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A História dos Quadrinhos Norte-Americanos Sob Uma Perspectiva Baseada em

Raymond Williams 1

Autor: Márcio Mário da Paixão Júnior2


Universidade de Brasília (UnB)

Resumo:
Desde que surgiram, as modernas Histórias em Quadrinhos têm enfrentado, de
maneira quase generalizada, o preconceito e o desdém da pesquisa acadêmica. Contudo,
com o aparecimento dos Estudos Culturais – que têm em Raymond Williams um de seus
precursores –, vem à luz um novo instrumental teórico capaz de analisar os produtos da
indústria cultural de maneira mais complexa que enxergá-los como agentes alienantes a
serviço da ideologia dominante. Refutando o modelo no qual a cultura é determinada
exclusivamente pelas condições materiais e econômicas da sociedade, Williams enuncia um
novo conceito onde ela é entendida como um lugar – por vezes autônomo – de disputa pela
hegemonia. O que propomos aqui é a utilização dos Estudos Culturais (em Williams) como
instrumento para a análise dos quadrinhos norte-americanos ao longo de sua história.

Quadrinhos Norte-Americanos; Estudos Culturais; Raymond Williams

______
1. Trabalho apresentado ao NP 16 – Histórias em Quadrinhos, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
2. Engenheiro Civil, Professor, produtor dos festivais musicais Goiânia Noise e Bananada, diretor artístico da gravadora
independente Monstro Discos, ex-colaborador dos jornais O Popular e Diário da Manhã (GO) e mestrando da Faculdade
de Comunicação da UnB (Linha de Pesquisa: Imagem e Som). E-mail: marciomechanics@unb.br
A História dos Quadrinhos Norte-Americanos Sob Uma Perspectiva Baseada em
Raymond Williams

A origem das histórias em quadrinhos é sempre assunto repleto de controvérsia. A


existência de teorias que afirmam as pinturas rupestres feitas pelos primitivos ancestrais do
homem como portadoras dos signos elementares da linguagem das HQs demonstra o quão
longe se pode ir neste debate. Contudo, uma vez que o que está em pauta neste trabalho são
os quadrinhos norte-americanos modernos, é recorrente a afirmação de seu surgimento em
1895, com a primeira publicação de Yellow Kid nos jornais (MOYA, 1986: 22-23). Na tira
de Richard F. Outcault, já estavam presentes a narrativa seqüencial disposta em quadros, a
existência de um personagem fixo como protagonista das tramas e o uso de espaços
gráficos onde se representaria a fala de Yellow Kid – no caso, ao invés dos hoje usuais
balões, a alternativa encontrada foi escrever o texto no próprio camisolão usado pelo
garoto. Sucesso absoluto junto ao público, a historieta abriu as portas para uma infinidade
de autores e personagens que ocuparam as páginas dos periódicos, bem como o imaginário
de gerações de leitores, nas décadas seguintes.
Surgiram então Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, uma fábula onírica
próxima ao surrealismo, passada inteiramente dentro do universo de sonhos do pequeno
Nemo; as aventuras nórdicas do Príncipe Valente, cuja excelência técnica do grafismo de
seu criador, Hal Foster, o aproximava dos artistas renascentistas; Terry e os Piratas, de
Milton Caniff, que se dedicava a profundas pesquisas para uma reconstituição vigorosa e
precisa do Oriente misterioso; Ferdinando e a Família Buscapé, utilizadas pelo autor, Al
Capp, como vetor de contundentes críticas sociais; Flash Gordon, fantástica saga espacial
regida pelo rigor e perfeição do traço acadêmico de Alex Raymond. Os jornais americanos
– e do mundo – foram tomados por centenas de personagens maravilhosos, que atingiam
não apenas as crianças, mas uma grande parcela do público leitor adulto, neste período
conhecido como a Era de Ouro dos quadrinhos, tamanha a qualidade do material publicado.
As Histórias em Quadrinhos são um típico produto da indústria cultural. Por esta
via, tomando-se o Materialismo Histórico como método de análise, elas estariam
posicionadas no campo superestrutural, mero reflexo das condições materiais de produção
da sociedade. Em suma, seriam economicamente determinadas pela instância

