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Literatura renascentista:

contexto e características
Tendo Itália como berço, o Renascimento é o período que se
inicia no século xv e que se caracteriza por uma nova mentalidade
e uma nova forma de ver o mundo. As mudanças económicas,
sociais, políticas e culturais operadas vão transformar a Europa que
existia na Idade Média e abrir caminho para a Era Moderna.
O Renascimento corresponde a uma mudança cultural e artística que tem origem
EVITE O ERRO no designado Quattrocento italiano. No século xv, nos reinos de Itália, a prosperidade
económica leva os soberanos a uma generosa política de mecenato, que se reflete na
Idade Média contratação de artistas para o empreendimento de grandes obras, no domínio das várias
e Renascimento artes: arquitetura, pintura, literatura, etc. A inspiração seguida por estes, que se baseava
É um erro pensar que na recuperação de modelos e teorias da Antiguidade Clássica, rapidamente se expande
o Renascimento rompe a toda a Europa e toma as dimensões de um movimento que se alargará a outras áreas,
completamente com a como a do conhecimento, operando uma renovação cultural.
Idade Média e que esta
pode ser considerada
uma era de «trevas» Economia, sociedade e política
e obscurantismo. A sociedade agrária feudal é substituída por uma sociedade mercantil, que privilegia as
Na verdade, na época
trocas comerciais. A exploração da terra tem um papel menos importante e a vitalidade
medieval, encontram-se
focos de pensamento
da economia passa a assentar no comércio e na indústria. Como reflexo deste novo
e de vitalidade cultural, sistema económico dá-se o aumento da circulação monetária.
como o Renascimento A burguesia, que se dedica ao comércio, consolida-se definitivamente como classe, ganha
Carolíngio e as obras importância social e poder político, substituindo a nobreza feudal como grupo dominante.
de filósofos, por exemplo, A par do enfraquecimento da nobreza, a influência social e política do clero diminui.
Roger Bacon, Alberto
Magno ou William of
Em termos políticos, prossegue o trabalho de centralização do poder na Coroa, incluindo,
Ockham. Além disso, quando possível, a confiscação dos bens e das terras da nobreza e do clero. Ligada a esta
existem aspetos tendência de fortalecimento das monarquias, assiste-se à consolidação dos reinos como
económicos, políticos nações e à valorização das culturas e línguas nacionais, favorecendo-se o seu estudo.
e culturais que apontam
para a existência de uma
continuidade e de uma
Religião, cultura e conhecimento
transição harmoniosa No plano religioso, este período fica marcado pelas cisões no interior da Cristandade.
entre as duas épocas. Os princípios e dogmas da doutrina, bem como os comportamentos e a política da
instituição eclesiástica, são submetidos a um exame crítico. Este movimento de ruptura,
conhecido por Reforma, conduz à criação das correntes religiosas protestantes. Lutero,
Calvino e Henrique VIII são as figuras que lideram o protesto e que fundam as suas
próprias Igrejas: o luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo, respetivamente.
Esta revolução religiosa acompanha um novo sistema de ideias que surge na Renascença.
O Humanismo corresponde a este movimento intelectual, com implicações sociais, que
se funda na valorização do Homem e do seu papel no mundo. Procura alcançar-se o ideal
de realização do indivíduo através de um conjunto de princípios éticos, tendo em vista
um mundo de tolerância, harmonia e paz. Erasmo, Thomas More, Da Vinci, Campanella
e Damião de Góis destacam-se entre os humanistas.
No âmbito cultural, o aspeto que caracteriza o período renascentista é a recuperação,
nas artes, das ideias, dos modelos e das formas das culturas grega e latina da época
clássica. O Classicismo traduz-se no renovado interesse pelos textos da Antiguidade, no
Segundo a teoria renascentista recurso a motivos e elementos dessa época, por exemplo a mitologia, e na reprodução
do heliocentrismo, o Sol,
e não a Terra, é o centro
das noções de equilíbrio, harmonia, regra e verosimilhança na literatura e nas artes
do sistema solar. plásticas.

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A ciência liberta-se do domínio da doutrina cristã e do saber escolástico. Munindo-se
de um método científico, passa a assentar na experimentação e no espírito crítico
e a desafiar os dogmas e as verdades da Igreja, dando importância ao saber empírico.
Homens de ciência como Copérnico, Galileu, os responsáveis por demonstrar que
a Terra não estava no centro do universo, Da Vinci, Pedro Nunes ou Garcia de Orta
aprofundaram o conhecimento e souberam dar ao saber uma utilização prática.

