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Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos.

Teontologia
II

Estudos
sobre as Obras
de Deus.

Heber Carlos de Campos.


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 2

ÍNDICE
PARTE II. ......................................................................................................................................8

AS OBRAS DE DEUS. .................................................................................................................9

CAPÍTULO 1 ..............................................................................................................................................9
OS DECRETOS DE DEUS...........................................................................................................................9
Definição..................................................................................................................................................9
A doutrina do decreto e da queda. ........................................................................................................9
A doutrina do decreto e a providência. ................................................................................................9
A doutrina dos decretos nos símbolos de fé. ......................................................................................10
Características do decreto de Deus. ....................................................................................................10
O decreto de Deus é sábio. ...................................................................................................................10
O decreto de Deus é eterno. .................................................................................................................10
O decreto de Deus forma uma unidade. .............................................................................................10
O decreto de Deus é imutável. .............................................................................................................11
O decreto de Deus é incondicional. .....................................................................................................12
O decreto de Deus é particular............................................................................................................13
O decreto de Deus é a liberdade humana. ..........................................................................................13
A obra de Deus na vida dos santos......................................................................................................13
A obra de Deus na vida dos ímpios. ....................................................................................................13
Uma influência restringente. ...............................................................................................................14
Uma influência amaciadora.................................................................................................................14
Uma influência diretora. ......................................................................................................................14
O decreto de Deus inclui todas as coisas. ...........................................................................................14
Ele inclui o destino das nações. ...........................................................................................................14
Ele inclui todos os eventos. ..................................................................................................................14
Ele inclui as coisas mais corriqueiras da natureza. ...........................................................................15
Ele inclui as coisas grandes da natureza. ...........................................................................................15
Ele inclui as épocas e a habitação de todos os homens. .....................................................................15
Ele inclui as viagens dos homens. ........................................................................................................15
Ele inclui todas as ações dos homens. .................................................................................................15
Ele inclui as boas ações dos homens. ..................................................................................................15
Ele inclui as ações ímpias dos homens. ...............................................................................................15
Ele inclui os eventos acidentais. ..........................................................................................................16
Ele inclui o tempo de vida de cada homem. .......................................................................................16
Objeções à doutrina do decreto de Deus. ...........................................................................................17
CAPÍTULO 2 ............................................................................................................................................18
A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO. .......................................................................................................18
O lugar da doutrina na sistemática. ...................................................................................................18
Definição de predestinação. .................................................................................................................18
Terminologia bíblica usada. ................................................................................................................19
Observações preliminares....................................................................................................................19
A doutrina da eleição. ..........................................................................................................................19
A doutrina Arminiana da eleição. .......................................................................................................21
Doutrina da eleição de Jacob Arminius .............................................................................................21
A eleição divina é condicional. ............................................................................................................21
Doutrina da eleição dos Remonstrantes. ............................................................................................24
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 3

Doutrina da eleição no Arminianismo Evangélico. ...........................................................................25


Relação da eleição com outras doutrinas arminianas. ......................................................................28
1. Eleição e fé no Arminianismo. .........................................................................................................28
2. Eleição e presciência no Arminianismo. .........................................................................................30
3. Eleição e soberania no Arminianismo. ...........................................................................................34
4. Eleição e graça no Arminianismo. ..................................................................................................35
5. Eleição e justiça no Arminianismo. ................................................................................................37
6. Eleição e depravação no Arminianismo. ........................................................................................37
7. Eleição e responsabilidade humana no Arminianismo. ................................................................39
A doutrina reformada da eleição. .......................................................................................................40
A importância dessa doutrina para a Fé Reformada. .......................................................................40
1. Porque a própria Escritura dá um lugar de destaque a ela. ........................................................40
2. Porque ela é o aspecto eterno da redenção.....................................................................................40
3. Porque ela tem sido fortemente combatida pelos adversários do Calvinismo. ...........................40
Definição de eleição. .............................................................................................................................40
Aspectos gerais da eleição divina. .......................................................................................................40
Sobre o autor eficiente da eleição divina. ...........................................................................................41
Sobre a base da eleição divina. ............................................................................................................41
1. Positivamente: o beneplácito de Sua vontade. ...............................................................................41
2. Negativamente: nada em nós mesmos. ...........................................................................................42
A fé é o resultado da eleição, não a causa dela...................................................................................43
O arrependimento é o resultado da eleição e não a causa dela. .......................................................44
Sobre o objeto da eleição divina. ......................................................................................................44
Com referência aos anjos. ....................................................................................................................44
Com referência aos homens. ................................................................................................................45
I. É eleição de homens caídos e arruinados. .......................................................................................45
II. É eleição de indivíduos particulares. .............................................................................................45
Aspectos específicos da eleição divina. ...............................................................................................46
1. A doutrina reformada sustenta uma eleição incondicional. .........................................................46
2. A doutrina reformada sustenta uma eleição eterna. .....................................................................47
O amor salvador de Deus nos foi dado na eternidade.......................................................................48
A escolha de Deus foi feita antes da fundação do mundo. ................................................................48
Todas as coisas da salvação foram definidas antes da fundação do mundo. ..................................48
3. A doutrina reformada sustenta uma eleição imutável. .................................................................49
4. A doutrina reformada sustenta uma eleição graciosa. ..................................................................50
1. A eleição é graciosa porque ela pressupõe o pecado. ....................................................................50
2. A eleição é graciosa porque é eleição em Cristo. ...........................................................................51
3. A eleição é graciosa porque está fundada no amor de Deus. ........................................................53
O hebraísmo no grego no N.T. ............................................................................................................54
Interpretação Arminiana de Rm 8.29.................................................................................................58
Interpretação Calvinista de Rm 8.29. .................................................................................................59
A finalidade da eleição divina. ............................................................................................................62
Finalidade primeira da eleição. ...........................................................................................................62
1. Proporcionar salvação. ....................................................................................................................62
2. Conceder fé. .......... ...........................................................................................................................62
3. Dar vida eterna aos pecadores. .......................................................................................................62
4. Colocar-nos na família de Deus.......................................................................................................63
5. Fazer-nos obedientes. .......................................................................................................................63
6. Santificar-nos......... ...........................................................................................................................63
7. Sermos entregues a Cristo Jesus. ....................................................................................................63
8. Tornar-nos parecidos com Jesus.. ...................................................................................................64
Finalidade última da eleição. ...............................................................................................................64
1. A glória de Deus...... .........................................................................................................................64
2. A glória da graça de Deus! ..............................................................................................................65
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 4

3. O louvor da glória de Deus! .............................................................................................................65


Relação da doutrina da eleição com outras doutrinas. .....................................................................65
1. Eleição e fé no Calvinismo. ..............................................................................................................65
2. Eleição e presciência no Calvinismo. ..............................................................................................66
3. Eleição e soberania no Calvinismo. ................................................................................................68
4. Eleição e graça no Calvinismo.........................................................................................................69
5. Eleição e justiça no Calvinismo. ......................................................................................................70
6. Eleição e depravação no Calvinismo. .............................................................................................71
7. Eleição e responsabilidade humana no Calvinismo. .....................................................................72
Objeções à doutrina da eleição. ...........................................................................................................73
Objeção 1: ela é inconsistente com a justiça de Deus. .......................................................................73
Resposta. ...............................................................................................................................................74
Objeção 2: ela destrói a doutrina da graça de Deus..........................................................................75
Resposta. ...............................................................................................................................................75
Objeção 3: ela causa em Deus o fazer acepção de pessoas................................................................76
Resposta. ...............................................................................................................................................76
Objeção 4: ela cheira à doutrina pagã do fatalismo. .........................................................................77
Resposta. ...............................................................................................................................................77
Objeção 5: ela torna Deus o autor do pecado. ...................................................................................79
Resposta. ...............................................................................................................................................79
Objeção 6: ela é inconsistente com a doutrina da responsabilidade moral.....................................80
Resposta. ...............................................................................................................................................80
Resultados práticos da doutrina da eleição........................................................................................81
1. Ela faz justiça ao caráter de Deus. ..................................................................................................81
2. Ela estimula as pessoas a uma vida santa. .....................................................................................82
3. Ela torna as pessoas humildes e agradecidas. ................................................................................82
4. Ela assegura a consumação da salvação dos crentes. ....................................................................83
5. Ela estimula à pregação do evangelho. ...........................................................................................84
6. Ela causa nos crentes um senso de reverência e adoração............................................................85
A doutrina da reprovação....................................................................................................................85
Definição de reprovação. .....................................................................................................................85
A reprovação nos símbolos reformados. ............................................................................................86
Os elementos constituintes da reprovação. ........................................................................................86
Preterição. .............................................................................................................................................87
Definição de preterição. .......................................................................................................................87
Exemplos bíblicos de preterição..........................................................................................................87
Preterição relacionada aos meios de graça. .......................................................................................87
Preterição relacionada à graça regeneradora....................................................................................89
Causa da preterição. ............................................................................................................................95
I. A causa da preterição não é o pecado. ............................................................................................95
II. A causa da preterição não é o pré-conhecimento do pecado. ......................................................95
III. A causa da preterição é a soberania divina. ................................................................................95
Condenação...........................................................................................................................................96
Definição de condenação......................................................................................................................96
Exemplos de condenação. ....................................................................................................................96
Exemplo 1..............................................................................................................................................96
Exemplo 2..............................................................................................................................................96
A base da condenação. .........................................................................................................................96
A causa da condenação. .......................................................................................................................97
Características da reprovação.............................................................................................................97
I. A reprovação envolve um decreto eterno. ......................................................................................97
II. A reprovação é particular. .............................................................................................................97
A reprovação e a responsabilidade humana. .....................................................................................97
O alvo final da eleição e da reprovação. .............................................................................................98
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 5

Com respeito à eleição..........................................................................................................................98


Com respeito à reprovação. .................................................................................................................98
Calvinismo e arminianismo comparados. ..........................................................................................99
1. Com relação à fé e incredulidade. ...................................................................................................99
2. Com relação à base da eleição e preterição. .................................................................................100
A importância prática da doutrina da Predestinação. ....................................................................100
I. Ela tem implicações enormes em nossa vida diária. ....................................................................101
II. Ela faz justiça à obra de Deus na salvação do pecador..............................................................101
III. Ela faz justiça ao conceito de liberdade do homem. .................................................................101
IV. Ela é consistente com a totalidade da Escritura. .......................................................................101
V. Ela deve ser pregada publicamente sem qualquer temor. .........................................................101
CAPÍTULO 2. .........................................................................................................................................103
A DOUTRINA DA CRIAÇÃO. .................................................................................................................103
a. Base bíblica para a doutrina da criação. ......................................................................................103
b. A idéia da criação. ..........................................................................................................................104
Definição..............................................................................................................................................105
c. Verdades gerais sobre a criação. ...................................................................................................105
1. A criação é um ato do Deus triuno................................................................................................105
I. A obra da criação é atribuída ao Pai. ...........................................................................................105
II. A obra da criação é atribuída ao Filho........................................................................................106
III. A obra da criação é também atribuída ao Espírito. .................................................................106
2. A criação é um ato da livre vontade de Deus.............................................................................107
3. A criação é um ato temporal de Deus. ..........................................................................................108
4. A criação é distinta e, todavia, dependente de Deus....................................................................108
5. A criação tem propósitos definidos. ..............................................................................................109
A. A felicidade da raça humana. .......................................................................................................110
B. A glória declarativa de Deus. ........................................................................................................110
d. Atitudes da criatura diante do criador. .......................................................................................111
1. Respeito.... .......................................................................................................................................111
2. Obediência. .....................................................................................................................................111
3. Reconhecimento de sua soberania. ...............................................................................................111
4. Adoração. ........................................................................................................................................111
e. A criação do universo físico. ..........................................................................................................112
Cosmogonias em contraste. ...............................................................................................................112
A. Cosmogonia evolucionista. ............................................................................................................113
i. Cosmogonia do evolucionista ateísta. ............................................................................................113
ii. Cosmogonia do evolucionismo teísta. ...........................................................................................114
Teoria da "Big Bang". .......................................................................................................................114
B. Cosmogonia criacionista. ..............................................................................................................114
Cosmologia bíblica. ............................................................................................................................115
O fiat da criação. ................................................................................................................................116
Ato completo de criação.....................................................................................................................117
Ato contínuo de preservação da criação...........................................................................................117
As leis da termodinâmica...................................................................................................................118
A primeira lei da termodinâmica. .....................................................................................................118
A segunda lei da termodinâmica. ......................................................................................................119
As leis da termodinâmica e a providência de Deus. ........................................................................120
As leis da termodinâmica e a redenção de Deus. .............................................................................121
As leis da termodinâmica e a criação de Deus. ................................................................................121
As leis da termodinâmica e a Escritura. ...........................................................................................121
A lei da biogênese. ..............................................................................................................................123
Hexameron. .........................................................................................................................................124
A teoria de que os dias foram longos períodos de tempo. ...............................................................124
Argumentos baseados nos vários significados da palavra YOM. ...................................................125
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 6

Argumentos baseados na palavra 'terra'. ........................................................................................125


Argumentos baseados na geologia. ...................................................................................................125
Conceito sobre os dias literais da criação.........................................................................................127
Os dias analisados separadamente....................................................................................................128
Razões para crer nos dias literais da criação. ..................................................................................128
Razões históricas. ...............................................................................................................................128
Razões teológicas. ...............................................................................................................................128
Razões bíblicas. ...................................................................................................................................128
Razões científicas. ...............................................................................................................................129
A cosmologia bíblica e a trindade. ....................................................................................................129
Natureza da trindade. ........................................................................................................................130
Natureza divino-humana de Cristo. .................................................................................................131
Geofísica bíblica. ................................................................................................................................131
Astronomia bíblica. ............................................................................................................................131
Paleontologia bíblica. .........................................................................................................................131
Os fósseis animais. ..............................................................................................................................132
Os fósseis de animais e plantas e o catastrofismo. ...........................................................................133
Os fósseis humanos. ............................................................................................................................134
Etnologia bíblica. ................................................................................................................................136
A origem das etnias segundo as Escrituras. .....................................................................................136
A cronologia das etnias. .....................................................................................................................137
Exemplos de etnias antigas. ...............................................................................................................138
Demografia bíblica. ............................................................................................................................140
Lingüística bíblica. .............................................................................................................................143
A criação dos seres celestiais. ............................................................................................................145
1. A natureza dos seres celestiais.......................................................................................................145
a. A forma dos seres celestiais. ..........................................................................................................145
b. A linguagem dos seres celestiais. ...................................................................................................146
c. As capacidades dos seres celestiais. ...............................................................................................147
2. A classificação dos seres celestiais.................................................................................................147
1. Seu número......... ............................................................................................................................147
2. Sua ordem........... ............................................................................................................................147
Querubins............................................................................................................................................148
Serafins. ...............................................................................................................................................148
Seres viventes. .....................................................................................................................................148
Arcanjos. .............................................................................................................................................148
Anjos. ...................................................................................................................................................149
Principados, poderes, tronos e domínios. .........................................................................................149
3. O poder dos seres celestiais. ..........................................................................................................150
4. O destino dos seres celestiais. ........................................................................................................150
5. O ministério dos seres celestiais. ...................................................................................................150
Os ministérios dos anjos. ...................................................................................................................150
1. Com relação a Deus. .......................................................................................................................150
2. Com relação a eles mesmos. ..........................................................................................................151
3. Com relação ao mundo. .................................................................................................................151
4. Com relação aos homens................................................................................................................152
Aplicação. ............................................................................................................................................152
CAPÍTULO 3. .........................................................................................................................................154
A DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA...........................................................................................................154
Relação com outras doutrinas. ..........................................................................................................154
Providência e criação. ........................................................................................................................154
Providência e decreto. ........................................................................................................................154
Providência e eleição. .........................................................................................................................154
A doutrina nos símbolos de fé. ..........................................................................................................155
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 7

Conceitos errôneos sobre a providência. ..........................................................................................155


a. Conceito deísta. ...............................................................................................................................155
b. Conceito panteísta. .........................................................................................................................156
Os elementos da providência. ............................................................................................................157
I. Preservação. ....................................................................................................................................157
Erros que devem ser evitados. ...........................................................................................................157
1. Criação e preservação são um só ato de Deus..............................................................................157
2. A preservação é só imediata. .........................................................................................................158
3. A preservação é uma criação continuada.....................................................................................158
Objetos da preservação divina. .........................................................................................................158
1. Preservação do universo físico. .....................................................................................................158
2. Preservação das espécies. ...............................................................................................................159
3. Preservação do homem. .................................................................................................................159
A preservação da raça humana em geral. ........................................................................................160
A preservação dos crentes em especial. ............................................................................................160
II. Governo... .......................................................................................................................................161
1. Deus governa como Rei do Universo. ...........................................................................................161
2. Deus governa segundo Sua onipotente sabedoria. .......................................................................162
3. Concursus.... ....................................................................................................................................162
Características do concursus. ............................................................................................................163
1. O concursus de Deus nos atos dos homens é prévio e determinante. .........................................163
2. O concursus de Deus na obra do homem é imediato. ..................................................................163
3. O concursus entre Deus e o homem é simultâneo. .......................................................................164
Compatibilismo. .................................................................................................................................164
A. O concursus de Deus e o bem. ......................................................................................................165
Concursus de Deus nos atos bons dos homens bons. .......................................................................166
Concursus de Deus nos atos 'bons' dos homens maus. ....................................................................166
B. O concursus de Deus e o mal. .......................................................................................................167
Concursus de Deus nos atos 'maus' dos homens bons. ....................................................................167
Concursus de Deus nos atos maus dos homens maus. .....................................................................169
Conclusão. ...........................................................................................................................................174

Obs.: esta apostila deve ser lida com a ajuda de uma Bíblia, uma vez
que os textos bíblicos citados são de vital importância para o entendimento
da argumentação. Originariamente os textos bíblicos faziam parte do corpo
da apostila, mas por questão de tempo e espaço, na compilação preferi
colocar apenas as referencias como notas de rodapé.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 8

PARTE II.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 9

AS OBRAS DE DEUS.

CAPÍTULO 1

OS DECRETOS DE DEUS.

Definição.

A resposta à questão 7 do Breve Catecismo define o decreto de Deus da


seguinte forma: “O decreto de Deus é o propósito eterno de Deus de acordo
com o conselho da Sua vontade pelo qual, para Sua glória, Ele predestinou
tudo o que acontece”.

A doutrina do decreto e da queda.

A doutrina do decreto e a providência1.

A doutrina dos decretos de Deus está intimamente ligada à doutrina da


providência divina e da queda do homem. Elas não devem ser dissociadas,
pois se o fizéssemos, causaríamos uma distorção no ensino geral sobre o Ser
e as obras de Deus.
A doutrina da providência de Deus é a execução histórica do decreto
eterno de Deus. Negar essa verdade seria uma tentativa de fechar os olhos
ao que está evidente. O decreto seria uma tentativa de fechar os olhos ao que
está evidente. O decreto é eterno, a providência é histórica. Por essa razão,
não podemos separar as duas doutrinas.

1 Rice, p. 63
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 10

A doutrina dos decretos nos símbolos de fé2.

Características do decreto de Deus.

O decreto de Deus é sábio3.

O decreto de Deus é eterno4.

O decreto de Deus forma uma unidade.

O decreto divino é formado na eternidade, mas é executado no tempo.


Os decretos divinos, consequentemente, compreendem aqueles eventos que
ocorrem no tempo. Deus preordena na eternidade aquilo que vem a
acontecer no tempo e no espaço. O que acontece na eternidade das coisas
incriadas5, não faz parte do conteúdo dos decretos divinos.
Há seqüência na execução do decreto, mas não na formação do
propósito de Deus. Na mente de Deus todo o decreto é formado e realizado
porque Ele é eterno, mas nossa maneira de ver, os eventos ocorrem no
tempo e no espaço. Os efeitos e os resultados correspondentes ao decreto
ocorrem sucessivamente, não simultaneamente. Eis alguns exemplos:
a. Houve 33 anos entre a real encarnação e a real crucificação, mas não
entre o decreto pelo qual o Logos se encarnaria e o decreto pelo qual Ele
seria crucificado. No decreto divino, Cristo era essas duas coisas
simultaneamente, porque Ele era, na mente de Deus, eternamente
encarnado e crucificado6. Com referencia a Deus o decreto é um único
ato7.
A consciência de Deus difere da das criaturas racionais, no sentido em
que não há sucessão nela. Esta é apenas uma das grandes diferenças entre
a Mente infinita e as mentes finitas. Para Deus não há uma série de
decretos, cada um separado dos outros por um intervalo de tempo. Deus é
onisciente possuindo o todo do Seu plano e propósito simultaneamente8. Por
conseguinte, as determinações da Sua vontade são simultâneas e não
sucessivas.

2 Rice, p. 46
3 Rice, p. 68
4 Rice, p. 67, 73
5 isto é, as opera ad intra, como a geração eterna do Filho e a processão do Espírito Santo.
6 Ap 14.8; 1 Pe 1.19-20.
7 Rm 8.28 e Ef 3.11 falam em „propósito‟ e não propósitos.
8 Hb 4.13
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 11

Por essa razão não é correto falar dos decretos de Deus no plural, mas
sim no singular. Mas costumeiramente falamos dos decretos divinos (plural)
por causa da realização deles no tempo e no espaço. As coisas decretadas
são muitas, mas o ato decretante é um só.
O universo que nós vemos foi decretado desde a eternidade, mas
realmente ele não existe desde a eternidade. Ele foi na eternidade uma idéia
divina, mas não uma coisa existente historicamente.

O decreto de Deus é imutável.

A imutabilidade dos decretos de Deus advém da imutabilidade do Ser


Divino.
Não há defeito em Deus, em poder, conhecimento e verdade. Seu
decreto não pode ser mudado por um problema de ignorância ou
incapacidade de levar a cabo os Seus propósitos, ou de infidelidade de Seus
propósitos9.
Obs. É importante asseverar com a Confissão de Fé de Westminster que
a imutabilidade do decreto divino é consistente com a livre agência do
homem:
“Desde toda a eternidade, Deus, pelo mui sábio e santo conselho da Sua própria
vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo o que vem a acontecer, porém de
modo que nem Deus é o autor do pecado, nem é violentada a vontade da
criatura, nem tirada, mas, pelo contrário, a liberdade de contingência das causas
secundárias”. (III, I)
Esta verdade está afirmada categoricamente nas Escrituras. Cristo
assevera que a Sua própria crucificação foi, ao mesmo tempo, um produto
da ação voluntária do homem e uma ação decretada por Deus. Estas duas
verdades são incontestes10.
Com respeito às objeções feitas ao relacionamento do decreto divino
com a liberdade humana, há algumas coisas a serem observadas:
a. Os autores inspirados não estão cônscios de qualquer contradição,
porque eles não aludem a ela, nem fazem tentativas de harmonização,
porque não há necessidade. A Palavra Escrita é a Palavra de Deus e
para a Mente de Deus não há contradição. Não há qualquer conflito
para Deus em que Seu Filho seja crucificado de acordo com Seu
decreto, e que Judas seja o agente livre na execução de seus planos
malignos, de acordo com a sua natureza pecaminosa.
b. Não há contradição entre o decreto divino e a liberdade humana,
quando percebemos que há enormes diferenças entre a Mente de Deus
e a dos homens. Na mente de Deus não há futuro, porque todos os
eventos são simultâneos. Não há sucessividade de eventos, seja no ato
decretante ou na realização histórica deles. Todos os eventos estão
presentes na mente de Deus. Todos os eventos dentro da esfera da
liberdade humana, mesmo as necessidades físicas, são simultâneas
em Deus. Os atos voluntários dos homens não são um seriado na

9 Jó 23.13-14; Jó 42.1-2; Is 14.24-27; 46.9-11; Sl 33.11


10 Lc 22.22; At 4.23-28
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 12

mente de Deus, mas estão presentes de uma só vez. Portanto, eles


todos são coisas certas para Deus. Olhando desse prisma, não há
pre-conhecimento das volições humanas.
Deus arranjou as cousas de tal forma que, enquanto o homem é livre
em cada ato que faz, todos os desígnios da Divindade chegam ao seu
cumprimento final. É verdade que o homem faz todas as cousas sem saber
que o plano de Deus está sendo cumprido. Nem lhe ocorre que, por detrás de
seus atos, está o plano eterno e imutável de Deus. Contudo, todas as coisas
são feitas de modo que o homem age responsável e livremente em tudo o que
faz.
c. Deus não somente conhece todos os eventos, mas os decreta. Ele os
torna certos pelo exercício do Seu poder, mas não pela mesma espécie
de poder em todos os casos: Deus faz algumas eventos certos pelo
poder físico, e outros Ele torna certos pelos poderes morais e
espirituais.
Quando Deus decreta algo, Ele não vai contra a Sua própria criação.
Ele a decreta de acordo com a natureza da coisa que Ele faz. Ele decreta algo
no mundo material que se efetuará de acordo com as propriedades e leis
naturais.
Sobre esse assunto a Confissão de Fé de Westminster diz:
“Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a primeira
causa, ordenou que todas as coisas aconteçam imutável e infalivelmente,
contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam conforme a
natureza das causas secundárias, necessária, livre ou dependentemente”. (V, II)
Deus decreta todas as leis que estabeleceu para o cumprimento dos
Seus decretos. Nada é operado fora daquilo que Ele próprio estabeleceu11.
Deus decreta o aparecimento das estações frutíferas, do dia e da noite,
das estações das chuvas, dos trovões, dos terremotos, e de todas as
manifestações físicas que há no mundo, e realiza Seus decretos através do
uso das leis fixas que Ele estabeleceu para o governo da Sua criação.

O decreto de Deus é incondicional.

Isto significa que a execução dos decretos não depende de qualquer


coisa que não haja sido decretada. Em outras palavras, Deus decreta os fins
e os meios.
A CFW diz:
“Na sua providência ordinária Deus emprega meios; todavia, Ele é livre para
operar sem eles, sobre eles ou contra eles, segundo o Seu arbítrio”.
O decreto divino pode requerer meios ou condições para que ele seja
executado, mas estes meios e condições já estão incluídos no decreto.
O mesmo propósito divino que determina qualquer evento determina
também as causas e os meios para que esses eventos sejam realizados. O
decreto de Deus inclui os meios assim como os fins, a causa e o efeito. Com
referência à salvação do eleito, o propósito de Deus é não somente que ele

11 Jr 31.35-36 cf. Gn 8.22


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 13

seja salvo, mas que creia, arrependa-se e persevere em fé e santidade para


que seja salvo. E Deus usa ainda outros meios, como a pregação da palavra,
por exemplo.
Ex. Deus decretou a salvação dos pecadores, mas também decretou que
a salvação fosse através da morte expiatória de Jesus Cristo. Não somente
decretou a Sua morte, mas o modo de Sua morte, o tempo de Sua morte, as
pessoas que a ocasionaram. Se não houvesse decretado todos os meios,
como poderia estar Ele certo de que Seu decreto se realizaria? O sucesso do
Seu propósito estaria dependente de outras coisas que não Ele próprio.
Consequentemente, o Seu decreto de redenção inclui os meios assim como
os fins12.
Neste texto é clara a idéia da morte decretada, assim como os meios
através dos quais esse decreto se cumpriu.
Ex. Deus decreta a salvação de um pecador específico. Já mencionamos
que Ele decreta não somente a salvação, mas que também ela seja efetuada
através de Cristo e através da obra regeneradora do Espírito Santo. Deus
também decreta que essa salvação seja apropriada pelo pecador através da
fé em Cristo. A fé é decretada13. Se a fé não fosse decretada, como se teria a
certeza de que ela aconteceria? Todas as coisas que não são decretadas são
incertas. Se a fé dependesse de uma ação livre-independente da vontade
humana, sem que fosse o resultado do decreto divino, o propósito de Deus
de salvar não se realizaria.
O mesmo caso pode ser aplicado ao das orações, como um meio de se
obter um fim decretado, como o perdão dos pecados, por exemplo. Deus
determinou perdoar-nos, mas Ele também incluiu no decreto as nossas
orações. É por isso que nós cremos que Ele nos desperta para a oração. Se o
perdão dos pecados foi decretado, certamente essa pessoa orará para que
Deus a perdoe.

O decreto de Deus é particular.

O decreto de Deus é a liberdade humana14.

A obra de Deus na vida dos santos.

A obra de Deus na vida dos ímpios15.

12 At 2.22-23
13 1 Pe 1.1; Tt 1.1
14 Rice, 75
15 Rice, 41, 83
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 14

Uma influência restringente.

Uma influência amaciadora.

Uma influência diretora.

O decreto de Deus inclui todas as coisas.

A grande pergunta que se deve fazer é: está Deus governando o mundo


e todas as coisas que existem nele? Se a resposta é afirmativa, então, temos
eu reconhecer que todas as coisas estão inclusas no decreto divino.
O decreto divino inclui tudo o que acontece na historia, seja de
natureza física, moral ou espiritual. Não há acasos para nós. Tudo o que
acontece é produto da vontade determinante de Deus. Deus preordena tudo
o que vem a acontecer.

Ele inclui o destino das nações.

Deus regra a historia das nações de uma maneira extraordinária. A


Escritura é farta de exemplos onde o destino das nações é determinado pelo
decreto divino. Ele controla o curso dos impérios e determina a duração das
dinastias. Deus levanta uma nação e a faz desaparecer da historia dos
homens para nunca mais se levantar. Deus delimita as porções e os limites
que uma determinada nação deve ocupar.
Os reis e imperadores são agentes de Deus na consecução da Sua
vontade decretiva. Deus os tem nas Suas mãos e faz com que eles cumpram
Seus desígnios, exatamente enquanto eles cumprem os seus. Mesmo os
tiranos mais ímpios são controlados por Deus e tem suas ações todas
decretadas. Pink disse que „os piores tiranos, quando impingindo seus
maiores crimes, são os instrumentos de cumprimento da Sua vontade‟16.
Deus governa os legislativos de tal maneira que, para cumprir os Seus
desígnios, eles fazem leis que contrariam as leis de Deus e, assim, Ele
conduz os destinos das nações para os Seus propósitos.

Ele inclui todos os eventos.

Todos os eventos são predestinados por Deus:


a. Grandes eventos;
b. Pequenos eventos.

16 A.W. Pink, Gleanings in Joshua, Chicago, Moody Press, 1964, p. 317


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 15

Ele inclui as coisas mais corriqueiras da natureza.

Nada acontece por acidente ou por acaso, mesmo as coisas mais


simples que existem no mundo. Tudo vem a acontecer pelo desígnio ou
determinação da vontade de Deus. Todas as cousas possuem um propósito,
mesmo as mais corriqueiras, como as menciona o texto17.
Deus decretou todas as coisas. Isto mostra que Deus está preocupado
com todos os acontecimentos, mesmo aqueles que são considerados sem
muita importância para nós, como a queda de uma ave, ou a dos cabelos.

Ele inclui as coisas grandes da natureza18.

Deus impõe limites sobre as grandes obras da natureza. Deus decretou


o limite dos grandes oceanos, de forma que eles nunca invadem o eu não
lhes pertence territorialmente.

Ele inclui as épocas e a habitação de todos os homens19.

Ele inclui as viagens dos homens20.

Ele inclui todas as ações dos homens.

Ele inclui as boas ações dos homens21.

Ele inclui as ações ímpias dos homens.

Esta é a parte mais delicada do assunto dos decretos, porque trata dos
atos pecaminosos dos homens22. Deus decretou todas as coisas, inclusive a
entrada do pecado no mundo. Isto é afirmado em nossos símbolos de fé. A
CFW diz:
“A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal
maneira se manifestaram na sua providência, que esta se estende até a primeira
queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma
mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos
desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula e governa em uma múltipla

17 Mt 10.29-30
18 Sl 104.9
19 At 17.25.26
20 Tg 4.13-16 e At (Paulo impedido de viajar)
21 Ef 2.10
22 este assunto será discutido amplamente no estudo da doutrina da providência.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 16

dispensação; mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas


transgressões procede tão somente da criatura e não de Deus, que, sendo
santíssimo e justíssimo, não pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo‟. (V,
IV)
A queda do homem não pegou Deus de surpresa. Pode ser deduzido
facilmente que a queda fazia parte do plano divino, do fato de Deus ter
planejado toda a salvação do pecador, antes da criação do mundo.
A entrada do pecado no mundo não veio trazer qualquer tipo de
frustração para Deus. De maneira muito contundente, Pink disse:
“Declarar que o plano original do criador tenha sido frustrado pelo pecado é
destronar Deus. Sugerir que Deus foi tomado de surpresa no Éden e que Ele está
agora tentando remediar a calamidade imprevista, é degradar o Altíssimo ao
nível do erro mortal e finito. Argumentar que o homem é o único determinador
de seu próprio destino, e que, portanto, ele tem o poder de dar o check-mate no
seu criador, é despojar Deus de Seu atributo de onipotência. Dizer que a criatura
tem rompido os limites apontados pelo Seu criador, e que Deus é agora
praticamente um espectador impotente do pecado e sofrendo as conseqüências
trazidas pela queda de Adão, é repudiar a declaração expressa da Santa
Escritura, que diz: „A ira humana há de louvar-te‟23”24.
A entrada do pecado no mundo não foi somente antecipada, mas ela é
produto da vontade secreta e decretiva de Deus, cuja razão está escondida
de nós. Ele não nos revela a razão de Seu decreto, mas não podemos fugir da
verdade de que Deus assume a responsabilidade pela presença do mal no
mundo25.
Deus deixou as nações trilharem erroneamente os seus próprios
caminhos, fazendo todas as imundícies, segundo os corações dos homens,
mas de tal forma que tudo o que fizeram, foi parte de um plano
preestabelecido por Deus. Todos os pecados dos homens, que andaram
conforme quiseram, cumpriram para a culminação da revelação salvadora de
Deus em Cristo Jesus26.

Ele inclui os eventos acidentais27.

Ele inclui o tempo de vida de cada homem.

O comprimento da nossa jornada aqui neste mundo não é determinado


pelo cuidado que temos com a nossa saúde 28 , nem é determinado pela
habilidade dos médicos em cuidar de nossas doenças, mas é determinado

23 Sl 76.10
24 A.W. Pink, The Sovereignty of God, Brittish edition, p. 61-62
25 At 14.16
26 At 2.23; At 4.27-28; Sl 76.10; Pv 16.4
27 Pv 16.33; Gn 45.8; 50.20
28 Embora tenhamos a obrigação de cuidar de nosso corpo, pois ele é a habitação do Espírito, e porque

temos qualidade melhor de vida. Temos que viver de maneira equilibrada, para que não agridamos o
que nos foi dado bondosamente por Deus.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 17

pelo decreto divino, que limita os nossos dias, alem dos quais não
passaremos. Ninguém prolonga os nossos dias. Eles todos estão contados,
porque Deus impôs limites sobre eles. Ninguém morre antes da hora;
ninguém adianta o dia de sua morte. A morte não pode nos tirar a vida mais
cedo, porque o controle da vida não é da morte, mas de Deus.
As enfermidades não tem o poder sobre a vida. Ela pode guerrear contra
o nosso corpo e contra o nosso ser psíquico emocional, mas ela não pode
encurtar as nossas vidas, assim como elas não puderam encurtar a vida de
Jó. Deus sara as nossas enfermidades quando os nossos dias tem quer ser
vividos mais do que os prognósticos médicos afirmam. As enfermidades
servem como instrumentos de Deus para por fim a esta existência presente,
mas elas não encurtam a duração de nossa vida. A doença não leva a vida de
ninguém a não ser quando seja para o cumprimento do decreto de Deus.
Os escritores sacros possuíam plena consciência desta verdade, porque
Deus lhas havia revelado29.
Quanto à objeção feita ao caso do rei Ezequias30, respondemos que não
há nenhuma afirmação do profeta sobre o decreto de Deus, mas sim sobre a
natureza da enfermidade de Ezequias, isto é, que ela seria mortal se Deus
não interviesse miraculosamente.

Objeções à doutrina do decreto de Deus.

29 Jó 14.5; Sl 39.4; Jo 7.30


30 Is 38.1-5
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 18

CAPÍTULO 2

A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO.

O lugar da doutrina na sistemática.

A doutrina da predestinação pode ser colocada, como é o caso presente,


no estudo da doutrina do Ser e das Obras de Deus, ou pode ser tratada
como ponto de partida da soteriologia, o que não faz essencialmente
nenhuma diferença. É apenas uma diferença de ênfase dependendo da
tradição a ser seguida. Geralmente os Reformados colocam o ensino sobre a
predestinação na Teontologia, enquanto que Luteranos e os Católicos a
colocam geralmente na esfera da Soteriologia. A razão para os Reformados a
estudarem em Teontologia é porque esta meteria não é simplesmente um
assunto de Antropologia ou Soteriologia. É uma matéria de entendimento da
natureza do ser de Deus, da teologia propriamente. Uma outra razão é
porque esta matéria tem mais a ver com a glória de Deus do que
necessariamente com a salvação do homem. O fim principal de todas as
coisas registradas na revelação divina é a glória final de Deus.

Definição de predestinação.

Heppe define predestinação como „o decreto de Deus pelo qual Ele


apontou as criaturas racionais desde a eternidade para limites fixos além
desta vida temporal e natural, através de meios fixos igualmente
preordenados desde a eternidade‟31. Portanto, de acordo com a definição de
Heppe, no que Ele está absolutamente certo, Deus determina não somente
os fins, mas também os meios.
Calvino inclui na sua definição, sem usar os termos atuais, os dois
elementos constituintes da predestinação: eleição e reprovação. Eis suas
palavras:
“Chamamos predestinação o decreto eterno de Deus, pelo qual Ele fixou consigo
mesmo o que Ele quis fazer de cada homem. Porque nem todos foram criados em
condição igual; antes, a vida eterna é preordenada para alguns, e a condenação
eterna para outros. Portanto, como todo homem foi criado para um ou para outro
fim, nós falamos dele como predestinado para a vida (eleição) ou para a morte
(reprovação)”32.

31 Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics, Grand Rapids, Baker Book House, 1978, p. 154
32 John Calvin, Institutas, III, 21.5
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 19

Terminologia bíblica usada.

A palavra predestinação é freqüentemente indicada por duas palavras:


A primeira palavra é prow/risein = circunscrever, limitar de antemão. A
palavra o(ri/zein é traduzida para o português como „horizonte‟, isto é, a linha
que denota a divisão de céu e terra.
A palavra prow/risein ocorre em At 4.28 (prow/risen). Pilatos e os gentios,
assim como o povo de Israel foram os agentes debaixo dessa predestinação.
Esta está relacionada ao pecado.
Contudo, a ênfase mais comum é na predestinação relacionada à
salvação. Ef 1.5 usa o mesmo termo (prowri/saj) para denotar a predestinação
de Deus que nos coloca na posição de filhos d'Ele. Em Ef 1.11 a mesma
palavra (prowrisqe/ntej) aparece para indicar o fundamento dela. Ela aparece
também em Rm 8.29-30.
A segunda palavra aparece como verbo em Rm 8.29; 11.2 (proe/gnw) e 1
Pe 1.20 (proegnwsme/nou), e como um substantivo em 1 Pe 1.2 (pro/gnwsin) e
At 2.23 (prognw/sei), que significam „conhecer de antemão‟ ou „pré-conhecer‟.

Observações preliminares.

Há algumas observações preliminares que precisam ser colocadas a fim


de que o estudioso do assunto tenha a sua mente aberta para entendê-lo
melhor:
a. O estudo da doutrina da predestinação é muito amplo, pois ele pressupõe
o conhecimento de várias outras doutrinas que devem estar intimamente
relacionadas com esta matéria. Ninguém pode entender corretamente a
doutrina da predestinação, sem primeiro ter uma boa noção da doutrina
de Deus, da criação, da queda e da providência; ninguém pode entender
corretamente a doutrina da predestinação dissociada da doutrina
reformada da depravação humana. O estudo sistemático da
Hamartiologia 33 vai nos dar uma base bíblica para que vejamos a
predestinação de uma perspectiva correta. Por essa razão, no Sínodo de
Dort, nos chamados “Cinco Pontos do Calvinismo”, o assunto da eleição
segue ao da depravação humana. Portanto, a doutrina da predestinação,
inquestionavelmente, pressupõe a queda do homem.
b. Há que se fazer uma distinção apenas didática entre as doutrinas do
decreto e a da predestinação. A primeira decreto diz mais respeito às coisas
e aos eventos, e a segunda predestinação aos seres racionais-morais, anjos e
homens.
c. Em geral, o estudo da predestinação inclui dois aspectos que, comumente
são esquecidos de serem vistos separadamente: eleição e reprovação.

A doutrina da eleição.

33 Essa palavra diz respeito ao estudo da doutrina do pecado.


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 20

Antes de estudarmos a doutrina bíblica-Reformada da eleição, é muito


importante que estudemos alguns aspectos históricos que ajudaram na
formulação Reformada da doutrina. A fé reformada vem, nos seus
primórdios, de Calvino que, por sua vez, emprestou alguns conceitos dos
Pais da Igreja, especialmente de Agostinho. Por volta da terceira geração de
Reformados, começaram a surgir dentro da Igreja da Holanda alguns
adversários do calvinismo, especialmente contra a doutrina da
predestinação. O primeiro dos Reformados que se insurgiu contra ela foi um
companheiro e aluno de Theodoro Beza, Jacob Arminius, um pastor da
Igreja Reformada da Holanda. Após a sua morte, em 1609, os seus
discípulos começaram um movimento para expandir a sua teologia, o que,
posteriormente, ficou sendo conhecido historicamente como Arminianismo.
Descontentes com a posição da Igreja da Holanda sobre alguns aspectos
teológicos, eles prepararam um documento que ficou sendo conhecido como
"Os cinco pontos do Arminianismo”, apresentando-o, em seguida, ao Sínodo
de Dort em 1618. Um dos cinco pontos era o da predestinação.
Como uma reação aos “Cinco Pontos do Arminianismo” é que os mais
famosos “Cinco Pontos do Calvinismo” foram elaborados pelo Sínodo de
Dort.
O capítulo abaixo dá-nos uma idéia da doutrina Arminiana que forçou
uma elaboração mais acurada da Teologia Reformada da Predestinação.
Primeiramente veremos a analise da doutrina Arminiana da eleição, e, então,
a doutrina da eleição sob o prisma reformado de interpretação das
Escrituras.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 21

A doutrina Arminiana da eleição.

Como já mencionamos acima, as doutrinas da Escritura estão


intimamente relacionadas entre si de tal modo que, se uma pessoa nega uma
parte, ela pode ser conduzida a negar o corpo inteiro da teologia. Isto é
verdadeiro a respeito da doutrina da eleição no Arminianismo. O único modo
de negar a doutrina da predestinação, como sustentada pelos Reformados, é
ter uma abordagem diferente da antropologia, especialmente na doutrina do
pecado e no conceito de liberdade da verdade. A doutrina da liberdade da
vontade exerce um papel extremamente importante na doutrina Arminiana
da eleição. A doutrina da liberdade da vontade tem uma influência
dominante sobre cada aspecto da teologia Arminiana. John Owen definiu
essa relação entre a predestinação e o livre arbítrio na teologia Arminiana
dizendo que seu sistema é igual a homens “construindo uma torre até o
topo, de onde eles podem subir até o céu, cujo fundamento não é nada mais
do que a areia do seu próprio livre arbítrio e esforços”34.
Antes de analisar a doutrina Arminiana da eleição, por questão de
justiça é necessário que se estabeleça algum tipo de diferença entre o que o
próprio Jacob Arminius ensinou e o ensino conseqüente de seus seguidores
que, historicamente, ficaram sendo conhecidos como Remonstrantes.

Doutrina da eleição de Jacob Arminius35

Até certo ponto de sua vida Arminius esteve absolutamente convencido


de sua fé Reformada. Ele foi educado sob os ensinos de Theodoro Beza e, por
algum período de tempo, ele deu um apoio vigoroso à doutrina Reformada.
Numa certa ocasião ele foi convidado a defender as crenças de seu mestre
genebrino dos ataques lançados por um outro professor holandês chamado
Coornhert (1522-1590), onde ele começou a mostrar a sua vacilação
doutrinária. Klooster diz que „quando o Consistório de Amsterdã pediu para
Arminius refutar o ataque de Coornhert, ele percebeu que suas próprias
convicções com respeito à predestinação haviam começado a vacilar e suas
dúvidas aumentaram. Eventualmente ele percebeu-se incapaz de levar à
cabo a sua tarefa”36. Ele, então, foi acusado de heresia por causa de suas
dúvidas no assunto da predestinação e, posteriormente, escreveu a sua
Declaration of Sentiments onde ele tentou justificar seu ponto de vista
àqueles que o acusavam de heresia.
Há algumas declarações importantes de Arminius onde ele revela
claramente as suas crenças pessoas, que formam a base para o
desenvolvimento posterior da doutrina por parte de seus seguidores.

A eleição divina é condicional.

34 John Owen, Works, vol. , p. 53


35 Jacob Arminius, 1560-1609
36 Fred H. Klooster, “The doctrinal deliverances of Dort”, Crises in the Reformed Churches, p. 53
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 22

Aqui estão algumas de suas declarações: segundo Arminius,


“O segundo decreto preciso e absoluto de Deus, é aquele no qual Ele decretou
receber favoravelmente aqueles que se arrependem e crêem em Cristo, e em seu
nome e através d'Ele, para efetuar a salvação de tais penitentes e crentes como
perseverando até o fim; mas deixou em pecado, e debaixo da ira, todas as pessoas
impenitentes e incrédulas, e as condenou como alienadas de Cristo”37.
Esta afirmação é ambígua ou pode causar ambigüidade de
interpretação, a interpretação depende de quem está lendo o texto. Se
alguém tem uma mente semi-Pelagiana, será fácil para ela entendê-la como
intuitu fidei38. Se Arminius não houvesse escrito outras coisas a respeito de
predestinação, mas apenas este parágrafo, os atuais defensores de Arminius
poderiam ter usado o mesmo argumento usado na Controvérsia sobre a
eleição do Sínodo de Missouri, no século passado, como se vê na nota de
rodapé abaixo.
Mas Arminius vai muito mais longe. O princípio da intuitu fidei estava
absolutamente claro na sua doutrina da eleição:
“Este decreto (o da eleição) tem o seu fundamento na presciência de Deus, pelo
qual Ele sabia desde toda a eternidade os que haveriam de crer, através de sua
graça preveniente e, através de sua graça subsequente, haveriam de perseverar,
segundo a administração dos meios, que foi descrita antes, que são adequadas e
próprios para a conversão e fé. E, pelo seu pre-conhecimento, Ele igualmente
sabia quem eram aqueles que não creriam e perseverariam”39.
Em sua resposta à primeira das Nine Questions 40 relacionadas à
predestinação, Arminius disse:
“O equivoco da palavra „Eleição‟, torna-a impossível de responder a essa
pergunta de qualquer outra maneira, do que por distinção. Se, portanto,
eleição denota „o decreto que concerne com a justificação e salvação dos
crentes‟, eu digo que eleição vem antes da fé, pois a fé é apontada como
sendo o meio de se obter a salvação. Mas se eleição „significa o decreto pelo
qual Deus determina conceder a salvação a alguém‟, então fé prevista é
anterior à salvação. Porque como os crentes somente são salvos, assim
somente os crentes são predestinados para a salvação. Mas a Escritura não
sabe nada de eleição pela qual Deus precisa e absolutamente tem

37 Arminius, Writings, vol. 1, p. 247


38 Uma citação mais ou menos semelhante causou uma polêmica séria no Sínodo de Missouri, nos
anos setenta do século passado. As Confissões da Igreja Luterana afirmam: “A predestinação, ou a
eleição eterna de Deus, contudo, está preocupada somente com os filhos piedosos de Deus em quem
Ele se agradou”. (Epítome, XI, 5). E mais, “Por outro lado, a eleição eterna de Deus ou a predestinação
de Deus para a salvação não se estende para ambos, os ímpios e os pios, mas somente para os filhos de
Deus, que tem sido eleitos e predestinados para a vida eterna...”(Solid Declaration, XI, 5). Schmidt e
outros luteranos da época, com algum sinergismo em mente, foram capazes de entender a eleição
como ocorrendo em vista da fé (intuitu fidei) nessas declarações confessionais. De acordo com os
Missourianos, esta é uma interpretação errônea (e eles estavam certos na sua crítica a Schmidt e aos
outros), mas ao modo como o texto foi escrito permite esse tipo de interpretação. Esta depende das
pressuposições daqueles que lêem o que está ambiguamente escrito nos símbolos luteranos.
39 Arminius, Writings, vol. 1, p. 248
40 A pergunta feita a Arminius é a seguinte: “O que vem primeiro, a Eleição, ou a fé verdadeiramente

prevista, de tal forma que Deus elegeu seu povo de acordo com a fé prevista? (Ibid. p. 380)
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 23

determinado salvar qualquer um que não tenha primeiro sido considerado


como um crente”41.
A citação é absolutamente clara, mostrando o conceito de intuitu fidei. A
base para a eleição individual das pessoas é a fé futura delas, prevista por
Deus. Nesse caso, segundo Arminius, a fé é o resultado da eleição, não a
causa dela.
Como afirmei acima, a razão final para esta espécie de raciocínio, é o
conceito determinante da liberdade da vontade na teologia Arminiana.
Mesmo embora Arminius tenha dito que o homem perdeu o seu livre arbítrio
após a queda42, ele não foi capaz de escapar totalmente da concepção de
liberdade da vontade, defendida por Erasmo de Roterdã, adversário de
Lutero.
Lutando contra a sua crença anterior de predestinação na fé reformada,
Arminius afirma que
“Tal doutrina da predestinação é contrária à natureza do homem43, devido ao
fato dele ter sido criado à imagem de Deus no conhecimento de Deus e em
retidão – devido ao fato de ter sido criado com liberdade de vontade, e devido ao
fato de ter sido criado com uma disposição e aptidão para o gozo da vida
eterna”44.
O problema de Arminius torna-se maior quando ele continua a
argumentar mostrando que, mesmo após a queda, estas „disposições e
aptidões‟, acima mencionadas, ainda estão presentes na constituição do
homem.
“Estas três circunstâncias a respeito dele, podem ser deduzidas das seguintes
expressões: “faze isso e viverás 45 ”; “No dia em que comeres, certamente
morrerás46”. Se um homem é privado de qualquer uma destas qualificações, tais
admoestações como estas não podem ser possivelmente efetivas em despertá-lo
para a obediência”47.
Em seu conceito de soberania de Deus, Arminius era contra a
intervenção de Deus na vida do homem. Deus não tem o direito de intervir e
fazer decisões relacionadas ao homem, sem o seu consentimento. Este é um
entendimento óbvio daquilo que Arminius diz, porque, segundo ele, a
doutrina da predestinação na fé Reformada
“é inconsistente com a liberdade da vontade, na qual e com a qual o homem foi
criado por Deus. Porque ela (doutrina Reformada da Predestinação) impossibilita
o exercício desta liberdade, por atar ou determinar a vontade absolutamente a
um objeto, isto é, para fazer esta ou aquela coisa precisamente. Deus, entretanto,
de acordo com essa afirmação, pode ser acusado por uma ou por outras destas
duas coisas, (com as quais nenhum homem acuse seu Criador!), por criar o

41 Arminius, Writings, vol. 1 p. 380


42 Arminius, Writings, vol. 1 p. 252-253
43 e tem que ser mesmo. Nota pessoal. Marthon
44 Arminius, Writings, vol. 1, p. 223-224
45 Rm 10.5
46 Gn 2.17
47 Arminius, Writings, vol. 1, p. 223-224
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 24

homem com liberdade da vontade, após ele tê-lo formado como um agente
livre”48.
O argumento de Arminius contra a idéia Reformada de Predestinação
insinua claramente que ele ainda sustenta que o homem não pode ser
determinado em nada com respeito à sua salvação, porque ainda há no
homem uma espécie de „capacidade natural‟ em desejar as coisas boas, como
produto da idéia de liberdade humana ainda remanescente nele. Ele
simplesmente aplica a todos os seus descendentes o que era peculiar a Adão.
Ele diz:
“Esta Predestinação é prejudicial ao homem com relação à inclinação e
capacidade para a fruição eterna da salvação, com a qual ele foi capacitado no
período de sua criação. Pois, visto que por esta Predestinação a salvação tem sido
predeterminada, e que a maior parte da raça não será participante da salvação,
mas cairá em eterna condenação, e visto que esta Predestinação aconteceu
mesmo antes de ter acontecido o decreto para a criação do homem, tais pessoas
são privadas de algumas coisas, por causa do desejo pelo qual elas tem sido
capacitadas por Deus por uma inclinação natural. Esta espécie de privação que
eles sofrem, não em conseqüência de qualquer pecado anterior, ou demérito
deles próprios, mas simples e somente através dessa espécie de Predestinação”49.
A fim de entender a doutrina de alguém, é necessário vê-la como um
todo. Arminius faz algumas afirmações muito boas sobre a depravação da
alma humana, mas quando ele tenta lutar contra a doutrina da
Predestinação, ele revela o que é quase natural em todas as pessoas: o
conceito de que a verdade não está totalmente depravada, mas que reflete
ainda algumas capacidades naturais ou inclinações para o bem. Segundo
Arminius a doutrina Reformada da Predestinação priva o homem de tais
capacidades. Novamente, a noção de liberdade da vontade tem o seu
nascedouro na falha de Arminius em levar a sério a doutrina bíblica da
depravação humana. Não há nenhuma incapacidade real na vontade do
homem de desejar coisas boas, segundo Arminius, mas o homem é privado
de exercê-la se crê na doutrina reformada da Predestinação.

Doutrina da eleição dos Remonstrantes.

Os Remonstrantes, que apresentaram ao Sínodo de Dort, em 1618, os


seus “Cinco Artigos”, ocasionalmente a elaboração dos chamados “Cinco
Pontos do Calvinismo”, não tiveram uma posição diferente da de Arminius.
Em outros assuntos, eles foram muito alem do seu mentor, mas neste eles
refletiram fielmente as suas idéias. O interessante foi o fato deles terem
apresentado, por uma espécie de temor e prudência, um artigo bem
elaborado relacionado com a Predestinação, afim de tentarem esconder a sua
própria posição. Contudo, não foi possível para eles articular uma doutrina
de Predestinação sem mostrar as suas reais pressuposições sinergistas.
O primeiro dos artigos apresentados ao Sínodo de Dort foi nestes
termos:

48 Arminius, Writings, vol. 1, p. 224


49 Arminius, Writings, vol. 1, p. 224-225
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 25

“Que Deus, por um propósito imutável e eterno em Jesus Cristo Seu Filho, antes
da fundação do mundo, determinou salvar em Cristo da raça caída e pecaminosa,
por amor de Cristo, e através de Cristo, aqueles que, através da graça do Espírito
Santo, crerão e perseverarão nesta fé e obediência de fé, através desta graça,
mesmo até o fim...50”
William afirma sua opinião a respeito deste primeiro artigo
apresentando pelos Remonstrantes:
“Superficialmente, isto parece totalmente Agostiniano e Calvinista, mas
o aguilhão da sentença reside no uso dos particípios futuros credituri e
perseveraturi, e a omissão na qualificação da palavra graça pelo adjetivo
somente; que obviamente deixa uma porta aberta para, e consequentemente
insinua, a idéia de que o homem pode utilizar ou não a graça oferecida a ele,
e que Deus tem somente predestinado à vida eterna aqueles que Ele previu
como indo utilizá-la corretamente através do exercício de sua própria
vontade livre... Este artigo... insinua Sinergismo e Predestinação – não sobre
a base de méritos previstos, porque a concepção de mérito humano não tem
lugar na teologia protestante, mas antes sobre a base de uma fé e obediência
previstas”51.
A doutrina da Predestinação dos Remonstrantes não era, portanto,
diferente da doutrina de Arminius. Em alguns aspectos eles foram mais
longe ainda. Eles negaram que a eleição fosse eterna, em sua Apology.52 Eles
negaram que a eleição de Deus fosse de pessoas particulares escolhidas
dentre a raça. Não houve nenhum ato soberano de Deus em eleger pessoas.
Eles disseram: “Nós negamos que a eleição de Deus se estenda a quaisquer
pessoas singulares como pessoas singulares” 53 . Qual a causa dessa
negação? É que eles asseveram que a eleição não é um ato soberano, mas é
uma decisão de Deus de escolher aqueles que Ele previu que creriam e que
se arrependeriam. Eles disseram: “Sim, nós não reconhecemos nenhuma
outra Predestinação a ser revelada no evangelho alem daquela pela qual
Deus decreta salvar aqueles que devem perseverar em fé”54. A Predestinação
de Deus, portanto, na mente dos Remonstrantes, é dependente da
perseverança em fé do homem. Ela não é a expressão do Seu amor e
misericórdia, mas é a escolha daqueles que são vistos como crentes
obedientes.

Doutrina da eleição no Arminianismo Evangélico.

