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HISTÓRIA DAS

RELIGIÕES

Valter Borges dos Santos


Religiões africanas no Brasil
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar os principais grupos religiosos de matriz africana no Brasil.


 Relacionar o sincretismo cultural com a formação das religiões de
matriz africana no Brasil.
 Reconhecer a presença das religiões de matriz africana no Brasil
contemporâneo.

Introdução
Desde o século XVI, quando o Brasil recebeu a maior migração forçada da
história, a partir da qual pessoas africanas escravizadas foram traficadas
pelos brancos europeus, os encontros e desencontros das religiosidades
europeia e africana foram marcados pela resistência dos africanos à cris-
tandade que se propunha absoluta. Nesse processo, símbolos religiosos
cristãos foram incorporados à cosmologia das religiões africanas, e os
escravos, estrategicamente, para preservar suas tradições religiosas, produ-
ziram uma ruptura, fazendo emergir uma dicotomia na sua religiosidade.
Nessa dicotomia, celebravam, na dimensão pública, os santos católicos
cristãos, ressignificando-os; e, na dimensão privada, preservavam suas
tradições religiosas. Porém, sofreram estigmatização e criminalização
em territórios brasileiros.
Neste capítulo, você vai conhecer os principais grupos religiosos de
matriz africana, vendo como se deu a formação das religiões africanas
no Brasil e a importância do reconhecimento dessas religiões para a
superação do preconceito e da criminalização que elas sofrem até hoje.
2 Religiões africanas no Brasil

1 Os principais grupos religiosos de matriz


africana
A memória é elemento importante nas religiões de matriz africana, na quais
rememorar a ancestralidade se manifesta nas práticas e nos rituais de seus
cultos e celebrações (MARIOSA e MAYORGA, 2019). O caráter plural da
religiosidade africana, embora originário de diversos países, possui traços
culturais de dois grandes troncos: bantos e sudaneses (COSTA NETO, 2010).
Oriundos de vários países da África, tais como Angola, Moçambique, Congo,
Nigéria, Beini e Togo, eles são de etnias que ultrapassam essas fronteiras nacionais:
bantos, iorubás e nagôs. Especificamente, os bantos vieram de Angola, Moçambi-
que e do Congo, enquanto os iorubás e nagôs são da Nigéria, de Beini e do Togo.
Na história da África, as possibilidades de transformações advindas das
invasões territoriais, que eram recorrentes, tiveram na religião tradicional —
vinculadas à terra e aos seus ancestrais — a base para a resistência e para a
manutenção de suas organizações sociais, políticas e econômicas. Por meio
da religião, ancorada em mitos ancestrais, as normas sociais dão coesão e
valores aos membros das sociedades africanas, o que influencia todas as
suas instituições.

O termo sudanês não deve ser confundido com a etnia; no Sudão, há inúmeras etnias
e sociedades que correspondem geograficamente à África Ocidental.

Em termos gerais, os grupos étnicos traficados para o Brasil demarcaram as


fronteiras religiosas do que é conhecido como religiões de matriz africana. Com
variadas particularidades, em termos gerais, são religiões animistas e dedicadas ao
culto dos ancestrais, em um sistema que se caracterizava por por dois mundos: o dos
vivos e o dos mortos. Entretanto, por conta das sucessivas invasões muçulmanas e
cristãs, aspectos religiosos dessas culturas se somaram à religiosidade tradicional
africana, reconfigurando suas concepções. A religiosidade sudanesa é caracterizada
pelo “islamismo negro”, e a dos bantos, por aspectos do cristianismo. A sua presença
no Brasil influenciou a formação das religiões de matriz africana no país, como
aponta Lima (2009). Os grupos religiosos formados a partir da matriz religiosa dos
bantos tiveram presença, principalmente na Bahia, e os sudaneses, em Pernambuco.
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Segundo Daibert (2015), os povos que viviam na África Central, local que
hoje abrange Angola, Congo, Gabão e Cabinda, são denominados bantos.
Apesar da diversidade cultural, havia, entre eles, compartilhamento de traços
culturais possibilitado pelo mesmo tronco linguístico, que se desdobrou na
formação de uma religiosidade marcada pela mesma cosmologia centro-
-africana, denominada complexo de ventura-desventura. O estado natural era
a ventura — saúde, fecundidade, segurança física, harmonia, poder, status e
riqueza —, que poderia ser violentamente contraposto pelo estado de desven-
tura — forças malévolas que investiam contra os indivíduos e as comunidades,
causando-lhes mal.
Segundo Nascimento (2017), essa religiosidade era interligada em uma
pirâmide vital pautada em um grande processo de interações entre os mundos
visível e invisível, que, por sua vez, instituía o caráter comunitário à comu-
nidade, dando-lhes o único sentido de vida possível, a vida em coletividade,
com gradações distintas de forças que dependiam da proximidade com o
antepassado e da hierarquia na pirâmide vital.
Daibert (2015) afirma que, na pirâmide vital, encontram-se o deus supremo,
arquipatriarcas, os espíritos da natureza, os ancestrais e antepassados, mundo
invisível, tido como superior. No mundo inferior, visível, encontram-se os seres
humanos, suas diversas coletividades (reinos, clãs, famílias, comunidades) e
diversas lideranças (reis, chefes de tribos e clã), bem como animais, vegetais,
minerais, fenômenos naturais e astros.
Para Daibert (2015), na crença banto, o ser supremo, benigno, criador,
sustentador da vida, transferiu a administração do mundo, após sua cria-
ção, para os ancestrais fundadores das linhagens banto (arquipatriarcas),
afastando-se da sua criação, e, mesmo à distância, mantém o mundo unido.
Os espíritos da natureza estão abaixo dos arquipatriarcas, controlando as
forças da natureza, e são vistos como intermediários entre os homens e a
divindade — inclusive sendo invocados — e objeto de oferendas e sacri-
fícios, confundindo-se com os próprios ancestrais, que, por sua vez, eram
responsáveis pela unidade solidária na comunidade entre os humanos. Os
antepassados estavam abaixo hierarquicamente dos ancestrais e mais próxi-
mos dos vivos, eram reverenciados e incorporavam nos seres humanos. Além
disso, eram considerados membros da família, mesmo mortos, e recebiam
alimentos e cultos como compensação pela guarda e pela proteção dos
parentes vivos. Alguns ancestrais chegavam a ser considerados divindades
secundárias devido a seu alto grau de sacralidade, enquanto outros podiam
cair no esquecimento.
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Na segunda parte da pirâmide, inferior, o mundo visível, os homens tinham


