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Utilitarismo e justiça

John Stuart Mill

Somos continuamente informados de que a utilidade é um padrão incerto, que cada


pessoa interpreta de forma diferente, e que não há segurança a não ser nos ditames não
sujeitos a erro, imutáveis e indeléveis da justiça, que contêm a prova em si mesmos, e
são independentes das flutuações da opinião. Supor-se-ia, a partir daqui, que em
questões de justiça não poderia haver controvérsia; que, se a tomássemos como regra, a
sua aplicação a qualquer caso em concreto nos deixaria com tão pouca dúvida como
uma demonstração matemática. Isto está tão longe da realidade, que existe tanta
divergência de opiniões e tanta e tão feroz discussão sobre o que é justo como sobre o
que é útil para a sociedade. Não só diferentes nações e indivíduos têm noções diferentes
sobre o que é a justiça como, na mente de um mesmo indivíduo, a justiça não é uma só
regra, princípio ou máxima, mas muitas, que nem sempre coincidem nos seus ditames, e
ao escolher entre elas ele é guiado ou por um padrão externo ou pelas suas preferências
pessoais.

Por exemplo, há quem afirme ser injusto punir uma pessoa para servir de exemplo a
outras; que a punição só é justa quando visa o bem da própria pessoa castigada. Outros
defendem o exacto oposto, afirmando que punir para seu próprio benefício pessoas que
atingiram a idade do discernimento é despotismo e injustiça, pois se o que está em
questão é apenas o seu próprio bem, ninguém tem o direito de lhe controlar a sua
própria avaliação do seu bem; mas podem, com justiça, ser punidas para prevenir a
ocorrência de mal a outros, sendo esta uma forma de exercício do direito legítimo de
autodefesa. O Sr. Owen afirma neste caso que punir é, de todo em todo, injusto; pois o
criminoso não criou o seu próprio carácter; a sua educação e as circunstâncias que o
rodeiam fizeram dele um criminoso, e por essas ele não é responsável. Todas estas
opiniões são extremamente plausíveis; e, enquanto a questão for simplesmente mantida
no plano da justiça, sem descer aos princípios que lhe estão subjacentes e constituem a
fonte da sua autoridade, sou incapaz de ver como qualquer um destes pensadores pode
ser refutado. Pois, na verdade, cada um dos três parte de regras de justiça
reconhecidamente verdadeiras. O primeiro faz apelo à reconhecida injustiça de escolher
um indivíduo e sacrificá-lo, sem o seu consentimento, para benefício de outras pessoas.
O segundo baseia-se na reconhecida justiça da autodefesa, e na reconhecida injustiça de
forçar uma pessoa a conformar-se às noções de outrem quanto ao que é o seu próprio
bem. O apoiante de Owen invoca o princípio reconhecido de que é injusto punir alguém
pelo que não depende de si. Cada um triunfará enquanto não for obrigado a tomar em
linha de conta quaisquer outras máximas da justiça além daquela que escolheu; mas
assim que as suas diferentes máximas são postas em confronto, cada um dos
contendores parece ter exactamente o mesmo para dizer em sua defesa do que os outros.
Nenhum pode desenvolver a sua própria noção de justiça sem violar outra igualmente
vinculativa. Estas são dificuldades; sempre foram reconhecidas como tal; e muitos
dispositivos foram inventados mais para as contornar do que para as ultrapassar. Como
refúgio para a última das três, os homens conceberam aquilo a que chamaram o livre-
arbítrio; imaginando que não podiam justificar a punição de um homem cuja vontade
está num estado inteiramente odioso a menos que se supusesse que chegara a esse
estado sem influência de circunstâncias anteriores. Para escapar às outras dificuldades,
um estratagema preferido tem sido a ficção de um contrato, mediante o qual num
qualquer período desconhecido todos os membros da sociedade se terão comprometido
a obedecer às leis, e terão consentido em ser punidos por qualquer desobediência às
mesmas; dando assim aos legisladores o direito, que de outra forma se presume não
teriam, de puni-los, quer para o seu próprio bem, quer para o bem da sociedade.
Considerava-se que esta ideia feliz permitia eliminar a dificuldade, e legitimava o
infligir da punição graças a outra máxima de justiça tradicional, volenti non fit injuria;
não é injusto o que é feito com o consentimento da pessoa que se visa castigar. Mal
preciso de assinalar que, mesmo que o consentimento não seja uma mera ficção, esta
máxima não é superior em autoridade às que pretensamente vem substituir. É, pelo
contrário, um exemplo instrutivo do modo descuidado e irregular como se desenvolvem
os supostos princípios de justiça. Este princípio, em particular, começou obviamente a
ser usado como auxiliar nas exigências vagas dos tribunais, que por vezes são obrigados
a contentar-se com pressuposições muito incertas, em virtude dos males maiores que
frequentemente decorreriam de qualquer tentativa da sua parte de ser mais exactos. Mas
mesmo os tribunais não conseguem aderir à máxima de forma consistente, pois
permitem que alguns compromissos voluntários sejam postos de parte como
fraudulentos, e, por vezes, como resultantes de mero engano ou má informação.