50 Phillip Schaff, Creeds of Christendom, vol. III, New York, Harper & Brothers, 1877, p. 544. O texto
latino reza: “Deus aiterno et immutabili decreto en Christo Jesu Filio suo, ante jacta mundi
fundamenta, statuiut ex genere humano in peccatum propalso, eos in Christo, propter Christim, et per
Christum salvare, qui per gratiam Spiritus Sancti in eundem Filium suum credituri, inque ea ipsa fide
et obedientia fidei, per eandem gratiam, usque ad finem essent perseveraturi”. Ibid., grifo acrescentao.
51 Normam P. Williams, The Grace of God, London, Hodder and Stoughton, 1966, p. 98
52 O texto latino reza: “Electio non está ab aeterno”. (Remonstrants Apology – ver Owen, The words of

John Owen, edited by William H. Goold, vol. 10 (Edinburg, T&T Clarck, 1862, p. 55
53 O texto latino reza: “Nos negamus Dei electionem ad salutem extendere sese ad singulares

personas, qua singulares personas”(vide Owen, Op.Cit. p. 57


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 26

O Arminianismo não morreu com os Remonstrantes após o Sínodo de


Dort, ao contrário, como fogo em mato seco ele se espalhou pela cristandade
protestante. Nos decênios que se seguiram, ele se apresentou mais vigoroso
ainda, mostrando que o Arminianismo é algo mais ou menos natural no
homem pecador, ainda que redimido, pois pensar da maneira Arminiana é
mais confortável para a mente, pois não exige dela que se aceite uma decisão
divina sobre o nosso destino.
Contudo, o conceito de Predestinação não é exatamente o mesmo em
todos os arminianos. Entre eles há algumas variações na doutrina: alguns
arminianos crêem somente na predestinação de classe, não de indivíduos. H.
Orton Wiley, em The Debate Over Divine Election, sustenta a posição de que
Deus elege uma classe de pessoas55, não indivíduos. Ele objeta que Deus
„tem determinado de antemão se alguns devem ser salvos ou não, aplicado a
indivíduos‟ 56 . Uma opinião ligeiramente diferente é sustentava por Shank
que diz que a eleição é primeiramente corporativa antes do que relacionada
com os indivíduos57. Eles são considerados eleitos somente quando eles são
identificados com o corpo eleito. Um sumário desta idéia é que a eleição é
„potencialmente universal, corporativa antes que particular, e condicional
antes que incondicional‟ 58 . Outros, como Wynkoop, sustentam que „as
pessoas individuais não são escolhidas para a salvação, mas é em Cristo que
tem sido apontado como o único salvador de homens. O caminho da
salvação é que é predestinado‟59.
Mesmo a despeito de algumas diferenças, é necessário que conheçamos
as opiniões de alguns homens que, historicamente, ficaram conhecidos como
arminianos evangélicos:
John Wesley: o fundador do Movimento Metodista, definiu eleição
assim: “Por eleição eu quero dizer o seguinte: Deus de fato decretou desde o
principio eleger ou escolher (em Cristo) todos os que creriam para a
salvação”60.
Não somente ele segue a definição dos Remonstrantes como também
nega a incondicionalidade da eleição para a salvação, definindo outra vez
eleição, da seguinte forma:
“Eu lhes direi com toda a clareza a simplicidade. Eu creio que ela (Predestinação)
comumente significa uma destas duas coisas: primeiro, uma indicação divina de
alguns homens particulares para fazer alguma obra particular no mundo. E esta
eleição eu creio ser não somente pessoal, mas absoluta e incondicional...

54 o texto latino reza: “Non agnoscimus aliam praedestinationem in evangelio patefactam, quam qua
Deus decrevit credentes et qui in aedem fide perseverarent, salvos facere”. (Rem. Coll. Hag. P. 34 – ver
owen, Op.Cit. p. 55)
55 Christianity today, vol. IV, n. 1, 1959, p. 3-15
56 Ibid. p. 5
57 Robert Shank, election in the Son (Springsfield, Mo. Westcott Publishers, 1970, p. 45
58 Ibid. p. 122
59 Mildred Bangs, Winkoop, Foundations of Wesleyan-Arminian Theology, Kansas City, Mo, Beacon

Hill Press, 1967, p. 53


60 citado por Girardeau, Calvinism and Evangelical Arminianism (Harrisonburg, Virginia, Sprinkle

Publications, 1984 edition, p. 23 (Wesley, Works, vol. 9, p. 381-382, New York, 1927
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 27

Segundo, eu creio que eleição significa uma indicação divina de alguns homens
para a alegria eterna. Mas eu creio que esta eleição(para a salvação) seja condicional”61.
Wesley justifica a sua descrença na incondicionalidade da eleição
assim:
“Nesta eleição eu creio firmemente como firmemente creio que a Escritura seja de
Deus. Mas na eleição incondicional eu não posso crer, não somente porque eu
não posso encontrá-la na Escritura, mas também porque ela necessariamente
implica numa reprovação incondicional. Encontre qualquer eleição que não
implique em reprovação, e eu alegremente concordarei com ela. Mas com
reprovação eu não posso concordar, enquanto eu crer que a Escritura é Palavra
de Deus: essa doutrina é totalmente irreconciliável com o escopo geral do Velho e
Novo Testamentos”.62
Wesley afirma categoricamente que a eleição é daqueles que haveriam
de crer. Ele fala da eleição desta forma:
"A Escritura diz-nos claramente o que é a Predestinação: ela é a pre-indicação de
Deus dos crentes obedientes para a salvação, não sem, mas 'de acordo com a sua
presciência' de todas as Suas obras 'desde a fundação do mundo'... Podemos
considerar isto um pouco mais. Deus, desde a fundação do mundo, preconheceu
crença ou descrença dos homens. E, de acordo com Sua presciência, Ele escolheu
ou elegeu todos os crentes obedientes, como tal, para a salvação"63.
Wesley negou não somente a eleição soberana de Deus, afirmando a
condicionalidade da fé e da obediência, mas também negou a eternidade da
eleição:
"Ele chamou Cristo de 'O Cordeiro morto desde a fundação do mundo', embora
não morto até que Ele tenha sido feito carne. Da mesma forma Ele chamou
homens 'eleitos desde a fundação do mundo', embora eles não se tornassem
eleitos até que eles fossem homens na carne"64.
Ele ainda continua:
"Se os santos são escolhidos para a salvação através da crença na verdade ... eles
não foram escolhidos antes deles crerem; muito menos antes que eles existissem...
Muito claro está que eles não foram eleitos até que eles creram, embora Deus
'chamou coisas que não eram como se elas existissem'..."65.
Então Wesley afirma categoricamente a temporalidade da eleição: "Está
claro que o ato eletivo está no tempo, embora conhecido de Deus antes"66.
Ele ainda sugere que a idéia da eleição eterna é a grande pedra de tropeço,
que é tirada com a sua solução da eleição temporal67.
Richard Watson: um dos expoentes do Arminianismo do século
passado, também nega a eternidade da eleição, dizendo:

61 citado por John L. Girardeau, p. 22


62 citado por Girardeau, p. 23, Works, vol. 9, p. 281-382, New York, 1827
63 citado por John L. Girardeau, Calvinism and Evangelical Arminianism, Harrisonburg, Virgínia;

Sprinkle Publications, 1984 edition, p. 21


64 John L. Girardeau, Calvinism and Evangelical Arminianism, p. 21
65 citado por Girardeau, p. 22
66 citado por Girardeau, p. 22
67 ver Girardeau, p.22
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 28

"Segue-se, então, que eleição não é somente um ato de Deus feito no tempo, mas
também que ele é subsequente à administração dos meios de salvação. A
chamada vem antes da eleição... Assim a doutrina da eleição eterna é derrubada
em direção ao seu verdadeiro significado. A eleição real não pode ser eterna... As
frases 'eleição eterna', e 'eterno decreto da eleição', tão freqüentemente nos lábios
dos Calvinistas, pode, no sentido comum, portanto, significar um propósito
eterno de eleger, ou um propósito formado na eternidade, de eleger, ou escolher
do mundo, e santificar no tempo, pelo Espírito e o sangue de Jesus"68.
No raciocínio de Watson, portanto, a eternidade está no propósito de
eleger, não na eleição em si mesma.
Dr. Ralston, um outro arminiano do século XIX, vai a um extremo que
nem todos os arminianos mais recentes tem coragem de ir, embora na
prática todos cheguem à mesma conclusão. Ele diz: "... Se Deus seleciona ou
escolhe alguns homens para a vida eterna e rejeita outros, como todos
admitimos ser um fato, deve haver uma razão boa e suficiente para esta
eleição"69. Ao invés de crer que a razão está escondida em Deus, e seja um
motivo dele a eleição, Ralston diz:
"Qual é a razão, então? Nós chegamos à conclusão, portanto, que conquanto
diferentes sejam os ensinos do Calvinismo, se um homem é eleito para a vida
eterna e ou outro consignado para a perdição, isso não é o resultado arbitrário,
caprichoso e de parcialidade não razoável, mas de acordo com a razão, equidade
e justiça, e é uma amostra gloriosa das perfeições harmoniosas de Deus. É porque
um é bom e o outro mal; um é justo e um outro injusto; um é crente e o outro
incrédulo; ou um é obediente e o outro rebelde. Estas são as distinções que a
razão, a justiça e a Escritura reconhecem. E nós podemos descansar certos de que
estas são as únicas distinções que Deus considera quando elege o seu povo para a
glória, e quando sentencia o ímpio para a perdição"70.

Relação da eleição com outras doutrinas arminianas.

A doutrina da eleição do Arminianismo, para que seja corretamente


entendida, deve ser relacionada com os outros elos dessa corrente teológica,
que estão intimamente entrelaçados.

1. Eleição e fé no Arminianismo.

Os arminianos consistentes deveriam confessar como os arminianos


originais, os Remonstrantes, confessaram: "Nós confessamos de um modo
geral que fé, na consideração de Deus escolhendo-nos para a salvação, de
fato precede, não sendo o fruto da eleição"71.

68 citado por Girardeau, p. 25, Watson, Theological Institutes, vol. II, publicada em New York, em
1840, p. 338
69 citado por Girardeau, p. 26, Ralston, Elementos of Divinity, Nashville, Tenn, 1882, p. 289
70 Elements of Divinity, p. 291-293.
71 O texto latino reza: "Rotunde fatemur, fidem in consideratione Dei in eligend ad aslutem

antecedere, et non tanquan fructum electioins sequi". (Rem. Hag. Coll. P. 35) citado por Owen, p. 60
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 29

A fé, segundo os Remonstrantes, não é a condição necessária para a


eleição divina, mas ela é, também, a causa que move a vontade de Deus para
eleger pessoas. Dessa forma, as pessoas 'merecem' o amor eletivo de Deus. A
única causa absoluta para o homem ser eleito é, segundo Episcopius, 'não a
vontade de Deus, mas o respeito de nossa obediência' 72 . A lógica dos
Remonstrantes era: "Se o motivo da reprovação de Deus é o pecado do
homem, isto é, alguma coisa nascida no homem, então a razão para a eleição
de Deus deveria estar também no homem. Em outras palavras, essa razão é
a fé. De início, eles reconheceram que fé era a condição para a eleição, não a
causa dela"73.
De fato, foi difícil para eles esconderem a idéia de que a eleição é
causada pela fé futura, porque fé é o resultado do uso correto da vontade
livre dos homens. Muitos arminianos não aceitariam esta conclusão, mas no
sistema de teologia do Arminianismo consistente, em última instância, é a
vontade do homem que conta, não a de Deus.
Segundo a doutrina Arminiana, Deus escolhe uma pessoa porque Ele,
de antemão prevê que a pessoa está para crer n'Ele. Neste caso, a pergunta
que se deve fazer ao arminiano é esta: é esta fé prevista um dom de Deus ou
produto do uso das capacidades do homem para crer no evangelho
proclamado? Se eles respondem que a fé é um dom de Deus ou produto do
uso das capacidades do homem para crer no evangelho proclamado? Se eles
respondem que a fé é um dom de Deus, eles quebram todo o seu sistema
teológico, tornando-se inconsistentes com as outras doutrinas de seu próprio
esquema teológico. À propósito, há muitos arminianos que crêem que a fé é
um dom que Deus comunica ao homem, mas eles não percebem que esta é
uma séria inconsistência com a doutrina da liberdade da vontade e com a
doutrina da predestinação que eles sustentam. Se, por outro lado, crêem que
a fé não é um dom de Deus, eles tem que admitir que todos os homens tem
algumas capacidades de crer em Jesus Cristo, sendo dotados para isso pela
graça preveniente e com alguma assistência do Espírito Santo. Somente
alguns poucos arminianos corajosa e consistentemente negariam a
assistência do Espírito.
A eleição é uma espécie de 'recompensa' pela fé futura do homem. No
final das contas, portanto, é o homem escolhendo Deus antes do que Deus
escolhendo o homem. Eles não ensinam que Deus de antemão escolheu
algumas pessoas do restante do mundo perdido, para serem objetos do Seu
amor e favor. A 'única causa porque Deus ama (ou escolhe) qualquer pessoa
é, por causa da honestidade, da fé e da piedade, com as quais, segundo a
ordem de Deus e seu próprio dever, são aceitáveis a Deus"74.

72 provavelmente Episcopius identifique a obediência e a desobediencia como perseverança em fé ou


perseverança em incredulidade. O texto latino reza: 'Electionis et reprovationis causa única vera et
absoluta non est Dei voluntas, sed obedientiae et inobedientiae'. (Epis. Disput. VIII) citado por Owen,
p. 61
73 A Apiology dos Remonstrantes, p. 37, diz: "Cum peccatum pono causam meritoriam reprobationis,

ne existimato et contra me ponere justitiam causam meritoriam electionis".


74 O texto latino reza: "Ratio dilectionis personae est, quod probitas, fides, vel pietas, qua ex officio suo

et praescripto Dei ista persona praedita est, Deo gratia sit". Rem. Apol. P. 13), citado por Owen, p. 59
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 30

2. Eleição e presciência no Arminianismo.

A grande controvérsia nesta matéria entre Calvinistas e arminianos


pode ser sumarizada nestas perguntas apresentadas por Cunningham:
"Contemplando e fazendo arranjos a despeito da eterna condição da raça
humana, escolheu Deus alguns homens do meio dela – isto é, certas pessoas,
individual e especificamente – para serem, certa e infalivelmente, participantes
da vida eterna? Ou escolheu Ele meramente certas qualidades ou propriedades como fé,
arrependimento, santidade e perseverança, com um propósito de admitir ao céu todos
aqueles homens, quem quer que pudessem ser, que devessem possuir ou exibir estas
qualidades, e consignar à punição todos aqueles que, após serem favorecidos com
oportunidades adequadas, deveriam falhar em exibi-las?75"
Não há nenhum outro aspecto controversial que não esteja incluído
nessas perguntas de Cunningham.
Os teólogos arminianos, diferentemente dos Socinianos, levam em conta
a presciência de Deus. Eles claramente admitem que Deus conhece todos os
eventos, incluindo as ações livres dos homens, mas eles negam que os
eventos ou atos dos homens sejam preordenados por Deus. Os homens são
livres para agir de acordo com a própria vontade deles. Por essa razão, a sua
doutrina da eleição é baseada no pré-conhecimento das ações futuras dos
homens, isto é, coisas relacionadas à fé, ao arrependimento e à perseverança
do crente.
O grande problema é que não há nenhuma concordância entre todos os
arminianos sobre este assunto de perseverança dos santos. O próprio
Arminius não estava certo a respeito deste assunto76. Se um homem tem a
possibilidade de cair finalmente na fé, então Deus tem de esperar por sua
falta de perseverança para 'decretar' sua reprovação ou, conversamente,
esperar por sua perseverança para 'decretar' a sua eleição.
Um outro problema é que, se a perseverança final em fé é a causa da
eleição de Deus, então ninguém pode dizer se pertence ao número daqueles
a quem Deus escolheu, porque ninguém pode dizer, com certeza, que
herdará a vida eterna perseverando em fé até a morte, segundo o raciocínio
arminiano.
O conceito de presciência no Arminianismo, como veremos abaixo, faz
uma diferença enorme, e tem determinado toda a sua doutrina da
predestinação. De qualquer modo, a conclusão do que estamos dizendo é
óbvia para o observador cuidadoso:
"Naturalmente, uma eleição fundada sobre a previsão de fé, santidade e
perseverança de pessoas particulares não é eleição de forma alguma, mas um
mero reconhecimento da existência futura de certas qualidades encontradas em

75 William Cunningham, Historical Theology, vol. 2, Edinburgh, T&T Clark, 1870, p. 437, itálico
acrescido.
76 A respeito da perseverança dos santos, ele disse: "Mas, como eu disse, esta matéria toda pode ser

elucidada, se a graça de Deus é devidamente distinguida de seus vários efeitos". Arminius, Writtings,
vol. 3, p. 499
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 31

certos homens, embora Deus nunca tenha produzido, nem decretado produzi-las
neles"77.
O conceito arminiano da palavra grega proe/gnw, 'pré-conheceu' em Rm
8.29, da qual se deriva a idéia da presciência, deveria ser reavaliado. Os
teólogos arminianos dizem que Paulo está falando a respeito da
predestinação para a salvação daqueles a quem ele soube de antemão que
responderiam à chamada graciosa de Deus. Em outras palavras, isto
significa que eles responderiam de acordo com o uso correto da liberdade da
suas vontade. Alguns comentadores arminianos falam a respeito desta
resposta futura da vontade do homem. Godet, por exemplo, comentando Rm
8.29, pergunta: "Em que sentido Deus assim os pré-conheceu"? Então, ele
afirma que eles foram 'pré-conhecidos como certos de cumprir as condições
de salvação, isto é, fé; assim seriam 'pré-conhecidos como d'Ele pela fé'.78"
Entretanto, para a maioria de todos os comentaristas, como Godet, a palavra
'conheceu de antemão' é entendida como 'significando que Deus conhecia de
antemão quais eram os pecadores que iriam crer, etc., e soabre a base desse
conhecimento, Ele os predestinou para a salvação"79.
Essa doutrina da Predestinação diz a respeito do conhecimento
antecipado das obras que os homens fariam, não ao conhecimento
antecipado de pessoas, como a Escritura assevera. Esta abordagem faz uma
enorme diferença na interpretação do texto. Se Deus conhece de antemão as
ações das pessoas no futuro, a fim de predestiná-las, então esta doutrina
tem a sua base, em última instancia, nas obras dos homens e não na
decisão de Deus de salvar homens. Mas a verdade é que o texto diz que Deus
está tratando o assunto da predestinação segundo o seu pré-conhecimento
de pessoas, não das coisas que elas fariam. A abordagem Arminiana muda
totalmente o significado da Escritura e o resultado das conclusões, quando
fala sobre a base da Predestinação divina. Eles são obrigados a acrescentar
alguma noção qualificante para justificar o conhecimento antecipado de
Deus, a fim de provar o seu ponto. Fazendo assim, eles revertem o
significado da eleição do amor soberano de Deus para a eleição da
supremacia humana.
A razão última pela qual os arminianos negam a doutrina da eleição,
conforme ensinada pelos Reformados, é a da vontade livre. Eles podem dar
uma porção de razões para rejeitar a doutrina Reformada, mas a razão final
está no que eles chamam de violação da vontade livre do homem. A doutrina
da vontade livre controla cada aspecto da Soteriologia deles.
Reagindo ao assunto da preordenação dentro do Calvinismo e
condenando algumas ênfases comprovadamente errôneas na fé reformada,
Whedon, um metodista arminiano, disse:
"O Calvinismo afirma que Deus, imutável e eternamente preordena tudo o que
vem a acontecer. Isto é, Deus, desde toda a eternidade, predetermina não
somente todos os eventos físicos, mas todas as volições dos agentes responsáveis.

77 Cunningham, p. 437.
78 Frederic Godet, Commentary to the Epistle to the Romans, p. 325. (As ênfases são dele).
79 David, N. Steele, Five Points of Calvinism, (Philadelphia; Presbiteryan & Reformed Publishing Co.

1967, p. 85
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 32

A isto o Arminianismo objeta que a predeterminação das volições dos agentes


destrói a liberdade da sua vontade"80.
Alguns professores da fé reformada deveriam aceitar humildemente
essa critica de Whedon, com respeito à determinação de todas as volições
dos homens. Eles tem enfatizado erroneamente que Deus luta contra a
vontade do homem, determinando-a contra os desejos naturais dos homens.
Mesmo admitindo a crítica por causa de alguns deslizes de ministros
reformados, todos eles ainda objetariam à noção Arminiana de liberdade da
vontade como a resposta última ao problema da preordenação, que inclui a
fé e a perseverança dos santos. Mas Whedon, contrariando a teoria
reformada da preordenação, continua dizendo que
"A teoria Arminiana é esta: desde toda a eternidade Deus predetermina as leis da
natureza e a sucessão dos eventos físicos e dos eventos necessários; mas com
respeito aos agentes morais livres, Deus, conhecendo todas as futuridades possíveis,
escolhe o plano de Sua conduta que, em razão daquilo que cada agente fará
definitivamente com sua liberdade, ocasionará os melhores resultados"81.
O ato predestinador de Deus é dependente do que as criaturas farao no
futuro. Seus atos são baseados em Seu pré-conhecimento do que o agente
fará livremente, sem qualquer preordenação. A fé, por exemplo, que é um ato
do homem, não algo que Deus o habilita a ter, é exercida livremente, sem
qualquer conexão com preordenação. Por esta razão, os arminianos crêem
que Deus elegeu pessoas precisamente porque Ele soube de antemão o que
haveria de acontecer no futuro. Ainda mais, Ele conheceu de antemão o
resultado das ações livres dos homens através da Sua capacidade de prever
todas as futuridades. Então, Whedon conclui, como se ele tivesse encontrado
a palavra final no assunto: "Sim, como Sua onisciência sabe o futuro com
exatidão perfeita, dessa forma ele nunca será enganado nem frustrado em
Seus planos e providências"82. Nessa concepção, Deus nunca será frustrado
porque Ele decretou todas as coisas, mas porque Ele já sabe de antemão o
que vai acontecer e, então, Ele sanciona todas as futuridades previstas.
Isto está absolutamente evidente na opinião de Whedon:
"Os Arminianos negam que a presciência tem qualquer influência sobre o futuro
de um ato, como a predeterminação tem. A predeterminação fixa o ato, a
presciência é fixada pelo ato. Na preordenação Deus determina o ato como Lhe
agrada; na presciência o agente fixa a presciência como lhe agrada. No primeiro
Deus somente é responsável pelo ato da criatura; no segundo Deus sustenta a
criatura responsável, e um governo divino justo é tornado possível"83.
Portanto, na visão Arminiana, os atos que ocorreram na história do
mundo não foram o resultado dos decretos de Deus, mas o decreto de Deus
foi o resultado daquilo que Deus previu que iria acontecer na vida dos
homens. O ato eletivo de Deus previu que iria acontecer na vida dos homens.
O ato eletivo de Deus, portanto, é determinado pelo exercício das ações livres
dos homens, não pela própria determinação de Deus. No Arminianismo, o

80 D.D. Whedon, "Arminianism and Arminius", in Methodist Quaterly Review, july, 1879, p. 407.
81 Whedon, p. 407, itálico acrescido
82 Whedon, p. 407.
83 Whedon, p. 407, 408
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 33

poder de determinação é revestido de Deus para o homem. A liberdade do


homem reina soberana na teologia Arminiana.
Com receio de a doutrina da presciência trazer qualquer noção
prejudicial ao conceito de liberdade do homem, Whedon diz:
"Todavia, a maioria dos Arminianos, provavelmente, diria com o eminente
filosofo, Dr. Henry More, que se a presciência das volições dos agentes livres
contradiz a liberdade, então a liberdade, e não a presciência, deve ser crida"84.
Este é o resultado daquilo que Arminius começou no século XVI. A
negação da supremacia absoluta de Deus leva ao comeco do domínio da
supremacia do homem. Na teologia Arminiana, a liberdade não pertence a
Deus, mas ao homem. A história é o registro dos atos sob a perspectiva
humana, não divina. A liberdade divina é trocada pela liberdade da vontade
dos homens. Este é o ensino básico da teologia Arminiana, com algumas
variações, dependendo do grau de Arminianismo consistente, ela tem que
sustentar a opinião de Whedon.
A maioria dos Arminianos consistentes, contudo, sustenta a opinião de
que a eleição é de indivíduos particulares, e é condicional. Cottrell assevera
veementemente que 'a Bíblia explicitamente relata a predestinação à
presciência de Deus, e um entendimento correto desta relação é a chave
para a questão toda da eleição para a salvação"85. Após apresentar os seus
argumentos sobre a importância da presciência, Cottrell diz que ela
"Significa que Ele (Deus) tem um conhecimento real ou cognição de algo que
antes dele realmente acontecer ou existir na história. Este é o âmago irredutível do
conceito, que não deve ser atenuado nem eliminado. Nada mais é consistente com a
natureza de Deus"86.
Este é o único modo que os Arminianos todos interpretam o conceito de
presciência de Deus. Se eles desistirem dessa interpretação, eles não podem
sustentar sua doutrina da eleição condicional. Eles não podem abrir mão de
sua visão de presciência. Se o fizerem, derrubarão todo o seu conceito de
Predestinação.
Tratando da presciência, Wiley diz que
"O único lugar onde eu difiro87 é que Calvino disse que não existe nenhuma
relação entre a presciência e a Predestinação, que eu não posso compartilhar...
Mas eu penso que Ele (Deus) sabe aqueles que crerão em Cristo. Ele vê a fé
deles... E esta presciência se estende ao mundo todo e a todas as criaturas. Wesley
toma a posição de que Deus prevê quem haverá de crer. E eu creio que esta idéia
de presciência é correta"88.
A ênfase de Wiley, como Cottrell mostrou acima, é a chave para o
entendimento Arminiano de eleição. Sem ela, todo o sistema Arminiano se
tornaria insustentável. Cottrell afirma categoricamente que 'Deus
pré-conhece cada coisa a respeito da vida de cada indivíduo. Ele não pode

84 Whedon, p. 408.
85 Jack W. Cottrell, "Conditional Election", em Grace Unlimited, edited by Clark Pinnock, Minneapolis:
Bethany Fellowship, Inc. 1975, p. 58
86 Cottrell, p. 58 (itálico acrescido).
87 Acaba diferindo no todo. Nota pessoal. Marthon.
88 Wiley, p. 15.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 34

ajudar mas pré-conhece, justamente porque Ele é Deus. Ele vê o inteiro


escopo do destino de cada indivíduo – mesmo antes da fundação do
mundo89, mas Deus não intervém na situação do homem. A função de Deus,
no conceito Arminiano, é prever as coisas que os homens fazem, não
determinar o destino deles 90 . O eterno destino deles é determinado de
antemão sobre a futuridade das ações deles.
"Deus elege os indivíduos de acordo com o seu pré-conhecimento. Mas a
pergunta pode ser feita: pré-conhecimento de que? A resposta é que Ele
pré-conhece se um indivíduo cumprirá as condições para a salvação que Ele tem
imposto soberanamente... Naturalmente, há também condições que alguém deve
cumprir a fim de estar em Cristo, isto é, a fim de entrar na união de salvação com
Ele e permanecer nesta união. A condição básica, naturalmente, é a fé... Deus
pré-conhece desde o começo quem cumprirá essas condições. Aqueles que Ele
prevê como preenchendo as condições são predestinadas para a salvação"91.
A questão crucial para os Arminianos consistentes não é que a eleição é
de indivíduos ou corporativa, mas que ela é condicional. A fé prevista tem
um papel preponderante na sua doutrina da eleição. A fé não é determinada
por Deus, não o sendo o resultado da eleição, mas a causa dela. "A escolha
deles de Jesus não é predestinada; a escolha é pré-conhecida, e as bênçãos
subsequentes Deus a salvação são, então, predestinadas".
Esta interpretação é, obviamente, rejeitada pelos teólogos Reformados.
Mesmo embora eles admitam esta espécie de presciência em Deus, eles
sustentam uma abordagem muitíssimo diferente nesta matéria, que será
exposta abaixo.

3. Eleição e soberania no Arminianismo.

A idéia Arminiana da soberania de Deus é muito interessante. Os


Arminianos mudam o focus da soberania divina. Por outro lado, eles são
muito firmes ao afirmar a supremacia de Deus, mas é um estranho de
afirmá-la. O Arminiano Winkoop assevera:
"... A soberania total de Deus é a base do todo da teologia cristã. Nenhuma teoria
filosófica que permite o mais leve rompimento na soberania deve ser permitido92.
Toda a doutrina cristã está dependurada nesta doutrina... Algo menos do que o
Deus soberano não pode dar suporte à fé cristã"93.
Todavia, que espécie de soberania é esta na qual crêem? É Deus
soberano para escolher aqueles a quem quer salvar? Não, de acordo com a
teologia Arminiana. A soberania de Deus é relacionada ao método que Ele
escolheu para lidar com a salvação do homem. Os indivíduos não são
escolhidos porque Deus determinou salvá-los incondicionalmente, mas
porque soberanamente Deus determinou estabelecer o método pelo qual eles
deveriam ser salvos. O método de Deus é a eleição de acordo com a Sua

89 Cottrell, p. 60.
90 Este Deus é soberano? Nota pessoal. Marthon.
91 Cottrell, p. 61.
92 E é exatamente isto o que o Arminianismo faz. Nota pessoal. Marthon.
93 Winkoop, Op.Cit. p. 87-88.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 35

presciência. Se os indivíduos são salvos ou não, não é o assunto da


soberania de Deus.
Obviamente, os teólogos Reformados acusam os Arminianos de colocar
Deus debaixo da decisão humana. Entre eles está Roger Nicole, que diz:
"Eu acho objetável que na posição Arminiana, as questões últimas pareçam
depender da escolha do homem antes do que da escolha de Deus. Parece-me que
ambos, a Escritura e o entendimento próprio da soberania exigem que a escolha
seja deixada com Deus antes que com o homem".
Respondendo às objeções dos teólogos reformados, Cottrell diz que a
soberania de Deus não é violada pela teologia Arminiana, porque:
"um arranjo sob o qual Deus reage às escolhas do homem violaria sua soberania
somente se Deus fosse forçado a tal arranjo, somente se ele fosse uma
necessidade imposta sobre Deus da parte de alguém de fora... Foi escolha
soberana de Deus trazer à existência o universo habitado pelas criaturas de
vontade livre, cujas decisões, em algum grau, determinariam o quadro geral. Deus
estabeleceu o sistema de eleição condicional; foi Deus somente quem
soberanamente impôs as condições. A liberdade de Deus de decretar o que quer
que Lhe agrade é a prova e a essência de sua soberania absoluta"94.
No Arminianismo, a soberania de Deus não é ligada à escolha de
pessoas, mas ao método de eleição condicional que Deus escolheu. A eleição
de indivíduos não está dependente da decisão de Deus, mas da decisão do
homem, que dá a pintura final no quadro da salvação. A liberdade de
vontade do homem é o fator último que determina a história do mundo e,
consequentemente, forma a base para o decreto eletivo de Deus.
Cottrell raciocina que se Deus, para mostrar a sua soberania, pode
reagir ao pecado do homem e à oração do homem, por que não pode Ele
reagir à fé prevista do homem95? É espantoso que os Arminianos chamem
este raciocínio de manifestação da soberania de Deus!

4. Eleição e graça no Arminianismo.

A eleição condicional, de acordo com a teologia Arminiana, é a


expressão mais pura da graça de Deus, e afirma-se que a eleição
incondicional é contrária à graça de Deus.
A teologia Arminiana é freqüentemente criticada pelos teólogos
Reformados por negar o conceito de graça, porque se Deus elege através de
Sua presciência da fé futura, isto torna o homem, em algum grau, a causa
ou a fonte de sua própria salvação. Se isto é assim, qual é o real significado
de Graça? Para muitos teólogos reformados, o conceito Arminiano de 'intuito
fidei' sugere uma espécie de salvação pelas obras. Em última instância, a fé
prevista é um ato da vontade livre do homem, não o resultado da obra
graciosa de Deus.
Respondendo à esta objeção, Cottrell explica que na Teologia Reformada
ninguém pode ver qualquer distinção entre fé o obras. Ele diz:

94 Cottrell, Op.Cit. p. 64.


95 Cottrell, p. 65.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 36

"Dessa forma, devemos concordar que obras previstas, mérito ou santidade como
uma condição para a eleição seria contrário à graça. Mas devemos nós dizer o
mesmo a respeito da fé prevista? Naturalmente que não! A fé, por sua verdadeira
natureza, é consistente com a graça, seja ela prevista ou não. Se Deus pode dar
salvação sob a condição de fé post facto, então Ele pode predestinar um crente
para a salvação como um resultado de Sua presciência daquela fé"96.
É óbvio que fé não é a mesma coisa que obras na teologia Arminiana,
mas o modo como a teologia Arminiana apresenta a fé prevista, como a
causa da eleição de Deus, conduz qualquer sério e honesto estudioso da
Escritura a pensar que a fé é o fator dominante na salvação do homem,
porque a fé é uma expressão da livre decisão da vontade humana e não uma
expressão da graça de Deus. Mesmo embora os Arminianos liguem fé com
graça, a fé é, em última instância, uma opção da vontade livre do homem,
não o resultado da regeneração operada pelo Espírito Santo. Na teologia
Arminiana, Deus oferece salvação a todos os homens sem exceção, e todos
tem a potencialidade de crer em Deus, porque a todos Deus deu a
manifestação de sua graça preveniente. Então, de acordo com o bom uso da
vontade livre dos homens, alguns decidem crer em Deus. Este deu essa
graça a todos os homens, mas eles não são predestinados para crer. Eles
crêem porque eles livremente decidem fazê-lo, e por causa dessa decisão que
Deus prevê, eles são predestinados.
Os Arminianos costumam dizer que Cottrell que "Deus é soberano em
todas as coisas, mas sua soberania não absorve e cancela seus outros
atributos"97. A graça, para eles, é algo paralelo à soberania, mas não uma
expressão da soberania divina. "No conceito de graça soberana (na Teologia
Reformada), a soberania domina e sobrepuja a graça, de forma que graça
não é permitida ser graça"98. Para eles, a graça não tem nada a ver com o
poder de Deus para salvar as pessoas ou com a idéia de eleição
incondicional. Para eles, eleição não tem nada a ver com o amor gracioso de
Deus.
Na teologia Arminiana, a graça é simplesmente o amor de Deus sendo
oferecido. "A graça não quer forçar o seu caminho. Igual a Cristo, ela
permanece na porta e bate99... Mas de igual modo, se ela é por imposição
soberana, então a graça não é mais graça"100. Deus oferece graça. Isto é a
sua soberania, mas o homem toma posse da salvação de Deus de acordo
com o uso correto de sua livre e determinante vontade.
Os Arminianos crêem que a fé prevista é um dom de Deus, mas é um
dom que o homem pode rejeitar. Portanto, a fé que é uma expressão da
graça, é meramente um oferecimento, não um dom ou uma comunicação ao
homem, de tal modo que ele a recebe.
A apropriação da graça oferecida é condicionada pela disposição do
homem em aceitá-la. Porque somente alguns aceitam esta graça que é
oferecida a todos, não é explicado. A única resposta possível, na teologia

96 Cottrell, p. 66.
97 Cottrell, p. 66.
98 Cottrell, p. 66.
99 Ap 3.20.
100 Cottrell, p. 67.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 37

Arminiana, é dizer que o homem tem a livre escolha. Uma resposta diferente
dessa seria contrário ao esquema teológico deles.

5. Eleição e justiça no Arminianismo.

O conceito Arminiano da justiça de Deus pode ser percebido em quase


todos os homens, mesmo entre os não crentes. Não há nele muitas
variações. A justiça não é vinculada à retribuição, de acordo com os méritos
do homem, mas a 'justiça de Deus o conduz a tratar todas as pessoas
igualmente, e sem conceder quaisquer favores especiais com respeito à
salvação'101.
Se Deus elege as pessoas incondicionalmente, Ele é injusto. A justiça
para o Arminianismo é Deus distribuindo igualmente a mesma porção a
cada pessoa. É tratamento igual para iguais. Se Ele concede salvação a
alguns e não a outros, Ele deve ser acusado de injustiça.
Deus, portanto, dá a mesma oportunidade a todos, dando-lhes a graça
preveniente. Todas as pessoas têm o mesmo poder para crer, conquanto
somente alguns crêem. Então, Deus, através da sua presciência, e, a fim de
não ser injusto, decidiu escolher aqueles que creriam no futuro, para
herdarem a vida eterna. Este é o único modo de Deus manifestar a sua
justiça. Cottrell é absolutamente claro em seu conceito de justiça de Deus,
quando assevera que:
"O princípio é dado na Escritura, contudo, para mostrar exatamente o oposto, isto
é, que Deus de fato recompensa e pune somente sobre aquilo que Ele encontra na
própria pessoa. Os contextos nos quais o princípio é asseverado estabelece isto.
Ele pretende ensinar a justiça e a justeza divinas no julgamento... A coisa
verdadeira que violaria este princípio de justiça seria decidir sobre o destino eterno do
indivíduo sem levar em conta qualquer coisa nele... Somente a doutrina da eleição
condicional, onde Deus elege para a salvação aqueles que comprem com seus termos de
perdão anunciados e graciosamente dados, pode preservar a justiça e a imparcialidade de
Deus"102.
Esta idéia de justiça é contrária ao ensino da Santa Escritura, porque
faz com que a eleição de salvação seja uma espécie de recompensa que Deus
concede aos que livremente crêem. Se é recompensa, não há manifestação
da graça, porque graça exclui qualquer idéia de participação meritória
humana. Por essa razão, Paulo diz:
"Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente
segundo a eleição da graça. E se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já
não é graça"103.

6. Eleição e depravação no Arminianismo.

O assunto da depravação humana é o foco central da critica da teologia


Arminiana à teologia Calvinista. Por detrás do conceito Arminiano da

101 Cottrell, p. 67.


102 Cottrell, p. 67 (itálico acrescido)
103 Rm 11.5-6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 38

depravação humana está novamente o conceito da liberdade da vontade.


Segundo a teologia Arminiana, ambas as doutrinas, a da liberdade da
vontade e a da depravação total, ensinadas pelos Calvinistas, são
inconsistentes. Elas não podem estar juntas no mesmo sistema de teologia.
Elas são mutuamente excludentes.
Alguns Arminianos mais honestos com a Escritura reconhecem a
seriedade da doutrina da depravação total, tentam defendê-la e harmonizá-la
com o seu sistema teológico, sustentando-a, mas ao mesmo tempo, não
querem abandonar o seu conceito de liberdade da vontade. Embora sejam
sinceros, eles não conseguem o seu intento sem abrir mão do foco central da
sua teologia, que é o da liberdade da vontade. Se eles abandonam o seu
conceito de liberdade da vontade, para aceitar a depravação total, eles
deixam de ser Arminianos. Se afirmam a totalidade da depravação humana,
serão Calvinistas, e isto os apavora. Ser considerado um Calvinista é uma
grande ofensa para grande parte dos Arminianos, pois a sua grande glória
está em combater o Calvinismo. Qualquer similaridade com o Calvinismo
seria considerado um sério problema para o Arminiano. Para muitos não
importa a inconsistência da teologia, mas sim que eles lutam contra o
sistema Calvinista.
O assunto da depravação, portanto, é crítico para o propósito deste
capítulo. Os Arminianos não podem negar a corrupção que há na natureza
humana, porque a Escritura a afirma categoricamente, e a experiência
humana a comprova com toda a clareza possível. Contudo, eles enfrentam
um grande problema com o objetivo 'total' acrescentando à expressão
'depravação'. Aceitando a depravação total, eles dão um golpe mortal na sua
própria teologia.
Por esta razão, Cottrell concorda que o homem é um pecador depravado
e corrupto, "mesmo ao ponto de estar morto em seus delitos e pecados", mas
ele também assevera que "a Bíblia não pinta o homem como totalmente
depravado"104. Ele argumenta que a corrupção e a depravação do homem
'não significam, contudo, que ele é incapaz de responder à chamada do
evangelho'105.
Este assunto para eles é muito importante porque eles têm que lutar
contra o conceito da eleição incondicional dentro do Calvinismo. Portanto, o
grande corolário natural é: se eles aceitam a depravação total, eles têm que
engolir a doutrina da eleição incondicional. Se uma pessoa é incapaz (por
causa da sua depravação) de responder positivamente à chamada do
evangelho, a eleição incondicional é necessária. O Arminiano argumenta que
a doutrina da depravação total do homem é o corolário da eleição
incondicional, ou vice-versa. Ambas as doutrinas se dependem mutuamente.
Então, se nega-se uma tem que se negar a outra. É isso exatamente o que o
Arminiano faz.
A eleição condicional combina muito bem com a depravação parcial do
homem. Mesmo embora o homem esteja admitidamente 'morto nos seus
delitos e Pecados', ele é considerado parcialmente depravado e sua

104 Cottrell, Op.Cit. p. 68.


105 Cottrell, p. 68.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 39

capacidade de responder à chamada do evangelho não está morta. Portanto,


o homem pode crer no evangelho porque ele tem a vantagem da graça
preveniente, que é uma capacidade concedida a todas as pessoas sem
exceção. Sabendo disto, Deus elegeu aqueles que Ele sabia de antemão que
iriam crer no futuro, para serem objetos de Sua salvação.
Este raciocínio tem que ser assim porque todas as doutrinas da
Soteriologia Arminiana descansam, de algum modo, na doutrina da
capacidade da vontade humana em responder à chamada do evangelho.

7. Eleição e responsabilidade humana no Arminianismo.

Novamente a doutrina da liberdade da vontade manifesta-se como a


rainha suprema no meio da constelação de estrelas das doutrinas cristãs.
Cottrell diz que 'somente a eleição incondicional preserva a integridade
da liberdade da vontade e, assim, da responsabilidade humana, sem a qual o
sistema moral é impossível'106. Os Arminianos admitem que Deus está no
controle de todas as coisas no mundo, mas a última palavra em termos de
pecado e salvação está na mão do homem. O problema mais sério com este
assunto está relacionado com a doutrina da salvação. "A pessoa escolhe
aceitar a graça quando ela decide satisfazer as condições que Deus
estabeleceu para recebê-la"107. Cottrell diz ainda ser justo com a sua teologia
afirmando que 'não há mérito em fazer a decisão. Contudo, uma pessoa é
responsável por fazer a decisão por si mesmo'108.
Essa tomada de decisão é possível para o homem porque Deus não
preordena as ações dele, mas simplesmente as prevê. O pré-conhecimento de
Deus não exerce nenhuma influência na decisão humana. "O caráter
autêntico da decisão de um indivíduo não é anulado pela presciência que
Deus tem dele" 109 . Deus apenas sabe qual será a decisão do homem no
futuro, e Seus planos são traçados de acordo com esse Seu
pré-conhecimento. O homem é responsável por ambos, por aceitar e por
rejeitar a oferta de Deus.
A eleição condicional é o aliado mais próximo da doutrina da liberdade
da vontade. Este é o único caminho, de acordo com a teologia Arminiana,
para se sustentar a doutrina da responsabilidade humana, porque não há
moralidade num sistema que nega a liberdade da vontade e assevera a
eleição incondicional. A fim de preservar a liberdade e a responsabilidade do
homem, Deus teve que ser um mero observador daquilo que estava para
acontecer na história do mundo e, então, após prever todos os atos humanos
futuros, na eternidade, Ele estabeleceu o Seu decreto relacionado à eleição
dos homens. Ele não preordenou nada. As coisas aconteceram na história do
mundo porque o homem foi capaz de fazer todas as coisas livremente, sem
qualquer decreto por detrás de suas ações. Deus apenas pré-conheceu tudo.
Isto é o que o conceito Arminiano sustenta a fim de sustentar o homem
totalmente responsável por suas ações.
106 Cottrell, p. 68-69.
107 Cottrell, p. 69.
108 Cottrell, p. 69.
109 Cottrell, p. 69.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 40

A doutrina reformada da eleição.

A importância dessa doutrina para a Fé Reformada.

A doutrina da eleição ocupa um lugar muito significativo na Teologia


Sistemática Reformada por várias razões:

1. Porque a própria Escritura dá um lugar de destaque a ela.

Mais do que os crentes em geral imaginam, a doutrina da eleição é


abundantemente ensinada na Escritura. O ensino sobre a eleição atravessa
toda a Escritura. Só não o enxerga quem não tem olhos para ver ou quem
não quer vê-lo.

2. Porque ela é o aspecto eterno da redenção.

Toda a redenção do pecador, que é embasada na obra redentora de


Cristo Jesus e trazida pessoalmente ao pecador pela aplicação dela através
do Espírito Santo, tem o seu nascedouro no amor eletivo de Deus. A nossa
salvação já foi idealizada, decretada e definida na eternidade. Tudo o que
veio a acontecer na história do mundo é a concretização do plano
previamente estabelecido amorosamente por Deus. Portanto, na Fé
Reformada, há um carinho especial por este aspecto eterno das decisões
cheias de amor de Deus.

3. Porque ela tem sido fortemente combatida pelos adversários do


Calvinismo.

Os adversários do Calvinismo têm ajudado no fortalecimento e na maior


compreensão dessa doutrina, por causa das acusações que freqüentemente
lhe são feitas por todos os seus adversários. Quanto mais objeções, mais
pesquisa na Escritura e mais aperfeiçoado fica o ensino. Este é o aspecto
positivo das críticas. Elas nos ajudam no entendimento mais correto da
revelação divina. Foi esse o caso da eleição.

Definição de eleição.

Eleição é o ato eterno de Deus pelo qual Ele, pondo o Seu coração em
algumas pessoas caídas por causa dos seus pecados, não por causa daquilo
que elas fariam mas porque Ele as amou, resolveu separá-las para a
salvação, por meio da obra redentora de Jesus Cristo e para a regeneração e
santificação do Espírito.

Aspectos gerais da eleição divina.


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 41

Sobre o autor eficiente da eleição divina.

Deus, o Pai, é o autor da eleição. A Escritura não deixa margem de


dúvida a esse respeito. Embora a Trindade toda esteja envolvida com a
redenção de pecadores, parece-nos que, na Trindade econômica, o Pai é o
autor da eleição. Deus, o Pai, é o representante da Trindade no decreto da
eleição. Toda a doutrina da redenção descansa no decreto eletivo do Pai,
assim como na obra redentora do Filho e da aplicação da redenção pelo
Espírito.
Há alguns textos que falam inequivocamente do decreto da eleição como
sendo uma obra propriamente feita pelo Pai110.
Estes textos são suficientes para nos mostrar que a tarefa de Deus, o
Pai, na esfera da redenção, é selecionar as pessoas que vão herdar a
salvação, não com base naquilo que Ele vê nelas, mas com base no Seu
amor eletivo soberano, como veremos adiante. Deus é a causa eficiente e o
autor da eleição.
Na Fé Reformada, Deus é a causa última e eficiente da eleição.
Contudo, na fé Arminiana, Deus não é a causa última, mas sim a vontade
livre do homem. Estas duas posições estão frontalmente em oposição uma à
outra. Somente uma delas é verdadeira. A verdade não está no meio. Não há
um ponto de equilíbrio entre as duas posições. Por isso, há que se estudar
com seriedade esta doutrina, para não se fazer injustiça ao ensino geral das
Santas Escrituras sobre a causa última e eficiente da eleição divina.

Sobre a base da eleição divina.

1. Positivamente: o beneplácito de Sua vontade.

Os Credos Reformados sempre dão ênfase ao beneplácito da vontade


divina111, como sendo a causa única da eleição graciosa de Deus. Esta é, na
verdade, a grande diferença de ênfase entre os Calvinistas e Arminianos.
Estes últimos, embora creiam na eleição divina, contudo, enfatizam que a
causa última ou a base da eleição divina está na fé futura ou nas coisas que
o homem haveria de fazer no futuro ou nas coisas que o homem haveria de
fazer no futuro. Em outras palavras, os Arminianos acabam por destruir o
conceito correto de eleição, embora empreguem o termo 'eleição',
sustentando que a causa da eleição divina repousa na fé futura do homem.
A expressão 'beneplácito de Deus', como sendo a base da eleição, é
encontrada na Escritura de forma muito clara. Por essa razão, os

110 Ef 1.3-4; 2 Ts 2.13; 1 Ts 5.9.


111 Os cânones de Dort afirmam isso de uma forma muito forte: "The good pleasure of God Is the sole
cause of this gracious election; which does not consist herein, that out of all possible qualities and
actions of men God has chosen some as a condition of salvation; but that he was pleased out of the
common mass of sinners to adopt some certain persons as a peculiar people to himself; as it Is written:
Rm 9.11-13 and At 13.48". (Of Divinie Predestination, Article 10); Obs. Ver também CFW capitulo III
sobre os Eternos Decretos de Deus.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 42

Arminianos não podem nunca negá-la. Eles a preservam mas mudam o


sentido do termo, a fim de manter a sua teologia. Eles sustentam que o
'beneplácito de Deus' consistiu nisto: que Deus viu todas as virtudes
possíveis nos homens e, como uma expressão de Sua bondade, resolveu
contemplá-los com a eleição para a salvação. O decreto da fé (que não é
meritória em si mesmo) e a obediência da fé (embora uma obediência
incompleta) tornam-se as condições para a salvação. Fazendo assim, os
Arminianos empequenecem e desvirtuam o sentido bíblico da eleição
segundo a vontade soberana de Deus.
A expressão 'segundo o beneplácito de Sua vontade' implica, na
verdade, que a eleição acontece segundo o prazer de Deus. Deus tem gozo e
deleite em escolher pessoas para serem objetos do Seu amor eletivo 112 .
Porque Deus agradou-se em escolher homens, teve prazer neles. Perceba-se
que o prazer que Deus tem é nascido em Si próprio, não naquilo que Suas
criaturas haveriam de apresentar. A razão porque Deus tem prazer de amor
em uns e não em outros, certamente não está nas pessoas, mas está
escondida na própria vontade de Deus. As razões últimas dos atos de Deus
estão escondidos n'Ele. Precisamos guardar silêncio e não tentar explicar o
que não nos foi revelado. É nesse sentido que o seu amor de eleição é
soberano, sendo independente e livre.
Contudo, a idéia que se deve ter da soberania de Deus precisa ser
cuidadosamente entendida. Deus não é um soberano sem qualquer motivo
bondoso dentro de si mesmo, quando Ele elege pessoas para a salvação.
Veremos mais adiante que a soberania de Deus está relacionada com o Seu
amor. Portanto, quando falamos da vontade soberana de Deus, estamos
incluindo a soberania do Seu amor.
O Velho Testamento 113 nos ajuda a entender este princípio do amor
soberano de Deus na escolha que faz do Seu povo.
O Novo Testamento 114 também aprova a idéia da eleição de Deus de
acordo com a Sua vontade soberana, que está vinculada ao Seu amor
soberano.
Nos textos indicados Paulo fala da mesma eleição mencionada por
Moisés em Deuternômio 115 , pois se refere aos patriarcas e a sua
descendência.

2. Negativamente: nada em nós mesmos.

Alguns textos supracitados 116 já evidenciaram que a razão da eleição


divina está baseada unicamente em Deus, nunca nos atos ou nas qualidades
das pessoas.
Há alguns outros textos básicos para mostrar que a razão última de
nossa eleição está no beneplácito de Deus e não naquilo que os homens
haveriam de fazer no futuro117.

112 Mt 11.25-26.
113 Dt 4.37-38; 7.7-8.
114 Rm 9.11-13; Ef 1.4-5, 9-11.
115 Dt 4.37-38; 7.7-8.
116 Idem.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 43

Este texto é clássico para evidenciar a verdade do nosso ponto. A razão


da eleição divina está claramente dada nesses versos. Aquele que chama é a
razão última da eleição, nunca as obras dos que seriam eleitos. À propósito,
Deus escolheu Jacó, que dá todos os indícios de ser o pior dos dois.
Compare a vida de Esaú e a de Jacó. Sempre este último tentou usar os
recursos indevidos para receber a bênção de seu pai Isaque. Sempre
portou-se desonestamente, em comparação com a atitude de Esaú. Contudo,
Deus, para eleger, não olhou para as ações futuras dos homens, mas
unicamente expressou o Seu prazer em Jacó (nunca por causa do que Jacó
fez), não em Esaú. Eleição não é recompensa, mas obra da Sua graça118.
Este verso também é conclusivo. A eleição salvadora é produto da graça
de Deus que nos foi dada em Jesus Cristo na eternidade, mas nunca devem
as obras ser consideradas como base de nossa eleição119.
Estes versos escritos por Paulo mostram que a glória de todas as coisas
relacionadas à redenção do pecador deve ser dada a Deus. Por essa razão,
Deus escolheu aquilo que os homens nunca escolheriam: as cousas piores,
as desprezadas, as fracas, as que não são nada. O propósito dessa atitude de
Deus é para que Ele seja glorificado, não os homens. Ele não quer que
ninguém se vanglorie na sua presença, dizendo que foi eleito por causa de
suas atitudes ou de sua natureza.
Freqüentemente fé e arrependimento futuros são considerados pelos
arminianos como sendo a causa ou a base da eleição de Deus na eternidade.
As Escrituras mostram exatamente o contrário.
A fé é o resultado da eleição, não a causa dela.

Em Jo 6.36-37 pode-se perceber que Jesus equaliza o vir a Ele como


sendo o crer n'Ele, pois estas expressões estão conectadas com comer e
beber d'Ele, isto é, ao apropriar-se dele pela fé. Todo aquele que vem a Ele
(ou crê n'Ele) o faz por causa da obra eletiva do Pai. Este os entrega a Jesus
para que sejam remidos por Ele. A fé, portanto, é resultado, não causa da
eleição. A mesma idéia está repetida em Jo 6.65.
Perceba-se que há uma elipse em Fp 1.29:
"Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo, e não somente (a
graça) de crerdes n'Ele".
Como padecer é graça, assim também o crer n'Ele. Portanto, a fé é
conseqüência da eleição graciosa de Deus, não a causa dela.
Em At 14.27 a Igreja estava reunida ouvindo os testemunhos dos
cristãos judeus pasmados de como Deus havia trazido os gentios à fé em
Cristo Jesus! A fé, aqui também, é o resultado da obra eletiva de Deus, antes
do que a causa dela.
A fé está sempre vinculada à pregação da palavra, mas há mais coisas
ainda relacionadas à fé120. Neste texto há uma prova irretorquível da eleição
divina como sendo a causa da fé. Todas as pessoas a quem Paulo havia

117 Rm 9.11-13.
118 2 Tm 1.9.
119 1 Co 1.27-29.
120 At 13.46-48.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 44

pregado, e que haviam sido eleitas para a vida eterna, vieram, como
conseqüência, à fé em Cristo121.
Jesus é o doador e é aquele que leva a fé até o final122 . A fé é dom
divino, do Autor da vida, sendo, portanto, a evidência de nossa eleição, e não
a causa dela.
O arrependimento é o resultado da eleição e não a causa dela123.

Estes versos mostram de maneira clara que o arrependimento é obra da


bondade de Deus sobre os homens, causando neles a tristeza procedente de
Deus que leva ao arrependimento, contrastando com a tristeza causada pelo
mundo, que produz morte. O arrependimento, ao invés de ser a causa, é o
resultado da graça divina do pecador124.
Estes textos falam do arrependimento que os israelitas e os gentios
possuem, como obra única e exclusiva de Deus na vida deles. Portanto,
jamais qualquer Arminiano pode argumentar que Deus escolheu as pessoas
com base naquilo que elas fariam no futuro, seja fé ou arrependimento.
Estas coisas são dons gratuitos de Deus!

Sobre o objeto da eleição divina.

Os objetos da eleição divina são os seres racionais criados, anjos e


homens.

Com referência aos anjos.

Não há quase nada na Escritura que fale a respeito da predestinação


dos anjos. Há apenas duas menções: uma diz respeito à reprovação deles125,

121 Ver At 3.16.


122 Hb 12.2.
123 2 Co 7.9-10.
124 At 5.31; 11.17-18; 2 Tm 2.24-26; Rm 2.4.
125 Jd 6. Alguns anjos Deus resolveu deixar na própria vontade deles, e, assim, eles caíram do estado

de santidade em que foram criados. Sem a adição de uma bondade especial da parte de Deus qualquer
criatura pode mudar, e foi o que aconteceu com os anjos e com os nossos primeiros pais no Éden. É
próprio da criatura mudar quando não há uma atuação bondosa de Deus para a preservação no
estado de santidade.
Um anjo não eleito, portanto, é aquele que é santo por criação, e que tem a liberdade e o poder para
permanecer santo, mas que não é guardado assim por bondade extraordinária e, assim, cai do estado
em que foi criado por um ato de sua própria autodeterminação.
Os anjos não eleitos tinham força suficiente para evitar o pecado, mas não infalibilidade suficiente
para evitar o pecado e permanecerem para sempre em santidade. A possibilidade de queda houve
porque não foram confirmados em santidade. Deus apenas entregou-os à sua própria liberdade, não
dando-lhes a bondade necessária para preservá-los no estado de pureza.
A queda dos anjos é o começo do pecado no universo criado, e apresenta uma dificuldade que não é
encontrada na queda dos homens no Éden: foi uma queda sem que houvesse um tentador externo.
A queda dos anjos é alguma coisa inexplicável. A Bíblia não fornece nenhuma pitada de solução para
o problema. Como a queda de alguém santo é tornada certa pelo decreto divino é impossível
compreender! Os anjos não possuíam qualquer natureza pecaminosa que os levasse a pecar, e ainda,
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 45

porque é dito deles 'que não guardaram o seu estado original'; a outra é clara
ao falar da sua eleição. Em 1 Tm 5.21 Paulo diz: "Conjuro-te perante Deus e
Cristo Jesus e os anjos eleitos 126 , que guardes estes conselhos, sem
prevenção, nada fazendo com parcialidade".
A eleição dos anjos é de natureza bem diferente da nossa. Como
veremos adiante, os homens são eleitos para a salvação porque já são vistos
como pecadores, enquanto que os anjos são eleitos para permanecer em
santidade.
Aqueles anjos que Deus resolveu guardar do pecado e da apostasia, Ele
fez com que eles tivessem um grau da sua bondade de tal forma que eles são
conservados no estado de santidade em que foram criados. Por essa razão,
eles infalivelmente não caíram, não porque a infalibilidade era parte da
natureza deles. Essa preservação em santidade é que é entendida pelos
reformados como sendo a eleição dos anjos.
Contrariamente à dificuldade encontrada na queda dos anjos, a sua
eleição é mais fácil de entender, porque ela é a manifestação clara da
bondade de Deus para com eles. A certeza da santidade no eleito por um
decreto de Deus é muito mais compreensível, ainda. Neste casso, podemos
entender neles "Deus operando tanto o querer como o fazer, segundo a Sua
boa vontade"127. Esse decreto é sempre operado imediatamente por Deus no
coração da criatura, mas o decreto relacionado à reprovação das criaturas
não pode ser visto desta mesma maneira.