maior poder e, inclusive, significados sagrados, conforme suas funções: reis,
chefes, especialistas religiosos e anciãos — esses últimos eram vistos como
baluartes da sabedoria e da tradição (DAIBERT, 2015).
A relação existente entre esses dois mundos (visível e invisível) era de
dominação invisível/visível e de interação ritualística visível/invisível — daí
a importância dos especialistas da magia, que, de forma harmoniosa, exerciam
suas práticas religiosas, dando equilíbrio e afastando o mal.
Dessa forma, a chave de compreensão dos fundamentos da concepção de
mundo é a força vital que promove vibrações nos mundos de modo simultâneo,
em que nenhuma delas fica intocável quando são estremecidas na quebra do
equilíbrio. Assim, na interação, um ser pode fortalecer ou enfraquecer o outro,
e as forças impessoais (animais, plantas e minerais) proporcionavam energia aos
seres humanos: os animais emprestavam suas características, e os vegetais e
minerais, suas propriedades ocultas que serviam aos rituais (DAIBERT, 2015).
Os homens e suas comunidades se interconectavam com os seres espirituais
por meio de manifestações cúlticas, que, na religião banto, eram expressas
em formas de palmas, cânticos, tambores e danças. As palavras tidas como
sagradas e sacralizadoras eram, nesses rituais, pronunciadas por prudência,
dominados pelos especialistas da magia. As oferendas (vegetais, fumo, bebi-
das alcoólicas e, em alguns casos, sacrifícios de animais) eram dirigidas aos
antepassados em busca de soluções e favores, e a morte era entendida como
redução da sua de energia vital, e não como fim da existência. Dessa forma,
os vivos, em troca de força vital, prestavam oferendas em suas sepulturas,
garantindo a preservação e o aumento de suas forças vitais. Os antepassados,
vinculados pela força vital à comunidade, garantiam o cumprimento de regras
e padrões morais. Assim, não se entendia a religião dos bantos no dualismo
bem/mal, pois o mal era entendido como relativo e circunstancial, longe do
status absoluto e sobrenatural do conceito cristão.
Os bantos, por meio dos iorubás, que iniciaram na Bahia, tornaram-se a
matriz africana mais difundida no Brasil, com expressões religiosas variadas
que se desdobraram em umbanda e quimbanda.
Os sudaneses, a partir dos nagôs, foram os protagonistas da influência
muçulmana nas religiões de matrizes africanas, primeiro no território africano
e, depois, em terras brasileiras, principalmente no candomblé pernambucano
(LIMA, 2009).
Vitimados pela extensa expansão com o Islã, a relação entre árabes e africanos
demarcou a sociabilidade africana, de forma que se constituiu como sincrético
o islamismo negro. Os reis dos reinos de Borno e Haussá, no norte da Nigéria,
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foram fervorosos seguidores do islamismo. Os países da África Negra que têm


nos encontros do islamismo com a religião tradicional africana sua religiosidade
incluem Sudão, Nigéria, Mali, Níger, Senegal, Gambia, Guiné e Serra Leoa.
Os negros sudaneses, vindos do Níger, foram arrastados para o Brasil e chegaram
à Bahia, onde foram alocados em trabalhos escravos nas lavouras do Recôncavo.
Os sudaneses eram os nagôs (iorubás), jejes (ewes), os minas (tshia e gas), os
haussás, os galinha (gruncus), os tapas, os bornus e, carregados de forte influência
islâmica, também chegaram os negros fulas e os negros mandes (mandingas).
Veja, na Figura 1, um mapa do continente africano pré-colônia.

Figura 1. Mapa da África pré-colonial com reinos, cidades e grupos étnicos.


