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Texto 4 Literatura, Ética e Alteridade. Seis Proposições para A Formação Do Leitor
Texto 4 Literatura, Ética e Alteridade. Seis Proposições para A Formação Do Leitor
nº 22 - julho de 2019
http://dx.doi.org/10.23925/1983-4373.2019i22p114-130
Nazareth Salutto
RESUMO
Em quais linhas de sentido transitam ética, alteridade e direito na literatura? Essa
indagação mobiliza as reflexões do texto a ser analisado, que, tomando a literatura como
manifestação ética da palavra do outro, apresenta seis proposições para a formação do
leitor. Para tanto, parte dos seguintes princípios: do direito à literatura como condição
humana inalienável (CANDIDO, 2011); da literatura como ação política por sua
dimensão alteritária, que opõe e ultrapassa, dialoga e amplia o discurso entre ficção e
vida. Assim, considera que a formação do(s) leitor(es) implica assumir tais princípios,
contemplando a esfera subjetiva provocada pela imersão na palavra do outro. O texto
inicia com considerações sobre a função e o papel da literatura, considerando-a como
força transformadora do mundo (TODOROV, 2009). Em seguida, no diálogo com
autores literários, aponta seis proposições para a formação do leitor literário. Finaliza
com considerações acerca desses princípios.
PALAVRAS-CHAVE: Ética; Alteridade; Literatura; Formação do leitor
ABSTRACT
Along which lines do ethic, alterity and law move in literature? This question mobilizes
the reflections of the present paper, which, by taking literature as the ethical
manifestation of the word of the other, puts forward six propositions for the formation
of the reader. In that sense, it is grounded on the following principles: the right to
literature as an inalienable human condition (CANDIDO, 2011); literature as political
action because of its dimensiono of alterity, which opposes and surpasses, engages in
dialogue and expands the discourse between fiction and life. Thus, he considers that the
formation of the reader (s) implies assuming such principles, contemplating the
subjective sphere provoked by the immersion in the word of the other. The text begins
with considerations about the role and role of literature, considering it as a transforming
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense – FEUFF – Niterói – RJ – Brasil –
nazarethssalutto@gmail.com
nº 22 - julho de 2019
force of the world (TODOROV, 2009). Then, in the dialogue with literary authors, he
points out six propositions for the formation of the literary reader. It concludes with
considerations about these principles.
KEYWORDS: Ethic; Otherness; Literature; Formation of the reader
Introdução
livro e da leitura, como o Plano Nacional do Livro na Escola (BRASIL, 2006, 2010), da
composição de acervos como o Plano Nacional Biblioteca na Escola (BRASIL, 2010,
2013), da lei 12.244, que define que até o ano de 2020 todas as instituições educativas
deverão ter bibliotecas (BRASIL, 2010), às iniciativas e projetos de instituições como a
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (2008); ações como o Movimento por um
Brasil literário, na promoção da leitura em todo o território nacional, entre outras
políticas e iniciativas.
Contudo, mesmo que fundamental e necessária, a formação do leitor não se
realiza apenas na esfera legislativa. Se assim fosse, a afirmação de que “[...] a leitura
literária é um direito que ainda não está garantido [...]” (QUEIRÓS, 2012, p. 118) não
seria uma realidade nos cenários educacional e social. De que modo condensar as
esferas estética (expressão alargada da experiência da vida) e ética (direito) da literatura
sem as contradizer? Como aliar palavra literária e experiência do leitor sem borrar o
limiar estético, ficcional, aberto, múltiplo da literatura em nome da técnica, do ensino da
literatura?
O diálogo com Candido (2011) ajuda a aproximar os contornos do direito à
literatura. Para o autor, por meio das disputas travadas socialmente, cada época constrói
e fixa critérios sobre o que vêm a ser direitos humanos. As alterações de critérios e
sentidos através dos tempos fez com que as sociedades avançassem do que o autor
denomina de um estado de barbárie para um momento que tornou possível reorganizar,
excluir e constituir novos parâmetros sociais e políticos a respeito dos direitos humanos,
ainda que carregado de contradições.
Desse modo, o autor delineia sua concepção sobre o que considera direitos
humanos a partir da ideia do que denomina bens compressíveis e bens incompressíveis.
Os bens compressíveis seriam produtos como acessórios, cosméticos; tudo que
corresponde ao supérfluo. Os bens incompressíveis, ao contrário, estariam na ordem do
que é essencial, como o direito de se alimentar, ter onde morar, o direito à saúde, à
justiça, à liberdade; e que, portanto, não podem ser negados a ninguém (CANDIDO,
2011, p. 175-176). Para que se constituam como direitos humanos, os bens
incompressíveis devem ser tratados tanto do ponto de vista individual como coletivo.