Com referência aos homens.

A eleição dos homens, como já foi dito acima, difere da angélica porque
ela é eleição para a santidade partindo de um estado de pecado, e não
eleição para a perseverança no estado de santidade.
A eleição humana pressupõe a queda do homem. Os homens foram
escolhidos dentre a raça caída, sempre sendo elevados em conta os pecados
deles.
O objeto da eleição dos homens tem duas características:
I. É eleição de homens caídos e arruinados.

Todo o trabalho redentor de Deus termina no homem. Ele é o objeto de


toda a preocupação de Deus, sendo o objeto primeiro do Seu amor. Veja
alguns textos que mostram o homem como sendo o objeto primordial da
obra redentora de Deus128.
II. É eleição de indivíduos particulares.

Uma das diferenças entre o Arminianismo e o Calvinismo é que o


primeiro sistema algumas vezes tenta evitar a idéia de eleição particular ou

não tinham um tentador externo. Nada explica a origem do mal no universo de Deus, a não ser o
misterioso e insondável decreto divino.
126 Não teria aqui a palavra anjo o mesmo sentido que em Apocalipse? Dúvida pessoal. Marthon.
127 Fp 2.13
128 Rm 5.8; Ef 1.4.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 46

pessoal, enfatizando mais a idéia de eleição nacional, relacionada aos meios


de graça.
O texto de Rm 9.11-13 prova alem de toda a dúvida que a eleição é
pessoal. Ela diz respeito a duas pessoas, Esaú e Jacó, não dois
representantes de duas nações, como Israel e Edom. Ainda que os resultados
da eleição tenham afetado os descendentes deles, os israelitas e edomitas,
permanece o fato de que Deus tratou pessoalmente com os dois e, antes que
as nações, afetou a vida dessas duas pessoas. De qualquer forma, as nações
são compostas de pessoas. Elas não são uma entidade impessoal. Se a
nação dos edomitas é reprovada, não é igualmente verdadeiro que as
pessoas de Edom sejam também objetos da preterição divina? O mesmo é
verdadeiro de Jacó e dos israelitas. A idéia de uma Predestinação nacional,
antes que pessoal, é contrária ao próprio texto de Rm 9, porque Paulo
argumenta que nem todos os israelitas são verdadeiros israelitas, e nem
todos os filhos de Abraão são realmente filhos da promessa. Rm 9 não é um
escrito a respeito de nações, mas de indivíduos. Estes versos acima
mostrados são uma prova cabal da pessoalidade do objeto da eleição.
Mas a Escritura ensina categoricamente que a eleição divina é pessoal,
isto é, de indivíduos. A Escritura também indica que antes da fundação do
mundo Deus escolheu alguns indivíduos dentre os membros da raça caída,
para serem objetos de seu favor imerecido129. Estes, e somente estes. Deus
propôs salvar, sendo, portanto objetos de Seu amor. Steele diz que
"Deus poderia ter escolhido salvar todos os homens (porque Ele tem poder e
autoridade para fazê-lo) ou Ele poderia ter escolhido não salvar ninguém
(porque Ele não está debaixo da obrigação de mostrar misericórdia a ninguém),
mas Ele não fez isso. Ao invés disso, Ele resolveu salvar uns e excluir outros"130.
A prova de que a eleição é de caráter pessoal está afirmada no fato de
Jesus dizer que os nomes dos eleitos estão escritos no livro do Cordeiro
desde a fundação do mundo131.
Diferentemente dos Arminianos que evitam falar de eleição de
indivíduos particulares para a salvação, a fé reformada enfatiza esse aspecto
da eleição que é claramente defendido abundantemente pelas Santas
Escrituras132. Estes textos mostram de uma maneira indiscutível que Deus
escolhe não somente comunidades para serem objetos especiais de Sua
mensagem salvadora, mas também que Deus elege indivíduos para a
salvação. Estes textos não deixam qualquer margem de dúvida a respeito.

Aspectos específicos da eleição divina.

1. A doutrina reformada sustenta uma eleição


incondicional.

129 Ef 1.4 fala de nós, pessoas individuais.


130 Steele, Op.Cit., p. 30.
131 Ap 13.8 e 17.8.
132 Mt 24.22-24, 31; Rm 8.33; 16.13; Ef 1.1-11; Cl 3.12; i Ts 1.4; 5.9; 2 Ts 2.13; 2 Tm 2.10.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 47

O que o termo incondicional significa? A eleição é chamada


incondicional porque ela é graciosa, em contraste com a concepção
Arminiana de eleição, onde ela implica em cumprimento de
responsabilidades. Este termo foi uma reação ao posicionamento Arminiano
que apresentou uma eleição condicional pela fé prevista, um termo cunhado
em Dort, no ano de 1818. O termo eleição incondicional
"não depende de nada fora do próprio Deus. Ele escolheu porque Ele escolheu
escolher – não por causa de algum mérito ou atração na criatura e procedente de
qualquer mérito previsto ou atração residindo na criatura, mas simplesmente
nascido na bondade espontânea da Sua própria volição que, na massa da raça –
todos igualmente culpados e igualmente merecedores da morte, selecionou
alguns – uma multidão a quem ninguém pode enumerar, para a vida"133.
Esta é a principal diferença entre Arminianismo e Calvinismo nesta
matéria. A maioria dos crentes aceita que a eleição é uma doutrina bíblica,
mas a diferença radical aguda entre eles é sobre a natureza da eleição
divina. Há muitas diferenças a respeito de alguns detalhes, mas há algumas
diferenças enormes entre Arminianos e Calvinistas neste assunto.
Como vimos anteriormente, os Arminianos crêem numa eleição
condicional baseada numa fé prevista, Deus em Sua onisciência
"(que cobre todo o tempo) previu que certas pessoas exerceriam fé como um
assunto de sua própria vontade livre e soberana, e com base nisto, Ele (Deus)
ajustou o Seu propósito, elegendo estas pessoas com base nos atos futuros delas.
Isto é, vendo o que cada indivíduo faria por meio de sua própria resposta pessoal
ao evangelho, Deus elegeu-os para a salvação ou passou por algo deles, sobre a
base da escolha pré-conhecida deles. Este sistema protege a vontade livre dos
homens134. Ele é conhecida como eleição condicional"135.
Desta perspectiva, em última instância, o homem escolhe Deus, não
Deus escolhe o homem. A vontade do homem é a causa determinante da
eleição divina. Este ponto de vista foi rejeitado, desde o começo, pela
Teologia Reformada, que afirmou, em contrapartida em Dort, a eleição
incondicional.

2. A doutrina reformada sustenta uma eleição eterna.

Esta parte diz respeito ao 'tempo' da eleição divina. Como todos os


humanos estão enquadrados dentro das categorias espaço e tempo, logo
surge uma pergunta óbvia: "Quando Deus nos elegeu"?
A resposta a esta pergunta tem que ser dada de uma maneira prudente.
Deus não está sujeito às mesmas categorias temporais que estamos. As
ações de Deus são realizadas em nossa história, em nosso tempo, mas as
suas resoluções não são tomadas no tempo. Deus faz coisas no tempo, mas
as pensa na eternidade. Eternidade é aquilo que faz contraste com o tempo.
Contudo, para que falemos de um modo que possamos entender, dentro de
nossas categorias, digamos que Deus tomou todas as decisões com respeito

133 George S. Bishop, The Doctrines of Grace (Grand Rapids, Baker Book Hause, 1977, p. 173.
134 Mas não faz justiça à soberania de Deus. Nota pessoal. Marthon.
135 Kenneth H. Good, God's Gracious Purpose (Grand Rapids, Baker, 1979, p. 44
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 48

à salvação do homem antes que houvesse tempo, isto é, antes que todas as
cousas houvessem sido criadas.
Há base bíblica de sobejo para que tenhamos esta verdade provada.
Vejamos alguns textos divididos sistematicamente:

O amor salvador de Deus nos foi dado na eternidade136.

Embora o amor de Deus tenha sido manifestado a nós em nossa própria


história pessoal, ele foi uma realidade da mente de Deus antes, muito antes
de os objetos de seu amor terem sido criados. Jr 1.5 é a prova cabal dessa
verdade, já que devemos entender o caráter de amor que o verbo 'conhecer'
encerra.

A escolha de Deus foi feita antes da fundação do mundo.

Já que o amor eterno é o motivo que o levou a escolher pessoas para a


salvação, a eleição tem que ser algo decidido na eternidade137.

Todas as coisas da salvação foram definidas antes da fundação do


mundo.

a. O reino foi preparado antes da fundação do mundo138.


b. Os nomes dos eleitos de Deus foram escritos no livro da vida do
Cordeiro antes da fundação do mundo139.
c. As coisas da salvação foram prometidas antes da fundação do
mundo140, mesmo embora elas tenham sido anunciadas e realizadas
na nossa história que Paulo chamava de 'tempo devido'141.
d. O sangue de Jesus foi conhecido antes da fundação do mundo,
embora houvesse sido manifestado somente no final dos tempos por
amor de nós142.
e. A graça salvadora recebida agora foi determinada antes da fundação
do mundo143, embora tenha sido manifestada no tempo de encarnação
de Cristo Jesus em nossa história144.
Estes textos provam que a eleição divina foi decidida num tempo sem
tempo, isto é, na eternidade. Isto deve ser fortemente defendido, porque os
Arminianos afirmam que a eleição divina foi no tempo, isto é, após os
homens terem caído. Eles negam que a eleição é eterna, para poder colocar
Deus na dependência da fé dos homens para poder elegê-los.

136 Jr 31.3.
137 Ef 1.4; 2 Tm 2.13.
138 Mt 25.34.
139 Ap 13.8; 17.8.
140 Tt 1.2.
141 Tt 1.3.
142 1 Pe 1.19-20.
143 2 Tm 1.9.
144 2 Tm 1.10.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 49

3. A doutrina reformada sustenta uma eleição imutável.

A imutabilidade do decreto da eleição está diretamente conectada com a


eternidade d'Ele. Aquilo que é eterno é necessariamente imutável e
vice-versa. De eternidade a eternidade Deus é o mesmo no Seu Ser e nas
Suas obras. Nada em Deus aumenta ou diminui, melhora ou piora. Portanto,
Seus propósitos não mudam nunca, nem os meios pelos quais Seus
propósitos se realizam. Eles permanecem para sempre os mesmos.
Os Cânones de Dort afirmam a imutabilidade dos propósitos eletivos de
Deus145. O decreto da eleição é imutável no sentido em que a salvação dos
eleitos seja segura. Deus, que elege os Seus, faz com que os indivíduos
creiam e perseverem em fé até o fim.
A Escritura afirma inequivocamente que o que Deus dá, Ele não tira.
tratando do assunto da eleição nos capítulos 9 a 11 de Romanos, Paulo
conclui dizendo que 'os dons de Deus são irrevogáveis'146. Deus não volta
atrás na Sua decisão de salvar pecadores.
Os versos de Jo 6.37-40 mostram que aqueles que o Pai entregou a
Jesus Cristo, certamente virão a Cristo. Eles não falharam em se achegar ao
Filho, crendo n'Ele. Esta é a determinação do Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo.
Os versos de Hb 6.16-19 apontam claramente para o fato de os decretos
de Deus serem inalteráveis. Se Deus tem apontado certas pessoas para a
vida eterna, certamente elas haverão de experimentá-la, porque Deus não
pode mentir nos Seus propósitos. Para confirmar a imutabilidade do Seu
decreto, Deus fez, à semelhança dos homens, um juramento por si mesmo,
de que haveria de cumprir todas as coisas prometidas relacionadas ao Seu
decreto (v. 13).
A imutabilidade do propósito eletivo de Deus está intimamente
vinculada às outras doutrinas relativas ao Seu Ser, ou seja, Sua
imutabilidade, sabedoria, onisciência e onipotência. Homer Hoeksema
belamente resume este assunto da seguinte forma:
"A eleição de Deus é absolutamente imutável. Porque Deus é imutável, a eleição
não pode ser mudada. Porque Deus é sábio, ela não necessita ser mudada.
Porque Deus é onisciente, ela não pode ser frustrada. Porque Deus é onipotente,
a eleição não pode ser frustrada ou obstruída"147.
É altamente confortadora esta doutrina da imutabilidade da eleição de
Deus! Desde o começo até ao fim do processo da salvação temos a graça de
Deus conosco, que é imutável e, por isso, tudo chegar a bom termo. Nunca
seremos lançados para longe da Sua presença benéfica porque o decreto da
eleição de Deus é imutável!

145 "And as God Himself Is most wise, unchangeable, omniscient and omnipotent, só the election
made by Him can neither be interrupted not changed, recalled or annulled; neither can elect be cast
away, not their number diminished"(Of Divine Prdestination, article 11).
146 Rm 11.29.
147 Homer Hoekxema, The Voice of Our Fathers, (Grand Rapids, Reformed Free Publishing

Association, 1980, p. 197.


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 50

4. A doutrina reformada sustenta uma eleição graciosa.

A eleição divina é uma obra inteiramente da graça de Deus, negando


qualquer motivo no próprio homem.
Todas as coisas relacionadas à salvação do pecador são uma obra da
graça de Deus. A eleição não é diferente. Rm 11.5-6 mostra claramente esta
maravilhosa verdade.
Este é o argumento de Paulo contra o pensamento sinergista do seu
tempo. Alguns pensavam que Deus escolhia as pessoas com base naquilo
que as pessoas seriam ou fariam. Paulo insurgiu-se contra qualquer idéia
dessa natureza. Ele afirma a gratuidade da eleição, como a de outros
aspectos da salvação do Pecador. Eleição não significa salvação, mas
determina a salvação das pessoas. Se todos os passos para a salvação delas
é graça de Deus, raciocina Paulo, porque não a Eleição, que é o plano
estabelecido por Deus para a vida eterna das pessoas? É com esse raciocínio
em mente que Paulo se dirige aos crentes de Roma, negando toda a
participação humana na sua eleição. Eleição é graça divina. Não é pelas
obras das pessoas. Graça e obras se excluem. Se as obras entram na
consideração da eleição, a graça já não é mais graça. Anteriormente, no
capítulo 9, Paulo já havia dito que Esaú e Jacó
"ainda não eram os gêmeos nascidos, nem haviam praticado o bem ou o mal
(para que os propósitos de Deus quanto à eleição prevalecesse, não por obras,
mas por aquele que chama) já fora dito a Rebeca: o mais velho será servo do mais
moço. Como está escrito: amei a Jacó e me aborreci de Esaú"148.
A tese de Paulo nesses versos acima, é a gratuidade da eleição, em
contraste com os sinergistas do seu tempo que consideravam esse tipo de
ensino um absurdo de injustiça149.
Há dois aspectos que mostram a gratuidade da eleição, que devem ser
considerados. Do contrário, noções errôneas sobre a eleição serão sempre
levantadas.
Há três razões básicas pelas quais consideramos a eleição de Deus
como eleição da graça:

1. A eleição é graciosa porque ela pressupõe o pecado.

Quando ensinamos sobre a eleição divina, temos que vir com a idéia de
que Deus, no Seu decreto eletivo, viu o homem como um Ser caído. A razão
simples para isso é que Deus elegeu pessoas 'para a salvação', o que implica
que elas estavam perdidas. Todos os seres humanos foram vistos num
estado de depravação e sujeitos à condenação, quando Deus os elegeu para
a vida eterna.
Não é conveniente tratar da doutrina da eleição sem esse pressuposto.
Não há como tentar tratar de um assunto soteriológico, sem levar em conta
antes o pecado.

148 Rm 9.11-13.
149 Rm 9.14.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 51

Logo, quando a eleição é vista como graciosa, o pecado tem,


obrigatoriamente, que entrar na conta. Não se concebe 'favor imerecido'
concedido a seres que não são caídos. Portanto, quando tratamos da eleição
da graça, temos que tratar do ser humano em estado de miséria.
Esta é a doutrina esposada pelos símbolos de Fé Reformados. A
Confissão de Fé de Westminster não abre mão da idéia de que os homens
são caídos em Adão, quando eleitos, nos seguintes termos:
"Assim como Deus destinou os eleitos para a glória, assim também, pelo eterno e
mui livre propósito da Sua vontade, preordenou todos os meios conducentes a
esse fim; os que, portanto, são eleitos, achando-se caídos em Adão, são remidos
eficazmente por Cristo, são eficazmente chamados para a fé em Cristo pelo Seu
Espírito, ,que opera no devido tempo, são justificados, adotados, santificados e
guardados pelo Seu poder por meio da fé salvadora. Além dos eleitos não há
nenhum outro que seja remido por Cristo, eficazmente chamado, justificado,
adotado, santificado e salvo". (III, VI).
Não se pode pensar em eleição com base na graça de Deus sem levar
em conta o pecado. Isso seria fazer injustiça aos textos da Santa Escritura.

2. A eleição é graciosa porque é eleição em Cristo.

Este é um aspecto muito importante, mas que é freqüentemente


esquecido pelos críticos da Teologia Calvinista. Esses críticos dizem que a
ênfase é na eleição particular, mas não tratam com os eleitos, como aqueles
que estão em Cristo. A crítica Arminiana sobre a Teologia Calvinista não é
justa. Os Calvinistas são os únicos que fazem justiça à esse aspecto
fundamental da eleição da graça, porque não pode haver qualquer
manifestação da graça à parte de Jesus.
O primeiro artigo Arminiano, apresentando no Sínodo de Dort, em
1618-1619, enfatizou Cristo na sua doutrina da eleição 150 , mas a 'ênfase
Arminiana sobre Cristo', comenta o Dr. Klooster, 'mesmo sendo atraente, foi
viciada pela condicionalidade envolvida ao referir-se à fé prevista' 151 . A
facção reformada de Dort rejeitou a teologia Arminiana, mas não rejeitou a
ênfase Arminiana sobre o papel de Cristo na eleição, é muito significativo
que, na formulação dos cânones de Dort, a eleição esteja fortemente
relacionada a Cristo Jesus 152 . A eleição para a redenção não é possível
independentemente da obra de Jesus Cristo.

150 O primeiro dos cinco artigos Arminianos reza assim: "Que Deus, por um propósito eterno e
imutável em Jesus Cristo Seu Filho, antes da fundação do mundo, determinou, dos homens caídos, da
raça pecaminosa dos homens, salvar em Cristo, pelo nome de cristo, e através de Cristo, aqueles que,
através da graça do Espírito Santo, creriam neste Seu Filho Jesus e perseverariam nesta fé e na
obediência da fé, através desta graça, até o fim..."("Articuli Arminiani Sive Remonstrantia", Creeds of
Christendom, vol. III, by Philip Schaff,a New York, Harper & Brothers, 1877), p. 545.
151 Fred H. klooster, "The Doctrinal Deliverances of Dort", em Crisis in the Reformed Churches, essays

in commemoreation of the Great Synod of Dort, 1618-1619, editado por Peter DeJong, (Grand Rapids;
Reformed Fellowship, Inc. 1968), p. 68.
152 No artigo 7 dos Cânones de Dort, lê-se: "Eleição é o propósito imutável de Deus por meio do qual,

antes da fundação do mundo, da raça humana que havia caído de sua integridade original em pecado
e ruína, por sua própria falta. Ele tem, de acordo com o beneplácito de sua boa e livre vontade e mera
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 52

A Confissão de Fé de Westminster também liga a eleição dos pecadores


a Cristo Jesus:
"Segundo o Seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e
beneplácito da sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado, escolheu em
Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida..."(III,
V).
o próprio Cristo está incluído no decreto divino da eleição, como um
meio para cumprir a redenção do pecador. É neste sentido que Ele é o Eleito
de Deus153. Cristo é o Eleito, porque é o representante de todos aqueles que
o Pai lhe entregou, que são os eleitos.
Todas as bênçãos espirituais que temos estão vinculadas a Jesus
Cristo, especialmente as que se referem à eleição. Esse é o argumento que
Paulo usa, quando introduz o assunto da predestinação em Cristo154.
Todas as bênçãos que recebemos estão amarradas a Jesus Cristo,
porque Ele é o cumpridor do decreto de Deus com respeito à nossa salvação.
Observe que a expressão em Cristo, neste v. 3, vai preparar a eleição para a
idéia de eleição n'Ele (v. 4).
A gratuidade da eleição divina está novamente vinculada a Jesus Cristo,
porque Paulo dá continuidade ao seu longo parágrafo de Ef 1, dizendo : 'para
louvor da glória da Sua graça, que Ele nos concedeu gratuitamente no
amado'(v. 6).
Sem Jesus, não há eleição divina, porque o próprio Jesus é objeto da
eleição de Deus. Contudo, esta última sentença tem que ser devidamente
compreendida. Jesus não foi eleito para a salvação, como os pecadores o
foram, mas foi eleito para ser o Redentor do povo de Deus. Desde antes da
fundação do mundo, Deus determinou que Ele assumisse o lugar dos
pecadores, morrendo em lugar deles, sendo colocado como o fundamento do
edifício, que é a Igreja. Aqui Ele é a 'pedra eleita e preciosa' 155 . Não há
bênção para o pecador, sem a obra redentora de Jesus. Mas para que
houvesse a redenção, Deus destinou antecipadamente o Filho para ser
encarnado, e substituísse os pecadores. Ele foi predestinado para salvar
pecadores! Nesse sentido é que fomos eleitos n'Ele e Ele o eleito de Deus.
O alvo definitivo e final do decreto da eleição de Deus é a salvação dos
pecadores, mas o meio para o cumprimento desse alvo é a obra redentora de

graça, escolher em Cristo para a salvação, um certo numero de homens específicos, nem melhores nem
mais dignos que outros, mas com eles envolvidos na miséria comum. Desde a eternidade Ele tem
apontado Cristo para ser o Mediador e Cabeça de todos os eleitos e o fundamento da salvação deles.
Portanto, Ele decretou dar a Cristo aqueles que estavam para ser salvos, e eficazmente chamá-los e
atraí-los em sua comunhão, através da Sua palavra e do Seu Espírito. Isto é, Ele decretou dar-lhes
verdadeira fé n'Ele, justificá-los, santificá-los e, após tê-los guardado poderosamente na comunhão do
Seu Filho, finalmente glorificá-los, para a demonstração de Sua misericórdia e para o louvor das
riquezas de Sua graça gloriosa. Como está escrito: Deus escolheu-nos em Cristo 'antes da fundação do
mundo, para que fossemos santos e inculpáveis perante Ele. Em amor nos predestinou para a adoção
de filhos em Cristo Jesus..." (traduzido da New English Translation dos Cânones de Dort", no Calvin
Theological Journal, vol. 3, 1968, p. 136-137.
153 1 Pe 2.6.
154 Ef 1.3-6.
155 2 Pe 2.6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 53

Jesus Cristo, 'que é o Mediador e Cabeça dos eleitos e o fundamento da


salvação', conforme rezam os Cânones de Dort.
O ato da eleição, em si mesmo, não salva ninguém. Eleição não significa
salvação, mas as pessoas são eleitas para que venham a ser salvas 156 .
Consequentemente, não podemos dissociar a doutrina da eleição da obra
redentora graciosa de Cristo, nem da obra regeneradora graciosa do Espírito
Santo.

3. A eleição é graciosa porque está fundada no amor de Deus.

É lamentável que a maioria dos crentes não conheça ou que tenha um


conhecimento errôneo da razão ou da base da eleição. Muitos pensam que a
razão da nossa eleição é simplesmente a soberania divina. Não é errôneo
dizer isso. É apenas parte da verdade, mas a simples atribuição da eleição à
soberania divina pode ser apenas uma maneira de dizer que desconhecemos
a causa dela.
A teologia Arminiana muda o foco da soberania de Deus na eleição, por
causa dos seus pressupostos diferentes. Eles dizem que a soberania de Deus
não tem nada a ver com o seu amor soberano por Seu povo. A soberania,
segundo eles, está relacionada simplesmente ao método que Ele escolheu
para tratar da salvação do homem. E este método é a presciência. O
Arminiano Cottrell disse que 'a presciência de Deus é o meio pelo qual Deus
determinou que os indivíduos sejam conformados à imagem do Seu Filho'157.
A soberania de Deus está relacionada ao modo que Deus escolheu para
determinar a salvação do homem, isto é, a Sua presciência.
Todos os adversários do Calvinismo, criticando os teólogos reformados
em sua doutrina da eleição, diriam como Cottrell:
"Sobre que base Deus escolheu aqueles a quem Ele salva? Isto é conhecido
somente pelo próprio Deus, e Ele determinou não revelá-la. Deus tem as suas
próprias razões para as decisões que Ele faz, mas elas não podem ser conhecidas
pelos homens"158.
Esta é uma grande inverdade. Deus não escondeu dos homens a razão
da eleição. Ele não deu aos homens a razão de Sua soberana preterição, mas
Ele claramente deu a razão da eleição soberana deles, embora não nos tenha
dito porque uns e não outros.

156 2 Tm 2.10.
157 Jack W. Cottrell, 'Conditional Election', Grace Unlimited, edited by Clark Pinnock (Minneapolis,
Bethany Fellowship, 1975, p. 59.
158 Cottrell, p. 55.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 54

O hebraísmo no grego no N.T.

A razão da eleição divina está afirmada na Escritura de uma maneira


inequívoca: é o amor de Deus. O que está escondido de nós é porque Ele
amou eletivamente uns e não a outros. Isso, sim, não sabemos. Mas o fato
de Deus ter amor de eleição causa espanto, porque nunca ninguém
esperaria que o amor de Deus pudesse ser de natureza tal, que fosse a causa
da eleição. A concepção do amor de Deus tem sido extremamente falsificada
e apresentada distorcidamente. O amor de Deus não é um sentimento
enfermiço que não consegue realizar os Seus propósitos, que pode ser
rejeitado e anulado por qualquer atitude da chamada 'vontade livre' dos
homens. Não! Temos que levantar um protesto enorme contra esse tipo de
amor frouxo de Deus na teologia de muitos protestantes sinergistas. Não é
assim que a Escritura apresenta o amor gracioso de Deus.
Esse amor está intimamente relacionado com a eleição divina. Antes de
analisar os textos da Escritura que falam diretamente do amor como sendo a
causa da eleição do pecador, vamos estudar um conceito hebraísta159 que
pervade várias palavras da Santa Escritura: uma delas é o uso do verbo
'conhecer', que nos liga à idéia do pré-conhecimento de Deus.
A grande confusão no estudo da eleição é quando a ligamos com a
presciência, justamente porque não entendemos o que presciência significa.
O termo grego para o substantivo presciência é prognw/swi (que significa
'conhecidos de antemão' ou 'pré-conhecidos') e aparece duas vezes na
Escritura, e é ligado diretamente à doutrina da eleição e redenção do
pecador160.
O verbo grego proe/gno, que traduzido quer dizer 'pré-conheceu' ou
'conheceu de antemão', aparece 07 vezes na Escritura, mas apenas 5 com
referencia a Deus161.
No entendimento popular, o termo presciência significa que Deus tem
uma noção antecipada de tudo o que vai acontecer no futuro. Transportando
esse pensamento para a esfera soteriológica, chegamos à seguinte idéia, que
é sustentada por todos os Arminianos, sem exceção: Deus elege as pessoas
porque Deus sabia de antemão tudo aquilo que ia acontecer na vida delas,
isto é, que elas livremente creriam em Cristo no futuro. Sabendo desse
futuro antecipadamente, Deus resolveu elegê-las na eternidade para a
salvação. Esta é uma crença generalizada. É o sentido de 'presciência' para
todos os Arminianos. É a eleição baseada em fé prevista, isto é, Deus
elegendo pessoas pelo fato d'Ele saber antecipadamente da fé futura delas.
A Fé Reformada não tem nenhum problema em aceitar que Deus sabe
todas as coisas que acontecerão no futuro. As profecias comprovam essa
tese, mas não é a respeito desse tipo de conhecimento antecipado que a
Escritura se refere nos textos supracitados.

159 Um hebraísmo é percebido no uso de uma palavra em uma língua (no caso o grego) mas com o
sentido de outra (no caso o hebraico) embutido nela. A tradução da palavra do hebraico para o grego é
absolutamente literal, mas o sentido dela não está presente na mentalidade grega, mas prevalece o uso
que o hebreu fazia dela.
160 At 2.22-23; 1 Pe 1.20.
161 1 Pe 1.1-2; Rm 8.29; 11.2.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 55

A CFW tem o seguinte a dizer:


"Ainda que Deus sabe tudo quanto pode ou há de acontecer em todas as
circunstancias imagináveis, ele não decreta cousa alguma por havê-la previsto
como futura, ou como cousa que havia de acontecer em tais e tais condições"(III,
II).
Um pouquinho mais à frente, a CFW diz:
"Segundo o Seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e
beneplácito da Sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado, escolheu em
Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida; para
louvor da Sua gloriosa graça, Ele os escolheu de sua mera e livre graça e amor, e
não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer
outra cousa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa"(III, V).
os textos bíblicos acima citados não estão dizendo que Deus sabe das
coisas que os homens farão, mas estão dizendo que Deus conhece de
antemão pessoas. Todas as vezes que esse substantivo e o verbo
'pré-conhecer' são usados, significam muito mais do que simplesmente
conhecimento antecipado de eventos futuros. Deus pré-conhece pessoas. O
segredo deste assunto está no uso do verbo conhecer, quando usado
hebraisticamente.
O verbo 'conhecer', que nos textos acima é usado hebraisticamente,
tem um significado bastante diferente do usado pela mentalidade ocidental.
Quando o hebreu diz que Deus 'conhece' uma pessoa, ele não está dizendo
que Deus tem noção da existência dela, mas que Ele tem um envolvimento
especial de amor com ela.
O verbo grego ginw/skw, que se traduz por 'conhecer', é a tradução literal
do verbo (adfy. A versão portuguesa traduz literalmente dos textos originais,
o que não reflete o pensamento hebraico, dificultando, assim, o
entendimento correto do texto. A idéia que o hebraico traz do verbo
'conhecer' é completamente estranha ao uso em nossa língua.
Um exemplo bem claro do uso hebraístico está em Mt 1.24-25:
"Despertando José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor, e recebeu
sua mulher. Contudo, não a conheceu (ou)k e)ginwsken au)th\n), enquanto ela
não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus".
Em sã consciência, nenhum de nós pode interpretar esse 'conheceu' no
sentido usual da palavra em português. Obviamente, que o verbo 'conhecer'
deve ser entendido como um 'envolvimento sexual' entre o casal, uma outra
maneira de falar de 'amor'. Esta idéia foi sacada do uso hebraístico muito
comum no livro de Gênesis162.

162 Observe que esse sentido do verbo 'conhecer' encontrado em Mt 1.25 é retirado do uso hebraico nos
tempos do V.T., quando do relacionamento amoroso entre casais, que é traduzido de maneiras
diferentes:
Gn 4.1 – "Coabitou ((adfy) o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz Caim; então
disse: adquiri um varão com o auxílio do Senhor".
Gn 4.17 – "E coabitou ((ad"Y) Caim com sua mulher; ela concebeu e deu à luz a Enoque. Caim edificou
uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu filho"(a mesma idéia no v. 25, e Gn 29.23-30).
Gn 24.16 – "A moça era mui formosa de aparência, virgem, a quem nenhum havia possuído (Hf(fde:y);
ela desceu à fonte, encheu o seu cântaro e subiu" (a mesma idéia em Gn 38.26).
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 56

Em alguns lugares do Velho Testamento o verbo hebraico 'conhecer' já


recebe uma tradução interpretada em nossa língua como 'eleger' ou
'escolher':
"Porque eu o escolhi (wyiT:(adfy) para que ordene a seus filhos e à sua casa
depois dele, a fim de que guardem o caminho do Senhor, e pratiquem a justiça e
o juízo, para que o Senhor faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu
respeito"163.
Um outro exemplo da tradução de 'conhecer' por 'eleger' está no livro do
profeta Amós:
"De todas as famílias da terra somente a vós outros vos escolhi (yiT:(adfy),
portanto eu vos punirei por todas as vossas iniquidades"164.
O Senhor sabia tudo a respeito de todas as famílias da terra, porque
simplesmente Deus é onisciente, mas o texto acima diz que Deus conheceu a
Israel num sentido bem especial. Ele teve um relacionamento íntimo com
Israel, envolveu-se amorosamente com Israel ao ponto de escolhê-lo dentre
muitas nações. Perceba que foi o amor e a afeição de Deus por Israel que O
levaram a escolhê-lo165.
Sempre a razão da eleição divina é o amor pelo Seu povo. Israel foi o
povo em quem Deus botou o coração, sendo o objeto de uma afeição e
preocupação especiais. É um amor gracioso, porque não foi baseado em
coisas que os israelitas eram ou fizeram, mas unicamente em Deus.
Essa preocupação especial fica evidente no texto de Êxodo, no tempo
em que o povo estava cativo no Egito, onde o mesmo verbo hebraico é
traduzido de maneira diferente:
"Decorridos muitos dias, morreu o rei do Egito; os filhos de Israel gemiam sob a
servidão, e por causa dela clamaram, e o seu clamor subiu a Deus. Ouvindo Deus
o seu gemido, lembrou-se da sua aliança com Abraão, com Isaque e com Jacó. E
viu Deus os filhos de Israel, e atentou ((ad"Y"w = 'e conheceu') para a sua
condição"166.
A idéia do texto é que o Senhor, quando viu a triste condição de
escravidão, teve uma preocupação especial, uma atenção de amor para com
o povo. É nesse sentido que Ele conheceu a condição do povo, que fê-Lo
descer para socorrer os que estavam em escravidão.
O salmista também expressa a mesma idéia hebraica do verbo
'conhecer' dessa forma:
"O Senhor conhece (("dOy) o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios
perecerá"167.
Davi não está dizendo que o Senhor sabe todas as coisas do caminho
dos justos, mas mostrando o amor que o Senhor tem pelo modo como os
justos andam, em contraste com a Sua ira para com o caminho dos ímpios,

163 Gn 18.19.
164 Am 3.2.
165 Dt 7.6-8a; 10.15.
166 Ex 2.23-25.
167 Sl 1.6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 57

que há de perecer. O Senhor, portanto, tem especial carinho com os justos,


conhecendo-os.
O significado hebraístico de 'conhecer' também se torna evidente no
texto de Jeremias:
"Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci (!yiT:(ad:y), e antes
que saisses da madre, te consagrei e te constitui profeta às nações"168.
O sentido do texto não é que Deus sabia alguma coisa de Jeremias, mas
que Ele teve um relacionamento especial com Jeremias, um envolvimento
amoroso, antes mesmo dele ser formado no ventre de sua mãe.
No Novo Testamento há um uso abundante de hebraísmo em várias
passagens, onde o verbo 'conhecer' deve ser entendido como 'amar'. Outro
entendimento não cabe nos versos que se seguem:
"Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados
filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão o mundo não nos
conhece (ginw/skei), porquanto não o conheceu (ou)k e)/gnw) a Ele mesmo"169.
A idéia que João dá não é que os ímpios não tinham idéia da existência
dos filhos de Deus entre eles. Ao contrário, é justamente porque o mundo
sabe tudo a respeito de nós, isto é, ele sabe o que cremos, pensamos, o modo
como vivemos, é que ele não nos conhece, isto é, não nos ama. Porque o
mundo não ama a Deus, não ama os filhos d'Ele. E é pelo fato de sermos
filhos de Deus que o mundo não nos ama.
João expressa essa idéia contrária de 'conhecer' (amar) usando o verbo
de sentido puramente oposto, 'odiar': "Eu lhes tenho dado a tua palavra, e o
mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como também eu não
sou"170. Esse ódio do mundo deve ser interpretado como sendo exatamente o
sentido de 'não-conhecer' de 1 Jo 3.1.
João, dos escritores bíblicos, é o mais rico no uso hebraístico do verbo
'conhecer'. Na oração sacerdotal Jesus usa esse verbo que, se interpretado à
moda ocidental, não faz qualquer sentido171.
Não faz sentido dizer que Jesus possuía qualquer idéia da existência de
Deus, ou que ele possuía informações sobre Deus, mas o mundo não sabia
nada d'Ele. Não! Cristo amava o Pai, o que não acontecia com o mundo.
O relacionamento de amor de Jesus com as suas ovelhas é também
ilustrado pelo uso hebraístico do verbo 'conhecer':
"Eu sou o bom Pastor; conheço (ginw/skw) as minhas ovelhas, e elas me
conhecem (ginw/skeysi/ me) a mim, assim como o Pai me conhece (ginw/skei me
o( path\r) a mim e eu conheço o Pai (ginw/skw to\n pate/ra); e dou a minha vida
pelas ovelhas"172.
É absolutamente óbvio que Jesus tivesse conhecimento da existência do
Pai e vice-versa. Seria até tolice traduzir esse verbo nesse sentido, assim
como tolice seria entender que Jesus sabia quem eram as Suas ovelhas, e as

168 Jr 1.5.
169 1 Jo 3.1.
170 Jo 17.14.
171 "Pai justo, o mundo não te conheceu (se o)uk e)/gnw); eu, porém, te conheci (se e)/gnwn), e

também estes compreenderam que tu me enviaste" (Jo 17.25).


172 Jo 10.14-15.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 58

ovelhas sabiam quem Ele era. O que o texto quer dizer é que Jesus amava as
Suas ovelhas e Suas ovelhas O amavam, da mesma forma que havia
mutualidade de amor entre Ele e o Pai.
Jesus usou o verbo 'conhecer' no sentido hebraístico, numa passagem
extremamente forte, especialmente para aqueles que pensam
arminianamente, isto é, num amor salvador de Deus com caráter universal:
"Muitos naquele dia hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós
profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu
nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi explicitamente: Nunca vos
conheci (e)/gnwn). Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade"173.
Jesus não pode ser entendido aqui como dizendo: "Não conheço nada a
respeito de vocês", porque está totalmente evidente que Ele sabia tudo a
respeito deles – seu mau caráter, suas más obras. Ele conhecia toda a
pecaminosidade deles. Portanto, nesses versos, Ele está falando de algo
muito diferente e tremendamente forte: o significado da expressão
hebraística é: "Eu nunca tive qualquer relacionamento de amor com vocês",
ou "Eu nunca considerei vocês objetos do meu favor e amor". A Sua
referência aqui é a Seu amor salvador.
Isto posto, pergunta-se: como devemos interpretar o texto de Rm 8.29?
A presciência de 1 Pe 1.2 e Rm 8.29 é explicada, portanto, dentro dos
círculos protestantes: Arminianos e Calvinistas174, do seguinte modo:
Interpretação Arminiana de Rm 8.29.

Deus sempre possui um conhecimento perfeito de todas as criaturas e


de todos os eventos. Nunca houve nada no presente, passado ou futuro que
não tenha sido plenamente conhecido por Deus. Mas não é a esse
conhecimento de eventos futuros que o texto de Rm 8.29 está falando. O
texto afirma que 'aqueles (pessoas, não coisas) que Deus conheceu de
antemão, Ele predestinou, chamou, justificou, etc.' Se formos absolutamente
lógicos em nosso raciocínio, chegaríamos à seguinte conclusão: visto que
todos os homens não são predestinados, chamados, justificados e
glorificados, segue-se que todos os não foram conhecidos de antemão por
Deus no sentido de Rm 8.29.
Foi exatamente para evitar esta conclusão que os Arminianos são
forçados a acrescentar uma noção qualificante no texto.
Os Arminianos tem a seguinte interpretação: eles interpretam a
presciência em Rm 8.29 como sendo Deus predestinando certos indivíduos
que Ele 'pré-conheceu' (previu, soube com antecipação) que creriam ou
responderiam à Sua oferta graciosa (isto é, aqueles a quem Ele viu que, de
sua própria e livre vontade, se arrependeriam de seus pecados e creriam no
evangelho). Godet, um comentador Arminiano, analisando Rm 8.29, faz a
seguinte pergunta: "Em que sentido Deus os conheceu de antemão"? e
responde que eles foram 'conhecidos de antemão para cumprir as condições
de salvação, por sua fé; assim, foram "pré-conhecidos por sua fé". A

173Mt 7.22-23.
174Toda esta parte é, praticamente sacada do livro de David N. Steele e Curtis C. Thomas, The Five
Points of Calvinism – Defined, Defended, Documented (Baker, 1971) p. 85-89.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 59

expressão "conhecer de antemão" (prever, saber antecipadamente) é


entendida pelos Arminianos como significando que Deus sabia de antemão
que os pecadores haveriam de crer e, com base nesse conhecimento
antecipado, Ele predestinou-os para a salvação.
Eles lêem nesta passagem alguma coisa que não está nela, a fim de
provar os seus pressupostos sinergistas. Eles fazem esse acréscimo, não
porque a linguagem o exige, mas porque o sistema teológico deles requer.
Eles lêem a noção de uma fé prevista dentro do verso e, então, apelam para
ela num esforço de provar que a Predestinação foi baseada sobre eventos
previstos. Dessa forma, os indivíduos particulares são ditos ser salvos
(porque Deus quis a salvação de todos), mas porque eles mesmos desejaram
ser salvos. Portanto, em última instância, a Predestinação para a vida,
depende da fé futura deles, e não da graça amorosa de Deus. A fé futura é
tida como a base da Predestinação deles, não o resultado dela. Eles dizem
que Deus 'conheceu de antemão os que creriam', por isso os predestinou,
justificou, etc.
Interpretação Calvinista de Rm 8.29.

A outra classe de comentadores, a dos Calvinistas, entre os quais se


encontram Murray, Hodge e Hendricksen, rejeita o ponto de vista Arminiano,
sobre duas bases: primeira, porque a interpretação dos Arminianos não está
em harmonia com a linguagem de Paulo; segundo, porque não está em
harmonia com o sistema de doutrina ensinado no restante da Escritura.
Os Calvinistas sustentam que o texto ensina que Deus 'colocou o seu
coração sobre' certos indivíduos; a estes Ele predestinou ou os marcou para
serem salvos. Observe que o texto não diz que Deus 'sabia alguma coisa a
respeito de indivíduos particulares'(isto é, que eles fariam isto ou aquilo),
mas afirma que Deus 'conhecia os próprios indivíduos' – a quem Ele
predestinou para torná-los iguais ao Seu Filho. A palavra 'conhecer de
antemão' como usada aqui é equivalente a 'amados de antemão' – aqueles
que foram objetos do amor de Deus, Ele destinou antecipadamente para a
salvação.
De acordo com o uso hebraístico da palavra 'conhecer, já visto, não há
necessidade alguma de se acrescentar qualquer noção qualificante. Não
somente é desnecessário como impróprio. Contra este artifício Arminiano,
John Murray diz:
Deveria ser observado que o texto diz "aos que de antemão conheceu"; "aos" é o
objeto do verbo e não há nenhuma adição qualificante. Isto, de si mesmo, mostra
que, a menos que haja alguma outra razão forte, a expressão "aos que de antemão
conheceu" contém dentro de si mesma a diferenciação que está pressuposta. Se o
apóstolo tivesse em mente algum "adjunto qualificante" ele teria que ter sido
simples para supri-lo. Visto que ele não acrescenta nada, somos forçados a
perguntar se os termos reais que ele usa podem expressar a diferenciação
implicada. O uso da Escritura proporciona uma resposta afirmativa. Embora o
termo 'presciência' seja raramente usado no N.T., é completamente indefensável
ignorar o significado tão freqüentemente dado à palavra 'conhecer' no uso da
Escritura... não há razão porque esta importância da palavra 'conhecer' não deva
ser aplicada à 'presciência' nesta passagem, como também em 11.2, onde ela
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 60

também ocorre na mesma espécie de construção, e onde o pensamento da eleição


está patentemente presente (cf. 11.5-6). Quando esta importância é devidamente
apreciada, então não há nenhuma razão para adicionar qualquer noção
qualificante e 'aos que de antemão conheceu' é visto como contendo em si mesma
o elemento diferenciador requerido. Ele significa que 'aqueles por quem ele teve
uma consideração especial' ou 'aqueles a quem ele conheceu desde a eternidade
com afeição e prazer distintos' e é virtualmente equivalente a 'aos que amou de
antemão'175.
Esta interpretação está de acordo com a ordo salutis mencionada em
Rm 8.30. Paulo estabelece ali uma cadeia que mostra Deus fazendo tudo,
terminando na glorificação do homem. A idéia da intuito fidei 176 não se
encaixa neste esquema paulino. Ela está em desacordo com a ação
determinativa claramente afirmada nesta passagem. O modo de uma pessoa
interpretar a 'presciência' vai também determinar que espécie de Deus ela
tem. Murray ainda diz:
"Não é a previsão da diferença, mas a presciência que faz a diferença existir; não
é a previsão que reconhece a existência, mas a presciência que determina a
existência. É o amor soberano que faz distinção"177.
Hodge diz que o significado literal da palavra 'presciência' não
proporciona nenhum sentido adequado 178 nesta passagem. A idéia de fé
prevista levanta alguns problemas sérios que deveríamos mencionar aqui:
a. Ela é totalmente oposta ao ensino geral da Escritura que ensina a
gratuidade da salvação de Deus;
b. Ela faz com que a base de nosso chamamento e eleição esteja em nós
mesmos. Se os Arminianos fazem uma distinção entre fé (do ponto de
vista deles) e obras, isso não ajuda muito, porque fé é uma obra ou um
ato, e é um dom de Deus, o resultado ou efeito da eleição, e, portanto,
não é o fundamento.
O texto diz "aos que conheceu de antemão, a esses predestinou". Hodge
observa que "a Predestinação segue, e é baseada na presciência. A
presciência, portanto, expressa o ato de cognição ou precongnição... que
envolve a idéia de seleção"179. Portanto, a idéia de presciência, segundo o
ensino geral das Escrituras, é o amor de antemão de Deus por Seu povo. Por
causa desse amor predestinador de Deus, as pessoas vem ao conhecimento
salvador de Deus, sendo conformes à imagem de Jesus Cristo.
A presciência mencionada em Rm 8.29 "refere-se ao prazer ativo divino.
Ela indica que, em sua própria soberana boa vontade, Deus colocou o Seu
amor sobre certos indivíduos, muitos ainda por nascer, alegremente

175 John Murray, Thje Epistles to the Romans, vol. 1, p. 316.318.


176 Intuito fidei (em vista da fé) é uma expressão usada nos círculos luteranos, quando da controvérsia
sobre a Predestinação no século passado, no Sínodo de Missouri. Ela significa que Deus elegeu as
pessoas vendo a fé delas. A fé futura das pessoas tornou-se a base pela qual Deus as elegia. Nos
círculos luteranos conservadores, lutou-se contra qualquer coisa relacionada à salvação como
contingente da decisão humana, no que estavam absolutamente certos.
177 Murray, p. 318.
178 Charles Hodge, Commentary to the Epistle to the Romans, (New York, A.C. Armstrong and Son,

1906), p. 446.
179 Hodge, Op.Cit. p. 447.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 61

reconheceu-os como Seus, elegeu-os para vida e glória eternas". 180 Esta
interpretação que Paulo dá do seu ensino sobre a predestinação, encaixa-se
bem na mentalidade hebraica, onde o verbo deve ser entendido num sentido
de amor, sendo, pois, o amor, a base da eleição divina.
As perguntas levantadas pelas duas interpretações 181 opostas são
estas: "Deus olhou através do tempo e viu que certos indivíduos creriam e,
assim, os predestinou para a salvação sobre a base desta fé prevista"? ou
"Deus colocou Seu coração sobre certos indivíduos e, por causa do Seu amor
por eles, os predestinou para que eles fossem chamados e recebessem a fé
em Cristo pelo Espírito Santo e, assim, fossem salvos"? – Em outras
palavras, a fé do indivíduo é a causa ou o efeito da predestinação de Deus?
A resposta óbvia está nas análises feitas nos versos acima sobre o
significado hebraístico do verbo 'conhecer'. Portanto, a fé é o resultado, não a
causa do ato predestinador de Deus. Contudo, a causa do ato eletivo de
Deus é o seu amor soberano.
Quando a Bíblia fala de Deus conhecendo indivíduos particulares, ela
freqüentemente quer dizer que Deus tem consideração especial por eles, e
que eles são objetos de Sua afeição e de Seu amor.
Essa conclusão sobre o texto de Rm 8.29 combina exatamente com
outros textos da Escritura que ensinam que a base da obra eletiva de Deus
foi o Seu amor pelo pecador. Veja alguns textos que evidenciam essa
encantadora verdade. Deus não predestina simplesmente porque Ele é
soberano, mas porque Ele ama, e o seu amor é que é soberano182.
A escolha de Deus para a salvação não é simplesmente uma resolução
da sua vontade soberana, mas é a demonstração de Seu amor por criaturas
depravadas. É absolutamente verdade que Ele faz todas as coisas 'segundo o
conselho da Sua vontade', mas quando escolhe as pessoas para a vida
eterna, é porque Ele coloca o Seu coração sobre elas. Hendricksen observa
que
"Em Seu amor ilimitado, motivado por nada fora de si mesmo, Ele separou-os
para serem Seus próprios filhos... Quando o Pai escolheu as pessoas para si,
decidindo adotá-las como Seus próprios filhos, foi motivado pelo amor somente.
Por conseguinte, o que Ele fez foi o resultado não de uma absoluta determinação,
mas de um prazer supremo"183.
Observe tanto no texto de Ef 1.4-5 como em 2 Ts 2.13 que a razão
predestinadora está no grande amor de Deus.
Deus é soberano no Seu amor eletivo. Quando é dito que Ele é soberano
em sua eleição, devemos entender que Ele é soberano na escolha daqueles a
quem Ele ama. Esta espécie de amor de eleição, Ele não tem por todas as
pessoas indistintamente. A razão do Seu amor está n'Ele próprio, nunca nas
pessoas a quem amou, porque não há nada nelas que O leve a amá-las. O
que elas, na verdade fazem juz, é a condenação porque são pecadoras. Nada
nelas atrai o amor de Deus por elas. A única resposta é que a razão do Seu

180 William Hendricksen, New Testament Commentary – Romans 1-8, Grand Rapid,s Baker, 1980, p. 282.
181 Arminiana e Calvinista.
182 Ef 1.4-5.
183 William Hendricksen, New Testament Commentary, Ephesians, (Grand Rapids, Baker, 1967), p. 79.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 62

amor está dentro d'Ele próprio 184 . E, soberanamente, Ele resolveu, de


antemão, colocar o Seu amor em algumas pessoas, e destiná-las à vida
eterna.
A eleição não é o resultado da obra de um Deus tirano, mas é o
resultado de Seu amor. É neste sentido que Ele é soberano da eleição. A
soberania de Deus é mostrada na manifestação do Seu amor eletivo. Este
assunto desperta forte oposição dentro das Igrejas por causa do conceito
errôneo do amor de Deus que eles receberam em sua educação na fé185.
Bendito seja Deus que fez com que Seu amor gracioso fosse a causa da
nossa eleição. Se não nos amasse, até hoje estaríamos com a massa dos
perdidos, ainda mergulhados nos nossos pecados! É por isso que a eleição é
chamada "eleição da graça"!

A finalidade da eleição divina.

Finalidade primeira da eleição.

1. Proporcionar salvação186.

Por salvação aqui entendemos todo o processo de Deus para que o


homem seja remido de sua condição de pecado e miséria. Deus, desde a
eternidade, destinou pessoas para que fossem objeto de Seu amor salvador.
A finalidade da eleição aqui neste texto é a salvação e os meios dela são a
santificação do Espírito e fé na verdade. O período da eleição mencionado
neste verso é 'desde o princípio'.
2. Conceder fé187.

A finalidade da eleição divina é também que as pessoas objeto da


eleição sejam capazes de se apossar da salvação. O meio pelo qual os
homens se apossam da redenção é a fé em Jesus Cristo. Isso é produto
direto da eleição divina. Só crêem os que são eleitos. Um outro texto que
evidencia esta verdade é o de Tt 1.1.
3. Dar vida eterna aos pecadores188.

A vida eterna é, na Escritura, vista como sinônimo de salvação, embora


teologicamente podemos fazer distinção entre elas189. De qualquer modo, os

184 Analisar o texto de Rm 9.11-13 onde a eleição divina está intimamente relacionada com o Seu amor
soberano por Jacó.
185 A maioria dos membros de nossas Igrejas cresceu com a idéia de um amor salvador universal, isto

é, um amor que Deus dá a todos indistinta e igualmente. Segundo a teologia Arminiana, a teologia
Calvinista está totalmente contra a Escritura.
186 2 Ts 2.13.
187 At 13.48.
188 At 13.48.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 63

homens recebem a vida eterna em virtude de uma ordenação antecipada de


Deus. Desde antes da fundação do mundo Deus destina alguns homens
para que desfrutem da vida eterna, e todos estes vêm, certamente, a crer em
Jesus Cristo.
4. Colocar-nos na família de Deus190.

A adoção é um dos aspectos legais da salvação. Deus nos coloca na


posição de Seus filhos, sendo co-irmãos de Jesus Cristo. A beleza disto é que
a adoção é o resultado da eleição divina. Poucos crentes pensam nesta
beleza desta finalidade da eleição. Eles só pensam na 'tirania' de Deus
quando estudam a Predestinação, esquecendo-se de que Deus resolveu ser
Pai daqueles que Ele adota. Isso é eleição da graça!
Somente os crentes como indivíduos são colocados na posição de filhos.
Portanto, a eleição para a adoção também prova o fato da eleição ser
individual ou pessoal.
5. Fazer-nos obedientes191.

Faz parte do processo de salvação a obediência do pecador. Ninguém


em desobediência é salvo, pois a obediência é parte da santificação. Somos
chamados pelo mesmo Pedro de 'filhos da obediência192'. E essa obediência é
possível porque fomos destinados de antemão para ela. Somos eleitos para a
obediência. É altamente encorajador saber que ao obedecermos estamos
cumprindo o decreto eletivo de Deus, pois esta é a finalidade do decreto da
eleição.
6. Santificar-nos193.

É altamente confortador que a eleição seja para a santificação, pois esta


é parte do grande processo da salvação. Não há completação da salvação
sem a santificação, e o amor eletivo de Deus é para que sejamos
santificados! A finalidade da eleição é para que sejamos irrepreensíveis,
pessoas contra quem ninguém tenha indignidade alguma que dizer. Este é o
alvo da eleição para aqueles a quem Deus escolheu.
7. Sermos entregues a Cristo Jesus.

Deus elegeu-nos para que fossemos entregues a Jesus Cristo. Isto quer
dizer que quando Deus nos elegeu para a salvação, Ele teve que nos entregar
a Cristo para que ele fizesse uma obra redentora por nós e em nosso lugar.

189 A salvação tem a ver com obediência passiva de Cristo, que é o sofrimento da morte, enquanto que
a vida eterna tem a ver com a obediência ativa, que consiste na obediência de todas as prescrições da
lei como regra de vida. A obediência ativa é necessária em virtude da desobediência e da falha de
Adão em conseguir a vida eterna para si e para os seus descendentes. A obediência passiva é a
conseqüência do fato de Adão ter desobedecido as leis de Deus. Para que pudesse ser aceito como
substituto dos homens na cruz, Jesus teve que obedecer primeiro a todos os princípios quebrados por
Adão.
190 Ef 1.5.
191 1 Pe 1.1.
192 1 Pe 1.14.
193 Ef 1.4.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 64

Pedro, na sua carta fala de uma maneira inequívoca, mas que nem sempre é
percebido pelos que estudam esse assunto194.
Este texto nos indica que, ao eleger-nos, Deus nos entregou a Cristo
para que este morresse, derramando o Seu sangue, a fim de nos lavar e
purificar, remindo-nos de nossos pecados. Por essa razão, na Sua oração
sacerdotal, várias vezes Jesus diz 'daqueles que o Pai havia entregue a
Ele'195.
8. Tornar-nos parecidos com Jesus.

Pelo fato de termos sido entregues a Cristo Jesus pelo Pai, lavados pelo
Seu sangue, podemos ter a convicção de que a finalidade da eleição é
tornar-nos parecidos com Jesus, pois Ele nos purifica e nos torna como Ele é
na sua humanidade. A finalidade da eleição é restaurar o homem à sua
condição primeira, de santidade, igual àquela que Jesus apresentou quando
da sua encarnação. Deus restaura-nos a Sua imagem, para que sejamos
maduros, parecidos com o Filho d'Ele quanto à Sua humanidade196.
Este é o alvo de Deus na preparação dos Seus filhos: torná-los
semelhantes ao Seu Único Filho, o irmão mais velho deles. É extremamente
consolador pensar que um dia seremos feitos à imagem daquele que é nosso
salvador! E isto graças à eleição de Deus!

Finalidade última da eleição.

1. A glória de Deus197.

Deus é glorificado tanto nos que são reprovados como nos que são
objetos de sua misericórdia. Esses são os eleitos. E na eleição deles Ele é
glorificado!

194 1 Pe 1.1.
195 Jo 17.1-11.
196 Rm 8.29.
197 Rm 9.22-23.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 65

2. A glória da graça de Deus198!

Não somente a pessoa de Deus é glorificada, mas o seu atributo


chamado graça é glorificado. A graça de Deus é gloriosa, cheia do esplendor
que caracteriza o próprio Deus. A doutrina da eleição torna ainda mais
majestosa a graça de Deus, porque nela a graça é maravilhosamente
mostrada!
3. O louvor da glória de Deus199!