O Renascimento em Portugal
O Renascimento em Portugal tem início por volta do último quartel do século xv
e estende-se por todo o século seguinte, sendo fortemente marcado pela expansão
marítima. O conhecimento de novas terras e de outros povos tem implicações
no progresso do conhecimento e na abertura do espírito humano. Fruto das
explorações portuguesas, desenvolvem-se áreas científicas e técnicas: a astronomia,
a matemática, a zoologia e a botânica, a geografia, a cartografia, a construção naval
e até a linguística. Aperfeiçoam-se instrumentos de navegação existentes, o astrolábio
e o quadrante, e inventam-se outros, a balestilha. Descobrem-se as propriedades
medicinais das plantas de outras terras. Garcia de Orta escreve um tratado sobre
o tema. Produzem-se as primeiras gramáticas, a de Fernão de Oliveira (1536)
e a de João de Barros (1540), que já incorporam palavras importadas de culturas
com que os portugueses contactam.
A expansão marítima determina alterações no sistema económico nacional. Se,
inicialmente, a exploração comercial das terras descobertas fora monopólio da Coroa,
esta abriu o mercado ultramarino à iniciativa privada. A medida beneficiou a burguesia
mercantil e deu dinamismo à economia. A Igreja também beneficiou com as Descobertas: Gramática de Fernão de Oliveira.
a ideia de que estas eram empreendidas em nome da propagação da fé vem legitimar
a importância da religião no contexto quinhentista.
A corrente que chegou da Europa e estava em harmonia com o espírito da expansão
marítima era o Humanismo. D. Manuel I e D. João III promovem o saber, as artes
e o pensamento, na tentativa de impulsionar o conhecimento e de melhorar as
instituições do país. Nesse sentido, atribuem bolsas a portugueses que saem para
estudar em universidades europeias e recrutam eminentes humanistas para virem
lecionar no nosso país. D. João III reformula a Universidade e promove o ensino
em terras portuguesas. Paradoxalmente, será este monarca que introduz a Inquisição
em Portugal, o que vai travar este movimento, dando-se um retrocesso em alguns
aspetos.

Características da literatura
A literatura renascentista portuguesa recebe uma forte influência das culturas
da Antiguidade Clássica e da cultura italiana.
Da literatura greco-latina recuperam-se géneros, formas e motivos. A tragédia e a
comédia voltam a ser cultivadas, segundo as regras clássicas, e o género da epopeia
é recuperado na concretização da obra Os Lusíadas. Outras formas da literatura grega
e latina, como a écloga e a elegia, são cultivadas pelos poetas portugueses. As divindades,
a mitologia, e os heróis da cultura clássica estão presentes nas obras como protagonistas
de episódios ou em breves referências.
A literatura italiana, com os seus novos motivos e composições, depois do florescimento
do Quattrocento, serve igualmente de modelo e referência para os escritores. Apesar
de se enquadrar no final da Idade Média, a produção dos poetas italianos Dante
e Petrarca é importante neste aspeto, oferecendo temas originais, a descrição
de ambientes inusitados e uma forma de expressar os sentimentos até então não
concretizada. Dante Alighieri.
Em Portugal, os Descobrimentos condicionaram muita da literatura de Quinhentos,
fornecendo pretextos, assuntos e motivos para a poesia, a narrativa de viagens,
a historiografia e outros géneros.

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Origens do teatro português
Existem testemunhos da Idade Média de espetáculos com
contornos teatrais que, por serem rudimentares, não podem
ser vistos como teatro, no sentido que hoje damos à palavra.
No século xv, a produção desse tipo de representações
intensificou-se e, no século seguinte, com Gil Vicente,
a arte dramática ganhou a forma que atualmente tem.

Testemunhos e esboços dramáticos


São escassos os documentos anteriores ao século xvi que atestam a existência,
em Portugal, de manifestações teatrais. É sobretudo através de fontes indiretas,
como proibições da Igreja, poemas, cartas e crónicas, que temos conhecimentos
de encenações de diversos tipos, que eram representadas na corte, em igrejas
ou na praça pública.
Temos dificuldade em considerar essas encenações teatro porque a sua estrutura
dramática é muito ténue e o enredo, rudimentar. Nos espetáculos de corte,
momos e entremezes, dominam o canto, a dança e as simulações de combates.
Nestes casos, a palavra está pouco presente, misturam-se diferentes artes performativas
e a ação dramática revela-se incipiente.
Outros textos da época com esboços dramáticos são os cânticos religiosos em que
se simulam diálogos. Nos cancioneiros medievais, havia já vestígios de uma ação
dramática nas tenções, em que dois trovadores debatiam um tema, ou nas cantigas
de amigo em que conversavam mãe e filha.
Estes textos e representações de contornos teatrais não eram exclusivamente
portugueses. Os géneros dramáticos religiosos e profanos, como as moralidades,
os entremezes ou as farsas, que encontramos no nosso país são comuns
ou assemelham-se bastante aos que então existiam pela Europa.

Gil Vicente e o fim do teatro medieval


Pouco se conhece destas manifestações parateatrais da Idade Média. No século xv,
a produção de peças dramáticas e de espetáculos teatrais intensificou-se e os
testemunhos dessa atividade também aumentam. O Cancioneiro geral de Garcia
de Resende (1516) inclui vários textos que apresentam um esboço dramático.
Em 1435, André Dias publica as suas laudes, composições para serem
cantadas durante as cerimónias religiosas. Nas laudes estão delineadas
pequenas ações dramáticas, em que as personagens interagem.
Por exemplo, na cena da Paixão de Cristo, Maria dirige-se ao seu Filho
e ao coro, que lhe respondem. Neste tipo de obra, anuncia-se a produção
do dramaturgo que irá inaugurar, no século seguinte, a tradição do teatro
português: Gil Vicente.
Não se deve, no entanto, tomar este autor como o «pai do teatro
português». Afirmá-lo significa ignorar toda esta herança. As encenações
de corte, as representações religiosas e os outros tipos de manifestações
teatrais constituíram um repositório de ideias e de experiência dramática
que Gil Vicente recuperou na composição e na encenação das suas obras.
As suas peças recriam e reproduzem os géneros que se cultivavam desde
Representação teatral do fim
o início da nacionalidade. A diferença é a sua forma consistente e a sua
da Idade Média. consciência e maturidade literárias.

