentalmente para evitar o seu mau
comportamento. A pessoa pode, por exemplo, resolver o seu problema
actuando como disciplinador férreo ou pode suceder que o seu novo método
contribua para o bem das crianças ou dos pais em geral. Ainda que tal
método possa exigir tempo, esforços e o sacrifício de reforçadores pessoais,
ela continuará a defendê-lo e a aplicá-lo se tiver sido suficientemente
induzida a agir para o bem dos outros. Se for poderosamente reforçada
quando vê, por exemplo, outras pessoas divertirem-se, conceberá um
ambiente em que as crianças se sintam felizes. Se, todavia, a sua cultura
o tiver induzido a interessar-se pela sobrevivência dela própria, poderá
estudar a contribuição que as pessoas prestam à sua cultura em consequência
da história dos seus primórdios e poderá conceber um método melhor
que contribua para incrementar essa contribuição. Ao adoptarem tal método,
as pessoas poderão perder certos reforçadores pessoais.
Podemos encontrar os mesmos três tipos de valores no planeamento
de outras práticas culturais. O professor pode inventar novos métodos
de ensino que lhe facilitem a tarefa, que agradem aos seus alunos (os
quais, por seu turno, o reforçam) ou que tenham probabilidades de fazer
com que os alunos contribuam tanto quanto possível para a cultura em
que se integram. O industrial pode conceber um sistema de salários que
maximize os seus lucros, beneficie os seus empregados ou produza do
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

modo mais eficaz os bens de que uma cultura necessita, com um consumo
de recursos e um índice de poluição mínimos. Um partido que ocupe
o poder poderá agir fundamentalmente no sentido de conservar o poder,
reforçar aqueles indivíduos que governa (que, por sua vez, o mantêm
no poder) ou ainda promover os interesses do estado instituindo, por
exemplo, um programa de austeridade que possa custar ao partido não
só o poder como também apoio.
Podemos igualmente detectar os mesmos três níveis no planeamento
de uma cultura tomada como um todo. Se o seu arquitecto for um
individualista, conceberá um mundo no qual se encontrará sob um controlo
mínimo e aceitará os seus próprios bens como valores supremos. Se esteve
exposto a um ambiente social adequado, visará o bem dos outros, talvez
em detrimento de bens pessoais. Se o seu interesse reside essencialmente
no valor de sobrevivência, então conceberá uma cultura tendo em vista
os seus resultados positivos.
Quando uma cultura induz alguns dos seus membros a trabalhar
pela sua sobrevivência, que deverão eles fazer? Terão de prever algumas
dificuldades que se depararão à cultura. Tais dificuldades surgem
habitualmente num futuro distante e os seus pormenores nem sempre
são nítidos. Se bem que seja longa a história das visões apocalípticas,
só recentemente se devotou uma atenção especial à previsão do futuro.
Não existe nada que possamos fazer a respeito de dificuldades
completamente imprevisíveis, mas também é certo que podemos antever
alguns problemas se inferirmos certos dados através de uma análise da
realidade actual. Poderá, deste modo, bastar-nos observar o aumento
constante da população da terra, das proporções e localização dos arsenais
nucleares ou ainda da poluição do ambiente e do esgotamento dos recursos
naturais. Nesta conformidade, podemos modificar determinadas práticas
a fim de induzir as pessoas a ter menos filhos, gastar menos em armas
nucleares, deixar de poluir o ambiente e moderar o consumo dos recursos
naturais.
Não é preciso predizer o futuro para verificar alguns dos casos em
que a força de uma cultura depende do comportamento dos seus membros.
Aquela cultura que mantém a ordem civil e se defende de ataques liberta
os seus membros de certos tipos de ameaças e presumivelmente proporciona-
-lhes mais tempo e energia para outras actividades (particularmente se
a ordem e a segurança não forem mantidas pela força). Uma cultura
precisa de diversos bens para a sua sobrevivência a sua força deverá
depender em parte das contingências económicas que preservam a
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

capacidade de iniciativa e o trabalho produtivo, da disponibilidade dos


instrumentos de produção e do desenvolvimento e conservação dos recursos
naturais. Uma cultura será, presumivelmente, mais forte se induzir os
seus membros a manter um ambiente seguro e saudável, a providenciar
pela existência de cuidados médicos e a manter uma densidade populacional,
adequada aos seus recursos e espaço. Uma cultura tem de se transmitir
de geração em geração e presumimos que a sua força depende do tipo
e da proporção de conhecimentos adquiridos pelos seus novos membros,
quer através de contingências educacionais informais quer nas instituições
para o efeito. Uma cultura necessita do apoio dos seus membros e deverá
facilitar a procura e a consecução da felicidade se pretende evitar o
descontentamento ou a deserção. Ainda que deva ser razoavelmente estável,
uma cultura deverá também evoluir e atingir presumivelmente a sua maior
pujança se puder evitar um respeito excessivo pela tradição e o receio
da novidade, por um lado, e as mudanças excessivamente rápidas, por
outro. Em último lugar, uma cultura será dotada de um elevado valor
de sobrevivência se encorajar os seus membros a examinarem as suas
práticas e a experimentarem novas.
Uma cultura assemelha-se muito ao espaço experimental usado na
análise do comportamento, já que tanto a cultura como o espaço ex­
perimental são conjuntos de contingências de reforço. Toda a criança que
nasce integra-se numa dada cultura, do mesmo modo que um organismo
é colocado num espaço experimental.
O projecto de uma cultura equipara-se ao projecto de uma experiência:
cria-se contingências e observa-se resultados. Numa experiência, estamos
interessados no que acontece; ao projectar uma cultura, o que nos
preocupa é determinar se resultará. É esta a diferença entre a ciência
ã

e a tecnologia.
Podemos encontrar na literatura utópica um grande número de
projectos culturais73. Vários escritores confiaram ao papel as suas versões
da vida ideal e sugeriram meios de alcançar tal objectivo. Platão, em
A República, optou pela solução política; Santo Agostinho, em A Cidade
de Deus, pela religiosa. Thomas More e Francis Bacon, ambos homens
de leis, fundamentaram-se no direito e na ordem, enquanto os utopistas
rousseaunianos de Setecentos se voltaram para uma suposta bondade natural
do homem. O século XIX procurou soluções económicas, enquanto o século
XX assistiu ao aparecimento do que podemos designar por utopias
comportamentais74, nas quais se começou a debater (muitas vezes
catolicamente) uma vasta gama de contingências sociais.

127
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

Os escritores utópicos não se eximiram a esforços no sentido de


simplificar a sua tarefa. A comunidade utópica compõe-se normalmente
de um número relativamente pequeno de pessoas que vivem num dado
local e em recíproco contacto estável. Poderão praticar um controlo ético
informal, minimizando o papel das instituições organizadas, e preferir
aprender uns com os outros em vez de seguir especialistas a que damos
o nome de professores. Poderá evitar-se que procedam mal uns para com
os outros mais pela censura do que através de punições especializadas
infligidas por um sistema legal. Poderão produzir e permutar bens sem
que especifiquem valores em termos monetários. Poderão ajudar aqueles
que adoecem, têm problemas ou chegam à velhice, com um mínimo de
cuidados por parte de instituições formais. Evita-se os contactos conflituosos
com outras culturas através do isolamento geográfico (as utopias tendem
a situar-se em ilhas ou áreas rodeadas de altas montanhas) e a transição
para uma nova cultura é facilitada por uma ruptura formalizada com
o passado, como é o caso de um ritual de renascimento (as utopias situam-
-se frequentemente num futuro distante, de modo que pareça plausível
a necessária evolução da cultura). A utopia constitui um ambiente social
total, cujos componentes funcionam harmonicamente. O lar não colide
com a escola nem com a rua, a religião não colide com o governo, e
assim sucessivamente.
Contudo, o aspecto mais importante da criação utópica reside na
viabilidade de tornar a sobrevivência de uma comunidade importante para
os seus membros. As pequenas dimensões, o isolamento, a coesão interna
- tudo isto confere à comunidade uma identidade que toma evidente o
seu êxito ou malogro. Perante todas as utopias, a questão fundamental
é a seguinte: «Daria realmente resultado?» A literatura é digna da nossa
atenção precisamente porque põe em relevo o espírito de experimentação.
Quando se examina uma cultura tradicional que revela carências,
projecta-se uma nova versão que é posta à prova e retocada consoante
os ditames das circunstâncias.
A simplificação que caracteriza a literatura utópica, que não é senão
a simplificação típica da ciência, raramente é exequível no mundo em
geral, mas existem muitas outras razões pelas quais é difícil pôr em prática
determinado projecto específico. Não é possível fazer com que uma
população ampla e fluida seja submetida a um controlo social ou ético
informal, uma vez que os reforçadores sociais como o elogio e a censura
não são substituíveis pelos reforçadores pessoais em que se baseiam. Por
que haveria alguém de ser afectado pelos louvores ou recriminações de

128
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

uma pessoa que não voltará a ver? O controlo ético poderá sobreviver
em pequenos grupos; o controlo de populações globais, porém, terá de
ser delegado a especialistas - polícia, sacerdotes, proprietários, professores,
terapeutas e outros agentes, todos eles apoiados nos seus reforçadores
especializados e contingências codificadas. Tais agentes de controlo estão
provavelmente em conflito entre si e estarão quase de certeza em conflito
com qualquer novo conjunto de contingências. Onde não for excessivamente
difícil alterar a instrução informal, por exemplo, é quase impossível
modificar um sistema educacional. É relativamente fácil alterar as práticas
matrimoniais e aquelas que dizem respeito ao divórcio e à procriação,
à medida que a sua importância para a cultura se altera; no entanto,
é quase impossível alterar os princípios religiosos que ditam tais práticas.
É fácil modificar os limites de aceitação de diversos tipos de comportamento
como certos, mas é difícil modificar as leis de um governo. Os valores
reforçantes dos produtos económicos são mais flexíveis do que os valores
estabelecidos por instituições económicas. As palavras da autoridade são
mais inflexíveis do que os factos a que dizem respeito.
Tanto quanto se refere ao mundo real, não nos surpreende que o
termo utópico signifique impraticável. A história parece comprová-lo:
durante quase dois mil e quinhentos anos propôs-se diversos modelos
utópicos e a maior parte das tentativas para concretizá-los redundou em
malogros ignominiosos. Todavia, a realidade histórica contraria sempre
as probabilidades de que aconteça algo de novo - eis o que se entende
por história. As descobertas e invenções científicas são improváveis -
eis o que se entende por descoberta e invenção. E, se as economias
planejadas, as ditaduras benevolentes, as sociedades perfeicionistas e outros
projectos utópicos fracassaram, devemos recordar-nos de que também
malograram culturas que não foram planeadas, dirigidas ou levadas à
perfeição. O malogro nem sempre é um erro, pois pode ser simplesmente
o melhor que se pôde fazer em determinadas circunstâncias. O verdadeiro
erro reside em deixar de tentar. Talvez não possamos planear ainda uma
cultura global bem sucedida, mas podemos, dentro de um plano
fragmentário, conceber práticas melhores. Os processos comportamentais
do mundo em geral são os mesmos que encontramos na comunidade utópica,
além de que as práticas têm os mesmos efeitos pelas mesmas razões.
Deparamos com as mesmas vantagens quando pomos em relevo
contingências de reforço em vez de estados de espírito ou sentimentos.
Constitui sem dúvida problema momentoso, por exemplo, o facto de os
estudantes já não responderem nos moldes tradicionais aos ambientes

129
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

educacionais - deixam de frequentar os estabelecimentos de ensino


(possivelmente durante longos períodos de tempo), apenas tiram cursos
que lhes agradem ou pareçam ter relevância para os seus problemas,
delapidam as instalações escolares e atacam professores e funcionários.
Contudo, não resolveremos este problema «cultivando no público um
respeito que actualmente não sente pelo ensino como tal e pelo estudante
ou pelo professor». (O cultivo do respeito é uma metáfora na tradição
hortícola.) O que está errado é o ambiente educacional. Necessitamos
de criar contingências nas quais os estudantes adquiram formas de
comportamento que sejam úteis a eles próprios e à sua cultura, contingências
que não sejam acompanhadas de subprodutos conflituosos e gerem aquele
comportamento que se diz «denotar respeito pela aprendizagem». Não
é difícil verificar o que está errado na maioria dos ambientes educacionais,
e muito se tem já feito no sentido de criar meios que simplifiquem tanto
quanto possível a aprendizagem e de organizar contingências tanto na
escola como fora dela que suscitem nos estudantes motivações poderosas
que os levem a concluir os seus cursos.
Levanta-se um outro problema grave quando os jovens se recusam
a servir nas forças armadas e desertam ou fogem para outro país, embora
não modifiquemos apreciavelmente as coisas se «inspirarmos maior lealdade
ou patriotismo». O que tem de ser alterado são as contingências que
induzem os jovens a comportar-se de determinadas maneiras para com
os seus governos. As sanções governamentais continuam a ser quase
inteiramente punitivas e os seus subprodutos dramáticos são suficientemente
testemunhados pelas proporções assumidas pelas crises domésticas e pelos
conflitos internacionais. O facto de continuarmos quase permanentemente
em guerra com outras nações constitui um problema grave, mas não iremos
longe se lançarmos as culpas «às tensões que conduzem à guerra»,
apaziguarmos os espíritos belicosos ou manipularmos a mente dos homens
(onde, segundo afirma a UNESCO, se iniciam as guerras). O que tem
de ser modificado são as circunstâncias em que os homens e as nações
fazem a guerra.
Também nos podemos sentir perturbados pelo facto de muitos jovens
trabalharem o menos possível, os trabalhadores não serem muito produtivos
nem muito assíduos ou os produtos serem frequentemente de má qualidade,
mas não iremos longe inspirando um «sentido de profissionalismo ou
orgulho pelo trabalho individual», um «sentimento de dignidade do
trabalho» ou, nos casos em que as artes e os ofícios constituem parte
das tradições de casta, actuando sobre «a profunda resistência emocional

130
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

do superego de casta», como precisou certo escritor. Alguma coisa está


errada nas contingências que induzem os homens a trabalhar diligente
e meticulosamente. (Também outros tipos de contingências económicas
estão errados.)
Walter Lippmann observou que «a questão suprema que se põe à
humanidade»75 é determinar como poderão os homens salvar-se da catástrofe
que paira sobre eles, mas, para resolvê-la, temos de fazer mais do que
descobrir como poderão eles «tornar-se desejosos e capazes de se salvarem».
Temos de focalizar a nossa atenção nas contingências que induzem as
pessoas a agir no sentido de aumentarem as possibilidades de que as
suas culturas sobrevivam. Dispomos já das tecnologias física, biológica
e comportamental necessárias «à nossa salvação», pelo que o problema
reside apenas em determinar o modo de fazer com que as pessoas as
utilizem. Poderá acontecer que «a utopia apenas dependa de um acto
de vontade», mas que significa isso? Quais são as principais especificações
de uma cultura que sobreviva por induzir os seus membros a agir para
a sobrevivência dela própria?
A aplicação de uma ciência do comportamento ao traçado de uma
cultura constitui uma proposta ambiciosa, muitas vezes considerada utópica
no sentido pejorativo, ainda que certas razões que geram cepticismo
mereçam um comentário. É com frequência que se afirma, por exemplo,
que existem diferenças fundamentais entre o mundo real e o laboratório
onde se analisa o comportamento. Se o meio laboratorial é artificial, o
mundo real é natural; se aquele é simples, o mundo é complexo; enquanto
os processos observados no laboratório revelam ordem, o comportamento
em qualquer outro lado apresenta-se tipicamente confuso. Tais diferenças
são reais mas não podem subsistir como tais à medida que uma ciência
do comportamento evolui e mesmo hoje já não devem ser em muitos
casos tomadas a sério.
A diferença entre condições naturais e artificiais não é importante.
Poderá ser natural para um pombo revolver folhas e encontrar pedaços
de comida debaixo de algumas delas, no sentido de que as contingências
são elementos padronizados do ambiente em que o pombo se criou. Por
outro lado, não são evidentemente naturais as contingências em que um
pombo debica um disco iluminado colocado numa parede, aparecendo-
-Ihe comida num recipiente situado abaixo do disco. Todavia, não obstante
o equipamento de programação laboratorial ser artificial e a disposição
das folhas e sementes ser natural, podemos fazer com que sejam idênticos
os «programas» (schedules) segundo os quais o comportamento é reforçado.