Na eleição Deus não somente promove a glorificação de Sua pessoa e de


Sua graça, mas também Deus quer que a glória seja louvada, cantada e
testemunhada pelos homens. Todos nós, os que de antemão esperamos em
Cristo, isto é, os que desde a eternidade temos sido predestinados para a
vida eterna, devemos servir, viver e proceder para que a glória de Deus seja
louvada!

Relação da doutrina da eleição com outras doutrinas.

É uma prática extremamente ruim dissociar a eleição de outras


doutrinas relacionadas à condição do homem e de outros aspectos da
doutrina da salvação. Muitos erros seriam evitados se todas as doutrinas
fossem apresentadas interrelacionadamente, como um corpo consistente e
completo.
"Se ela (a doutrina da eleição) está para ser guardada em seu equilíbrio bíblico
próprio e entendida corretamente, o ato da eleição do Pai deve ser relacionado
com a obra redentora do Filho, que deu-se a Si mesmo para salvar os eleitos, e
com a obra renovadora do Espírito Santo, que traz o eleito à fé em Cristo"200.
O ensino sobre a eleição é freqüentemente um dos mais odiados em
muitos círculos da Igreja cristã porque ele tem sido apresentado isolado das
doutrinas da depravação humana e das outras doutrinas relacionadas à
Ordo Salutis. Por essa razão, esta doutrina é freqüentemente apresentada
distorcidamente em redutos Arminianos e, inclusive, em alguns círculos
reconhecidos como reformados.
A ordem da relação entre a doutrina da eleição e as outras doutrinas,
neste trabalho, segue a ordem apresentada na primeira parte que tratou da
teologia libertária do Arminianismo.

1. Eleição e fé no Calvinismo.

Fé é o fruto da eleição, não a causa dela. At 13.48 diz que os homens


foram destinados para serem crentes, não que eles fossem eleitos porque
eles haveriam de crer. Dabney diz que

198 Ef 1.5-6.
199 Ef 1.11-12.
200 Steele, Op.Cit. p. 31.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 66

"A fé do crente, a penitência, e a perseverança em santidade nunca poderiam ser,


dessa forma, previstas por Deus, como sendo uma condição movendo-O a
determinar conceder a salvação para o crente, porque nenhum filho de Adão
jamais tem qualquer verdadeira fé, exceto como fruto da graça de Deus
concedida na eleição"201.
Os eleitos são os únicos que desfrutam pessoalmente os benefícios da
graça divina. Todas as graças espirituais 'cooperam para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o Seu propósito' 202 .
Dabney ainda diz:
"A verdadeira fé, penitência e perseverança em santidade que os Arminianos
representam como condições movendo Deus a eleger o homem, a Escritura
apresenta como dons da graça de Deus infundidos por Ele no eleito, como
conseqüências da sua eleição"203.
A Escritura assevera enfaticamente que não há nenhuma bondade no
homem que leva Deus a escolhê-lo para a salvação. Fé e boas obras são o
resultado, não a causa da eleição. Paulo apresentou esta verdade com tal
ênfase que causou revolta nas mentes de seus contemporâneos. Observando
a reação nas suas mentes, Paulo escreveu Rm 9.9-18.
Na sua carta aos Tessalonicenses Paulo estabeleceu a relação entre
eleição, pregação do evangelho e fé204.
Tiago também foi claro quando escreveu a respeito da relação entre
eleição e fé205. Portanto, a fé é a conseqüência e não a causa da eleição.

2. Eleição e presciência no Calvinismo.

A grande confusão entre eleição e presciência é que a palavra


presciência é usada somente em um dos seus dois sentidos, isto é, a idéia de
que Deus tem uma noção prévia daquilo que vai acontecer no futuro. A
teologia Arminiana usualmente diz que Deus elege as pessoas porque Ele
sabe de antemão o que elas farão no futuro. Este é o significado de
presciência para eles. Não é incorreto dizer que Ele conhece cada ação que
está para acontecer. Não há nenhum problema com esse conceito. Dentro da
nossa perspectiva humana, podemos dizer que Deus conhece o passado, o
presente e tudo o que vai acontecer no futuro. Daí o nosso entendimento de
profecias.
A Fé Reformada crê que Deus tem esta espécie de conhecimento,
porque Ele é onisciente e sabe todas as coisas de antemão. O grande
problema é dizer que a eleição de Deus é baseada numa fé prevista, isto é,
que Deus elegeu aqueles que Ele viu antecipadamente que haveriam de crer.
É de extrema importância observar que cada vez em que a Escritura diz
que Deus conhece de antemão, ou que Deus tem presciência, ela não se

201 Robert Dabney, Lectures in Systematic Theology, (Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1975
edition) p. 237.
202 Rm 8.29.
203 Dabney, Op.Cit., p. 237 (ver Ef 2.8-10; At 5.31 e 2 Tm 2.25-26).
204 1 Ts 1.4-5 e 2 Ts 2.13-14.
205 Tg 2.5.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 67

refere a atos que os homens haveriam de apresentar. A Escritura refere-se a


um conhecimento antecipado dos próprios homens, não do que eles estariam
para fazer.
O verbo grego proe/gnw, que é traduzido como 'pré-conhecer' ou
'conhecer de antemão'
"Ocorre sete vezes no Novo Testamento grego. Duas vezes ele se refere a um
conhecimento prévio da parte do homem: em At 26.5 ao conhecimento prévio de
Paulo dos judeus, e em 2 Pe 3.17 ao conhecimento prévio do cristão (sendo
prevenidos de antemão) dos insubordinados que haveriam de vir nos últimos
dias. Cinco vezes se refere ao conhecimento prévio que Deus tem: três delas são
usadas como um verbo206, e duas como um substantivo207".
O que é muito importante saber é isto: cada vez que este verbo ou
substantivo é usado, ele significa muito mais do que mero conhecimento
antecipado de eventos futuros. Seria tolice traduzi-lo simplesmente como um
conhecimento de futuros eventos. Na verdade, não há nenhuma noção de
pré-conhecimento de eventos futuros na mente de Deus. A noção de
presciência se encaixa bem em nossa mente. Contudo, como a Escritura foi
escrita para seres humanos, então, temos que tratar de um
pré-conhecimento de Deus.
A presciência de Deus, como foi dito, é muito mais do que Deus
prevendo eventos. Nos exemplos dos textos dados acima, as Escrituras
dizem que Deus pré-conhece pessoas, não o que elas haveriam de fazer no
futuro.
O texto mais importante neste assunto é Rm 8.29. O verbo 'conheceu de
antemão', é interpretado pelos Arminianos, como Godet, por exemplo, como
Deus pré-conhecendo o cumprimento das condições da salvação dos
homens, como a fé 208 . Os Calvinistas devem rejeitar essa interpretação
porque ela não faz justiça ao ensino da Escritura. Sabemos que
"Deus sempre possuiu um conhecimento perfeito de todas as criaturas e de todos
os eventos. Nunca houve um tempo quando qualquer coisa passada, presente ou
futura que não tenha sido plenamente conhecida por Ele. Mas não é ao Seu
conhecimento dos eventos futuros (o que as pessoas fariam) que o texto se refere
em Rm 8.29-30, porque Paulo afirma claramente que aqueles a quem Ele
conheceu de antemão Ele predestinou, Ele chamou, Ele justificou, etc. Visto que
todos os homens não são predestinados, chamados e justificados, segue-se que
todos os homens não foram pré-conhecidos por Deus no sentido falado no verso
29"209.
Portanto, não há a doutrina da intuitu fidei nas páginas da Bíblia. Essa
doutrina não está em harmonia com o ensino geral da Palavra de Deus.
Steele ainda diz:
'Observe que o texto não diz que Deus sabia algo a respeito de indivíduos
particulares (que eles fariam isto ou aquilo), mas ele afirma que Deus conheceu

206 Rm 8.29; 11.2 e 1 Pe 1.2.


207 At 2.23 e 1 Pe 1.20.
208 Godet, Op.Cit. p. 325.
209 Steele, Op.Cit. p. 86.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 68

os próprios indivíduos – aqueles a quem Ele conheceu Ele predestinou para


serem iguais a Jesus Cristo'210.
A palavra pré-conhecer não deve ser interpretada como fazem os
Arminianos, mas deve ser entendida como equivalente a 'amar de antemão',
como já vimos em argumentação anterior.

3. Eleição e soberania no Calvinismo.

A teologia Arminiana muda o foco da soberania de Deus na eleição.


Como já foi argumentado anteriormente, os Arminianos crêem na soberania
de Deus, mas esta soberania nada tem a ver com o Seu amor soberano para
com Seu povo. A soberania de Deus é relacionada ao método que Ele
escolheu para lidar com a salvação do pecador. O método é a Sua
presciência. 'A presciência de Deus é o meio pelo qual Ele tem determinado
quais indivíduos serão conformados à imagem do Seu Filho'211. A soberania
de Deus é o pré-conhecimento que Deus tem, de acordo com a teologia
Arminiana, porque Deus faz todas as coisas levando em conta a Sua
presciência. Algo foi revertido. O entendimento correto da presciência de
Deus explica o engano Arminiano.
A soberania de Deus está relacionada à administração do Seu amor
pelos pecadores. O Seu amor eletivo é que é soberano, porque Ele é a causa
última de Deus ter eleito o pecador. A soberania está no Seu amor, antes que
em outra coisa qualquer. Eu estou dizendo que Ele escolhe a quem Ele ama.
Esta espécie de amor eletivo Ele não tem por todas as pessoas sem exceção.
Todas as pessoas merecem a manifestação da Sua ira, porque todos eles, por
natureza, são filhos da ira 212 . Nada neles atrai Deus ao amor. A única
resposta é que a razão para o Seu amor está dentro de
Si próprio. Ele decidiu colocar o Seu coração em alguns deles e designá-los
para a vida eterna. Esta é a soberania da eleição.
A eleição não é o resultado de um Deus tirânico, mas o produto de Seu
amor. É nesse sentido que a eleição é soberana. A soberania de Deus é
mostrada na manifestação do Seu amor. Isto é algo desconhecido de muitas
pessoas. Por desconhecerem este aspecto soberano do amor eletivo é que as
pessoas cometem muitas injustiças contra esta maravilhosa doutrina. A
eleição do ponto de vista Arminiano não faz com que Deus tenha um amor
de eleição, porque Deus ama cada pessoa no mundo igualmente 213 , e, de

210 Steele, Op.Cit. p. 85.


211 Jack W. Cottrell, "Conditional Election", em Grace Unlimited, Op.Cit. p. 59.
212 Ef 2.3.
213 é de grande importância fazermos algumas observações: se esse amor eletivo fosse para cada

pessoa sem exceção, isto é, para cada pecador no mundo em todas as épocas, por que Jesus disse aos
Seus discípulos: "Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele
que me ama, será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele"... e "Se alguém
me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para Ele e faremos nele morada" (Jo
14.21-23). A mesma verdade qualquer pessoa pode encontrar em Pv 8.17 – "Eu amo os que me amam;
os que me procuram me acham". Contrariamente, está escrito em Sl 5.5 – "Os arrogantes não
permanecerão à tua vista; odeias a todos os que praticam iniquidade". O salmista não diz nesse texto
que Deus odeia a iniquidade, embora isso seja verdade, mas que Deus odeia os que praticam a
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 69

acordo com a teologia Arminiana, a Teologia Calvinista erra o alvo nesse


assunto.
Mas, no final de contas,
"O exercício do amor de Deus deve ser trazido de volta à Sua soberania, ou, de
outra forma, Ele haveria de amar como regra; e se Ele amou como regra, então
Ele está debaixo da lei do amor, e se Ele está debaixo da lei do amor, então, Ele
não é supremo, mas Ele próprio está regrado pela lei. 'Mas', alguém perguntaria,
'certamente você não nega que Deus ama a família humana inteira'? Nós
replicamos: está escrito, 'Eu amei Jacó e odiei a Esaú' (Rm 9.13). se, então, Deus
amou Jacó e odiou a Esaú antes deles serem nascidos, ou terem praticado o bem
ou o mal, então a razão de Seu amor não estava neles, mas n'Ele"214.
A eleição de Deus está amarrada ao Seu amor soberano. Nunca deveria
ser esquecido que a eleição está ligada ao amor de Deus.

4. Eleição e graça no Calvinismo.

Como já foi mencionado em capítulos anteriores, a eleição é um produto


da graça de Deus, assim como a graça está intimamente relacionada ao Seu
amor. Cada doutrina cristã ligada à salvação do pecador está presa à idéia
de graça. A salvação como um processo todo é pura graça215. O Evangelho é
uma oferta graciosa aos pecadores216; a implantação da vida na regeneração
é um produto da graça de Deus217; a vocação eficaz é uma obra da pura
graça218; a justificação é o resultado da graça de Deus219; a remissão dos
pecados vem da graça de Deus220; a fé é a manifestação da graça de Deus221;
a libertação dos pecados vem da graça de Deus222; o ministério da Palavra
está debaixo da graça de Deus223; os dons espirituais são dados segundo a
graça de Deus224; os ministérios todos são produto da graça de Deus na vida

iniquidade. Jo 3.36 diz "que aquele que crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém
rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus". A pergunta que se faz
é: pode Deus amar aqueles que estão debaixo da Sua ira? Está absolutamente evidente que todos os
'justificados em Rm 8.33 são aqueles que recebem a manifestação do amor de Deus que está em Cristo
Jesus" (Rm 8.39). Este amor de Deus é apenas para aqueles que Ele castiga e disciplina, isto é, os que
Ele chama para serem Seus filhos (Hb 12.6). não é sem razão que Deus disse que Seu amor é soberano:
"Eu amei a Jacó, porém odiei a Esaú"(Rm 9.13). Se Deus ama todos os homens sem exceção, aqueles
textos que mostram a limitação não fazem sentido algum. Não é possível Deus atirar os Seus amados
no lago de fogo.
214214 A.W. Pink, The sovereignty of God, Grand Rapids, Baker Book House, 1977, p. 25.
215 At 15.11; Ef 2.5.
216 At 20.24, 32; 14.3.
217 Jo 1.12-13.
218 Gl 1.15; 2 Tm 1.9.
219 Rm 3.24; 5.18; Tt 3.7.
220 Ef 1.7.
221 Ef 2.8; At 18.27; Rm 4.16; Fp 1.29.
222 Rm 6.14.
223 At 14.26-27; 15.40.
224 Rm 12.6; 1 Co 3.10; Ef 3.7-8; 4.7.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 70

dos homens 225 ; o consolo espiritual e salvador é produto da graça de


Deus226; a vida dos homens é preservada por graça227.
Ora, se todas as coisas relacionadas à salvação do pecador e sua vida
em geral são o resultado da graça de Deus, por que, então, a eleição, que é o
primeiro passo na salvação do homem, deveria ser diferente? Por esta razão,
Paulo combate a idéia de que Deus escolhe porque Ele sabia o que o homem
faria no futuro228. A eleição é graça pura, porque Deus é o 'Deus de toda a
graça'229.

5. Eleição e justiça no Calvinismo.

Há algumas objeções à doutrina da eleição incondicional no


Arminianismo, mas a principal objeção é a de que esta doutrina torna Deus
injusto. A injustiça de Deus, segundo o Arminianismo refere-se ao fato de
Deus dar a pessoas iguais coisas desiguais. Eles acusam a doutrina
Calvinista de tornar Deus parcial na distribuição da salvação.
Primeiramente, o conceito Arminiano de justiça tem que ser reavaliado.
Justiça não diz respeito ao fato de Deus dar salvação igualmente para todas
as pessoas. A salvação não é matéria da justiça de Deus, mas de Sua graça.
Na manifestação da Sua graça, Ele é soberano, não sendo devedor de
ninguém. Justiça sempre pressupõe dívida, mas Deus não tem qualquer
débito perante os homens, nem estes são credores de Deus. O decreto da
eleição incondicional não é uma matéria de certo ou errado, mas de livre
favor230. Se Ele concede a Sua graça eletiva a alguns e não a outros, não há
nada errado com Ele, porque Ele não está endividado com ninguém para ter
que dar alguma coisa.
Segundo, Deus não está debaixo de qualquer obrigação de mostrar
misericórdia a quem quer que seja, e a manifestação do Seu amor de eleição
a cada pessoa sem exceção.
"Contudo, dever-se-ia ter em mente que se Deus não houvesse graciosamente
escolhido pessoas para si próprio e soberanamente determinado proporcionar
salvação para elas, e aplicá-la a elas, ninguém seria salvo. O fato de que Ele fez
isto para alguns e exclui outros, não é de modo algum injustiça para o último
grupo, a menos que se sustenha que Deus esteja debaixo da obrigação de
providenciar salvação para pecadores – uma posição que a Bíblia rejeita
totalmente"231.
Terceiro, os Arminianos dizem que Deus ama a todos com a mesma
intensidade, o que indica a Sua imparcialidade. Deus não é injusto por
causa desse seu amor por todos, diz o Arminiano. Segundo essa doutrina,
Deus fica debaixo da obrigação de amar todos, porque não há nenhuma

225 Ef 3.2-8.
226 2 Ts 2.16-17.
227 At 27.24.
228 Rm 11.5-6.
229 1 Pe 5.10.
230 Mt 20.15-16.
231 Steele, Op.Cit. p. 31.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 71

parcialidade em Deus. Essa matéria deveria ser reavaliada. Deus seria


parcial se tivesse débito para com os homens.
"Se Deus devesse perdão e salvação à toda raça, seria parcialidade se Ele salvasse
alguns e não outros. Parcialidade é injustiça. Um pai é parcial e injusto, se ele
desconsidera os direitos iguais e as reivindicações de todos os seus filhos. Um
devedor é parcial e injusto, se no pagamento de seus credores ele favorece alguns
às expensas de outros. Nestes exemplos, um grupo tem o direito de reclamar
sobre o outro. Mas é impossível para Deus mostrar parcialidade na concessão da
salvação do pecado, porque o pecador não tem qualquer direito ou reivindicação
a fazer"232.
Sua graça eletiva e Sua misericórdia Ele distribui a quem Ele quer. Isto
não é matéria e justiça, mas de graça233. Se é pela graça, não é um debito. E
se não é debito, não há injustiça.

6. Eleição e depravação no Calvinismo.

O assunto da depravação total do homem é o foco principal da crítica


Arminiana no assunto da antropologia. A razão dessa preocupação dos
Arminianos na sua crítica é destruir o conceito da depravação total do
homem porque, se conseguirem fazê-lo, eles também são capazes de destruir
a doutrina da eleição incondicional. Ambas as doutrinas, depravação total e
eleição incondicional, estão absolutamente relacionadas na Teologia
Reformada, como depravação parcial e eleição condicional estão entrelaçadas
na teologia Arminiana. Se os Arminianos aceitam a doutrina da depravação
total do homem, eles também tem de aceitar a doutrina da eleição
incondicional. Ambas as teologias são muito consistentes em sua
apresentação das doutrinas, mas ambas estão em lados absolutamente
opostos.
Os Arminianos estão absolutamente certos quando eles dizem que a
idéia reformada de eleição está atada ao conceito reformado do pecado.
Ninguém pode separar um do outro. Se apresenta-se a doutrina da eleição
sem apresentar primeiro a visão correta do pecado, a primeira será
apresentada errônea e distorcidamente.
Numa reação ao conceito Arminiano, o Sínodo de Dort expressou a sua
doutrina da eleição, levando em consideração o homem como pecador234. A
eleição de Deus sempre ensina que o homem é incapaz de apresentar coisas
espiritualmente boas. O homem é tão corrupto que necessita de uma obra
especial da graça para tirá-lo de sua pecaminosidade. Deus, na eternidade,
viu todos os homens no estado de depravação, isto é, culpados e corruptos
com incapacidade moral. Então, Ele decidiu resolver o problema de alguns

232 W.G.T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. 1, New York, Charles Scribner's Sons, 1889, p. 425.
233 Rm 9.14-15.
234 O artigo 7 do primeiro cabeçalho da doutrina reza: "A Eleição é o propósito imutável de Deus por

meio do qual, antes da fundação do mundo, de toda a raça humana, que havia caído por sua própria
falta de sua integridade original, em pecado e ruína, de acordo com o seu livre beneplácito, e por mera
graça, Ele escolheu em Cristo para a salvação um certo numero especifico de homens, nem melhores
nem piores que outros, mas eles todos envolvidos em uma miséria comum". (da tradução de Anthony
Hoekema, em Calvin Theological Journal, vol. 3, 1968), p. 136-137.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 72

deles, elegendo-os para a vida eterna. Esta conclusão pode ser sacada do
ensino da Escritura de uma maneira muito clara:
a. O pecador é eleito para a salvação 235 . Salvação pressupõe perdição.
Aqueles que foram eleitos estavam perdidos em seus delitos e pecados, da
mesma forma que não foram eleitos. Eles todos mereciam condenação,
mas Deus decidiu eleger alguns deles para a salvação, Deus escolheu as
coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios236.
A eleição condicional dos Arminianos, que pressupõe apenas a
depravação parcial, torna o homem orgulhoso porque Ele não está
totalmente dependente da eleição graciosa de Deus. Mas a salvação, segundo
a Escritura, é somente para perdidos, para os sem esperança, para os
miseráveis. Por essa razão Jesus veio para 'buscar e salvar o que se havia
perdido'237.
b. O pecador é eleito para ser santo e inculpável 238 . Santidade e
inculpabilidade pressupõem corrupção em pecado. Ninguém pode ser
eleito para a santidade se eles já tivessem santidade. A santidade é o
resultado final da eleição. Hendricksen faz a seguinte observação, contra
a teologia Arminiana:
"É digno de nota especial que Paulo não diga: 'O Pai elegeu-nos porque Ele
previu que haveríamos de ser santos'... porque eleição não é considerada aos
méritos previstos no homem ou mesmo à sua fé prevista. Ela não é a raiz da
salvação, nem o seu fruto"239.
Deus viu todos os homens em corrupção e escolheu alguns da raça
caída para serem objetos do Seu imerecido favor, a fim de que fossem santos
e inculpáveis.
Portanto, a doutrina da depravação tem de ser levada em conta quando
se estuda a doutrina da eleição.

7. Eleição e responsabilidade humana no Calvinismo.

Cottrell, mostrando a sua teologia libertária, diz: "Somente a eleição


condicional preserva a integridade da liberdade da vontade e, assim, a
responsabilidade humana, sem a qual o sistema moral é impossível"240. Em
sua asserção, somente o homem tem o direito de escolher, não Deus. A
liberdade da vontade no homem tem que ser preservada, não a de Deus.
A eleição condicional, em última instância, é o homem escolhendo
Deus, e não Deus escolhendo o homem. Os Arminianos fazem tudo o que
podem para preservar a liberdade da vontade, a fim de dar o senso de
responsabilidade humana à doutrina da eleição. Mas Jesus Cristo foi
absolutamente claro quando Ele disse aos seus discípulos: "Não fostes vós

235 2 Ts 2.13; 1 Ts 5.9.


236 1 Co 1.27-29.
237 Lc 19.10.
238 Ef 1.4; 1 Pe 1.2.
239 William Hendricksen, New Testament Commentary – Ephesians, Grand Rapids, Baker, 1967, p.77.
240 Cottrell, Op.Cit., p. 68-69.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 73

que escolhestes a mim, pelo contrário, eu vos escolhi a vós, para que vades e
o vosso fruto permaneça"241.
O homem não tem nada a ver com a eleição. Esta é uma matéria do
Deus todo poderoso somente. A responsabilidade do homem está ligada
somente em atos onde ele ativamente participa. Ele não tem nenhuma
participação em sua eleição. Ele é somente o beneficiário dela, não uma
parte cooperante nela. De um modo similar, o homem não tem qualquer
responsabilidade no ato da regeneração ou do novo nascimento. Nestas
coisas, ele é totalmente passivo, porque ele não escolhe ser gerado de novo
ou ser nascido de novo. Ele é meramente concebido e nascido. Nada mais.
Portanto, o homem não é responsável por sua eleição, mas é o objeto da
eleição divina, não a causa dela, como os Arminianos ensinam.
Os homens são responsáveis quando eles são agentes secundários na
execução histórica dos decretos divinos, mas eles não são responsáveis por
sua eleição, sendo apenas seus beneficiários.
Daane diz:
"Todas as versões arminianas da eleição ... sustentam que o pecador retém o
direito e a capacidade, contra toda proposta da graça e eleição divinos, para
rejeitar decisivamente a escolha eletiva de Deus. Isto é considerado como
liberdade autêntica. A escolha do homem é definitivamente decisiva. A graça de
Deus nunca viola a liberdade ou o direito do homem de dizer 'não' a Deus. Se
Deus, por uma ação eletiva graciosa, priva o homem pecaminoso de sua
liberdade de dizer 'não', então Deus (é dito) estaria violando a liberdade do
homem. O pecador nunca é tão sobrepujado pelo amor e graça eletiva de Deus de
forma que ele só pode se render a ela. Ao contrário, a liberdade autêntica do
pecador permanece impregnável pelo amor eletivo de Deus; ela tem o poder
direito de autodeterminação – escolher Deus como seu futuro, ou escolher um
futuro sem Deus"242.
Na teologia Arminiana o homem tem o 'privilégio' de escolher Deus. Ela
sempre ensina sobre 'liberdade autêntica' da teologia Arminiana, para
justificar a idéia de responsabilidade, comete um engano muito sério em
relação aos direitos de Deus. A teologia libertária tenta fazer justiça à
responsabilidade do homem nesta matéria, mas ao tentar fazê-lo, acaba
fazendo injustiça à liberdade de Deus de escolher pessoas.

Objeções à doutrina da eleição.

Objeção 1: ela é inconsistente com a justiça de Deus.

Esta é a objeção mais comum entre os adversários da doutrina


Reformada da Eleição, em virtude da falta do correto entendimento do que
significa eleição e justiça.
É perfeitamente justo pensar que, se a doutrina da eleição é
inconsistente com a doutrina da justiça divina, então, a primeira não deve

241 Jo 15.16.
242 james daane, The Freedom of God, Grand Rapids, Eerdmans, 1973, p. 15-16.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 74

ser crida nem ensinada no meio do povo de Deus. Se por justiça entende-se
o fato de Deus dar a salvação a todos igualmente, então a doutrina da
eleição mostra que Deus é injusto, pois dá a uns e não a outros, portanto,
Deus é injusto porque não dá a todos aquilo que deveriam receber. Se justiça
exige que todos os homens sejam tratados igualmente, isto é, todos devem
receber a salvação, e não apenas alguns, então, a Escritura ensina que Deus
é injusto.
Todos os adversários da Fé Reformada fazem esta crítica ao sistema
teológico conhecido como calvinismo. Temos que trabalhar com essas
críticas colocando as definições certas para que tenhamos respostas certas.

Resposta.

Mas há que se rever o conceito de justiça. Segundo a Santa Escritura,


Deus é absolutamente justo, imparcial. Quando dizemos que Deus é justo,
estamos dizendo que Ele dá a cada um conforme merece. E Deus é justo com
todos os pecadores, dando-lhes exatamente o que merecem. O grande fato é
que alguns recebem pessoalmente o que merecem, isto é, a punição pelos
seus pecados; outros, contudo, recebem a penalidade de seus pecados na
pessoa d‟Aquele que os substitui, Jesus Cristo.
Todavia, a doutrina da salvação não tem nada a ver com a justiça, mas
com a graça. Se a salvação tivesse algo a ver com a justiça divina, Deus se
tornaria devedor dos homens, pois estes teriam que merecer a salvação. Não
podemos tornar Deus um devedor nosso, e nós credores d'Ele243. Se somos
credores d'Ele, então Ele é injusto em não nos dar a salvação, mas a
salvação é uma matéria da graça divina, sem que haja qualquer
merecimento, ou pagamento de débito de Deus para conosco. Graça e mérito
se excluem. Portanto, Deus não é injusto quando não concede salvação a
quem quer que seja, pois não está debaixo da obrigação de providenciar
salvação para ninguém. Contudo, não podemos nos esquecer que a idéia de
justiça divina está aliada à idéia de graça quando tratamos do pagamento da
penalidade por parte de Cristo Jesus, para que as pessoas por quem Ele
morreu sejam tratadas como se não fossem culpadas. A redencao é matéria
de justiça da parte de quem paga a penalidade, mas é graça da parte de
quem a recebe. Deus foi justo na aplicação da penalidade sobre os pecados
do Seu povo, em Cristo, e foi misericordioso quando livrou o seu povo da
penalidade e gracioso quando concedeu-lhes a redenção sem que,
pessoalmente, fizessem jus a ela. Por essa razão, não podemos acusar Deus
de injustiça, de forma alguma.
Paulo enfrentou o mesmo tipo de crítica por ensinar a doutrina da
eleição, já no seu tempo. Veja a crítica subjazendo ao texto de Rm 9.11-18.
É antiga a crítica sobre a injustiça de Deus. Os homens sempre reagem
à maneira que Deus age. Nunca os anunciadores da verdade de Deus ficarão
sem a crítica dos homens porque estes sempre terão um conceito errôneo de

243 O homem é o único devedor. Ele tem que pagar a penalidade dos pecados, recebendo a punição
que merece. Por essa razão é que a Escritura diz que „a morte é o salário do pecado‟, mas quando se
trata da vida eterna, a Escritura diz que ela é „Dom gratuito de Deus‟. (Rm 6.23).
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 75

justiça, a menos que alguém com a mente de Deus lhes ensine. É natural a
reação enfrentada por Paulo quando falou do amor soberano de Deus que
concede misericórdia a quem Ele quer. Misericórdia não é dívida de Deus,
mas é manifestada de acordo com a sua vontade soberana.

Objeção 2: ela destrói a doutrina da graça de Deus.

Esta objeção é parecida com a primeira. Crêem os arminianos que a


doutrina da eleição anula a idéia de graça, porque a graça para eles consiste
na liberdade da vontade que Deus lhes dá. Se há eleição, então Deus lhes
tira a chance de escolher a salvação. Logo, coma doutrina da eleição
incondicional, não há o sistema de graça estabelecido por Deus.

Resposta.

Primeiramente, a graça não tem nada a ver com a doação da liberdade


da vontade. Esse é um pressuposto filosófico que alguns teólogos
arminianos tem sustentado, aplicando-o à teologia. A manifestação da graça
de Deus tem a ver com o homem no seu estado de pecado, isto é, após a sua
queda. A liberdade de agencia Deus deu ao homem na sua criação, e isso é
inerente a ele. O homem continua a ser um agente livre, embora tenha
perdido aquilo que chamamos de livre-arbítrio244. A graça é algo que não faz
parte do homem. Ela foi dada a ele para que pudesse ser remido. A graça
inclui todas as bênçãos relativas à salvação do pecador. Todas as coisas que
recebemos são produto da graça redentora de Deus em Cristo245.
Segundo, a própria eleição é parte do sistema gracioso de Deus. Paulo,
escrevendo aos crentes de Roma, deixou essa verdade absolutamente
clara246.
Portanto, a doutrina da eleição jamais destrói a doutrina da graça. Ao
contrário, ela confirma a gratuidade dos propósitos redentores de Deus. A
eleição é graça de Deus. Ela não atinge os homens porque estes fazem
alguma coisa boa, mas porque Deus resolveu amorosamente fazer assim.
Deus resolve separar alguns para si, de forma que eles nunca servirão a
deuses estranhos. Somente ao Deus verdadeiro adorarão. É isto o que
acontece com todos os que são de Deus. Porque Deus, de antemão os amou,
assim Ele os escolheu para serem os verdadeiros filhos adoradores do seu
Santo Nome.

244 É importante que se estabeleça a diferença devida entre o livro arbítrio e a livre agencia. Livre
arbítrio é a capacidade que somente Adão teve de escolher não somente aquilo que combinava com a
sua natureza santa, mas conversamente de fazer as coisas que eram contrárias à sua natureza santa,
isto é, pecar. Esta é uma capacidade que os homens depois da queda não possuem mais. Livre agencia,
diferentemente, é a capacidade que todos os homens possuem de fazer qualquer coisa que combina
com as disposições dominantes da sua natureza. Eles fazem o que querem e o que gostam,
dependendo do estado da natureza deles. Esta capacidade é inerente ao homem desde a sua criação, é
parte essencial dele, e ele não pode deixar de tê-la sem deixar de ser o que é – homem.
245 2 Co 8.9.
246 Rm 11.5-6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 76

Objeção 3: ela causa em Deus o fazer acepção de pessoas.

O que faz acepção de pessoas é aquele que, agindo como um juiz, não
trata aquelas pessoas que vêm diante dele de acordo com o caráter delas,
mas que nega a eles o que é próprio deles e que dá aos outros aquilo que não
é próprio deles. Faz acepção de pessoas aquele que trata os outros com
preconceito ou com motivos sinistros, antes do que pela justiça e pela lei247.
Os adversários do calvinismo dizem que a doutrina da eleição torna
Deus alguém que faz acepção de pessoas, isto é, que as trata de modo
diferente, tendo preferências por umas e não por outras, sendo que todas
elas são iguais. Esta acusação eqüivale a dizer que Deus é parcial.
Alguns adversários baseiam-se em dois versos da Escritura que dizem
que Deus “não faz acepção de pessoas”248.

Resposta.

É verdade que Deus não faz acepção de pessoas quando Ele está
tratando da pecaminosidade delas. O contexto de Rm 2.11 diz-nos que tanto
judeus quanto gentios, são igualmente condenáveis por estarem em débito
com a lei, seja ela escrita nos corações ou nos pergaminhos. Tanto uns como
outros são condenados por sua quebra às leis. No caso de At 10.34 é dito
que Cornélio também recebe um tratamento indiferenciado dos judeus.
Deus, quando trata da raça das pessoas, não tem nenhuma preferência.
É verdade, também, que Deus tem preferências, que Ele não trata a
todas as pessoas igualmente, no que diz respeito à salvação delas. O
favoritismo que Deus tem por algumas não tem nada a ver com o caráter
delas, mas com a Sua determinação segura de amá-las. Algumas pessoas
poderão objetar que Deus teve preferências por Israel (como raça) em relação
a outras raças. Mas a resposta é que Deus não teve afeição a Israel com
motivo nascido nesse povo, mas por motivo nascido nele próprio.
Portanto, a diferença de tratamento que Deus tem com relação às
pessoas é matéria de amor puro e soberano nascido no próprio Deus, sem
nada a ver com a raça, estado ou condição do pecador.
Quando Deus trata da nacionalidade, da raça, ou da pecaminosidade
das pessoas, Ele não faz acepção de pessoas. É isto o que a Escritura diz.
Mas quando Deus trata da redenção das pessoas, ele as discrimina não por
algo que há nelas, mas por algo que há no Seu ser. Por isso é dito que ele
'tem misericórdia de quem quer e não de quem se esforça'.

247 Ver Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination, (Grand Rapids; Eerdmans, 1941), p. 263.
248 At 10.34 e Rm 2.11.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 77

Objeção 4: ela cheira à doutrina pagã do fatalismo.

Existe apenas uma semelhança entre a Doutrina Reformada da


predestinação e a doutrina pagã do fatalismo: "ambas assumem a certeza
absoluta de todos os eventos futuros"249. Não há nada mais que faça com
que a Doutrina Reformada da predestinação se pareça com a do fatalismo.
A grande diferença é que no fatalismo não há a noção de um Deus
pessoal. Na verdade, a noção de Deus não é necessária. As coisas acontecem
simplesmente porque tem de acontecer, sem que haja alguém inteligente por
detrás de todos os acontecimentos. O 'fatalismo sustenta que todos os
eventos vem a acontecer através de uma força cega, sem qualquer noção de
inteligência, sem qualquer conotação moral que não pode ser distinta da
necessidade física, e que nos deixa irremediavelmente dentro do seu poder
como um poderoso rio carrega um pedaço de madeira'250. O fatalismo tira o
domínio das mãos de um Ser inteligente e amoroso para pô-la nas mãos de
uma necessidade cega e impessoal. Todas as experiências que a raça
humana passa são produto de uma força impessoal irresistível contra a qual
é impossível lutar.

Resposta.

Opostamente, a Fé Reformada, por detrás da Predestinação há um Ser


sábio, santo, inteligente, onipotente, soberano, amoroso e justo. Todas as
determinações de Deus, feitas antes da fundação do mundo, são
determinações com razões em Si mesmo, para a glória do Seu nome e para o
benefício das Suas criaturas. Enquanto no fatalismo não existe um alvo final
a ser atingido, um plano previamente estabelecido, na Fé Reformada a
predestinação é visando o cumprimento de um alvo final, inteligente.
Na doutrina fatalista não existe a idéia de liberdade das ações dos
homens. Os homens não são agentes livres, eles não possuem
autodeterminação. No sistema fatalista não há lugar para idéias morais,
porque tudo o que acontece tinha que acontecer. O homem, portanto, não
tem culpa por nada que faz, porque tudo estava previsto. Não há um
legislador moral e nem há leis morais estabelecidas por um Ser pessoal
superior. Mas na doutrina da predestinação reformada, os seres racionais e
morais agem de acordo com a natureza dos corações deles, fazendo sempre o
que lhes agrada, mas sempre em consonância com leis morais com as quais
foram criados. O Legislador é Deus e Ele sempre exige que as criaturas
racionais ajam de acordo com Seus preceitos, mas de uma maneira que elas
sempre fazem voluntariamente tudo o que querem.
O fatalismo conduz as pessoas ao desespero, porque não existe regra e
nem existe uma finalidade última em todas as coisas. A Doutrina Reformada
da Predestinação traz conforto ao homem porque este sabe que há um Deus
sábio que ordena de antemão todas as coisas e que Ele é soberano na

249 Boettner, p. 205.


250 Boettner, p. 205.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 78

expressão do Seu amor, misericórdia e na administração da salvação, mas


que nunca deixa de ser justo. Os cristãos não ficam desesperados porque
Deus já determinou. E os crentes se consolam num plano maravilhoso como
o que Deus já lhes tem mostrado. Tudo é feito para a Sua glória e para a
continuação e futura consumação do Seu reino, nada pode fazer estremecer
o reino de Deus, porque Deus está no controle de todas as coisas.
A idéia de fatalismo deve ser banida da mente das pessoas quando a
doutrina da predestinação é ensinada.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 79

Objeção 5: ela torna Deus o autor do pecado.

Todos os Calvinistas reconhecem que a presença do mal moral no


mundo é um problema insolúvel nas presentes condições. Ninguém tem uma
palavra final sobre o assunto que elimine todas as arestas. Mas de uma
coisa ninguém pode acusar a teologia calvinista: de tornar Deus o autor do
mal. Os credos Calvinistas todos, embora afirmem os decretos de Deus como
sendo a causa última da existência de todas as coisas, logo se apressam em
afirmar que Deus não é o autor do pecado.

Resposta.

A Confissão de Fé de Westminster expressa-se desta forma:


"A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal
maneira se manifestam na Sua providência, que esta se estende até a primeira
queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma
mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos
desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula e governa em sua múltipla
dispensação: mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas transgressões
procede tão somente da criatura e não de Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não
pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo". (V, IV)
A Teologia Reformada reconhece que é difícil eliminar todos os
problemas da existência do mal, mas afirma categoricamente que Deus
assume a responsabilidade pela presença do mal no universo sem, contudo,
tornar Deus o autor do mal.
Reconhece a Teologia Reformada que é impossível explicar como Deus
assume a responsabilidade pela presença do mal sem, contudo, ser o autor
dele. Deus amarrou esse assunto de tal forma que, mesmo decretando a
existência do pecado, Ele não é o autor do mal, fazendo com que o pecado
fosse concebido unicamente na mente da criatura, sendo o pecado nascido
somente nos seres racionais, tornando-se eles os autores únicos do mal
moral.
Este assunto da existência do mal está relacionado com a idéia de
concursus na doutrina da providência. Não sabemos exatamente como Deus
opera nas mentes das pessoas fazendo com que elas consumem o mal que
está dentro dos corações delas, mas de tal forma que eles sejam os únicos
responsáveis pela prática do mal.
"Podemos descansar certos de que Deus nunca teria permitido o pecado ter
entrado a menos que, através de Sua providência secreta e vitoriosa, Ele fosse
capaz de exercer uma influência diretiva sobre a mente dos ímpios, de tal forma
que o bem resultasse da obra maligna pretendida por eles. Deus opera não
somente todo o bem e santas afeições que são encontradas nos corações das
pessoas, mas Ele também controla perfeitamente todas as afeições ímpias e
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 80

depravadas dos ímpios, e as torna como Lhe apraz, de tal forma que eles tem um
desejo de realizá-las da forma que Ele planejou cumpri-las através delas"251.
É muito difícil explicar como essa ação é operada, mas não há como
fugir dessa idéia. Se o mal foge do controle de Deus, não há como vê-lo como
o Senhor da história. Sem essa capacidade de agir nas mentes dos homens
inclinando-as252 como Lhe apraz, Deus perde todo o controle e nada do que
Ele planejou se cumprirá.
A existência do pecado no mundo é um grande problema não somente
para a Teologia Calvinista, mas para todos os ramos da Teologia Cristã.
Nenhuma Teologia Cristã tem solução plena para o problema do pecado.
Todas são passíveis de crítica da parte dos ateus. Contudo, a acusação
maior tem caído contra os Calvinistas, especialmente da parte dos
arminianos, porque na sua teologia eles afirmam que Deus preordenou o
curso inteiro dos eventos do mundo. Portanto, com base nisso, Deus é o
autor do pecado.
Os arminianos podem sofrer o mesmo tipo de crítica, porque eles não
resolvem o problema do mal, também. Para eles, Deus é um espectador
passivo, que vê as coisas acontecendo com relação ao mal, e Ele não tem
absolutamente nada a ver com isso. o mal é algo que tem a ver unicamente
com a vontade livre dos homens. d apenas viu Adão fazer o que fez no Éden,
sendo surpreendido por aquela ação. Somente depois de todo o mal feito é
que Ele tomou providências para remediar a situação. Na Fé Reformada,
contudo, Deus não foi pego de surpresa, não somente porque sabe de todas
as coisas desde o princípio, mas porque a queda dos homens tem a ver com
a execução de Seus planos elaborados desde a eternidade. Se quisesse, Ele
poderia ter preservado Adão de pecar, mas dessa forma os Seus planos
eternos de salvação não se cumpririam, porque não existe salvação sem
antes haver queda.
Deus não é o autor do mal, embora o seu aparecimento tenha a ver com
o Senhor da história, que decretou o aparecimento dele. Mas a existência
real do mal apareceu unicamente através do exercício da autodeterminação
das criaturas finitas. Como Deus pode decretar o aparecimento do mal e
tornar certo o aparecimento dele na história, através do exercício livre da
autodeterminação das vontades de Suas criaturas, é algo que não nos é
revelado nas Sagradas Escrituras.

Objeção 6: ela é inconsistente com a doutrina da


responsabilidade moral.

A grande objeção feita aos Calvinistas é: como podem as criaturas ser


responsabilizadas em seus atos se suas ações já são predeterminadas por
Deus?

Resposta.

251 Boettner, Op.Cit., p. 229-230.


252 Pv 21.1.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 81

As ações dos homens são livres porque os homens são agentes livres. A
responsabilidade de uma ação está no fato delas serem nascidas na
autodeterminação da criatura, não no fato delas serem preordenadas. Toda
criatura age sempre conforme as disposições dominantes de sua natureza.
Ninguém comete uma ação má sem que seja uma expressão de sua vontade
que, por sua vez, age de acordo com os impulsos de sua natureza mais
íntima.
A preordenação divina é o auto pelo qual Ele torna certos os eventos
mas de tal modo que eles sempre sejam feitos de acordo com a natureza das
causas secundárias, que são os agentes racionais que possuem
autodeterminação. A preordenação não força nenhum ser racional a agir. Ela
apenas torna certo o acontecimento de um ato, mas este é praticado de
acordo com as disposições dos corações dos homens, sem que nada,
absolutamente nada de fora, os force a fazer o que fazem.
A responsabilidade de um ato não está vinculado à uma idéia de
liberdade que significa independência. A liberdade de independência não
existe. A liberdade de um ser humano está condicionada à natureza dele. Ele
só pode fazer o que está de acordo com a sua natureza. Estando de acordo
com ela, ele pode fazer o que quiser, sem ser coagido de fora por nada. Todo
homem age dessa forma, sempre concorde com as suas disposições
interiores. Nesse sentido ele é livre, portanto, um ser moralmente
responsável.
Ao contrario de todas as expectativas, a Doutrina Reformada é a que
mais enfatiza a responsabilidade moral dos homens. Esta não está vinculada
à capacidade de os homens fazerem coisas boas, mas à ordenação divina
para eles fazerem as coisas santas.

Resultados práticos da doutrina da eleição.

1. Ela faz justiça ao caráter de Deus.

A doutrina da eleição mostra as mais lindas facetas da natureza divina:


a. Ela mostra como Deus é sábio no que faz, porque a eleição aponta os
melhores fins usando os meios mais excelentes para o seu cumprimento.
Deus é exaltado quando a doutrina da eleição tem como o melhor fim a
glória do Seu nome e a redenção do pecador. Alguém pode esperar um fim
melhor do que a glória de Deus, a redenção do pecador através de Jesus
Cristo e tornado isso conhecido dos homens através da pregação do Seu
evangelho? Há melhores fins e meios melhores do que esses? Não é esta
doutrina uma excelente prova da sabedoria de Deus?
b. Ela mostra como Deus é poderoso no que faz. Todos os Seus planos
jamais podem ser frustrados, mesmo que satanás e todas as outras
criaturas juntas resolvam fazer oposição a eles. Todos aqueles que Deus
de antemão destinou salvar, certamente Ele os trará a Jesus Cristo.
Infalivelmente eles serão salvos pela Sua poderosa mão. Todas as coisas
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 82

determinadas de antemão haverão de acontecer porque o nosso Deus é


poderoso!
c. Ela mostra como Deus é amoroso no que faz. A doutrina da eleição
mostra quanto Deus tem o coração naqueles que Ele chama de 'Seu
povo'. Sem que houvesse neles qualquer coisa que O atraísse ao amor,
Ele os amou de tal maneira que lhes deu o Seu Filho Unigênito, para
levar as culpas dos pecados deles! A eleição mostra de maneira
inequívoca quanto Deus é amor!

2. Ela estimula as pessoas a uma vida santa.

Contrariamente ao que alguns crentes rebeldes contra a doutrina da


eleição dizem, a doutrina da eleição estimula os crentes para uma vida de
conformidade com a Norma de comportamento para os crentes, que é a
Palavra de Deus.
Paulo, o apóstolo, nos ensina que como eleitos que somos, a nos
revestirmos de tudo o que é santo253.
A idéia de Paulo é a de os homens fazerem essas coisas pelo fato de
serem eleitos de Deus. Pedro, de maneira semelhante, exorta aos crentes a
procederem santamente, confirmando a eleição deles e a sua vocação em
Cristo254.
Portanto, a doutrina da eleição incentiva e encoraja os crentes a uma
vida de santidade e ao exercício das virtudes cristãs. Os crentes são
exortados, pelo fato de serem eleitos de Deus, a procederem com prudência,
sensatez, honestidade, retidão, etc. virtudes pouco cultivadas entre os que
não são cristãos. Estas coisas lindas são encorajadas na vida de todo aquele
que Deus, de antemão, destinou para a vida eterna e que já confessam a fé
em Cristo.

3. Ela torna as pessoas humildes e agradecidas.

O fato de sermos eleitos de Deus deve levar todos nós a uma atitude de
santa reverência para com o Deus de toda graça e soberania. A devida
compreensão da doutrina da eleição nos leva a um senso de pequenez, de
finitude e de humildade na Sua presença. Essa humildade é sentida pelo
fato dos verdadeiros remidos serem agradecidos por terem sido destinados à
vida porque sabem que, se deixados ao seu próprio arbítrio, sem que Deus
nos trouxesse à vida, estariam trilhando ainda o caminho da morte. Eles
sabem que o merecimento deles é a morte, mas por causa da eleição são
trazidos a Cristo e por eles vive e reina. Eles sabem que se Deus não lhes
houvesse destinado à vida, eles estariam ainda totalmente depravados, ainda
rebeldes, e sujeitos à eterna condenação. Eles sabem que Deus é o autor de
todas as coisas santas e puras que eles possuem. Eles se conheciam
anteriormente, e agora sabem que estavam 'mortos nos delitos e pecados'.
Eles agora sabem que se Deus não houvesse proposto salvá-los, eles ainda

253 Cl 3.12-13.
254 1 Pe 1.5-10.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 83

estariam nas mãos da impiedade. Eles sabem que se Deus não resolvesse
elegê-los para a vida, ainda estariam debaixo dos ditames de satanás. Eles
sabem que a eleição não é matéria de mérito ou da justiça de Deus, mas Seu
grande amor por pecadores. Por essas razões, eles tem gratidão no coração
pelo amoroso decreto eletivo de Deus!
A doutrina da eleição deveria sempre ser o motivo da nossa gratidão e
dos nossos louvores! Essa doutrina exalta grandemente a graça de Deus, ao
mesmo tempo em que coloca o pecador no seu devido lugar. Ao Deus de toda
graça seja a honra e a gratidão de nosso coração!

4. Ela assegura a consumação da salvação dos crentes.

A doutrina da eleição, uma vez realmente crida, produz no crente uma


convicção de que Deus consumará a sua salvação, porque a Escritura afirma
categoricamente que todos os que Deus predestinou, ele chama, justifica e
glorifica255.
Em nenhum lugar, contudo, a Fé Reformada crê, como os seus
acusadores freqüentemente dizem, que pelo fato das pessoas serem
predestinadas para a salvação elas podem pecar, porque a salvação delas já
está garantida. Ao contrário, a Fé Reformada enfatiza que aqueles que crêem
na eleição, devem viver em novidade de vida. Veja-se o que a Escritura diz
aos eleitos de Deus256. É assim que eles devem viver.
A Fé Reformada não afirma que os crentes não caem em pecados, mas
afirma que eles nunca haverão de apostatar da fé. Por causa dos tropeços
deles eles são disciplinados por Deus, mas nunca serão abandonados
deles257.
Os reformados também não crêem que os crentes perseverarão até o fim
por suas próprias forças, mas tem a mesma convicção de Paulo a respeito
deste assunto, que disse: "Estou plenamente certo de que aquele que
começou boa obra em vós, há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus"258.
Os que crêem na eleição tem convicção de que Deus não deixa a Sua obra
pelas metades. A redenção final se completará por obra do poder e da graça
de Deus na vida deles. Eles crêem perfeitamente que estão seguros nas mãos
de Deus e que ninguém poderá fazer nada para separá-los do amor de Deus
que está em Cristo Jesus259.
A doutrina da eleição nos dá a segurança de que Deus, por bondade e
fidelidade Sua, completará a nossa redenção, a despeito de nossos
constantes pecados, pois redenção é para pecadores mesmo! Deus não vai
consumar a nossa salvação por causa de nossa obediência à Sua palavra,
mas a nossa obediência à Sua palavra é uma conseqüência de Sua graça
eletiva, levando-nos até o fim da salvação. Essa verdade é altamente
consoladora!

255 Rm 8.30.
256 Cl 3.12.
257 Sl 89.30-33.
258 Fp 1.6.
259 Jo 10.28-29; Rm 8.31-39.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 84

5. Ela estimula à pregação do evangelho.

Os que crêem na eleição divina são os mais privilegiados no


entendimento de que a Igreja só virá a crescer porque Deus determinou não
somente os fins, mas também os meios. Em outras palavras, só eles estão
em harmonia com o ensino da Escritura que diz que Deus predestinou não
somente a salvação deles, mas também que a salvação deles por meio de
Cristo viria somente através da pregação do evangelho.
A crença dos Calvinistas não somente na eleição mas na depravação
total fá-los entender a real necessidade dos pecadores virem ao
conhecimento de Cristo pela pregação do evangelho. Os corações dos
homens estão cheios de pecado e de inimizade contra Deus, o que os torna
indispostos contra o evangelho. Contudo, os Calvinistas crêem que a tarefa
dos crentes é a pregação do evangelho, deixando com Deus a tarefa de
converter os homens a Cristo. Por essa razão Paulo diz: "Eu plantei, Apolo
regou". Essa é a tarefa da Igreja. Mas ele conclui que somente após o plantio
e o aguar é que vem o crescimento, que é obra exclusiva de Deus. Semear e
regar é tarefa dos crentes, mas o conceder a vida é de Deus260.
Daniel foi encorajado a pregar o retorno dos judeus do cativeiro da
Babilônia quando ele 'entendeu, pelos livros, que o número dos anos, de que
falara o Senhor ao profeta jeremias, em que haviam de durar as assolações
de Jerusalém, era de setenta anos'261.
Paulo foi grandemente encorajado a pregar o evangelho na cidade de
corinto, depois que o Senhor lhe disse: "Fala e não te cales; porquanto Eu
estou contigo e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta
cidade"262. Deus tinha eleitos naquele lugar, muitos que ele chama de 'muito
povo', mas que ainda não conheciam a verdade d'Ele263. Portanto, Paulo, por
causa do decreto eletivo de Deus, foi encorajado a pregar o evangelho para a
redenção de pecadores. E o texto continua, afirmando que Paulo teve
sucesso, pois permaneceu naquele lugar ensinando cerca de um ano e meio
mais (v. 11).
Todos os fiéis ministros de Deus, em todas as épocas, tem pregado o
evangelho certos de que onde houver eleitos, eles virão à fé em Jesus. Eles
pregam com confiança na graça divina, porque sabem que somente através
da pregação é que os homens crerão264, e porque sabem que a pregação do
evangelho vai mostrar em alguma medida, quem são os eleitos de Deus em
Cristo Jesus.
A doutrina da eleição, portanto, encoraja as pessoas a pregar o
evangelho, porque está escrito que a fé somente vem mediante a pregação. O
curioso é que no passado, muitos Calvinistas foram os maiores evangelistas
do mundo, porque criam nessa verdade de todo o coração. A má

260 1 Co 3.5-9.
261 Dn 9.2.
262 At 18.9-10.
263 Merece um exame acurado. Nota pessoal. Marthon.
264 Rm 10.12-17.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 85

compreensão da doutrina é que tem levado à crítica de que a doutrina da


eleição desestimula a pregação do evangelho.

6. Ela causa nos crentes um senso de reverência e


adoração.

Este último ponto está intimamente ligado com a idéia de ação de


graças, já estudado anteriormente.
O assunto da eleição divina deve provocar na vida do crente um senso
de reverente adoração ao Deus de toda graça e misericórdia. O estudo da
doutrina nos leva reverentemente a perguntar o porque de tudo. Por que
Cristo? Porque a cruz? Porque o perdão? Porque a santificação? Porque a
glória? E a mais importante pergunta: Porque tudo isso por mim? E mais
ainda: por que a mim que sou um miserável pecador, uma criatura
indignamente pecaminosa? Estas perguntas provavelmente nunca terão uma
resposta satisfatória, mas sempre nos levarão à reverente adoração.
Cultuemos e adoremos ao nosso Deus porque todas estas perguntas são
respondidas assim: por causa do propósito eletivo amoroso de Deus do qual
somos beneficiários.

A doutrina da reprovação.

A doutrina da reprovação é uma das doutrinas mais criticadas pelos


adversários do Calvinismo. A despeito disso, a Fé Reformada a sustenta com
todas as forças porque o seu conteúdo permeia toda a Escritura. A despeito
de ir contra os sentimentos naturais dos homens, ela é sustentada
abertamente pelos símbolos de fé que se escudam fortemente em nossa
única Regra de Fé e Prática, a Escritura.
Não devemos ter nenhum temor de estudar este assunto, embora
devamos fazê-lo com santa reverência, porque trata da misteriosa e soberana
vontade de Deus assim como de Sua santa justiça, diante das quais todos
nos devemos curvar.
A CFW nos encoraja ao estudo deste assunto com muita sabedoria e
prudência. Eis suas recomendações:
"A doutrina deste alto mistério de predestinação deve ser tratada com especial
prudência e cuidado, a fim de que os homens, atendendo à vontade revelada em
Sua palavra, prestando obediência a ela, possam, pela evidência da sua vocação
eficaz, certificar-se da sua eterna eleição. Assim, a todos os que sinceramente
obedecem ao Evangelho esta doutrina fornece motivo de louvor, reverência e
abundante consolação"(III, 8).

Definição de reprovação.

Heppe define a reprovação como o 'decreto de Deus pelo qual de acordo


com a Sua vontade, Ele resolveu deixar certos homens fixos, a quem Ele não
escolheu, na massa da corrupção amontoando seus pecados e, quando eles
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 86

tem sido empedernidos pelo Seu julgamento justo, e visitá-los com punição
eterna, a fim de mostrar a glória da Sua justiça"265.

A reprovação nos símbolos reformados.