Fonte: Continente... (2013, documento on-line).
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Evidenciadas pelo islamismo foram as insurreições no Brasil promovi-


das pelos guerreiros haussás. Intolerados no Brasil colonial, os praticantes
do islamismo africano se escondiam por detrás da cultura cristã, inclusive,
batizando-se com nomes cristãos, mas seguiam suas tradições e estudavam
o árabe para compreender o Alcorão.
Segundo Lima (2009), a presença dos negros haussás em Pernambuco
teve grande influência islâmica nos xangôs desse estado, representados pelos
nagôs da Nigéria. Os amuletos mágico-fetichistas foram uma das marcas mais
comuns da presença do islamismo negro no Brasil. Neles, eram escritos versos
do Alcorão em pedaços de papel que se penduravam ao pescoço. Alá, o deus
muçulmano, é confundido com divindades africanas, além de ser um termo
para usado para definir o pano branco estendido no meio do salão, em certos
xangôs, onde se ajoelham os iniciados — o que remonta aos tapetes que os
árabes usam no chão das mesquitas para suas orações.
Para Lima (2009), o termo “baiana”, além de nomear a mulher vinda
da Bahia, era usado para designar a mulher que vestia roupas litúrgicas no
candomblé pernambucano. Essas roupas litúrgicas, brancas e com turbante,
são elementos do islamismo, e seu símbolo remete ao status de seu usuário.
Evidenciado em práticas hierárquicas, em muitos xangôs pernambucanos,
observam-se práticas como evitar bebidas alcoólicas em respeito aos preceitos
islâmicos. O traje litúrgico do “Senhor da roupa branca” (Oxalá ou Orixalá)
é de origem islâmica e se caracteriza pelo uso do abadá e do gorro branco,
típicos do Sudão muçulmano.
A herança muçulmana, conforme Lima (2009), é verificada na associação
de Alá com Olorum, divindade iorubá. Além disso, o sacrifício de animais a
Alá traz similaridade com as práticas na África negra, direcionadas às suas
próprias divindades. A “pedra negra” da Caaba deu fundamento aos objetos
do fetiche dos negros africanos, tendo nas pedras a interação entre os seres
humanos e os seres divinos. Outra alusão aos princípios muçulmanos são os
banhos de ervas, relacionados à ablução (purificação com água) e usados para
a limpeza espiritual que antecede os rituais.
Segundo Lima (2009), no culto nagô de Pernambuco, o mês de outubro e
dedicado a Oxalá, que lembra o Ramadã, dedicado a Alá. Outra evidencia se
dá na arquitetura dos terreiros, que têm ligação com a disposição interna das
mesquitas muçulmanas, onde os locais de homens e mulheres são separados
e suas práticas litúrgicas se dão com os pés descalços e em tapetes.
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O pesquisador que mais trabalhou a temática do negro muçulmano em Pernambuco


foi Waldemar Valente — em Islamismo em Pernambuco: aspectos da etnografia religiosa
afro-brasileira do Nordeste (1957), estabeleceu as reminiscências da cultura negra islâ-
mica na religiosidade afro-pernambucana. Outros estudos efetivos são também, por
exemplo, a pesquisa “O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XX”, de
Gilberto Freire (1979) e O Diário de Pernambuco: população negra e cultos africanos, de J. A.
Gonsalves de Mello Neto (1992), que identificam, na população negra de Pernambuco,
povos de outras procedências, além dos bantos. Assim, descobrem, afora alguns que
não puderam classificar, angoleses, congoleses, povos de Moçambique e, ainda, povos
do Senegal, da Costa da Guiné ou da Mina.

