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DRAMATURGIA DO DUPLO

Antonio Herci

2021

1. UNIDADE

A unidade se realiza na linguagem.

Dizer que a unidade se realiza na linguagem é dizer que não é


unidade, pois linguagem pressupõe uma relação de coisas. A
unidade do ser, do sermos no mundo, não pode ser pensada
senão numa multiplicidade onde se envolve como pressuposto ou
como corolário: somos os mesmos que nossas mães e pais, e
assim por diante, sou a mesma e o mesmo que ontem era eu
mesma e mesmo. Mas o que garante essa "unidade" do "sou o
mesmo que minha mãe e pai" é uma multiplicidade de sentidos e
apenas pode vir por essa multiplicidade de sentidos: apenas
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com fragmentos de memória, pedaços de desejos, fatias de dor,


pedaços de mundo que os olhos alcançam, certezas de hábitos
que dão certezas de unidades e continuidades. O que se passou
muito provavelmente se passará, o elevador estará ali para
entrarmos e não despencarmos, o caminho chegará no mesmo
lugar da certeza cotidiana de que a vida continua e, se
continua, dá certeza da própria continuidade, entre elas de
que existe uma unidade nisso tudo que se pensa certamente
una, mas mal pode olhar-se para si inteiramente sem auxílio
de algum outro olhar: vê mãos, pés, fragmentos de ombros e
costas. Mal olha o próprio nariz a não ser desfigurando o
olhar e ao olhar perde tudo o mais do mundo: a ponta do nariz
revela duas perspectivas, cada uma delas com seu ponto de
fuga e sua linguagem geométrica conservada, mas divergentes.
Talvez mais uma prova inesperada de que, mesmo diante do
olhar multifacetado, preservo essa unidade do olhar que
concluiu "está multifacetado", mas não eu, que concluí.

A unidade se realiza na linguagem a partir da crença.

Se podemos imaginar uma gradação de crenças, desde a pura e


mais abstrata, a crença metafísica até a mais bruta e carnal,
a crença científica. Duas escalas infinitas de crença, entre
o totalmente improvável até o pretensamente provado. Mas que
jamais atingirão o fim de sua escala, nunca será totalmente
improvável, pois pode ser persuadido ou constringido a partir
de modos de verificação, por exemplo, a tortura como procura
da verdade. Também nunca será totalmente provado, pois nem o
mais bem preparado e milionário laboratório do mundo pode
afirmar hoje verdade comprovadas, pois passam por todo um
arsenal de Estados, armas, corrupção, fortunas e alguns
momentos de ficação científica na própria realidade, onde
alguns bilionários bonitos, brancos e modernos podem brincar
de riscar no espaço o que riscávamos à faca para brinca de
Território na terra.

Evidentemente que todas e todos nós sobrevivemos até este


momento, ou este outro, em que a palavra se realiza pela
leitura. Senão não teríamos, esse outro agora, momento de
certeza dessa continuidade. É uma certeza tão intensa que
nada pode nos demover dela. Como a certeza de que estamos
diante de algo belo: nada pode mudar nossa ideia disso.

A unidade se realiza na crença na unidade

A não nós próprios, quando enjoamos de algo belo e queremos


outro algo belo, às vezes chamamos de brega o primeiro,
outras, entre líquidos e fumaças, nos embriagamos da própria
abertura que temos para bregas que somos, porém conservado o
enfado de sempre e a pose empedernida de quem é brega, mas
sabe que é, é cientificamente brega. O brega deixa de ser,
não porque mudou algo em si, mas porque nos permite agora, a
partir de todo o contexto, mostrar que afinal a vida
continua, somos verdadeiramente essa unidade que pode mudar
toda a realidade e transformar algo brega em algo, como se
costuma dizer, cult. Voilà! A essência do brega foi mudada, e
garantimos isso pela nossa unidade pensante, agora crítica e
juiz do que seja, de fato, enfato e pensamento empedernido.
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Isso é cultura. Mas a certeza de achar belo é inabalável,


agora militante do belo mas, antes, de si mesmo, dessa
unidade enfadada e empedernida que tem certeza de estar
diante de verdades.

Certezas e verdades são habituais ou tautológicas: ou provam-


se pela regularidade e crença na repetição dos fenômenos
naturais; ou provam-se pelo que se propuseram, ou seja, pelos
seus critérios de verificação. No primeiro caso constatam que
convivemos com determinadas regularidades que se repetem há
muito e muito tempo, portanto devem se repetir
indefinidamente. Como o fato de que "o sol nascerá amanhã".
Dizer que não nascerá parece um contrassenso. E de fato, não
é uma informação que não é verdadeira, pois dizer que "o sol
não nascerá amanhã" não viola nenhuma regra do logos, da
discursividade. Apenas a nassa certeza habitual de que "o sol
nascerá amanhã".