Para o autor, a literatura – definida por ele como todas as criações de toque
poético, ficcional ou dramático (p. 176) –, para ser considerada um bem incompressível
e, portanto, direito de todos, depende do que e como a sociedade organiza e fixa como
critério para tal compreensão. Por ser uma produção que se origina na trama social e
1
Para ampliação dessa temática, ver pesquisa FAILLA, Retratos da leitura no Brasil (edição atual - ano
2016). Disponível em:
http://prolivro.org.br/home/images/2016/RetratosDaLeitura2016_LIVRO_EM_PDF_FINAL_COM_CAP
A.pdf.
[...] por uma estranha inversão, o estudante não entra em contato com
a literatura mediante a leitura dos textos literários propriamente ditos,
mas com alguma forma de crítica, de teoria ou de história literária.
Isto é, seu acesso à literatura é mediado pela forma ‘disciplinar’ e
institucional. Para esse jovem, literatura passa a ser então muito mais
uma matéria escolar a ser aprendida em sua periodização do que um
agente de conhecimento sobre o mundo, os homens, as paixões, enfim,
sobre a vida íntima e pública. (TODOROV, 2009, p. 10).
As seis propostas são: (1) começar por si; (2) fazer do tempo companheiro; (3)
ter o outro como cúmplice; (4) ter a cultura como aposta; (5) assumir a literatura como
alteridade; (6) não ficar em si mesmo.
aspereza de uma vida que o menino enfrentava e temia. Anos mais tarde, ao escrever
suas memórias, o agora autor não teria sido tomado pelo empreendimento audaz e
poderoso de começar por si mesmo?
Leitura.
Largou pela segunda vez a interrogação pérfida. Não me sentia
propenso a adivinhar os sinais pretos do papel amarelo? Foi assim que
que se exprimiu o Tentador, humanizado, naquela manhã funesta. A
consulta me surpreendeu. Em geral não indagavam se qualquer coisa
era do meu agrado: havia obrigações, e tinha de submeter-me. A
liberdade que me ofereciam de repente, o direito de optar, insinuou-
me vaga desconfiança. Que estaria para acontecer? Mas a pergunta
risonha levou-se a adotar procedimento oposto à minha tendência.
Receei mostrar-me descortês e obtuso, recair na sujeição habitual.
Deixei-me persuadir, sem nenhum entusiasmo, esperando que os
garranchos do papel me dessem as qualidades necessárias para livrar-
me de pequenos deveres e pequenos castigos. Decidi-me. [...]”.
(RAMOS, 2013, p. 31).
lembram e a qual podem narrar. História que provoca atualizar o presente como leitores
não só dos livros, mas também da vida, da esfera social,
[...] mas, para que o homem alcance esse grande feito, ele precisa
primeiro – partindo de todos os penduricalhos de sua vida – chegar ao
seu “eu”, ele precisa se encontrar, não o eu evidente do indivíduo
egocêntrico, mas o “eu” profundo da pessoa que vive numa relação
com o mundo. (BUBER, 2006, p. 34).
Ter o tempo como companheiro significa assumir que entre leitor e texto
literário existe um encontro que mobiliza esferas subjetivas que rompem com o tempo
lógico de aproximação, porque é um encontro entre olhos e palavras; entre a
subjetividade de quem lê com a de quem escreve. O tempo opera no intervalo do
encontro, abrindo possibilidades plásticas para a produção de sentidos. Tempo, desse
modo, trata de respeito aos processos de humanização pretendidos pela literatura.
A literatura pode ser a arena possível para enfrentar temas pungentes e atuais da
cultura. Por sua capacidade de reunir e fazer conviver diferentes vozes, por sua
diversidade e capacidade dialógica pode acolher o debate das diferenças, da tolerância,
daquilo que inibe, que assombra, que rechaça. A literatura pode ser acolhimento
quando, na voz do outro, encontra-se eco do que provoca e não se tem coragem de
proferir em voz alta. O encontro com a cultura, manifesta na palavra literária, comporta
o silêncio.
O que seriam “coisas piores, muito piores”? O autor deixa suspenso, em ponto
final. A cultura, como esse conjunto de valores e regras que ordenam a vida social,
instiga suas dores e desafios, mas também se faz chave para entendimentos.
Martin Buber aponta como caminho para o homem chassídico começar consigo
mesmo e, do mesmo modo, aconselha-o a não se ocupar consigo mesmo. Toma-se de
empréstimo essa consigna na última proposta:
REFERÊNCIAS
BRASIL. Legislação sobre livro e leitura. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
Edições Câmara, 2013. Disponível em:
http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/14536. Acesso em: 2 abr. 2019.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
HOMERO. Odisseia. Trad. Manoel Odorico Mendes. São Paulo: Montecristo Editora.
[Versão digital]. 2009.
QUEIRÓS, B. C. de. Sobre ler, escrever e outros diálogos. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012.
RAMOS, G. Infância. Posfácio de Cláudio Leitão. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.
[e-book].