2 A formação das religiões de matriz africana


no Brasil
Entender a religiosidade de matriz africana é compreender as comunidades
tradicionais africanas transplantadas no Brasil desde o início da colonização.
É a partir dela que podemos entender a luta de resistências representadas na
formação de sua religiosidade em confronto permanente com a opressão europeia
praticada em território africano e ampliada massivamente em terras brasileiras.
Os praticantes dos grupos de matriz religiosa africana encontram, nos seus
rituais, sentido e identificação com suas origens. Assim, o caráter afetivo ligado
às suas tradições religiosas remonta também aos valores históricos, sociais e
culturais de suas terras de origem. Os primeiros africanos tinham na sua relação
com o sagrado seu maior legado e referência memorial (EVARISTO, 2012),
mas esse legado precisava ser preservado frente à imposição etnocêntrica da
religiosidade europeia, que se manifestava na violação da religiosidade não
só dos indígenas, mas também dos africanos desde que foram transplantados
no Brasil, no século XVI, informa Evaristo (2012).
Segundo Martini (2017), os primeiros estudiosos das religiões de matriz
africana foram criticados por desprezarem valores identitários iorubá (pen-
sadores estrangeiros clássicos) e impor padrões europeizantes na tentativa de
ressignificar as tradições africanas (acadêmicos brasileiros). Na preservação
da religiosidade ligada à ancestralidade e à identidade dos africanos, as mu-
lheres foram protagonistas, não deixando que suas gerações, bem como as
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futuras, esqueçam-se de suas origens. Isso foi feito por meio da penetração
que tiveram no Brasil com seu trabalho nas ruas, nas casas e nas senzalas, por
meio de resistências, utilizando a oralidade, a manutenção das celebrações e
a guarida para os escravos homens.
Para Evaristo (2012), tratadas como objetos, as pessoas africanas escravi-
zadas foram desumanizadas, arroladas como produtos, e seus corpos foram
mercantilizados no mercado do regime escravocrata vigente no país colonial.
Subjugados a jornadas extensivas, exaustos, amontoavam-se na insalubridade
das senzalas, controlados pelos senhores da casa grande, que mantinha distan-
ciamento dos negros de suas vidas sociais em um processo de apartheid que
era suplantado quando seus serviços eram requisitados em funções específicas,
como ama-de-leite, pajem das crianças ou como escravos para serviçais no
interior da casa grande.
Mesmo diante das precariedades e em condições de vulnerabilidade social
extrema, havia o esforço para que não perdessem suas identidades e, com
esforço e estratégias, lutaram para manter suas tradições trazidas da África.
A resistência também era visível entre os negros alforriados, cujas condições
lhes permitiam outras ocupações e o andar livre nas cidades, com batuques,
danças e rodas de capoeira (EVARISTO, 2012).
Na interação com a cultura europeia dominante, a assimilação dos grupos
africanos foi inevitável, e o processo de assimilação sincrética com a religiosidade
dominante — o cristianismo — se deu de forma a proteger suas identidades
culturais. Envolvendo aspectos intelectuais e emocionais, o sincretismo cria
vínculos culturais em sua interação e em seu sentido. Esses vínculos foram
ressignificados no século XVII, passando de uma postura inicial de aproximação
de valores legítimos — porém, diferentes entre si — para ilegítimas aproximações
reconciliatórias de diferenças teológicas que são opostas. Dessa forma, a heresia
inicial transmutou-se para aspectos aceitos na religião oficial.
Essa visão negativa e preconceituosa é hipócrita, uma vez que todas as
religiões passam por processos de sincretização; no entanto, carregadas de
estigmatização, as religiões de matriz religiosa africana, consideradas sin-
créticas, deveriam ser rechaçadas. Além disso, com a prática de opressão e
imposição da religiosidade dominante, torna-se aceitável a ideia de que não
deve haver resistência por parte da religião minoritária e que sua consequente
aceitação pacífica deveria ser imposta como verdade incondicional na trama
das relações interacionais entre as culturas.
Assim, ao se tornar a religião das cidades, o catolicismo, segundo Evaristo
(2012), passou a exercer um controle social nas suas igrejas que atraia o clero, a
aristocracia e os escravos. No topo da hierarquia social, as famílias abastadas,
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em associação com o clero, davam manutenção à sua dominação no zelo da