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infraestrututural. De acordo com o conceito de indústria cultural utilizado pelos
frankfurtianos Adorno e Horkheimer – evidenciado no ensaio A Indústria Cultural: O
esclarecimento como mistificação das massas (ADORNO, HORKHEIMER, 1985: 113-
156) -, as HQs não possuem a menor possibilidade de autonomia ou de se contrapor aos
parâmetros vigentes da ideologia dominante. É neste ponto que a teoria proposta por
Raymond Williams traz notáveis e efetivos avanços à análise não só dos produtos culturais,
mas de toda a sociedade (WILLIAMS, 1979).
Num primeiro momento, o que Williams propõe é a substituição do modelo
marxista da determinação interestrutural, segundo o qual a superestrutura é sempre reflexo
da infraestrutura - o que aponta para um determinismo eminentemente econômico.
Entendendo a realidade material da infraestrutura como algo processual, dinâmico e
praticamente vivido (isto é, em constante transformação), Williams rejeita a idéia de “uma
‘área’ ou ‘categoria’ dotada de certas propriedades fixas para dedução dos processos
variáveis de ‘superestrutura’” (WILLIAMS, 1979: 86). Deste modo, considerar a cultura (e
toda a superestrutura) unicamente como reflexo de uma base (infraestrutura) tomada como
fixa (sendo na verdade dinâmica) seria um reducionismo grosseiro, uma caricatura. Em
última instância, a idéia de reflexo já não é suficiente para explicar os fenômenos culturais.
Ao tratar a cultura como experiência praticamente vivida e espaço contraditório de
construção da hegemonia, Williams cria um fluxo duplo onde antes só havia um sentido
unilateral. Se para os marxistas ortodoxos de então a superestrutura era sempre reflexo da
base, o que Williams coloca é a possibilidade de uma relativa autonomia da cultura (ela
própria uma condição material, já que prática concreta dos indivíduos e da sociedade), com
poder, inclusive, de interferir na realidade material da infraestrutura. É a substituição do
conceito de reflexo pelo de mediação.
Flash Gordon, por exemplo, foi uma série sempre criticada por suas questões de
representação étnica. Gordon, o herói invencível, é caucasiano, louro e possui olhos azuis.
Seu inimigo intergaláctico é Ming, o Impiedoso. Mesmo natural de um planeta distante,
Ming possui traços orientais, explicitamente alusivos a uma diferença étnica e cultural. Em
contrapartida a este caráter nitidamente conservador, foi em Flash Gordon que uma mulher,
pela primeira vez, usou mini-saia. Dale Arden, a namorada de Flash, rompeu assim com
padrões morais hegemônicos, estabelecendo uma nova possibilidade de representação

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feminina. As conseqüências da ousadia de Raymond e sua personagem reverberaram fora
das tiras em quadrinhos, tendo a mini-saia, anos depois, tornado-se peça usual do vestuário
das mulheres.
Outra amostra da possibilidade da instância superestrutural influenciar na base
material e econômica da sociedade aparece no mesmo Flash Gordon. Quando a tira foi
criada, a idéia do homem ganhar o espaço ainda se encontrava há anos de se efetivar.
Contudo, durante as décadas de pesquisa da NASA visando atingir a Lua, os desenhos das
naves interplanetárias elaborados por Alex Raymond (com propósito único de dar
verossimilhança estética à narrativa) serviram de modelo e referência para os engenheiros
da instituição.
Para Gramsci, há uma distinção básica entre domínio e hegemonia. Enquanto o
domínio é expresso em formas políticas que podem se valer da coação direta em tempos de
crise, a hegemonia abarca um espectro mais amplo, sendo realizada por meio de complexas
combinações de forças políticas, sociais e também culturais. Raymond Williams faz a
opção pelo conceito de hegemonia em detrimento do de ideologia – este, um sistema
relativamente formal e articulado de significados, valores e crenças que implicaria numa
“visão de classe”. A idéia de hegemonia, em Williams, não exclui os significados, valores e
crenças articulados da classe dominante, porém rejeita a proposição na qual a consciência
seria a eles reduzida. De fato, enxerga as relações de domínio e subordinação como
consciência prática não só da atividade política, econômica e social, mas de toda a
substância de identidade e relações vividas. Treinamentos ou pressões jamais são realmente
hegemônicos. Nas palavras de Williams, “A verdadeira condição da hegemonia é a auto-
identificação efetiva com as formas hegemônicas: uma socialização específica e
internalizada que deve ser positiva, mas que, se isso não for possível, terá como base um
reconhecimento (resignado) do inevitável e necessário” (WILLIAMS, 1979). Desta feita, as
Histórias em Quadrinhos são parte integrante do conjunto de práticas e expectativas acerca
da totalidade da vida que constituem a hegemonia, cumprindo papel na criação da
supracitada auto-identificação com as formas hegemônicas.
Em 1933, um evento aparentemente irrelevante pontuaria o início de uma completa
mudança no rumo das História em Quadrinhos americanas. Se até então elas eram
publicadas em tiras diárias (ou suplementos dominicais coloridos) nos jornais, o