131
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

0 programa natural constitui o programa de «razão variável» do laboratório,


pelo que não temos nenhuma razão para duvidar de que o comportamento
seja afectado por ele da mesma maneira em ambas as circunstâncias.
Quando estudamos os efeitos do programa por meio do equipamento de
programação, começamos a compreender o comportamento observado na
natureza e, à medida que investigamos contingências de reforço cada vez
mais complexas no laboratório, as contingências naturais vão-se tomando
também cada vez mais perceptíveis.
E o mesmo sucede em relação à simplificação. Toda a ciência expe­
rimental simplifica as condições em que actua, particularmente nas fases
iniciais de uma investigação. Qualquer análise do comportamento começa
naturalmente por organismos simples, os quais actuam de maneiras simples
em meios simples. Quando se detecta um grau razoável de regularidade,
os dispositivos podem tornar-se mais complexos. A rapidez no nosso avanço
é estritamente regulada pelos nossos sucessos, daí que os nossos progressos
não costumem dar-nos uma impressão de celeridade. O comportamento
constitui um campo que nos desencoraja por nos encontrarmos num contacto
tão estreito com ele. Os primeiros físicos, químicos e biólogos desfrutaram
de uma espécie de protecção natural contra a complexidade dos seus cam­
pos, pois não foram perturbados por extensas gamas de factos relevantes.
Podiam seleccionar um número limitado de coisas para objecto de estudo
e desprezar o resto da natureza quer por ser irrelevante quer por se encontrar
obviamente fora do seu alcance. Se Gilbert, Faraday ou Maxwell tivessem
tido uma fugidia visão superficial do que hoje se conhece acerca da
electricidade, teriam experimentado dificuldades muito maiores para
encontrar pontos de partida e formular princípios que não dessem a
impressão de «ultra-simplificados». Felizmente para eles, muito do que
hoje se conhece nos seus campos de investigação resultou da pesquisa
e das suas aplicações tecnológicas e só foi necessário tomá-lo em
consideração quando certas formulações atingiram um dado nível de
complexidade. O cientista do comportamento não tem tido tal sorte. Ele
está excessivamente consciente do seu próprio comportamento como parte
da matéria que investiga. Percepções subtis, partidas pregadas pela memória,
extravagâncias oníricas, as soluções aparentemente intuitivas dos problemas
- estes e muitos outros aspectos do comportamento humano exigem
insistentemente atenção. Torna-se muito mais difícil encontrar um ponto
de partida e chegar a formulações que não pareçam demasiado simples.
A interpretação do complexo mundo das questões humanas em
termos de uma análise experimental é, sem dúvida, frequentemente

132
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

ultra-simplificada. Tem-se exagerado certas reivindicações e negligenciado


determinadas limitações. Todavia, a verdadeiramente flagrante ultra-
-simplificação reside no tradicional apelo aos estados de espírito, sentimentos
e outros aspectos do homem autónomo que têm vindo a ser substituídos
por uma análise comportamental. A facilidade com que se pode inventar
instantaneamente explicações mentalistas constitui talvez a melhor
justificação para a escassa consideração que nos deveriam merecer. E
o mesmo se poderá dizer das práticas tradicionais. A tecnologia que resultou
de uma análise experimental apenas deverá ser avaliada em comparação
com aquilo que se faz por outros meios. Afinal, que temos para mostrar
em abono dos juízos não científicos ou pré-científicos, do senso comum
ou da compreensão adquirida através da experiência pessoal? Temos de
escolher entre a ciência ou nada e a única solução para a simplificação
está em aprender a lidar com as complexidades.
Não dispomos ainda de uma ciência do comportamento apta a
solucionar todos os nossos problemas, mas não deixa de ser uma ciência
em desenvolvimento e a sua adequação máxima não poderá ainda ser
avaliada. Quando os críticos afirmam que esta ciência não pode explicar
este ou aquele aspecto do comportamento humano, insinuam habitualmente
que nunca será capaz de fazê-lo, mas a análise continua a progredir e
encontra-se, na realidade, numa fase muito mais avançada do que os
seus críticos normalmente reconhecem.
O importante não é tanto saber como resolver problemas mas sim
como procurar soluções. Os cientistas que abordaram o Presidente Roosevelt
com a proposta de que construiriam uma bomba tão potente que poria
fim à Segunda Guerra Mundial no prazo de poucos dias não poderiam
ter afirmado que sabiam como construí-la. Tudo quanto puderam dizer
era que conheciam os caminhos a tomar para a descoberta. Os problemas
comportamentais que precisamos de resolver no mundo hodierno são,
indubitavelmente, mais complexos do que o emprego prático da fissão
nuclear, assim como a ciência básica não se encontra tão avançada quanto
a física nuclear; sabemos, porém, por onde iniciar a nossa busca de soluções.
A proposta de planeamento de uma cultura com o auxílio de uma
análise científica suscita muitas vezes profecias cassândricas de desastres.
A cultura em causa não resultará conforme se projectou e as consequências
imprevistas poderão ser catastróficas. Raramente são acrescentadas provas,
possivelmente porque a história parece estar do lado dos malogros: muitos
foram os projectos que fracassaram, talvez precisamente pelo facto de
terem sido planeados. A ameaça que paira sobre uma cultura planeada,

133
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

afirmou Mr. Krutch76, é a de que o não-planeado «jamais possa voltar


a irromper». Em contrapartida, achamos difícil justificar a confiança
depositada no que é acidental. É certo que os acidentes têm sido responsáveis
por quase tudo quanto o homem conseguiu produzir até hoje e não
duvidamos de que que os acidentes contribuíram para as realizações
humanas; no entanto, o que é acidental não tem, como tal, qualquer
valor. Além disso, o que não é planeado também fracassa. As idiossincrasias
de um governante desconfiado que encara toda a perturbação da ordem
como uma ofensa pessoal poderão revestir-se de um valor de sobrevivência
acidental se a lei e a ordem forem mantidas, mas as estratégias militares
de um chefe político paranóico têm a mesma proveniência e poderão
ter efeitos totalmente diferentes. O surto industrial que resulte de uma
busca desenfreada de felicidade poderá ter um valor de sobrevivência
acidental se, subitamente, se precisar de material de guerra, mas poderá
também esgotar os recursos naturais e poluir o ambiente.
Caso uma cultura planejada significasse necessariamente uniformidade
ou sistematização, poderia com efeito contrariar qualquer evolução ul­
terior. Se os homens fossem muito semelhantes, teriam menos probabilidades
de descobrir ou conceber novas práticas, assim como uma cultura que
tomasse as pessoas tão semelhantes quanto possível poderia resvalar para
um padrão estandardizado, do qual não haveria saída. Teríamos neste
caso um exemplo de mau planeamento; porém, se é diversidade que
procuramos, não deveremos recorrer novamente ao que é fortuito. Muitas
culturas acidentais foram estigmatizadas pela uniformidade e pela
sistematização. As exigências administrativas nos sistemas gover­
namentais, religiosos e económicos engendram uniformidade, uma vez
que esta simplifica o problema do controlo. Os sistemas educacionais
tradicionais especificam aquilo que o estudante deve aprender em
determinada idade e ministram testes para garantia de que as especificações
foram atingidas. Os códigos governamentais e religiosos são normalmente
bastante explícitos e deixam uma pequena margem aberta à diversidade
ou diversificação. A única esperança reside na diversificação planeada,
na qual se reconhece a importância da variedade. A criação de plantas
e de animais evolui no sentido da uniformidade quando esta é importante
(como acontece com os processos de simplificação da agricultura ou da
pecuária), embora exija igualmente uma diversificação planeada.
O planeamento não obsta a que ocorram acidentes úteis. Durante
muitos milhares de anos o homem usou fibras (tais como o algodão,
a lã e a seda) de origens acidentais, no sentido de que eram produtos

134
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

de contingências de sobrevivência que não se relacionavam intimamente


com as contingências que as tomaram úteis ao homem. Por outro lado,
as fibras sintéticas foram explicitamente criadas e a sua utilidade tomada
em consideração. A sua produção, no entanto, não diminui as probabilidades
de que surjam novos tipos de algodão, lã ou seda. Continua a verificar
s e acasos, que são na realidade propiciados por aqueles que investigam
novas possibilidades. Poderíamos afirmar que a ciência maximiza os
acidentes. O físico não se limita a observar as temperaturas verificadas
acidentalmente no mundo em geral: produz uma série contínua de
temperaturas de grande amplitude. O cientista do comportamento não
se confina aos programas (schedules) de reforço que ocorram casualmente
na natureza: constrói uma grande, diversidade de programas, alguns dos
quais poderiam nunca surgir casualmente. Não existe qualquer valor na
natureza fortuita de um acidente. Uma cultura evolui à medida que novas
práticas vão surgindo e sofrendo os efeitos da selecção, pelo que não
podemos esperar que surjam casualmente.
Poderíamos exprimir do seguinte modo um tipo diferente de oposição
a um novo planeamento cultural: «Não gostaria dele»77 ou, traduzindo
para linguagem behaviorística, «A cultura seria aversiva e não me reforçaria
da maneira a que estou acostumado». A palavra reforma granjeou má
reputação, pois costuma ser associada à destruição de reforçadores - «os
puritanos derrubaram os mastros enfeitados do primeiro de Maio e o
cavalo de pau foi esquecido» - mas o planeamento de uma nova cultura
constitui necessariamente uma espécie de «reforma» pois implica quase
necessariamente uma mudança de reforçadores. Eliminar uma ameaça é,
por exemplo, eliminar a emoção da fuga; num mundo melhor, ninguém
«colherá esta flor, a segurança... desta urtiga, o perigo». O valor reforçante
do descanso, do sossego e do lazer torna-se necessariamente menor à
medida que o trabalho se torna menos compulsivo. Um mundo em que
não haja a necessidade de luta moral não oferecerá nenhum dos reforços
decorrentes de um resultado bem sucedido. Nenhum converso partilhará
da libertação experimentada pelo cardeal Newman da «tensão de uma
grande ansiedade». A arte e a literatura deixarão de se fundamentar em
tais contingências. Não só deixaremos de ter razões para admirar as pessoas
que suportam dores, enfrentam perigos ou se esforçam activamente por
serem boas como ainda é possível que tenhamos pouco interesse pelos
quadros ou livros a seu respeito. A arte e a literatura de uma nova cultura
versarão outros assuntos.
Estas transformações são prodigiosas, pelo que naturalmente lhes

135
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

devotamos uma atenção especial. O problema reside em projectar um


mundo que seja do gosto não dos homens de hoje, mas sim daqueies
que nele viverão. «Não gostaria dele» é o lamento do individualista que
manifesta as suas próprias susceptibilidades em relação ao reforço como
valores estabelecidos. Um mundo que fosse do agrado das pessoas do
nosso tempo apenas perpetuaria o status quo. As pessoas gostariam desse
mundo porque tinham sido ensinadas a gostar dele por razões que nem
sempre resistem a uma análise minuciosa. Um mundo melhor será do
agrado daqueles que nele viverem por haver sido planeado com vista
ao que é, ou possa ser, mais reforçante.
r

E impossível uma ruptura completa com o passado. O arquitecto


de uma nova cultura será sempre culturalmente orientado, uma vez que
não será capaz de se libertar totalmente das predisposições que tenham
sido engendradas pelo ambiente social em que viva. Em certa medida,
ele conceberá necessariamente um mundo de que goste. Além disso, uma
nova cultura deverá atrair aqueles que nela se irão integrar, mas tais
indivíduos são necessariamente produtos de uma cultura mais antiga.
Adentro destes limites práticos, contudo, deverá ser possível minimizar
o efeito dos aspectos acidentais das culturas predominantes e atentar nas
origens das coisas que as pessoas consideram boas. As origens extremas
situam-se na evolução da espécie e na evolução da cultura.
Objecta-se por vezes que o planeamento científico de uma cultura
é impossível, visto que o homem não aceitará o facto de que possa ser
controlado. Mesmo que se provasse que o comportamento humano é
inteiramente determinado, sustentou Dostoievsky78, o homem «ainda faria
alguma coisa por pura perversidade - criaria a destruição e o caos -
precisamente para se afirmar... E, se tudo isto pudesse por sua vez ser
analisado e impedido pela previsão de que iria dar-se, então o homem
enlouqueceria deliberadamente para provar que tinha razão». Dostoievsky
sugere que o homem ficaria assim fora de controlo, como se a loucura
fosse uma espécie de liberdade ou o comportamento de um psicopata
não pudesse ser previsto e controlado.
Dostoievsky poderá, num certo sentido, ter razão. Uma literatura da
liberdade poderá inspirar uma oposição suficientemente fanática em relação
às práticas de controlo de modo a gerar uma reacção neurótica ou até
psicósica. Pode observar-se indícios de instabilidade emocional naqueles
que tenham sido profundamente afectados por essa literatura. Não temos
melhor indicação do empenho do partidário tradicional do não determinismo
do que a mordacidade com que debate a possibilidade de existência de

136
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

uma ciência e tecnologia do comportamento e o seu emprego no


planeamento explícito de uma cultura. O insulto é moeda corrente. Arthur
Koestler79 referiu-se ao behaviorismo como «uma trivialidade monumen­
tal». Afirma ainda que representa «um monte de suposições elevado a
uma escala heróica». Para ele, o behaviorismo converteu a psicologia
numa «versão moderna da noite medieval». Os behavioristas empregam
um «calão pedante» e reforço é uma «palavra feia». O equipamento utilizado
no laboratório operante não passa de «engenhocas». Peter Gay80, cujos
trabalhos de investigação sobre o Iluminismo setecentista deveriam
tê-lo preparado para um interesse moderno pela planificação cultural,
referiu-se à «ingenuidade inata, bancarrota intelectual e crueldade
semideliberada do behaviorismo».
Uma espécie de cegueira em relação ao estado actual da ciência
constitui outro sintoma afim. Koestler afirmou que «a experiência mais
impressionante no âmbito da ‘previsão e controlo do comportamento’
consiste em treinar pombos por meio do condicionamento operante a fim
de conservarem as cabeças erguidas de um modo antinatural enquanto
andam.» Parafraseia ainda a «teoria da aprendizagem» da seguinte maneira:
«De acordo com a doutrina behaviorista, toda a aprendizagem ocorre pelo
método de ensaio-e-falhanço ou tentativa-e-erro. A resposta correcta a
um dado estímulo é descoberta por acaso, tendo um efeito recompensador
ou, como se diz em calão behaviorista, reforçante; se o reforço for forte
ou se se repetir por um número de vezes suficiente, a resposta é «gravada»,
formando-se assim uma liga E-R um vínculo de estímulo e resposta.»
A desactualização desta paráfrase ronda os setenta anos.
Outras interpretações erradas que se nos deparam amiúde incluem
as seguintes reivindicações: uma análise científica aborda todo o
comportamento como respostas a estímulos ou como «uma mera questão
de actos reflexos condicionados», não reconhecendo qualquer contribuição
da constituição genética para o comportamento nem tomando em
consideração a consciência psicológica. (Veremos no capítulo seguinte como
os behavioristas são responsáveis pelos mais vigorosos debates sobre a
natureza e o uso do que se designa por consciência.) Afirmações deste
jaez aparecem com frequência em escritos humanísticos, campo que em
tempos se distinguiu pela sua erudição isenta e rigorosa, mas será difícil
ao historiador do futuro reconstruir a ciência e a tecnologia actuais do
comportamento a partir do que os críticos escrevem.
Outra prática consiste em responsabilizar o behaviorismo por todos
os nossos males. A prática já vem de longe - assim, os romanos culpavam

137
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

os cristãos, e os cristãos os romanos, pelos tremores de terra e pela


pestilência. Talvez ainda ninguém tenha ido tão longe quando responsabiliza
uma concepção científica do homem pelos graves problemas que se nos
deparam hoje em dia como certo articulista anónimo do suplemento literário
de The Times:
«Durante a segunda metade do século os nossos intelectuais de
primeiro plano condicionaram-nos (o próprio termo é produto do
behaviorismo) a encarar o mundo em termos quantitativos e
dissimuladamente deterministas. Filósofos e psicólogos devastaram
todos os nossos antigos pressupostos do livre arbítrio e responsabilidade
moral. A única realidade, levaram-nos a crer, é a ordem física das
coisas. Não somos nós que iniciamos as acções, pois reagimos a
uma série de estímulos externos. Só em anos recentes é que começámos
a verificar para onde nos conduz esta visão do mundo: os terríveis
acontecimentos de Dallas e Los Angeles ...»8I
Por outras palavras, a análise científica do comportamento humano
foi responsável pelos assassínios de John e Robert Kennedy. Uma ilusão
desprovida de qualquer fundamento e de tal grandeza parece confirmar
o prognóstico dostoievskiano. O assassínio político tem uma história
excessivamente longa para haver sido inspirado por uma ciência do
comportamento. Se tivermos de assacar culpas a alguma teoria, será
unicamente à teoria universal do homem autónomo, livre e digno.
Há evidentemente boas razões para que o problema do controlo do
comportamento humano suscite resistências. Dado que as técnicas mais
comuns são de natureza aversiva, conta-se logicamente com qualquer tipo
de contracontrolo. O indivíduo controlado pode colocar-se fora do alcance
do agente de controlo (este agirá, por seu turno, no sentido de evitar
que o faça) ou pode adoptar uma determinada forma de ataque (os processos
de ataque converteram-se em passos importantes na evolução das culturas).
Deste modo, os membros de um dado grupo estabelecem o princípio de
que é errado empregar a força e punem aqueles que assim procedem
por quaisquer meios disponíveis. Os governos codificam o princípio e
qualificam o emprego da força de ilegal e as religiões, de pecaminoso,
pelo que ambos criam contingências que visam reprimi-lo. Quando os
agentes de controlo passam a recorrer a métodos que não sejam aversivos
mas tenham consequências aversivas retardadas, estabelecem-se princípios
adicionais. O grupo considera errado controlar através de meios
fraudulentos, por exemplo, e seguem-se-lhes sanções governamentais e
religiosas.