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Os géneros do teatro pré-vicentino
Os vários géneros dramáticos e paradramáticos que
existem antes do século xvi e de que hoje temos
conhecimento podem dividir-se em dois grandes grupos:
o teatro religioso, que aborda temas e motivos cristãos
e tem como propósito divulgar a doutrina, e o teatro
profano, que está centrado em questões mundanas e tem
como objetivo o entretenimento.
No que diz respeito ao teatro religioso, sabemos da
existência de representações litúrgicas a partir de
documentos que chegaram aos nossos dias. Os principais
géneros do teatro religioso são: os mistérios, os milagres
e as moralidades.
Os mistérios, de que há notícia a partir do final da Idade
Média, estão ligados à encenação de episódios bíblicos
ou das vidas dos santos, normalmente por altura da
Páscoa ou do Natal. A crucificação de Cristo, a Anunciação
ou a traição de Judas são motivos recorrentemente
utilizados. Dá-se o nome de milagres à forma teatral que
representava as ações da Virgem e dos santos para salvar
ou redimir os homens. Nestes, a intervenção divina no
mundo terreno consumava-se através de um mediador.
As moralidades eram encenações fortemente simbólicas Figura do teatro medieval.
com personagens alegóricas, representando o Bem, o Mal, os vícios e as virtudes, etc.
A intenção destas encenações que personificavam ideias abstratas era claramente
didática: pretendia incutir-se aos espectadores os comportamentos cristãos. A estes
juntam-se as laudes. Embora não tenham sobrevivido textos destes géneros dramáticos
anteriores ao século xvi, sabemos da sua existência pela obra dramática de Gil Vicente.
O teatro religioso era um espetáculo de natureza popular, que se desenrolava no edifício
da igreja ou na praça pública e se destinava a toda a população. A sua finalidade era
transmitir a mensagem cristã.
Já o teatro profano tem uma natureza aristocrática. Na maioria das vezes, era
representado em cortes e palácios e tinha como público a nobreza. O seu principal
objetivo era o entretenimento, mas os espetáculos de momos e entremezes teriam
também a função de exibir a grandiosidade do monarca ou do senhor que os
patrocinava.
O arremedilho era um dos géneros dramáticos de origem europeia. Trata-se de uma FAÇA ASSIM
representação burlesca, muito simples na sua estrutura, que consistia na imitação satírica
de alguém, frequentemente uma figura da corte. A declamação e a mímica aliavam-se O esquema
para tornar mais expressiva a ação narrada pelos jograis. Há a confirmação do género em Um esquema ajuda
Portugal numa carta de D. Sancho I, escrita em 1193, a estipular uma doação a dois jograis a organizar a informação
em paga de um arremedilho que eles teriam representado. Outros dois géneros, os de um texto. Neste
momos e o entremez, revelam maior elaboração e sumptuosidade nos meios cénicos esquema, agrupam-se
usados, mas não na estrutura dramática desenvolvida. O primeiro é um tipo de os principais géneros
encenação em que a palavra tem um papel reduzido e se investe na dimensão plástica do teatro pré-vincentino.
do espetáculo: ricamente vestidos, os atores, que são membros da corte, e até o rei A. Teatro religioso:
dançam, cantam e dramatizam uma cena sem enredo. Neste espetáculo de linha de ação •  mistérios;
pobre, entram, por vezes, em palco engenhos complexos como barcos e dragões. •  milagres;
•  moralidades;
Sobreviveram relatos de momos representados em Portugal por ocasião do casamento
•  laudes.
do infante D. Afonso e do Natal de 1500. Semelhante a estes, pelo investimento
B. Teatro profano:
cenográfico, o entremez caracteriza-se por ser uma encenação curta e humorística em
•  arremedilhos;
que participam personagens populares e tipos. Humorística é também a farsa, género •  momos;
satírico em que se explora o engano e o burlesco com o recurso a personagens-tipo. •  entremezes;
Gil Vicente glosou estes géneros religiosos e profanos de forma criativa, renovando-os, •  farsas.
transformando-os e articulando-os na composição da sua obra dramática.

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Gil Vicente
Gil Vicente escreve a sua obra dramática na transição da Idade
Média para o Renascimento. Por esse motivo, as suas peças
conservam ainda marcas da mentalidade e da arte medievais,
mas, nelas, encontram-se já traços renascentistas.