A Confissão de Fé de Westminster possui algumas afirmações muito


diretas a respeito da reprovação:
"Pelo decreto de Deus para a manifestação da Sua glória, alguns homens e alguns
anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para a morte
eterna" (III, 3).
"Esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são particular
e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode
ser nem aumentado nem diminuído"(III, 4).
"Segundo o inescrutável conselho da Sua própria vontade, pela qual Ele concede
ou recusa misericórdia, como Lhe apraz, para a glória do Seu soberano poder
sobre as Suas criaturas, o resto dos homens, para louvor da sua gloriosa justiça,
foi Deus servido não contemplar e ordená-los para a desonra e ira por causa dos
seus pecados". (III, 7).
Os Cânones de Dort afirmam também a doutrina da eleição, juntamente
com a doutrina da reprovação, nestas palavras:
"Alem disso, a Sagrada Escritura ilustra especialmente e nos recomenda esta
graça livre e eterna de nossa eleição, porque ela posteriormente testifica que nem
todos os homens são eleitos, masque alguns certos homens não são eleitos, ou
passados por alto na eleição eterna, a quem Deus, segundo o seu beneplácito
livre, justo, irrepreensível e imutável decretou abandonar na miséria comum, na
qual eles tem se lançados a si mesmos por suas próprias faltas, e não lhes dar a
graça da fé salvadora e conversão, mas deixá-los em seus próprios caminhos, e
debaixo do Seu justo juízo tendo sido abandonados, finalmente, não somente por
causa da sua incredulidade, mas também por causa de todo o restante de seus
pecados, para condená-los e puni-los para sempre para a declaração de Sua
própria justiça"266.

Os elementos constituintes da reprovação.

A reprovação deve ser entendida à luz de um contexto mais amplo da


natureza soberana de Deus. Como Deus decidiu que o homem usasse o seu
poder para originar o pecado no Éden, assim Ele decidiu que os homens
continuassem a usar a sua vontade para perseverar no pecado.
As atitudes a serem tomadas eram salvar os homens ou deixá-los na
miséria de seus pecados, sujeitos à condenação. O decreto da eleição foi para
salvar alguns, o que de fato tem acontecido, e a outra parte do decreto foi
não salvar outros, deixando-os nos seus pecados debaixo da justiça de Deus.
Isso é reprovação.

265 Heppe, Op.Cit., p. 178-179.


266 Of Divine Predestination, Article 15.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 87

Como pudemos perceber nas afirmações confessionais acima, o decreto


da reprovação inclui duas coisas com respeito aos pecadores: a decisão de
não salvá-los e a de condená-los pelos seus próprios pecados. Elas são
chamadas preterição e condenação.

Preterição.

Definição de preterição.

Preterição é o ato de Deus pelo qual Ele resolve abandonar certas


pessoas no estado de pecado em que elas se encontram, por si mesmas, sem
conceder-lhes a graça regeneradora.
Preterição tem a ver com o 'deixar as coisas no estado em que estão'. Os
nossos símbolos de fé usam algumas expressões para preterição: 'passar por
alto', 'não contemplar'267. Quando Deus pretere alguém, Ele simplesmente
decide não salvar a pessoa no estado em que ela se encontra.

Exemplos bíblicos de preterição.

Há alguns exemplos na Escritura que nos ajudam a entender a idéia de


preterição.
Podemos ver alguns tipos de preterição mencionados na Escritura e
outros comprovados pela história.
Preterição relacionada aos meios de graça.

Preterição nacional dos meios de graça.

Esta é uma preterição que tem a ver com nações. No período do Velho
Testamento muitas nações foram preteridas no que diz respeito à revelação
divina. Elas foram deixadas sem o conhecimento do Deus verdadeiro.
Somente Israel foi objeto dessa revelação. Portanto, debaixo da economia do
Velho Testamento Deus preferiu Israel, mas não com base no que Israel
oferecia268 mas sim por amor a ele, preterindo outras nações, até o tempo da
vinda de Cristo, quando o evangelho foi pregado indiscriminadamente aos
judeus e gentios. Mas no começo do ministério de Jesus Cristo, a preterição
nacional ainda continuava269.
Então, mais tarde, exatamente após a ressurreição de Jesus, a
preterição nacional parece ter cessado, Jesus, falando de Si próprio, disse
aos seus discípulos em forma de ordenança.
"Assim está escrito que o Cristo havia de padecer, e ressuscitar dentre os mortos
no terceiro dia; e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de
pecados, a todas as nações, começando em Jerusalém"270.

267 Confissão de Fé de Westminster, 3.7.


268 Dt 7.10.
269 Mt 10.5-7.
270 Lc 24.46-47.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 88

Todas as nações agora estão destinadas a ouvir o evangelho, e quando


todas elas ouvirem, então ao fim virá, conforme a profecia de Jesus Cristo271.
Historicamente ainda há preterições temporárias. Somente após o final
do século XVIII é que houve a ênfase nas missões mundiais. Até aquela
altura, muitas nações e tribos do oriente não haviam sido atingidas. A china,
por exemplo, só ouviu o evangelho do século passado. Até então, todos os
bilhões de chineses que viveram na china haviam sido preteridos na
administração dos meios de graça.
Preterição individual em conexão com Eleição Nacional.

Alguns judeus foram individualmente e interiormente preteridos,


mesmo estando numa nação onde os meios de graça foram oferecidos. Esses
judeus, embora tivessem o conhecimento das boas novas da compaixão de
Deus, interiormente foram deixadas de lado. É disso que Paulo trata272.
Todos os privilégios externos dos meios de graça pertenciam aos judeus,
mas nem todos os de Israel, continua Paulo, são de fato israelitas (v 6). Na
argumentação seguinte nos versos 7-18 Deus mostra que apenas a quem Ele
quer é que recebem as bênçãos salvadoras.
Hoje é a mesma coisa. Algumas pessoas que nasceram e viveram em
terras onde os meios de graça foram oferecidos abundantemente, no último
dia, verificarão que foram preteridos na distribuição da graça regeneradora.
Apenas receberam os privilégio externos no meio de nações eleitas para a
pregação do evangelho. Há muitos que não são eleitos que recebem os
privilégios dos meios de graça sem, contudo, receberem as operações
regeneradoras do Espírito.
Eleição individual em conexão com preterição nacional.

Alguns homens podem ser salvos em nações não evangelizadas. Que


Deus tem eleitos entre as nações pagãs, onde o evangelho nunca chegou, é
crença entre os credos Calvinistas. A preterição nacional não implica que
cada pessoa que vive em nação não evangelizada, deverá perecer para
sempre, assim como indivíduos que vivem em terras cristãs não serão salvos
necessariamente. É sem dúvida que há eleitos de Deus em nações pagãs.
Curiosamente, na própria Escritura há casos de eleição individual em
contraste com preterição nacional. Houve pessoas no tempo do Velho
Testamento que foram trazidas a Israel para conhecerem a verdade da
revelação divina, como é o exemplo de Naamã da Síria, Rute de Moabe.
Essas pessoas receberam a administração dos meios de graça, mesmo sendo
de nações preteridas. Nos tempos do Novo Testamento há alguns exemplos,
como o do eunuco da rainha Candace, da Etiópia273. Ele foi trazido a Israel
para ouvir das boas novas a respeito de Jesus Cristo através de Felipe.
Girolamo Zanchi (1516-1590), um calvinista de segunda geração, disse
que 'a reprovação nacional não implica que todas as pessoas individuais que

271 Mt 24.14.
272 Rm 9.4-5.
273 At 8.27ss.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 89

vivem em um país não evangelizado devam, portanto, inevitavelmente


perecer para sempre"274.
Preterição relacionada à graça regeneradora.

Na Sua sabedoria Deus decide não vencer a resistência do coração


pecaminoso de algumas pessoas, deixando de lhes conceder a graça
regeneradora. Deus decide deixá-los nos seus pecados, escondendo deles
aquilo que poderia ser a salvação deles.
Exemplo 1.

O texto de Is 6.9-10 é clássico, sendo o verso do Velho Testamento mais


citado no Novo Testamento. O Espírito Santo entendeu que esta passagem
deveria, devido à sua importância, ser repetida seis vezes no Novo
Testamento275. A mensagem profética ordenada por Deus a Isaías era:
"Vai, e dize a este povo: ouvi, ouvi, e não entendais; vede, vede, mas não
percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhes os ouvidos, e
fecha-lhes os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, e a entender com
o coração, e se converta e seja salvo".
O profeta é enviado por Deus para exercer uma tarefa sinistra. Ele é
chamado para ministrar a pessoas totalmente destituídas de qualquer
possibilidade de resposta positiva, por causa da situação interior deles, sem
que qualquer providência fosse tomada para reverter a situação. A causa da
cegueira deles é o pecado, obviamente, mas a persistência deles na
impotência espiritual é a ausência de uma obra divina dentro do coração
deles.
O texto diz claramente que a impossibilidade de reversão do quadro está
vinculado à preterição divina. É-nos dito inequivocamente que Deus resolveu
não mexer com o coração impotente deles, para habilitá-los a crerem na
verdade d'Ele. O profeta estava destinado a pregar sem qualquer resultado
positivo de conversão. A pregação dele era o anuncio da decisão divina de
não salvá-los. Deus é absolutamente claro no Seu intento e assume a
responsabilidade pela não salvação dos pecadores, enquanto que a
responsabilidade pela situação deles era vinculada ao seu pecado.
Este texto de Isaías não é um texto isolado do Velho Testamento. Muitos
do povo de Israel haviam contemplado as maravilhas da libertação de Deus e
a maneira tão poderosa como Deus se conduziu perante o povo. Moisés
afirmou isso claramente276. No verso 4 Moisés dá a razão pela qual muitos
do povo ainda não tinham crido em Deus, nem compreendido as Suas
maravilhas:
"porém o Senhor não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem
ouvidos para ouvir, até o dia de hoje".
Muitos do povo religioso do tempo de Moisés, assim como nos dias de
hoje, falam coisas bonitas e certas sobre a religião, e, inclusive, sobre Deus,

274 (Predestinatio, I), citado por Shedd, vol. 1, p. 437.


275 Ela ocorre 04 vezes nos Evangelhos (Mt 13.14-15; Mc 4.11-12; Lc 8.9-10; Jo 12.37-40), uma vez em
Atos (28.25-27) e outra em Romanos (Rm 11.7-10).
276 Dt 29.2-3.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 90

mas falta a eles alguma obra interior do Espírito Santo no coração deles. Por
esta razão Moisés lamenta a situação do seu tempo277.
Para que alguém venha ao conhecimento salvador de Deus, é necessário
que Deus lhe dê coração novo. Se Deus omite a essa pessoa essa operação,
deixando-a entregue ao seu próprio entendimento, essa pessoa nunca amará
a Deus nem entenderá a sua palavra.
Exemplo 2278.

Este texto é citado por Paulo em Rm 9.13, causando nos ouvintes uma
revolta que fez o povo chamar Deus de injusto. Paulo argumenta com este
texto para provar a gratuidade da eleição, e também para provar a soberania
da preterição. Os edomitas, descendentes de Esaú, por razões que nos são
desconhecidas (não era o pecado de Esaú que causava a preterição, pois
Jacó era igualmente pecador, ou pior ainda que Esaú), ficaram sem o amor
redentor de Deus, assim como o seu ancestral. Mas o texto mostra
claramente, em consonância com Romanos 9, que Deus faz distinção entre
um e outro. Dá a um o seu amor gracioso e não o dá a outro. Note-se que o
contexto de Romanos é totalmente de ênfase soteriológica e pessoal.
O Novo Testamento tem outros exemplos que mostram a preterição da
graça regeneradora.
Exemplo 3.

Neste texto 279 , onde João cita Isaías, o contexto é bem diferente do
contexto que o próprio Isaías estava vivendo quando Deus lhe deu esta
terrível mensagem.
No texto de Isaías 6 a mensagem não era de salvação, mas o anúncio de
como Deus agiria ou deixaria de agir no coração do homem. Aqui em João, o
contexto é de pregação salvadora de Jesus Cristo. Embora Jesus tivesse
pregado muitas vezes e houvesse feito muitos sinais na presença dos
homens, é-nos dito que as pessoas 'não criam nele'. João, o evangelista,
citando Isaías 53.1, fala sobre a pregação do servo sofredor, que dizia:
"Senhor, quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do
Senhor?" O que João está dizendo é que somente crê aquele a quem o braço
do Senhor é revelado. Somente a poucos deles o Senhor dá-se a conhecer. A
hermenêutica de João está absolutamente correta. A impotência de crer
estava no fato de serem pecadores, mas eles não podiam crer pela ausência
da obra regeneradora de Jesus Cristo sobre eles. Calvino diz: "Os homens
podem torturar-se a si mesmos tanto quanto eles queiram; todavia, a causa
da discriminação, por que Deus não revela o seu braço a todos, está
escondido no seu decreto eterno" 280 . Sem a obra do Espírito de Deus no
coração deles, capacitando-os a crer, fatalmente eles não crerão. É-nos dito
também que Deus decretou, por razões escondidas de nós, que eles não
iriam crer, para se cumprir a profecia de Isaías. Deus resolveu preteri-los,

277 Dt 5.28-29.
278 Ml 1.2-5 – Rm 9.13.
279 Jo 12.37-40.
280 Concerning the Eternal Predestination of God, p. 94.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 91

não os contemplando com a graça regeneradora que leva à fé genuína em


Cristo Jesus. Calvino ainda diz:
"Portanto, a incredulidade do mundo não deveria nos espantar, mesmo a mais
aguda falta de fé. Por essa razão, a menos que desejemos evadir daquilo que o
evangelista confessamente afirma, de que poucos recebem o evangelho, devemos
concluir isto para ser estabelecido, que o som externo da voz (pregação) soa em
nossos ouvidos em vão, até que Deus interiormente toca o coração"281.
Exemplo 4.

Nas outras vezes onde o texto de Isaías 6 é citado, nos evangelhos, o


contexto é também diferente. Ele é citado em relação ao ensino das
parábolas de Jesus. Estas foram ditas com um propósito muito diferente
daquele que alguns teólogos tem ensinado. É dito por aí que as parábolas
servem para clarear um ensino, ou que eram usadas para facilitar a
compreensão da verdade. Jesus disse que o propósito de suas parábolas era
exatamente o oposto. Veja a sua resposta quando os discípulos lhe
perguntaram: "Por que lhes falas em parábolas"?282
"Porque a vós outros é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas àqueles
não lhes é isso concedido. Pois ao que tem se lhe dará, e terá em abundância;
mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso, lhes falo por
parábolas: porque, vendo, não vêem, e, ouvindo, não ouvem nem entendem. De
sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías: "Ouvireis com os ouvidos, e de
nenhum modo entendereis; vereis com os olhos e de nenhum modo percebereis.
Porque o coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram com os
seus ouvidos, e fecharam os seus olhos; para não suceder que vejam com os
olhos, ouçam com os ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam
por mim curados" bem- aventurados, porém, os vossos olhos por que vêem, e os
vossos ouvidos, porque ouvem"283.
Muitos de Israel, os contemplados com os meios de graça, foram
omitidos na distribuição da graça que faz com que as pessoas ouçam,
entendam e creiam, sendo convertidos pela mesma graça. Mas a alguns esta
graça é concedida. O texto bíblico diz que logo após, Jesus, chamando os
seus discípulos à parte, contava-lhes o sentido daquelas parábolas, que eles
próprios não poderiam entender por si mesmos284 Jesus omitia alguns e se
revelava a outros. Isso é preterição individual no meio de eleição nacional
para os meios de graça.
Em Mt 13.9 e Lc 8.8, após ensinarem sobre as parábolas, reproduzem
um dito de Jesus: "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça". Calvino disse que
'com estas palavras, Ele não somente distinguiu os ouvintes atentos dos
ouvintes inatentos; Ele implica que todos são surdos, exceto aqueles ouvidos
que são penetrados pelo Senhor'285. Muitos foram deixados nessa situação
de incapacidade espiritual, enquanto que alguns poucos tiveram a sua
situação espiritual revertida. Isto foi uma maravilha para eles. Por essa

281 Calvin, Ibid. p. 94.


282 Mt 13.10.
283 Mt 13.11-17.
284 Mc 4.34.
285 Calvin, Concerning the Eternal Predestination of God, p. 95.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 92

razão, quando Jesus explicou claramente aos Seus poucos discípulos o


significado das palavras, e eles creram nos Seus ensinos, Ele exclamou:
"Bem aventurados os vossos olhos porque vêem e os vossos ouvidos porque
ouvem". A necessidade de uma obra regeneradora de Deus é absolutamente
evidente, para que as pessoas possam ver com os olhos, ouvir com os
ouvidos, e crer com o coração.
Exemplo 5286.

Nesse exemplo, está clara a idéia de que a graça regeneradora, que é a


causa da fé, não é concedida a todos. Quando a pregação é ministrada aos
homens em geral, somente dão ouvidos a ela, crendo nela, aqueles que são
ovelhas de Cristo. Os demais são preteridos, sem que a causa delas esteja
neles. Simplesmente a graça regeneradora para entenderem a mensagem de
Jesus Cristo não lhes é concedida.
Somente aqueles que são chamados 'minhas ovelhas' é que crêem em
Jesus, seguindo-o. As outras pessoas, que não são suas ovelhas, são
omitidas na distribuição da graça regeneradora, embora eles tivessem
interpelado para Jesus, para que este dissesse quem realmente Ele era. Ao
que Ele retorquiu: "Já vo-lo disse e não credes". A seguir, Ele disse a razão
porque eles não criam: "Porque não sois das minhas ovelhas". Portanto, a
razão da crença está no fato de serem ovelhas, e não tornarem-se ovelhas
porque creram. A fé é uma conseqüência de as pessoas pertencerem ao
rebanho de Cristo, escolhidas para esse fim.
Exemplo 6287.

Nesta passagem, a idéia de preterição é clara, embora o texto não trate


necessariamente da privação da obra regeneradora.
Contudo, há a noção de redenção, de purificação nela. A idéia é a de
que Deus deu a uns e omitiu a outros na distribuição de Suas graças. O fato
de Deus agir soberanamente causou ira da parte dos judeus, porque os dois
exemplos citados mostram que Deus dá a quem Ele quer, e omite a quem
quer em sua bondade, especialmente quando a bondade é dada a
estrangeiros e os omitidos são os judeus. Isso era uma razão dupla para a
tremenda ira deles288. Que Deus não contempla muitos com a sua graça é
fato evidente! Sem essa graça, todos ficam mortos em delitos e pecados,
impuros com os outros leprosos e esfomeados com as outras pessoas.
Exemplo 7289.

Exemplo 8290.

Nesta passagem de Romanos, vemos claramente o contraste entre os


beneficiários da eleição da graça, que são uns poucos, em comparação com
os muitos que são preteridos na distribuição da salvação.

286 Jo 10.24-27.
287 Lc 4.25-28.
288 Lc 4.29-30.
289 Rm 9.17-22; 2 Tm 2.20.
290 Rm 11.5-10.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 93

É importante perceber que Paulo está estabelecendo o contraste para


tornar o assunto da predestinação claro. Alguns poucos foram alcancados
pela eleição graciosa. Outros, a quem Paulo chama de 'os mais' ou 'o
restante', tiveram uma situação desfavorecida: "foram endurecidos". O texto
acrescenta que 'o restante' foi deixado 'num espírito de entorpecimento',
aplicando um vaticínio de Is 29.9-10.
Não somente os judeus do tempo de Isaías, mas também os do tempo
de Paulo andavam numa situação espiritual calamitossa que eram como se
tivessem cheio de torpor, insensiveis, porque estavam sem a graça
renovadora de Deus. A obra de Deus de entorpecer, ou dar espírito de
profundo sono é mais negativa que positiva. ao invés de se entender que eles
eram capacitados para ouvir e para ver, mas Deus lhes tirou esta
capacidade, deve ser entendido que Deus não lhes condedeu a capacidade de
ver, de ouvir ou de crer com o coração291. Esse torpor é algo que não lhes foi
tirado como conseqüência da ausência da graça regeneradora. Este espírito
de entorpecimento deve ser atribuído à ausência da operação graciosa. Sem
esta obra de Deus o pecador fica totalmente insensível às impressões e
influências do evangelho. Quanto mais Deus retira a sua influência de sobre
o pecador, mais ele se torna entorpecido, insensível às coisas boas
espiritualmente.
Exemplo 9292.

Novamente, como em Rm 11, Paulo faz um contraste entre os eleitos e


os reprovados293.
O argumento de Paulo é que os incrédulos tropeçam na Pedra Angular
por causa da sua desobediência voluntária à Palavra. Mas a força do
argumento está no fato deles desobedecerem por causa de um decreto
divino. É-nos dito que eles são desobedientes porque 'foram postos para
isso'. a palavra grega usada no verso 8 (e)te/qhsan), que é traduzida como
'foram postos' tem a força de um propósito. Ele deve ser traduzido como
'para o que foram destinados'. A voz passiva desse verbo indica que o destino
deles não era produto de uma escolha consciente. Eles desobedeceram
conscientemente, obedecendo às disposições dos corações pecaminosos
deles, mas faltava-lhes a capacidade de agir de forma diferente. Deus não
agiu positivamente no sentido de reverter o quadro deles. Por essa razão é
que o texto diz que eles foram destinados a continuar naquele quadro de
desobediência.
Deus omitiu-lhes a graça regeneradora, em contraste com a doação dela
aos seus eleitos, como está exposto no verso 9, que diz que Deus 'os libertou
das trevas para a Sua maravilhosa luz'. Esses eleitos enxergavam, tinham a

291 Herman Hoeksema sustenta essa opinião: "O significado não é que o homem natural começa por
estar debaixo da influência da pregação da palavra por ter uma certa receptividade pelo evangelho e
pela graça de Deus, mas que agora por meio de um processo de endurecimento ele perde essa
receptividade. Este não pode ser o significado". (God's Eternal Good Pleasure, Grand Rapids,
Reformed Free Publishing Association, 1979, p. 261).
292 1 Pe 2.8-9.
293 Eles tropeçam por estarem cegos e surdos, sem qualquer luz ou guia, a despeito deles existirem.

Nota de aula.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 94

graça regeneradora, enquanto que os outros permaneciam em


desobediência, 'para o que foram postos', isto é, sem a capacidade e,
portanto, sem a possibilidade, de verem em Cristo, a Pedra Angular, a pedra
de salvação.
Exemplo 10.

As cidades de Corazim, Betsaida e Cafarnaum 294 haviam presenciado


os sinais e maravilhas operadas por Jesus e ouvido sua pregação e, ainda
assim, permaneciam incrédulas. Foi nesse contexto que Jesus Cristo
expressou um dos pensamentos mais profundos a respeito da escolha
amorosa e salvadora e da preterição soberana295.
Há uma porção de verdades que precisam ser destacadas nesta
passagem:

a. As pessoas de Corazim, Betsaida e Cafarnaum (cidades dos judeus), onde


a pregação de Cristo havia chegado, portanto, haviam sido contempladas
com os meios de graça, foram privadas do entendimento salvador delas.
Elas foram deixadas no seu estado de incredulidade, sem que Deus
fizesse algo para tirá-los daquele estado, dando-lhes coração para crer. O
texto diz que Deus ocultou as suas maravilhas deles, embora eles as
tivessem visto. O que Jesus estava querendo dizer aqui é que a eles não
foi dado coração para entender e crer naquilo que haviam visto e ouvido;
b. Jesus Cristo disse que algumas pessoas, a quem ele chama de
'pequeninos', que não são crianças, mas os desprezados da sociedade, em
comparação com os sábios e entendidos daqueles lugares (e de todos os
lugares), foram o objeto da graça renovadora de Deus de tal forma que
eles vieram a conhecer o Pai através do Filho;
c. O texto também diz de maneira inequívoca que Jesus é quem revela o Pai
àqueles a quem Ele quer. Em outras palavras, se Jesus esconder a
verdade sobre o Pai, ninguém poderá conhecê-lo. E muitos tem sido
preteridos nesta matéria. Somente alguns tem recebido esse
conhecimento salvador de Deus;
d. O texto torna claro que a preterição é uma matéria da vontade do Pai. É
do seu agrado fazer uma coisa ou outra, isto é, revelar a uns e ocultar a
outros as suas verdades;
e. O texto nos ensina que Jesus se alegrou naquilo que Deus fez296. Jesus
se alegrou porque Deus resolveu se revelar aos pequeninos e também
porque Deus ocultou as coisas da redenção dos sábios e entendidos. Ele
se alegrou naquilo em que muitos de nós nos entristecemos, porque
ficamos decepcionados pela maneira como Deus age. Ele se alegrou na
soberania de Deus, e assim deveríamos fazer todos nós!

294 Mt 11.21-24.
295 Mt 11.25-27.
296 Lc 10.21-22 usa a palavra 'exultou'.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 95

Causa da preterição.

I. A causa da preterição não é o pecado.

Quando se tenta encontrar uma razão para a preterição, logo se pensa


no pecado. Esta parece ser a razão mais plausível e óbvia. Nós sempre
procuramos acusar alguém pelas coisas duras contra as quais não temos
muita simpatia. Esta é uma delas. Como a causa da eleição não está dentro
do próprio homem, assim também não podemos encontrar a causa da
preterição no próprio homem. Portanto, não podemos dizer que a causa da
preterição seja o pecado, porque os eleitos também são pecadores. Se a
causa da eleição estivesse dentro do pecador, ninguém seria eleito. Portanto,
ninguém é deixado de lado porque é pecador.
A Escritura afirma categoricamente que Esaú foi preterido não porque
ele era pior do que Jacó. Ao contrário, segundo a idéia que a Escritura nos
passa, o pior foi eleito e o menos ruim foi preterido. A causa tanto da eleição
de Jacó como a da preterição de Esaú não estava dentro deles. Portanto,
nunca devemos encontrar a causa da preterição nos pecados dos homens.
II. A causa da preterição não é o pré-conhecimento do pecado.

Alguns se aventuram a dizer que Deus conhece todas as coisas de


antemão (o que é verdade), para justificar a causa da preterição no
conhecimento futuro que Deus tem dos pecados dos homens.
Geralmente são os arminianos que se aventuram nessa afirmação
porque, assim como a eleição está baseada em atos futuros que os homens
farão, da mesma forma, a não salvação deles está vinculada a uma previsão
de eu eles não haveriam de crer. Com base nesse conhecimento futuro da
incredulidade deles, Deus resolveu não salvá-los.
Esse raciocínio torna a base tanto da salvação como da não salvação
deles como nascidas neles próprios. Contrariamente, devemos pensar que
tanto uma razão quanto a outra estão em Deus. Tratando sobre essa
matéria, analisando Pv 16.4, Calvino disse:
"Visto que a disposição de todas as coisas está nas mãos de Deus; visto que a
decisão da salvação ou da morte descansa no Seu poder, assim Ele ordena por
seu plano e vontade que entre os homens alguns são nascidos destinados para a
morte certa desde o ventre, que glorifica o Seu nome... Ambos, a vida e a morte,
são atos da vontade de Deus mais do que de Sua presciência"297.
Portanto, não devemos nunca colocar a causa da preterição de pessoas
particulares na presciência divina. Seria tirar Deus do controle, colocando
tudo nas mãos dos homens.
III. A causa da preterição é a soberania divina.

A causa da eleição está claramente afirmada na Escritura: é o amor de


Deus, mas a causa da preterição está escondida de nós. Deus não revelou a

297 Institutas, III, 23.6.


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 96

sua causa. Por essa razão, devemos respeitosa e reverentemente atribui-la à


Sua soberania.
Já foi dito que a causa não é o pecado, nem o pré-conhecimento do
pecado. A causa está fora de nós. Ela está em Deus. Esta é uma das facetas
daquilo que Lutero chamou de Deus Absconditus. Nem todas as coisas
relativas ao homem Ele nos deu a conhecer.
Assim como em amor 'Ele tem misericórdia de quem Ele quer', também
'Ele endurece a quem quer', sem mencionar a razão dessa sua atitude.
Ambas são decisões de Deus. Ele contou-nos apenas a razão de uma e não
da outra.
Calvino, como sempre corajosamente, põe nestas palavras a sua idéia,
quando trata do caso de Jacó e Esaú:
"Você vê como Paulo atribui ambas as decisões a Deus somente? Se, então, não
podemos determinar a razão porque Ele concede misericórdia para os seus,
exceto porque isso agrada a Ele, também não teremos qualquer razão para
rejeitar outros, a não ser na Sua própria vontade. Porque quando é dito que Deus
endurece ou mostra misericórdia a quem Ele quer, os homens são advertidos por
isto a não procurar nenhuma causa fora da Sua vontade"298.
Calvino entende que este é o decretum horrible, mas não há outra
resposta além da vontade de Deus. O que o homem apresenta não pode ser
nunca a razão da preterição de Deus.

Condenação.

Definição de condenação.

É um ato pelo qual Deus traz as pessoas, que foram deixadas nos seus
próprios pecados, à punição, por causa dos seus pecados.

Exemplos de condenação.

Exemplo 1299.

Exemplo 2300.

A base da condenação.

A base dessa condenação, como os exemplos puderam mostrar, é


judicial, não soberana. Deus não condena as pessoas porque Ele é soberano,
mas porque Ele é justo. É a santidade relacional de Deus que o faz

298 Institutas, III, 22.11.


299 2 Pe 2.1-22.
300 Jd 4.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 97

manifestar a Sua justiça. Porque Ele é justo ele não pode deixar de
manifestar justiça a merecedores da Sua condenação.

A causa da condenação.

A causa da condenação está na própria pessoa. Deus não condena as


pessoas porque Ele é soberano, mas porque elas são pecadoras.
A causa da preterição está fora do homem, mas a causa da condenação
está dentro dele. Devemos insistir no fato dos homens serem culpados de
seus pecados. Deus tem ordenado aos homens não pecarem. Ele diz 'não
farás isto'. Os homens devem sempre ser considerados responsáveis por
seus atos. Essa verdade não pode ser esquecida quando estudamos o
assunto da condenação que Deus traz sobre os homens.

Características da reprovação.

I. A reprovação envolve um decreto eterno.

A reprovação está vinculada a um decreto eterno de Deus, que


comumente os teólogos chamam de decreto permissivo. Por permissivo deve
ser entendido algo que Deus deixa de fazer, antes do que aquilo que ele
positivamente faz. Esta parte é clara quando se fala a respeito da preterição.
Calvino não titubeou em afirmar que a reprovação é produto de um
decreto301. Não há como fugir deste fato, embora não possamos dar as razões
últimas daquilo que Deus faz. Ele disse que faz, mas nem sempre diz as
razões últimas.
Calvino confessava que a queda é parte do decretum horribile, e afirma:
"Todavia, ninguém pode negar que Deus pré-conheceu qual o fim que o homem
teria antes mesmo de tê-lo criado, e consequentemente pré-conheceu porque
tinha assim ordenado pelo seu decreto... E não deve parecer absurdo para mim
dizer que Deus não somente prevê a queda do primeiro homem, e nele a ruína de
seus descendentes, mas também a atribui de acordo com a sua própria decisão.
Pois como pertence à sua sabedoria preconhecer tudo que está para acontecer,
assim pertence ao seu poder governar e controlar tudo por sua mão'302.
Nada da reprovação foge do decreto divino, mas nada pecaminoso é
realizado na história sem que o homem seja participante voluntariamente.
II. A reprovação é particular303.

A reprovação e a responsabilidade humana 304.

301 Na sua definição de Predestinação ele a chamou de 'o decreto eterno de Deus...'(Institutas, III, 21.5).
302 Institutas, III, 23.7.
303 Klooster, p. 59.
304 Klooster, p. 83; Shedd, p. 441.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 98

O alvo final da eleição e da reprovação.

O alvo final da eleição e da reprovação é a glória de Deus e a


manifestação de alguns de Seus atributos. É uma crença calvinista a de que
Deus faz todas as cousas para a Sua própria glória. Este é o propósito último
de todos os Seus atos. João Calvino disse que 'o mundo todo é constituído
com a finalidade de ser o teatro de Sua glória'305. Pelo menos é isto que a
Escritura nos ensina. E porque ela nos ensina, devemos crer nela.

Com respeito à eleição.

Quando Deus elege um pecador para a salvação, alguns atributos Seus


tem que ser manifestados: para que a eleição eterna para a salvação seja
uma realidade histórica na vida dos homens, alguns atributos de Deus são
exercitados.
1. Quando Deus concede a graça regeneradora, tirando o pecador da morte,
concedendo-lhe o principio de vida, o atributo da sua bondade graciosa é
glorificado306;
2. Quando Deus elege uma pessoa para a salvação, mostrando misericórdia
ao pecador, o atributo da Sua vontade soberana é glorificado. É esta a
idéia que o texto de Rm 9.15-18 apresenta. É por causa das Suas
misericórdias que os homens não são consumidos! É a manifestação das
Suas misericórdias estão vinculadas ao exercício de Sua vontade
soberana.

Com respeito à reprovação.

Segundo Calvino, Paulo deixa claro que 'os reprovados são levantados
para que por eles glória a Deus possa ser manifesta'307. A Escritura indica,
em Pv 16.4, que o 'Senhor fez todas as coisas para determinados fins, e até o
perverso para o dia da calamidade'. Não há nada neste mundo sem
propósito. Todas as coisas são acontecidas no universo de Deus para que
Ele, em última instancia, seja glorificado na manifestação dos Seus
atributos.
1. Quando Deus deixa o pecador no jeito em que ele está, sem conceder-lhe
a graça regeneradora, o atributo da Sua soberania é glorificado. Jesus
Cristo glorificou a soberania de Seu Pai quando este deixou de
revelar-se salvadoramente a alguns homens, omitindo-lhe a graça
regeneradora;
2. Quando Deus endurece o pecador, tirando dele a Sua influência
restringente e santificadora, fazendo-o afundar em seus pecados, Ele
manifesta a glória do Seu poder. Foi exatamente isso o que ele disse em
Rm 9.16-18.

305 Institutas, I, 3.5. Ver também John Calvin, Concerning Eternal Predestination, (London: James
Clarke & Co. Limited, 1961, edition translated by J.K.S. Reid), p. 97.
306 Ef 2.1-5.
307 Institutas, III, 22.11.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 99

Assim como Ele usa o Seu poder para colocar um novo coração,
vencendo todas as indisposições dos homens contra Si, Deus também usa o
Seu poder para fazer com que os homens sejam diminuídos na Sua
presença. Deus mostrou a farão que Ele era poderoso, e que farão não tinha
poder nenhum. E o modo de Deus mostrar o Seu poder foi deixar os homens
nas suas próprias imundícies, o que a Escritura chama de 'endurecer' o
coração. Fazendo isso com Faraó, o nome de Deus foi conhecido de toda a
terra.
3. Quando Deus deixa o pecador nos seus pecados, sem mostrar-lhe a
misericórdia, punindo-o, portanto, o atributo da Sua justiça é glorificado.
Calvino enfatizou enormemente a glória da justiça divina. Ele disse:
"Onde você ouve a glória de Deus mencionada, pense da Sua justiça. Pois
o que quer que mereça ser louvado deve ser justo" 308. A destruição do
ímpio, que tem a ver com a Sua justiça, tem i propósito da manifestação
da glória de Deus! Comentando sobre Pv 16.4, Calvino disse: 'Visto que a
disposição de todas as coisas está nas mãos de Deus; visto que a decisão
de salvação ou da morte descansa no Seu poder, Ele assim ordena por
Seu plano e vontade que entre os homens alguns são nascidos e
destinados para a morte certa desde o ventre, que glorifica o Seu nome
pela própria destruição deles'309.
Tanto a salvação como a condenação final do homem não são um fim
em si mesmos, mas todas as coisas existem para a glória de Deus seja
manifesta em toda a sua plenitude.

Calvinismo e arminianismo comparados.

A diferença no assunto de eleição e reprovação entre os dois maiores


sistemas de teologia é enorme. Veja a comparação 310 entre eles nas
doutrinas da eleição e preterição e outras doutrinas:

1. Com relação à fé e incredulidade.

No Sistema Calvinista, a eleição precede a fé e a preterição precede a


perseverança na incredulidade.
No que diz respeito à fé: Deus elege o pecador concedendo-lhe a graça
regeneradora, e a fé em Cristo é uma conseqüência dessa graça. Portanto, a
fé é o resultado final da eleição311.
No que diz respeito à preterição Deus 'passa por alto' alguns, isto é,
omite-os na distribuição da graça regeneradora, e a incredulidade final é
uma conseqüência lógica. O pecador já é um incrédulo, mas sem a graça
regeneradora, ele permanece infindamente em incredulidade. Nesse caso,
Deus é a causa eficiente e o autor da fé, não da incredulidade. O decreto da

308 Institutas, III, 23.8.


309 Institutas, III, 23.6.
310 idéias sacadas de W.G.T. shedd, vol. 1, p. 448-450.
311 At 13.48, Tt 1.1.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 100

eleição é eficaz e dá origem à fé. O decreto de não salvar é permissivo, e


meramente permite que a incredulidade já existente continue.
No sistema calvinista, tanto a razão porque Deus resolve eleger e amar a
alguns como a de não conhecer a graça regeneradora a outros é
desconhecida de nós. Embora a razão esteja em sua soberania, ela não nos é
revelada.
No Sistema Arminiano, a eleição é subsequente à fé, e a preterição é
subsequente à perseverança em incredulidade.
No que respeita à fé, Deus elege um indivíduo porque a sua fé é
prevista. Este é o ponto fundamental da teologia Arminiana.
No que respeita à preterição, Deus omite a graça regeneradora sobre o
indivíduo por causa da sua persistência em pecado e porque sua
incredulidade é prevista.
Segundo o esquema teológico Arminiano, a fé e a perseverança na
incredulidade já ocorreram na mente divina. A eleição e a preterição são o
resultado da fé e da incredulidade.
As razões tanto da eleição como da preterição são, portanto,
conhecidas: da eleição é a fé; da preterição é a incredulidade.

2. Com relação à base da eleição e preterição.

No sistema Arminiano a eleição e a preterição são judiciais, não atos


soberanos de Deus. A relação é de recompensa e de punição. Porque o
homem haveria de crer, ele foi eleito. A recompensa da fé, portanto, é a
eleição, porque uma pessoa persiste no pecado e na incredulidade, ele é
passado por alto na distribuição da graça regeneradora. A punição pela
incredulidade, portanto, é a preterição.
No sistema calvinista, os atos da eleição e da preterição não são
judiciais, mas soberanos. Uma pessoa é eleita por causa do amor soberano
de Deus, porque Deus resolveu colocar o Seu coração sobre ela, não porque
Ele previu que ela iria crer no futuro. Uma pessoa é preterida, isto é, ela não
é contemplada com a graça regeneradora, por causa da soberania divina,
não porque ele haveria de persistir em pecado e na incredulidade.
Portanto, no esquema Arminiano de eleição e preterição, é eleição e
preterição de qualidades, isto é, de fé e de perseverança em incredulidade.
Contudo, no esquema calvinista a eleição e preterição são de pessoas,
isto é, eleição de Pedro, Paulo, e preterição de Judas, muitos judeus e
gentios, etc. não de qualidades.

A importância prática da doutrina da Predestinação.

Estas duas doutrinas, a da eleição e a da reprovação, são dois lados da


mesma moeda, dois lados opostos da mesma verdade, dois hemisférios do
mesmo globo: um lado brilhando com a luz do amor divino e da beleza da
santidade, e o outro lado, o escuro, com a manifestação da Sua soberania e
da Sua justiça por causa do negror do pecado humano. Ambos são úteis
para que entendamos quem Deus é, quem é o homem e o que Deus faz com
ele, e como devemos nos postar diante de tudo isso.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 101

A doutrina da Predestinação não é uma mera teoria sem qualquer


finalidade prática.

I. Ela tem implicações enormes em nossa vida diária.

II. Ela faz justiça à obra de Deus na salvação do pecador.

III. Ela faz justiça ao conceito de liberdade do homem.

IV. Ela é consistente com a totalidade da Escritura.

V. Ela deve ser pregada publicamente sem qualquer temor.

Todos os ministros e crentes reformados deveriam ter a alegria de


pregar estas coisas privada e publicamente, por várias razões:
a. A doutrina da Predestinação deve ser ensinada e proclamada
publicamente porque simplesmente ela é a expressão da verdade de
Deus. Somente esta razão seria suficiente;
b. A doutrina da Predestinação deve ser ensinada e proclamada
publicamente porque ela nos aponta como objetos especiais do amor de
Deus, assim como de Sua soberania e justiça;
c. A doutrina da Predestinação deve ser ensinada e proclamada
publicamente porque ela produz a certeza de que Deus levará nossa
salvação até o final312;
d. A doutrina da predestinação deve ser ensinada e proclamada
publicamente porque ela é altamente consoladora;
e. A doutrina da Predestinação deve ser ensinada e proclamada
publicamente porque a Escritura o faz em muitos lugares. Ela é parte de
'todo conselho de Deus' que Paulo ensinou313;
f. A doutrina da predestinação deve ser ensinada e proclamada
publicamente especialmente porque nosso Salvador fez isso314!
Esta doutrina não foi ensinada somente a algumas pessoas, mas às
multidões. E a Escritura diz que esta doutrina causava ao mesmo tempo
espanto e admiração e revolta em algumas pessoas, porque elas não
esperavam que Deus fosse do jeito que Ele é.
Alguns ministros se negam a pregar esta doutrina porque dizem que ela
causa muita confusão. É verdade. Ela pode causar confusão porque ela não
é ensinada corretamente, mas principalmente porque os homens sempre
reagem ao modo de Deus fazer as coisas. Outros ministros se negam a
pregá-la porque ela causa dor na vida de quem a ouve. Boettner nos diz:

312 Rm 8.30.
313 At 20.20-27.
314 Mt 11.25-27.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 102

'Para nós, recusar pregá-la é ser falso para com nosso Senhor Jesus Cristo e
negligenciar nosso dever para com nossos semelhantes. Ignorá-la é agir
como um medico que se recusa a operar para salvar a vida do paciente pelo
simples fato de que ele sabe que a operação vai causar dor ao paciente'315.
Outros pastores não pregam porque ela vai causar muita controvérsia.
A resposta a este problema é que muitas outras doutrinas causam
controvérsia e, contudo, os pastores pregam. Não podemos evitar a oposição
das pessoas. Jesus sempre enfrentou oposição quando Ele pregou sobre a
doutrina da depravação humana e sobre a salvação. Os homens sempre
reagirão negativamente ao modus operandi de Deus. Portanto, estas coisas
não são motivo para deixarmos de pregar privada e publicamente esta
importante matéria da Escritura.
Uma coisa é extremamente necessária para o ministro que a prega: ele
deve entendê-la corretamente e crer nela de todo o seu coração. Quando ele
prega com absoluta convicção esta verdade de Deus, o seu povo será
impactado com sua mensagem. Deus haverá de abençoar honrando a
pregação fiel de sua verdade.

315 Boettner, p. 347.


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 103

CAPÍTULO 2.

A DOUTRINA DA CRIAÇÃO.

O estudo dos decretos leva naturalmente à consideração de sua


consecução, que começa justamente com a criação, que é o princípio da
existência histórica de todas as cousas. Logicamente, a criação é a primeira
execução do plano decretivo de Deus, pois as outras partes, como a
Predestinação e a providência, dizem respeito às coisas e aos seres já
criados.
A criação é a grande afirmação de abertura da revelação registrada nas
Escrituras. Estas já partem da grande pressuposição de que Deus é o
Criador, que advém da outra grande pressuposição de que Ele existe. O fato
de que Deus existe leva-nos à conclusão de que Ele também age. A primeira
obra de Deus fora de si mesmo (opera ad extra) é a criação do universo. Deus
existe eternamente, como as Escrituras pressupõem e, como tal, ele deve ser
o Criador, pois a nossa existência pressupõe essa verdade. Se Deus existe,
Ele é o Criador, e, de necessidade, todas as coisas vem dele e subsistem
nele.
A doutrina da criação em nenhum lugar da Escritura aparece como
sendo a solução filosófica para o problema do mundo, mas ela é mostrada
em sua importância ética e religiosa, que fornece fundamento para a relação
entre o Criador e a criatura. Esta doutrina afirma o fato de que Deus é a
origem última de todas as cousas, e que todas as cousas pertencem a Ele e
lhe são sujeitas. Não existe qualquer prova científica de que Deus é o autor
da criação. Nunca ninguém haverá de demonstrar qualquer investigação
científica da origem de todas as cousas. Ela está escondida em Deus e a
afirmação de que Deus é o criador absoluto do universo tem que ser aceita
pela fé316.

a. Base bíblica para a doutrina da criação.

A base bíblica para a doutrina da criação é extremamente farta. Em


cada parte da Escritura podemos perceber afirmações inequívoca de Deus
como sendo o Criador. Não há possibilidade de haver qualquer engano ou
uma interpretação falsa desse ensino nas Sagradas Escrituras. Temos que
simplesmente crer nas suas afirmações.
As várias passagens abaixo, referentes à criação, podem ser
distribuídas da seguinte forma:

316 Hb 11.3.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 104

a. Passagens que afirmam a onipotência de Deus na obra da criação317;


b. Passagens que apontam para a exaltação de Deus acima da natureza
como o grande e infinito Deus318;
c. Passagens que se referem à sabedoria de Deus na obra da criação319;
d. Passagens que consideram a criação do ponto de vista da soberania e
do propósito de Deus na criação320;
e. Passagens que falam da criação como uma obra fundamental de
Deus321.

b. A idéia da criação.

O Credo dos Apóstolos começa com a seguinte sentença: "Creio em


Deus Pai, Todo-Poderoso, CRIADOR do céu e da terra..."- Esta é uma das
primeiras grandes afirmações de fé da Igreja de Deus, que possui a mais
firme fundamentação nas Sagradas Escrituras.
O verbo 'criar' foi entendido pela Igreja desde os tempos antigos como
significando que Deus 'traz à existência algo do nada'. Esta frase é expressa
em latim como creatio ex-nihilo322. Que Deus traz à existência as cousas do
nada é uma verdade que não podemos contestar logicamente, quando se
trata da criação original e primeira das coisas que não existiam. Contudo,
não podemos nos esquecer de que a Escritura nem sempre usa o verbo
hebraico 'bara' e o termo grego 'ktizein' nesse sentido absoluto. Ela também
emprega essas palavras num sentido secundário da criação, no qual Deus
faz uso de material preexistente, para produzir algum resultado palpável.
Exemplo disso pode ser encontrado em Gn 1.27, onde é dito que Deus criou
o homem, mas ele usou um material preexistente, que é o barro. Is 54.16
também mostra o mesmo verbo sendo usado, mas de uma forma secundária,
onde Deus 'cria o ferreiro'. Obviamente, o sentido de 'criar' aqui não significa
que Deus trouxe à existência algo que não havia antes, mas sim que ele
dotou homens para exercerem a profissão de ferreiros para fins
determinados, estes termos também são usados para denotar o governo
providencial de Deus323.
Há outros dois termos usados na Escritura como sinônimos de
'criar'(bara): 'fazer'(heb. 'asah'; grego 'poiein') e 'formar' (heb. 'yaysar' e grego

317 Is 40.26-28; Am 4.13.


318 Sl 90.2; 102.26-27; At 17.24.
319 Is 40.12-14; Jr 10.12-16; Jo 1.3.
320 Is 43.7; Rm 1.25.
321 Cl 1.16; Ne 9.6; Is 42.5; 45.18; Ap 4.11; 10.6.
322 A expressão 'criar do nada' (creatio ex nihilo) não é encontrada nas Escrituras. Fazer isso é

equivalente a dizer que o mundo veio à existência sem uma causa. Contudo, a Escritura afirma que a
vontade de Deus é a causa da existência de todas as coisas (ap 4.11). Se a frase latina ex nihilo nihil fit
(do nada, nada se faz) é tomada como que significando que não há nenhum efeito sem causa, sua
verdade pode ser admitida, mas não pode ser considerada como uma objeção válida contra a doutrina
da criação do nada. Por causa da confusão do significado da palavra 'nada', é preferível falar da
criação causada sem o uso de material preexistente (Berkhof, Teologia Sistemática, 157).
323 Sl 104.130; Is 65.18.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 105

'plasso'). Todas estas três palavras são encontradas juntas no mesmo verso
de Isaías 45.7.

Definição.

A criação pode ser definida, num sentido bem estrito, como 'aquele livre
ato de Deus através do qual Ele, de acordo com a sua soberana vontade e
para a Sua própria glória, no começo deu origem, ao universo visível e
invisível, sem o uso de material preexistente e, assim, tudo veio à existência,
distinto dele próprio e, todavia, sempre dependente dele'324. Contudo, como a
Escritura usa o verbo 'bara' como um significado secundário, como sendo a
criação com material preexistente, alguns teólogos ampliam a definição de
criação, dizendo: "A criação é aquele ato pelo qual Deus produz o mundo e
tudo o que nele há, parcialmente vindo do nada e parcialmente do material
já existente pelo Seu próprio poder, para a manifestação da Sua glória, Seu
poder, Sua sabedoria e bondade'325.

c. Verdades gerais sobre a criação.

Essas verdades abaixo são retiradas da Teologia Sistemática de Berkhof


(p. 153-161), mas com ênfases ligeiramente diferentes.

1. A criação é um ato do Deus triuno.

Como em todas as opera ad extra, nenhuma das pessoas da trindade


opera absolutamente só. Todos os atos que saem do Ser divino geralmente
são compartilhados pelas três pessoas. É assim que acontece com a salvação
do pecador, porque foi assim que aconteceu com a criação do universo físico
e de todas as coisas que existem.
Na obra da criação Deus não teve a ajuda de ninguém porque somente
Ele é eterno e, portanto, estava sozinho quando trouxe todas as coisas à
existência326. Quando o texto diz que Deus fez todas as coisas sozinho, quer
dizer que não havia nenhum outro ser, além do Ser divino que subsiste
trinitariamente.

I. A obra da criação é atribuída ao Pai.

A Escritura abre as suas cortinas afirmando que 'no principio criou


Deus os céus e a terra'327. Esse é o Deus verdadeiro, em contraste com os
falsos deuses apresentados pelas outras religiões. Combatendo o dualismo
persa, de que há um Deus bom e um outro mal, típico da religião persa,

324 Berkhof, Teologia Sistemática, 152 (edição castelhana)


325 Ibid.
326 Is 44.24b.
327 Gn 1.1.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 106

Deus se dirige a Ciro dizendo que não há nenhum outro Deus além d'Ele.
Após essa afirmação ser dita várias vezes no capitulo 45 de Isaías, Deus diz
a Ciro: "Eu fiz a terra, e criei nela o homem; as minhas mãos estenderam os
céus, e a todos os seus exércitos dei as minhas ordens" 328 . No meio das
nações pagãs em que vivia Israel, o profeta jeremias sentiu-se obrigado a
alertar o povo de Israel a tomar partido do verdadeiro Deus, apelando para o
fato d'Ele ser criador329. Foi exatamente esse Deus que Paulo apresentou aos
idólatras atenienses, quando afirmou que Ele é o Criador de todas as cousas,
contrastando-o com os outros deuses que não eram nada330. Os verdadeiros
crentes nunca tiveram problemas com Deus na sua função de criador.
Sempre o reconheceram como o criador de todas as cousas. O rei Ezequias,
como representativo desses crentes, afirmou: "Ó Senhor dos Exércitos, Deus
de Israel, que estás entronizado acima dos querubins, tu somente és o Deus
de todos os reinos da terra; tu fizeste os céus e a terra"331.

II. A obra da criação é atribuída ao Filho.

O Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Trindade, que também é


chamada de Verbo de Deus, participou do ato criador. Geralmente, a teologia
atribui ao Filho o papel de agente de criação. Todas as coisas que Deus faz,
Ele as faz por meio de Cristo.
Há alguns textos da Escritura que colocam de maneira inequívoca
Jesus como o agente da criação. Tratando da divindade e da eternidade do
verbo, o apóstolo João diz que 'todas as cousas foram feitas por intermédio
d'Ele (Verbo), e sem ele nada do que foi feito se fez'332. Logo mais abaixo diz
literalmente que 'o universo (ko/smoj) foi feito por intermédio dele' (verso 10).
Por uma questão da economia da trindade, em todas as cousas Jesus Cristo
é o agente. É Ele quem opera criadoramente. A agencia do Verbo Encarnado,
Jesus Cristo, na obra criadora de Deus, está patente da afirmação de Paulo:
"todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as cousas, e nós
também por ele"333. Escrevendo aos crentes de colossos, Paulo deixa ainda
mais clara a idéia da agência criadora de Jesus Cristo, que é o Senhor
eterno334. O escritor aos Hebreus confirma a idéia apresentada pelos outros
dois escritores, João e Paulo, de que Jesus Cristo é o agente da criação:
"nestes últimos dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de
todas as cousas, pelo qual também fez o universo"335.

III. A obra da criação é também atribuída ao


Espírito.

328 Is 45.12.
329 Jr 10.10-11.
330 At 17.
331 Is 37.16.
332 Jo 1.3.
333 1 Co 8.6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 107

O Espírito Santo, a terceira pessoa da trindade, é participante da


criação. Todavia, de acordo com as suas funções gerais na economia da
trindade, é tido como aquele que dá vida à criação, colocando-a em ordem.
Gn 1.2 afirma que 'a terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre
a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas'. O verbo
hebraico que é traduzido por 'pairar' dá a idéia de o Espírito, como uma ave
que deita sobre os ovos, comunicar vida ao universo criado. Assim como Ele
é o criador da vida espiritual, também o é da vida natural. Em dois lugares o
sofredor Jó dá testemunho da obra criadora do Espírito Santo. Na
primeira 336 , a expressão usada em nossa língua é 'vento', mas na
segunda337, não há qualquer equivoco sobre a vida que o Espírito criador
traz: "o Espírito de Deus me fez; e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida". O
salmista Davi confirma a verdade dita alguns séculos antes por Jó, quando
falando de todos os seres animados338 . O profeta Isaías, de uma maneira
poética, também mostra que o Espírito de Deus é o Espírito Criador339, não
recebendo orientação ou conselho de ninguém fora da própria divindade.
Contudo, a obra da criação não é dividida em três partes, sendo que
cada uma delas cabe a uma das pessoas, mas é crido na teologia cristã que
a obra da criação deve ser atribuída às três pessoas da trindade, embora
cada uma delas possua aspectos diferentes na obra criadora. Para colocar de
uma forma resumida, podemos dizer que todas as cousas imediatamente
procedem do Pai, por meio do Filho e no Espírito Santo. Todavia, com muito
maior freqüência a obra da criação é mais atribuída ao Pai em virtude da
iniciativa das coisas ser toda dele, e também pelo aparecimento genérico do
nome Deus.

2. A criação é um ato da livre vontade de Deus.

Em geral, as obras de Deus são teologicamente classificadas como


opera ad intra e opera ad extra. As primeiras são aquelas que acontecem
dentro do próprio ser divino (geração, filiação e processão) e são necessárias
n'Ele. Essas obras Deus as faz, mas não como produto de Sua vontade. As
últimas são feitas como consecução do Seu decreto. Ele as faz porque
determina fazê-las, não porque são necessárias n'Ele.
Por 'um ato da livre vontade de Deus' eu quero dizer que a criação não
era uma necessidade em Deus. Ele seria o que é sem que tivesse criado o
mundo. Deus é um ser auto-suficiente ou independente. Ele não precisa de
nada. Ele se basta. Ele não precisa do mundo para ser o que é. A criação do
mundo, portanto, não é uma necessidade em Deus. Simplesmente, Deus
resolveu criar o mundo. A criação é um ato nascido na vontade de Deus. Os
seres celestiais e os vinte e quatro anciãos, de uma maneira muito clara,

334 Cl 1.16-17.
335 Hb 1.2.
336 Jó 26.13.
337 Jó 33.4.
338 Sl 104.30.
339 Is 40.12-13.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 108

disseram: "Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e


o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade
vieram a existir e foram criadas"340. Por essa razão, Paulo, o apóstolo, disse
que 'porque d'Ele, e por meio d'Ele e para Ele são todas as coisas'341. Tudo
começa em Deus e termina n'Ele. Ele faz todas as coisas que estão fora de si
mesmo, isto é, as opera ad extra, como produto do exercício da Sua vontade.

3. A criação é um ato temporal de Deus.

A Escritura começa com a afirmação contundente de que 'no princípio


criou Deus o céu e a terra'342. O termo hebraico usado, que é traduzido como
'no princípio' não é indicativo necessariamente de uma noção temporal. Não
sabemos exatamente o sentido da palavra princípio neste lugar. Ela pode
significar eternidade (como é o caso de 'no princípio' em Jo 1.1, relativo ao
Verbo divino), mas aqui o termo é indefinido. Esse 'no princípio' seria
indicativo do começo da existência das coisas no tempo, ou do tempo
propriamente? Aqui vem a famosa questão levantada por Agostinho: Deus
criou o universo in tempore (no tempo) ou cum tempore (com o tempo)? Se
Deus criou o universo in tempore, temos de admitir que o tempo já existia
antes da criação. Tecnicamente falando, com Agostinho devemos assumir
que o universo foi criado cum tempore, pois o tempo também é parte da
criação divina, e não in tempore, pós admitir essa segunda idéia, nos levaria
a crer na 'eternidade' do tempo, o que é uma inconsistência lógica, já que
eternidade é exatamente aquilo que faz contraste com o tempo.
A grande importância da frase inicial de Gênesis é a idéia de que o
universo teve um começo. Essa idéia do escritor de gênesis é compartilhada
por outros escritores bíblicos343.