138
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

Vimos como as literaturas da liberdade e da dignidade ampliaram


tais medidas de contracontrolo num esforço de repressão de todas as
práticas de controlo, mesmo que não tivessem quaisquer consequências
aversivas ou consequências de reforço compensativas. O planificador de
uma cultura expõe-se a críticas violentas uma vez que o planeamento
explícito implica algum controlo (ainda que possa ser unicamente o controlo
exercido por ele próprio). Põe-se muitas vezes o problema da seguinte
forma: quem deverá assumir o controlo?, como se a resposta constituísse
necessariamente uma ameaça. Todavia, para impedir o abuso do poder
de controlar, devemos atentar, não no próprio agente de controlo, mas
sim nas contingências em que ele exerce o controlo.
Somos induzidos em erro pelas diferenças de conspicuidade entre
as medidas de controlo. O escravo egípcio, quando quebrava pedra para
as pirâmides, trabalhava numa pedreira sob a fiscalização de um soldado
munido de um chicote, soldado esse que era pago para brandir o chicote
por um superior, o qual por sua vez estava a soldo de um faraó, que
havia sido persuadido da necessidade de possuir um túmulo inviolável
pelos sacerdotes, os quais defendiam tal necessidade com base nos seus
privilégios e no poder de que desse modo desfrutavam, e assim
sucessivamente. O chicote é um instrumento de controlo mais evidente
do que o soldo, o soldo mais conspícuo do que os privilégios sacerdotais
e os privilégios mais óbvios do que a perspectiva de uma próspera vida
futura. Existem, no entanto, diferenças afins nos resultados. O escravo
foge quando pode, o soldado e o pagador demitem-se ou revoltam-se se
as contingências económicas forem demasiado débeis, o faraó destitui os
seus sacerdotes e dá origem a uma nova religião se verificar que o seu
tesouro está excessivamente depauperado, enquanto os sacerdotes transferem
o seu apoio para a causa de um rival. Seleccionamos provavelmente os
exemplos flagrantes de controlo, já que, pela sua brusquidão e nitidez,
dão a impressão de desencadear alguma coisa; todavia, é erro crasso
negligenciar as formas de controlo imperceptíveis.
A relação entre o agente de controlo e o indivíduo controlado é
recíproca. Ao estudar o comportamento do pombo no laboratório, o cientista
prepara contingências e observa os respectivos efeitos. O seu instrumento
de trabalho exerce um controlo evidente sobre o pombo, é certo, mas
não devemos esquecer o controlo exercido por parte do pombo.
O comportamento do pombo determinou as características do aparelho
e o modo como é utilizado. Parte deste controlo recíproco é típico de
toda a ciência. Como observou Francis Bacon, para dominar a natureza

139
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

temos de obedecer-lhe. O cientista que projecta um ciclotrão encontra-


-se sob o controlo das partículas que estuda. O comportamento com que
os pais controlam os filhos, quer aversivamente quer através de reforços
positivos, é modelado e mantido pelas reacções dos filhos. O psicoterapeuta
modifica o comportamento do seu paciente de formas que foram modeladas
e preservadas pelo seu êxito em modificar aquele comportamento. Os
governos ou as religiões prevêem e impõem sanções escolhidas pela sua
eficácia no controlo dos cidadãos ou dos fiéis. Um patrão induz os seus
empregados a trabalhar diligente e meticulosamente através de um sistema
salarial determinado pelos seus efeitos sobre o comportamento. As práticas
didácticas a que o professor recorre são modeladas e preservadas pelos
seus efeitos nos alunos. Donde se conclui que, num sentido perfeitamente
real, o escravo controla o capataz, o filho os pais, o paciente o terapeuta,
os cidadãos o governo, os fiéis o sacerdote, os empregados o patrão e
os alunos o professor. E certo que o físico projecta um ciclotrão a fim
de controlar o comportamento de certas partículas subatômicas; estas,
por sua vez, não actuam de modos específicos a fim de o induzirem
a fazê-lo. O capataz emprega o chicote a fim de obrigar o escravo a
trabalhar; o escravo não deixa de trabalhar a fim de induzir o capataz
a utilizar o chicote. A intenção ou propósito implícito no termo «a fim
de» constitui uma questão da medida, em que as consequências modificam
eficazmente um dado comportamento e, portanto, da medida em que
devemos levá-las em conta para explicar esse comportamento. Se a partícula
não é afectada pelas consequências da sua acção e não existe qualquer
razão para que falemos de intenções ou propósitos seus, já o escravo
pode ser afectado pelas consequências dos seus actos. O controlo recíproco
não é necessariamente intencional em ambos os sentidos, mas passa a
sê-lo quando as consequências se fizerem sentir. A mãe aprende a tomar
o bebé nos braços a fim de conseguir que deixe de chorar e até poderá
fazê-lo antes que o bebé aprenda a chorar para que lhe peguem ao colo.
Durante um certo lapso de tempo, só o comportamento da mãe é intencional,
mas o da criança poderá também passar a sê-lo.
O ditador benevolente representa o arquétipo do controlo para
benefício do indivíduo controlado, mas nada adianta explicarmos que aquele
age de um modo benévolo por ser ou sentir-se benevolente. E as nossos
naturais suspeitas só se esfumam quando pudermos apontar para
contingências que gerem comportamento benevolente. Tal comportamento
pode ser acompanhado de sentimentos de benevolência ou compaixão,
que poderão igualmente decorrer de condições irrelevantes. Não existe,

140
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

por conseguinte, qualquer garantia de que um agente de controlo


necessariamente exerça bem o controlo em relação tanto a si próprio como
aos outros por sentir compaixão. Conta-se que Ramakrishna82, quando
certo dia passeava com um amigo abastado, ficou chocado com a pobreza
de alguns aldeões, tendo exclamado para o amigo: «Dai a cada uma
dessas pessoas uma peça de fazenda, uma boa refeição e um pouco de
óleo para a cabeça!» Como o amigo começasse por recusar, Ramakrishna,
que não susteve as lágrimas, exclamou: «Miserável! Fico com esta gente.
Não têm ninguém que olhe por eles. Não os deixarei.» Observamos que
Ramakrishna se preocupava, não com a condição espiritual dos aldeões,
mas sim com a sua roupa, alimentação, e protecção contra o sol. Contudo,
os seus sentimentos não eram um subproduto de uma acção efectiva;
apesar de todo o poder do seu samadhi, nada tinha para oferecer a não
ser compaixão. Ainda que as culturas sejam melhoradas por indivíduos
cuja sabedoria e compaixão lhes possam fornecer indicações para o que
hão-de fazer, o aperfeiçoamento máximo decorre do ambiente que os torna
judiciosos e compassivos.
O grande problema está em suscitar um contracontrolo eficaz e,
portanto, conseguir que certas consequências importantes tenham incidência
no comportamento do agente de controlo. Quando se delega o controlo
e o contracontrolo se torna então ineficaz, surgem-nos alguns exemplos
clássicos de desequilíbrio entre o controlo e o contracontrolo. Os hospitais
para doentes mentais, os lares para atrasados, os orfanatos e os lares
para pessoas idosas distinguem-se por formas débeis de contracontrolo,
dado que os interessados no bem-estar de tais indivíduos não se apercebem
muitas vezes do que se passa. As prisões proporcionam poucas
oportunidades de exercer contracontrolo, como o demonstram as mais
frequentes medidas de controlo. O controlo e o contra-controlo tendem
a desorganizar-se quando o controlo é, assumido por instituições
organizadas. As contingências informais estão sujeitas a rápidos
ajustamentos à medida que os seus efeitos se modificam, mas as
contingências que as organizações delegam a especialistas poderão não
ser afectadas por muitas das consequências. Aqueles que pagam pela
educação ministrada a terceiros, por exemplo, poderão perder o contacto
com as matérias ensinadas e com os métodos utilizados. O professor está
unicamente sujeito ao contracontrolo exercido pelos alunos. Em
consequência de tal estado de coisas, a escola poderá tomar-se inteiramente
autocrática ou completamente anárquica e as matérias ensinadas poderão
tornar-se obsoletas à medida que o mundo se modifica ou reduzir-se aos

141
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

pontos que os alunos aceitem estudar. No âmbito da jurisprudência,


põe-se um problema semelhante quando continua a fazer-se cumprir
determinadas leis que deixaram de mostrar-se adequadas às práticas da
comunidade. As normas nunca produzem um comportamento perfeitamente
adequado às contingências a partir das quais foram formuladas, pelo que
tal discrepância se agrava se as contingências mudam e as normas
permanecem intactas. De um modo análogo, os valores atribuídos às
mercadorias pelas entidades económicas poderão tornar-se desproporcionais
em relação aos efeitos reforçantes das mercadorias, à medida que estes
se forem modificando. Em resumo, uma instituição organizada que seja
insensível às consequências das suas práticas não está sujeita a tipos
importantes de contracontrolo.
O autogoverno dá muitas vezes a impressão de solucionar o problema
ao identificar o agente de controlo com o indivíduo controlado. O princípio
de converter o primeiro em membro do grupo que controla deveria aplicar-
-se ao planificador de uma cultura. O desenhador de um dado aparelho
ou instrumento destinado ao seu uso pessoal toma presumivelmente em
consideração os interesses de quem o utiliza, do mesmo modo que o
planificador de um dado ambiente social em que vai viver fará o mesmo;
seleccionará os bens ou valores que reputa de importantes e estabelecerá
o tipo de contingências a que possa adaptar-se. Numa democracia, o
agente de controlo encontra-se entre os controlados, ainda que se comporte
9

de maneiras diferentes em ambos os papéis. Veremos adiante como, num


certo sentido, a cultura se controla a si própria, à semelhança do que
fazem as pessoas, mas tal processo exige uma análise cuidadosa.
O traçado intencional de uma cultura, com a implicação de que o
comportamento deverá ser controlado, é por vezes qualificado de ética
ou moralmente errado. A ética e a moral estão particularmente interessadas
em fazer accionar as consequências mais remotas do comportamento. Existe
uma moralidade das consequências naturais. Como se absterá a pessoa
de comer uma certa iguaria deliciosa que, mais tarde, a fará adoecer?
Ou como deverá sujeitar-se à dor ou à exaustão se tiver de o fazer para
alcançar a segurança? As contingências sociais têm muito mais
probabilidades de levantar problemas morais ou éticos. (Como observamos,
os termos referem-se aos costumes de grupos.) Como se absterá a pessoa
de tirar coisas que pertençam a outrem a fim de evitar a punição que
daí lhe possa advir? Ou como irá submeter-se à dor ou à exaustão a
fim de conquistar seu apreço?
A questão prática, que já examinámos, é determinar a maneira de

142
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

tornar eficazes as consequências remotas do comportamento83. Entregue


a si própria, a pessoa adquire escassas formas de comportamento moral
ou ético quer em contingências naturais quer em sociais. O grupo cria
contingências de apoio quando sistematiza as suas práticas em códigos
ou normas que indicam ao indivíduo como proceder e ainda quando faz
cumprir essas normas por meio de contingências suplementares. Máximas,
provérbios e outras formas de sabedoria popular fornecem à pessoa razões
para respeitar as normas. Os governos e as religiões formulam as
contingências que mantêm um tanto explicitamente e o sistema educacional
transmite normas que possibilitam a satisfação tanto de contingências
naturais como sociais, sem que o indivíduo lhes esteja directamente exposto.
Tudo isto faz parte do ambiente social a que se dá o nome de cultura
e o seu efeito principal, tal como verificamos, é colocar o indivíduo sob
o controlo das consequências mais remotas do seu comportamento. O
efeito tem um valor de sobrevivência no processo da evolução cultural,
uma vez que as práticas evoluem porque aqueles que as seguem ficam,
por isso mesmo, enriquecidos. Existe uma espécie de moralidade natural
tanto na evolução biológica como na cultural. A evolução biológica tornou
a espécie humana mais susceptível em relação ao seu ambiente e também
mais hábil em lidar com ele. A evolução biológica tornou ainda possível
a evolução cultural, tendo colocado o organismo humano sob um controlo
muito mais amplo por parte do ambiente.
Afirmamos que existe algo de «moralmente errado» num estado
totalitário, numa empresa de jogo, num sistema não controlado de salários
à peça, na venda de drogas perniciosas ou na influência pessoal indevida,
não em virtude de qualquer conjunto absoluto de valores mas sim porque
todas essas coisas se revestem de consequências aversivas. Tais
consequências são retardadas, pelo que uma ciência que clarifique as suas
relações comportamento encontra-se na melhor das posições possíveis para
especificar um mundo melhor, num sentido ético ou moral. Não é, por
conseguinte, verdade que o cientista empírico deva negar a possibilidade
de existência de «qualquer interesse científico pelos valores e objectivos
humanos e políticos» nem que a moralidade, a justiça e a ordem sob
a lei se situem «para além da sobrevivência».
É igualmente pertinente certo valor especial presente nos aspectos
práticos da ciência. O cientista trabalha em circunstâncias que minimizam
certos reforçadores pessoais imediatos. Nenhum cientista é «puro»84, no
sentido de que se encontre fora do alcance de reforçadores imediatos,
mas há outras consequências do seu comportamento que desempenham

143
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

papel importante. Se planificar uma dada experiência de determinada


maneira ou interromper uma experiência num dado ponto porque os
resultados confirmam uma teoria que ostenta o seu nome, têm aplicações
industriais que lhe proporcionem lucros ou então impressionam a instituição
ou entidade que patrocina as suas investigações, é quase certo que vai
enfrentar dificuldades. Os resultados de trabalhos científicos que venham
a lume estão sujeitos a um rápido exame por parte de outros investigadores,
pelo que aquele cientista que se deixe manobrar por consequências que
não decorram do que investiga ou estuda ver-se-á provavelmente envolvido
em problemas. Afirmar que os cientistas têm, por conseguinte, uma moral
ou ética superior à de outros indivíduos ou que são dotados de um senso
moral mais apurado é cometer o erro de atribuir ao cientista o que na
verdade é uma característica do ambiente em que trabalha.
Quase toda a gente emite juízos éticos ou morais, mas isso não quer
dizer que a espécie humana seja dotada de «uma necessidade ou ânsia
inata85 de padrões éticos». (Pela mesma ordem de ideias, poderíamos afirmar
que tem uma necessidade ou ânsia inata de comportamento não ético,
já que quase todas as pessoas, mais cedo ou mais tarde, agem de uma
maneira contrária à ética.) O homem não evoluiu como um animal ético
ou moral, mas sim ao ponto de haver construído uma cultura ética ou
moral. Difere dos outros animais, não por possuir um sentido moral ou
ético, mas sim por ter sido capaz de produzir um ambiente social moral
ou ético.
O traçado intencional de uma cultura e o controlo do comportamento
humano que ele implica são essenciais se se espera que a espécie humana
continue a evoluir. Nem a evolução biológica nem a cultural constituem
garantia de que caminhamos inevitavelmente na direcção de um mundo
melhor. Darwin concluiu a Origem das Espécies com o famoso período:
«E, como a selecção natural actua unicamente através e para o bem de
cada ser, todos os ambientes corpóreos e mentais tenderão a progredir
em direcção à perfeição.» Por sua vez, Herbert Spencer argumentava que
«o desenvolvimento máximo do homem ideal é logicamente certo»;
(Medawar86, no entanto, salientou que Spencer mudou de opinião quando
a termodinâmica sugeriu um tipo diferente de término no conceito da
entropia). Tennyson87 partilhava do optimismo escatológico do seu tempo
quando apontava para aquele «longínquo e divino evento em direcção
ao qual toda a criação se move». Todavia, as espécies e culturas extintas
atestam a possibilidade de malogros.
O valor de sobrevivência modifica-se à medida que as condições

144
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

se alteram. Por exemplo, uma vigorosa susceptibilidade ao reforço por


certas espécies de alimentos, pelo contacto sexual e por danos resultantes
de agressões foi outrora extremamente importante. Quando o indivíduo
passava grande parte do dia à procura de alimentos, era importante que
aprendesse rapidamente onde encontrá-los ou como apanhá-los; porém,
com o advento da agricultura, da criação de gado e de processos de
armazenar alimentos, perdeu-se tal vantagem e agora a capacidade de
se ser reforçado pela comida conduz a uma alimentação excessiva e a
doenças. Quando era frequente as fomes e a peste dizimarem populações,
era importante que os homens procriassem sempre que se lhes deparasse
uma oportunidade; contudo, com a melhoria das condições sanitárias e
médicas e das práticas agrícolas, a susceptibilidade ao reforço sexual
traduz-se hoje em superpopulação. Quando as pessoas tinham de defender-
-se de predadores, humanos ou não, era importante que qualquer indício
de dano causado a um predador reforçasse o comportamento que produzira
tal dano; todavia, com a evolução da sociedade organizada, a
susceptibilidade a esse tipo de reforçamento tornou-se menos importante,
podendo até interferir hoje em dia em relações sociais mais úteis. Constitui
uma das funções de uma cultura corrigir tais disposições inatas através
da criação de técnicas de controlo, e particularmente de autocontrolo,
que moderem os efeitos do reforçamento.
Mesmo em condições estáveis, uma espécie poderá adquirir
características não adaptativas ou deficientemente adaptativas. O próprio
processo do condicionamento operante fornece-nos um exemplo. Uma
resposta rápida ao reforço deverá ter tido valor de sobrevivência e muitas
espécies alcançaram um ponto em que um único reforço tem um efeito
considerável. Todavia, quanto mais depressa um dado organismo aprende,
tanto mais vulnerável se torna a contingências adventícias. O aparecimento
acidental de um certo reforçador fortalece qualquer comportamento em
desenvolvimento e coloca-o sob o controlo de determinados estímulos
presentes. Classificamos o resultado de superstição88. Ao que sabemos,
qualquer espécie capaz de aprender a partir de um reduzido número de
reforços está sujeita a superstições, pelo que as consequências são muitas
vezes desastrosas. Uma cultura corrige tal defeito quando concebe métodos
estatísticos que eliminem os efeitos das contingências adventícias e apenas
coloquem o comportamento sob o controlo daquelas consequências que
se relacionem funcionalmente com ele.
O que precisamos é de mais controlo «intencional», não de menos,
o que constitui um importante problema de planificação. O bem de uma

145
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

cultura não pode funcionar como fonte de reforçadores genuínos para


o indivíduo; por outro lado, os reforçadores criados pelas culturas para
induzirem os seus membros a trabalhar pela sobrevivência deles próprios
estão amiúde em conflito com os reforçadores pessoais. O número de
pessoas explicitamente ocupadas no aperfeiçoamento do desenho
automobilístico, por exemplo, deverá exceder largamente o número daquelas
que se dedicam à melhoria das condições de vida nos guetos urbanos.
Não é que o automóvel seja mais importante do que um modas vivendi,
mas sim que as contingências económicas que induzem as pessoas a
aperfeiçoar os automóveis são muito poderosas e decorrem dos reforçadores
pessoais dos fabricantes. Não existe um único reforçador de força
comparável que impulsione a planificação da pura sobrevivência de uma
cultura. Além disso, a tecnologia da indústria automobilística está,
evidentemente, muito mais avançada do que uma tecnologia do
comportamento. Tais factos apenas sublinham a importância de que se
reveste a ameaça exposta pelas literaturas da liberdade e da dignidade.
Um teste revelador da medida em que uma dada cultura promove
o seu próprio futuro reside no seu modo de tratar os tempos de lazer89.
Certas pessoas são suficientemente poderosas para forçar ou induzir outras
a trabalhar para si, de modo a terem muito pouco que fazer. Podem,
assim, entregar-se «à boa vida». O mesmo acontece com aqueles que
vivem em climas particularmente amenos, as crianças, os atrasados ou
doentes mentais, as pessoas idosas e aquelas que se encontram entregues
aos cuidados de outrem. A fechar a lista, encontramos os membros tanto
das sociedades abundantes como das do bem-estar. Todas estas pessoas
dão a impressão de poder «fazer apenas o que lhes agrada», o que constitui
o objectivo natural do partidário do livre arbítrio. O lazer é o epítome
da liberdade.
A espécie está preparada para breves períodos de ociosidade; quando
completamente saciadas por uma lauta refeição ou quando o perigo foi
conjurado, as pessoas descansam ou dormem, como acontece com outras
espécies. Se a ociosidade se prolonga por mais algum tempo, podem
entregar-se a diversas manifestações lúdicas - consequências frívolas de
determinado comportamento grave. Contudo, os resultados são muito
diferentes quando não há nada que fazer durante longos lapsos de tempo.
O leão enjaulado no jardim zoológico, bem alimentado e protegido, não
se comporta como o leão saciado, no seu meio natural. A semelhança
do ser humano institucionalizado, enfrenta o problema do lazer sob a
sua pior forma: não tem nada que fazer. O lazer é uma condição para