BIOGRAFIA

Gil Vicente (c.1465-c.1536)


O nosso conhecimento da vida de Gil Vicente está ainda hoje envolto em dúvidas e incertezas. Terá
nascido por volta do ano de 1465. As teses que levantam a possibilidade de ser oriundo de Guimarães
ou da Beira não foram comprovadas. Certo é que terá frequentado as cortes de D. Manuel I
e de D. João III. Compôs a sua primeira peça, intitulada Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, em
1502, e a última Floresta de Enganos em 1536. Enquanto D. Leonor, viúva de D. João II, viveu, Gil
Vicente gozou da sua proteção. Casou duas vezes e teve, ao que se sabe, cinco filhos. Dois deles, Luís e
Paula Vicente, reuniram e fizeram publicar, em 1562, a sua obra num livro que intitularam Compilaçam
de Todalas Obras de Gil Vicente. Nada se sabe sobre Gil Vicente a partir do ano em que escreveu a sua
última peça. A idade avançada do dramaturgo leva a pensar que terá falecido pouco depois.
Os estudiosos procuram saber se Gil Vicente dramaturgo era o ourives que executou a célebre Custódia
de Belém, obra-prima da ourivesaria manuelina. As provas não são conclusivas; a dúvida mantém-se. Gil Vicente.

A obra de Gil Vicente


Na Compilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente, organizada não pelo autor mas por dois
filhos seus, figuram mais de 40 autos, ou seja, peças de teatro, e alguns textos de menor
dimensão. Contudo, o conjunto de obras escritas de Gil Vicente é mais numeroso.
Sabe-se que escreveu peças cujo conteúdo não conhecemos hoje e alguns estudiosos
atribuem-lhe a autoria de outras que chegaram anónimas até nós.
A primeira peça composta pelo autor foi o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro.
Vestido de pastor, ele mesmo a representou para a família real, em 7 de junho de 1502,
na noite em que nasceu aquele que viria a ser coroado como D. João III. Durante 34 anos
escreveu peças e encenou espetáculos para os monarcas ou para a nobreza. A produção
dramática vicentina pode ser dividida em três fases. Cada um dos períodos caracteriza-se
por nele predominar um género, por revelar certas tendências estéticas.
1.ª fase: de 1502 a 1508.
Predominam os autos pastoris e outras peças de motivo religioso de ação dramática
rudimentar. Pertencem a este período textos como o Auto da Visitação e o Auto
Frontispício da Compilaçam de São Martinho.
de todalas obras de Gil Vicente. 2.ª fase: de 1509 a 1519.
Dominam as farsas e outras peças de temas sociais e função satírica, sem que os autos
religiosos deixem, no entanto, de ser escritos. O enredo das peças torna-se mais
elaborado e os diálogos mais vivos e naturais. Auto da Índia, Auto da Barca do Inferno
e Quem Tem Farelos? são textos deste período.
3.ª fase: de 1521 a 1536.
Gil Vicente começa a cultivar a peça de enredo novelesco (Comédia de Rubena,
D. Duardos, Auto de Amadis de Gaula) e a alegoria fantasista com figuras mitológicas
(Cortes de Júpiter, Frágua do Amor e Nau de Amores). O diálogo é mais fluido e realista.

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Influências
PARA SABER MAIS
Apesar de a obra dramática de Gil Vicente constituir uma novidade, ela recebeu
influências de autores literários e de manifestações dramáticas medievais, que transforma.
Cronologia das peças
A estas, juntam-se motivos presentes em obras de autores castelhanos. Para a escrita de Gil Vicente
dos autos pastoris, peças pautadas pela presença de pastores e outras figuras campestres,
1502: Auto da Visitação
como o Auto dos Reis Magos ou Auto Pastoril Castelhano, Gil Vicente inspirou-se na ou Monólogo do Vaqueiro
produção dos dramaturgos Juan del Encina e Lucas Fernández. Já as grandes produções 1504: Auto de São Martinho
alegóricas da terceira fase, como Cortes de Júpiter e Frágua do Amor, revelam a marca 1509: Auto da Índia; Auto
de Torres Naharro. Pastoril Castelhano
O legado mais marcante é, no entanto, o das manifestações dramáticas medievais 1510: Auto dos Reis
de carácter europeu que foram cultivadas em Portugal. Nas peças vicentinas Magos; Auto da Fé
encontram-se traços e elementos recuperados de géneros medievais: o santo do Auto 1512: Velho da Horta
1513: Auto dos Quatro
de São Martinho recorda os milagres; as figuras simbólicas do Auto da Feira têm origem
Tempos; Auto da Sibila
nas moralidades; o enredo do Breve Sumário da História de Deus faz eco dos mistérios; Cassandra
o aparato cenográfico de Nau de Amores recria os momos e os entremezes. 1514: Exortação da Guerra
1515: Quem Tem Farelos?;
Estrutura das obras dramáticas Auto da Mofina Mendes
ou Mistérios da Virgem
Foi progressivo o desenvolvimento da estrutura das peças de Gil Vicente: ação, 1517: Auto da Barca
personagens, meios usados, etc. Quanto à ação das peças, verifica-se que algumas das do Inferno
primeiras tinham um enredo rudimentar, formando, por vezes, pequenos quadros vivos 1518: Auto da Alma; Auto
apresentados em palco, tal como as procissões. No entanto, o Auto da Índia e a Farsa da Barca do Purgatório
1519: Auto da Barca
de Inês Pereira, entre outras da segunda e terceira fases, apresentam uma ação mais
da Glória
estruturada. A construção das personagens foi, igualmente, melhorando e estas foram
1520: Auto da Fama
ganhando dimensão psicológica e realismo. Sem nunca abandonar os tipos, Gil Vicente 1521: Cortes de Júpiter;
soube elaborar personagens mais complexas, com densidade interior. Quanto aos meios Comédia de Rubena; Auto
cenográficos usados, se o dramaturgo inicialmente apenas recorria à simples presença das Ciganas
de atores em palco, aprendeu depois a utilizar mecanismos mais complexos, como 1522: D. Duardos
o barco que entra na peça Nau de Amores. 1523: Farsa de Inês Pereira;
Auto Pastoril Português;