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lançamento de Funnies on Parade, uma pequena revista dedicada exclusivamente às HQs,
anteveria uma profunda transformação no mercado editorial. Nos periódicos, os
personagens apareciam diariamente em tiras de três ou quatro quadros, obrigando os
leitores a voltarem no dia seguinte para acompanhar o desenrolar da trama – que durava
meses ou mesmo anos para se ver resolvida. Funnies on Parade (o primeiro comic book –
publicação equivalente ao gibi brasileiro – de que se tem notícia) causou alvoroço por
apresentar, numa única edição, uma história completa. Todavia, por possuírem capital e
sistema de distribuição infinitamente superiores ao das pequenas editoras de comics, os
grandes periódicos continuaram detendo a publicação dos mais prestigiosos autores de
quadrinhos da época. Com isso, restavam aos gibis os trabalhos de qualidade inferior que
seus limitados recursos podiam adquirir.
Em 1938, ainda sob os efeitos econômicos e morais da Grande Depressão, e na
iminência de uma guerra mundial que começava a tomar forma no horizonte, o lançamento
de um personagem (rejeitado anteriormente pelos jornais, dada a primariedade de texto e
arte) traria popularidade inimaginável aos comic books. Super-Homem, criado pelos
adolescentes judeus Jerry Siegel e Joe Schuster foi ao encontro dos anseios mais íntimos da
nação, tornando-se sucesso instantâneo e vendendo milhões de exemplares a cada edição.
Com o fenômeno, inicia-se o declínio da Era de Ouro dos quadrinhos publicados em
jornais, surgindo uma nova fase de produção na qual os autores ficam soterrados sob seus
personagens. Alex Raymond, Hal Foster e Milton Caniff eram célebres personalidades e
criadores respeitados por toda a sociedade americana. Mesmo no meio acadêmico e
intelectual, gozavam de grande prestígio, conforme podem atestar os textos de Umberto
Eco e Armand Mattelart. Em contrapartida, ao final da década de 30 e início da de 40,
ninguém sabia quem eram os autores por trás das aventuras de Batman ou Mulher
Maravilha.
O que se pode perceber na transição das tiras de jornais para os comic books é a
premência de fatores econômicos e sociais como catalisadores do processo. O mercado, e
mesmo a estética das histórias em quadrinhos, se transformaram em função das condições
materiais impostas pela realidade. Ao final da transição, tinha-se uma indústria que gerava
mais capital, autores solapados e sem poder de barganha com editores e a contínua
propagação de um pensamento dominante hegemônico. Esta situação, porém, não se opõe