146
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

a qual a espécie humana tem sido imperfeitamente preparada, uma vez


que até há bem pouco tempo era apenas desfrutada por uma minoria,
que contribuía com muito pouco para o fundo genético. Grande número
de pessoas encontra-se actualmente em ociosidade durante períodos de
tempo consideráveis, mas não houve qualquer hipótese de uma selecção
efectiva tanto de uma constituição genética importante como de uma cultura
relevante.
Quando determinados reforçadores poderosos deixam de ser eficazes,
são substituídos por outros de menor importância. O reforço sexual sobrevive
à afluência ou ao bem-estar visto que diz respeito mais à sobrevivência
da espécie do que ao indivíduo, além de que a consecução do reforço
sexual não é uma coisa que deleguemos a outrem. O comportamento
sexual assume, por conseguinte, um lugar proeminente no lazer. Pode
conceber-se ou descobrir-se reforços que permaneçam eficazes, tais como
alimentos que continuam a reforçar-nos mesmo quando não temos fome,
drogas como o álcool, a marijuana ou a heroína, que se tornam reforçantes
por razões irrelevantes e acidentais ou ainda a massagem. Todo o reforçador
débil torna-se poderoso quando adequadamente programado (scheduled),
facto que é demonstrado pela relevância assumida, nos tempos livres,
por parte do programa de razão variável que encontramos em todas as
empresas de jogo. O mesmo programa (schedude) explica a dedicação
do caçador, do pescador ou do coleccionador, quando aquilo que apanham
ou coleccionam não se reveste de grande importância. Nos jogos e desportos,
cria-se propositadamente contingências que transformam acontecimentos
triviais em eventos de extraordinária importância. Os indivíduos
desocupados tornam-se também espectadores do grave comportamento dos
outros, como acontecia no circo romano ou sucede num moderno campo
de futebol, no teatro ou no cinema ou ainda quando ouvem ou lêem
narrativas do grave comportamento de outras pessoas através da bisbilhotice
ou da literatura. Somente uma pequena parte deste comportamento contribui
para a sobrevivência pessoal ou de uma cultura.
A ociosidade esteve durante muito tempo associada à produtividade
artística, literária e científica. As pessoas necessitam de estar desocupadas
para se entregar a tais actividades e só uma sociedade razoavelmente
afluente pode patrociná-las em larga escala. Todavia, a ociosidade só por
si não conduz necessariamente à arte, à literatura ou à ciência, pois são
precisas determinadas condições culturais. Aqueles que se interessam pela
sobrevivência da sua cultura examinarão, portanto, as contigências que
subsistem quando se atenuam, as prementes contingências quotidianas.

147
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

É comum dizer-se que uma cultura afluente pode permitir-se o lazer,


mas penso que não podemos estar tão seguros. É fácil para quem trabalha
arduamente confundir um estado de lazer com reforço, em parte porque
aquele acompanha muitas vezes o segundo, e a felicidade, tal como a
liberdade, está de há muito associada ao fazer aquilo que nos agrada;
no entanto, o verdadeiro efeito produzido no comportamento humano poderá
ameaçar a sobrevivência de uma cultura.
O enorme potencial daqueles que não têm nada que fazer não pode
ser negligenciado, já que podem ser produtivos ou destrutivos, conservadores
ou consumidores, atingir os limites das suas capacidades ou ser
transformados em máquinas, apoiar a cultura se forem fortemente reforçados
por ela ou abandoná-la se a vida se tornar enfadonha. Nesta conformidade,
podem ou não estar preparados para agir de uma maneira eficaz quando
o lazer chegar ao fim.
O lazer é um dos grandes desafios dirigidos àqueles que se ocupam
da sobrevivência de uma cultura, porquanto qualquer tentativa de controlar
o que a pessoa faz quando não tem de fazer nada tem muitas probabilidade
ser atacada como intromissão abusiva. A vida, a liberdade e a procura
da felicidade são direitos básicos, mas constituem direitos do indivíduo
e assim foram reconhecidos numa época em que as literaturas da liberdade
e da dignidade estavam empenhadas no engrandecimento do indivíduo.
Tais direitos apenas exercem uma influência secundária na sobrevivência
de uma cultura.
O arquitecto de uma cultura não é um intruso nem um intrometido.
Não se insere numa cultura a fim de subverter um processo natural: faz
parte de um processo natural. O geneticista que modifica as características
de uma espécie através de uma reprodução selectiva ou da modificação
dos genes poderá dar a impressão de se imiscuir na evolução biológica,
mas fá-lo porque a sua espécie evoluiu ao ponto de poder criar uma
ciência da genética e uma cultura que induz os seus membros a debruçarem-
se sobre o futuro da espécie.
Aqueles que foram induzidos pela sua cultura a agir no sentido de,
através de práticas de planeamento, promover a sobrevivência dela própria
devem aceitar o facto de que estão a alterar as condições de vida da
sociedade e, por conseguinte, a participar no controlo do comportamento
humano. A boa governação é tanto uma questão de controlo do
comportamento humano quanto a má, as boas condições de incentivação
tanto quanto a exploração, o bom ensino tanto quanto os exercícios
punitivos. Nada temos a lucrar com o emprego de uma palavra mais

148
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

branda. Se nos contentarmos com o mero «influenciar» pessoas, não nos


alongaremos do significado original do termo: um fluido etéreo que se
imagina fluir dos astros e afectar as acções humanas».
Os ataques dirigidos às práticas de controlo constituem, como é óbvio,
uma forma de contracontrolo, o que poderá revestir-se de benefícios
incomensuráveis se conduzirem ao aproveitamento de melhores práticas
de controlo. As literaturas da liberdade e da dignidade têm, porém, cometido
o erro de supor que suprimem o controlo em vez de o corrigir. O controlo
recíproco, através do qual uma cultura evolui, é então subvertido. A recusa
de exercer um controlo disponível com a alegação de que num certo
sentido, todo o controlo é errado, resulta no possível impedimento de
importantes formas de contracontrolo. Analisámos já algumas das
consequências. As medidas punitivas que as literaturas da liberdade e
da dignidade ajudaram, de outra forma, a eliminar são, em contrapartida,
fomentadas. A preferência por métodos que tomam o controlo imperceptível
ou permitem que se exerça dissimuladamente veio a condenar aqueles
que estão em posição de exercer um contracontrolo construtivo em relação
ao emprego de medidas débeis.
Isto poderia ser uma mutação cultural fatal. A nossa cultura produziu
já a ciência e a tecnologia de que necessita para se salvar; possui a riqueza
necessária a uma acção eficaz e devota um considerável interesse ao seu
próprio futuro. Todavia, se continuar a tomar a liberdade ou a dignidade,
mais do que a sua própria sobrevivência, como o seu principal valor,
então é possível que qualquer outra cultura ofereça uma contribuição maior
para o futuro. O defensor da liberdade e da dignidade poderá, nesse caso,
à semelhança do Satã miltoniano90, continuar a dizer a si próprio que
tem «uma mente que o tempo ou o lugar não modificarão» e uma identidade
pessoal «omni-suficiente» («Que importa o lugar se eu ainda for o
mesmo?»). Mas nem por isso deixará de ir parar ao inferno com a única
consolação de que «aqui, pelo menos, seremos livres».
A cultura assemelha-se ao espaço experimental utilizado no estudo
do comportamento. É um conjunto de contingências de reforço, conceito
este que só recentemente começou a ser entendido. A tecnologia do
comportamento que actualmente desponta é eticamente neutra; porém,
quando aplicada ao desenho de uma cultura, a sobrevivência da cultura
funciona como um valor. Aqueles que foram induzidos a trabalhar pela
sua cultura precisam de prever alguns dos problemas a resolver, mas
muitos aspectos actuais de uma cultura estão obviamente ligados ao seu
valor de sobrevivência. As soluções projectadas na literatura utópica apelam

149
PLANEAMENTO DE UMA CULTURA

para certos princípios significativos, os quais têm o mérito de sublinhar


o valor de sobrevivência: a utopia resultará? O mundo em geral é, como
se depreende, muito mais complexo, mas os processos são os mesmos
e as práticas funcionam pelas mesmas razões. Acima de tudo, desfrutamos
da mesma vantagem ao formular objectivos em termos comportamentais.
O emprego da ciência no planeamento de uma cultura suscita frequentes
controvérsias. Afirma-se que a ciência é inadequada, que o seu emprego
poderá acarretar consequências desastrosas, que não produzirá uma cultura
que seja do agrado dos membros de outras culturas e, de qualquer modo,
que os homens se recusarão, de alguma maneira, a ser controlados.
O abuso de uma tecnologia do comportamento constitui um assunto grave,
mas a melhor forma de podermos estar de sobreaviso será a te n ta r , não
em reputados agentes de controlo, mas nas contingências em que exercem
o controlo. Não é a benevolência de um agente de controlo mas as
contingências nas quais ele controla benevolamente que devem ser
examinadas. Todo o controlo é recíproco, pelo que um intercâmbio entre
controlo e contracontrolo é essencial à evolução de uma cultura.
O intercâmbio é perturbado pelas literaturas da liberdade e da dignidade,
que interpretam o contracontrolo mais como a supressão do que a correcção
das práticas de controlo. Tal efeito poderia ser fatal. Não obstante certas
vantagens notáveis, a nossa cultura poderá revelar um defeito fatal. Qualquer
outra cultura poderá então contribuir de um modo mais decisivo para
o futuro.

150
O QUE É O HOM EM ?

À medida que uma ciência do comportamento adopta a estratégia


da física e da biologia, o homem autónomo, ao qual o comportamento
vinha sendo tradicionalmente atribuído, é substituído pelo ambiente -
o ambiente em que a espécie evolui e se modelou e preservou o
comportamento do indivíduo. As vicissitudes do «ambientalismo»
demonstram como tem sido difícil realizar tal substituição. Que o
comportamento humano deve alguma coisa a acontecimentos antecedentes
e que o ambiente constitui um alvo de ataque mais promissor do que
o próprio homem, já há muito se reconheceu. Como observou Crane
Brinton91, constituiu aspecto significativo das revoluções inglesa, francesa
e russa a existência de «um programa destinado a modificar as coisas
e não apenas a converter as pessoas». Foi Robert Owen (1771-1858),
segundo Trevelyan92, quem primeiro «compreendeu claramente e ensinou
que o ambiente é responsável pelo carácter e que o ambiente se encontra
sob o controlo humano» ou, como observou Gilbert Seldes,93 «que o homem
é uma criatura de circunstância: se mudássemos os ambientes de trinta
pequenos hotentotes e de trinta crianças aristocratas inglesas, os aristocratas
tornar-se-iam hotentotes, para todos os efeitos práticos, e os hotentotes,
pequenos conservadores».
São bastante claras as provas que justificam um certo ambientalismo
básico. As pessoas divergem extraordinariamente em lugares diferentes
e talvez precisamente devido às diferenças entre esses lugares. O nómada
a cavalo da Mongólia Exterior e o astronauta que se desloca pelo espaço
são pessoas diferentes; contudo, tanto quanto sabemos, se tivessem sido

151
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

trocados à nascença, teriam também permutado as suas posições como


adultos. (A expressão «mudar de ambiente» demonstra como identificamos
de perto o comportamento da pessoa com, o ambiente em que ele ocorre.)
Precisamos, no entanto, de desenvolver muito mais os nossos conhecimentos
antes que tal facto se nos tome vantajoso. Que aspectos do ambiente
produzem um hotentote? E que seria necessário modificar para que, em
seu lugar, se produzisse um conservador inglês?
Tanto o entusiasmo do ambientalismo como os seus malogros quase
sempre, ignominiosos são ilustrados pela experiência utópica em «New
Harmony», realizada em território americano em 1825. Por outro lado,
uma longa história de reformas ambientais nos campos da educação,
penologia, indústria e vida familiar, para não falar do governo e da religião,
revela o mesmo padrão os ambientes são criados segundo o modelo dos
ambientes em que se tenha observado um comportamento bom, mas sucede
que esse comportamento não surge. Duzentos anos deste tipo de
ambientalismo têm muito pouco a mostrar em seu abono, e por uma
razão simples. Temos de saber como o ambiente actua antes de podermos
modificá-lo com vista a modificar o comportamento, pelo que é quase
irrelevante uma mera transferência de ênfase do homem para o ambiente.
Examinemos alguns exemplos nos quais o ambiente assume a função
e o papel do homem autónomo. O primeiro, que frequentemente se diz
envolver a natureza humana, é a agressividade. O homem age muitas
vezes de maneira a causar danos a outrem e dá mostras de ser reforçado
pelos indícios de tais danos. Os etologistas puseram em relevo contingências
de sobrevivência que contribuiriam com tais características para a
constituição genética da espécie, mas as contingências de reforço na vida
de um indivíduo são igualmente significativas, já que todo aquele que
age agressivamente para causar dano a outrem será provavelmente reforçado
de outras maneiras (apossando-se de bens alheios, por exemplo). As
contingências explicam o comportamento independentemente de qualquer
estado ou sentimento de agressividade, ou ainda de qualquer acto que
parta do homem autónomo.
Outro exemplo, que diz respeito a um chamado «traço de carácter»,
é a diligência. Certas pessoas são diligentes no sentido de que trabalham
energicamente durante longos períodos de tempo, enquanto outras são
preguiçosas e indolentes. A «diligência» e a «preguiça» são exemplos
dos milhares dos chamados «traços de carácter». O comportamento a
que dizem respeito pode ser explicado de outras maneiras. Parte dele
pode atribuir-se a idiossincrasias genéticas (e apenas pode ser modificado

152
O QUE E O HOMEM?

através de medidas genéticas) e o restante a contingências ambientais,


muito mais importantes do que geralmente se pensa. Independentemente
de qualquer herança genética normal, um organismo oscilará entre uma
actividade vigorosa e um repouso absoluto consoante os programas
(schedules) em que tenha sido reforçado. A explicação passa de um traço
de carácter para uma história ambiental do reforço.
Um terceiro exemplo (uma actividade «cognitiva») é a atenção.
A pessoa só reage a uma pequena parte dos estímulos que a ferem.
O ponto de vista tradicional defende que é ela própria que determina
que estímulos devem efectivamente feri-la, «prestando-lhes atenção».
Afirma-se que uma espécie de guardião interior permite a entrada de
certos estímulos e impede os restantes de entrar. Um estímulo súbito ou
forte poderá forçar a passagem e «atrair» atenção, mas é a pessoa que,
de resto, detém o controlo dos acontecimentos. Todavia, uma análise das
circunstâncias ambientais inverte a relação. Certos estímulos forçam a
passagem «captando a atenção» do indivíduo porque estão associados,
na história evolutiva da espécie ou na história pessoal do indivíduo, a
coisas importantes (perigosas, p.e.) Os estímulos menos poderosos só atraem
a atenção na medida em que tenham figurado em contingências de reforço.
Podemos criar contingências que assegurem que um determinado organismo
(mesmo um organismo tão «simples» como um pombo) «preste atenção»
a um dado objecto e não a outro, ou a uma dada propriedade de um
objecto, como a cor, e não a outro, como a forma. O guardião interior
foi substituído pelas contingências a que o organismo esteve exposto e
que seleccionam os estímulos a que reage.
Segundo a perspectiva tradicional, a pessoa apreende o mundo que
a cerca e age de modo a torná-lo inteligível. Num certo sentido, a pessoa
procura-o e segura-o. «Absorve-o» e possui-o. «Conhece»-o no sentido
bíblico, no qual um homem conhece uma mulher. Já se chegou a argumentar
que o mundo não existiria se ninguém o apreendesse pelos sentidos.
A acção é exactamente invertida numa análise ambiental. Como é óbvio,
não haveria percepção se não houvesse um mundo a perceber, mas um
mundo existente não seria apreendido se não existissem contingências
apropriadas. Dizemos que um bebé percebe o rosto da mãe e o conhece.
A nossa justificação é que ele responde de um dado modo em relação
ao rosto materno e de outras maneiras em relação aos outros rostos ou
objectos. Não faz essa distinção através de qualquer acto mental de
percepção, mas devido a contingências anteriores, algumas das quais podem
ser contingências de sobrevivência. As características físicas de uma espécie

