RELIGIÕES
Introdução
Desde o século XVI, quando o Brasil recebeu a maior migração forçada da
história, a partir da qual pessoas africanas escravizadas foram traficadas
pelos brancos europeus, os encontros e desencontros das religiosidades
europeia e africana foram marcados pela resistência dos africanos à cris-
tandade que se propunha absoluta. Nesse processo, símbolos religiosos
cristãos foram incorporados à cosmologia das religiões africanas, e os
escravos, estrategicamente, para preservar suas tradições religiosas, produ-
ziram uma ruptura, fazendo emergir uma dicotomia na sua religiosidade.
Nessa dicotomia, celebravam, na dimensão pública, os santos católicos
cristãos, ressignificando-os; e, na dimensão privada, preservavam suas
tradições religiosas. Porém, sofreram estigmatização e criminalização
em territórios brasileiros.
Neste capítulo, você vai conhecer os principais grupos religiosos de
matriz africana, vendo como se deu a formação das religiões africanas
no Brasil e a importância do reconhecimento dessas religiões para a
superação do preconceito e da criminalização que elas sofrem até hoje.
2 Religiões africanas no Brasil
O termo sudanês não deve ser confundido com a etnia; no Sudão, há inúmeras etnias
e sociedades que correspondem geograficamente à África Ocidental.
Segundo Daibert (2015), os povos que viviam na África Central, local que
hoje abrange Angola, Congo, Gabão e Cabinda, são denominados bantos.
Apesar da diversidade cultural, havia, entre eles, compartilhamento de traços
culturais possibilitado pelo mesmo tronco linguístico, que se desdobrou na
formação de uma religiosidade marcada pela mesma cosmologia centro-
-africana, denominada complexo de ventura-desventura. O estado natural era
a ventura — saúde, fecundidade, segurança física, harmonia, poder, status e
riqueza —, que poderia ser violentamente contraposto pelo estado de desven-
tura — forças malévolas que investiam contra os indivíduos e as comunidades,
causando-lhes mal.
Segundo Nascimento (2017), essa religiosidade era interligada em uma
pirâmide vital pautada em um grande processo de interações entre os mundos
visível e invisível, que, por sua vez, instituía o caráter comunitário à comu-
nidade, dando-lhes o único sentido de vida possível, a vida em coletividade,
com gradações distintas de forças que dependiam da proximidade com o
antepassado e da hierarquia na pirâmide vital.
Daibert (2015) afirma que, na pirâmide vital, encontram-se o deus supremo,
arquipatriarcas, os espíritos da natureza, os ancestrais e antepassados, mundo
invisível, tido como superior. No mundo inferior, visível, encontram-se os seres
humanos, suas diversas coletividades (reinos, clãs, famílias, comunidades) e
diversas lideranças (reis, chefes de tribos e clã), bem como animais, vegetais,
minerais, fenômenos naturais e astros.
Para Daibert (2015), na crença banto, o ser supremo, benigno, criador,
sustentador da vida, transferiu a administração do mundo, após sua cria-
ção, para os ancestrais fundadores das linhagens banto (arquipatriarcas),
afastando-se da sua criação, e, mesmo à distância, mantém o mundo unido.
Os espíritos da natureza estão abaixo dos arquipatriarcas, controlando as
forças da natureza, e são vistos como intermediários entre os homens e a
divindade — inclusive sendo invocados — e objeto de oferendas e sacri-
fícios, confundindo-se com os próprios ancestrais, que, por sua vez, eram
responsáveis pela unidade solidária na comunidade entre os humanos. Os
antepassados estavam abaixo hierarquicamente dos ancestrais e mais próxi-
mos dos vivos, eram reverenciados e incorporavam nos seres humanos. Além
disso, eram considerados membros da família, mesmo mortos, e recebiam
alimentos e cultos como compensação pela guarda e pela proteção dos
parentes vivos. Alguns ancestrais chegavam a ser considerados divindades
secundárias devido a seu alto grau de sacralidade, enquanto outros podiam
cair no esquecimento.
4 Religiões africanas no Brasil
futuras, esqueçam-se de suas origens. Isso foi feito por meio da penetração
que tiveram no Brasil com seu trabalho nas ruas, nas casas e nas senzalas, por
meio de resistências, utilizando a oralidade, a manutenção das celebrações e
a guarida para os escravos homens.