moral católica e a alianças políticas conforme os interesses institucionais. Com
essa aproximação dada pela religião institucionalizada no Brasil, as classes
sociais se aproximaram e os negros adentraram espaços majoritariamente
brancos. Contudo, os sofisticados controles dessa aproximação eram realizados
pela Igreja, de forma que subjugassem esses grupos, produzindo espaços de
exceção nos templos ao relegar aos brancos lugares ilustres na sua geografia
espacial, o que se expandia para a sociedade, e lhes conferia privilégios.
Dessa forma, segundo Evaristo (2012), os africanos, como um pêndulo,
circulavam entre a religiosidade cristã e africana, não renunciando a sua
cultura, com perspicaz estratégia, mas incorporando com sabedoria aspectos
de cada religiosidade, fazendo-se aceitável em uma sociedade estrangeira,
feita para brancos europeus e cristãos. A prática de crenças africanas por meio
dos cultos aos santos católicos, assim, criou a religiosidade afro-brasileira.
Esse fenômeno de sincretismo cultural no Brasil teve, como consequência, a
formação e a marginalização das religiões de matriz africana no país. Antes mesmo
da imigração forçada das pessoas negras para o Brasil, na condição de escravas, os
habitantes pré-colombianos realizavam ofertas cúlticas aos seus deuses. As dife-
renças culturais demarcadas entre os povos ameríndios produziram um caldeirão
religioso que, em sua constituição, abarcava expressões religiosas diversificadas.
Na tarefa árdua de interpretar o mundo, as religiões tiveram o papel de
orientar indivíduos e grupos sociais de formas distintas. Foi nos encontros e
desencontros desses grupos, de culturas diferentes, pautados na etnocentricidade,
que o processo de definição e redefinição culturais se processou com dores,
derramamento de sangue e imposições. Em terras brasileiras, com a chegada
de europeus e africanos, esses encontros e desencontros orientaram, de forma
dramática, a formação do povo e de sua religiosidade no Brasil. Isso proporcionou,
historicamente, um processo de construção hierárquica da religiosidade nacional,
com predominância da catolicidade e consequente marginalização das demais
expressões religiosas que aqui aportaram e se desenvolveram.
O início do século XVI foi marcado pela demolição de todas as expressões
religiosas presentes na cultura de terras tupiniquins e imposta pelo catolicismo
português que aqui ancorou. A implantação de sua religiosidade em território
brasileiro desconsiderou a religiosidade nativa, impondo uma religião estrangeira
e desconhecida e propondo as maiores selvagerias sob o manto de religiosidade.
Pautados em uma disputa religiosa com os protestantes no continente europeu,
a contrarreforma católica exigiu a ampliação de seus domínios no novo mundo,
recém-descoberto. Para seus fins, os jesuítas foram enviados com a finalidade
de expandir a fé católica e encontraram um terreno fértil para imposição, e
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não por adesão, da sua religiosidade. Esse processo foi marcado, também,
pela marginalização das expressões religiosas que aqui existiam, bem como
das religiosidades africanas trazidas pelos escravos africanos. Os documentos
históricos permitem constatar a força do catolicismo imperial e colonizador.
Assim, esse passado histórico de imposição possibilita compreender a com-
posição da matriz religiosa brasileira. Nesse sentido, destacam-se três matrizes
religiosas que contribuíram para a formação do povo brasileiro: o explorador
europeu, o nativo indígena e o expatriado africano. Para Dimenstein, Rodrigues e
Giansanti (2012), a colonização foi desumanizadora e coisificadora, um processo
de exclusão social e étnica atravessado por resistências que, condenadas pela
religiosidade europeia dominante, fez emergir cultos clandestinos que reorienta-
ram suas expressões para o sincretismo como forma de sobrevivência religiosa.
Como aconteceu com os indígenas, os africanos não tiveram sua cultura reco-
nhecida e nem legitimada, mas propositalmente estigmatizada, o que dificultava
o exercício de sua religiosidade. O destroçamento dos índios e de suas culturas
expôs a intolerância religiosa europeia que aqui se estabeleceu, destruindo a
cultura e, por conseguinte, a religiosidade nativa. As tentativas de resistência
nativa diante da ofensiva europeia foram insuficientes devido a sua inferioridade
bélica — embora fossem numerosos —, e o doloroso processo de integração
indígena na formação da população brasileira foi marcado pela exploração e
pela opressão, desdobrado em genocídio e etnocídio de sua gente e cultura.
Esse processo foi tardiamente interrompido por conta da imigração forçada de
pessoas africanas escravizadas para o Brasil, na segunda metade do século XVI,
que interrompeu parcialmente a escravidão dos ameríndios. Com a autorização
do governo português, em 1559, da vinda de pessoas escravizadas para o Brasil,
o tráfico de pessoas negras proporcionou lucratividade para o governo, para
traficantes e fazendeiros. Segundo Dimenstein, Rodrigues e Giansanti (2012),
aproximadamente 4,5 milhões de pessoas foram traficadas até o ano de 1850.
As pessoas negras escravizadas e trazidas ao Brasil em navios negreiros tinham
diversas etnias, países, religiões e estruturas sociais distintas, o que dificultava a sua
comunicação e consequente cooperação, inviabilizando a luta por sua liberdade,
mas não a impossibilitando. Assim, essas lutas de resistência se manifestaram de
várias formas: suicídios, sabotagem da produção, quebra de ferramentas e equipa-
mentos, práticas de aborto e outras ações que, inclusive, formaram os quilombos.
No processo de resistência, apesar da tentativa de encobrimento dessas
religiões pela religiosidade etnocêntrica europeia, foram preservados traços
religiosos das etnias que para cá foram trazidas e que, somadas com elementos
indígenas e europeus, deram origem à religiosidade popular brasileira que
desafiava a Igreja Católica e seu processo colonizador.
Religiões africanas no Brasil 11

As pessoas africanas escravizadas não vieram esvaziadas de hábitos e crenças;


pelo contrário, trouxeram consigo seus rituais, que possibilitaram a expressão
de sua religiosidade, associando-a, e não substituindo-a, com os santos cató-
licos. Dessa forma, práticas como associar Santa Barbara a Iemanjá ou São
Jorge a Ogum são exemplos comuns de resistência que lhes permitiam viver
sua religiosidade. Rezar para o santo católico e acender a vela para um orixá
foi, por exemplo, uma das saídas para as pessoas escravizadas da África. Para
os colonizadores portugueses, os rituais e as danças africanas deveriam ser
reprimidos, pois eram considerados feitiçaria. Dessa forma, os santos católicos
serviam de acobertamento visível das práticas invisíveis da religiosidade africana.
O sincretismo não acontecia só entre as religiões africanas e europeias, mas
com outras religiões também. Segundo Dimenstein, Rodrigues e Giansanti
(2012), na Bahia de 1830, havia aproximadamente 22 mil escravos de variadas
etnias, dentre elas a da nação haussá, da Guiné, os malês, cuja religiosi-
dade era muçulmana. Adeptos do islamismo, sabiam ler e escrever em árabe.
Ao conviver com os malês, as pessoas negras da nação-geral iorubá-nagô
incorporaram ensinamentos islâmicos, o que resultou no candomblé, cujo
sincretismo permitiu identificar Alá com Olorum.
Nas suas cerimonias religiosas, os malês tradicionalmente vestiam o abadá,
um camisolão branco, e turbantes nas cabeças. Essa tradição, com grande
participação da população negra, é encontrada especialmente quando da
lavagem das escadarias da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, no dia 25 de
janeiro, data que encerra o Ramadã para a religião muçulmana.
O candomblé, segundo Prisco (2012), foi a expressão religiosa importante
para preservar e proteger a identidade dos povos africanos aqui representados
(nagôs e bantos), após mais de um século de escravidão. Por isso, é tipicamente
brasileiro, já que existem características no candomblé nacional que não se en-
contram originalmente na África, como o culto ao caboclo. Enquanto o panteão
africano reúne mais de 400 divindades, no Brasil, seu limite se aproxima a 70.
Apesar da desconfiança, o candomblé, que já foi proibido, é, hoje, reconhe-
cido como religião, não sem muita luta por causa da estigmatização imposta
pela religião majoritária no Brasil e pelo próprio Estado. Chamado popular-
mente de “macumba”, o candomblé é, por vezes, confundido com a umbanda
e com a quimbanda. Enquanto no candomblé não há práticas mediúnicas e
incorporações ou altares, na umbanda, há altar, incorporações e a mediunidade
é recorrente — sendo uma de suas marcas identitárias.
Segundo Silva Neto (2019), a aderência dos grupos religiosos de matriz
africana às suas religiosidades não se resume às opções religiosas. Esses
grupos têm em sua religião traços de pertencimento que remontam suas raízes
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a um processo de identificação fortemente marcado por suas tradições, o que