153
PARA A LÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

São elementos particularmente estáveis do ambiente em que a espécie


se desenvolve. (Eis a razão por que os etologistas deram um lugar tão
proeminente ao namoro, ao sexo e às relações entre pais e prole.)
O rosto e as expressões faciais da mãe humana têm sido associados a
segurança, calor, alimento e outras coisas importantes, tanto durante a
evolução da espécie como durante a vida da criança.
Aprendemos a perceber94, no sentido de que aprendemos a responder
a coisas de determinada maneira devido às contingências de que fazem
parte. Podemos perceber o sol, por exemplo, apenas por se tratar de um
estímulo extremamente poderoso, mas não há dúvida de que tem constituído
parte permanente do ambiente da espécie ao longo da sua evolução e
determinadas contingências de sobrevivência poderiam haver seleccionado
um comportamento mais específico em relação ao astro-rei (como aconteceu
com muitas outras espécies). O sol figura igualmente em muitas
contingências actuais de reforço: procuramos a luz solar ou evitamo-la
conforme a temperatura; esperamos pelo nascer ou pôr do sol para iniciar
determinadas acções; falamos a respeito do sol e dos seus efeitos e,
eventualmente, estudamo-lo com os instrumentos e métodos da ciência.
A percepção que temos do sol depende, pois, do que fazemos em relação
aos seus estímulos. O que quer que façamos, e consequentemente seja
qual for a maneira de o perceber, subsiste o facto de que é o ambiente
que age sobre quem o percebe e não a pessoa que age sobre o ambiente.
A percepção e o conhecimento que derivam de contingências verbais
são, de uma maneira ainda mais clara, produtos do ambiente. Reagimos
a um dado objecto de muitas maneiras práticas em consequência da sua
cor - assim, apanhamos e comemos maçãs vermelhas de uma certa
variedade e não verdes. É evidente que somos, capazes de «estabelecer
a diferença» entre vermelho e verde, mas algo mais existe quando dizemos
saber que maçã, é vermelha e outra verde. Somos tentados a dizer que
o conhecimento é um processo cognitivo inteiramente divorciado da acção;
as contingências, porém, fornecem-nos uma distinção mais útil. Quando
alguém nos pergunta a cor de um dado objecto que não pode ver e lhe
dizemos que é encarnado, nós nada fazemos em relação ao objecto por
qualquer outro meio. É a pessoa que nos pôs a pergunta e ouviu a nossa
resposta que emite uma resposta prática em função da cor do objecto.
Só em contingências verbais pode alguém responder a uma propriedade
isolada à qual não possa ser dada uma resposta não verbal. À resposta
a uma dada propriedade de um objecto sem qualquer outra resposta ao
mesmo objecto damos o nome de abstracta. O pensamento abstracto é

154
O QUE É O HOMEM?

o produto de um tipo especial de ambiente e não de uma dada faculdade


cognitiva.
Ao escutarm os, adquirimos um tipo de conhecim ento do
comportamento verbal dos outros que pode ser extremamente valioso ao
permitir-nos evitar que nos exponhamos directamente a certas contingências.
Aprendemos através da experiência alheia, reagindo ao que os outros
referem acerca das contingências. Quando nos advertem para que façamos
ou não algo, não há talvez qualquer interesse em falar de conhecimento;
no entanto, quando recebemos tipos mais duráveis de advertências e
conselhos sob a forma de máximas ou normas, podemos afirmar que temos
um tipo especial de conhecimento das contingências a que se aplicam95.
As leis da ciência são descrições de contingências de reforço e quem
conhecer uma dada lei científica poderá comportar-se de um modo eficaz
sem se expor às contingências que ela descreve. (A pessoa experimentará,
sem dúvida, sentimentos muito diferentes em relação às contingências,
consoante esteja a seguir uma norma ou tenha estado directamente exposta
a determinadas contingências. O conhecimento científico é «frio», ao passo
que o comportamento a que dá origem é tão eficaz como o conhecimento
«quente» decorrente da experiência pessoal.)
Isaiah Berlin referiu-se a um certo sentido de conhecimento, que
se diz ter sido descoberto por Giambattista Vico96. Trata-se do «sentido
em que sei o que significa ser pobre, lutar por uma causa, pertencer
a uma nação, abraçar ou abandonar uma igreja ou partido; sentir nostalgia,
terror, a omnipresença de um deus; compreender um gesto, uma obra
de arte, uma piada, o carácter de um homem, que somos transformados
ou mentimos a nós próprios». São estas as espécies de coisas que temos
mais probabilidades de aprender através de um contacto directo com as
contingências do que através do comportamento verbal dos outros, ainda
que àquelas estejam, sem dúvida, associados certos tipos especiais de
sentimentos. Todavia, mesmo assim, o conhecimento não é, de modo
nenhum, directamente transmitido. Só podemos saber o que significa lutar
por uma causa após uma longa história, durante a qual tenhamos aprendido
a perceber e a conhecer aquele estado de coisas a que se dá o nome
de luta por uma causa.
O papel do ambiente torna-se particularmente subtil quando o objecto
do conhecimento é o próprio sujeito. Se não existe um mundo externo
que inicie o conhecimento, não deveríamos afirmar que é o próprio sujeito
o primeiro a agir? Este é, claro, o campo da consciência psicológica97,
campo que uma análise científica do comportamento é acusada de ignorar.

155
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

Dado que se trata de uma acusação grave, devemos tomá-lo muito a sério.
Diz-se que a principal diferença entre o homem e os outros animais decorre
do facto de ter «consciência da sua própria existência». Ele sabe o que
está a fazer; sabe que teve um passado e terá um futuro; «reflecte sobre
a sua própria natureza»; só ele segue a clássica injunção «conhece-te
a ti próprio». Qualquer análise do comportamento humano que desprezasse
tais factos seria na verdade imperfeita, o que acontece em alguns casos.
O chamado «behaviorismo metodológico» limita-se àquilo que pode ser
publicamente observado - poderão existir processos mentais, mas são
excluídos, pela sua natureza, da análise científica. Os «behavioristas» da
ciência política e muitos filósofos positivistas lógicos têm seguido um
rumo idêntico. Contudo, dado que pode estudar-se a auto-observação, esta
deve ser incluída em qualquer estudo razoavelmente completo do
comportamente humano. Em vez de neglicenciar a consciência, uma análise
experimental do comportamento tem posto em relevo certas questões
cruciais. O problema não está em determinar se o homem é capaz de
se conhecer a si mesmo mas o que aprende quando o faz.
O problema resulta em parte do facto indiscutível da «privatividade»
individual: uma pequena parte do universo está encerrada na pele de
cada indivíduo. Seria tolice negar a existência deste mundo privado, como
é igualmente tolice defender que, por ser privado, é de natureza diferente
do mundo exterior. A diferença não reside na matéria de que se compõe
esse mundo interior, mas na sua acessibilidade. Existe uma intimidade
exclusiva numa dor de cabeça, num sentimento de angústia ou num
solilóquio silencioso. A intimidade é por vezes penosa (não somos capazes
de fechar os olhos quando temos certas dores de cabeça), mas não o
é necessariamente, e parece apoiar a doutrina de que o conhecimento
é uma espécie de posse.
A dificuldade é que, embora essa condição de intimidade possa
aproximar o «conhecedor» do objecto do seu conhecimento, ela interfere
no processo pelo qual ele vem a conhecer alguma coisa. Como vimos
no Capítulo 6, as contingências em que uma criança aprende a descrever
os seus sentimentos são necessariamente imperfeitas; a comunidade verbal
não pode empregar os métodos que utiliza quando ensina a criança a
descrever objectos. Existem, é certo, contingências naturais em que
aprendemos a responder a estímulos íntimos e que produzem formas de
comportamento de grande precisão: não seríamos capazes de andar, saltar
ou fazer um «mortal» se não fôssemos estimulados por certas partes do
nosso próprio corpo. Contudo, é muito reduzida a consciência associada

156
O QUE E O HOMEM?

a este tipo de comportamento e com efeito, comportamo-nos desses modos


quase sempre sem termos consciência dos estímulos a que estamos a
responder. Não reconhecemos consciência a outras espécies que usam,
obviamente, estímulos íntimos semelhantes. «Conhecer» estímulos íntimos
é mais do que responder-lhes.
A comunidade verbal especializa-se em contingências que se descrevem
a si mesmas. Põe perguntas como estas: Que fez ontem? Que estás a
fazer agora? Que fará amanhã? Porque fizeste isso? Quer mesmo fazer
isso? Que te parece isto? As respostas ajudam as pessoas a ajustar-se
reciprocamente de uma maneira eficaz. E é devido ao facto de se fazer
tais perguntas que a pessoa reage a si própria e ao seu comportamento
do modo especial que se designa por conhecer ou estar cônscio. Sem
o auxílio de uma comunidade verbal, todo o comportamento seria
inconsciente. A consciência é um produto social. Não só não é o campo
especial do homem autónomo como ainda se situa fora da esfera do homem
solitário.
E encontra-se igualmente fora do alcance da exactidão de qualquer
pessoa. A privatividade que parece conferir intimidade ao autoconhecimento
impossibilita a comunidade verbal de manter contingências precisas.
O vocabulário introspectivo é, por natureza, impreciso e esta é. uma das
razões por que tem variado tanto entre as diversas escolas filosóficas
e psicológicas. Mesmo um observador meticulosamente treinado
experimenta dificuldades quando se estuda novos estímulos íntimos. (Provas
independentes da estimulação íntima - através de medidas fisiológicas,
por exemplo - possibilitariam tornar mais acutilantes as contingências
que produzem auto-observação e confirmariam, parenteticamente, a presente
interpretação. Tais provas não ofereceriam qualquer apoio, como vimos
já no Capítulo 1, a uma teoria que atribuísse o comportamento humano
a um agente interior observável.)
As teorias da psicoterapia que sublinham a consciência atribuem ao
homem autónomo um papel que está convenientemente (e de uma maneira
muito mais eficaz) reservado a contingências de reforço. A consciência
poderá ajudar se o problema for, em parte, uma certa falta de consciência
e a «intuição» da própria condição pode ser vantajosa se se tomar medidas
remediadoras; porém, a consciência ou essa intuição, só por si, não b astam.
podendo até pecar por excesso. Para agir com eficácia ou ineficácia, não
necessitamos de estar cônscios do nosso comportamento ou das condições
que o controlam. Pelo contrário, como o demonstra a pergunta do sapo
à centopeia, a auto-observação constante poderá ser um obstáculo. Um

157
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

pianista exímio actuaria pessimamente se tivesse uma consciência tão


nítida do seu comportamento como o estudante que dá os primeiros passos
na aprendizagem do instrumento.
As culturas são frequentemente avaliadas pela medida em que
fomentam a auto-observação. Afirma-se que certas culturas produzem
homens que não pensam; em contrapartida, Sócrates tem sido admirado
por haver induzido as pessoas a indagar sobre a sua própria natureza.
Todavia, a auto-observação constitui somente um preliminar para a acção.
O grau de consciência que o homem deverá ter de si próprio depende
da importância da auto-observação para um comportamento eficaz.
O autoconhecimento só é valioso na medida em que contribua para ir
ao encontro das contingências em que tenha surgido.
Talvez o derradeiro reduto do homem autónomo seja aquela actividade
«cognitiva» complexa a que se dá o nome de pensamento. Porque é
complexa, só lentamente se tem rendido a explicações em termos de
contingências de reforço. Quando dizemos que uma pessoa distingue o
vermelho do laranja, subentendemos que tal discriminação constitui um
tipo de acto mental. A própria pessoa não parece fazer coisa alguma:
responde de maneiras diferentes a estímulos vermelhos e laranja, mas
isto é o resultado da discriminação e não o acto em si. Analogamente,
dizemos que a pessoa generaliza - digamos, da sua própria experiência
limitada para o mundo em geral - mas tudo o que vemos é que ela
reage ao mundo em geral como aprendeu a responder ao seu próprio
pequeno mundo. Afirmamos que uma pessoa forma um conceito ou uma
abstracção, mas tudo quanto vemos é que certos tipos de contingências
de reforço produziram uma resposta sob o controlo de uma única
propriedade de um dado estímulo. Dizemos que um indivíduo recorda
ou se lembra do que viu ou ouviu, mas tudo, quanto vemos é que a
presente ocasião evoca uma resposta, possivelmente sob uma forma
enfraquecida ou modificada, adquirida numa outra ocasião. Afirmamos
que uma pessoa associa uma palavra a outra, mas tudo o que observamos
é que um dado estímulo verbal evoca a resposta previamente emitida
em relação a outro. Desta maneira, em vez de supormos que é o homem
autónomo que discrimina, generaliza, forma conceitos ou abstracções,
recorda ou evoca e associa, podemos alinhar todos estes termos observando
simplesmente que não dizem respeito a formas de comportamento98.
No entanto, a pessoa pode agir explicitamente quando resolve um
problema99. Ao construir uma paciência, a pessoa pode revolver as peças
a fim de aumentar as suas possibilidades de solucioná-la. Quando resolve

158
O QUE É O HOMEM?

uma equação, poderá transpor ou simplificar fracções e calcular a raiz


quadrada a fim de aumentar as suas possibilidades de encontrar uma
certa fase da equação que tenha já aprendido a resolver. O artista criador
pode manipular a matéria que utiliza até que lhe surja alguma coisa
interessante. Muitas destas medidas poderão ser tomadas dissimuladamente,
pelo que é provável que sejam atribuídas a um diferente sistema dimen­
sional, mas poderão igualmente ser tomadas às claras, talvez mais
lentamente mas também amiudadas vezes de uma maneira mais eficaz;
além disso, com raras excepções, devem ter sido aprendidas de uma forma
aberta. A cultura promove o pensamento através da formação de
contingências especiais: ensina a pessoa a estabelecer distinções subtis,
tornando mais preciso o reforço diferencial; ensina técnicas a usar na
resolução de problemas; fornece normas que tornam desnecessária a
exposição às contingências das quais essas normas foram extraídas, além
de fornecer normas para encontrar novas normas.
O autocontrolo (ou autogestão) é um tipo especial de resolução de
problemas que, à semelhança do autoconhecimento, levanta todas as
questões relacionadas com a «privatividade». Analisámos, no Capítulo
4, algumas técnicas relacionadas com o controlo aversivo. É sempre o
ambiente que constrói o comportamento com o qual se resolve os problemas,
mesmo quando estes nos surgem no nosso mundo privado circunscrito
pela pele. Dado que todos estes aspectos têm sido investigados de uma
maneira pouco produtiva, a inadequação da nossa análise não deverá servir
de motivo para que nos refugiemos numa mente taumatúrgica. Se a nossa
compreensão das contingências de reforço não é ainda suficiente para
podermos explicar todos os tipos de pensamento, devemos recordar-nos
de que o nosso apelo para a mente não explica absolutamente nada.
Ao transferir o controlo do homem autónomo para o ambiente
observável, não deixamos para trás um organismo vazio. Muita coisa ocorre
no interior do homem e eventualmente, a fisiologia muito nos dirá ainda
sobre esse facto. Explicará por que é que o comportamento se relaciona
efectivamente com acontecimentos precedentes dos quais pode ser
apresentado como uma função. Nem sempre é correctamente entendida
tal missão da fisiologia. Muitos fisiologistas consideram como sua missão
procurar os «correlatos fisiológicos»100 dos acontecimentos mentais,
encarando a investigação fisiológica como uma mera versão mais científica
da introspecção. Contudo, as técnicas fisiológicas não se destinam, como
é evidente, a detectar ou medir personalidades, ideias, atitudes, sentimentos,
impulsos, pensamentos ou propósitos. (Se fosse esse o seu objectivo, teríamos

159
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

então de responder a uma terceira pergunta, a juntar às duas formuladas


no Capítulo 1: Como poderá uma personalidade, uma ideia, um sentimento
ou um propósito afectar os instrumentos do fisiologista?) Actualmente,
nem a introspecção nem a fisiologia fornecem informações muito adequadas
sobre o que se passa no interior do homem quando ele manifesta
comportamento; e, uma vez que ambas incidem na mesma área, têm o
mesmo efeito: desviam a atenção do investigador do ambiente externo.
Grande parte dos mal-entendidos sobre o homem interior resulta da
metáfora da armazenagem. As histórias evolutiva e ambiental transformam
os organismos, mas não são armazenadas dentro deles. Assim, observamos
os bebés sugarem o peito materno e podemos facilmente imaginar que
a forte tendência para assim procederem tem valor de sobrevivência, mas
sugere-se muito mais com o chamado «instinto de sugar» encarado como
algo que o bebé possui e lhe possibilita mamar. O conceito de «natureza
humana» ou «constituição genética» tem os seus perigos quando tomado
neste sentido. Estamos mais perto da natureza humana no recém-nascido
do que no adulto, ou numa cultura primitiva do que numa evoluída, no
sentido de que as contingências ambientais tiveram menos probabilidades
de obscurecer a constituição genética; além disso, somos tentados a
dramatizar tal constituição quando sugerimos que tais fases recuadas
subsistem sob uma forma oculta: o homem é um macaco nu e «o touro
paleolítico101 que subsiste no ego interior de cada homem ainda escarva
a terra sempre que se esboça um gesto ameaçador no meio social». Todavia,
os anatomistas e fisiologistas não encontrarão nenhum macaco (ou touro)
nem, pela mesma razão, instintos. Encontrarão, sim, características
anatómicas e fisiológicas que são produto da história evolutiva.
Também se afirma muitas vezes que o indivíduo tem a sua história
pessoal armazenada dentro de si. Onde se encontrar «instinto» leia-se
«hábito». O hábito de fumar é, presumivelmente, algo mais do que o
comportamento que se diz revelar que uma pessoa tem esse hábito; contudo,
a única informação adicional de que dispomos diz respeito aos reforçadores
e aos programas (schedules) de reforço que levam a pessoa a fumar muito.
Não se armazenam as contingências; apenas deixam a pessoa modificada.
Diz-se amiudadas vezes que o ambiente é armazenado sob a forma
de recordações: para recordar qualquer coisa, procuramos uma cópia que
possa então ser vista como vimos o original. Tanto quanto sabemos, não
existem no indivíduo, em momento algum, quaisquer cópias do ambiente102
mesmo quando se observa um objecto presente. Afirma-se ainda que
armazenamos os produtos de contingências mais complexas. Assim,