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ao pensamento de Raymond Williams. Williams sempre afirmou que as condições sociais e
econômicas efetivamente atuam sobre a superestrutura. Contudo, elas não são as únicas
forças em jogo. Mais que isso, base e superestrutura não são instâncias fixas e separadas,
onde esta é reflexo daquela. São, em verdade, instâncias dinâmicas e indissolúveis, num
constante processo de troca de influências no sentido de construir a hegemonia. Deste
modo, mesmo que a figura do autor não fosse interessante para o mercado dos quadrinhos,
criadores como Jack Kirby conseguiram imprimir seu estilo e assinatura em trabalhos para
a indústria. Sua criação mais importante, o Capitão América, era utilizada pelas tropas
aliadas para elevar o moral dos soldados no front. Claramente, o personagem de Kirby
atuava em prol da hegemonia vigente.
Os super-heróis mascarados eram a força majoritária dos quadrinhos norte-
americanos. Centenas de gibis eram publicados mensalmente. Numa tentativa de reafirmar
os jornais como veículo adequado às HQs, um periódico encomendou um personagem a
Will Eisner. O formato de publicação seria diferente. Ao invés de tiras diárias, suplementos
semanais de sete páginas, contendo sempre uma história completa. Nascia The Spirit, uma
das obras mais emblemáticas da história dos quadrinhos. The Spirit era basicamente uma
trama policial, protagonizada por Denny Colt, detetive dado como morto. A ação, todavia,
servia apenas como pano de fundo para Eisner trabalhar, com infinita inventividade, os
dramas humanos típicos de uma cidade grande. Ora poético e sensível, ora seco e duro, ora
leve e bem-humorado, o autor criou inovações estilísticas e de linguagem que até hoje
acompanham as Histórias em Quadrinhos.
The Spirit foi criado num período em que os quadrinhos se pretendiam apenas como
indústria. Prova disso é o fato do jornal, visando concorrer com os comic books, ter
encomendado um super-herói a Eisner – que resistiu a concebê-lo em fantasias colantes,
mas não conseguiu evitar uma máscara sobre os olhos, exigência dos editores. Ainda assim,
o desenhista atingiu elevados níveis de qualidade artística e, principalmente, uma
autonomia pouco vista no meio (algo impensável caso o modelo de infraestrutura
determinante e superestrutura determinada for utilizado como método de análise). Neste
sentido, a HQ de Eisner mostra-se um momento de cultura emergente, na concepção que
Williams faz do termo.

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Em Marxismo e Literatura (WILLIAMS, 1979), Raymond Williams problematiza a
questão de que mesmo as iniciativas notadamente alternativas ou oposicionais estão, na
grande maioria das vezes, ligadas ao hegemônico. Segundo suas palavras, “a cultura
dominante produz e limita, ao mesmo tempo, suas próprias formas de contracultura”
(WILLIAMS, 1979: 117). Todavia, alerta sobre a importância daquelas obras e idéias que,
ainda que afetadas pelos limites e pressões da hegemonia, conseguem (ao menos
parcialmente) se constituir como rompimentos significativos, mesmo passíveis de ser
(também parcialmente) neutralizados, reduzidos ou incorporados. Assim o é The Spirit - e
toda a obra de Eisner desde então, visto que continua em atividade, tendo nas décadas
seguintes provocado mais uma ou duas revoluções no ramo das Histórias em Quadrinhos.
Com o final da guerra, decresce o interesse pelos quadrinhos de super-heróis. Os
leitores procuram cada vez mais histórias que remetam a temas familiares. O medo da
bomba atômica, entretanto, persiste. E por mais que o pensamento hegemônico tente negá-
lo ou obscurecê-lo, ele irá se manifestar difusamente nos quadrinhos de crime, ficção
científica e terror que tomaram a América do Norte na década de 50.
A editora EC Comics foi a principal difusora desta nova onda de HQs. A maioria
absoluta das histórias eram escritas por Al Feldstein e pelo proprietário da empresa, Will
Gaines (filho do criador de Funnies on Parade). Os episódios, sempre curtos e com
desfecho inusitado, primavam tanto pela criatividade quanto pelo bizarro. A arte ficava a
cargo dos maiores desenhistas da época, nomes como Wallace Wood, Red Crandall, Jack
Davis, Al Williamson, Frank Frazetta e Bernie Krigstein. A combinação de roteiros bem
escritos, arte impecável e temáticas agressivas e insólitas, resultaram em estrondoso
sucesso de vendas. Para além disso, o gênero das histórias em quadrinhos retomava sua
trilha para uma possível e provável maturidade artística, abandonada com a explosão dos
super-heróis.
Nos anos 50, a Guerra Fria era uma questão hegemônica na sociedade norte-
americana. Williams é enfático ao descartar o conceito de hegemonia como uma totalização
abstrata, estática e uniforme. Pelo contrário, ela é um sistema vivido de significados e
valores – constitutivo e constituidor – que, aos serem experimentados praticamente,
parecem se confirmar, criando um senso de realidade absoluta para a maioria da sociedade.
Sendo vivida, a hegemonia é sempre um processo (um complexo de experiências, relações