constitui um movimento dinâmico intenso e que se desprende da rigidez do
passado para uma reinvenção de si sem deformar sua construção histórica.
Assim, é de suma importância compreender que a aderência dos atores so-
ciais à religiosidade de matriz africana ultrapassa e ressignifica a noção de
pertencimento ao seu grupo social de origem.

Vasconcelos e Lima (2015), no artigo “A cultura iorubá e a sua influência na construção


das religiões de matriz africana no Brasil”, discutem elementos da religiosidade de matriz
africana no Brasil que passaram por complexas formas de ressignificação.

3 Reconhecimento das religiões de matriz


africana
É de suma importância compreender que a aderência dos atores sociais à reli-
giosidade de matriz africana ultrapassa e ressignifica a noção de pertencimento
ao seu grupo social de origem. Assim, o elo desses grupos religiosos com suas
origens tem nas noções de povo, tradição, terra, identidade e ancestralidade
sua principal orientação litúrgica e ritualística.
Com raríssimas exceções, as religiões de afro-brasileiras trazem em seu
ritual a figura do caboclo, segundo Prandi (2001). Esse personagem é uma
entidade espiritual que tem sua origem nos rituais africanos dos bantos.
Os caboclos eram caracterizados pela comunicação verbal com os frequenta-
dores dos terreiros, manifestando-se, de forma animada, a partir de cantigas e
danças. Além da animação, o caboclo tinha poderes mágicos — cura; vertente
social — ajuda aos necessitados; e sabedoria.
De acordo com Prandi (2004), as religiões afro-brasileiras se expressam
em diversas modalidades, tais como candomblé, terecô, tambor de mina,
xangô, umbanda, batuque, cabula, entre outras. Destacam-se, nesse grupo, o
candomblé e a umbanda: segundo os dados do Censo Demográfico de 2010 do
IBGE, 588.797 pessoas se autodeclararam pertencentes aos grupos religiosos
de matriz africana: 167.36 ao candomblé e 407.331 à umbanda. Já a soma das
outras declarações de religiosidades afro-brasileira é de 14.103 pessoas, em
que está, por exemplo, a quimbanda (IBGE, 2010).
Religiões africanas no Brasil 13

Etimologicamente, candomblé significa “dança” ou “dança dos atabaques”.


Trata-se do segundo maior grupo religioso de matriz africana no Brasil, mas é
a mais antiga expressão da religiosidade africana e uma das religiões africanas
mais praticadas no mundo. É notório que a maioria das pessoas já teve, em
alguma medida, contato com essa expressão religiosa. Na Bahia, a religião dos
orixás e outras divindades africanas se caracteriza pela resistência, primeira-
mente dos africanos e depois dos afrodescendentes, diante da escravidão e da
imposição eclesiástica dominante, respectivamente, segundo Prandi (2004).
Existem quatro tipos de candomblé no Brasil: na Bahia, temos o Queto;
em Pernambuco, manifesta-se o Xangô; no Rio Grande do Sul, o Batuque; e
Angola na Bahia e em São Paulo. No entanto, de modo geral, conhece-se o
candomblé pelo estado da Bahia, de onde espalhou pelo Brasil. Você, muito
provavelmente, já vislumbrou pessoas vestidas de branco, na noite do ano
novo cristão, lançando flores ao mar, uma das cerimônias mais visíveis do
candomblé e que também representa uma oferenda a Iemanjá, divindade
das águas. Como indica Carmo (2017), embora esse ritual dê visibilidade
ao candomblé, trata-se de um detalhe no amplo culto realizado diariamente
pelos praticantes dessa religiosidade em seus lares e terreiros, com o mesmo
“fervor” dos católicos em relação a seus santos. O desavisado possivelmente
estranhará as imagens de Exus, caveiras e outros elementos do culto can-
domblecista. Porém, essas impressões só são percebidas na comparação com
a religião dominante judaico-cristã, que atribui valores maléficos a esses
símbolos religiosos. As divindades candomblecistas, embora se confundam
com os santos católicos, também são associadas, assimetricamente, a de-
mônios da religiosidade cristã.
Assim como no catolicismo, há uma hierarquia “espiritual” entre as enti-
dades no candomblé. Representando a energia e as forças da natureza estão
os orixás, representado por mais de 70 entidades diferentes. Eles incorporam
seus praticantes e se manifestam substituindo suas personalidades e habilida-
des, exigindo preferencias rituais e fenômenos naturais específicos. Alguns
desses orixás são: Oxum, Iansã, Ogum, Xangô, Exu, Oxalá, Oxóssi e Iemanjá.
As cerimônias são conduzidas por um líder experiente, habitualmente o mais
velho, denominado babalorixá ou iyalorixá. O monoteísmo também caracteriza
o candomblé, e sua variação se deve à sua região de origem: para os da etnia
ketu, o deus é Olodum; entre os bantos, o deus é Nzambi; e para os da etnia
jeje, Maqwu.
Confeccionados com cristais e búzios, os colares de fios de conta — como
os terços, no catolicismo — servem para identificar e proteger os fiéis de cada
orixá. Usa-se também miçanga, corais, prata, bronze e ouro na sua confecção.
14 Religiões africanas no Brasil