160
O QUE E O HOMEM?

dá-se o nome de «conhecimentos de francês» ao repertório adquirido quando


se aprende a falar esta língua.
Sustenta-se igualmente que se armazena traços de carácter resultantes
quer de contingências de sobrevivência, quer de contingências de reforço.
Um curioso exemplo figura no Modern American Usage103 de Follett:
«Dizemos que ‘ele enfrentou corajosamente tais adversidades’ cônscios,
sem o pensar, de que a coragem é uma propriedade do homem e não
do acto em causa; um acto de bravura é uma abreviatura taquigráfica
e poética para o acto praticado por quem demonstra bravura ao praticá-
-lo». Dizemos, no entanto, que um indivíduo é corajoso devido aos seus
actos e ele comporta-se corajosamente quando as circunstâncias ambientais
o induzem a agir desse modo. Foram as circunstâncias que modificaram
o seu comportamento; não implantaram nele um traço de carácter ou
virtude.
Referimo-nos também às filosofias como coisas possuídas. Assim,
um indivíduo fala ou age de uma dada maneira devido à filosofia que
adopta, desde o idealismo ou materialismo dialéctico ao calvinismo.
Expressões deste tipo sintetizam os efeitos das condições ambientais, as
quais só dificilmente poderiam ser agora determinadas, mas que deverão
ter existido e não devem ser ignoradas. A pessoa que possui uma «filosofia
da liberdade» é aquela que foi, de alguma maneira, transformada pela
literatura da liberdade.
Esta questão tem ocupado um lugar curioso no âmbito da teologia.
O homem pecará porque é pecador, ou será pecador porque peca?104
Nenhuma das perguntas sugere algo de muito útil. Afirmar que o homem
é pecador porque peca é dar uma definição operacional do pecado; em
contrapartida, dizer que peca porque é pecador é vincular o seu
comportamento a um suposto traço interior. Todavia, o facto de alguém
se entregar ou não ao tipo de comportamento dito pecaminoso depende
de circunstâncias que não se mencionam em qualquer das perguntas.
O pecado considerado como posse interior (o pecado que a pessoa
«conhece») deverá encontrar-se numa história do reforço. (A expressão
«temente a Deus» sugere essa história, o que não sucede com a piedade,
a virtude, a imanência divina, um senso moral ou a moralidade. Como
vimos já, o homem não é um animal moral, no sentido de que possua
um traço ou virtude especial; criou, sim, um tipo de ambiente social
que o induz a comportar-se de uma maneira moral.)
Tais distinções têm implicações práticas. Diz-se que determinado estudo
de brancos americanos, recentemente levado a efeito, revelou que «mais

161
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

de metade responsabilizava ‘algo que dizia respeito aos próprios negros’105


pelo inferior ta tu s económico e educacional dos negros». Esse «algo»
foi ainda identificado como «falta de motivação» para que se distinguisse
tanto dos factores genéticos como dos ambientais. Afirmava-se,
significativamente, que a motivação deveria estar associada ao «livre
arbítrio». Negligenciar desta forma o papel desempenhado pelo ambiente
é desencorajar qualquer investigação que tenha por objecto as contingências
defeituosas responsáveis por uma «falta de motivação».
Cabe a uma análise experimental do comportamento humano, pela
sua natureza, retirar as funções anteriormente atribuídas ao homem
autónomo e transferi-las, uma por uma, para o ambiente controlador.
A análise responsabiliza, assim, o homem autónomo por um número cada
vez menor de acções. Mas em que posição fica o próprio homem?
A pessoa não será nada mais que um mero corpo vivo? A menos que
subsista alguma coisa a que dêmos o nome de ego como poderemos falar
de autoconhecimento ou autocontrolo? A quem se dirige, nesse caso, a
injunção «Conhece-te a ti próprio»?
Constitui parte importante das contingências a que a criança está
exposta o facto de o seu próprio corpo ser o único elemento do seu ambiente
que permanece o mesmo ( idem) momento a momento, dia após dia. Dizemos
que a criança descobre a sua identidade à medida que aprende a distinguir
o seu corpo do resto do mundo, o que acontece muito antes de a comunidade
a ensinar a nomear os objectos e a distinguir «eu» de «isto» ou de «tu».
O ego106 constitui um repertório de comportamento adequado a um
dado conjunto de contingências. Uma parte considerável das condições
a que o indivíduo se encontra exposto poderá desempenhar um papel
dominante; noutras condições, a pessoa poderá confessar: «Hoje não me
sinto eu próprio» ou «Não poderia ter feito o que diz porque isso é contra
os meus hábitos». A identidade conferida a um eu emerge das contingências
responsáveis pelo comportamento. Dois ou mais repertórios gerados por
diferentes conjuntos de contingências compõem dois ou mais egos. Um
indivíduo possui um repertório apropriado à sua vida com os amigos
e outro adequado às suas relações com a família, pelo que um amigo
poderá achá-lo muito diferente se o vir em família ou os seus familiares
se o virem numa roda de amigos. Põe-se o problema da identidade quando
as situações se interpenetram, quando, por exemplo, uma pessoa se encontra
simultaneamente reunida com amigos e familiares.
Neste sentido, o autoconhecimento e o autocontrolo sugerem a
existência de dois eus. O «autoconhecedor» é quase sempre um produto

162
O QUE E O HOMEM?

de contingências sociais, ao passo que o eu que se conhece pode resultar


de outras fontes. O eu controlador (a consciência ou superego) é de origem
social, ao passo que o eu controlado tem mais probabilidades de resultar
de susceptibilidades genéticas ao reforço (o id ou o Velho Adão). O eu
controlador representa geralmente os interesses alheios, enquanto o eu
controlado os interesses do indivíduo.
O quadro que resulta de uma análise científica não retrata um corpo
com uma pessoa dentro, mas sim um corpo que é uma pessoa, no sentido
de que revela um complexo repertório de comportamento. Esta imagem
não é, evidentemente, familiar. O homem assim retratado é um estranho
e, do ponto de vista tradicional, poderá até nem ter o aspecto de um
homem. «Durante pelo menos cem anos», afirmou Joseph Wood Krutch107,
«temos sido imbuídos com preconceitos por parte de todas as teorias,
desde o determinismo económico ao behaviorismo mecanicista e ao
relativismo, que reduzem a estatura do homem ao ponto de deixar de
ser, em todos os aspectos, o homem que os humanistas.de uma geração
precedente reconheceriam como tal.» Matson argumentou que «o cientista
empírico do comportamento... nega, mesmo que o faça apenas
implicitamente, que exista um ser inigualável, denominado Homem»108.
«O que é actualmente alvo de ataques», observou Maslow, «é o ‘ser’
do homem»109. C. S. Lewis expressou o mesmo pensamento sem
eufemismos: «0 homem está a ser abolido»110.
Experimentamos, evidentemente, uma certa dificuldade em identificar
o homem a que tais termos dizem respeito. Lewis não poderia
referir-se à espécie humana, pois não só não está a ser abolida como
ainda povoa toda a terra. (Do que, eventualmente, poderá resultar a sua
extinção através de doenças, da fome, da poluição ou de um holocausto
nuclear; porém, também não era este o sentido das palavras de Lewis).
Tão-pouco estão os indivíduos a tornar-se menos eficientes ou produtivos.
Dizem-nos que o que está ameaçado de extinção é o «homem EUA homem»,
«o homem na sua humanidade» ou ainda «o homem como Thou e não
At», «o homem como pessoa e não como objecto». Se bem que estes termos
sejam pouco esclarecedores, c o m e c e -lo s ainda assim uma pista. O que
está a ser abolido é o homem autónomo: o homem interior, o homúnculo,
o demónio possuidor, o homem defendido pelas literaturas da liberdade
e da dignidade.
A sua abolição vem já com um longo atraso. O homem autónomo
constitui um instrumento utilizado para explicar o que não pode expli-
car-se de outra maneira, tendo sido construído a partir da nossa ignorância.

163
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

Assim, à medida que aumenta a nossa compreensão, a própria matéria


de que ele se compõe desvanece-se. A ciência não desumaniza o homem:
retira-lhe, sim, a condição de homúnculo e deverá fazê-lo se quisermos
evitar a abolição da espécie humana. Não hesitamos em desfazer-nos do
homem qua homem; só depois de o desapossarmos, poderemos concen-
trar-nos nas verdadeiras, causas da comportamento humano. Só então
poderemos abandonar o inferido pelo observado, o miraculoso pelo natural,
o inacessível pelo manipulável.
Supõe-se muitas vezes que, ao procedermos desse modo, devemos
tratar o homem sobrevivente como um mero animal. «Animal» é um
termo pejorativo, mas unicamente porque «homem» se transformou num
termo espuriamente honorífico. Krutch argumentou que, enquanto o ponto
de vista tradicional apoia a exclamação de Hamlet - «Tão semelhante
a um deus!» - Pavlov, o cientista do comportamento, sublinhava «Tão
semelhante a um cão!». Nesse momento, porém, deu-se um passo em
frente. Um deus representa o arquétipo de um mito, de uma mente
taumatúrgica, do metafísico. O homem é muito mais do que um cão;
porém, tal como o cão, encontra-se no âmbito da análise experimental
do comportamento.
É verdade que grande parte da análise experimental do comportamento
tem sido devotada a organismos inferiores. Minimiza-se diferenças genéticas
através do uso de estirpes especiais; as histórias ambientais poder ser
controladas, talvez mesmo a partir da nascença; pode manter-se regimes
estritos durante longas experiências e poucas destas medidas podem ser
aplicada a seres humanos. Além disso, ao trabalhar com animais inferiores,
o cientista tem menos probabilidades de aumentar os dados de que dispõe
com as suas próprias respostas às condições experimentais ou ainda de
criar contingências tendo em vista mais os efeitos em si próprio do que
no organismo experimentai que está a ser estudado. Ninguém se perturba
quando os fisiologistas estudam a respiração, a reprodução, a nutrição
ou os sistemas endócrinos de animais, uma vez que o fazem com vista
a tirar vantagens de semelhanças muito grandes entre eles e o homem.
Por outro lado, vai-se também descobrindo similaridades comparáveis no
comportamento. Existe, por certo, sempre o perigo de que os métodos
criados para o estudo de animais inferiores salientem apenas características
que estes partilham com o homem, mas não podemos descobrir o que
é «essencialmente» humano enquanto não investigarmos sujeitos não
humanos. As teorias tradicionais do homem autónomo têm exagerado
as diferenças existentes entre as espécies. Algumas das complexas

164
O QUE É O HOMEM?

contingências de reforço que estão a ser investigadas produzem em


organismos inferiores formas de comportamento que, se tais sujeitos fossem
humanos, se diria tradicionalmente envolverem processos mentais
superiores.
Não se transforma o homem numa máquina quando se analisa o
seu comportamento em termos mecanistas. As primeiras teorias de
comportamento, tal como vimos, representavam o homem como um
autómato «de botão e alavanca», imagem que o aproximava da noção
oitocentista de máquina, mas os progressos já realizados modificaram
essa concepção. O homem é uma máquina, no sentido de que é um complexo
sistema que se comporta de modos legítimos, mas a sua complexidade
é extraordinária. A sua capacidade de se ajustar a contingências de reforço
talvez venha a ser, eventualmente, simulada por máquinas; no entanto,
como ainda não atingimos esse estádio, o sistema vivo assim simulado
continuará, por outros motivos, a não ter igual.
Tão-pouco se transforma o homem em máquina quando este é induzido
a utilizar máquinas. Algumas delas requerem um comportamento repetitivo
e monótono, pelo que as evitamos sempre que podemos; outras ampliam
enormemente a nossa eficiência ao lidarmos com o mundo à nossa volta.
O indivíduo pode responder a coisas ínfimas com o auxílio de um
microscópio electrónico e a coisas de grandes dimensões por meio de
radiotelescópios - ao fazê-lo, o indivíduo poderá parecer desumano a quem
apenas usa os sentidos nas suas observações. O homem pode agir sobre
o ambiente com a delicada precisão de um micromanipulador ou com
o alcance e poder de um foguetão espacial - o seu comportamento poderá
parecer desumano a quem apenas se apoia nas contracções musculares.
(Já se argumentou que o instrumento utilizado no laboratório operante
desvirtua o comportamento natural por introduzir uma fonte externa de
poder111, mas os homens já utilizam fontes externas quando lançam
papagaios, navegam à vela ou atiram com arco e flechas. Teriam, por
conseguinte, de abandonar quase todas as suas realizações se apenas se
valessem do poder dos seus músculos). As pessoas registam o seu
comportamento em livros e outros meios de comunicação e o uso que
fazem de tais registos poderá parecer verdadeiramente desumano àqueles
que apenas são capazes de usar aquilo que recordam. As pessoas descrevem
contingências complexas sob a forma de normas (e ainda de normas para
a manipulação de normas) e introduzem-nas em sistemas electrónicos
que «pensam» com uma velocidade verdadeiramente desumana para quem
não se serve de qualquer auxiliar do cérebro. Os seres humanos fazem

165
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

tudo isso com máquinas e seriam menos que humanos se o não fizessem.
O que actualmente encaramos como comportamento mecânico foi,
efectivamente, mais corrente antes da invenção de tais instrumentos.
O escravo na plantação de algodão, o guarda-livros à sua mesa de trabalho
e o estudante submetido, a exercícios repetitivos por um professor - estes
é que eram os homens-máquinas.
As máquinas substituem as pessoas quando fazem o que estas já
fizeram, pelo que as consequências sociais podem ser sérias. A medida
que a tecnologia progride, as máquinas vão assumindo cada vez mais
funções humanas, mas só até um certo ponto. Construímos máquinas
que reduzem alguns dos aspectos aversivos do ambiente (os trabalhos
estafantes, p. e.) e que produzem reforçadores mais positivos. Construímo-
-las precisamente porque o fazem. Não temos qualquer razão que nos
leve a construir máquinas para serem reforçadas por tais consequências
e, se tal fizéssemos, estaríamos a privar-nos a nós próprios de reforço.
Se as máquinas que o homem constrói vierem, eventualmente, a fazer
com que ele se torne supérfluo, será por acaso, não de propósito.
Um dos papéis importantes do homem autónomo tem sido o de
confiar ao comportamento humano uma determinada orientação, pelo que
se tem afirmado que, ao desapossarmos um agente interior, deixamos
o próprio homem sem um objectivo. Como precisou certo escritor, «dado
que uma psicologia científica deve, objectivam ente, encarar o
comportamento humano como determinado por leis necessárias, deverá
representá-lo como não intencional». Contudo, essas «leis necessárias»
só teriam tal efeito se se referissem exclusivamente a condições antecedentes.
A intenção, e o propósito reportam-se a consequências selectivas cujos
efeitos podem ser formulados em «leis necessárias». Terá a vida, em todas
as formas existentes à superfície da terra, um propósito e provará isso
a existência de um planeamento intencional? A mão do primata
desenvolveu-se a fim de que se pudesse manipular os objectos com mais
sucesso, mas esse objectivo deve ser encontrado, não num certo planeamento
anterior, mas sim no processo de selecção. De um modo semelhante,
o propósito de um movimento hábil da mão deverá, no condicionamento
operante, ser encontrado nas consequências que se lhe seguem. Um pianista
não adquire nem executa o comportamento de tocar fluentemente uma
escala devido a uma intenção prévia de o fazer. As escalas tocadas
fluentemente são reforçantes por muitas razões e seleccionam movimentos
hábeis. Tanto na evolução da mão humana como nos seus usos adquiridos
não está em causa qualquer intenção ou propósito anterior.

166
O QUE É O HOMEM?

Os argumentos a favor do propósito parecem fortalecidos quando


recuamos até aos recônditos mais sombrios da mutação. Jacques Barzun
argumentava que tanto Darwin como Marx haviam negligenciado não
só o propósito humano como ainda o propósito criativo responsável pelas
variações sobre as quais a selecção actua. Poderemos chegar à conclusão,
como defendem certos geneticistas, que as mutações não são inteiramente
fortuitas, mas a não casualidade também não constitui, necessariamente,
prova de uma mente criadora. Quando projectam explicitamente mutações
a fim de que um dado organismo reúna com mais êxito certas condições
específicas da selecção, os geneticistas dão a impressão de estar a
desempenhar o papel da mente criadora da teoria pré-evolutiva; todavia,
o propósito que revelam terá de ser procurado na sua cultura, no ambiente
social que os induziu a efectuar mudanças genéticas apropriadas a
contingências de sobrevivência.
Existe uma diferença entre o propósito biológico e o individual, visto
que o segundo pode ser sentido. Ninguém poderá ter sentido um propósito
no desenvolvimento da mão humana, ao passo que a pessoa pode, de
certo modo, sentir o propósito com que toca fluentemente uma escala
musical. Todavia, não toca fluentemente uma escala porque sinta o objectivo
de fazê-lo; o que sente é um subproduto do seu comportamento em relação
às suas consequências. A relação da mão humana com as contingências
de sobrevivência em que se desenvolveu está, obviamente, fora do alcance
da observação pessoal; por sua vez, a relação do comportamento com
as contingências de reforço que o geraram não está.
Uma análise científica do comportamento desapossa o homem
autónomo e atribui ao ambiente o controlo que aquele se dizia exercer.
O indivíduo poderá, então, parecer particularmente vulnerável, já que,
a partir desse momento, passará a ser controlado pelo mundo que o rodeia,
P

por outros homens. Não será ele, nesse caso, apenas uma vitima? E certo
que os homens têm sido vítimas, assim como causadores de vítimas, mas
o termo é excessivamente forte visto sugerir despojamento, o que não
é, de modo nenhum, uma consequência essencial do controlo interpessoal.
Mas, mesmo sob um controlo benevolente não será o indivíduo, na melhor
das hipóteses, um espectador que pode seguir, impotente, os acontecimentos
sem neles interferir? Não estará ele «sem possibilidade de fuga na sua
longa luta para controlar o seu próprio destino»?
Só o homem autónomo é que se encontra numa via sem saída.
O homem pode ser controlado pelo seu ambiente que é, quase inteiramente,
obra sua. O ambiente físico da maior parte das pesssoas é, em larga