Para Evaristo (2012), tratadas como objetos, as pessoas africanas escravi-
zadas foram desumanizadas, arroladas como produtos, e seus corpos foram
mercantilizados no mercado do regime escravocrata vigente no país colonial.
Subjugados a jornadas extensivas, exaustos, amontoavam-se na insalubridade
das senzalas, controlados pelos senhores da casa grande, que mantinha distan-
ciamento dos negros de suas vidas sociais em um processo de apartheid que
era suplantado quando seus serviços eram requisitados em funções específicas,
como ama-de-leite, pajem das crianças ou como escravos para serviçais no
interior da casa grande.
Mesmo diante das precariedades e em condições de vulnerabilidade social
extrema, havia o esforço para que não perdessem suas identidades e, com
esforço e estratégias, lutaram para manter suas tradições trazidas da África.
A resistência também era visível entre os negros alforriados, cujas condições
lhes permitiam outras ocupações e o andar livre nas cidades, com batuques,
danças e rodas de capoeira (EVARISTO, 2012).
Na interação com a cultura europeia dominante, a assimilação dos grupos
africanos foi inevitável, e o processo de assimilação sincrética com a religiosidade
dominante — o cristianismo — se deu de forma a proteger suas identidades
culturais. Envolvendo aspectos intelectuais e emocionais, o sincretismo cria
vínculos culturais em sua interação e em seu sentido. Esses vínculos foram
ressignificados no século XVII, passando de uma postura inicial de aproximação
de valores legítimos — porém, diferentes entre si — para ilegítimas aproximações
reconciliatórias de diferenças teológicas que são opostas. Dessa forma, a heresia
inicial transmutou-se para aspectos aceitos na religião oficial.
Essa visão negativa e preconceituosa é hipócrita, uma vez que todas as
religiões passam por processos de sincretização; no entanto, carregadas de
estigmatização, as religiões de matriz religiosa africana, consideradas sin-
créticas, deveriam ser rechaçadas. Além disso, com a prática de opressão e
imposição da religiosidade dominante, torna-se aceitável a ideia de que não
deve haver resistência por parte da religião minoritária e que sua consequente
aceitação pacífica deveria ser imposta como verdade incondicional na trama
das relações interacionais entre as culturas.
Assim, ao se tornar a religião das cidades, o catolicismo, segundo Evaristo
(2012), passou a exercer um controle social nas suas igrejas que atraia o clero, a
aristocracia e os escravos. No topo da hierarquia social, as famílias abastadas,
Religiões africanas no Brasil 9
não por adesão, da sua religiosidade. Esse processo foi marcado, também,
pela marginalização das expressões religiosas que aqui existiam, bem como
das religiosidades africanas trazidas pelos escravos africanos. Os documentos
históricos permitem constatar a força do catolicismo imperial e colonizador.
Assim, esse passado histórico de imposição possibilita compreender a com-
posição da matriz religiosa brasileira. Nesse sentido, destacam-se três matrizes
religiosas que contribuíram para a formação do povo brasileiro: o explorador
europeu, o nativo indígena e o expatriado africano. Para Dimenstein, Rodrigues e
Giansanti (2012), a colonização foi desumanizadora e coisificadora, um processo
de exclusão social e étnica atravessado por resistências que, condenadas pela
religiosidade europeia dominante, fez emergir cultos clandestinos que reorienta-
ram suas expressões para o sincretismo como forma de sobrevivência religiosa.
Como aconteceu com os indígenas, os africanos não tiveram sua cultura reco-
nhecida e nem legitimada, mas propositalmente estigmatizada, o que dificultava
o exercício de sua religiosidade. O destroçamento dos índios e de suas culturas
expôs a intolerância religiosa europeia que aqui se estabeleceu, destruindo a
cultura e, por conseguinte, a religiosidade nativa. As tentativas de resistência
nativa diante da ofensiva europeia foram insuficientes devido a sua inferioridade
bélica — embora fossem numerosos —, e o doloroso processo de integração
indígena na formação da população brasileira foi marcado pela exploração e
pela opressão, desdobrado em genocídio e etnocídio de sua gente e cultura.
Esse processo foi tardiamente interrompido por conta da imigração forçada de
pessoas africanas escravizadas para o Brasil, na segunda metade do século XVI,
que interrompeu parcialmente a escravidão dos ameríndios. Com a autorização
do governo português, em 1559, da vinda de pessoas escravizadas para o Brasil,
o tráfico de pessoas negras proporcionou lucratividade para o governo, para
traficantes e fazendeiros. Segundo Dimenstein, Rodrigues e Giansanti (2012),
aproximadamente 4,5 milhões de pessoas foram traficadas até o ano de 1850.