As práticas religiosas de origem africana mais comuns são, conforme


Mariosa e Mayorga (2019, documento on-line), “[...] banhos de ervas, práticas
de cura, dança dos orixás, toque dos tambores e atabaques”. Na cosmovisão
africana, o banho de ervas tem caráter mágico e medicinal e pertence a Ossaim
— orixá para quem devem pedir permissão todos aqueles que querem colher,
para rituais, as folhas sagradas. A erva não pode ser seca nem cultivada e
deve ser espremida nas mãos; é muito usada nos ritos de iniciação e de cura,
além de ser receitada para chás e massagens pelas benzedeiras. Obaluaê e
Omulú são orixás relacionados a cura/saúde e a morte/vida, respectivamente.
Tidos como seres vivos, os tambores, no candomblé, têm também um ritual
de iniciação, pois cada atabaque é considerado filho de um orixá, recebendo
lugares destacados na liturgia ritualística da religião. Com a responsabilidade
de invocar os deuses, os tocadores desses instrumentos recebem iniciação
específica. Os tambores são consagrados para uso específico no terreiro e o
seu manuseio (in)apropriado revelará a temperatura religiosa dos seus rituais.
Outra característica intrínseca dos ritos das religiões de matriz africana
é a dança, cuja presença é fundamental na religiosidade candomblecista e
permite influenciar forças da natureza em favor dos seres humanos. Nesse
processo, para além da simples coreografia, há confraternização entre os
santos e as pessoas. O caráter sagrado da dança se manifesta na forma e no
jeito de executá-la, pois revela ações, histórias e caráter dos deuses, cuja
caracterização das vestimentas dos filhos e das filhas com as indumentárias
dos orixás demonstra beleza nos gestos das suas danças.
Como nos indica Prandi (2001), embora de matriz religiosa africana e,
portanto, similares, o candomblé não é a religião umbanda — cada um tem suas
características próprias. Derivada da palavra m’banda — vocábulo quimbundo
que pode significar “sacerdote”, “curandeiro” ou “arte de curar” — a umbanda,
nascida no início do século XX, na periferia do Rio de Janeiro, fundada por
Zélio Fernandino Moraes, pode ser caracterizada como uma religião misci-
genada e tipicamente brasileira, com sincretismo do candomblé africano e do
espiritismo kardecista, acrescida de elementos das religiosidades católica e
indígena, tendo como líder espiritual “pai ou mãe de santo” (PINTO, 2019).
Segundo Prandi (2001), a umbanda cresceu a ponto de ser vista como a
única grande religião afro-brasileira, com caráter universal. A partir do Rio
de Janeiro, a umbanda espalhou-se rapidamente para o Brasil, expandindo-se
para a América Latina por conta de sua simplificação estrutural e de fácil
assimilação, principalmente pela facilidade de adesão à sua religiosidade,
que se apresentava desprendida das amarras étnicas, raciais, geográficas e
de classes sociais específicas. Pretendendo-se inclusiva, reunia o catolicismo
Religiões africanas no Brasil 15