Géneros Auto de Amadis de Gaula


1524: Comédia do Viúvo;
Frágua do Amor; Auto
A obra dramática de Gil Vicente é formada por textos de géneros diversos. Os investigadores
dos Físicos
têm proposto diferentes classificações para o conjunto, algumas delas algo complexas.
1525 ou 26: O Juiz
Por exemplo, António José Saraiva organiza a globalidade da produção vicentina em da Beira
nove categorias, o que salienta a ideia de como ela é multifacetada. Optar-se-á aqui por 1526: Templo de Apolo;
uma classificação que é simples e clara. A partir da organização tripartida que o próprio Auto da Feira
Gil Vicente fez na carta-prefácio à peça D. Duardos, em «comédias, farças y moralidades», 1527: Nau de Amores;
e recorrendo a classificações que definem melhor cada conjunto, temos: Comédia sobre a Divisa
da Cidade de Coimbra;
1. Autos pastoris e religiosos. Grupo de peças religiosas, algumas das quais de índole Farsa dos Almocreves;
campestre, em que intervêm pastores. Constam deste grupo, por exemplo, Auto dos Tragicomédia da Serra
Reis Magos, Auto da Fé, Auto Pastoril Castelhano, Auto da Alma. da Estrela; Breve Sumário
da História de Deus
2. Farsas e outros textos burlescos. Trata-se de textos de crítica e análise social, de Seguido do Diálogo dos
enredo mais elaborado, em que são analisados tipos e comportamentos do Portugal Judeus sobre a Ressurreição
quinhentista: Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira, Quem Tem Farelos?, O Juiz da Beira, 1527 ou 28: Auto da Festa
entre outros. 1529: Triunfo do Inverno
e do Verão
3. Comédias e tragicomédias. As primeiras são sobretudo peças de enredo inspirado 1529 ou 1530: O Clérigo
nas novelas de cavalaria ou em narrativas afins. Gil Vicente considera a palavra da Beira
comédia, não no sentido clássico mas na aceção de obra de enredo com remate 1532: Auto da Lusitânia
alegre. As segundas são textos de cariz alegórico em que a mitologia e a crítica social 1533: Romagem
podem estar presentes. Em comum têm o facto de serem peças cuja encenação de Agravados
1534: Auto da Cananeia
envolve meios elaborados e sumptuosos: Nau de Amores, D. Duardos, Auto de Amadis
1536: Floresta de Enganos
de Gaula e Templo de Apolo.

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Literatura e Arte Personagens
Uma obra tão diversificada, com peças de natureza tão diferente, apresenta personagens
Breve sumário muito distintas, que pertencem a várias ordens da realidade e heranças culturais.
da história de Deus Seguindo a classificação de Paul Teyssier, distinguimos em Gil Vicente:
Em 1994, o Teatro
Experimental de Cascais 1. Personagens da tradição cristã. São figuras bíblicas e personagens históricas
levou ao palco uma associadas ao Cristianismo: Adão, Eva, Job, David, o próprio Cristo (Breve Sumário
encenação do Breve da História de Deus); os Reis Magos (Auto dos Reis Magos); anjos e diabos (Auto
sumário da história da Feira, Auto da Alma); e Santo Agostinho e Santo Ambrósio (Auto da Alma).
de Deus, de Gil Vicente.
Para acompanhar o texto
2. Personagens mitológicas e históricas. São deuses, heróis e outras figuras da mitologia
vicentino, a banda
clássica ou figuras da história universal não vinculadas diretamente à tradição cristã.
portuguesa Delfins No primeiro caso, incluem-se Júpiter, Apolo, Cupido e a sibila Cassandra.
compôs a música, que foi De personagens históricas são exemplo Aníbal e Cipião (Exortação da Guerra).
gravada num álbum com
título homónimo.
3. Personagens alegóricas. São figuras que ganham forma humana e representam
entidades ou ideias mais complexas, assumindo um valor simbólico pelos traços que
Tratou-se, pois, de uma
interpretação musical de
as caracterizam. A personagem Roma, no Auto da feira, representa a Santa Sé. Outras
uma peça do dramaturgo. figuras alegóricas são: Lisboa (Cortes de Júpiter), a Morte (Breve Sumário da História
de Deus), a Igreja (Auto da Alma) e as quatro estações (Auto dos Quatro Tempos).
4. Personagens-tipo. São figuras que representam um grupo social, ou
socioprofissional ou, ainda, étnico, como os judeus. Reúnem e apresentam as
características típicas desse grupo. São, pois, personagens sem complexidade
psicológica, visto que se reduzem a traços essenciais. No Auto da Barca do Inferno,
o fidalgo representa os nobres, denunciando comportamentos deste tipo social: é
vaidoso, arrogante e prepotente com os mais fracos. Do mesmo modo, nesta peça,
o sapateiro, o procurador e o frade correspondem ao grupo dos profissionais liberais,
dos funcionários da justiça e do clero regular, respetivamente. Estas personagens
estão ao serviço da crítica e encontram-se em diversas obras. Outros exemplos são
o escudeiro, o bêbedo, a alcoviteira, o judeu, o médico, etc.
5. Personagens individualizadas. Diferentes dos tipos, as personagens individualizadas
parecem ter personalidade própria e existir como indivíduos, não se reduzindo
a traços típicos de um grupo. São figuras que apresentam complexidade psicológica
e o seu modo de ver o mundo evolui ao longo da ação. A protagonista do Auto
da Índia, as personagens Amadis de Gaula e D. Duardos, dos autos homónimos,
e Rubena, da Comédia de Rubena, revelam-se personagens individualizadas. Inês
Figura do teatro vicentino para Pereira, da Farsa de Inês Pereira, constitui um exemplo acabado desta categoria
representação com marionetas. de personagens: é uma jovem que casa por amor, para descobrir que o casamento
deve ser uma união planeada com um sentido pragmático. A personagem revela-se
complexa e sofre uma evolução no decurso da peça.