Além disso, quando é admitida a legitimidade de infligir uma punição, quantas


concepções contraditórias de justiça se manifestam ao discutir a proporção adequada de
punição para as violações da lei. Nenhuma regra sobre este assunto se impõe tão
fortemente ao sentimento primitivo e espontâneo de justiça como a lex talionis, olho por
olho, dente por dente. Embora este princípio da lei judaica e maometana tenha sido em
geral abandonado na Europa enquanto máxima prática, suponho que existe na maioria
dos espíritos um secreto anseio por ele; e quando a retribuição se precipita
acidentalmente sobre um criminoso precisamente sob essa forma, o sentimento geral de
satisfação demonstrado revela como é natural o sentimento de que é aceitável pagar na
mesma moeda. Para muitos, o teste da justiça na imposição de penas é o de que a
punição deve ser proporcional ao crime; significando isto que deve ser exactamente
medida pela culpa moral do culpado (seja qual for o padrão deles para medir a culpa
moral); na perspectiva destes, a consideração de quanta punição é necessária para a
dissuasão do crime nada tem a ver com a questão da justiça; enquanto há outros para
quem essa consideração é tudo, que defendem não ser justo, pelo menos para o homem,
infligir a um semelhante, quaisquer que sejam os seus crimes, uma qualquer quantidade
de sofrimento para lá do mínimo necessário para o impedir de repetir, e a outros de
imitar, a sua conduta incorrecta.

Tomemos outro exemplo de um tema já abordado: Numa associação industrial


cooperativa, será ou não justo que o talento ou a perícia dêem direito a uma
remuneração superior? Do lado de quem responde negativamente, afirma-se que quem
dá o melhor que pode merece o mesmo, e não deve, à luz da justiça, ser colocado numa
posição de inferioridade por coisas de que não tem culpa; que as capacidades superiores
encerram em si vantagens mais que suficientes, pela admiração que suscitam, a
influência pessoal que exercem, e pelas fontes de satisfação que as acompanham, sem a
necessidade de adicionar a estas uma maior fatia dos bens do mundo; e que, pelo
contrário, a sociedade está obrigada em justiça a compensar os menos favorecidos por
esta imerecida desigualdade de benefícios, e não a agravá-la. No lado contrário defende-
se que a sociedade recebe mais do trabalhador mais eficiente; que, sendo os seus
serviços mais úteis, a sociedade lhe deve uma retribuição maior por eles; que uma maior
fatia do resultado conjunto é na verdade obra sua, e não lhe reconhecer o direito a ela é
uma espécie de roubo; que se ele receber apenas o mesmo que os outros, pode apenas
exigir-se-lhe, em justiça, que produza o mesmo, e dedique uma menor percentagem de
tempo e esforço, proporcionais à sua eficiência superior. Quem decidirá entre estes
apelos a princípios de justiça contraditórios? A justiça tem neste caso duas faces, que é
impossível harmonizar, e os dois contendores escolheram lados opostos; um deles olha
para o que seria justo que o indivíduo recebesse, o outro para o que seria justo que a
comunidade lhe concedesse. Cada uma destas posições é, do seu próprio ponto de vista,
incontestável; e qualquer escolha entre elas, com base na justiça, terá de ser
completamente arbitrária. Só a utilidade social pode decidir a preferência.

Uma vez mais, quantos, e quão irreconciliáveis, são os padrões de justiça aos quais se
apela ao discutir a distribuição da carga fiscal. Uma opinião defende que o pagamento
ao estado deveria ser feito em proporção numérica aos meios pecuniários. Outros
pensam que a justiça ordena o que designam de tributação progressiva; tomar uma
percentagem maior daqueles que podem dispensar mais. No plano da justiça natural,
poderia fazer-se uma boa defesa da ideia de ignorar completamente os meios, e tomar
de todos a mesma soma absoluta (sempre que fosse possível fazê-lo): assim como os
sócios de uma associação ou de um clube pagam todos a mesma quantia pelos mesmos
privilégios, possam ou não fazê-lo com a mesma facilidade. Uma vez que a protecção
da lei e do governo é (poderia dizer-se) concedida a todos, e é igualmente requerida por
todos, não há qualquer injustiça em fazer que todos a comprem ao mesmo preço. É
considerado justo, e não injusto, que um comerciante cobre a todos os clientes o mesmo
preço pelo mesmo artigo, e não um preço que varie de acordo com o seu poder de
compra. Esta doutrina, no que diz respeito aos impostos, não tem defensores, por estar
em forte conflito com os sentimentos de humanidade dos homens e o seu entendimento
da expediência social; mas o princípio de justiça que invoca é tão verdadeiro e
vinculativo como os que podem ser invocados contra ele. Exerce, por isso, uma
influência tácita na linha de defesa usada por outros modos de abordar a tributação. As
pessoas sentem-se obrigadas a defender que o estado faz mais pelos ricos do que pelos
pobres, como justificação para lhes tirar mais; embora isto não seja de facto verdade,
pois os ricos seriam de longe mais capazes de se proteger a si mesmos, na ausência de
lei ou governo, do que os pobres, e na verdade seriam provavelmente bem sucedidos em
converter os pobres em seus escravos. Outros, no entanto, aceitam esta concepção de
justiça a ponto de defender que todos devem pagar a mesma taxa por cabeça pela sua
protecção (sendo cada pessoa de igual valor para todos), e uma taxa diferente pela
protecção das suas propriedades, que é desigual. A isto respondem outros que a
totalidade do que um homem tem é tão valioso para ele como a totalidade de outro. Não
há outra maneira de sair destas confusões a não ser a utilitarista.

John Stuart Mill

Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves


Retirado de Utilitarismo, de John Stuart Mill (Lisboa: Gradiva, 2005)

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