4. A criação é distinta e, todavia, dependente de Deus.

O universo não é uma extensão de Deus, nem parte dele, mas


absolutamente distinto do Criador. Isso significa que o mundo é diferente de
Deus, não meramente em grau, mas nas suas propriedades essenciais.
Somente Deus é auto-existente e, portanto, auto-suficiente, independente,
por causa da sua infinitude e eternidade. Deus nunca veio a ser o que é,
mas sempre o foi. O universo procede de Deus no sentido de ser criação dele,
sendo, portanto, finito, temporal, físico e absolutamente dependente dele. O
universo não é uma forma de existência divina, pois este último tem a sua
existência totalmente dependente de Deus. Ele é um criador transcendente.
Esta doutrina é ensinada em vários textos bíblicos344.
Ao mesmo tempo que entendemos que Deus é transcendente, Ele se
relaciona com o universo criado, emprestando Seu cuidado e preocupação

340 Ap 4.11.
341 Rm 11.36.
342 Gn 1.1.
343 Sl 90.2; 105.25; Mt 19.4-8; Mc 10.6; Jo 17.5; Hb 1.10; Ap 17.8).
344 Is 42.5; At 17.24; Sl 90.2; 102.25-27; 103-15-17.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 109

por ele. Ele envolve-se providencialmente com o universo, sustentando-o e


governando-o. Esses dois aspectos de Deus, transcendência e imanência,
podem ser claramente vistos no texto de Ef 4.6, onde é dito que Deus 'é
sobre todos, age por meio de todos e está em todos'.

5. A criação tem propósitos definidos.

Esta questão tem sido muito debatida entre os teólogos. Não se tem
chegado a um consenso, mas há duas opções básicas a respeito dos
propósitos definidos da criação.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 110

A. A felicidade da raça humana.

Alguns teólogos dizem que este é o fim principal da criação, porque o


próprio Deus não o poderia ser porque Ele é suficiente em si mesmo, e não
necessitaria de nada. Logo, o homem, a coroa da criação, seria o fim último
dela.
Contudo, esta teoria não é satisfatória, por algumas razões:
A. Embora Deus revele, sem dúvida, sua bondade na criação, não é correto
dizer que sua bondade ou amor não poderiam ser expressos se não
houvesse mundo. As relações pessoais do Deus triuno proporcionam tudo
o que é necessário para uma vida plena e eterna de amor;
B. Parece perfeitamente evidente que Deus não existe por causa do homem,
mas o homem por causa de Deus. Deus somente é o criador e o supremo
bem, enquanto que o homem é apenas criatura, e não pode ser o fim da
criação. O temporal encontra o seu fim no eterno, o humano no divino, e
não vice-versa;
C. Essa teoria não se encaixa bem nos fatos. É impossível subordinar tudo o
que é encontrado na criação por este fim, e explicar tudo ligado à
felicidade humana. Como os sofrimentos do mundo trariam alegria à raça
humana?

B. A glória declarativa de Deus.

A Igreja Cristã encontrou o fim da criação no próprio Deus, nas


manifestações externas das Suas excelências. Isto não significa que Deus
necessite dessa glória para ser o que é. Há uma glória que é inerente ao Ser
divino, sem a qual Ele não pode ser o que é. Mas esta glória é a que os
homens e toda a criação atribuem a Ele pela manifestação do Seu poder
criador345. As manifestações gloriosas de Deus estão em todas as obras da
criação, mas não é uma mera exibição vazia de um 'show'. Todavia, é o bem
estar das criaturas com a criação é que provoca nelas expressões de glória
de Deus, e a manifestação da Sua glória inclui outros fins subordinados, isto
é, a alegria dos homens, a salvação deles e a recepção do louvor dos corações
agradecidos e alegres.
Há algumas razões para se preferir esta segunda opção:
A. Ela encontra apoio seguro nas Sagradas Escrituras346;
B. A glória de Deus é o único fim consistente com sua independência e
soberania. Tudo é dependente dele. Se Deus escolhe qualquer coisa na
criatura para ser o fim último da criação, isto O faria dependente da
criatura naquele sentido;
C. A Bíblia diz que todas as coisas trazem glória a Deus, porque Deus faz
tudo para fins determinados347, até os sofrimentos e os problemas que
existem.

345 Sl 19.1.
346 Is 43.7; 60.21; 61.3; Rm 11.36; 1 Co 15.28; Ef 1.5-14; Cl 1.16.
347 Pv 16.14.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 111

d. Atitudes da criatura diante do criador.

1. Respeito348.

2. Obediência.

3. Reconhecimento de sua soberania.

4. Adoração349.

O fato de Deus ser criador nos conduz imediatamente à idéia de que Ele
deve ser adorado e servido. Por essa razão, o salmista nos exorta de uma
maneira muito feliz 350 . Esta é uma conclusão não somente razoável, mas
extremamente significativa. Essa foi a primeira reação da criatura ao ter
conhecimento de Deus. A adoração da criatura é uma atitude inescapável.
Se, por razões de perversão ética a criatura não adora o verdadeiro Deus, ela
tende a adorar a alguém que esteja no lugar dele. Isto está claro no
ensinamento de Paulo em Rm 1. Ali ele mostra que é natural aos homens
adorar algo que é maior do que ele. É parte de nossa natureza, como seres
criados, buscar e adorar o Criador. A adoração é um elemento próprio de
criaturas racionais, mas o grande problema é que essas criaturas são
depravadas e até sua adoração é afetada enormemente pela queda de Adão,
dirigindo-se por uma perspectiva distorcidamente pecaminosa. Isto quer
dizer que os homens, por si mesmos, não são confiáveis em matéria de
adoração. Por causa de seus pecados, eles acabam adorando a criatura ao
invés do criador. Por essa razão, é que necessitamos da ajuda do próprio
Deus para que a nossa adoração lhe seja aceitável.
Como seres criados, não temos opção. A adoração é alguma coisa que
lhe devemos. É inescapável em nós adorar ao Deus criador e lhe prestar toda
honra e louvor que Ele merece. Como criaturas redimidas que somos, nós,
os cristãos devemos prestar a Deus uma adoração em 'espírito e em
verdade', como Cristo preceitua, a fim de que Deus aceite o nosso culto. O
culto é uma dívida das criaturas e, mais especialmente ainda, das criaturas
redimidas. Somente estas é que podem e devem tributar a Deus um ato de
adoração verdadeira ao verdadeiro Deus.

348 Is 45.9.
349 Sl 95.6.
350 Sl 95.6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 112

e. A criação do universo físico.

O povo hebreu não é o único que possui uma narrativa da formação do


universo físico. Outras culturas antigas também possuíram relatos a
respeito da origem do universo material, especialmente a babilônica. Em
todos os relatos há uma certa similaridade ao relato dos hebreus, mas há,
sobretudo, muitas diferenças. O da Babilônia não é exceção.
Berkhof 351 diz, em linhas gerais, que o interesse na investigação do
relato da criação cresceu quando foram descobertos os registros da história
babilônica da criação. Ela fala da geração de diversos deuses, dos quais
Marduk provou ser o principal. Nenhum dos deuses teve poder para vencer o
dragão Tiamat, a não ser Marduk, que se tornou o criador do mundo, a
quem os homens adoram.
Há alguns pontos de similaridade entre o relato da criação em Gênesis e
esta estória babilônica. Ambas falam de um caos primitivo, e de uma divisão
entre as águas abaixo e o firmamento acima. O Gênesis fala de sete dias, e a
escritura babilônica fala em sete tabletes. Ambas as narrativas conectam os
céus com a quarta época da criação, e a criação do homem com a sexta.
Algumas outras semelhanças são de pouca significação, mas as diferenças é
que ficam ressaltadas. A diferença maior encontra-se nos conceitos religiosos
de ambos. O relato babilônico, diferentemente do de Gênesis, é mitológico e
politeísta. Os deuses traem e conspiram entre si. Somente Marduk alcança
êxito depois de uma prolongada luta contra forças más, e tudo ficou
desordenado.
No Gênesis encontramos o mais sublime monoteísmo, e vemos Deus
chamando à existência o universo físico e todas as outras coisas criadas,
mediante a simples palavra do seu poder. Se seguimos os relatos da
Escritura, não conseguimos perceber nada além daquilo que a Igreja Cristã
tem crido ao longo dos séculos.
Contudo, no decorrer da história, especialmente nestes últimos dois
séculos, houve contestação a respeito da origem do universo, conforme crido
pela Igreja Cristã. Neste estudo estudaremos a cosmogonia bíblica, seguida
pelos cristãos ortodoxos, e a cosmogonia seguida pelos cristãos não
ortodoxos e pelos cientistas não cristãos.

Cosmogonias em contraste.

A 'cosmogonia é o estudo das idéias a respeito da origem do cosmos'352.


A cosmogonia está intimamente relacionada com cosmologia, que é o estudo
do cosmos em todas as suas facetas.
A cosmogonia pode ser estudada de dois princípios diferentes, porque
há somente dois modelos possíveis das origens: a cosmogonia evolucionista e
a cosmogonia criacionista. Ou cremos na origem do universo por um
processo natural que ainda está em desenvolvimento, ou cremos num ato

351 Teologia Sistemática, 177-178 (edição castelhana)


352 Morris, p. 135.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 113

criador sobrenatural de Deus terminado no passado. Há algumas poucas


variações nesses dois modelos de origem, mas não há como fugir desses
dois: o primeiro de tendência profundamente humanista; o segundo, com
base na revelação divina, como registrada nas Escrituras Sagradas.
"No modelo evolucionista, o universo todo é considerado como evoluído pelo
processo natural até o estado presente de uma alta organização e complexidade.
Visto que as leis naturais e os processos são cridos operar uniformemente, tais
desenvolvimentos evolutivos são interpretados em um uniformitarianismo total.
O modelo criacionista, por outro lado, define ao menos um período de criação
direta, durante o qual os sistemas básicos da natureza foram trazidas à existência
de uma forma completa e funcional, desde o começo. Visto que o processo
'natural' não cumpre tais coisas no presente, estes processos criativos devem ter
sido processos que requereram um Criador para sua implementação"353.
Estudemos estas duas Cosmogonias sempre em contraste, porque é
quase impossível hoje vermos uma opinião sem esbarrar na outra, que é
oposta. Comecemos com a cosmogonia evolucionista, mas de um modo geral,
sem detalhes, pois estes os veremos à medida que tratarmos da totalidade
deste capítulo. Sempre o evolucionismo estará sendo mencionado, devido à
enorme importância que tem tido, especialmente neste século, de tanto
humanismo onde Deus e sua Palavra tem sido negligenciados.

A. Cosmogonia evolucionista.

Há dois tipos de Cosmogonias evolucionistas: ateísta e teísta.

i. Cosmogonia do evolucionista ateísta.

O evolucionismo ateísta ensina que a matéria é eterna ou que ela é


gerada por poderes inerentes à parte de uma inteligência suprema, ou um
Criador354.
A cosmogonia evolucionista ateísta sustenta que o cosmos realmente
não teve um começo. O cosmos é auto-existente, portanto uma espécie de
cosmos desde a eternidade, sem haver Alguém que lhe desse um começo.
Essa cosmogonia já parte de um cosmos preexistente. O que os cientistas
fazem é tentar explicar o desenvolvimento dele até o estado presente em que
ele se encontra.
A cosmogonia evolucionista é muito antiga. Os babilônicos começaram
a falar do cosmos falando do caos das águas. Eles não vão além disso. As
águas já eram alguma coisa preexistente, provavelmente desde a eternidade,
como todas as outras Cosmogonias evolucionistas. Os defensores de uma
cosmogonia moderna partem de uma explosão pressuposta de partículas
elementares, que ocasionou o cosmos da forma que ele é agora, mas o que
causou a explosão e as coisas já existentes não são explicadas. O cosmos,
em última instância, é a realidade última.

353 Henry Morrys, What Is Creation Science? (Master Books, 1987), p. 192.
354 M.R. DeHaan, Gênesis and Evolution, (Grand Rapids, Zondervan, 1962), p. 14.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 114

Todas as religiões do mundo 355 tem aceitado uma cosmogonia


evolucionista, porque todas negam a existência de um Deus transcendente,
eu está além das coisas que existem e que foram criadas. Nenhuma das
religiões do mundo crê num Deus onipotente, num Deus pessoal, ou num
Deus eterno. Seria mais fácil para eles falar da eternidade do cosmos do que
da eternidade de Deus.

ii. Cosmogonia do evolucionismo teísta.

O evolucionismo teísta admite que houve uma 'inteligência' que criou a


substância do universo e a guiou em seu desenvolvimento evolutivo356.
Infelizmente muitos segmentos do cristianismo tem seguido os ditames
de uma cosmogonia evolucionista. Muitas denominações protestantes, sem
falar no catolicismo, tem se acomodado e capitulado diante da cosmogonia
evolucionista.
Mas a cosmogonia evolucionista, mesmo sustentada pelos assim
chamados cristãos evangélicos, tem falácias. O evolucionismo:
"pretende descrever um cosmos no qual todas as coisas vem à existência e
edificam-se a si mesmas em níveis de existência mais altos e mais complexos, por
processos puramente naturais em um universo que em si mesmo é
auto-suficiente e que contém a si mesmo. Isto é, evolução é um princípio de
inovação e integração universal, funcionando em um universo de sistema
fechado"357.
A teoria evolucionista pressupõe que não há nenhum agente externo
disponível para rejuvenescer o cosmos. Ele é um sistema fechado, operando
tudo por si mesmo358. Realmente, se fosse um sistema fechado em si mesmo,
o cosmos se desintegraria porque de si e por si mesmo ele se desgasta e se
decompõe mas isto não acontece por intervenção de um elemento externo
que o mantém. "Ele não cessará de existir (pela primeira lei) e será morto
(Pela segunda lei). Visto que ele não está morto ainda, ele deve ter tido um
começo, e se ele fosse infinitamente velho, ele já deveria estar morto"359. Mas
não está porque ele foi criado por Deus e continua a ser mantido por Ele.

Teoria da "Big Bang"360.

B. Cosmogonia criacionista.

355 O budismo, confucionismo, taoísmo, xintoísmo, Shamanismo, etc. que são religiões centradas no
homem, todas elas adaptam-se de alguma forma ao sistema Darwiniano nos seus sistemas
cosmogônicos. O mesmo pode ser dito de religiões pseudo-intelectuais do ocultismo, como o
espiritismo, feitiçaria, astrologia, teosofia, e todos os outros cultos orientais, como Hare Krishna, por
exemplo. (Morris, p. 136).
356 M. DeHaan, p. 14.
357 Morris, p. 147.
358 Morris, p. 147.
359 Morris, p. 147.
360 Morris, What Is Creatino Science? (Ele Cajon, CA: Master Books, 1987), p. 257 em diante.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 115

Há várias esferas das ciências que tem ajudado enormemente as idéias


do criacionismo bíblico. Ao invés delas serem uma oposição aos informes da
Escritura, como alguns cientistas e estudiosos pensam, essas ciências tem
mostrado quão verdadeira a Escritura tem sido. Deus tem usado cristãos
cientistas para mostrar que a sua revelação é verdadeira e digna de
confiança, porque ela não falha, mesmo nas matérias que não são
eminentemente religiosas. Analisemos, em primeiro lugar, a cosmologia
criacionista.

Cosmologia bíblica.

Esta pressupõe que o cosmos teve um começo. Deus é o criador do


cosmos. O tempo e espaço, que compõe o cosmos, foram também criados por
Deus. O cosmos foi criado cum tempore, não in tempore. A cosmogonia
criacionista é encontrada somente na Escritura e defendida pelos cristãos da
ortodoxia361. A Escritura é o único livro que reivindica ser a revelação de
Deus, com autoridade divina. Por essa razão, ela nos diz a respeito da origem
do universo.
A cosmogonia criacionista tem que ser aceita pela fé362, pois essa teoria
não pode ser provada cientificamente, isto é, não há nenhum teste
laboratorial com reprodução ou simulação que prove a origem do universo e,
além disso, nenhum estudioso da criação pode ter prova de nada porque
ninguém presenciou o fiat de Deus.
O único modo de ter acesso a qualquer informação sobre a origem do
universo é apelar para a revelação divina. A única explicação para um
universo tão grande e maravilhoso, é a crença num Deus onipotente e
transcendente, que pode estar antes, além e acima do universo que Ele
próprio criou.
A Escritura mostra evidentemente a origem do universo. Ele não é
eterno, teve um começo, como o próprio tempo. Este assunto do tempo vai
além da nossa compreensão, pois fica muito difícil tratar daquilo que houve
'antes' do que chamamos tempo. Não somos capazes de tratar de categorias
além das categorias da criação chamadas 'tempo' e 'espaço'.
O cosmos não pode ter aparecido por si mesmo. Consequentemente,
podemos afirmar, como a Escritura, que o cosmos foi criado juntamente com
o tempo, e que a criação veio a existir por Alguém fora dela mesma. É
exatamente isto que o texto de Gênesis diz: "No princípio criou Deus os céus
e a terra".
O sujeito desse verso é "Deus" (myiholE) – "Elohim, o nome uniplural
para o Deus onipotente da criação); o objeto é o universo, "os céus e a
terra" (cErf)fH t"):w miyuamf<ah – o espaço e a matéria que compõe o
universo).

361 Convém lembrar que há certas religiões menores que possuem alguma ligação com a literatura do
Velho Testamento, como o judaísmo e o islamismo. Em algum sentido, elementos do islamismo
aceitam certas verdades do livro de Gênesis e, que, portanto, possuem adeptos de uma cosmogonia
criacionista. Mesmo nessas duas religiões a cosmogonia criacionista torna-se prejudicada e diluída,
porque há já muitos elementos de comprometimento com o evolucionismo.
362 Hb 11.3.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 116

O fiat da criação.

O ato da criação foi um ato instantâneo de Deus. Não houve um


processo, mas uma serie de atos terminados de Deus. Existem alguns
pseudo-criacionistas que ensinam que a criação é um processo, 'alegando
que a total história cosmogônica evolutiva é alguma coisa equivalente à
criação. A Bíblia ensina inequivocamente que criação não é evolução. A
criação é realizada ex-nihilo pela palavra falada do Criador que foi
instantaneamente obedecida"363.
Esta matéria é altamente relacionada com a fé daquele que aborda este
assunto, pois ele não pode ser compreendido e aceito sem que haja
confiança na Palavra autoritativa e criadora de Deus364.

363Morris, Op.Cit., p. 142.


364Há vários textos que indicam o fato de o universo ser formado pela Palavra criadora de Deus: Sl
33.6-9; 148.3-5; Hb 11.3.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 117

Ato completo de criação.

A ação do sujeito sobre o objeto está enfatizada no verbo 'criou' – E)frfB –


Esta ação é completa. Deus não continua criando o universo. Não obstante,
a criação não cessa de existir, porque tudo o que Deus faz dura para
sempre365. Na cosmogonia evolucionista, entretanto, o processo de 'criação'
continua a existir. O raciocínio dos evolucionistas baseia-se no fato de as
estrelas e galáxias estarem continuamente sendo geradas nos mais variados
pontos do universo, através de processo evolutivo. Mas a criação contínua
não encontra suporte nas Escrituras. Tudo o que Deus tinha que fazer, Ele
já o fez. A criação sempre é vista em termos de passado e indica um ato
completo366. O que acontece depois é pura preservação de Deus, não criação.

Ato contínuo de preservação da criação.

A preservação mostra que Deus continua em atividade no mundo, não


mais criando, mas preocupando-se com a manutenção das coisas que foram
criadas. Após o fiat, que é um ato completo, onde Deus criou tudo sem ter
material preexistente, Ele continua um processo de preservação, porque
tudo que é criado tem que ser mantido. O único que não precisa ser mantido
é aquele que é auto-existente. Todas as coisas que vieram a existir precisam
de manutenção. Por essa razão, Deus enviou leis imutáveis para a
preservação daquilo que Ele criou, e essas leis funcionam de acordo com a
natureza das coisas criadas.
Porque Deus cuida do universo367 é que ele dura para sempre368. Não
existe duração infinita das coisas criadas sem a intervenção do Deus
preservador. A existência continuada de qualquer elemento da criação está
intimamente ligada à preservação divina.
"De maneira análoga, o princípio da conservação com respeito à entidade criada
de vida consciente não requer que cada 'alma' ou 'vida' individual, seja
preservada, mas antes que cada categoria seja conservada. Isto é, a vida de um
gato, ou um cavalo, ou a vida de um urso, e assim por diante, deve ser
preservada intacta. O propósito genético para os gatos, por exemplo, não poderia
ser transmutado para um sistema que produz cachorros. Cada espécie, cuja
semente era em si mesma, poderia produzir sua própria espécie. O padrão criado
para cada espécie seria mantido sem qualquer mudança básica para sempre"369.
Não há a extinção das coisas criadas do universo por causa da
preservação divina. É preservação, não evolução ou transmutação delas.

365 Ec 3.14.
366 Há vários textos da Escritura que assinalam esse ato completo realizado no passado: Ne 9.6; Sl 95.6;
Is 40.26; 45.18; Jo 1.10; At 17.24-25; Hb 1.10; Ap 4.11.
367 Textos indicam que Deus preserva o universo que Ele próprio criou: Ne 9.6; Hb 1.3.
368 Sl 78.69; 148.3-6; Ec 1.4; 3.14; Jr 31.35-36; Dn 12.3.
369 Morris, p. 145.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 118

As leis da termodinâmica370.

A ciência tem sido uma ajuda inestimável para provar a veracidade da


origem do universo. Ao contrário do que muitos adversários da Escritura
apresentam, 'a Bíblia de fato contém um número notável de passagens como
"insights" científicos modernos'371. Um exemplo disso são as duas primeiras
leis da termodinâmica, com as quais os cientistas em geral concordam por
causa da sua aplicabilidade. Estas leis foram descobertas no século passado,
por volta de 1850, e são eminentemente científicas, sem contestação. A
forma original dessas leis foi desenvolvida no tempo em que Darwin escreveu
a sua Origin of Species. É lamentável que os evolucionistas ainda não
tenham compreendido as grandes implicações dessas leis que desaprovam a
teoria da evolução.
Isaac Asimov, um bioquímico humanista, desenvolveu essas duas leis, e
elas servem para provar a verdade do criacionismo.
A primeira lei da termodinâmica.

Está vinculada à lei da conservação da energia. Ela afirma que a


energia pode ser convertida de uma forma para outra, mas nunca pode ser
criada ou destruída. Uma quantia de energia jamais pode permanecer sem
mudança. Conforme essa primeira lei, nada foi criado, aniquilado ou
totalmente destruído desde o princípio. Asimov descreve assim a primeira lei:
"A energia pode ser transferida de um lugar para outro, ou transformada de uma
forma para outra, mas ela não pode ser criada nem destruída". Ou, para colocar
de outra forma: "A quantidade total de energia no universo é constante".
Esta lei é considerada a mais poderosa e mais fundamental
generalização a respeito do universo que os cientistas jamais foram capazes
de fazer.
Ninguém sabe porque a energia é conservada, e ninguém pode estar
completamente certo de que ela é conservada em todo lugar do universo e
debaixo das mesmas condições372.
"Uma aplicação superficial da primeira lei levaria à conclusão de que a
energia/massa do universo é eterna, visto que nada está sendo criado ou
aniquilado dentro dos processos naturais que obedecem a lei"373.
a. Asimov diz que a "energia não pode ser crida nem destruída". A razão
dessa afirmação, que Asimov não conhece, está claramente afirmada na
Escritura, em Gn 2.3. Nenhuma energia é criada ou destruída, porque

370 A palavra termodinâmico é composta de duas palavras gregas que indicam a idéia de 'poder de
aquecer' ou 'poder de calor'. 'O termo em si mesmo apareceu no começo da revolução industrial.
Quando os homens descobriram que o calor poderia ser convertido em energia mecânica, então
inventaram o primeiro motor a vapor, nossa era moderna de ciência e tecnologia havia nascido... Os
princípios que foram, então, desenvolvidos, para quantificar a conversão de calor em energia foram
chamados os princípios da termodinâmica". Morris, p. 185.
371 Morris, p. 186.
372 Isaac Asimov, "In The Game of Energy and Thermodynamics, You Can't Even Break Even",

Smithsonian (June, 1970), p.. 6.


373 Morris, p. 190.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 119

Deus criou tudo que havia de ser criado, inclusive a energia. Agora tudo é
acrescentado, porque tudo o que Ele criou foi 'muito bom'.
b. Asimov também diz que 'ninguém sabe porque energia é conservada'. A
Escritura e a Teologia Calvinista são fartas de razões porque a energia é
conservada. Tudo é renovado no universo pelo poder sustentador de
Deus. A criação em si mesma não é independente. Só Deus tem aseidade
(independência) ou auto-existência sem necessidade de manutenção. Ele
é independente, mas sua criação não. Ela precisa ser sustentada,
portanto, toda a energia dela é mantida pelo poder sustentador de Deus.
Há vários textos bíblicos que estão relacionados à primeira lei 374 .
Portanto, esta primeira lei 'ensina conclusivamente que o universo não
criou-se a si mesmo e nem poderia fazê-lo. Por esta razão, a ciência não pode
saber nada a respeito da origem de todas as coisas'375.
A segunda lei da termodinâmica.

É chamada de entropia, é expressa de tal modo que ela prova também a


teoria criacionista. Entropia é um termo técnico bastante difícil para as
pessoas comuns entenderem. É uma palavra grega antiga que basicamente
significa transformar-se em ou perder alguma coisa, tal como o calor, por
exemplo. Em física, ela diz respeito ao calor como uma forma de energia376.
Ela diz que 'a energia mecânica pode ser convertida completamente em calor,
mas o calor não pode ser convertido completamente em energia mecânica. A
entropia é esta energia de calor que não pode ser colocada para funcionar, e
não pode ser mudada em energia mecânica. No processo de usar energia, a
entropia sempre aumentará. Ela nunca diminui377. Em outras palavras, tudo
está fadado a morrer, a deteriorar-se ou a acabar.
Esta segunda lei afirma que tudo o que existe tem se deteriorado ou
degenerado, e se tem tornado menos útil e, em algum tempo no futuro,
acabará em condição de morte ou inutilidade total. Essa afirma que tudo o
que é entregue a si mesmo é constantemente deteriorado e degenera-se. Em
sumario, podemos dizer que 'a primeira lei ensina que a energia, que inclui
tudo no universo, é constante, no que diz respeito à quantidade. A segunda
lei afirma que a energia é constantemente deteriorada no que diz respeito à
qualidade'378.
Asimov, que não é teísta, mas um cientista humanista evolucionista,
diz:
"Nenhum dispositivo pode liberar força a menos que haja uma diferença na
concentração de energia dentro do sistema, não importa o total de energia
usada"379.

374 Textos que indicam a preservação de Deus da criação terminada: Ne 9.6; Sl 148.6; Is 40.26; Cl 1.17;
Hb 1.3; Tg 1.17; 2 Pe 3.7.; textos que indicam a permanência das espécies de organismos vivos criados:
Gn 1.11; 1.25; 1 Co 15.37-39; Tg 3.12; textos indicando a completação da obra quanto à sua
permanência: Ec 1.9-10; Ec 3.14-15; Is 40.12.
375 Albert Sippert, From Eternity to Eternity (Minnesota: Sippert Publishing Company, 1989). 254.
376 Albert Sippert, From Eternity to Eternity (Minnesota: Sippert Publishing Company, 1989). 254.
377 Ibid., 254.
378 Albert Sippert, From Eternity to Eternity (Minnesota: Sippert Publishing Company, 1989). 253.
379 Asimov, p. 8.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 120

Um outro modo de afirmar esta segunda lei, então, é: "O universo está
constantemente ficando mais desordenado". Visto deste modo podemos ver a
segunda lei ao redor de nós. Temos que trabalhar duro para arrumar um
quarto, mas se deixado a si mesmo, ele se torna uma bagunça novamente e
muito rápida e facilmente. Mesmo se entrarmos nele, ele se torna
empoeirado e malcheiroso. Quão difícil é manter as casas, o maquinário, e
nossos próprios corpos trabalhando em perfeita ordem. Quão fácil é para
eles tornarem-se deteriorados. De fato, não temos que fazer nada, e tudo se
deteriora, entra em colapso, se quebra, cai em desuso, tudo por si mesmo – e
isto é de que trata a Segunda Lei"380.
"Uma aplicação superficial desta segunda lei implicaria numa morte
futura do universo (não sua aniquilação, mas uma cessação de todos os
processos e desordem máxima), visto que o universo está agora
inexoravelmente caminhando para aquela direção" 381 . Os cientistas todos
concordam que os astros celestes estão se apagando pouco a pouco e, num
determinado tempo, todos eles terão um fim, tomando uma forma mais fria,
porque a energia está sendo dispersa. Nenhum cientista sério discorda
dessas idéias. Portanto, a segunda lei descoberta já no século passado é uma
verdade que mostra que o universo teve um começo, sendo, portanto, criado.
Houve um tempo quando ele foi cheio de absoluta energia. A segunda lei da
termodinâmica nos leva a essa conclusão lógica e correta. Contudo, este
universo ainda não se desfez por causa de uma intervenção sobrenatural de
um Deus que tem controle sobre todas as coisas que criou.
As leis da termodinâmica e a providência de Deus.

Asimov está certo: "Tudo se deteriora se entregue a si mesmo", a menos


que Alguém de fora, sobrenaturalmente, ou usando as leis que Ele próprio
criou, intervenha e renove, conserve e mantenha aquilo que já está criado.
Somente uma força externa pode impedir a deterioração do universo físico.
Essa força vem d'Aquele que é independente da Sua criação. Esse Deus
transcendente age imanentemente na sua criação, renovando as energias
dela. Essa é a obra providencial de Deus na preservação do universo físico.
O universo não está entregue a si mesmo. Se o tivesse, já teria morrido, mas
ele é preservado pelo Filho de Deus, que 'tem sustentado todas as coisas
pela palavra do Seu poder'382.

380 Asimov, p. 10.


381 Morris, p. 190.
382 Hb 1.3.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 121

As leis da termodinâmica e a redenção de Deus.

Dia virá quando Deus vai anular a segunda lei da termodinâmica. Deus
vai restaurar todas as coisas na recriação deste universo. Essa lei da
deterioração existe enquanto a terra está no estado de maldição em que
Deus a colocou por causa do pecado, mas não será para sempre assim. Ap
22.3 diz que na nova terra 'nunca mais haverá qualquer maldição'. Isto é
porque Deus disse a João: "Eis que faço novas todas as coisas. E
acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras" 383 . A
segunda lei da termodinâmica desaparecerá porque Deus haverá de livrar a
terra do cativeiro da corrupção, restaurando todas as coisas para o deleite de
sua criatura.384
Deus não deixará que o universo se deteriore, como predizem os
cientistas. Ele governa tudo de forma que nada do universo haverá de se
desfazer, porque ele não está entregue a si mesmo. Deus cuida dele. No final,
quando tirar toda a maldição, então renovará tudo para a liberdade da glória
dos filhos de Deus. Deus intervirá miraculosamente pondo um fim no estado
presente de coisas, criando os novos céus e a nova terra.
As leis da termodinâmica e a criação de Deus.

Essas duas leis ajudam-nos a entender a verdade revelada no


criacionismo. A primeira lei 'inequivocamente estipula que o universo não
poderia ter começado por si mesmo! A segunda lei diz que deve ter havido
uma criação, mas a primeira lei diz que o universo não poderia criar a si
mesmo"385.
Essas duas leis, individualmente ou juntas, claramente contradizem a
cosmogonia evolucionista386, da qual tratamos logo abaixo, e dão suporte ao
registro da Escritura em Gn 1.1. A primeira lei afirma que o universo não
poderia ter criado a si mesmo, e a segunda lei afirma que a energia é
conservada. De outra forma o universo já teria sido destruído.
A verdade de Deus, portanto, permanece: "No princípio criou Deus os
céus e a terra". Esta é a afirmação mais científica que pode haver, mesmo
embora ninguém possa provar esta verdade num tubo de ensaio ou mesmo
simular a origem do universo. O cosmos teve uma origem num Ser
extremamente transcendente, que é eterno e infinito, obviamente maior do
que aquilo que Ele fez.
As leis da termodinâmica e a Escritura.

As leis da termodinâmica são muito antigas, mas foram formuladas


cientificamente somente por volta de 1850. A Escritura mostra que elas são
muito antigas, porque Deus as instituiu desde o começo.
A primeira lei mostra que, quando Deus criou o universo, ele o criou
completo. Depois dos seis dias da criação, Deus descansou e nunca mais

383 Ap 21.5 cf. 2 Pe 3.13.


384 Rm 8.21.
385 Morris, p. 190.
386 Morris, p. 146-147.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 122

criou nada físico, e desde então, nada foi destruído. A segunda lei é
meramente o reconhecimento da degeneração e da deterioração e morte que
foi imposta pelo Criador, por causa do pecado. A ciência não crê nestas
coisas, mas é o que a Escritura afirma sobre essas duas antigas leis da
termodinâmica.
A primeira lei está na Escritura de maneira clara. Depois da criação
nada mais foi criado e nada foi destruído. A despeito da maldição, Deus
ainda preserva387.
A primeira lei também está patente nas Escrituras. Embora a criação
tenha sido 'muito boa'388, Deus 'amaldiçoou a terra' por causa do homem, e
a princípio da deterioração ou degeneração começou389.

387 Gn 1.1-3; Ne 9.6; Cl 1.16-17; Hb 11.3; 1.3.


388 Gn 1.31.
389 ver Gn 3.17-19.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 123

Textos da Escritura que indicam o declínio do cosmos.

Escrevendo aos Romanos, Paulo fala que 'sabemos que toda a criação a
um só tempo geme e suporta angústias até agora 390'. Pedro diz que 'toda
carne é erva, e toda a sua glória como a flor da erva; seca-se a erva, e cai a
sua flor'391. De maneira profética Isaías diz: "os céus desaparecerão como o
fumo, e a terra envelhecerá como um vestido, e os seus moradores morrerão
como mosquitos 392 ". Da forma em que agora existem 'os céus e a terra
passarão'393.
Textos que indicam o declínio dos organismos vivos.

Não somente o mundo físico, mas o mundo dos organismos vivos


também sofrem o processo de deterioração, que é a evidência da correção da
segunda lei da termodinâmica394.
Textos que indicam o declínio dos seres humanos.

Não somente os organismos vivos, mas especificamente é dito, de


maneira muito clara, que os homens se deterioram. A segunda lei da
termodinâmica é absolutamente patente na vida dos seres humanos395.
Portanto, está absolutamente claro que a segunda lei da termodinâmica
é uma lei da Escritura, embora tenha sido descoberta cientificamente no
século XIX. Ela é a razão porque tudo se deteriora: a vida das plantas, dos
animais, dos homens. Tudo nasce, cresce, se envelhece e morre. Assim
acontece com as sociedades e com as etnias. Nada permanece imutável para
sempre, por causa da maldição divina sobre a terra e o homem. Contudo, os
cientistas evolucionistas afirmam a deterioração do cosmos, mas não sabem
explicar a razão. Afirmam a lei da entropia, mas não possuem uma resposta
científica para ela. Essa resposta está revelada somente na Escritura, em
que esses cientistas não crêem.
Os cientistas evolucionistas afirmam que todas as cousas estão se
desenvolvendo, crescendo de uma forma simples para uma mais complexa,
num processo evolutivo, enquanto a segunda lei da termodinâmica, segundo
a Escritura, afirma exatamente o contrário: que todas as cousas envelhecem
e se deterioram. Visto que a teoria da evolução contraria os fatos científicos,
não é errôneo dizer que ela não é científica, além do que contraria a verdade
de Deus, como afirmada nas Sagradas Escrituras.
A lei da biogênese.

A biogênese diz respeito à origem da vida, e afirma que a vida vem da


vida. Não há nada vivo neste mundo que não tenha sido gerado de alguma
outra cousa viva. Nada do que é vivo veio a ser de algo que não seja vivo.
Esta é uma lei científica que ninguém pode contestar. Todavia, os

390 Rm 8.22.
391 1 Pe 1.24; ver também Sl 102.25-26; Hb 1.10-11.
392 Is 51.6.
393 Mt 25.35.
394 Jó 14.1-2; Sl 103.15-16; Ec 3.19-20; 1 Pe 1.24-25.
395 Sl 90.9-10; Is 40.30-31; Rm 7.24.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 124

evolucionistas não podem fugir da idéia de que a vida advém de algo que não
seja vivo. Thomas Huxley, um evolucionista, afirmava que a 'vida está
emergindo da matéria sem vida', mas foi forçado a aceitar que isto havia
acontecido por um ato de fé 396 . Esse é um contra-senso de Huxley. O
evolucionismo elimina a fé, mas esta é levada em conta porque eles não
podem explicar como a vida surge daquilo que não é vida.
Com base nesta lei científica, como podem os evolucionistas explicar
como o primeiro ser vivo começou a existir, a não ser por outra vida?
Certamente eles não tem fundamento científico para crer que a natureza ou
as primeiras coisas vivas mostram de modo contrário à lei da biogênese397.

Hexameron.

O grande problema contra o qual os teólogos ortodoxos lutam, debaixo


do ataque evolucionista, é a sustentação literal dos seis dias da criação. Na
verdade, não são somente os evolucionistas que sustentam que os dias da
criação não são literais. Há teólogos criacionistas que, encantados com o
desenvolvimento científico, especialmente o da geologia, tem criticado a
interpretação histórica e tradicional dos seis dias literais da criação. Um
deles, já no século passado, é W.G.T. Shedd, professor de Teologia
Sistemática do Union Theological Seminary, em Virgínia durante os anos de
1874-1890, cuja argumentação pró-períodos vem logo abaixo. Depois dele,
outros cientistas cristãos e teólogos tem assumido posição e argumentação
semelhantes.

A teoria de que os dias foram longos períodos de tempo.

Alguns criacionistas tem sido intimidados na sustentação dos seis dias


literais, tentando fazer um arranjo dos dias para sustentar cada dia como
sendo uma era geológica diferente, para justificar a idade antiga da terra,
como sustentada pelos evolucionistas.
Alguns eruditos, mesmo dentro do cristianismo, consideram que os dias
de Gênesis 1 devem ser considerados como longos períodos de tempo,
tentando harmonizar a narrativa do Gênesis com os períodos geológicos
ensinados pela ciência. Isto não é novidade deste último século. Alguns Pais
da Igreja sugeriram que esses dias não deveriam ser considerados como dias
ordinários de 24 horas, mas disseram isso sem qualquer respaldo científico.
Berkhof diz que os Pais da Igreja 'expressaram a opinião de que a obra
completa da criação foi terminada em um instante de tempo e que os dias
constituíam unicamente em uma forma ordenada para torná-la, dessa
forma, mais inteligível às mentes finitas"398.
Antes do século XIX os dias de Gênesis foram considerados de uma
maneira geral, como dias literais. Mas isto foi posto em questão em virtude

396 Philip Edgcumbe Hughes, Christianity and The Problems of Origins (Biblical and Theological
Sutides), Philadeplhia, Penn: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1964), 17.
397 Albert Sieppert, From Eternity to Eternity, 254.
398 Teologia Sistemática, 179-180. Edição castelhana.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 125

de certos descobrimentos posteriores. A opinião a respeito dos dias da


criação serem longos períodos de tempo cresceu nestas últimas décadas, não
como resultado de estudos exegéticos, mas debaixo dos ditamos das
descobertas científicas que, na verdade, não possuem comprovação, porque
é impossível provar as teorias levantadas pelos cientistas, embora alguns
cientistas dizem que elas podem ser comprovadas pelo estudo das rochas.
Tomando como certas essas teorias, logo vem a pergunta: Pode ser essa
interpretação exeticamente possível?
Argumentos baseados nos vários significados da palavra YOM.

Os teólogos que possuem simpatia por essas teorias científicas,


chamam a atenção para o significado do termo hebraico yom, que é
traduzido como 'dia' em nossa língua, pois nem sempre ele significa um
período de 24 horas. Vejamos alguns sentidos que essa palavra pode ter em
Gn 1:
a. Yom pode significar dia de luz para diferenciar das trevas399;
b. Yom pode significar dia de luz e trevas juntamente400;
c. Yom pode significar os seis dias juntos (Gn 2.4 – é curioso que no
português não aparece a palavra dia, mas a tradução correta é: "... no dia
em que o Senhor Deus os criou");
d. Yom pode significar um período indefinido em toda a sua duração por
algum motivo especial, como por exemplo o da tribulação401, da ira402; da
prosperidade403 ou da salvação404.
Argumentos baseados na palavra 'terra'.

a. Terra significa todo o universo material405;


b. Terra significa o sistema solar, estelar e planetário406;
c. Terra significa a porção seca do planeta terra407;
d. Terra significa todo o planeta408.
Argumentos baseados na geologia.

a. O planeta terra, a princípio, era uma massa caótica em estado de fusão,


envolvida totalmente em uma atmosfera de vapor. Isto concorda com Gn
1.2.
b. Pelo resfriamento causado pela radiação do calor, uma crosta foi formada
sobre o interior fundido, e o vapor atmosférico foi condensado dando
origem a um oceano de água que cobria a crosta superficial. Este oceano

399 Gn 1.5, 16, 18.


400 Gn 1.5, 8, 13, etc.
401 Sl 20.1.
402 Jó 20.28.
403 Ec 7.14.
404 2 Co 6.2.
405 Gn 1.1.
406 Gn 1.2.
407 Gn 1.10.
408 Gn 1.15-17.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 126

primeiro é mencionado em Gn 1.2 – isto ocorreu antes do primeiro dia da


criação.
c. A condensação do vapor não tornou a atmosfera da terra clara e
transparente imediatamente. Mas no curso do tempo, ela foi tornando
clara, isto é, a luz que havia sido gerada pelo calor, poderia penetrá-la
com alguma obscuridade. A luz, que era como uma bruma luminosa,
agora poderia ser distinguida das trevas. Isto concorda com Gn 1.3-4.409
d. Como o processo inorgânico da radiação do calor e da condensação do
vapor desapareceu, a atmosfera da terra tornou-se cada vez menos
vaporosa e cada vez mais luminosa, até o espaço ao redor do planeta ter
a aparência de vazio, e aparecer a abóbada celeste. Anteriormente, esse
espaço estava cheio de vapor de forma que não havia possibilidade de se
distinguir o céu e a terra. Esta formação do céu e da terra, ou abobada,
ou firmamento, é descrita em Gn 6.1-8410.
e. Pelo contato da água com a lava (material em fusão) debaixo da crosta da
terra, vapores e gazes foram gerados, causando terremotos e convulsões
que levantaram a crosta, formando montanhas e as terras elevadas, os
leitos oceânicos, etc. Este processo aconteceu, e o planeta é ajustado
para a primeira e mais baixa forma de matéria orgânica: os vegetais. Até
este ponto na narrativa mosaica não há vida de qualquer espécie na parte
do universo criado chamado 'terra' em Gn 1.2. Até então, tudo é
inorgânico e sem vida, e as únicas forças em operação são mecânicas e
químicas. Agora aparecem as plantas vivas, que não poderiam ser
originadas por qualquer força mecânica ou química, mas são criadas
ex-nihilo, e o reino vegetal é estabelecido na terra. A geologia não
encontra evidências da vida vegetal nas rochas ígneas, e isto corrobora
com o ensino de Moisés em Gn 1.9-12411. Este ensino de Pedro parece
concordar com a posição da geologia de que a terra obteve sua
consistência sólida 'fora da' e acima da água, por meio de convulsões que
a levara, e 'no meio' e debaixo das águas, por meio de depósito de rocha
estratificada.
Deus disse: "Produza a terra relva...412". Isto não quer dizer que a terra
inorgânica ou mineral desenvolva-se em vegetal orgânico, sendo assim o
vegetal o aspecto evolutivo do inorgânico. Gn 2.5 diz que Deus criou toda a
planta do campo na face da terra. A frase "produza a terra erva..." indica que
a terra fornece os elementos materiais não vitais que constituem a forma

409 OBS. O aparecimento da luz antes do aparecimento do sol, é uma das provas mais fortes de que o
autor dessa narrativa foi instruído nesse ponto. Isto foi revelado a ele. Bem antes das modernas
investigações científicas, esta aparente colocação errada da luz antes do sol foi considerada absurda e
estranha para o cético, e todavia, singular para o crente. O fato de o sol e a luz aparecerem no terceiro
dia, crescendo sem o sol visível no céu, aumentava a dificuldade. Mas a teoria da geologia remove a
dificuldade, e corrobora com Moisés. De acordo com a geologia, houve um longo período quando
aquele primeiro oceano tinha águas tépidas, quando a atmosfera era um lusco-fusco úmido, quente e
fazia germinar como no tempo da estação chuvosa nos trópicos. A conseqüência era que crescia uma
vegetação da qual o extrato de carvão é agora e exemplo.
410 OBS. Um processo atmosférico similar pode ser percebido, em menor escala, na formação e no

clarear de um 'fog'.
411 Compare com 2 Pe 3.5.
412 Gn 1.1.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 127

visível da planta, que são vitalizados e assimilados por um princípio invisível


de vida vegetal. Esse princípio é uma criação ex nihilo. Esta é a criação das
espécies vegetais. Segundo os adeptos dessa corrente, esta interpretação é
correta, não somente porque concorda com Gn 2.5, mas porque Gn 1.24 diz
que a terra produziu animais também. Não há um processo evolutivo, mas é
a energia criadora de Deus a responsável pelo aparecimento da vida na terra.
f. O sol e a luz agora aparecem na abobada celeste porque a atmosfera está
totalmente clareada daquele primeiro vapor. As estações estão agora
ordenadas, visto que o sol pode exercer o seu poder, e o mundo vegetal
tanto em sua forma mais alta como a mais baixa é desenvolvido. Isto
concorda com Gn 1.14-19.
g. A vida animal, tanto nas águas como no ar, é criada:
1. animais irracionais;
2. o homem413. A geologia mostra que o homem é o último na série da
criação.
Os seis dias da criação de Gn 1 são seis períodos criativos, cada um
deles tendo tarde e manhã, cada um deles evidenciando a manifestação do
poder divino.
O primeiro, o segundo e o quarto exibem o Criador operando através de
leis mecânicas, de propriedades químicas da matéria, que ele estabeleceu 'no
princípio 414 '. O terceiro, o quinto e o sexto dias são períodos durante os
quais a vida animal, vegetal e mental é originada ex nihilo pela energia
criadora de Deus. Os dias primeiro, segundo e quarto são inorgânicos,
durante os quais nada vital é originado. Os dias terceiro, quinto e sexto, são
dias orgânicos, durante os quais os reinos vegetal, animal e racional são
originados415.
Todavia, esta argumentação acima não tem o mesmo apoio de muitos
cientistas cristãos e teólogos conservadores. Tem crescido o número de
estudiosos que abraçam a corrente de que os dias do Gênesis são
absolutamente dias regulares, havendo a interpretação literal deles.

Conceito sobre os dias literais da criação.

É necessário para o cristão trabalhar com os dados da Escritura que,


embora não seja um livro de ciência, fornece informações confiáveis, pois até
agora ela não foi desacreditada no que ensinou. Naquilo que os cientistas
evolucionistas discordam da Escritura, é mera hipótese, portanto, não pode
ser considerado um estudo cientificamente provado. "Seria trágico se
permitíssemos que teorias científicas ditassem a nossa teologia de forma
explícita ou implícita. Temos que deixar as Escrituras falarem a nós, e não
tentar ler nelas aquilo que nem mesmo os comentários liberais insistem

413 Gn 1.24-31.
414 Gn 1.1.
415 Toda esta argumentação acima a favor dos dias da criação como sendo longos períodos de tempo é

defendida por W.G.T. Shedd, em sua Dogmatic Theology, vol. 1 (Nashville: Thomas Nelson
Publishers, edição 1980), p. 475-484, e todo esse pensamento é sustentado, com algumas variantes,
produto de estudos científicos mais recentes, por outros teólogos e cientistas cristãos contemporâneos.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 128

naquilo que os autores nunca pensaram"416. As informações da Palavra de


Deus são verdadeiras, e os criacionistas devem devolver a ela o crédito que
ela sempre teve.

Os dias analisados separadamente.

Razões para crer nos dias literais da criação.

Há algumas razões 417 pelas quais devemos crer nos seis dias como
sendo literais, e a terra como sendo uma criação relativamente recente.
Razões históricas.

No tempo dos fundadores da ciência moderna (como nos tempos de


Newton, por exemplo), a ciência era originalmente comprometida com a
cronologia bíblica. Historicamente, portanto, a Bíblia esteve diretamente
vinculada com o desenvolvimento da ciência moderna. Mais tarde é que esta
veio a se misturar com o criacionismo progressivo, com o evolucionismo de
Darwin e com o evolucionismo naturalista.
Somente agora, neste século, alguns movimentos criacionistas de maior
expressão estão sendo reavivados 418 . A vinculação da Escritura com a
ciência está sendo reavivada. Muitos cientistas estão começando a adotar
novamente a Bíblia como um livro de informações confiáveis.
Razões teológicas.

Existe um tipo de teísmo evolucionista e um tipo de criacionismo


progressivo que crêem na teoria do 'dia/era' do Gênesis. Ambas as correntes
estão demasiadamente comprometidas com o sistema de eras geológicas,
atribuindo à idade da terra cerca de 03 bilhões de anos.
Certamente, todos os que crêem realmente no Deus da Bíblia deveriam
perceber que, qualquer compromisso com o sistema geológico das eras
conduz a um caos teológico. Se aceitamos os dias como que significando
'eras' os textos da Escritura com respeito à criação do mundo perdem
totalmente o seu significado.
Razões bíblicas.

Nos registros que a Escritura dá da criação do mundo, não há indicacao


alguma de que a terra já existia há longas eras antes da criação de Adão e

416 Paul A. Zimmermam, "Can We Accept Theistic Evolution?" em A symposium on Creation, editado
por Henry Morris (Grand Rapids, Baker Book House, 1968), 78.
417 Henry Morris, Creation and the Modern Christian, (Califórnia: Master Book Publishers, 1985), p.

40-46.
418 O Instituto Cristão de Pesquisa (ICR – Institute of Christian Research) é talvez o maior deles

atualmente, que pugna pelo criacionismo e tem influenciado na criação de muitos outros institutos ao
redor do mundo.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 129

Eva. O Senhor Jesus mesmo disse: "Porém, desde o princípio da criação,


Deus os fez homem e mulher"419.
É claro como cristal que os Dez Mandamentos impedem a teoria dos
seis dias de Gênesis como sendo eras geológicas420. Se os seis dias da obra
de Deus não fossem iguais aos dias de trabalho da semana do homem, então
Deus não é capaz de dizer o que diz. Não pode haver uma linguagem mais
clara e explícita! Veja a confirmação disso logo adiante, no mesmo livro421.
Toda a Escritura é divinamente inspirada, mas este texto especialmente
foi escrito diretamente pelo dedo de Deus! Que mais prova queremos para a
veracidade dos seis dias literais?
Além disso, o registro dos seis dias da criação conclui com a afirmação
de Deus de que tudo da criação foi 'muito bom' no fim dos seis dias422.
Razões científicas.

Se a terra fosse realmente tão antiga quanto os cientistas dizem, Deus


não nos enganaria dizendo que ela tinha sido feita em seis dias.
Na verdade, a terra não é tão antiga assim. Os cientistas tentam fazê-la
parecer mais antiga, para impor os seus dogmas 'científicos' contra os
ensinamentos da Escritura. Eles estudam a crosta da terra, e tentam datar a
terra com bilhões de anos pela observação das rochas e suas camadas,
determinando, assim, as eras geológicas.
Mesmo aqueles que tem tentado basear a sua cronologia na geologia do
diluvio, eles tentam ainda dizer das eras geológicas como tendo acontecido
mais rapidamente, numa espécie de catástrofes intensas de uma espécie ou
outra. Além disso, essa insistência em continuar na tese de que a terra é
muito antiga, é puramente por causa da necessidade filosófica de justificar a
evolução e a religião panteísta que sustenta a matéria como algo eterno.
O mundo nunca prestará atenção à doutrina do controle e do governo
de Deus sobre todas as coisas e sobre a consumação de tudo, enquanto os
cristãos não prestarem a devida atenção à doutrina do criacionismo.

A cosmologia bíblica e a trindade.

Cosmologia é o estudo do cosmos em todas as suas facetas 423 .


Nenhuma das religiões não-reveladas tem uma palavra abalizada sobre o
cosmos como a própria ciência a tem. Somente a Escritura ensina um
monoteísmo 'que satisfaz o único critério que é básico para toda ciência e
experiência humana, isto é, a lei da causa e efeito'424.
A Escritura Sagrada é o livro que ensina uma doutrina que está em
perfeita harmonia com as evidencias cientificas sobre a natureza do cosmos.
As evidências científicas, ao contrário do que muitos pensam, está em

419 Mc 10.6.
420 Ex 20.8-11.
421 Ex 31.17.18.
422 Gn 1.31.
423 Henry T. Morris, The Biblical Basis for Modern Science (Baker, 1985), p. 135.
424 Morris, p. 50.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 130

perfeita harmonia com o ensino sobre a Trindade e da natureza


divino-humana de Jesus Cristo.
Natureza da trindade.

O termo 'divindade' 425 sempre foi conotado pelos teólogos com a


doutrina da Trindade. É dito da Divindade ser a revelação de Deus como Pai,
Filho e Espírito Santo, um Deus em três pessoas.426 "Embora o termo em si
mesmo não dê precisamente a conotação de Trindade, todavia está claro
para os teólogos mais antigos que pensaram dessa forma"427.
De Rm 1.20 pode-se concluir que a 'divindade' é 'claramente vista'
através das coisas que foram criadas. E elas revelam a divindade, porque foi
a Divindade que as fez. "O homem não pode fazer um modelo para a
Divindade, mas o próprio Deus fez assim em Sua criação" 428 . O Pai,
portanto, 'é a fonte eterna de toda a existência; o Filho é a eterna Palavra
pela qual o próprio Deus se faz conhecido; o Espírito é a presença eterna de
Deus, procedendo eternamente do Pai e através do Filho em toda a
criação"429.
A trindade não é a mesma coisa que um Triunvirato, com três deuses
distintos, mas UM Deus subsistindo em três pessoas de igual essência, ou
seja, todos os mesmos atributos de poder, eternidade, onipresença, etc. E
estas três pessoas podem ser claramente vistas nas coisas que foram criadas
porque elas podem ser identificadas com a 'Divindade'.
Por causa da contemplação e do estudo das cosas criadas, todos os
homens, mas especialmente os cientistas, deveriam ser capazes de
relacionar os fatos diante da lei da causa e do efeito. As leis estabelecidas
mostram que há um Legislador acima do universo que os cientistas vêem430.
Esse único Deus, que subsiste e manifesta-se em três pessoas
co-iguais, é o criador do universo. O politeísmo não é um sistema razoável de
pensamento, pois é negado pela própria filosofia e ciência. A ciência e a
filosofia falam em 'Primeira Causa' ou 'Primeiro Motor', não em um
conglomerado de várias causas ou motores. O Panteísmo também peca como
um sistema, porque é uma identificação das coisas vivas com a própria
divindade. Universo é sinônimo de Deus ou, no mínimo, uma extensão de
Deus. Um Deus identificado com o universo não poderia ser a causa do
universo. O mesmo argumento pode ser dito contra os dualistas que
sustentam os princípios do Deus do bem e do deus do mal. Não há causas,

425 O termo 'Divindade' aparece três vezes na Escritura (At 17.29; Rm 1.20 e Cl 2.9), e sempre conota a
idéia da essência daquilo que é divino, isto é, daquilo que faz com que Deus seja o que é.
426 Morris, p. 54.
427 Morris, p. 54.
428 Morris, p. 54.
429 Morris, p. 54.
430 Neste ponto, há que reconhecer que os teólogos e filósofos da Idade Média, os Escolásticos,

desenvolveram o método para se chegar ao conhecimento dos atributos de Deus. Uma das regras é o
da Via Causalitatis. É bem verdade, também, que é um método que parte do conhecido para o
desconhecido, do homem para Deus, mesmo embora se reconheça que a revelação da natureza é
básica para esse entendimento.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 131

mas uma Causa. O teísmo dos monoteístas, portanto, é o único que faz
justiça à doutrina da Primeira Causa na filosofia e na ciência.
Deus é o autor de toda a realidade, isto é, àquilo que corresponde à
realidade. A doutrina da Trindade 'não é somente revelada na Escritura, mas
está intrínseca na verdadeira natureza das coisas como elas são. Visto que
Deus é o Criador e Sustentador de todas as coisas, é também razoável
encontrar um testemunho claro de Seu caráter embutido na estrutura da
criação"431.
Natureza divino-humana de Cristo.

Geofísica bíblica432.

Astronomia bíblica.

Paleontologia bíblica.

De certa forma, é uma impropriedade tratar de uma paleontologia


bíblica, porque a Bíblia não diz nada a respeito de fosses. Todavia, não haja
nenhuma menção de fosseis na Escritura devemos entender que os fosseis
são muito importantes para o estudo da história registrada na Escritura, e
por causa da grande controvérsia entre o evolucionismo e criacionismo,
muito comum no tempo presente.
Os conservadores de linha criacionista insistem que não existe forma
alguma de sinais de evolucionismo nos muitos fosseis encontrados nas
escavações já feitas no mundo, tanto de seres ainda existentes como dos que
já foram extintos. Contudo, os evolucionistas, especialmente os
neo-Darwinianos, 'por longo tempo tem ensinado a doutrina de uma
mudança evolucionista que é lenta e gradual, de forma que a maioria das
pessoas tem simplesmente entendido que os fósseis realmente documentam
essas grandes mudanças evolutivas do passado"433.
Nas escolas de nosso país e nos meios de comunicação de maior
influência na formação da mentalidade do nosso povo, estes ensinos dos
neo-Darwinistas é simplesmente tomado como verdade indiscutível. No
mundo chamado científico esta matéria é um ponto pacífico. Não se discute
mais um outro ponto de vista. É só começar a observar em programas de TV
o ensino sobre os bilhões de anos dos fosseis e as estimativas mais loucas
sobre a que tipo de homens ou animais os ossos pertencem. É um aspecto
da ciência onde os estudiosos tem andado muito escorregadiamente, fazendo
asseverações ousadas sem qualquer comprovação honesta. Uma simples
hipótese passa a ser um ensino obrigatório nas escolas e as hipóteses são

431 "Morris, p. 59.