Processos de caracterização das personagens


As personagens dramáticas, como as narrativas, podem ser caracterizadas direta
e indiretamente. Na obra vicentina, estes dois processos ocorrem, sobretudo,
na caracterização das personagens-tipo.
Caracterização direta
Descrição física, psicológica ou moral de uma personagem a partir do que ela diz de si
própria ou do que as outras personagens afirmam sobre si.
Caracterização indireta
Caracterização de uma personagem a partir:
a) do modo como ela fala e do conteúdo das suas intervenções;
b) da forma como se comporta;
c) dos elementos cénicos que a acompanham, sejam personagens ou adereços.

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Sátira social em Gil Vicente
O conjunto dos textos dramáticos de Gil Vicente proporciona um amplo retrato da
sociedade portuguesa do século XVI. Nestes textos encontram-se representados os grupos SABIA QUE…
sociais, os anseios e os problemas da época. A análise social feita é valorativa: certos tipos
e figuras são criticados pela negativa, mas outros são enaltecidos e até elogiados pela sua O significado
conduta. Tal é o caso dos lavradores ou dos cavaleiros que lutam pela fé. de «auto» e «ato»
A sátira social é exercida com um intuito reformador. Significa isto que a crítica é feita As palavras «auto»
com o propósito edificante e didático de corrigir os comportamentos, denunciando-os, e «ato» têm o mesmo
ridicularizando-os e convidando o público à reflexão. Aplica-se, por vezes, ao dramaturgo étimo latino, ou seja,
português o lema que Molière adoptará para as suas comédias: ridendo castigat mores ambas evoluíram a partir
da mesma palavra latina:
(a rir corrigem-se os costumes).
«actum». A primeira, como
Quem é satirizado nas peças vicentinas? A nobreza é criticada pela sua soberba e por entrou mais cedo na
explorar quem a serve (Farsa dos almocreves). Aponta-se o dedo aos membros do clero língua, sofreu mais
por terem um comportamento que não se coaduna com as regras e os ideais da Igreja: transformações e designa
os frades revelam-se vaidosos, materialistas e mundanos (Auto da barca do Inferno); um tipo de peças
ambicionam cargos e honrarias (Romagem de agravados); são lascivos e namoradeiros dramáticas. A segunda
(Nau de amores e O clérigo da Beira). Os juízes e outros funcionários judiciais não entrou mais tarde
contribuem para trazer justiça ao povo, quer pela sua ignorância (O juiz da Beira), quer por e corresponde a parte
de uma peça dramática
se terem deixado corromper (Auto da barca do Inferno), agindo em seu interesse e
que envolve, entre outros
contribuindo para uma sociedade mais desigual. Em Frágua do amor, o estado do Direito
aspetos, a mudança
é retratado pela personagem alegórica da Justiça, que assume a forma de «uma velha de cenário.
corcovada, torta, muito mal feita, com a sua vara quebrada». Esta representação física
simboliza uma justiça que não funciona. São ainda alvos de sátira: os escudeiros, ociosos
e parasitas, mas vaidosos, fanfarrões e ambiciosos (Quem tem farelos?); os usurários; os
profissionais liberais, que roubam os seus clientes nos preços que praticam (Auto da barca
do Inferno); os judeus, que são interesseiros, materialistas e hipócritas (O juiz da Beira e
Farsa de Inês Pereira); os médicos, ignorantes e incompetentes (Auto dos físicos). Em alguns
casos, o exagero dos traços destes tipos transforma-os em caricaturas.
Os visados pelas críticas nas peças de Gil Vicente não são apenas os grupos sociais. Há um
conjunto de traços e comportamentos tipicamente portugueses, ou tipicamente
humanos, que merecem a reprovação da Igreja e da comunidade e que são denunciados:
a ganância, o orgulho, a infidelidade conjugal, a mediocridade e a incoerência entre
compromissos assumidos e a vivência diária. Verifica-se que até a expansão marítima
é analisada criticamente no Auto da Índia.
Com o intuito satírico, Gil Vicente irá recorrer ao cómico e, através do ridículo exposto
e do riso despertado, chamar a atenção para determinados defeitos das personagens.
Costumam ser definidos três tipos de cómico nos textos do autor: cómico de linguagem,
cómico de carácter e cómico de situação. O primeiro é imediato e está patente
na linguagem usada por determinadas personagens: por exemplo, a linguagem do Parvo
no Auto da barca do Inferno. O segundo está relacionado com a figura da personagem,
o modo como esta está vestida ou os elementos que a acompanham: por exemplo,
o Frade, da mesma peça, que surge em cena acompanhado de uma moça, com um O navio dos loucos,
escudo, um capacete e uma espada na mão. O terceiro é gerado por uma situação fora de Hieronymus Bosch,
do comum: por exemplo, a cena de esgrima desta personagem. é uma alegoria que representa
aqueles que saíram do caminho
da doutrina cristã.
A linguagem dos autos vicentinos
Sendo a corte portuguesa bilingue, Gil Vicente escreveu autos em português e em
castelhano. O latim é pontualmente utilizado, com finalidade satírica e humorística.
Em ambas as línguas ibéricas, o autor fez valer o seu talento literário.
Compondo, sobretudo, em verso de redondilha maior, Gil Vicente soube conferir
vivacidade às peças através da coloquialidade e da fluidez dos diálogos. Apesar de
a linguagem vicentina reproduzir arcaísmos ainda usados na época, as falas das
personagens conservam naturalidade e realismo, refletindo a forma como as pessoas
falariam.
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Teatro clássico
A par do teatro de Gil Vicente, assiste-se, no século xvi,
em Portugal a um trabalho de recuperação dos géneros
dramáticos clássicos. Os dramaturgos de formação
renascentista, como Sá de Miranda, António Ferreira e Jorge
Ferreira de Vasconcelos, compuseram comédias e tragédias
que seguiam os modelos gregos e, sobretudo, os latinos.