europeu branco, a tradição de vertente negra dos orixás e os símbolos, espíritos


e rituais indígenas, bem como o kardecismo francês.
De acordo com Pinto (2019), apresentando-se com número de orixás bastante
reduzidos se comparados aos do candomblé, na umbanda existem nove: Iansã,
Iemanjá, Nana Buruquê, Obaluaê/Omulú, Ogum, Oxalá, Oxóssi, Oxum e
Xangô. Além disso, na umbanda, os orixás são ressignificados e se apresentam
diferentes dos do candomblé. Tratam-se de entidades que fazem a comunicação
entre o divino e os humanos, sem relação com a ancestralidade divinificada
ou com as divindades da natureza, como no candomblé (PINTO, 2019).
A facilidade de pertencimento à umbanda — que se restringe à capacidade
de receber uma manifestação mediúnica —, faria dessa religiosidade de matriz
africana ser a maior no cenário religioso brasileiro, cujos espaços cúlticos são
democraticamente aceitos: terreiros ou casas.
Conforme Pinto (2019), por sua variedade, existem umbandas dentro da
umbanda, manifestadas nas diferentes formas de cultos, ritos e teologias. Suas
variações são conhecidas como macumba, Caboclo das Sete Encruzilhadas,
esotérica e de influência oriental — que usa termos conhecidos de mantras
indianos e do sânscrito. Na umbanda, a fonte de sua doutrina, como no cato-
licismo, é o Evangelho dos cristãos, e Cristo é o divino supremo.
Já a quimbanda é uma religião que cultua Exu e se propõe independente
de quaisquer outras religiões de matriz africana; porém, na prática, confunde-
-se com o candomblé e com a umbanda (PINTO, 2019). Sua forma atual é
considerada “inovadora” devido ao seu caráter individual de demarcar os ritos
e personalizar os símbolos. Seu surgimento data de década de 1960, no Rio
Grande do Sul, mas a tradição demonstra que era praticada desde os tempos
da escravidão no país.
Pinto (2019) afirma que, utilizando guias espirituais, como Exu e Pomba-
-gira — que se casam e formam um par perfeito, segundo seus adeptos —,
a Quimbanda tem rituais diferentes espalhados no Brasil e, embora cultuem
os mesmos deuses umbandistas, a forma de fazê-elo é distinta. Enquanto na
umbanda Exu e Pomba-gira são entidades secundárias que, inclusive, recebem
ordens de outros orixás, na quimbanda, são entidades principais, que, inclusive
incorporam médiuns e tornam o seu contato de forma pessoal.
As oferendas na quimbanda se assemelham às práticas da umbanda, mas
com variações. Velas, charutos, bebidas alcoólicas e animais são oferecidos na
quimbanda (PINTO, 2019) e o culto de Egun — às almas falecidas — demarca
a principal diferença entre a quimbanda e a outras expressões religiosas de
matriz africana. Na quimbanda, não inexiste evolução dos espíritos, e os Exus
são os ancestrais, diferentemente da umbanda, mas semelhante ao candomblé.
16 Religiões africanas no Brasil

Há sete reinos na quimbanda, liderados por um Exu chefe ou Exu rei.


A adesão à quimbanda depende do Massangua — batismo —, que é um con-
junto de vários rituais em que se recebe a proteção das entidades de espíritos
e, a partir de então, guias. Depois disso, recebem a trindade da quimbanda
— Exu maioral, Exu rei e Maria Padilha (PINTO, 2019). Diferentemente do
Candomblé, em que o iniciado recebe um chamado, na quimbanda, a adesão
é voluntária e se decide trilhar uma jornada religiosa.
Martini (2017) usa, para abarcar a pluralidade das múltiplas religiões de matriz
africana ou afro-brasileiras, o termo “calundu”, que foi historicamente usado em
referência às variadas manifestações religiosas ameríndias e africanas, fora da
ortodoxia católica. A ênfase na diversidade permite retomar esse conceito para ex-
primir o combate à intolerância religiosa recorrente no cenário religioso brasileiro.
O tema da tolerância religiosa é ainda relevante e pertinente na contemporanei-
dade, já que, conforme Prandi (2004), as religiões de matriz africana eram proibidas
há algumas décadas, sendo perseguidas duramente pelo poder estatal. Embora
já oficializadas, ainda sofrem perseguição, dessa vez, menos policial, mas mais
social e religiosa, como resquícios dos tempos da colonização, com a reprodução
de estigmas por meio dos novos grupos religiosos de vertente neopentecostal,
o que revela o preconceito e o racismo religioso contra negros e suas culturas.
Esse processo inibe os seguidores das religiões de cultura africana e os faz
reproduzir comportamentos análogos aos de seus conterrâneos religiosos do
passado do Brasil colonial, na logica público-privada, em que publicamente se
dizem católicos, mas praticam religiosidades ensinadas pelos seus antepassados
de matriz africana no âmbito privado — essa é a força do preconceito e do
racismo religioso que precisam ser combatidos.
Urge liberar essas amarras, em uma construção coletiva, de forma a permitir
uma democracia religiosa substancial, e não apenas formal. A dificuldade de
se estabelecer um diálogo inter-religioso demonstra a indisposição de setores
religiosos da sociedade em promover a proteção da liberdade religiosa a todas e
quaisquer expressões religiosas por meio da compreensão, e não da intolerância.

Em nota assinada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares
Alves, e pelo secretário nacional de Proteção Global, Sérgio Queiroz, o ministério ressalta
a finalidade de fortalecer e dar visibilidade às mais diversas crenças e convicções.
No dia 21 de Janeiro, o Brasil celebra o Dia Nacional de Combate à Intolerância
Religiosa, que foi instituído pela Lei nº 11.635, de 2007 (BRASIL, 2019).
Religiões africanas no Brasil 17

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