432 Morris, H. The Troubled Waters of Evolution, p. 20.
433 Morris, The Biblical Basis for Modern Science, 337.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 132

tomadas como verdades, e principalmente as nossas crianças, começam a


absorver esse ensino e a questionar as verdades da Escritura sobre a criação
ensinadas nas Escolas Dominicais.
Todavia, os neo-Darwinistas já tem a oposição de alguns evolucionistas
mais recentes, como Jay Gold, da Universidade de Harvard, que admite:
"Todos os paleontologistas sabem que o registro fóssil tem pouca coisa
preciosa no modo de formas intermediatas; as transições entre os grupos
maiores são caracteristicamente abruptas"434. Eles estão deixando de lado a
forma lenta e gradual da evolução. A idéia vigente é a de que não há
quaisquer transições graduais mesmo entre as espécies. Um paleontologista
famoso da John's Hopkins University diz que "o registro (fóssil) agora revela
que as espécies tipicamente sobrevivem por centenas de milhares de
gerações, ou mesmo um milhão ou mais, sem evoluir muito. Parece que
somos forçados a concluir que a maior parte da evolução acontece
rapidamente, quando as espécies vem a existir pela divergência das
pequenas populações de espécies parentes. Após suas origens, a maioria das
espécies sofrem pouca evolução antes de se tornarem extintas"435.
Os milhões ou bilhões de anos já não são mais necessários para haver
evolução. Os fósseis, certamente, admitidamente já não são tão antigos
assim. Certamente por essa razão as pequenas mudanças que possam
haver, acontecem de modo abrupto, não mais lento e gradual, como se diz no
neo-darwinismo. Morris ainda mais entusiasticamente diz que: "a evolução
que deveria tratar das mudanças nos organismo, e todavia o principal fator
da na evolução é 'stasis', que significa nenhuma mudança!"436. Esse é o novo
modelo de evolucionismo dos paleontologistas.

Os fósseis animais.

Uma descrição desta matéria é muito extensa e por demais técnica para
tratarmos neste pequeno espaço. A tendência dos paleontologistas, no
estudo dos fósseis, é admitir mais recentemente uma espécie de evolução
mais abrupta, substituindo a lenta e gradual dos neo-Darwinistas. Mesmo
assim, esses paleontologistas estão laborando sem qualquer evidência
possível de ser provada.
O estudo dos fósseis animais não dão qualquer prova eminentemente
científica de que mudanças essenciais aconteceram na vida deles. As
Escrituras, embora não tenham sido escritas com um propósito científico,
dão-nos algumas informações que não podem ser ignoradas. Afinal de
contas, o Deus e Pai de Jesus Cristo não costuma nos enganar, mesmo em
matérias não tecnicas como a da reprodução dos animais. O escritor de
Gênesis, tratando do aparecimento da geração dos animais, por dez vezes no
seu primeiro capítulo, usa a expressão 'segundo a sua espécie'. O processo
genético-reprodutivo dos animais, como apresentado pelas Escrituras,
impede qualquer noção de transmutação evolutiva de uma espécie para
434 Stephen Jay Gold, "The Return of Hopeful Monsters", Natual History, 76 (June-july 1977).
435 Steven M. Stanley, The New Evolutionary Timetable: Fossils, Genes and the Origen of Species
(New York, Basic Books, 1981), prefácio.
436 Morris, The Biblical Basis for Modern Science, 338.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 133

outra. A palavra 'espécie' como usada na Escritura (em hebraico }im) pode
não ser equivalente ao que os cientistas modernos entendem, mas ela não
permite qualquer variacao numa espécie, pois o texto da Escritura diz que
cada espécie produz segundo a sua espécie. Genética e paleontologicamente
não há ainda nenhuma evidência científica inequívoca de que
'microevolução' (isto é, 'variação') transgrida mesmo as fronteiras das
espécies 437 . As espécies são da forma em que Deus as criou, para que
cumprissem os propósitos determinados por ele. Ele é poderoso para fazer
aquilo que ele prescreveu para que as espécies fizessem. As mutações das
espécies podem levar à conclusão de que Deus não foi suficientemente capaz
de levar a cabo os seus propósitos originais na criação. Se houvesse
qualquer prova eminentemente científica, ainda poderíamos pensar nessa
possibilidade, mas esses ensinos evolucionistas ficam mais na área das
hipóteses, com as quais não podemos trabalhar com confiança. Além disso,
a cada período de estudo nessa área da paleontologia, alguns estudiosos
aparecem anulando a 'verdade' anterior, propondo uma nova. Como se pode
confiar em conclusões quando elas são mudadas constantemente? Ao
menos, a verdade de Deus não muda. Ela permanece eternamente!

Os fósseis de animais e plantas e o catastrofismo.

Geralmente os fosseis de animais e plantas são encontrados em grandes


cemitérios ou depósitos em muitas partes do mundo em rochas, que são
atribuídas aos períodos das chamadas eras geológicas. As eras são
determinadas pelos fosseis encontrados nas rochas, sendo medidas pelas
camadas de ossos ali depositados. Os uniformitarianos dizem que essas
camadas de fósseis são depositadas ao longo de milhões de anos, nas mais
variadas eras geológicas. De modo diferente, os criacionistas asseveram que
os fósseis existentes são produto de um sepultamento rápido, geralmente
produto de catástrofes locais, geralmente produto de erupções vulcânicas
violentas. "Quando os animais morrem, seus restos rapidamente se
decompõem sobre a superfície, a menos que eles sejam de algum modo
rapidamente cobertos com sedimentos que são logo compactados e
endurecidos"438. A quantidade de fosseis encontrados num determinado local
não deve ser considerada como acumulação de milhões de anos, como
ensina o uniformitarianismo 439 , mas produto de catástrofes que sepultam
violentamente os animais que tentam fugir em grupos dos perigos. O
catastrofismo, que em geral está vinculado ao criacionismo, ensina que
'muitos, ou a maioria, desses depósitos tenham sido formados rapidamente,
em um período relativamente curto de tempo'440.

437 Morris, The Biblical Basis for Modern Science, 343.


438 Ibid.
439 O uniformitarianismo, que é ligado ao evolucionismo, em geral ensina que 'os Fósseis e as rochas e

as outras características da crosta da terra foram formadas vagarosamente através de imensos


períodos de tempo, pelos mesmos processos que operam agora na terra. (Henry Morris, ed. O Enigma
das Origens, editora Origens – Associação Brasileira de Pesquisa da Criação, 1977), p. 91.
440 Henry Morris, O enigma das origens, 91. Para uma melhor compreensão dessa matéria ler todo o

capítulo "Uniformitarianismo ou Catastrofismo"? no livro.


Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 134

Os milhões de anos atribuídos aos fósseis tem mostrado evidências de


que o evolucionismo realmente não aconteceu. Com as catástrofes, os
animais e plantas foram 'congelados' e não mais sofreram qualquer
'desenvolvimento'. Um exame nesses fósseis mostra que eles eram como os
modernos animais e plantas são. Não houve um desenvolvimento lento e
gradual neles. As catástrofes mostram como eles eram no momento em que
foram mortos. Houve a sedimentação sobre eles e ficaram petrificados.
Alguns deles preservam as mesmas cores que possuíam de forma que as
catástrofes são enorme ajuda para que vejamos as coisas como
originalmente foram criadas.
Os criacionistas aceitam a tese de que catástrofes locais tenham sido
responsáveis pelos grandes depósitos de fósseis. Embora a Escritura não
trate da matéria dos fósseis, ela nos aponta ao maior evento catastrófico que
jamais teve repetição, como prova do juízo de Deus sobre o mundo ímpio,
onde muitas espécies de animais desapareceram, assim como de plantas.
Estamos falando do grande dilúvio que veio sobre a face da terra, nos
tempos de Noé, que o próprio Senhor Jesus considerou como um fato
histórico real. Gn 6.13 mostra o intento de Deus sobre essa catástrofe. Logo
a seguir, aparece a ameaça de Deus cumprida441.
Alguns geólogos evolucionistas estão repensando o seu conceito do
uniformitarianismo, fazendo críticas aos que ainda o sustentam. Eles estão
começando a admitir que houve certos eventos catastróficos anormais que
mudaram a face da terra. Um deles disse:
"A aceitação do princípio do evento raro como conceito válido torna ainda mais
necessária a supressão do termo 'uniformitarianismo'. Se investigações ulteriores
provarem que acontecimentos singulares de grande importância de fato tiveram
lugar no passado, então a aplicação do termo 'uniformitarianismo' não se torna
apenas confusa, mas também totalmente errônea"442.
Esse evento 'raro' ou 'acontecimentos singulares' mencionados são uma
referência óbvia ao grande evento do dilúvio, que os cientistas custosamente
admitem. Se o admitirem claramente, certamente logo acabarão por
abandonar todas as suas teses evolucionistas.

Os fósseis humanos.

Os estudiosos evolucionistas sempre falam dos fósseis humanos e


referem-se a alguns deles como sendo o homem de Neanderthal, o Homo
Erectus, na tentativa de justificar as suas teses evolucionistas. Eles querem
provar que houve um desenvolvimento das culturas mais baixas para as
culturas mais baixas, constituindo isso o processo de evolução do homem.
Contudo, as Escrituras não admitem tal tipo de evolução nos seres
humanos. Não houve uma espécie de Idade da Pedra, onde os seres
humanos eram menos humanos e menos desenvolvidos em sua estrutura
psicossomática. A Escritura é a única fonte de informação a respeito das
culturas antediluvianas. Ela mostra que essas civilizações eram

441 Veja o registro em Gn 7.21-24.


442 Citado por Morris em O enigma das Origens, 94.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 135

desenvolvidas, pois o texto de Gn 1.11 fala que os homens viviam em


cidades, e possuíam habilidades com metalurgia, agricultura, faziam
instrumentos musicais, jóias, e outras coisas próprias de uma civilização
organizada. Todas essas coisas pereceram no dilúvio. Não temos quaisquer
resquícios delas. As únicas coisas que restaram foram as que Noé e sua
família colocaram na arca. Noé trouxe, com seus filhos, todas as habilidades
e desenvolvimento das civilizações antediluvianas, que foram usadas para o
estabelecimento de um novo começo da raça humana. Portanto, não temos
qualquer razão para crer que houve períodos em que o homem viveu de uma
maneira animal ou subumana, como querem ensinar os evolucionistas. A
paleontologia não ajuda muito na avaliação da natureza do homem e da vida
pré-diluviana.
Não temos quaisquer dados científicos para que possamos ter idéia de
como era o homem além do período da história escrita. Sabemos pelas
Escrituras Sagradas que houve um dilúvio de caráter universal, e não local.
Pedro, o apóstolo, escreveu sobre o dilúvio, dizendo que 'pelas quais veio a
perecer o mundo daquele tempo, afogado em água'443. O dilúvio não deixou
vestígios da raça humana que pereceu. Todos foram destruídos por esse
juízo de Deus e tiveram os seus corpos desintegrados pela majestosa
catástrofe. Não possuímos fósseis humanos do período antediluviano. A
razão disto pode ser explicada pelo fato de que toda a geografia da terra foi
alterada. Os continentes certamente foram movidos, os relevos mudaram
totalmente de figura. Todos os seres humanos vivos, por sua mobilidade,
fugiram para regiões mais altas, mas foram mortos assim mesmo, e seus
corpos precipitados em profundidades do mar e soterrados com bilhões de
metros cúbicos de terra, ou foram depositados nas profundezas dos mares,
quando não desintegrados.
Portanto, os sítios arqueológicos de ossos humanos já encontrados não
pertencem a homens antediluvianos. 'Sem exceção eles representam
migrações e estabelecimentos pós diluvianos' 444 . Todavia os evolucionistas
insistem em dizer que fósseis de homens da idade da pedra foram
encontrados e, logo depois encontrados fósseis da idade da pedra polida e,
posteriormente, fósseis de homens com cultura hábil para trabalhar com
metais, o que indicaria uma evolução na raça humana. Esses fósseis de
diferentes níveis de uso de materiais e de ferramentas é perfeitamente
explicável. Após o dilúvio, os sobreviventes que iniciaram uma nova
humanidade, tiveram que suar as ferramentas disponíveis num mundo
destruído, ou seja, madeira e pedra, além de vasos de barro, que eram os
únicos materiais disponíveis nos primeiros dias. Somente com o correr dos
anos é que puderam iniciar a caçada já que os animais tiveram que se
multiplicar novamente devido à destruição anterior. Com o passar dos anos
e dos séculos, criaram novos povoados em lugares diferentes, e foram se
espalhando para povoar a terra novamente. Esses sítios encontrados pelos
arqueologistas não provam qualquer processo evolutivo no homem, mas
mostram as dificuldades que eles tiveram no recomeço de uma nova cultura,

443 2 Pe 3.6.
444 Morris, The biblical basis for modern science, 458.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 136

até que tiveram de pesquisar os novos lugares de minérios, pois o dilúvio


deixou toda a geografia alterada. Referindo-se à situação imediata ao dilúvio,
Morris diz que 'a situação seria muito análoga à da "Swiss Family Robinson"
que, inadvertidamente, foi forçada a sobreviver por sua própria capacidade
numa região totalmente isolada da civilização onde viveram anteriormente.
Ao invés de chamar esses sobreviventes do dilúvio de 'primitivos' ou de
'selvagens' eles deveriam ser considerados como heróis e merecedores de
respeito e admiração por seus feitos 445 . Assim foi que Noé e seus filhos
recomeçaram a vida no 'novo mundo'. Eles se espalharam por novos lugares,
à medida da ordenança divina, começando pela terra de Ararat, onde a arca
ficou depositada, que eqüivale exatamente às regiões da Suméria e
Mesopotâmia. Os homens recomeçaram a nova cultura exatamente no
mesmo lugar onde originariamente Deus os havia colocado. O nome
Mesopotâmia que significa 'entre fios' é localizada entre os rios Tigre e
Eufrates, onde exatamente Deus planou o jardim do Éden.

Etnologia bíblica.

A etnologia é um ramo da antropologia que trata comparativamente das


culturas de vários povos, incluindo a distribuição deles sobre a face da terra,
suas características e costumes.

A origem das etnias segundo as Escrituras.

Embora haja muitas etnias (nações 446 ) no mundo, mas basicamente


todas elas fazem parte da mesma raça. Todos os homens são basicamente
iguais, possuindo certamente uma mesma origem. Todos somos da mesma
espécie. O apóstolo Paulo, ensinando aos gregos desejosos de conhecimento,
apresentou-lhes o Deus verdadeiro e lhes disse o que ele fez: "O Deus que fez
o mundo... de um só fez toda raça humana para habitar sobre a face da
terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da
sua habitação"447.
Segundo os registros de Gn 10, a civilização começou no Oriente médio,
nas proximidades do Monte Ararat (agora na Turquia) e da Babilônia (atual
Iraque). A dispersão das nações após a torre de Babel podem ser traçadas
pela descendência dos filhos de Noé, como registra Gn 10.
1. Os descendentes de Jafé 448 foram para o norte e oeste da Europa,
formando as seguintes etnias:
- os filhos de Javã deram origem à Grécia;
- os filhos de Magogue, Meseque e Tubal deram origem aos povos da
Rússia;
- os filhos de Gomer deram origem aos povos da Alemanha;

445 Ibid, p. 459.


446 Quando o termo 'nações' for usado neste estudo, não deve ser entendido no sentido geopolítico
moderno como Brasil, Argentina, Chile, etc. mas no sentido de raças ou etnias.
447 At 17.24-26.
448 Gn 10.2-4.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 137

- os filhos de Tiras deram origem à Trácia e aos Etruscos;


- os filhos de Madai deram origem aos Medos;
- os filhos de Togarma deram origem aos armênios;
- os filhos de Dodanin deram origem aos dardânios.
A maioria desses povos emigrou para a Europa e eles se tornaram, em
linhas gerais, os ancestrais dos caucasianos e as raças arianas que,
posteriormente, se espalharam por outras partes do mundo.
2. Os descendentes de Cam 449 emigraram para o sul e oeste da África,
sendo que os Hititas se tornaram o grande império da Turquia e da Ásia
Ocidental, assim como outros deles foram para o extremo oriente,
formando algumas etnias que podem facilmente ser identificadas:
- os filhos de Cuxe deram origem aos etíopes;
- os filhos de Canaan deram origem aos Canaanitas, Fenícios e Hititas;
- os filhos de Pute deram origem aos Líbios;
- os filhos de Mizraim deram origem aos egípcios.
Certamente Mizraim e seu pai Cam viveram ainda longo tempo após a
dispersão, e puderam gastar longo tempo para migrar para o vale do Nilo,
lançando os fundamentos da civilização egípcia. A Escritura, de forma
inequívoca, diz que o Egito é chamado de 'a terra de Cam', o pai de Mizraim.
Falando dos filhos de Israel que saíram do Egito, o salmista diz:
"Esqueceram-se de Deus, seu Salvador, que no Egito (em hebraico é
Mizraim), fizeram cousas portentosas, maravilhas na terra de Cam,
tremendos feitos no mar Vermelho"450.
Embora não seja fácil estabelecer a sua real origem, é provável que as
tribos negras tenham também a ascendência de Cam, visto que os camitas
se dirigiram para a África. Os primeiros babilônicos e sumérios também
foram camitas, da descendência de Ninrode.
3. Os descendentes de Sem 451 se concentraram nas proximidades do
Oriente Médio, formando as seguintes etnias:
- Os filhos de Éber deram origem aos hebreus;
- Os filhos de Elam deram origem aos persas;
- Os filhos de Aram deram origem aos sírios;
- Os filhos de Assur deram origem aos assírios.
Posteriormente, através de Ismael, Esaú e outros descendentes de
Abraão, (assim como Moab e Amom), vieram todas as nações árabes.

A cronologia das etnias.

Infelizmente, todos os cursos das universidades relacionadas com a


etnologia452 vem carregadas com fortes tons evolucionistas. Por causa disso,
nos estudos científicos, a Escritura não é levada em conta no estudo das
raças. Normalmente os evolucionistas costumam datar as raças dizendo que
os humanos existem há milhões de anos, para mostrar que o processo

449 Gn 10.6-20.
450 Sl 106.21-22.
451 Gn 10.21.31.
452 as disciplinas universitárias como arqueologia, antropologia cultural, lingüística, história natural e

demografia são altamente relacionadas com a etnologia, ou seja, o estudo das raças.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 138

evolutivo do homem é muito lento e longo. Embora não possuamos dados


exatos sobre a cronologia humana, certamente os dados fornecidos pela
Escritura são muito mais confiáveis do que os fornecidos pela cronologia
evolucionista.
Um estudo devido das origens das raças pode surpreendentemente
mostrar que o evolucionismo comete alguns erros absurdos que mostram o
seu caráter não científico, especialmente quando trata da origem da raça
humana.
Um método muito usado pelos cientistas tem sido o teste do
radiocarbono. Morris diz que "esses métodos, quando criticamente
examinados, podem ser mostrados estar seriamente em erros em relação às
datas anteriores a 2000 aC. As datas do radiocarbono para eventos mais
recentes do que 200 aC. podem ser razoavelmente bons, mas todas as datas
mais antigas são invalidas devido às suposições falazes envolvidas nestes e
em outros cálculos radiométricos das eras"453.
Um outro método usado pelos cientistas para datar a origem da raça
humana é o da dendrocronologia, ou seja, o ramo da ciência que estuda a
idade das arvores pela medida dos seus anéis. Contudo, mesmo esse método
não é confiável como alguns pensam454. Morris diz que ambos, o método de
datar do radiocarbono e o da dendrocronologia são sujeitos a erros e não são
confiáveis. Contudo, são esses dois métodos usados pelos cientistas para
datar a cronologia da raça humana.
Portanto, não devemos dar muita atenção às datas propostas por
alguns círculos científicos, pois a tendência deles é sempre tornar o homem
mais antigo a fim de tentarem provar a sua teoria com fortes tons
evolucionistas. As pesquisas que sugerem uma data mais recente para a
cronologia humana não é publicada. Eles sempre procuram datas mais
recentes e, assim, tem esperança de que a teoria do evolucionismo possa
triunfar sobre as informações cronológicas das Escrituras.
Há alguns povos, mencionados a seguir que, se propriamente
estudados, nos fornecerão dados para que evitemos totalmente a tentativa
evolucionista de colocar a origem das raças em datas muito antigas, como já
é hábito nos círculos evolucionistas.

Exemplos de etnias antigas.

As civilizações mais antigas de que temos noticia são a dos egípcios e


dos sumérios. Elas tem sido a fonte para a cronologia que geralmente se tem
seguido, pois eles foram os primeiros a nos deixarem registros de sua
civilização. Não há qualquer registro escrito de civilização pré-histórica.
No Egito, na Mesopotâmia e nos vales da Índia, podemos encontrar
civilizações extremamente avançadas, cuja história não passa muito dos
3500 a 4000 anos antes de Cristo, e que possuíram algumas coisas em
comum que vieram a acontecer simultaneamente.

453 Henry Morris, The Biblical Basis for Modern Science, (Grand Rapids, Baker, 1991), 449.
454 Ibid, p. 449-451.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 139

"Se a raça humana tem milhões de anos de idade, porque não há nenhum registro
histórico anterior a 3500 aC. e porque esses registros aparecem em numerosos
lugares ao mesmo tempo, em muitas linguagens diferentes ao redor de todo o
mundo? A escrita começou simultaneamente em 3000 a 4000 aC. na
Mesopotâmia, Egito, nos vales Indus e em outros lugares. Nesse tempo esses
registros mostram que o homem já era altamente avançado e civilizado"455.
Os egípcios, no vale do Nilo, vieram a possuir seus registros a partir de
3000 a 2800 aC. Um cientista evolucionista, para justificar os muitos
milhões de anos de existência das raças, incluindo a cultura egípcia,
escreveu: "Estas coisas, das quais pensamos como essenciais para a nossa
verdadeira definição de civilização parecem ter aparecido com a rapidez de
um nascimento do sol, no vale do Nilo, entre 3000 e 2800 aC. Foi muito
difícil, após meio milhão de anos de existência semiconsciente, o homem
saltou para uma consciência plena de si mesmo e de seus arredores no
decurso de cerca de 200 anos. A ciência tem descoberto uma evidência
fascinante dos fragmentos da vida civilizada em muitas outras terras, mas o
Egito foi o primeiro grande berço da civilização"456. Kenneth Clark não pode
fugir do seu evolucionismo que tem que durar milhões de anos, mas não
pode explicar a rapidez do aparecimento de uma civilização como a do Egito,
por exemplo. É espantoso como essas civilizações antigas vieram a construir
pirâmides 457 , tendo uma arquitetura extremamente avançada 458 ,
ferramentas precisas, uma matemática altamente desenvolvida, medicina
adiantadíssima para a época459, além de um conhecimento fantástico sobre
astronomia460. A pergunta que podemos fazer, diante de tal quadro é: Como
essa civilização veio a florescer abruptamente, sem ter qualquer história
precedente? A única explicação que nos é possível é a que a Escritura nos

455 Albert Sippert, From Eternity to Eternity, 21.


456 Kenneth Clark, In The Begining: "The Mystery of Ancient Egipt"- uma condensação dessa obra que
apareceu no Reader's Digest (June, 1975), p. 86.
457 As colossais pirâmides mostram a avançada engenharia sob domínio dos egípcios. É maravilhoso

observar como elas foram não somente transportadas de regiões muito distantes (pois ali não há tais
pedras), mas também como elas foram engenhosamente colocadas umas sobre as outras de forma tão
matematicamente calculadas. Sippert diz que a pirâmide de Gizé tem 'cerca de 2.000.000 de blocos de
granito e pedra calcaria, cada uma delas pesando de duas a sete toneladas, originando mais de 201
degraus, em toda a sua estrutura. Ela contém mais pedras do que todas as catedrais, igrejas e capelas
construídas na Inglaterra desde os dias de Cristo". (From Eternity to Eternity, 24).
458 Além da arquitetura 'faraônica' do Egito, as outras civilizações possuíram arquitetura fabulosa. É o

caso dos sumérios. "suas maiores obras foram seus enormes templos, chamados ziggurats, que eram
adornados com colunas retangulares.
459 As técnicas de embalsamento dos corpos, usada pelos egípcios, é um mistério mesmo para a

medicina de hoje. Com toda a tecnologia moderna não podemos ir além da tecnologia avançada dos
egípcios, que viveram cerca de 3000 anos de Cristo.
460 Há indicações de que os sumérios e seus sucessores, os babilônicos, conheciam muito mais sobre

astronomia do que conheciam os povos que vieram depois deles. Os babilônicos conheciam os
planetas, e há fortes evidências de que eles conheceram algo sobre quatro satélites do planeta Júpiter,
e sete do planeta Saturno. Não se sabe se eles possuíam telescópios, como os conhecemos hoje, mas
certamente possuíam ferramentas para observar o firmamento e ver neles coisas que a olho nu não
podem ser vistas. Isto é espantoso nessa época da história humana. Somente com um conhecimento
adquirido no período imediatamente após o dilúvio, certamente concedido por Deus (ver Sippert,
From Eternity to Eternity, 26-27).
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 140

dá. Eles floresceram rapidamente no Egito, porque já vieram de outras terras


com uma bagagem de conhecimento necessário para implantarem o que
implantaram no Egito. Eles procederam dos descendentes altamente
civilizados dos filhos de Noé, que foram dispersos depois dos eventos da torre
de Babel. Isto é uma verdade inegável, pois todas as outras civilizações
(como a dos sumérios, dos vales dos rios da Índia, da china, do vale do
Jordão e das Américas) floresceram no mesmo período em vários lugares do
mundo.
Descobertas arqueológicas podem demonstrar que todas as civilizações
mais antigas usaram o ouro, a prata, o cobre, as pedras preciosas,
confeccionaram jóias, produziram o carvão, o marfim, etc. no mesmo período
da história humana. Seria mera coincidência? Não, eles procederam dos
mesmos descendentes de Noé que se foram dispersos com as suas línguas
diferentes para os quatro cantos da terra. O surgimento repentino dessas
civilizações não pode ser explicado pelo evolucionismo, que exigiria milhões
de anos de desenvolvimento. Somente a Escritura pode explicar a origem
simultânea do aparecimento repentino dessas civilizações. Seria mera
coincidência que os egípcios, sumérios, indianos, centro e sul-americanos,
com suas civilizações antiquissimas emergissem com as suas culturas de
um modo tão repentino, sem os milhões de anos necessários para chegarem
cientificamente onde chegaram? Ao invés de evolucionismo, podemos crer
que houve um involucionismo na história das civilizações. "Estes povos
foram tão avançados (se não mais) do que a maioria das pessoas mais
dotadas hoje. É verdade que mais conhecimento tem sido acumulado para
as pessoas hoje, mas dificilmente podemos reivindicar superioridade sobre
eles ou que sejamos mais sofisticados que eles. Todavia, no decurso do
tempo, ao invés de evolução acontecer, tem acontecido a degeneração ou a
perda do conhecimento científico, segundo a 'History of Tools' do Instituto
Smithsoniano"461.
Não há quaisquer sinais de que as civilizações tenham se desenvolvido
após milhões de anos, ou que todos nós tenhamos vindo de animais
inferiores ou das cavernas, até chegarmos onde chegamos. "Sem dúvida o
começo dessas civilizações aconteceu algumas centenas de anos após o
dilúvio e algum tempo depois da torre de Babel"462.

Demografia bíblica.

Um estudo das populações do mundo desde os seus tempos mais


remotos ajuda-nos a ter uma idéia mais aproximada da idade do homem.
Alguns estudiosos tem desprezado o estudo das populações, mas o estudo
delas é importante, pelo simples fato de que as populações tem a ver com
uma ordenança direta de Deus, que precede a queda. Logo depois da
criação, Deus dirigiu-se aos nossos primeiros pais e lhes disse: "Sede
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a"463.

461 Citado por Sippert, From Eternity to Eternity, 23.


462 Sippert, From Eternity to Eternity, 25.
463 Gn 1.28.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 141

Desde o começo da raça humana houve o comprimento do mandamento


escrito em Gn 1.28. A população começou a crescer de maneira espantosa.
Gn 6.1 registra 'os homens foram se multiplicando na terra', no período
antediluviano. Assim ao tempo de Noé, a terra já estava cheia, e também
'cheia de violência' e que a 'maldade dos homens também se havia
multiplicado na terra'464. Deus, por causa da maldade do homem, resolve
por um fim no status quo daquele mundo populoso.
Vivemos hoje num mundo imensamente populoso, e penamos que esta
é a maior população que o mundo jamais teve. Não precisamos pensar
necessariamente assim. Segundo as Escrituras, houve um tempo quando o
mundo foi muito populoso, conforme o registro de Gênesis. Desde os nossos
primeiros pais até o tempo do dilúvio, muitas gerações se passaram. Não
sabemos exatamente a duração desse tempo. Como criacionistas, não
admitimos a idéia de milhões de anos como o fazem os evolucionistas (que
precisam de um espaço enorme de tempo para justificar as mutações lentas
e graduais das espécies), mas cremos que houve muitas gerações. Cremos
que a população da terra cresceu muito rapidamente nesse período, embora
alguns estudiosos sejam cépticos com respeito a esse assunto.
É tendência dos estudiosos conservadores diminuir a idade da raça
humana, em reação à tendência dos evolucionistas de encompridá-la. Se
levados pelos registros de Gn 5 veremos que houve aproximadamente 1656
anos registrados de Adão ao dilúvio. Se a conta for muito maior do que essa,
o argumento do aumento da população é ainda mais favorecido. Todavia,
esse já é um tempo suficiente para se ter na terra uma população
semelhante ao que temos hoje, se levarmos em conta que cada geração leva
cerca de 35 a 40 anos, e que cada família tem, em média, 6 pessoas, durante
30 gerações. A começar de Adão e Eva, até o tempo do dilúvio, podemos ter a
seguinte projeção465:
GERAÇÕES POPULAÇÃO
05 96 Pessoas
10 3.070 Pessoas
15 98.300 Pessoas
20 3.150.000 Pessoas
30 3.220.000.000 pessoas
Na conta de Morris, 30 gerações correspondem a 1050 anos, bem
menos do que 1656 anos. Além disso, temos que pensar na longevidade das
pessoas. Elas sobreviviam várias gerações, o que aumentava enormemente o
tamanho da população de uma geração.
Depois do dilúvio, a ordem primeiramente dada no Éden é repetida, pois
Deus ordena uma nova humanidade a ser composta. Gn 9.1 diz: "Abençoou
Deus a Noé e a seus filhos, e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos e
enchei a terra". Teria que haver um novo começo. Novamente a terra seria
povoada. Se seguirmos o mesmo raciocínio de Morris na estatística anterior,

464Gn 6.5.
465Leon Morris, "World Population and Bible Cronology", no livro Scientific Studies in Special
Creation, editada por Walter W. Lammertz (Philipsburg, New Jersey, Presbyterian and Reformed
Publishing Co. 1971), 200.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 142

veremos que a população atual do mundo não é necessariamente maior do


que a do tempo anterior ao dilúvio. Alguns poucos milhares de anos se
passaram depois do dilúvio e temos aproximadamente 6 bilhões de
habitantes, o que mostra que a terra não pode ser antiga como tentam
provar os evolucionistas. Se os evolucionistas estão certos, e se cada casal
possui dois filhos, no final de mil gerações (sendo cada uma delas 35 anos)
haveríamos de ter um número astronômico de habitantes, impossível de ser
contido em nosso planeta.
A demografia ajuda muito os criacionistas no combate ao
evolucionismo, porque ela é um argumento em favor de uma idade mais
curta da cronologia bíblica. A demografia nos ajuda a entender que a
humanidade existe há apenas alguns poucos milhares de anos. É muito
mais fácil entender dessa maneira do que tentar explicar uma população do
mundo beirando os 6 bilhões depois de muitos milhares ou até milhões de
anos. Certamente a cronologia bíblica é muito mais realista do que a
cronologia evolucionista!
Por outro lado, os criacionistas não devem temer os alarmes feitos pelos
ecologistas e outros cientistas a respeito da superpopulação da terra, como
tem sido apregoado especialmente desde a de cada de 70, quando a taxa de
crescimento da população mundial era de 2% ao ano. O Criador do universo
ordenou que a terra fosse cheia de habitantes, Deus não permitirá que o
nosso planeta tenha mais habitantes do que ele possa suportar.
Curiosamente, não chegamos ainda perto do tempo de 'encher a terra', pois
existe ainda mais de 400.000 pés quadrados de terra para cada habitante. A
terra tem ainda muito potencial para muito mais gente. Com base em
informação científica, Morris afirma que 'a terra é totalmente capaz de
suportar uma população muito maior do que ela agora possui. Mesmo com o
presente status da tecnologia (água disponível para irrigação, terra
potencialmente arável, métodos modernos de tratamento do solo, etc.), as
autoridades estimam que a capacidade de produção da terra é para cerca de
50 bilhões de pessoas466.
O grande problema da fome não é a superpopulação ou a falta de
espaço, mas é a injustiça social que impera em muitas nações. A
distribuição injusta de renda é que causa a fome em muitas regiões do globo
terrestre. Certamente, ainda teremos muito mais gente do que hoje, porque
os propósitos originais de Deus ainda não foram cumpridos, embora os
homens já começaram há muito o processo de multiplicação.
As famílias enormes são consideradas na Escritura como uma grande
benção do Senhor467, não um problema social, como é preconizado em nossa
cultura. Famílias pequenas são uma questão de opção, não solução para o
problema populacional da terra. As ordenanças de Deus quanto ao
'enchimento' da terra ainda vão ser cumpridas, e, certamente o problema
para a superpopulação poderão ser resolvidos quando do tempo da
restauração de todas as coisas, no dia do Senhor.

466 Henry Morris, The troubled Waters of Evolution, (San Diego, Califórnia: Creation Life Publishers,
1974), p. 148.
467 Sl 127.3-5; 128.1-6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 143

Lingüística bíblica.

A lingüística é a ciência da linguagem que trata da fonologia,


morfologia, sintaxe e semântica. Diferentemente de todos os animais, o
homem é único que comunica-se com uma linguagem traduzida em símbolos
que podem ser analisados fonológica, morfológica e sintaticamente. A
linguagem humana é um dom de Deus. Somente os humanos a possuem,
porque é uma das características implantadas no homem por este ser criado
à imagem de Deus. Deus se comunica verbalmente e, nesse sentido, o
homem ainda reflete quem Deus é, mesmo que alguns aspectos de sua
imagem tenham sido mais prejudicados e outros até desfigurados pela queda
no Éden. Deus fez a boca do homem e o ensinou a falar468 a fim de que ele
pudesse se comunicar com Deus e com o próprio semelhante.
Contudo, os evolucionistas não possuem qualquer teoria que explique a
origem da linguagem humana e, muito menos, a origem das mais variadas
línguas faladas sobre a face da terra. De acordo com o evolucionismo, depois
de milhões de anos, os animais comuns passaram a ser humanos e
adquiriram, por desenvolvimento gradual, a capacidade de articular sons e,
posteriormente, colocá-los de forma que podemos reconhecer nesses sons
articulados, uma forma de linguagem. Os esforços dos evolucionistas para
decifrar o mistério da origem da linguagem tem sido inúteis. Eles não podem
explicar esse maravilhoso fenômeno da fala inteligível! Tanto lingüistas
cristãos como os antropólogos culturais tem testificado que 'as línguas de
tribos (mais primitivas) são invariavelmente ao menos tão complexas e
intrincadamente estruturadas como as das nações mais civilizadas do
mundo'469. George Simpson, um antropólogo cultural, admitiu que "mesmo
os povos com culturas menos complexas possuem línguas altamente
sofisticadas, com gramáticas complexas e grande vocabulário." 470 Em
hipótese alguma pode ser dito algo a respeito da evolução da linguagem. O
mesmo Simpson reconhece que "a língua mais antiga que razoavelmente
possa ser reconstruída já é moderna, completa de um ponto de vista
evolucionista"471 A emissão de sons similares por parte dos animais, sejam
eles mamais ou pássaros, não quer dizer que entendam o que emitem. Sons
não são a mesma coisa que linguagem, o que implica no funcionamento de
certas partes do cérebro que os animais não possuem. A linguagem é o
emprego de sons de forma concatenada e cheia de significado entendido pelo
que emite e pelo que recebe a emissão. Ela é um código de comunicação
sofisticado que exige raciocínio tanto da parte do emissor como do receptor.
Os criacionistas, diferentemente dos evolucionistas, ensinam que o
homem foi criado do jeito que ele é agora, com a capacidade de comunicar-se
pessoalmente, usando uma linguagem. Foi o primeiro homem capaz de
comunicar-se com a sua esposa e, além disso, foi o que deu nome a todos os

468 Ex 4.11-12.
469 Morris, The Biblical Basis for Modern Science, 428.
470 George G. Simpson, "Biological Nature, p. 477 (citado por Morris, The Biblical Basis for Modern

Science, p. 428).
471 Ibid.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 144

outros animais. Nenhum animal podia se comunicar-se com Adão. Ele


sentiu-se só. Somente um ser semelhante a ele podia comunicar-se com ele.
Por esta razão, Deus fez-lhe uma companheira, que lhe fosse idônea472. Até o
tempo do evento da Torre de Babel, havia somente uma língua na face da
terra473. Por causa das conseqüências da queda, veio a existir uma involução
no relacionamento das pessoas, como resultado do juízo de Deus. Os
criacionistas tem a Escritura Sagrada que possui o único registro a despeito
desse fantástico e transformador fenômeno – o da confusão das línguas na
torre de Babel. Antes de Babel os homens se comunicavam todo entre si.
Depois as nações não mais se entenderam por causa da confusão de línguas.
Essa confusão das línguas foi um julgamento divino porque os homens
estavam adorando a criatura ao invés do criador, como indica a construção
da torre 474 . O evento de Babel foi um 'basta' de Deus à pecaminosidade
humana. É importante observar que Deus não separou os homens racial ou
geograficamente. Apenas linguisticamente 475 . Esse foi o ponto de partida
para que houvesse outras separações. Quando os homens não podem se
entender eles se separam nas outras formas. Somente o fenômeno de Babel
pode explicar significativamente a diversidade das línguas entre os homens.
É maravilhoso como a lingüística pode trazer luz para entendermos o
processo da origem das civilizações. É importante observar que a origem das
línguas diferentes está intimamente relacionada com a separação e a
dispersão das nações após o dilúvio, sendo todas elas descendentes dos três
filhos de Noé 476 . A terra de Sinear 477 é equivalente a uma das primeiras
civilizações, exatamente aquela onde se deu o fenômeno de Babel. Babel é
relativo a Babilônia, como Sinear é ligado a Sumer, de onde se originaram os
sumérios.
Tão logo as civilizações apareceram na história, também temos noticias
da formação das línguas faladas por elas. "Os sumérios foram capazes de
colocar a sua fala em forma de escrita talvez um pouco antes de 3000 aC.,
que é por volta do tempo após a confusão de línguas na torre de Babel478. O
mesmo aconteceu com a escrita dos egípcios. A história egípcia começou por
volta de 3400 a 3200 aC. Poucos séculos depois, 'bem no começo da história
encontramos os egípcios escrevendo e guardando os seus registros. Eles
fizeram o primeiro papel do mundo usando os papiros, inventando também a
tinta para escrever nele'479. O aparecimento das mais variadas línguas e da
escrita delas combina com a confusão de línguas em Babel, que foi por volta
do ano 3000.
A escrita dá-nos uma certa segurança a respeito da data do
florescimento das mais variadas etnias. Contudo, temos que ter em mente a

472 Gn 2.20.
473 Gn 11.1-6.
474 Gn 11.4.
475 Gn 11.7.
476 Gn 10.31-32.
477 Gn 11.2.
478 Sippert, From Eternity to Eternity, 26.
479 Sippert, 22.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 145

idéia de que 'nunca é possível estar certo a respeito de qualquer data


anterior ao homem ter registrado as suas primeiras datas'480.

A criação dos seres celestiais.

Falar da doutrina dos anjos seria generalizar demais, pois a Escritura


não fala simplesmente de anjos, mas de outros seres que possuem algum
tipo de diferença, embora não saibamos exatamente quais seja. É preferível
falar dos seres celestiais, englobando assim outros que não são chamados de
anjos, mas que tem a mesma natureza celestial, pois lá vivem e também
trabalham.
Os seres celestiais não são co-eternos com Deus, como podem pensar
alguns, pelo simples fato de serem celestiais. Não somente a razão nos
ensina que eles são criaturas, mas a própria Escritura assevera essa
verdade, mesmo que de forma indireta.
A Escritura, quando fala da criação, usa a expressão 'exército dos
céus' 481 , termos esses que são interpretados como referindo-se aos seres
celestiais, e não às estrelas ou outros corpos celestes. Isto não é difícil de se
deduzir, porque outras partes da Escritura nos ajudam a entender que esta
expressão se refere aos anjos ou outros seres celestiais 482 . A expressão
'Senhor dos Exércitos' também se refere aos seres celestiais.
Paulo afirma claramente 483 , que em Cristo todas as coisas foram
criadas, as coisas visiveis e as invisiveis, principados e potestades. Com toda
a certeza, Paulo está falando de seres espirituais inteligentes.
O tempo da criação dos seres celestiais não pode ser fixado, mas 'até
onde sabemos, nenhuma obra criadora precedeu à criação dos céus e da
terra'484, embora alguns pensem que os anjos estavam presentes na criação
do mundo por causa da passagem de Jó 37.8. Berkhof diz que 'a única
afirmação segura parece ser a de que os anjos foram criados antes do sétimo
dia'485. Eles foram criados no começo do mundo como as outras criaturas,
certamente.

1. A natureza dos seres celestiais.

a. A forma dos seres celestiais.

Os seres celestiais são seres totalmente:


I. Espirituais: As Escrituras claramente afirmam que os anjos (ou
demônios) são pneu/mata (espíritos)486;

480 Morris, The Biblical Basis for Modern Science, 454.


481 Gn 2.1; Sl 33.6; Ne 9.6.
482 1 Rs 22.19; Sl 103.20-21; 148.2-5; Lc 2.13.
483 Cl 1.16.
484 Berkhof, p. 169 (edição castelhana)
485 Berkhof, p. 170 (edição castelhana)
486 Mt 8.16; 12.45; Lc 7.21; 8.2; 11.26; At 19.12; Ef 6.12; Hb 1.14.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 146

II. Incorpóreos: Jesus disse que Ele era homem, mesmo após a sua
ressurreição, e não um espírito, com carne e osso487. Por serem seres
espirituais e incorpóreos, segue-se que eles são invisíveis (ta\
ao)/rata 488 ) e, portanto, imperceptíveis aos nossos sentidos. Embora
eles sejam comparados ao vento e às labaredas de fogo 489 , não se
segue que sejam corpóreos. Um ser corpóreo não pode ocupar mais de
um lugar ao mesmo tempo. Contudo, a Escritura diz que muitos deles
podem estar, ao mesmo tempo, no mesmo espaço limitado 490 , mas
nunca ao mesmo tempo em vários lugares. Eles tem uma presença
definida no espaço, nunca uma presença circunscrita (como os corpos
físicos) ou repletiva (como Deus).
Contudo, devemos nos lembrar que, para comunicar-se com os homens
(com finalidade de revelação redentora ou de juízo), eles tomaram formas
corporais, o que os teólogos chamam de angelofania491 (aparência de anjo).
Gn 19.1-8 mostra que os anjos tomaram forma de homem, comeram,
falaram e andaram. Essas atividades, contudo, não indicam que essas sejam
funções vitais para eles, mas apenas circunstanciais. A forma que eles
tiveram foi somente temporária, nunca definitiva, como a dos homens
comuns. Muitos homens de Deus, na Escritura, viram anjos: Jacó os viu em
sonhos492; José o viu em sonho493, os pastores viram anjos494, Paulo parece
ter visto um anjo 495. A idéia de anjos alados, como os vemos na tradição
eclesiástica, não é escriturística, embora os querubins e serafins que
estavam no trono tenham se mostrado alados496.

b. A linguagem dos seres celestiais.

1 Co 13.1 fala da 'língua dos anjos'. É desconhecida a maneira pela


qual os anjos se comunicam, porque eles não possuem corpos com
capacidade para se expressarem da mesma forma que nós o fazemos. É
verdade que eles possuem uma língua própria deles, a despeito de serem
seres espirituais, pois eles cantam canções com palavras inteligíveis, mas
não sabemos qual seja a sua língua. Todas as vezes que eles se dirigem aos
homens, eles o fizeram na língua daqueles com quem conversaram. A
linguagem de louvor usada por eles no livro de Apocalipse indica que eles
falarão uma linguagem que nós entenderemos, pois, àquela altura,
certamente todos os seres racionais falarão apenas uma única língua. Então,
não mais os efeitos de Babel serão sentidos.

487 Lc 24.39.
488 Cl 1.16.
489 Sl 104.4; Hb 1.7.
490 Lc 8.30.
491 ou angeofania.
492 Gn 28.12.
493 Mt 1.20.
494 Lc 2.8-15.
495 At 27.23-24.
496 Is 6.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 147

c. As capacidades dos seres celestiais.

Claramente são seres racionais, dotados de inteligência, vontade e,


portanto, de caráter moral. A razão de serem inteligentes deduz-se do fato de
serem espíritos. De sua inteligência e sabedoria é dito claramente na
Escritura 497 ; sua vontade e poder superiores aos homens podem ser
deduzidos de 2 Pe 2.11. Eles não são oniscientes, mas certamente são muito
superiores aos homens498. São seres moralmente dotados, pois a Escritura
diz que houve anjos que não 'guardaram o seu estado original 499 ', mas
pecaram contra o Senhor500. O seu caráter moral também deduz-se do rato
deles se colocarem na posição de juizes dos homens501, como 'anjos santos'
que são502.

2. A classificação dos seres celestiais.

1. Seu número.

Diferentemente dos seres humanos, eles não constituem uma raça ou


um organismo, porque não se casam, nem se reproduzem. Todos eles foram
criados de uma só vez, e seu número não é aumentado, nem diminuído. É
verdade que eles são um exército numeroso503, uma companhia inumerável
de seres celestiais, mas com um numero definido504.

2. Sua ordem.

Berkhof diz que 'ainda que os anjos não constituem um organismo,


contudo, é evidente que eles tem alguma organização... Não há na Escritura
um nome geral e distinto para todos os seres espirituais' 505 . Há várias
designações para esses seres celestiais506:
1. Filhos de Deus507;
2. Espíritos508;
3. Santos509;

497 2 Sm 14.20, Mt 24.36; Ef 3.10; 1 Pe 1.12.


498 Mt 24.36.
499 Jd 6.
500 Jo 8.44; 1 Jo 3.8-10.
501 Mt 25.31.
502 Mc 8.38; Lc 9.26; At 10.22; Ap 14.10.
503 Jesus disse, em Mt 26.53, que poderia chamar 12 legiões de anjos. Legião é um termo para definir

um contingente de soldados de um exército, e cada legião variava de 3000 a 6000 soldados.


504 Sl 148.2; Ap 5.11.
505 Berkhof, p. 172.
506 Sl 89.6.
507 Jó 1.6; 2.1.
508 Hb 1.14.
509 Sl 89.5-7; Dn 8.13.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 148

4. Vigilantes510.
Há, todavia, alguns nomes específicos dos seres celestiais, que
expressam algum tipo de organização, embora seja impossível uma
classificação exata de poder e autoridade. Agostinho disse:
"Eu firmemente creio que há lugares, domínios, principados e poderes nos
arranjos celestiais, e sustento com fé firme que há diferença entre eles. Mas
embora você possa desprezar-me por pensar que sou um grande professor, eu
não sei nada sobre o que eles são, nem a diferença entre eles"511.
Portanto, podemos apenas nomear as diferentes classes de seres
celestiais e suas variadas funções, embora não conheçamos as reais
diferenças entre eles.
Querubins.

Destes a Escritura fala bastante. É dito que eles fazem muitas coisas, e
seu contato com os homens é constante. Os querubins guardam a entrada
do Paraíso 512 . Muitas vezes eles se dirigiram a Ezequiel, com mensagem
reveladora. A forma deles, isto é, a forma com que se apresentaram aos
homens, pode ser vista por muitos na confecção de ouro dos querubins da
arca do propiciatório 513 ; como os serafins, eles também ficam em algum
lugar perto do trono de Deus514.
Serafins.

Estes são mencionados somente em Is 6.2-6. Eles são representados


simbolicamente com forma humana, embora possuam asas. Estes seres
celestiais, juntamente com os querubins 515 , são os únicos mencionados
como sendo alados. Diferentemente de outros seres celestiais, como os
querubins, por exemplo, eles permanecem somente em louvor contínuo ao
redor do trono, e nunca é dito deles que tenham ministrado aos homens.
Seres viventes.

Estes parecem ser exatamente os mesmos que os 'serafins', pois as suas


características são bem similares, se compararmos os textos de Is 6.2-3 com
Ap 4.8, assim como o tipo de louvor que eles prestam ao Deus 'Santo, Santo,
Santo'; Ezequiel também os identifica com os querubins 516 . Eles também
aparecem em Ez 1.5-14, com características um pouco diferentes, inclusive
com feições humanas, e descritos bem mais detalhadamente, embora
bastante distantes daquilo que somos. É óbvio que, embora Ezequiel os
tenha visto numa visão de caráter revelacional, eles são seres
eminentemente espirituais.
Arcanjos.

510 Dn 4.13-17.
511 Citado por Turretin, p. 551.
512 Gn 3.24.
513 Ex 25.17-22; Hb 9.1-5.
514 Sl 80.1; 99.1; Is 37.16.
515 2 Cr 3.10-14; Ez 10.5.8.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 149

O texto de 1 Ts 4.16 menciona um a)rxagge/lou ("arcanjo"), mas não se


pode dizer deste texto, que ele seria príncipe de todos os anjos. Aqui, neste
texto, ele funciona como o precursor da notável majestade de Cristo,
anunciando a sua iminente chegada, através do toque da trombeta.
Judas 9 fala de Miguel como sendo o 'arcanjo' que disputava com o
diabo o corpo de Moisés. Em Ap 12.7 dá-nos a impressão de que Miguel tem
uma certa preeminência sobre os outros anjos, como satanás tinha sobre
outros anjos caídos, mas isto é ima inferência improvável. Em ambos os
textos supracitados, Miguel é um devotado contendor, que pelejou contra o
inimigo. Dn 10.13-21 dá-nos um pouquinho mais da idéia de uma certa
ordem entre os seres celestiais. Miguel, o arcanjo, é chamado de 'um dos
primeiros príncipes', provavelmente entre os seres celestiais.
Anjos.

Este termo pode ser designativo também de homens, como


'mensageiros' enviados pelos homens 517 ou por Deus 518 no Velho
Testamento 519 assim como no Novo Testamento (a)ggelo/j)520 ; pode ser um
termo aplicado para os seres celestiais em geral, embora também indique
uma classe específica de ser celestial, pois o texto de Ap 5.11 diz que anjos,
que eram distintos dos 'seres viventes' (que são querubins e serafins),
cantavam louvores ao Cordeiro, juntamente com os anciãos.
O único anjo mencionado pelo nome é Gabriel521. Ele assistia diante do
trono de Deus, como muitos outros anjos 522 , mas teve a incumbência de
comunicar-se com os homens, fazendo-lhes grandes anúncios523. Como um
ser espiritual (ou incorpóreo) que é, para comunicar-se com homens teve que
assumir aparência humana. Por isso é dito dele no livro de Daniel que o anjo
Gabriel possuía a aparência de homem524, mas obviamente não era homem.
Principados, poderes, tronos e domínios.

Estas designações dadas por Paulo em Cl 1.16 não indicam


necessariamente diferentes classes entre eles. Podemos apenas inferir que os
seres celestiais são, em alguma medida, seres possuídos de algum tipo de
poder ou autoridade sobre as outras criaturas racionais e não racionais. É
dito que eles são 'tronos' (qro/noi), 'soberanias' ou 'senhorio' (kurio/thtej),
'governadores' ou 'principados' (a)rxai\); 'potestades' ou 'autoridades'
(e)cousi/ai). Estas 'designações não indicam classes diferentes de seres

516 Ez 10.16-22.
517 Jó 1.14; 1 Sm 11.3.
518 Ag 1.13; Ml 2.7; 3.1.
519 A palavra hebraica para 'anjo' é :\a):lam (Ml 3.1) que significa 'mensageiro'.
520 Mt 11.10; Mc 1.2; Lc 7.24-27; Gl 4.14).
521 Lc 1.19.
522 Ap 5.11.
523 Lc 1.19-38.
524 Dn 8.15-16; 9.21.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 150

celestiais, mas simplesmente diferenças de posição ou de dignidade entre


eles'525.

3. O poder dos seres celestiais.

4. O destino dos seres celestiais.

5. O ministério dos seres celestiais.

Ninguém pode negar que há um ministério para os anjos, porque a


Escritura diz que eles são diáconos ou 'enviados para o serviço' (e)ij diakoni/na
a)postello/mena), e também porque diz que eles 'são espíritos
ministradores'526. A palavra usada para 'espíritos ministradores' é leitourgika\
pneu/mata, mas nem todos os seres celestiais são ministros aos homens,
como já vimos.
Por que Deus usa o ministério dos anjos. Não é porque Deus tem
necessidade deles, como se não pudesse fazer nada sem eles, ou que não
pudesse governar o mundo sem eles. Não é uma matéria de necessidade de
Deus, mas é uma questão da natureza providencial e amorosa de Deus, que
não é explicada na Escritura. Deus poderia fazer imediatamente todas as
coisas que os anjos fazem. Deus não tem necessidade de ninguém e de nada
porque Ele se basta, mas Ele decidiu criar os anjos para que fossem
ministros Seus. As razões mencionadas abaixo são inferenciais, embora a
segunda seja eminentemente escriturística:
a. Deus quis que eles fossem cooperadores d'Ele na administração do
universo;
b. Deus quis que eles fossem cooperadores para o consolo dos crentes e
daqueles que vão herdar a salvação e proporciona seres celestiais para
tomar cuidado deles;
c. Deus quis que eles fossem cooperadores d'Ele para a boa ordem do
universo, para que todas as criaturas, sejam elas superiores ou inferiores,
visíveis ou invisíveis, vivam em harmonia no universo criado;
d. Deus quis que eles fossem cooperadores d'Ele para que a Sua glória fosse
promovida por eles em tudo o que eles fazem.

Os ministérios dos anjos.

1. Com relação a Deus.

a. Parece-nos que a Escritura diz que eles vivem sempre ocupados com a
tarefa da adoração. Esta tarefa parece que cabe mais aos serafins 527 .

525 Berkhof, p. 173. (ver também Ef 3.10 onde 'principados e autoridades' são seres que residem no céu
(a)rxai=j kai\ tai=j e)cousli/aij e)n toi=j e(pourani/oij)
526 Hb 1.14.
527 Is 6.3.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 151

Dá-me a impressão que os serafins em Isaías tem qualquer relação de


função com aqueles que o escritor de apocalipse chama de 'seres
viventes'. Veja a descrição deles e a sua função528. O conteúdo do que
cantam e do que fazem é semelhante ao dos serafins do livro de Isaías. A
despeito de uma possível diferença entre os serafins e anjos, estes se
juntam àqueles para o louvor contínuo a Deus529.
O lugar da cena da adoração e dos louvores é junto do trono de Deus
nos exemplos já citados, e também em 1 Rs 22.19.]
O conteúdo da adoração deles é visto no cântico a Deus como Criador530
e como Redentor 531 , e cânticos de glorificação a Deus como Deus Santo,
Poderoso, Soberano, etc.532 Em referência aos louvores dos seres celestiais,
Gregório de Nazianzius diz que eles são 'os cantores da majestade divina' e
Theodoreto diz que 'o serviço dos anjos é cantar'533.
A adoração deles é contínua534 a Deus, o Pai, e a Deus, o Filho535.
b. Outro serviço deles com relação a Deus é que eles serviram de ajuda
extrema em todos os eventos importantes com relação ao Filho
Encarnado: eles estiveram presentes no anúncio da concepção do
Redentor536, no Seu próprio nascimento537, na tentação do Redentor538,
na agonia do Redentor539, na ressurreição do Redentor540, na ascensão do
Redentor541 e aparecerão na segunda vinda do Redentor/Juiz542.
2. Com relação a eles mesmos.

Parece-nos que os anjos (que não são uma raça) são uma sociedade
celestial bem ordenada fazendo algo em favor uns dos outros. O texto de
Isaías 6.3 diz que os 'serafins clamavam uns para os outros: Santo, Santo,
Santo...'- o que parece indicar que um ajudava ao outro no louvor a Deus.
Este é um tipo de ministração543. Parece que não há mais nada relatado na
Escritura que eles fazem em favor deles mesmos.
3. Com relação ao mundo.

528 Ap 4.6-10.
529 Ap 5.11-14; 7.11-12.
530 Ap 4.11.
531 Ap 5.7-14.
532 Sl 103.20-21; Sl 148.2; Lc 2.13-14; Ap 7.11-12.
533 Citado por Francis Turretin, Institutes of Elenctic Theology, vol. 1 (New Jersey: Puritan &

Reformed Publishing, 1992 edition), p. 556.