"Tudo certo como dois e dois são cinco", diz a poesia. Numa
certeza tão grande de que está dizendo algo totalmente
absurdo — dois e dois são cinco — que usa isso como ironia e
sarcasmos, inserido em um discurso poético, fortemente
marcado pela retórica apelidada de "dor nos cornos", pela
classificação da poesia da carne do mundo, carne que
compartilho como poeta. Isso pelo simples fato de que a frase
"dois e dois são cinco" é absurdamente falsa e qualquer
pessoa que iniciou-se na matemática mais elementar ou contou
coisas no mundo sabe que é falsa. Pois tem um método de
verificação para dizer isso claramente: a linguagem
matemática ou a contagem direta dos corpos. A verificação da
verdade faz parte da aceitação da linguagem e de seus
universos e algoritmos semânticos e sintáticos. A frase já
fazia parte do caldeirão de frases corretas e verdadeiras,
pois uma ciência tem que ter, antes de tudo, um grande
caldeirão de frases verdadeiras, preexistentes desde a
proposição da própria teoria, juntadas ao infinito,
produzindo infinitas combinações: mas como caleidoscópios,
que trarão sempre o mesmo padrão pré inscrito das cores,
posições dos espelhos, incidências e reflexões sempre iguais,
correta e verdadeiramente iguais. Logo enjoam por suas formas
infinitas e irrepetitíveis, mas porque cansam… São
infinitamente iguais no que são diferentes.

A unidade se realiza na extensão da linguagem

A linguagem não tem isso, usa-se para viver, ela não cansa, e
contém todas as outras linguagens científicas dentro dela, e
explica todas elas em suas fases de elaboração teórica,
metodológica ou conceitual. Mas logo é expulsa do
laboratório, e as linguagens restritas, frias e desumanas
passam a vomitar verdades pretensamente humanas e universais
que, cientificamente, movem populações, estabelecem
fronteiras, fazem com que dois terços da humanidade não
tenham pátria, pois criam refugiados e excluídos dentro das
leis, constrome incríveis armas biológicos e, já vimos, criam
seus playbouys intergaláticos… Mas nos deixa com mais de meio
milhão de mortos, num resultado científico e planejado entre
a ciência, a política, as leis e todo o sistema de
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conhecimento. Escravizam e vendem corpos, partes de corpos,


formas de matar, prender, asfixiar e constranger os corpos…
Mas nos lega, com tudo isso, mais de meio milhão de mortos,
lutos roubados, liberdade roubada, emprego aviltado, despejos
e concentração na propriedade urbana e rural, aumento do
trabalho escravo.

O iluminismo criou luzes tão potentes da razão, que ofuscou e


cegou até o mais potente dos pensadores, tornando o
esclarecimento um entorpecimento racional: um mal encontro da
Filosofia com a Perversão. Se Marx nos fala sobre o ópio
dopovo, talvez aqui possamos falar do ópio da razão, a
certeza de sua unidade como humanidade, que exclui os corpos
e a vida para afirmar-se e inclui como excluído tudo o que
temos de mais importante na carne: vida!

A impossibilidade de olhar-se diretamente por inteiro, faz do


corpo uma unidade biológica, pois que é corpo, mas que deve
contribuir diariamente a crença de que é mesmo essa unidade.
Às vezes sentindo de forma esquizofrênica corpo e não corpo,
apalpando-se para sentir-se mesmo sendo naquele momento.

Olhar-se no espelho ou fotografar-se não é olhar-se


diretamente por inteiro. Mas sei que tenho algo em minhas
costas, pele, sinto frio do inverno e sei também que tenho
pés. Mas estarei de meias? Vou olhar e confirmo, mesmo de
meias estou com frio.

Dizer quem eu sou, ou mais ainda, escrever quem eu sou,


sempre me pareceu falar de mim, dessa unidade. Mas acabei
descobrindo, um dia todas e todos descobrem, que dizia uma
unidade que era por definição multifacetada: grande parte não
ouvia o que eu era e outra grande parte não via meus
trejeitos. Mais ainda: não ouviam ou viam os personagens que
eu escrevia, não ouviam ou viam nada da suposta imaginação
que pode ir mais longe que o mundo concreto.

Descobrimos que existe uma infinidade de infinitos em


qualquer unidade de personagem, ele é o que cada facho se
mostra: no entendimento de quem vê.

A unidade se realiza na troca intermitente dos sentidos

Em cada troca de sentido existe uma unidade, e não é possível


que existe uma supra unidade que seja a unidade de tudo, pois
cada mínimo sentido teria que perder-se de si para converter-
se em um ideal de uno, esquecendo de fato e novamente o
corpo, aquela unidade biológica que, em cada crença de si
como unidade verá unidade no que vê, entretanto, múltiplo por
tanta multiplicidade dos corpos envolvidos.
ANTONIN ARTAUD, ALAIN VIRMAUX, PAULO VINÍCIUS

2. TEATRO E VIDA

(PAULINO, 1968)
(NOME, Data)
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NOME, Sobrenome. Relatório: Título da Série. Lugar:


Instituição, Data. Disponível em: URL. Acesso em: 8 jan.
2019.

PAULINO, Rosana. (1968): Neoconcretismo. São Paulo: Artista


visual brasileira, educadora e curadora. É doutora em Artes
Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo e especialista em gravura pelo London Print
Studio., 1968.

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