PARA SABER MAIS Teatro no Portugal de Quinhentos


Ao nível da escrita dramática, a influência clássica está, também, em consonância com
A lei das três unidades a voga que se fazia sentir na Europa. À semelhança do que acontece, por exemplo, em
na tragédia Inglaterra, com Marlowe e Shakespeare, os dramaturgos portugueses cultivam os géneros
Na descrição das nobres das literaturas grega e latina: a tragédia e a comédia. Sá de Miranda, António
características da tragédia Ferreira e Jorge Ferreira de Vasconcelos recuperam os códigos e os princípios teóricos
na sua Poética, Aristóteles destes géneros nos termos em que Aristóteles definiu na Poética e que Horácio
definiu como essencial a desenvolveu na sua Arte poética.
unidade de ação, ou seja,
a ação tinha de se focalizar
num assunto, num mito, e A comédia clássica
decorrer num curto
Além de seguirem a estrutura do género cómico herdada da literatura clássica, os
espaço de tempo que não
devia ser superior a um comediógrafos portugueses inspiram-se nas comédias dos autores latinos, sobretudo nas
dia, por oposição ao que de Plauto e Terêncio, e nas comédias italianas renascentistas de Trissino. Muitas das
acontecia na epopeia. Foi personagens que surgem nas peças portuguesas, como o soldado fanfarrão, a alcoviteira
só no século XVI que os ou a prostituta, aparecem igualmente nas obras latinas e italianas. Todavia, os dramaturgos
autores Ludovico nacionais adaptam à realidade portuguesa a ação, os acontecimentos, o espaço e as
Castelvetro, na sua tradução figuras das suas peças.
e comentários da Poética,
Sá de Miranda é o autor de duas comédias: Os estrangeiros e Os vilhalpandos. Na primeira,
em 1570, e Jean de la Taille,
escrita em prosa, a ação decorre em Palermo, onde uma donzela, Lucrécia, atrai quatro
na sua Arte da tragédia, de
1572, formularam aquela pretendentes, embora apenas ame um deles, Amente. Após encontros e desencontros
que ficou designada como entre os dois apaixonados, e entre estes e os respetivos pais, Amente e Lucrécia
«lei das três unidades»: casam-se. A peça Os vilhalpandos é uma comédia de enganos, de enredo mais
ação, tempo e lugar. Esta estimulante, pois põe em cena alcoviteiros, meretrizes e soldados fanfarrões (vilhalpandos)
estipula que a ação da a dificultar a união entre o protagonista e uma jovem nobre que se afigura o melhor
tragédia, além de reduzida partido para ele. A ação da peça, que tem uma vertente anticlerical, roda em torno
ao essencial, deve ocorrer de temas como a dissolução de costumes, a falência do amor e o materialismo.
num só dia, no mesmo
António Ferreira foi autor de duas comédias de matriz clássica, intituladas Bristo e Cioso,
espaço. A tragédia Castro,
que terá sido representada em que são notórias as influências de Terêncio e Plauto. A vivacidade, o humor e o
em Coimbra, cerca de picante da primeira reside na figura de Fanchono, o alcoviteiro de serviço nos encontros
1550, foi escrita antes amorosos cruzados e nos enganos. A peça foi, então, censurada pelo seu pendor licencioso,
desta nova doutrina. mas tem a virtude de a ação se localizar em Lisboa e de se adaptar à realidade portuguesa.
Em Cioso, temos a história de um italiano ciumento e libertino que encerra a jovem esposa,
uma portuguesa, na sua casa de Veneza. Após algumas peripécias e enganos, o marido
ciumento corrige o seu comportamento e passa a tratar a mulher com dignidade e respeito.
O terceiro comediógrafo que se destaca no período clássico é Jorge Ferreira de Vasconcelos,
autor de três comédias de matriz clássica: Eufrósina, Ulissipo e Aulegrafia. Com temas
como o amor, quer o amor legítimo quer os amores ilícitos, a honra e o conflito de
gerações, o enredo de cada uma destas peças é burlesco e funda-se em peripécias
intrincadas. São textos que, com o tempo, perderam o seu valor dramático e até grande
parte do seu interesse literário, mas que são importantes como documentos da vida
Máscara grega de comédia.
social do século XVI. A linguagem revela-se variada e rica, embora algo retórica e artificial.
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A tragédia: Castro, de António Ferreira PARA SABER MAIS