534 Ap 4.8.
535 Hb 1.6.
536 Lc 1.26.38.
537 Lc 2.9-15.
538 Mt 4.11.
539 Lc 22.43.
540 Mt 4.11.
541 At 1.10-11.
542 2 Ts 1.7-8.
543 Merece um estudo mais cuidadoso. Nota pessoal. Marthon.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 152

a. A função dos anjos com relação ao mundo é a preservação dele. No Sl


104.4 é dito a Deus: "Fazes a teus anjos ventos, e a teus ministros,
labaredas de fogo".
b. Eles parecem ter a função de proteger impérios e reinos. Isto é deduzido
de Dn 10.13-15 e capítulo 11.
c. Eles servem para manter a ordem na natureza, trazendo juízos
catastróficos parciais sobre o mundo, e sendo os anunciadores dos juízos
finais de Deus544.
4. Com relação aos homens.

a. Com relação aos homens ímpios.

Eles impingem os juízos parciais de Deus 545 , assim como os juízos


finais546.
b. Com relação aos homens justos.

Eles castigam disciplinando os justos 547 ; eles livram os justos dos


homens maus548; eles recolhem os eleitos no arrebatamento549; eles são os
arautos de boas novas aos homens550, e levam as almas dos justos para o
céu, ou o seio de Abraão551.
A Escritura diz que os anjos são 'ministros de Deus enviados para
serem ministros em favor dos que hão de herdar a salvação'552.
Aplicação.

Em que sentido os justos são beneficiados pela ministração dos anjos?


a. Pela instrução.

Deus sempre instrui, de antemão, os seus eleitos a respeito das coisas


que Ele vai fazer. Nesse sentido, os anjos portaram-se como evangelistas
quando anunciaram o nascimento de Jesus553, quando predisseram a sua
ressurreição 554 , quando predisseram e instruíram sobre a sua segunda
vinda555. No livro de Apocalipse, os anjos sempre instruem a respeito das
coisas futuras.
b. Pelo consolo.

544 Ver Ap 14.8-20; 15.1-9; 16.1-21.


545 Gn 19.1-11; 2 Rs 19.35; Is 37.36; At 12.21-23.
546 Mc 13.41-42.
547 2 Sm 24.10-16.
548 Gn 19.11-12.
549 Mt 24.31.
550 Lc 2.9-14.
551 Lc 16.22.
552 Hb 1.14.
553 Lc 1.11.
554 Mt 28.2-7.
555 At 1.9-11.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 153

O anjo consolou Hagar em hora de aflição556; eles consolaram Jacó557;


consolaram a Daniel558, um anjo confortou a Elias559, consolou as mulheres
e os apóstolos na morte e ressurreição de Jesus 560 e confortou o próprio
Jesus.561
c. Pela proteção.

Existe 'anjo da guarda'? a Escritura apresenta alguns textos que nos


fazem responder positivamente a esta pergunta, embora não devamos
entender esta matéria da mesma forma em que a entendem os
católico-romanos. Estes dizem que cada pessoa tem o seu próprio anjo que a
acompanha desde o seu nascimento, e é a sua perfeita guarda até o
momento da sua morte. Os Reformados não pensam desta maneira.
Contudo, cremos que os anjos são apontados por Deus para 'ministrarem' a
favor dos que hão de herdar a salvação, e muitos textos podem ser
apontados na Escritura sobre os anjos como guardiões e defensores dos
justos562. Contudo a Escritura não nos indica que eles são anjos particulares
das pessoas. Um anjo é enviado para guardar muitos crentes563, e muitos
anjos também são apontados para guardar uma pessoa564.
As duas passagens geralmente usadas para provar o ponto
católico-romano são: Mt 18.10 565 e At 12.15 566 . O texto de 1 Co 11.10
mostra que os anjos de Deus estão, de alguma forma presentes nas
assembléias dos crentes, para verificar da pureza ou impureza dos justos.
Mas nada, absolutamente nada, pode ser dito de que eles estão presentes
para serem guardiães pessoais dos crentes, como se cada um deles tenha
sido enviado para guardar cada crente em particular.

556 Gn 16.7-12.
557 Gn 32.1.
558 Dn 10.10-21.
559 1 Rs 19.5-7.
560 Mt 28.5-10.
561 Lc 22.43.
562 Sl 34.7, 91.11; Mt 18.10; Gn 19.15-17; Dn 3.23-25; Dn 6.22; At 5.19; 12.7.
563 Sl 37.4.
564 Sl 91.11.
565 Turretin argumenta: "Este texto mostra que os anjos são dados como guardiões às crianças não

menos que aos adultos, mas não pode ser deduzido disto que um anjo particular ou peculiar é
concedido às crianças individualmente, como guardas perpétuos. Terminantemente não é dito que um
anjo de cada uma destas crianças está diante da face de Deus, mas é dito de um modo não definido
que 'seus anjos, não importa se muitos anjos para uma criança ou um anjo para muitas crianças'.
(Elenctic Theology, p. 559).
566 Turretin argumenta contra a teoria romana do anjo da guarda, comentando este texto: 1 não é a voz

da Escritura, mas de alguns que falam como judeus; são convertidos de fato, mas não ainda
suficientemente instruídos na doutrina cristã... (um argumento perigoso, ao meu ver. N.P.); 2 Se as palavras se
referem a um anjo, pode ser entendido que um anjo estava com ele, mas não que houvesse um
guardião particular e perpétuo que lhe havia sido dado (versos 7-8)" (Elenctic Theology, p. 559).
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 154

CAPÍTULO 3.

A DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA.

A doutrina da providência divina tem sido esquecida nos ensinos dos


seminários e das Igrejas atualmente ou negligenciada, no mínimo, por razões
teológicas. Berkouwer escreveu o primeiro capítulo de seu livro sobre a
providência sobre a crise da doutrina da providência em nosso século 567 .
Precisamos devolver à Igreja contemporânea o que ela perdeu neste século, e
que foi crido por ela de uma maneiram ais vívida desde o período da reforma
do século XVI.

Relação com outras doutrinas.

Como a criação, a obra da providência é também incompreensível568.


Ela sobrepassa o nosso entendimento. Mesmo sem entender todas as coisas
da providência, podemos relacioná-la com outras doutrinas também de
difícil entendimento, mas reconhecidamente bíblicas.

Providência e criação.

Na CFW a doutrina da criação vem primeiro, e, logo a seguir, a doutrina


da providência. Quase todos os teólogos reformados seguem esta ordem,
especialmente no que diz respeito à providência como preservação e governo.
Criação é um ato terminado, e providência é um ato contínuo de Deus
naquilo que foi criado569.

Providência e decreto.

O decreto vem primeiro; a providência é a execução do decreto. Todos os


atos da história do mundo já foram decretados por Deus antes da fundação
do mundo, mas eles são realizados historicamente pela obra providencial de
Deus570.

Providência e eleição.

567 G.C. Berkouwer, The Providence of God (Eerdmans, 1952), p. 9-32.


568 Jó 37.5-24.
569 At 17.24-25.
570 Sl 2.7-8.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 155

A salvação dos pecadores foi planejada antes da fundação do mundo,


mas a providência proporciona os meios para que as pessoas cheguem ao
conhecimento salvador de Jesus571.

A doutrina nos símbolos de fé.

A doutrina da providência 'é apresentada nas confissões de fé


Reformadas em conexão com o crente e seu dom de salvação'572. Seria justo
perguntar: é possível haver providência à parte da doutrina da salvação? Não
seria exagero reduzir a providência apenas ao aspecto soteriológico? Não há
muita preocupação com a vida em geral, embora haja menção nas confissões
de uma providência geral de Deus. Seria mais próprio que a doutrina da
providência fosse tratada com um caráter universal, abarcando todas as
coisas, não somente a providência relacionada com os filhos de Deus. Porque
a ênfase é mais soteriológica?
A resposta a esta pergunta está vinculada a raízes históricas. As
confissões Reformadas foram formuladas num período de conflito com a
Igreja de Roma, quando as idéias sobre a teologia natural estavam
florescendo. Dentro dessa teologia de Roma, cria-se que se poderia ter um
conhecimento da providência de Deus à parte da fé, da revelação especial.
Na teologia católica, portanto, o conhecimento da providência não é visto
soteriologicamente condicionado. Portanto, toda abordagem Reformada da
providência foi, contrariando a posição católica, colocada dentro da esfera
soteriológica.

Conceitos errôneos sobre a providência.

Berkhof573 assinala alguns conceitos errôneos sobre a providência que


devem ser evitados. Seleciono aqui apenas dois deles.

a. Conceito deísta.

Conforme o deísmo, a preocupação de Deus com o mundo não é


universal, especial e perpetua, mas somente de natureza geral. No tempo da
criação Deus comunicou às suas criaturas certas propriedades inalienáveis,
colocou-as debaixo de leis inalteráveis, e as deixou funcionar através de seus
próprios poderes inerentes. O mundo é simplesmente uma máquina que
Deus colocou em movimento, e não um navio que tem um piloto que o dirige
dia a dia.
Esta concepção deísta foi sustentada pelos pelagianos, por diversos
teólogos católico-romanos, e é um dos erros fundamentais do arminianismo.
No século XVIII apareceu como teoria filosófica, e no século XIX tomou nova

571 Rm 8.29-39.
572 Berkower, p. 39 (ver CFW, cap. V).
573 Berkhof, Teologia Sistemática, p., 197.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 156

forma, debaixo da influência da teoria da evolução e da ciência natural,


dando ênfase à uniformidade da natureza controlada por um sistema
inflexível de leis.
Contudo, a opinião dos deístas sobre a providência é insustentável
porque não possui base escriturística. Ela sugere que Deus comunicou
auto-existência à criatura, cousa que é própria somente do Criador. A
criatura nunca pode auto-sustentar-se, mas pode ser sustentada somente
por um ato da onipotência divina. Não fora a onipotência de Deus, o mundo
todo acabaria se deteriorando irremediavelmente. A concepção deísta
também remove Deus da criação de tal forma que a comunhão com ele
torna-se impossível.

b. Conceito panteísta.

O panteísmo não reconhece a distinção entre Deus e o mundo. Deus é


absorvido materialisticamente no mundo ou o mundo em Deus. Nele não há
lugar para a criação e a providência é eliminada no sentido próprio da
palavra. É verdade que os panteístas falam em providência, mas a
providência, segundo eles, é simplesmente idêntica ao curso da natureza
(uma espécie de auto-revelação que não deixa espaço para a operação
independente de causas secundárias. Nesse ponto de vista, o sobrenatural é
impossível, ou ainda, o natural e o sobrenatural são idênticos).
O conceito panteísta é altamente objetável porque há grande diferença
entre a criação e a providência. A criação diz respeito à chamada das coisas
à existência, enquanto que a providência relaciona-se com a manutenção do
que foi criado; a primeira é a produção do nada, enquanto que a segunda é a
sustentação em existência daquilo que veio a existir.
A doutrina panteísta destrói toda a continuidade da existência. Se Deus
cria qualquer coisa e a todo momento do nada, essa coisa cessa de ser a
mesma. Ela é alguma coisa nova, contudo similar ao que já existia antes.
A doutrina panteísta destrói efetivamente toda evidência da existência
de um mundo externo. Não há um mundo separado de Deus, porque o
mundo é o próprio Deus que se emana em novas coisas que são criadas.
A doutrina panteísta destrói a existência das causas secundárias. Deus
torna-se o único ser do universo que age. O universo e tudo o que nele
contém são pulsações da vida universal de Deus. Se a preservação é uma
produção continuada do nada, de tudo que existe, toda alma humana, e todo
pensamento e sentimento humanos, são um produto direto da onipotência
divina como um ato de criação original. Não há cooperação em nada das
causas secundarias para a preservação. Assim, como Deus disse: 'Haja luz, e
houve luz', também Ele continua a dizer: 'Haja o pensamento dos homens,
os propósitos, os sentimentos, que constituam a natureza deles, e assim eles
sejam'.
A doutrina panteísta destrói o caráter da responsabilidade do pecado ou
da santidade. Tanto um como o outro são o produto da energia criadora de
Deus.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 157

Os elementos da providência.

Em geral a Teologia Reformada reconhece três elementos na doutrina


da providência que são fundamentais: Conservatio, que envolve a
preservação da criação; Gubernatio envolve a direção de todas as coisas para
o cumprimento dos propósitos previamente determinados; Concursus envolve
a idéia de cooperação de Deus e homens no acontecimento de todos os atos,
sejam bons ou maus, para a realização de tudo o que Deus de antemão
escreveu.

I. Preservação.

Berkhof define preservação 'como aquela obra contínua de Deus pela


qual Ele mantém as coisas que criou, junto com as propriedades e poderes
com as quais Ele as capacitou'574.
A preservação é descrita em Hb 1.3 como o Filho de Deus 'sustentando'
todas as coisas pela palavra do Seu poder. Nada do que é criado sem
material preexistente possui auto-sustentação. Tudo o que é criado
necessariamente tem que ser preservado. A continuação da existência de
todas as cousas que vieram à existência depende de um ato preservador de
Deus que as criou. Nada é independente, exceto o Criador.
Segundo as Escrituras, a preservação do mundo material é um ato de
Deus contínuo pelo qual Ele opera mediatamente através de leis e
propriedades materiais. Contudo, a preservação do mundo espiritual é um
ato imediato de Deus que opera diretamente nas mentes dos homens e dos
anjos.
Berkhof ainda diz:
"Mas a doutrina da preservação divina não considera as substâncias criadas
como existentes por si mesmas, visto que a auto-existência é propriedade
exclusiva de Deus, e todas as criaturas tem a base de sua existência contínua em
Deus, e não nelas mesmas. Disto, segue-se que continuam existindo não em
virtude de Seu exercício positivo e continuado do poder divino"575.
Berkouwer diz que a 'confissão da providência como preservação tira do
trono a auto-suficiência da criatura, e toda presunção de independência'576.

Erros que devem ser evitados.

1. Criação e preservação são um só ato de Deus.

Alguns sustentam isso por causa da concepção deles de decreto. Eles


não conseguem ver uma sucessão nos atos de Deus.

574 Berkhof, Teologia Sistemática, p. 200-201.


575 Berkhof, p. 200.
576 G.C. Berkouwer, The Providence of God (Eeerdmans, 1952). P. 58.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 158

De fato, não há sucessão de atos no decreto de Deus, mas há sucessão


na realização histórica deles. É verdade que ambas vem de Deus, mas
criação e preservação não são idênticas.

2. A preservação é só imediata.

Porque Deus criou todas as coisas sem ter qualquer material


preexistente, imediatamente pelo Seu poder, assim Ele sustenta todas as
coisas sem a ajuda de qualquer causa secundária.
A verdade é que muitas coisas são preservadas pelas próprias leis que
Deus estabeleceu, como a luz do sol, por exemplo.

3. A preservação é uma criação continuada.

Preservação não é uma criação continuada, como alguns teólogos


Reformados do século XVII ensinaram577.
Este é o primeiro ato providencial de Deus relacionado com as coisas
que foram criadas. Deus as preserva e sustenta tudo o que criou. Isto
mostra o cuidado do Deus imanente que a Bíblia apresenta, um Deus que se
envolve com aquilo que Ele criou.
A preservação é uma obra unicamente divina feita mediata e
imediatamente.

Objetos da preservação divina.

Na Escritura a obra de preservação das coisas criadas é tripla.

1. Preservação do universo físico.

A Escritura ensina que Deus preserva o universo físico inteiro, mas há


uma certa especificidade com respeito ao planeta terra, que é objeto do Seu
maior cuidado, porque nela vivem os homens que são ainda objeto maior da
Sua preservação.
Is 40.26 mostra sua criação e providência dos corpos celestiais. Todos
os corpos celestiais continuam a existir em perfeita harmonia e coesão pela
ação providencial de Deus. Em sua Systematic Theology afirma que 'o
universo como um todo não continua a existir por si próprio. Ele cessaria de
existir se não fosse sustentado por Deus'578.

577 Cocceius afirma que 'preservação é uma especiede criação continuada' (Joahannes Cocceius, Suma
Theologiae ex Scriptura Repetita – Amsterdam, 1965, 28.9); Amesius afirma que 'preservação não é
nada mais do que uma espécie de creation cintinuata' (Glielmus Amesius, Medulla Theologica –
Amsterdam, 1634, 1.19.18). Essa idéia dos teólogos do século XVII tem sido rejeitada pelos teólogos
reformados posteriores, como Charles Hodge (Systemtic Theology, vol. 1, p. 577), Louis Berkhof
(Teologia Sistemática, p. 201), Barth, etc.
578 Charles Hodge, Systematic Theology (Eerdmans, 1981), vol. 1, p. 575.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 159

Ne 9.6 mostra não somente a preservação dos corpos celestes, mas


inclui também o nosso planeta.
Jó 38.8.11 mostra que a preservação e o controle dos elementos da
natureza são fantasticamente descritos nesta passagem de Jó579.
Jó 38.12, aqui Deus trata da coordenação dos dias e das noites. Tudo é
preservado de tal modo que não há falha nos mecanismos que regem os
nossos dias.
Jó 38.25-30 – aqui novamente a Escritura fala da maneira
extraordinária que a água é usada para a manutenção dos seres vivos580.
Os chamados Salmos da natureza mostram a maneira como Deus
preserva todo o universo físico para o nosso bem581.
O salmo 104 todo mostra o cuidado de Deus com o cosmos582, com o
planeta terra583, com os animais584, com o homem585.

2. Preservação das espécies586.

Deus criou e preserva todos os animais, não deixando que eles venham
a ser extintos. É o equilíbrio das espécies587. Deus preserva mediatamente
quando Deus aos animais o poder de auto-propagação. Hodge diz: "que
todas as criaturas, sejam plantas ou animais, em seus diversos gêneros,
continuam em existência não por qualquer princípio inerente de vida, mas
pela vontade de Deus"588.
O salmo 104.24-27 mostra de maneira absoluta clara, como Deus tem
cuidado dos animais irracionais, preservando-lhes a vida589.
Os chamados salmos da natureza não são uma elegia à natureza, mas
ao Deus que a formou e a preserva. Tanto a criação como a providência
mostram o poder de Deus590.

3. Preservação do homem.

O homem é a parte principal da criação que preserva. Deus preserva


todos os animais, uns para o deleite dos homens, e outros para o sustento
deste. O homem é o alvo principal da obra providencial preservadora de
Deus, a preservação da vida humana é objetivo maior da obra amorosa de
Deus.

579 Jó 26.12.
580 Jó 37.10-13.
581 Sl 19.4-6.
582 Sl 104.2-4, 19.
583 Sl 104.5-10.
584 Sl 104.11-12, 16-18, 20-22, 25-29.
585 Sl 104.13-15, 23.
586 Gn 1.21-22.
587 Mt 10.29.
588 Hodge, vol. 1, p. 575.
589 Sl 104.11-12, 16-18, 20-22, 25-29.
590 Sl 19.33; 89; 104 e 148.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 160

A preservação da raça humana em geral.

A preservação da vida humana é uma atividade pessoal de Deus. Ele é a


quem todos dá vida e sustenta. Mesmo com as coisas mínimas Ele se
preocupa591.
Essa preservação da raça humana é feita por Deus mediatamente,
através do próprio homem 592 , mas ao mesmo tempo a Escritura diz que
Deus é 'aquele que desde o princípio tem chamado as gerações à
existência'593.
Contudo:
"a preservação divina da vida humana não é meramente uma obra passiva de
Deus, na qual Ele se senta e observa ambos, os eventos do mundo e a busca
desdobrada dos homens, mas é uma obra ativa da Divindade. É uma obra ativa
porque Deus toma a iniciativa e realiza estas coisas em favor da humanidade"594.
E essa iniciativa de Deus é percebida nos menores detalhes. Deus cuida
dos mínimos detalhes para o sustento físico dos homens595. Todos os seres
humanos e animais esperam em Deus, porque d'Ele vem a preservação.
Não há possibilidade de continuação da existência de todos os homens
fora de Deus596. N'Ele somos tudo. Este foi o reconhecimento de um ímpio,
um poeta grego, provavelmente Arato, segundo Calvino.

A preservação dos crentes em especial.

Estes são o objeto principal da obra de Deus, pois eles estão numa
relação pactual de amor.
"A palavra hebraica shamar significa 'guardar, preservar, proteger'. Ela é o verbo
teológico central usado para descrever as fidelidades de Yahweh aos seus servos
e aparece em várias passagens597. Essa palavra anuncia as boas novas de Yahweh
que é o supremo Guardador e preservador dos Seus servos"598.
A preservação da vida pessoal deles é também obra de Deus599. E isto
Ele faz amorosamente com aqueles que já estão dentro da relação pactual,
dentro da esfera da redenção, e com aqueles que estão para se tornar Seus
filhos. É nesse sentido que podemos entender a obra preservadora de Deus
com finalidade soteriológica.
Tudo o que Deus faz aos do 'seu povo', Ele faz por causa do pacto que
Ele estabeleceu. Portanto, os Seus eleitos Deus sustenta, preserva e,
finalmente, os leva a Cristo Jesus e Sua eterna glória.

591 Lc 21.18.
592 Gn 1.28.
593 Is 41.4.
594 Benjamin Wirt Farley, The Providence of God, Baker, 1988, p. 36.
595 Sl 104.13-15, 23.
596 At 17.25-28.
597 Gn 28.15; Nm 6.24, Js 24.17; Sl 16.1`; 91.11.
598 Farley, p.35.
599 Jó 10.12; Sl 121.5-8.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 161

Os anjos são os espíritos ministradores que servem aos propósitos de


Deus na preservação daqueles que herdarão a salvação600.

II. Governo.

Berkhof define o governo providencial de Deus como 'a atividade


contínua de Deus por meio da qual Ele governa todas as coisas
teologicamente de maneira que assegura o cumprimento do propósito
divino'601. O governo tem 'especificamente a ver com a direção, propósito e
meta que Deus designa para cada componente da criação e para o todo da
história'602.
Na preservação há um certo propósito para o futuro, mas no governo o
propósito com relação ao futuro é muito mais explícito603.

1. Deus governa como Rei do Universo.

Nos dias atuais há uma certa indisposição em aceitar Deus como rei do
universo. A monarquia está fora de moda, e a realeza de Deus também tem
sido desprezada, mesmo na teologia. Muitos preferem tratar do amor e da
paternidade de Deus antes do que de Sua realeza governamental. Todavia, a
Escritura é extremamente clara, tanto no Antigo Testamento como no Novo
Testamento, quando fala de Deus como Rei de todo o universo.
Há muitos textos na Escritura que descrevem Deus como Rei de toda a
terra604, reinando sobre todas as nações605. Ele é Rei e também é chamado
"Senhor dos Exércitos606", e, por essa razão, tem todas as coisas em Suas
mãos.
O conceito de Deus como Rei Universal não se limita simplesmente ao
VT, mas é também presente no NT607. A expressão 'Senhor do céu e da terra'
também está presente no NT608, 'Rei dos reis, Senhor dos senhores609'.
Como Rei do universo, portanto, Seu governo é invencível. Ele tem tudo
nas mãos, e realiza todos os seus propósitos porque quebra toda a
resistência que os homens Lhe fazem. Como Ele faz isso? Deus tem a parte
mais íntima dos poderosos deste mundo nas suas mãos. Ele executa todos
os Seus propósitos através da instrumentalidade das pessoas em
autoridade610. Mesmo os elementos mais poderosos da natureza estão sob o
governo de Deus611 e nada impede a realização daquilo que Ele determinou.

600 Hb 2.14.
601 Berkhof, p. 206.
602 Farley, p. 42.
603 Berkouwer, p. 93.
604 Sl 47.7-8.
605 Jr 10.7.
606 Jr 46.18; 48.15; 51.57).
607 Mt 5.35.
608 Mt 11.25; At 17.24.
609 1 Tm 6.15.
610 Pv 21.1.
611 Sl 93.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 162

Berkouwer diz do poderoso governo de Deus:


"A invencibilidade do governo de propósito de Deus não pode ser medida com
padrões humanos, nem exaurida por analogias do poder humano. Mas que o
governo de Deus é invencível é certo. Ele é invencível de um modo divino: Seu
método é estranho às técnicas humanas. Ele é o Senhor dos Exércitos, mas a Sua
conquista é melhor revelada na vergonha e no desamparo da cruz de Seu Filho.
Ele conquista, mas Ele acaba com as trevas e com a angústia. Todavia, um dia, a
vitoria divina brilhará como o sol para uma manhã eterna"612.
No NT este grande Rei, Pai de Jesus Cristo, dirige todas as coisas para
um te/loj, que de antemão foi determinado. Agora, Ele dirige todas as coisas
para que Seus propósitos sejam cumpridos, e nenhum deles falhe.

2. Deus governa segundo Sua onipotente sabedoria.

Como Deus age e tudo chega exatamente onde Ele determinou? É Deus
o autor dos males que há no mundo, inclusive os morais? Como podemos
combinar a Sua natureza com o que acontece no mundo? Ele opera sozinho?
É necessário que se entenda o governo de Deus teologicamente, isto é,
objetivando um fim. Seu governo é uma presença real entre os homens e Sua
atividade continuada, que tem um curso histórico, caminha para o seu
cumprimento final. Deus dirige a nossa história, e nós somos os seus
agentes. É aqui que entra o difícil problema do concursus613.

3. Concursus.

Tem sido um grande debate em teologia a existência de um terceiro


fator na doutrina da providência de Deus.
Concursus é o suporte contínuo de Deus para a operação de todas as
causas secundárias (sejam elas livres, contingentes ou necessárias), para o
cumprimento de Seus santos propósitos. Berkhof define-o como 'a
cooperação do poder divino com os poderes subordinados, de acordo com as
leis preestabelecidas para sua operação fazendo-as atuar, e que atuem
precisamente como o fazem'614.
Devemos notar que esta doutrina implica em duas coisas:
I. Que os poderes da natureza não atuam por si mesmos, isto é, por seu
próprio poder inerente, mas é Deus quem opera imediatamente em
cada ato da criatura. Note-se que este ensino está em oposição ao
ensino deísta;
II. Que as causas secundárias são reais, e que não devem ser
consideradas simplesmente como o poder operativo de Deus. Somente
assim podemos entender a cooperação da Primeira Causa com as
causas secundárias. Deve insistir-se nisto em oposição à idéia
panteísta de que Deus é o único agente que opera no mundo.

612 Berkouwer, p. 94.


613 É uma palavra latina que significa 'concorrência' ou 'cooperação'.
614 Berkhof, p. 202.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 163

A relação entre a obra de Deus e a obra do homem aparece muito


fortemente vista na doutrina da salvação, mas aparece também na doutrina
da providência, e podemos estudá-la de um outro ângulo. A idéia de
concorrência encaixa-se perfeitamente na doutrina da salvação como na
providência. Isto significa que a atividade de Deus não exclui a participação
humana no que diz respeito às coisas santas e, de modo inverso, nas
atividades ímpias dos homens não há exclusão da cooperação divina, para
que tudo venha cumprir os propósitos eternos de Deus. Exceto as operações
absolutamente imediatas de Deus 615 , todas as operações são efetuadas
numa cooperação entre os agentes racionais livres e Deus.

Características do concursus.

Há algumas características gerais do concursus divino.

1. O concursus de Deus nos atos dos homens é prévio e determinante.

Todavia, essa expressão não deve ser entendida no sentido temporal,


mas lógico. Não existe nenhuma criatura que pratique uma ação que parta
exclusivamente de si mesma. Em todos os casos o impulso para a ação e
para o movimento procede de Deus. Tem que haver uma influência da
energia divina antes da criatura atuar. Deus faz com que tudo coopere na
natureza e que se mova em direção a um fim predeterminado. Desta maneira
Deus também impulsiona e capacita todas as suas criaturas racionais, que
são as causas secundárias, para que atuem. Deus não somente as dota com
energia, mas dá-lhes também vigor para fazerem ações específicas. Deus faz
tudo em todos 616 , e opera todas as cousas segundo o conselho da sua
vontade617. Deus deu vigor a Israel para conseguir riquezas618 e opera nos
crentes tanto o querer como o fazer, segundo a sua boa vontade619.
É bom lembrar que os arminianos também admitem que a criatura não
pode atuar sem o influxo do poder divino, mas sustentam que esse influxo
não é tão específico ao ponto de determinar o caráter da ação em sentido
algum.

2. O concursus de Deus na obra do homem é imediato.

Para governar o mundo Deus emprega toda classe de meios para a


realização de seus propósitos, mas não é assim na concorrência divina.
Quando Deus destrói as cidades de Sodoma e Gomorra com fogo, temos um
ato providencial de Deus em que Ele emprega meios. Mas ao mesmo tempo,
ali está a sua concorrência imediata por meio da qual Ele faz com que o fogo

615 Como as da criação natural e criação espiritual, por exemplo, onde Deus age sem o concursus de
Suas criaturas racionais.
616 1 Co 12.6.
617 Ef 1.11.
618 Dt 8.18.
619 Fp 2.13.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 164

caia, arda e destrua. Desta maneira Deus também trabalha no homem


dotando-o de poder na determinação de suas atividades constantemente.

3. O concursus entre Deus e o homem é simultâneo.

Não há um só momento em que a criatura opere absolutamente


sozinha, independente da vontade e do poder de Deus. A atividade de Deus
sempre acompanha, sustenta e conduz a atividade do homem 620 . Toda
atividade nossa está, de alguma forma, associada com a consecução de um
plano divino. Todos os nossos movimentos estão amarrados à Sua vontade
soberana. A atividade de Deus acompanha a dos homens em todas as suas
direções, mas nunca o homem fica despojado de sua responsabilidade. Os
dois, Deus e o homem, trabalham simultaneamente, embora o homem nem
sempre se dê conta disso.
Nesse concursus simultâneo, a ação é sempre resultado da combinação
do ato dos homens e da participação divina. Mas o homem é sempre
responsável por sua ação, seja ela boa ou má. Essa combinação de ação é
também chamado em teologia de compatibilismo.
Compatibilismo.

A Bíblia ensina duas grandes verdades.


Que Deus é soberano e que o homem é um agente livre.

A soberania de Deus nunca exclui ou minimiza a responsabilidade


humana. Estas duas verdades andam juntas e nem sempre podemos
abarcar a totalidade desta verdade, porque pensamos que as duas coisas são
excludentes. Todavia, por liberdade, não se entenda liberdade de
independência, porque esta não existe. Toda a manifestação de liberdade
está condicionada à natureza das coisas existentes.
Todos os seres racionais são criaturas morais responsáveis.

Eles fazem escolhas o tempo todo; eles obedecem, se rebelam, crêem,


permanecem incrédulos, mas sempre são contados por Deus como
responsáveis pelos seus atos, mas isto nunca acontece fazendo com que
Deus seja contingente dos atos humanos.
Deus é apresentado na Escritura como soberano e, ao mesmo tempo,
como Deus de bondade. Carson nos adverte muito sabiamente de um perigo:
"Deus nunca é apresentado como cúmplice do mal, ou como secretamente
malicioso, ou como permanecendo por detrás do mal exatamente como Ele
permanece por detrás do bem"621. A grande dificuldade é colocar estas duas
coisas juntas, sem fazer injustiça ao Deus da Palavra. Mas isto que Carson
disse é absolutamente a expressão da verdade.
Ninguém pode negar estas duas verdades apresentadas na Escritura
com vários exemplos que serão analisados logo abaixo. Estas duas verdades
são absolutamente compatíveis. Todos os teólogos que sustentam que estas

620 At 17.28.
621 D.A. Carson, How Long, O Lord? (Grand Rapids, Baker Book House, 1990), p. 205.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 165

duas verdades podem estar perfeitamente juntas, são chamadas


'compatibilistas'.
O aspecto mais notável dos textos que vamos analisar abaixo é que eles
mostram evidentemente que em nenhum ponto o agente humano é
descartado de sua responsabilidade pelo fato de Deus estar por detrás de
cada ato do homem. Não há como fugir de um compatibilismo sadio, que faz
justiça aos textos da Escritura.
Há uma tremenda base bíblica para o compatibilismo que estuda a ação
cooperativa entre Deus e os homens, nos atos bons e maus622.

A. O concursus de Deus e o bem.

A participação de Deus não tem sido um problema nas ações boas dos
homens, sejam eles eleitos ou não. Os crentes não tem muitas dúvidas sobre
o fato de Deus participar nas ações boas dos homens, especialmente se eles
crêem na 'depravação total' do homem. Crendo nisto eles raciocinam
corretamente: 'se Deus não operar no homem, o homem não fará nada bom'.
Como a história do mundo é feita de atos maus e bons, temos que
admitir que a providência divina trata dessa concorrência, aliás muito
desejada e bem-vinda.
Vejamos a base bíblica para este tópico.

Não existe incompatibilidade entre soberania de Deus e liberdade do homem, quando liberdade é
622

poder agir segundo a sua própria natureza. Estas duas coisas andam juntas. Deus é soberano e o
homem livre. Anotação de aula. Marthon.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 166

Concursus de Deus nos atos bons dos homens bons623.

Por homens bons refiro-me aos regenerados, aos que já receberam a


atuacao graciosa de Deus, sendo salvos.
De todos os casos de compatibilismo a serem explicados, o destam
ateria é o mais simples, e é o que desperta menos controvérsia. Todos
concordam que 'Deus é quem efetua em nós o querer e o realizar, segundo a
sua boa vontade 624 '. Aqui estamos tratando das ações dos homens
regenerados. Pessoas regeneradas também são pessoas responsáveis. Como
possuidores da verdadeira liberdade, os regenerados tem a responsabilidade
de apresentar bons pensamentos, boas ações, assim como evitar maus
pensamentos e más obras625. O cristão tem a responsabilidade de fazer o
bem, mesmo sabendo que Deus é quem opera as coisas santas, justas e
boas em nós.
Deus opera em nós a regeneração, capacitando-nos a nos
arrependermos de nossos pecados e a crermos nas Suas promessas.
Sabemos que essas coisas vem de Deus, mas Ele exige de nós ambas as
coisas. Não podemos escapar desta verdade da Escritura.
Hoekema diz: "A ênfase bíblica sobre a soberania de Deus, portanto,
não elimina a necessidade de uma resposta pessoal às propostas do
evangelho. Nem a ênfase escriturística sobre a eleição divina cancela a
necessidade da escolha humana. Deus salva-nos como pessoas criadas"626.
Mesmo sabendo que Deus é quem opera em nós 'tanto o querer como o
realizar' nas coisas soteriológicas, Paulo nos exorta a desenvolvermos a
nossa salvação com temor e tremor'627.
O mesmo acontece nos atos relativos à nossa santificação. Há um
concursus entre Deus e o homem. Deus age internamente em nosso coração,
obrando secretamente, e nós somos chamados à santificação 628 , mesmo
sabendo que Deus é o autor da nossa santificação.
Todo ato bom é uma combinação de uma obra santificadora de Deus
que se mostra ser também um ato de obediência do homem.
Concursus de Deus nos atos 'bons' dos homens maus.

Por atos 'bons' dos homens maus, eu quero dizer atos que são
considerados aceitáveis por nós e qualificados como que trazendo
conseqüências boas 629 , embora nem sempre os atos sejam nascidos em
motivos puros630. Por 'homens maus' refiro-me aos não-regenerados, os que
ainda não experimentarão a graça renovadora de Deus e que, no entanto,
fazem coisas aos nossos olhos aceitáveis e justas, embora nunca meritórias.

623 Por bons entenda-se eleitos e regenerados, e por maus entenda-se não-regenerados.
624 Fp 2.13.
625 Gl 5.13 e 1 Pe 2.16.
626 Anthony Hoekema, Created in God's Image, (Eerdmans, 1986), p. 236.
627 Fp 2.12.
628 2 Co 7.1.
629 Como o espiritismo. Nota de aula.
630 Temos responsabilidade por nossas ações, causadas pela velha natureza, derrotada mas não

extirpada.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 167

O exemplo de Ciro, o rei da Pérsia: este era um homem ímpio que veio a
fazer alguma coisa 'boa', isto é, algo que trouxe um enorme beneficio para o
povo que estava no cativeiro. Deus sempre usa homens ímpios para
cumprirem propósitos redentores para com seu povo.
Nos capítulos 41 a 51 de Isaías, nós só vemos Deus falando em
libertação, redenção, salvação. Eles estão entre os textos mais lindos da
Escritura631.
Esta é uma atividade redentiva, e esta atividade de é vista claramente
quando Ele levantou Ciro para completar Sua tarefa de restaurar o povo que
estava no cativeiro632.
No cap. 45 Deus então mostra como Ele conduziu Ciro no cumprimento
dos Seus planos. Veja, passo a passo, a atividade de Deus através de um rei
ímpio, o rei da Pérsia. Ciro era um dualista, que cria num Deus do bem e
outro do mal. Mas Deus lhe mostra que só há um Deus e que este tem o
governo da história do mundo, e que faz todas as coisas que lhe apraz633.
Ciro recebe a ordem de Deus e o acompanhamento de Deus em todas as
suas atividades más para abater as nações e sua atividade boa de libertar o
povo de Israel. Ciro liberta o povo, constrói a cidade e faz o povo voltar para
a terra. Os propósitos redentivos de Deus são cumpridos através da
atividade de um homem ímpio que recebe toda a assistência divina para
realizar tudo o que quer.

B. O concursus de Deus e o mal.

O grande problema da Teologia Cristã, mesmo a reformada, tem sido


conciliar Deus e os atos maus dos homens. Aqui está o centro de muitas
divisões dentro do cristianismo. A grande maior dificuldade está no
entendimento dos termos: soberania, liberdade, livre agência, etc.
Entendidos estes termos, as coisas ficam um pouco mais fáceis.
Concursus de Deus nos atos 'maus' dos homens bons.

Para os nossos propósitos, consideramos homens bons aqueles que


estão debaixo de uma relação de pacto com Deus, aqueles que estão debaixo
da administração graciosa de Deus. Quando dizemos 'homens bons', não
estamos qualificando o todo de suas vidas, mas apenas vendo-os na relação
pactual com Deus.
a. Exemplo dos irmãos de José.

Estes eram filhos de Jacó, filhos que tiveram seus nomes dados às 12
tribos de Israel que vieram a existir subseqüentemente. Seus nomes são
citados freqüentemente na Escritura como nomes representativos de coisas
espiritualmente significativas. Nesse sentido, eles são aqui considerados
como 'bons', não que necessariamente suas vidas sejam moralmente boas.
Eles eram separados para Deus, 'santos', como a Escritura costuma

631 Veja Is 44.24-26.


632 Is 44.28.
633 Is 45.1-7.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 168

chamar-nos a todos os que estão, hoje, debaixo da administração do


evangelho da graça, membros, pelo menos, da Igreja visível.
Os irmãos de José ficaram extremamente enciumados de José por
causa das coisas que José fazia e era, e pelo amor que seu pai, Jacó, lhe
dedicava. Todos nós sabemos o que lhe aconteceu: seus irmãos o lançaram
numa cova, mataram um animal e sujaram de sangue a capa de José,
disseram ao pai que José havia morrido, estraçalhado por um animal, Jacó
chorou por muitos dias. Mas Rúbem, o irmão mais velho, sugeriu que eles
não deveriam matar José, mas vendê-lo aos mercadores para ser escravo no
Egito. O resto da história todos conhecemos634.
Logo depois de grande fome na terra, Jacó mandou seus filhos irem ao
Egito em busca de trigo. José, a essa altura era o segundo homem no Egito.
Depois de vários incidentes significativos registrados em Gênesis 635 , José
resolve dar-se a conhecer aos seus irmãos. Aqui o episódio é emocionante, e
o concursus é claramente reconhecido pelos circunstantes.
Os irmãos de José haviam feito tudo de mau contra José, de acordo
com os seus desejos, sem serem forçados por nada de fora. Fizeram
exatamente o que quiseram, de acordo com os seus corações. Mas José
reconheceu que, por detrás das ações más de seus irmãos, havia uma ação
cooperadora e controladora de Deus, guiando todos os atos para o
cumprimento de Seus propósitos. Aquilo que os irmãos de José fizeram de
mau, José atribuiu a uma obra superintendente de Deus636.
Veja a obra providencial de Deus e a cooperação das duas partes nos
atos maus dos homens. Deus decretou a fome na terra, usou os atos maus
dos homens, agiu misteriosamente para que quilo tudo acontecesse, mas os
próprios irmãos de José sentiram-se responsáveis e culpados pelos seus
atos. Isto fica provado diante do seu temor diante de José. Veja um pouco
mais do drama de consciência dos irmãos de José, por causa dos seus
pecados e, ao mesmo tempo, a magnanimidade do caráter perdoador daquele
que recebeu a ofensa637.
Perceba que José entendeu a participação de Deus nos atos deles, mas
de tal forma que eles se considerarem inteiramente responsáveis pela sua
própria atitude. Carson, contudo, adverte:
"José não diz que seus irmãos o venderam maldosamente para a escravidão, e
que Deus reverteu a situação, após o fato, fazendo com que a história tivesse um
final feliz. Como poderia este ter sido o caso, se o intento de Deus era produzir o
bem de salvar muitas vidas? José também não sugere que Deus havia planejado
trazê-lo para o Egito com um tratamento de primeira classe durante todo o
percurso, mas infelizmente os irmãos estragaram Seu plano de algum modo,
resultando num hiato pelo fato de José ter que passar uma década e meia como
escravo ou em prisão. Os irmãos tiveram certas iniciativas más, e não há
nenhuma menção dos arranjos da viagem de José"638.

634 Gn 37.1-36.
635 Gn 41.37-57 a 44.
636 Gn 45.5-8.
637 Gn 50.15-21.
638 Carson, p. 206.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 169

Deus estava agindo de uma maneira soberana, e José entendeu assim,


mas os irmãos foram considerados culpados pelos seus atos. Contudo, Deus
não pode ser reduzido a um personagem com um papel meramente
contingente. Ele não estava dependente dos irmãos para realizar os Seus
propósitos, mas é da vontade d'Ele usar as causas secundárias para que
seus propósitos cheguem a bom termo. O que podemos concluir deste
exemplo é que os homens agiram com intenções más contra José; Deus
tinha as boas intenções nos seus planos, e Ele se serviu dos atos cometidos
voluntariamente pelos homens, mas de tal modo que os atos deles se
encaixassem exatamente para o cumprimento do Seu plano maior.
Concursus de Deus nos atos maus dos homens maus.

Exemplo de Nabucodonosor.

Veja a ação de concursus de Deus nos atos maus do rei da Babilônia.


Ambas as ações, do homem e de Deus, são claríssimas.
Como um livre agente, Nabucodonosor resolveu invadir Judá. Nessa
invasão ele cometeu as maiores atrocidades que se pode ter notícia639. Nada
do que ele fez foi contra a sua vontade. Ao contrário, ele fez exatamente
como combinava com os desejos e os propósitos do seu coração.
Mas também somos informados pela Escritura que Deus é soberano,
inclusive na ação do rei da Babilônia. A Bíblia também nos diz que Deus
chamou Nabucodonosor de 'meu servo'640. Jeremias diz que Deus o haveria
de trazer contra a terra de Judá "para a destruir totalmente, para os colocar
como objeto de espanto e de assobio, e para colocá-los em ruínas
perpétuas... Toda esta terra virá a ser um deserto e um espanto; estas
nações servirão ao rei de Babilônia setenta anos"641.
O rei da Babilônia fez exatamente o que Deus havia planejado,
cumprindo em todas as minúcias a determinação divina, sem o saber.
Apenas fazia o que achava certo como monarca dos caldeus.
Este concursus de Deus naquela obra má pode acontecer por causa da
Sua onipotência, porque a Escritura diz que "o coração do rei está nas mãos
do Senhor; este, segundo o Seu querer, o inclina"642.
Mas o concursus de Deus não despoja o homem da responsabilidade de
seus atos maus. Veja o que Deus disse da atitude má de Nabucodonosor643.
Percebe-se claramente as duas verdades neste exemplo: a soberania
divina e os atos dos livres agentes que são considerados responsáveis diante
de Deus. No texto abaixo as duas verdades também aparecem juntas.

639 Jr 52.4-30 e leia todo o livro Lamentações de Jeremias, e observe as barbaridades cometidas contra
Judá.
640 Jr 25.9. Servo pode ser designativo de alguém que alegremente obedece uma ordem de Deus, e

também pode ser designativo daquele que é o instrumento da execução da vontade de Alguém maior.
Esse segundo caso é o de Nabucodonosor.
641 Jr 25.9-11.
642 Pv 21.1.
643 Jr 25.12-14.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 170

Primeiro, a soberania de Deus e, então, a ação má do rei e a conseqüente


punição644.
Mesmo estando por detrás dos atos maus dos homens, atos que são
feitos voluntariamente, Deus considera os homens culpados por seus erros,
pela simples razão dada pelo profeta Habacuque em seu livro645.
Nestes versos acima percebe-se claramente a maldade em forma de
matança, como expressão daquilo que os babilônios realmente desejaram,
mas Deus arroga-se como Co-autor daquela façanha. E, no entanto, porque
Deus não pode suportar o mal, ele considera culpados os seus praticantes.
Não é fácil juntar as coisas, mas é isto que a Escritura apresenta como
sendo um compatibilismo. E temos que aceitar do modo como a Escritura
apresente. Do contrário seremos achados lutando contra o próprio Deus.
Berkouwer diz: "A liderança de Deus atravessa os séculos, e em Sua
liderança a ação do homem é tomada como instrumento em Seu serviço. A
atividade do homem cai, como o menor dos dois círculos concêntricos,
completamente dentro do círculo maior dos propósitos de Deus"646.
Exemplo de Jeroboão.

Este exemplo está registrado em 1 Rs 14.1-14. Deus havia tirado o


reino da casa de Davi e dado a Jeroboão, como havia prometido, por causa
da iniquidade de Davi. E Jeroboão fez tudo o que era mau perante o Senhor.
Através do profeta Aías, Deus disse:
"Portanto, eis que trarei o mal sobre a casa de Jeroboão, e eliminarei de Jeroboão
todo e qualquer do sexo masculino, assim o escravo como o livre, e lançarei fora
os descendentes da casa de Jeroboão, como se lança fora o esterco, até que de
todo ela se acabe"647.
Agora mostra o propósito de Deus, a Sua determinação. No verso 14,
então, Deus estabeleceu quem haveria de cumprir a profecia: "O Senhor,
porém, suscitará para Si um rei sobre Israel, que eliminará, no seu dia, a
casa de Jeroboão..." No capítulo 15.28, o Senhor levanta Baasa, um homem
sem qualquer sangue real, para matar Nadabe, o filho de Jeroboão, para
tomar o reino, e reinou no trono que era de Jeroboão. Os versos 29-30
mostram a profecia sendo cumprida em detalhes.
Não é difícil perceber que os atos de Baasa foram extremamente
pecaminosos. A Escritura diz que Baasa era um homem ímpio e um
descrente. Em 1 Rs 15.34 é dito que 'Baasa fez o que é mau perante o
Senhor, e andou no caminho de Jeroboão e no seu pecado, o qual fizera
Israel cometer'. O verso 27 diz que Baasa conspirou contra o filho de
Jeroboão, expressando toda a sua malignidade. O concursus está
absolutamente claro nesta passagem. Há uma determinação divina e, ao
mesmo tempo, uma ação voluntária e responsável dos homens. Mas mesmo
havendo uma determinação divina, Deus considera o homem que matou a
descendência de Jeroboão culpado de seus pecados, porque seus atos foram
feitos voluntariamente, segundo as inclinações da sua natureza

644 Jr 51.20-24. Ver também Jr 51.25-64.


645 Hc 1.3-13.
646 Berkouwer, p. 102.
647 1 Rs 14.10.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 171

pecaminosa 648 . Deus decretou a morte de Jeroboão, por causa dos seus
pecados. Arranjou alguém para fazer isso, e o considerou responsável por
seus atos. Isso mostra que a preordenação divina, que Seus arranjos para
levar a cabo a Sua ordenação isentam o homem de responsabilidade. Uma
coisa não elimina a outra. Mas Deus sempre considera os homens
responsáveis pelos seus atos, mesmo que Ele participe, de alguma forma, em
ação providencial, naqueles atos para a consecução de Seus planos.
Na verdade não há duas forças ou dois poderes trabalhando
paralelamente, o poder de Deus e o poder dos homens, que agem
voluntariamente. Não. Deus exerce o Seu governo também através de causas
secundárias. "O governo de Deus é executado e manifestado através da
atividade humana" 649 , mas a atividade humana, que inclui a
responsabilidade dos agentes, é extremamente importante para a
consecução do plano maior de Deus.

648 veja 1 Rs 14.11.


649 Berkouwer, p. 100.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 172

Exemplo de Roboão.

Uma outra evidência de concursus aconteceu no tempo de Roboão, filho


de Salomão, no tempo da ruptura do reino por causa do pecado dos homens
e, ao mesmo tempo, como a manifestação da vontade e da atividade
reveladora de Deus. A divisão do reino veio por causa do pecado de Roboão
que, desprezando o conselho dos sábios do seu reino, deu ouvido aos jovens
que haviam crescido com ele, que mostraram toda a sua pecaminosidade650.
Todavia, toda a atividade maligna de Roboão, quando exerceu um jugo
extremamente pesado sobre o seu povo, é dita ser o cumprimento de um
designio de Deus651.
Pode-se perceber mui claramente o concursus de Deus na obra maligna
de Roboão. A atividade maligna de Roboão é dita ser uma atividade de Deus.
Roboão ficou somente com duas tribos, enquanto Jeroboão ficou com dez
tribos. Roboão, então, tentou uma investida contra as dez tribos, mas Deus
não permitiu652.
Estes versos devem ser contrastados com 1 Rs 11.29 quando o profeta
Aías se encontra com Jeroboão, pega a sua capa e a rasga em doze pedacos
e, então, ali o Senhor diz a Jeroboão: "Toma dez pedacos, porque assim diz o
Senhor Deus de Israel: Eis que rasgarei o reino da mão de Salomão, e a ti
darei dez tribos"653. Houve a ordenação divina da divisão das tribos, e os atos
maus de Roboão são considerados na Escritura como um ato de Deus. Aqui,
uma vez mais, a sabedoria de Deus triunfa sobre a tolice dos homens, e a
atividade de Deus não é contingente (dependente) da atividade do homem. Deus é
vencedor mesmo com o (a despeito do) pecado dos homens, e Sua vitória está na
realização dos seus planos.
Exemplo do rei da Assíria654.

Deus envia uma profecia contra o rei da Assíria. Assíria, nessa


passagem, é considerada 'o cetro da ira de Deus' (verso 5). O texto também
diz que a 'vara' que a Assíria está para usar contra Israel 'é o instrumento do
Meu furor' (verso 5). Deus ordena a Assíria a agir impiedosamente contra a
nação ímpia, que é Israel (verso 6). Deus ainda diz que a Assíria não sabe
que ela é instrumento de Deus. Ao contrario, ela pensa estar fazendo a sua
própria vontade, conquistando os reis como ela pensa que deve fazer (verso
7), confiando no poder dos seus próprios príncipes e nos seus deuses (versos
8-9).
Os assírios jactavam-se do que eram e do que possuíam, e zombavam
da fraqueza de Jerusalém655. Realmente eles eram uma nação poderosa o
bastante para derrotar Israel, mas o que eles não sabiam é que estavam
sendo instrumento do 'furor da ira de Deus, contra uma nação que havia se
tornado ímpia', que era Israel.

650 Ver 1 Rs 12.6-11.


651 1 Rs 12.13-15.
652 1 Rs 12.22-24.
653 1 Rs 11.31.
654 Is 10.5-13.
655 Is 10.10-11.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 173

Então os assírios invadiram Israel e fizeram tudo o que o Senhor havia


determinado (conforme a sua ordem no verso 6). Os soldados do rei da assira
fizeram tudo quanto quiseram, como se fossem os donos do mundo, dando
asas a sua imaginação e congratulando-se consigo mesmos. A obra de
maldade havia sido feita contra Israel, era mais uma obra maligna dos
homens.
Antes, porém, que toda a obra dos assírios fosse começada em
Jerusalém, Deus havia dito que aquela obra dos assírios era obra d'Ele
(verso 12a). Deus aceita a Sua parte de responsabilidade naquilo que
aconteceu a Jerusalém. Há muitos hoje que não crêem nesse concursus de
Deus nas obras más dos homens, mas Ele próprio assume a Sua atitude
providencial, para o cumprimento dos Seus próprios fins. Nessa tarefa, Ele
sempre se serve das causas secundárias e, assim, Ele mostra o Seu governo
no mundo.
Contudo, mesmo assumindo que a obra dos assírios era Sua obra, Ele
não hesita em punir os assírios por haverem feito o que fizeram e pelo modo
como o fizeram (versos 12-14).
Não há como escapar dessa terrível, mas majestosa verdade. Deus reina
e, como tal, impoe as Suas próprias regras. O que Ele não aceita é que os
homens sejam jactanciosos, tomando como suas as obras que são d'Ele. Por
essa razão Ele pune o rei da Assíria (verso 12) e os seus homens (versos
15-16).
Portanto, por tudo o que aconteceu, Deus considera a Assíria
responsável. "A razão pela qual Deus promulga um 'ai' sobre ela, não é
porque ela está castigando o povo do pacto de Deus, mas porque eles
passaram em sua própria arrogância que os que estavam fazendo o que
faziam por sua própria força"656, mesmo considerando que Ele próprio havia
ordenado a Assíria toda aquela obra de violência.
Carson pondera que além de toda dúvida que Isaías, ao menos, 'era
compatibilista'657. Em vários lugares do seu livro Isaías assumiu a idéia de
que seu Deus era governador do universo e todos os seres viventes eram
instrumentos da execução de Sua vontade. Sua vontade foi sempre feita, a
dos homens também, mas a destes está sempre condicionada à d'Aquele.
Exemplo de Absalão.

Está registrado em 2 Sm 16.20-22. Após meditar no conselho de Aitofel,


ele praticou tão hedionda ação. Deve ser observado que ele queria o poder
que o reino lhe traria, e que para isso ele teria que ter o respaldo e o apoio do
povo. O povo andava insatisfeito com Davi e, para ganhar a opinião pública,
especialmente dos descontentes do reino, Absalão aceitou o conselho ímpio
de Aitofel. Seu ato foi de tal abominação que ele o praticou ao ar livre. Teve
relações sexuais públicas, para que todo o povo pudesse ver, que é dito ser,
no verso 23, uma 'resposta de Deus a uma consulta'.
Fazendo o que fez, Absalão fez tudo conforme as suas próprias
disposições, segundo o gosto do seu coração, voluntariamente, sem ser
coagido por ninguém. Ele fez toda a sua vontade, expressando sua maldade.

656 Carson, p. 208.


657 Carson, p. 208.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 174

Apenas tomou conselho com os seus conselheiros, e mostrou seu coração


maligno para com seu pai. Seguindo o conselho errado de Aitofel, Absalão
recebeu a paga por tal atitude. Ele foi considerado culpado porque o Senhor
disse em 17.14, pois o mal sobreveio sobre ele.
Se tivéssemos apenas essa informação de 2 Sm 16.20-22 sobre a ação
má de Absalão, não seria difícil de entendê-la, pois tantos homens tem
cometido, na história do mundo, os mesmos pecados de fazer conspiração
contra seus próprios parentes para obterem o poder. Mas a Bíblia mostra
outras informações reveladoras sobre este ato de Absalão. Veja o que diz 2
Sm 12.11-12 após o pecado de Davi contra Bethseba, por boca do profeta
Natã.
Absalão fez exatamente o que queria, pecando voluntariamente contra
seu pai. Tanto Absalão quanto Aitofel cometeram seus atos maus e foram
considerados responsáveis por eles, a despeito da ordenação divina e de Sua
concorrência.
A atividade de Deus é revelada, não como um deus ex machina, mas na
ação de Aitofel e de Absalão. O plano maligno de Aitofel e a realização dele
por Absalão é o produto de uma ação divina sobre eles, mas de tal modo que
a responsabilidade dos atos maus é sempre daqueles que os fizeram de
acordo com suas vis paixões. Isto é concursus.

Conclusão.

Este assunto é fortemente combatido pelos arminianos que não aceitam


a concorrência divina nos atos dos homens, porque eles crêem que os atos
deles são absolutamente livres, sem serem forçados de fora (com o que
concordamos) ou de dentro. Quanto a esta última alternativa, é
absolutamente impossível concordar. O homem nunca foi e nunca será
moralmente neutro. Ele sempre será condicionado a fazer qualquer coisa de
acordo com a sua própria natureza. O homem não mais tem o livre arbítrio,
como Adão teve. Portanto, ele sempre agirá levado por sua condição interior.
Sempre haverá o concursus de Deus nos atos bons e maus dos homens,
mesmo embora não possamos entender em plenitude como isso se efetua,
especialmente no que diz respeito aos atos maus dos homens, se
consideramos a natureza santa de Deus. Mas a própria Escritura não faz
segredo daquilo que Deus faz. Ela não explica as razões de Deus, mas afirma
categoricamente a cooperação de Deus nos atos dos homens, fator
preponderante que explica o Seu governo na história do mundo. Do
contrário, como controlaria Ele o mundo?
Deus sempre age providencialmente, embora nem sempre possamos
entender a plenamente ação da Primeira Causa sobre as causas
secundárias. Esta é uma atividade misteriosa d'Ele, e Ele não nos tem
contado o segredo de Sua ação, que nem sempre é crida pelos homens, mas
que inegavelmente é afirmada nas Escrituras.
Na verdade, temos que reconhecer que não temos as respostas finais
neste assunto. Não existe uma explicação plenamente satisfatória para o
problema. Portanto, o problema da relação entre Deus e o pecado de suas
criaturas racionais continua sendo um grande mistério para os homens.
Teontologia, II, Rev. Heber Carlos de Campos. 175

Deus não poderia governar se não fosse Deus. E não há Deus sem
onipotência. Este atributo lhe dá as condições para executar tudo aquilo que
planejou.

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