167
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

medida, produto da mão do homem. As superfícies por onde caminha,


as paredes que o abrigam, a roupa que veste, muitos dos alimentos que
ingere, os seus utensílios, os veículos em que se desloca, a maior parte
daquilo que ouve e vê são produtos humanos. O ambiente social, que
é obviamente uma criação do homem, gera a linguagem que ele fala,
os costumes que segue e o comportamento que exibe em relação às
instituições éticas, religiosas, governamentais, económicas, educacionais
e psicoterapêuticas que o controlam. A evolução de uma cultura constitui,
com efeito, uma espécie de gigantesco exercício de autocontrolo. Assim,
como o indivíduo se controla a si mesmo ao manipular o mundo em
que vive, também a espécie humana edificou um ambiente em que os
seus membros se comportam de uma maneira altamente eficaz. Cometeu-
-se erros e não temos a certeza de que o ambiente que o homem construiu
continue a fornecer ganhos que compensem as perdas; no entanto, o homem,
tal como o conhecemos, para melhor ou para pior, é o que o homem
conseguiu fazer de si próprio.
Isto não satisfará aqueles que bradam «Vítima!». C. S. Lewis protestava
« ... o poder do homem de fazer o que lhe agrade... significa... o poder
de alguns homens de fazerem a outros homens o que lhes agrade». Tal
situação é inevitável na natureza da evolução cultural. O eu controlador
deve distinguir-se do eu controlado, mesmo quando estão ambos dentro
da mesma pele; quando o controlo é exercido através do traçado de um
ambiente externo, os eus tornam-se, com excepções de pequena monta,
distintos. O indivíduo que, intencionalmente ou não, introduza uma nova
prática cultural é apenas um entre possíveis biliões que serão afectados
por essa prática. Se tal não nos parece um acto de autocontrolo, é unicamente
porque interpretamos erradamente a natureza do autocontrolo no indivíduo.
Ao introduzir, «intencionalmente», modificações no seu ambiente físico
ou social - isto é, com vista a modificar o comportamento humano,
possivelmente também o seu - o indivíduo desempenha dois papéis: o
de agente de controlo, enquanto arquitecto de uma cultura que exerce
controlo sobre os seus membros, e o de controlado, como produto de
uma cultura. Não há, pois, nada de incongruente nesta dualidade, que
decorre da natureza da evolução de uma cultura, com ou sem,planeamento
intencional.
A espécie humana não sofreu, provavelmente, muitas modificações
genéticas durante as épocas de que existem testemunhos. Apenas precisamos
de recuar mil gerações para chegar aos artistas das grutas de Lascaux.
Certos aspectos directamente relacionados com a sobrevivência (tais como

168
O QUE É O HOMEM?

a resistência às doenças) variam substancialmente ao longo de mil gerações,


mas o filho de um artista de Laseaux que fosse transplantado para o
mundo hodierno seria quase indistinguível de uma criança moderna. E
possível que aprendesse mais lentamente do que os seus companheiros
modernos, que só fosse capaz de manter, sem confusão, um pequeno
repertório ou que se esquecesse mais rapidamente, mas não podemos ter
certezas. Porém, do que podemos estar certos é de que uma criança do
século XX transplantada para a civilização de Laseaux não seria muito
diferente das crianças que aí encontrasse, porquanto temos verificado o
que sucede quando uma criança do nosso tempo é criada num ambiente
empobrecido.
O homem mudou muito como pessoa, durante o mesmo período de
tempo, ao transformar o mundo em que vive. Cerca de cem gerações112
cobrirão o desenvolvimento de modernas práticas religiosas e talvez o
mesmo lapso de tempo baste para que surjam novas práticas governamentais
e jurídicas. Talvez apenas vinte gerações venham a produzir modernas
práticas industriais e possivelmente apenas quatro ou cinco, novas práticas
nos campos da educação e da psicoterapia. As tecnologias física e biológica,
que aumentaram a sensibilidade do homem em relação ao mundo à sua
volta e o seu poder de modificar esse mundo, não precisaram de mais
de quatro ou cinco gerações.
O homem «controlou o seu próprio destino», se tal expressão quer
realmente dizer alguma coisa. O homem que ele próprio «fabricou» é
o produto da cultura, que ele mesmo concebeu. O homem resultou de
dois processos bem diferentes de evolução: a evolução biológica, responsável
pela espécie humana, e a evolução cultural, desenvolvida pela espécie.
Ambos os processos de evolução podem agora ser acelerados visto estarem
submetidos a um planeamento intencional. Os homens já modificaram
a sua constituição genética através de uma reprodução selectiva e da
modificação de determinadas contingências de sobrevivência, pelo que
podem agora começar a introduzir mutações directamente relacionadas
com a sobrevivência. Durante muito tempo, os homens criaram novas
práticas que actuam como mutações culturais e modificam as condições
em que as práticas são seleccionadas. Podem, por conseguinte, começar
agora a entregar-se a ambas as actividades, já com uma percepção mais
apurada das consequências.
Presumimos que o homem não deixará de evoluir, mas não podemos
afirmar em que direcção. Ninguém poderia ter previsto a evolução da
espécie humana num dado ponto dos seus primórdios históricos e a

169
PARA ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

orientação do planeamento genético intencional dependerá da evolução


de uma cultura que é, em si mesma, impredizível por motivos similares.
«Os limites da perfeição humana», afirmou Étienne Cabet, «não são ainda
conhecidos.»113 Contudo, não existem, por certo, limites. A espécie humana
nunca alcançará um estádio final de perfeição antes da sua extinção -
«alguns dizem que pelo fogo; outros, pelo gelo» e ainda outros, pela
radiação.
O indivíduo ocupa um lugar numa cultura que não difere do seu
lugar dentro da espécie"4, lugar esse que foi acaloradamente debatido
nos princípios da teoria evolutiva. A espécie terá sido apenas um tipo
de indivíduo e, em caso afirmativo, em que sentido pôde desenvolver-
-se? O próprio Darwin declarou que as espécies «são puras invenções
subjectivas do taxonomista». Uma espécie não tem existência a não ser
como uma colecção de indivíduos, o mesmo sucedendo com famílias,
tribos, raças, nações ou classes. Uma cultura não tem existência
independentemente do comportamento dos indivíduos que mantêm as suas
práticas. É sempre o indivíduo que actua sobre o ambiente, que é modificado
pelas consequências das suas acções e que mantém as contingências sociais
que são uma cultura. O indivíduo é o portador tanto da sua espécie como
da sua cultura. As práticas culturais, à semelhança das características
genéticas, são transmitidas de indivíduo para indivíduo. Uma nova prática,
como uma nova característica genética, surge primeiro num indivíduo
e tende a ser transmitida se contribui para a sua sobrevivência como
indivíduo.
Todavia, o indivíduo é, na melhor das hipóteses, um locus em que
convergem muitas linhas de desenvolvimento num conjunto que não se
repete. A sua individualidade é incontestável. Cada célula do seu corpo
é um produto genético ímpar, tão singular como aquela marca clássica
de individualidade que é a impressão digital. E mesmo dentro da cultura
mais sistematizada, cada história pessoal não se repete. Nenhuma cultura
intencional poderá destruir esse carácter de singularidade e, como vimos,
qualquer esforço nesse sentido constitui mau planeamento. Mas nem por
isso o indivíduo deixa de ser um estádio num processo que teve início
muito antes de ele haver nascido e que persistirá muito para além da
sua morte. Ele não tem nenhuma responsabilidade definitiva por qualquer
característica genética ou prática cultural, mesmo que tenha sido o indivíduo
que sofreu a mutação ou introduziu a prática que se tomou parte da
espécie ou da cultura. Mesmo que Lamarck tivesse razão quando supunha
que o indivíduo poderia modificar a sua estrutura genética através de

170
O QUE É O HOMEM?

um esforço pessoal, teríamos de considerar ainda as circunstâncias


ambientais como responsáveis por tal esforço, como é o caso quando os
geneticistas começam a introduzir modificações na constituição genética
humana. E, quando um indivíduo se entrega ao traçado intencional de
uma prática cultural, devemos voltar-nos para a cultura que o induz a
fazê-lo e lhe fornece a arte ou a ciência que utiliza.
Um dos grandes problemas do individualismo, raramente reconhecido
como tal, é a morte — o destino inexorável do indivíduo, a arremetida
final contra a liberdade e a dignidade. A morte é um daqueles eventos
remotos que certas práticas culturais ajudam a incidir sobre o
comportamento. Como acontece na famosa metáfora de Pascal, o que
vemos é a morte dos outros: «Imaginai um grande número de homens
acorrentados, todos condenados à morte. Diariamente, alguns deles são
chacinados na presença dos outros; aqueles que subsistem vêem a sua
própria condição na dos companheiros e, entreolhando-se com aflição
e desespero, aguardam a sua vez. É esta a imagem da condição humana.»
Certas religiões conferiram maior importância à morte, pintando uma
existência futura no céu ou no inferno, mas o individualista tem uma
razão especial para temer a morte, engendrada não por uma religião mas
pelas literaturas da liberdade e da dignidade. É a perspectiva da aniquilação
pessoal. O individualista não é capaz de encontrar consolo na reflexão
sobre qualquer contribuição que lhe sobreviva. Recusou-se a agir para
o bem dos outros e não é, por conseguinte, reforçado pelo facto de que
outros a quem ajudou lhe sobrevivam. Recusou ainda interessar-se pela
sobrevivência da sua cultura e não é reforçado pelo facto de a sua cultura
subsistir muito para além da sua morte. Ma defesa da sua própria liberdade
e dignidade, negou as contribuições do passado e deverá, portanto, renunciar
a qualquer reinvidicação sobre o futuro.
Talvez a ciência nunca nos tenha compelido a rever de forma mais
radical um ponto de vista tradicional sobre um assunto nem houve jamais
assunto mais importante. Segundo a imagem tradicional, a pessoa percebe
o mundo à sua volta, seleciona os aspectos a apreender, discrimina-os,
4

ajuíza do seu valor, transforma-os para melhor (ou para pior, se for
descuidada) e poderá ser responsabilizada pelas suas acções e justamente
recompensada ou punida pelas consequências. De acordo com a imagem
científica, a pessoa é um membro de uma espécie modelada por
contingências evolucionárias de sobrevivência, apresenta processos
comportamentais que a submetem ao controlo exercido pelo ambiente em
que vive e, de uma maneira geral, ao controlo exercido por um ambiente

171
PARA ALEM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

social que ela e milhões de outras pessoas como ela construíram e


preservaram durante a evolução de uma cultura. Deste modo, o sentido
da relação de controlo inverte-se: a pessoa não actua sobre o mundo,
o mundo é que actua sobre ela.
É difícil aceitar tal mudança com base apenas em razões intelectuais
e quase impossível aceitar as suas implicações. Descreve-se normalmente
a reacção dos tradicionalistas em termos de sentimentos. Um destes
sentimentos, ao qual os freudianos recorreram para explicar a resistência
à psicanálise, é a vaidade ferida. Segundo palavras de Ernest Jones115,
o próprio Freud referiu-se aos «três rudes golpes que o narcisismo ou
amor-próprio da humanidade sofreu às mãos da ciência. O primeiro,
cosmológico, foi aplicado por Copémico; o segundo, biológico, foi desferido
por Darwin; o terceiro, psicológico, foi aplicado por Freud». (Os golpes
foram sofridos pela crença de que algo existente no âmago do homem
conhece tudo quanto se passa dentro de si e que um instrumento chamado
força de vontade exerce domínio e controlo sobre o resto da personalidade
humana.) Mas quais são os indícios ou sintomas de vaidade ferida e
como explicá-los? O que as pessoas fazem frente à imagem científica
do homem é chamar-lhe errada, aviltante e perigosa, reunir argumentos
contra ela e atacar quem a propõe ou defende. Não o fazem por vaidade
ferida, mas sim porque tal formulação científica destruiu certos reforçadores
a que estavam acostumadas. Quando a pessoa deixa de poder ser louvada
ou admirada pelo que faz, tem a impressão de que sofre uma perda de
dignidade ou de valor e o comportamento anteriormente reforçado pelo
louvor ou pela admiração sofrerá extinção. E a extinção conduz muitas
vezes a manifestações de agressividade.
Tem-se descrito outro efeito da imagem científica do homem como
uma perda de fé ou de «nervo», uma sensação de dúvida ou de impotência
ou ainda como desânimo, abatimento ou desalento. Diz-se que uma pessoa
sente que nada poderá fazer quanto ao seu próprio destino. O que a
pessoa sente, porém, é um enfraquecimento de antigas respostas que
deixaram de ser reforçadas. As pessoas ficam na realidade impotentes
quando determinados repertórios verbais de longa data deixam de ser
úteis. Certo historiador116, por exemplo, queixou-se de que, se os feitos
dos homens devem «ser desprezados como meros produtos dos
condicionamentos material e psicológico», nada resta sobre que possamos
escrever; «a transformação deverá ser, pelo menos em parte, o resultado
de uma actividade mental consciente.»
Outro efeito é uma espécie de nostalgia. Volta a adoptar-se antigos

172
O QUE É O HOMEM?

repertórios quando se capta e exagera certas similaridades entre o presente


e o passado. A determinadas épocas passadas dá-se o nome de «os bons
velhos tempos», nos quais se reconhecia a inerente dignidade do homem
e a importância dos valores espirituais. Tais fragmentos de comportamento
ultrapassado revelam uma tendência para um certo «saudosismo», isto
é, têm o carácter de um comportamento cujo sucesso é cada vez menor.
Estas reacções à concepção científica do homem são, por certo,
infelizes. Imobilizam homens de boa vontade e qualquer pessoa interessada
pelo futuro da sua cultura fará o que estiver ao seu alcance para corrigi-
las. Nenhuma teoria modifica aquilo que constitui o seu objecto. Nenhuma
coisa se modifica por olharmos para ela, falarmos a seu respeito ou a
analisarmos de uma nova maneira. Keats117 acusou Newton de confusão
por analisar o arco-íris, mas este permaneceu tão belo como sempre e,
para muitas pessoas, tornou-se ainda mais belo. O homem não se modifica
porque o contemplamos, falamos a seu respeito e o analisamos
cientificamente. As suas realizações nos campos da ciência, governação,
religião, arte e literatura permanecem para serem, perenemente, admiradas
como admiramos uma tempestade no mar, a folhagem no outono ou o
pico de uma m o n ta n h a , independentemente das suas origens e de uma
análise científica. O que se transforma são as nossas possibilidades de
fazer alguma coisa a respeito do objecto de uma teoria. A análise de
Newton da luz do arco-íris foi um passo na direcção do raio laser.
A concepção tradicional do homem é lisonjeira, visto que lhe confere
privilégios reforçantes. É, portanto, facilmente defendida e só dificilmente
poderá ser alterada. Foi projectada para elevar o indivíduo à condição
de instrumento de contracontrolo, o que efectivamente sucedeu, mas de
maneira a limitar o progresso humano. Vimos como as literaturas da
liberdade e da dignidade, com o seu interesse pelo homem autónomo,
perpetuaram o emprego da punição e apenas sancionaram a utilização
de técnicas não punitivas débeis. Assim, não é difícil demonstrar uma
conexão entre o direito ilimitado do indivíduo de procurar a felicidade
e as potenciais catástrofes motivadas por uma natalidade desgovernada,
por uma afluência desenfreada que esgota os recursos naturais e pela
iminência de uma guerra nuclear.
As tecnologias física e biológica mitigaram a pestilência, a fome
e muitos outros aspectos dolorosos, perigosos e exaustivos da vida
quotidiana; a tecnologia do comportamento pode começar a mitigar outros
tipos de males. Na análise do comportamento humano é perfeitamente
possível que estejamos ligeiramente avançados em relação a Newton quando

173
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

analisava a luz, porquanto estamos a começar a utilizar aplicações


tecnológicas. Existem possibilidades maravilhosas que são tanto mais
maravilhosas quanto as soluções tradicionais se revelam ineficazes. É difícil
imaginar um mundo em que as pessoas vivam em concórdia, se mantenham
através da produção de alimentos, abrigos e vestuário de que necessitam,
se divirtam e contribuam para o entretenimento dos outros nas artes,
na música, na literatura e nos jogos, consumam apenas uma porção razoável
dos recursos do globo e contribuam o menos possível para a sua poluição,
não tenham mais filhos do que aqueles que podem criar decentemente,
continuem a explorar o mundo à sua volta e a descobrir melhores maneiras
de lidar com ele, cheguem a conhecer-se a si próprias com precisão e,
portanto, se administrem eficazmente. Todavia, tudo isto é possível e mesmo
o mais ténue indício de progresso deverá provocar qualquer sorte de
transformação que, em termos tradicionais, se dirá consolar a vaidade
ferida, afastar uma sensação de desesperança ou nostalgia, corrigir a
impressão de que «não podemos nem precisamos de fazer nada por nós
próprios» e promover um «sentimento de liberdade e dignidades através
da consolidação de um «sentido de confiança e valor». Por outras palavras,
deverá reforçar copiosamente aqueles indivíduos que tenham sido induzidos
pela sua cultura a trabalhar pela sobrevivência dela própria.
Uma análise experimental transfere a determinação do comportamento
do homem autónomo para o ambiente, um ambiente responsável quer
pela evolução da espécie, quer pelo repertório adquirido por cada membro.
As primeiras versões do ambientalismo mostraram-se inadequadas uma
vez que foram incapazes de explicar como funcionava o ambiente. Deste
modo, cabia ao homem autónomo a responsabilidade por grande parte
das suas acções. No entanto, as contingências ambientais assumem hoje
funções outrora atribuídas ao homem autónomo, pelo que se põem
determinadas questões. Será o homem, nesse caso, «abolido»? Certamente
que não, quer como espécie quer como executor individual. É antes o
homem interior autónomo que é abolido, o que constitui um passo em
frente. Mas não se converterá o homem em mera vítima ou observador
passivo do que lhe acontece? Ele é, efectivamente, controlado pelo seu
ambiente, mas devemos recordar-nos de que se trata de um ambiente
que é, em larga medida, produto da sua lavra. A evolução de uma cultura
é um gigantesco exercício de autocontrolo. Afirma-se com frequência que
uma perspectiva científica do homem fere a sua vaidade e conduz a
sentimentos de desesperança e nostalgia.
Nenhuma teoria, porém, modifica o seu objecto: o homem continua

174
O QUE É O HOMEM?

a ser o que sempre foi. Mas uma nova teoria poderá alterar aquilo que
podemos fazer em relação ao seu objecto. Uma perspectiva científica do
homem oferece possibilidades estimulantes. Ainda não vimos o que o
homem pode fazer do homem.