As pessoas negras escravizadas e trazidas ao Brasil em navios negreiros tinham
diversas etnias, países, religiões e estruturas sociais distintas, o que dificultava a sua
comunicação e consequente cooperação, inviabilizando a luta por sua liberdade,
mas não a impossibilitando. Assim, essas lutas de resistência se manifestaram de
várias formas: suicídios, sabotagem da produção, quebra de ferramentas e equipa-
mentos, práticas de aborto e outras ações que, inclusive, formaram os quilombos.
No processo de resistência, apesar da tentativa de encobrimento dessas
religiões pela religiosidade etnocêntrica europeia, foram preservados traços
religiosos das etnias que para cá foram trazidas e que, somadas com elementos
indígenas e europeus, deram origem à religiosidade popular brasileira que
desafiava a Igreja Católica e seu processo colonizador.
Religiões africanas no Brasil 11
Em nota assinada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares
Alves, e pelo secretário nacional de Proteção Global, Sérgio Queiroz, o ministério ressalta
a finalidade de fortalecer e dar visibilidade às mais diversas crenças e convicções.
No dia 21 de Janeiro, o Brasil celebra o Dia Nacional de Combate à Intolerância
Religiosa, que foi instituído pela Lei nº 11.635, de 2007 (BRASIL, 2019).
Religiões africanas no Brasil 17
ATO público no Rio de Janeiro marca o dia nacional de combate à intolerância re-
ligiosa. G1, jan. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/videos/t/
todos-os-videos/v/ato-publico-no-rio-de-janeiro-marca-o-dia-nacional-de-combate-
-a-intolerancia-religiosa/4754127/. Acesso em: 16 ago. 2020.
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Nota em celebração
ao dia nacional de combate à intolerância religiosa. Brasília, 2019. Disponível em: https://
www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/janeiro/nota-em-celebracao-ao-dia-
-nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa. Acesso em: 16 ago. 2020.
CARMO, J. O que é Candomblé. São Paulo: Brasiliense, 2017.
CONTINENTE africano. In: SAMBAJAMBO. [S. l.: s. n.], 2013. Disponível em: https://sam-
bajambo.files.wordpress.com/2013/05/mapa-c3a1frica-reinos-cidades-e-grupos-c3a-
9tnicos-prc3a9-coloniais.png. Acesso em: 16 ago. 2020.
COSTA NETO, A. G. Ensino religioso e as religiões matrizes africanas no Distrito Federal. 2010.
199 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília,
2010. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7083/1/2010_Anto-
nioGomesdaCostaNeto.pdf. Acesso em: 16 ago. 2020.
DAIBERT, R. A religião dos bantos: novas leituras sobre o calundu no Brasil colonial. Es-
tudos Históricos, v. 28, n. 55, jan./jun. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0103-21862015000100007&lng=en&nrm=iso. Acesso
em: 16 ago. 2020.
DIMENSTEIN, G.; RODRIGUES, M. M. A.; GIANSANTI, A. C. Dez lições de sociologia para
um Brasil cidadão. 2. ed. São Paulo: FTD, 2012.
EVARISTO, M. L. I. O útero pulsante no candomblé: a construção da “afroreligiosidade”
brasileira. Sacrilegens, v. 9, n. 1, 2012. Disponível em: https://www.ufjf.br/sacrilegens/
files/2012/04/9-1-4.pdf. Acesso em: 16 ago. 2020.
FREIRE, G. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XX. São Paulo: Nacional,
1979.
IBGE. Censo 2010. Brasília: IBGE, 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
Acesso em: 16 ago. 2020.
LIMA, C. M. A. R. Heranças muçulmanas no Nagô de Pernambuco: construindo mitos
fundadores da religião de matriz africana no Brasil. Revista Brasileira de História das Re-
ligiões, v. 1, n. 3, jan. 2009. Disponível em: http://ojs.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/
article/view/26684. Acesso em: 16 ago. 2020.
MARIOSA, G. S.; MAYORGA, C. Negras memórias: tradição religiosa de matriz africana
no Brasil. Sacrilegens, v. 16, n. 1, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.
php/sacrilegens/article/view/28843. Acesso em: 16 ago. 2020.
18 Religiões africanas no Brasil
Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun-
cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a
rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de
local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade
sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links.