Ao criar Castro, António Ferreira faz uma das primeiras tentativas de escrever uma tragédia
em língua portuguesa. Ferreira segue os princípios de composição que os autores greco-latinos Inês de Castro
haviam definido, mas usa da liberdade necessária para elaborar uma obra de tema nacional. A vida e as circunstâncias
da morte de Inês de Castro
Inês de Castro como motivo trágico fizeram da amada de
D. Pedro um dos motivos
A tragédia de António Ferreira aborda literariamente o episódio histórico da morte de Inês mais glosados na
de Castro, amante do infante D. Pedro. Os motivos e as circunstâncias da sua execução, literatura portuguesa.
ordenada pelo rei D. Afonso IV, haviam já merecido a atenção de poetas como Garcia Depois de Garcia de
Resende, António Ferreira
de Resende e Camões. No caso de Castro, a jovem galega é representada como vítima do
e Camões, voltaram a
amor. Os conselheiros do rei D. Afonso IV vêem-na como uma ameaça à independência escrever sobre este tema
do reino e persuadem o hesitante monarca a matá-la. O conflito central de Castro é entre autores como Bocage,
o amor e as razões de Estado: todas as personagens sentem o conflito interiormente Alexandre Herculano,
e na relação que estabelecem entre si. O momento de maior intensidade dramática, Agustina Bessa-Luís
o clímax, corresponde ao encontro entre a protagonista e o rei, em que ela lhe dirige um e João Aguiar. Vários
apelo de elevada emoção lírica, pela sua vida e pelos seus filhos, netos de D. Afonso IV. pintores retrataram Inês
Apesar de recear cometer uma injustiça, o rei decide-se pela execução. nas suas telas.
Tendo o teatro do autor latino Séneca como modelo de inspiração, António Ferreira segue
de perto as regras da tragédia, no que diz respeito à unidade da ação. O dramaturgo
cumpre, também, as regras do decoro ao selecionar um estilo elevado, um tom grave
e personagens de alta condição para tratar com solenidade o tema. São visíveis na peça
outros elementos trágicos: o desafio (a hybris), o sofrimento (o pathos), a catástrofe e a
presença do coro.
Em relação a aspetos originais, na peça o autor faz a adaptação do género à literatura
e à língua portuguesas, em decassílabos não rimados, exprimindo com lirismo a elevação
dos sentimentos e da ação trágica.
O destino, que nas tragédias clássicas era a força que arrastava os intervenientes para
a catástrofe, não tem essa ação. Inês de Castro e o rei sentem que existe um sentido
de inevitabilidade do final trágico, não por ação do fado (destino), mas porque
o livre-arbítrio e as decisões tomadas determinam esse desfecho. Túmulo de Inês de Castro.

LEITURA

Neste excerto de Castro, que corresponde ao início do ato IV, Inês de Castro pede ao rei que lhe poupe a vida.

PACHECO: A presteza em tal caso é bom seguro, CORO: Quem pode ver-te,
E piedade, senhor, será crueza. Que não chore e se abrande?
Cerra os olhos a lágrimas e mágoas, CASTRO: Meu senhor,
Que te podem mover dessa constância. Esta é a mãe de teus netos. Estes são
REI: Esta é, que a mim se vem: ó rosto digno Filhos daquele filho que tanto amas.
De mais ditosos fados! Esta é aquela coitada mulher fraca,
CORO: Eis a morte Contra quem vens armado de crueza.
Vem. Vai-te entregar a ela: vai depressa, Aqui me tens. Bastava teu mandado
Terás que chorar menos. Pera eu segura, e livre te esperar,
CASTRO: Vou, amigas. Em ti, e em minha inocência confiada.
Acompanhai-me vós, amigas minhas, Escusaras, senhor, todo este estrondo
Ajudai-me a pedir misericórdia. De armas e cavaleiros: que não foge,
Chorai o desemparo destes filhos Nem se teme a inocência da justiça.
Tão tenros e inocentes. Filhos tristes, E quando meus pecados me acusaram
Vedes aqui o pai de vosso pai. A ti fora buscar, a ti tomara
Eis aqui vosso avô, nosso senhor: Por vida em minha morte. Agora vejo
Beijai-lhe a mão, pedi-lhe piedade Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos
De vós, desta mãe vossa, cuja vida Reais tão piedosas, pois quiseste
Vos vem, filhos, roubar. Por ti vir-te informar de minhas culpas. […]

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