175
NOTAS

Apresenta-se a seguir as referências citadas no texto com comentários adicionais, além de


referências a discussões ou estudos mais desenvolvidos de certos tópicos, insertos noutros livros
do mesmo autor assim identificados:

BO The Behavior o f Organisms: An ExperimentaLAnalysis (Nova lorque; Appleton-Century-


-Crofts, 1938)
WT Walden Two (Nova lorque; Maemillan, 1948)
SHB Science and Human Behavior (Nova lorque, Macmillan, 1953)
VB Verbal Behavior (Nova lorque; Appleton-Century-Crofts, 1957)
SR Schedules o f Reinforcement, com Charles B. Ferster (Nova lorque; Appleton-Century-
-Crofts, 1957)
CR Cumulative Record, Revised Edition (Nova lorque; Appleton-Century-Crofts, 1961)
TT The Technology o f Teaching (Nova lorque; Appleton-Century-Crofts, 1968)
COR Contingencies o f Reinfercement: A Theoretical Analysis (Nova lorque; Appleton-
-Century-Crofts, 1969).

1 C. D. Darlington, The Evolution o f Man and Society. Citado em Science, 1970, 168,
1332.
2 «Causa». O que deixou de ser corrente na linguagem científica foi a causalidade de «botão
e alavanca» da ciência oitocentista. As causas aqui referidas são, tecnicamente falando, as variáveis
independentes das quais o comportamento, como variável dependente, é uma função. Vide SHB,
cap. 3.
Sobre
3 «posse», vide COR, cap. 9.
4 Herbert Butterfield, Teh Origins o f Modern Science (Londres, 1957).
5 Karl R. Popper, O f Clouds and Clocks (St. Louis, Washington University Press, 1966),
pág. 15.
6 Eric Robertson Dodds, The Greeks and the Irrational (Berkeley; University o f California
Press, 1951).
7 Mente e comportamento; vide COR, cap. 8.
8 William James, «What Is an Emotion?» Mind, 1884, 9, pág. 188-205.
9 O papel do ambiente; vide COR, cap. 1.

177
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

10 René Descartes, Traité de I ’homme (1662).


«1aguilhoados e chicoteados»; E. B. Molt, Animal Drive and (he Learning Process (Nova
iorque; Henry Holt & Co., 1931).
12 Comportamento «operante»; vide Sl-IB, cap. 5.
13 Aplicações práticas do comportamento operante; vide Roger Ulrich, Thomas Stachnik
e John Mabry, Drgs., Control o f Human Behavior, vois 1 e 2 (Glenview, Illinois; Scott, Poresman
& Co., 1966 e 1970).
14 Joseph Wood Krutch, New York Times Magazine, 30 de Julho de 1967.
15 Condicionamento operante; vide SUB, cap. 5 e II.
16 Sobre a agressividade induzida pelo choque, vide N. H. Azrin, R. R. Hutchinson e R.
D. Sallery, «Pain-aggression Toward Inanimate Objects», J. Exp. Anal. Behav., 1964, 7, 223-
228. Vide também N. H. Azrin, R. R. Hutchinson e R. McLaughlin, «The Opportunity for
Aggression as an Operant Reinforcer During Aversive Stimulation», J. Exp. Anal. Behav..1965,
8, 171-180.
17 Fueguinos; vide Marston Bates, Where Winter Never Comes (Nova Iorque; Charles
Scribner’s Sons, 1952), pág. 102.
18 Sobre os sentimentos, vide COR, n. 8, 7.
19 John Stuart Mill, Liberty (1859), cap. 5.
Reforçamento
02 positivo; vide SHB, cap. 5 e 6.
21 Reforçadores condicionados; vide SHB, pág. 76.
22 Edmond e Jules de Goncourt, artigo publicado em 29 de Julho de 1860, Journal: Mémoires
de la vie littéraire (Mónaco, 1956).
Programas
32 de reforço; vide em SHB, págs. 99-106, uma breve exposição. Para uma
análise experimental desenvolvida, vide SR.
Autocontrolo;
42 vide SHB, cap. 15.
25 Bertrand de Jouvenel, Souveraineté.
26 Poder de conferir ou retirar benefícios ilimitados, Juiz Roberts no caso judicial United
States versus Butler, 297 U. S. 1, 56 Supremo Tribunal 312 (1936).
27 Motivação ou tentação não equivalentes a coerção; Juiz Cardozo no caso Steward Machine
Co. versus Davis, 301 U. S. 548, 57 Sup. Ct. 883 (1937).
28 Liberdade irrestrita para reproduzir ou não; vide uma carta dirigida a Science, 1970,
167, 1438.
Jean-Jacques
92 Rousseau, Émile ou de I education (1762).
30 Michel de Montaigne, Essais, 111, IX ( 1580).
3l«lacaio submisso». Othelo, Acto I, cena I
32 Rudyard Kipling, «The Vampire».
33 François, Duque de la Rochefoucauld, Maximes (1665).
34 Vai com ele duas milhas, Mateus 5:41.
35 Tocar trombetas, Mateus 6:2.
36 Criatividade; vide B. F. Skinner, «Creating the Creative Artist», em On the Future o f
Art (Nova Iorque; The Viking Press, 1970). (A ser reimpresso em CR, 3.“ ed.) Vide ainda
SHB, págs. 254-256.
37 J. F. C. Fuller, artigo sobre «Tactics», Encyclopaedia Britannica, I4.a ed.
38 Punição; vide SHB, cap. 12.
39 Dinamismos freudianos; vide SHB, págs. 376-378.
40 Injunçâo bíblica, Mateus 18:8.
41 T. H. Huxley, «On Descartes’ Discourse on Method», in Methods and Results (Nova
Iorque; Macmillan, 1893), cap. 4.
42 Vide Joseph Wood Krutch, The Measure o f Man (Indianapolis; Bobbs-Merrill, 1954),
págs. 59-60. Mais tarde, Mr. Krutch revelou que «poucas declarações jamais me chocaram
tanto. Huxley dava a impressão de querer dizer que preferia, se pudesse, ser uma térmite a
ser um homem». («Men, Apes, and Termites»), Saturday Review, 21 de Setembro de 1963).

178
NOTAS

43 Mill, sobre a bondade; vide resenha de James Fitzjames Stephen, Libert}’, Equality,
Fraternity, in Times Literary Supplement, 3 de Out. de 1968.
44 Raymond Bauer, The New Man in Soviet Psychology, (Cambridge; Harvard Universty
Press, 1952).
45 Joseph de Maistre; o passo foi citado no New Statesman de Agosto/Setembro de 1957.
46 Sócrates como «parteira»; Platão, Meno.
47 Freud e a maiêutica; citação de Walter A. Kaufmann em David Shakow, «Ethics for
a Scientific Age: Some Moral Aspects o f Psychoanalysis», The Psychoanalytic Review, outono
de 1965, 52, n.° 3.
48 Alexis de Tocqueville, Democracy in America, (Cambridge; Sever & Francis, 1863).
49 Ralph Barton Perry, Pacific Spectator, primavera de 1953.
50 Sugestões e indicações; vide VB, cap. 10.
51 Discriminação operante: vide SHB. Cap. 7.
52 Editorial sobre o aborto, Time, 13 de Outubro de 1967.
53 Reforçadores positivos; vide nota 20.
54 Para a importância dos reforçadores na evolução da espécie, vide COR, cap. 3.
55 Condicionamento respondente; vide SHB, cap. 4.
56 Sobre respostas de aprendizagem a estímulos interiores, vide SHB, cap. 17.
57 Eric Robertson Dodds, op. cit.
58 Deveria; vide SHB, pág. 429.
Formas verbais que correspondem a certas formas do nosso verbo dever, na acepção de
«ser obrigado», «ser conveniente», «ser necessário» [N. T.].
59 Karl R. Popper, The Open Society and Its Enemies (Londres; Routledge & Kegan Paul,
1947), pág. 53.
60 Para uma análise desenvolvida das instituições governamentais, religiosas, económicas,
educacionais e psicoterapêuticas, vide SHB, see. 5.
61 Abraham H. Maslow, Religions, Values, and Peak-Experiences (Columbus; Ohio State
University Press, 1964).
62 Dante, O Inferno, canto III.
63 Jean-Jacques Rousseau, Dialogues (1789).
64 O núcleo essencial de uma cultura; Alfred L. Krober e Clyde Kluckhohn, «Culture:
A Critical Review o f Concepts and Definitions», publicado Harvard University Peabody Museum
o f American Archaeology and Ethnology Papers, vol 47, n.°l (Cambridge, 1952) (Ed. paper-
-back, 1963).
65 A geografia de Roma; vide, por exemplo, F. R. Cowell, Cicero and the Roman Republic
(Londres; Pitman & Sons, 1948).
66 Danvinismo social; vide Richard Hofstadter, Social Darwinism in American Thought
(Nova lorque; George Braziller, 1944).
67 Leslie A. White, The Evolution o f Culture (Nova lorque; McGraw-Hill Book Co., 1959).
68 Linguagem que se desenvolve como um embrião; vide Roger Brown e Ursula Bellugi,
«Three Processes in the Child’s Acquisition o f Syntax», Harvard Educational Review, 1964,
34, n.o 2, 133-151.
69 A linguagem da criança selvagem; Eric H. Lenneberg, in Biological Poundations O f
Language (Nova lorque; John Wiley & Sons, Inc., 1967) assume a posição oposta em relação
à maioria dos psicolinguistas, no sentido de que determinada faculdade interior não passa pelo
seu «desenvolvimento normal» (pág. 142).
70 Modificando os sentimentos. Temos a impressão de que os sentimentos podem ser
modificados quando incitamos uma pessoa a beber um trago ou quando ela própria «reduz
os aspectos aversivos do seu mundo interior» bebendo, ou fumando marijuana. Contudo, o
que muda, não é o sentimento, mas a condição física que a pessoa sente. O arquitecto de uma
cultura modifica os sentimentos que acompanham o comportamento nas suas relações com o
ambiente, mas fá-lo modificando o ambiente.

179
PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE

71 Observando contingências de reforço. Vide COR, págs. 8-10.


72 Manipulação de contingências. Para uma conveniente colecção de relatórios, vide Roger
Ulrich, Thomas Stachnik, e John Mabry, orgs., op. cit.
73 Utopias como culturas experimentais; vide COR, cap. 2.
74 Utopias comportamentais. Brave New World de Aldous Huxley (1932) é, sem dúvida,
a mais conhecida. Era uma sátira, mas Huxley voltou atrás e escreveu uma versão séria, Island
(1962). A psicologia dominante do século XX, a psicanálise, não produziu quaisquer utopias.
Walden Two, de B. F. Skinner, descreve uma comunidade essencialmente planeada segundo
os princípios expostos neste livro.
75 Walter Lippman, The New York Times (14 de Set. de 1969).
76 Joseph Wood Krutch, op. cit.
77 «Não gostaria dele». De acordo com Mr. Krutch, Bertrand Russell respondeu a este
lamento do seguinte modo: «Não discordo de Mr. Krutch quanto àquilo de que gosto e não
gosto. Mas não devemos julgar a sociedade do futuro com base no facto de que gostaríamos
ou não de aí viver; a questão reside em determinar se aqueles que nela crescerem serão mais
felizes do que aqueles que criados na nossa sociedade actual ou passada.» Joseph Wood Krutch,
«Danger: Utopia Ahead», Saturday Review, 20 de Agosto de 1966. O facto de as pessoas
gostarem de um determinado modo de vida relaciona-se com o problema do descontentamento,
mas não aponta para um valor máximo, segundo o qual deve ser julgado um modo de vida.
78 Fédor Dostoievsky, Notes from Underground (1864).
79 Arthur Koestler, The Ghost in the Machine (Londres; Hutchinson, 1967). Videtambém
«The Dark Ages o f Psychology», The Listener, 14 de Maio de 1964.
80 Peter Gay, The New Yorker, 18de Maio de 1968.
81 Times Literary Supplement (Londres), II de Julho de 1968.
Ramakrishna.
28 Vide Christopher Isherwood, Ramakrishna and His Disciples (Londres;
Methuen, 1965).
83 Segundo Michael Holroyd, em Lytton Strachey: The Unknown Years (Londres; William
Heineman, 1967), o conceito de conduta moral de G. E. Moore poderá ser resumido como
uma predição inteligente de consequências práticas. O que importa, porém, não é predizer as
consequências, mas fazer com que influenciem o com - portamento do indivíduo.
84 O cientista «puro». Vide P. W. Bridgman, «The Struggle for Intelectual Integrity», Harper's
Magazine, Dezembro de 1933.
85 «Necessidade inata». George Gaylord Simpson, The Meaning o f Evolution (New Haven;
Yale University Press, I960).
86 Vide P. B. Medawar, The Art o f the Soluble (Londres; Methuen & Co., Ltd. 1967),
pág. 5 1. Segundo Medawar, «o pensamento de Spencer adquiriu uma compleição mais sombria
nos últimos anos por razões essencialmente termodinâmicas». Ele reconheceu a possibilidade
de um «declínio secular da ordem e de uma dissipação da energia». Ao maximizar-se a entropia,
sugere-se um término não funcional. Spencer acreditava que a evolução «chegou ao fim quando
se atingiu um certo estado de equilíbrio».
87 Alfred Lord Tennyson, In Memoriam (1850).
88 Superstição: vide SHB, págs. 84-87.
89 Lazer; vide COR, págs. 67-71.
90 John Milton, Paradise Lost, livro I.
91 Crane Brinton, Anatomy o f a Revolution (Nova lorque; W. W. Norton & Co., Inc.,
1938) pág. 195.
92 G. M. Trevelyan, English Social History (Londres; Longmans, Green and Co., 1942).
93 Gilbert Selds, The Stammering Century (Nova lorque; Day, 1928).
94 Aprendendo a ver e a perceber; vide COR, cap. 8.
95 Normas e conhecimento cientifico, vide COR, págs. 123-125 e cap. 6.
96 vico George Steiner, citando Isaiah Berlin, The New Yorker, 9 de Maio de 1970, pág.
157-158.

180
97 Consciência e conhecimento; vide SHB, cap. 17.
98 Processos mentais de generalização, abstracção et al. vide COR, págs.247 e seg., e TT,
pág. 120.
99 Resolução de problemas; vide SHB, págs. 246-254, e COR, cap. 6.
100 Sobre a interpretação dos «correlatos fisiológicos», vide Brain and Conscious Expe­
rience (Nova lorque; Springer-Verlag, 1966), onde, segundo um crítico da obra («Science and
Inner Experience» de Josephine Semmes, Science, 1966, 154, 754-756) se fazia referência a
uma conferência realizada «para analisar as bases materiais da actividade mental».
101 Touro paleolítico. Atribuído ao prof. René Dubos por John A. Osmundsen, The New
York Times, 30 de Dez. de 1964.
102 Cópias interiores do ambiente; vide COR, pág. 247 e seg.
103 Wilson Follett, Modern American Usage (Nova lorque; Hill & Wang, 1966).
104 Pecado e pecador; vide Homer Smith, Man and His Gods (Boston; Little, Brown, 1952),
pág. 236.
105 «Algo a respeito dos próprios negros»; vide Science News, 20 de Dezembro de 1969.
106 O ego; vide SHB, cap. 18.
107 Joseph Wood Krutch, «Epitaph for an Age», New York Times Magazine, 30 de Junho
de 1967.
108 A citação foi extraída de uma crítica da obra The Broken Image: Man, Science, and
Society de Floyd W. Matson (Nova iorque; George Braziller, 1964) publicada em Science,
1964, 144, 829-830.
109 Abrahain H. Maslow, op. cit.
110 C. S. Lewis, The Abolition o f Man (Nova lorque; Macmillan, 1957).
111 Fonte externa de poder. J. P. Scott, «Evolution and the Individual», memorando preparado
para a conferência C de uma série de Conferências sobre a Teoria Evolutiva e o Progresso
Humano, realizadas na American Academy o f Arts and Sciences (28 de Nov. de 1960).
112 Devido a diferenças nas modalidades de transmissão, uma «geração» tem significados
muito diferentes dentro da evolução biológica e da evolução cultural. No que se refere à segunda,
pouco mais é do que uma medida de tempo. As mudanças ocorridas numa cultura («mutações»)
podem ocorrer e perder-se muitas vezes numa única geração.
113 Étienne Cabet, Voyage en Icarie (Paris, 1848).
114 Espécies; vide Ernst Mayr, «Agassiz, Darwin and Evolution», Harvard Library Bulletin,
1959, 13, n.° 2.
115 Ernest Jones, The Life and Work o f Sigmund Freud (Nova lorque; Basic Books, 1955).
116 Historiador: H. Stuart Hughes, Consciousness and Society (Nova lorque; Alfred
A. Knopf, 1958).
117 Keats sobre os trabalhos de Newton. Relato de Oscar Wilde numa carta a Emma Speed,
datada de 21 de Março de 1882. Rupert Hart-Davis, org., The Letters o f Oscar Wilde
(Londres, 1962).

181
o

9 789724 410517
ÍN D IC E

1 Uma Tecnologia do Comportamento.................................... 9


2 A Liberdade............................................................................ 27
3 A Dignidade.................... ......................................................... 41
4 A Punição ................................................................................. 53
5 Alternativas para a Punição................................................... 71
6 Os valores................................................................................... 85
7 A evolução de uma cultura.................................................... 105
8 O Planeamento de uma cultura............................................. 121
9 O que é o homem?.................................................................. 151
10 Notas............................................................................................ 177

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