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e atividades, com pressões e limites específicos e mutáveis) e não uma estrutura fixa e
imóvel. Enfim, um conceito que inclui e ultrapassa os conceitos de cultura e ideologia. As
Histórias em Quadrinhos, portanto, fazem parte do processo de construção da hegemonia.
Num período marcado não só pela Guerra Fria, mas também pela “caça às bruxas”
promovida pelo Senador Joseph McCarthy - e a onda conservadora que dela se seguiu -, os
quadrinhos explicitamente contra-hegemônicos da EC Comics começaram a ser olhados
com forte suspeita. Afinal, nenhuma hegemonia é total ou exclusiva. Porém, para manter
sua condição, está sempre alerta a todas as alternativas contra-hegemônicas que possam lhe
ameaçar.
Fiel ao macartismo, o Dr. Fredric Wertham, importante psiquiatra norte-americano,
lança o livro Seduction of the Innocent (1954) onde, entre outras coisas, insinua a existência
de relações homossexuais entre Batman e Robin, e culpa as Histórias em Quadrinhos por
toda a delinqüência juvenil dos Estados Unidos. Deflagra-se então uma intensa campanha
anti-quadrinhos, com diversos autores e editores sendo chamados a depor nos Comitês de
Assuntos Anti-Americanos. As publicações de terror, ficção científica e crime são as mais
penalizadas no processo. Uma das propagandas veiculadas na época – presente no filme de
1989, Comic Book Confidential (MANN, 2003) - possuía o seguinte texto:
“Eu fazia muita coisa com os amigos, quando criança. Assava batatas,
passeava, derrubava latas de lixo, escrevia maldades na calçada sobre os
professores. Nunca passava uma tarde assim, lendo. Seria ótimo se eles
estivessem lendo algo bom, algo que os estimulasse a construir e crescer. Mas
eles estão lendo histórias devotadas ao adultério, à perversão sexual, ao horror,
aos crimes mais desprezíveis. Um dos traços maravilhosos das crianças é que
elas ainda não sabem separar realidade e fantasia. O impacto emocional do que
lêem numa revista pode ser igual ao de assistir à cena ao vivo. Quadrinhos de
horror e crime perturbam as crianças. Não falo de uma distorção sutil do estado
emocional, embora também façam isso. Há um efeito mais imediato. A tensão
aumenta junto com o horror e o garoto chega ao fim da leitura uma pilha de
nervos.”
As imagens que acompanhavam este texto eram de um grupo de garotos reunidos
num bosque para ler gibis de horror. À medida que a narrativa avança, um deles abre seu
canivete e começa a estocá-lo numa árvore, enquanto outro, munido de olhares
ameaçadores, golpeia seguidamente o solo com uma pedra. O filme termina com o
apresentador entrevistando um garoto que afirma vomitar sempre que lê uma revista de
quadrinhos.

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O resultado desta intensa perseguição aos comic books foi a criação de um Código
de Ética (Comics Code), elaborado pelas próprias editoras. Nele, uma série de restrições à
forma e ao conteúdo ficava prevista. Foram expressamente proibidas cenas ou alusões a
sexo, sangue ou drogas. As palavras horror, crime e terror não poderiam aparecer nas capas
das revistas. O herói, obrigatoriamente, deveria triunfar no final. E as histórias tinham
sempre que deixar uma lição de moral. Obviamente, o custo disso para as HQs norte-
americanas foi muito alto. Profundamente infantilizadas, não puderam realizar sua
aspiração de se tornar uma linguagem artística relevante e autônoma. Para a EC Comics foi
ainda pior: quase todos os seus títulos foram cancelados. Todavia, um dos títulos restantes,
por não tratar de terror ou crimes, conseguiu permanecer circulando com altas tiragens e,
sobretudo, situar-se no campo contra-hegemônico.
Mad, idealizada por Harvey Kurtzman, era uma revista de humor anárquico como
nunca se havia visto. A sátira ácida e impiedosa e a crítica de costumes eram seus
ingredientes fundamentais. Valendo-se do direito legal à paródia, Mad não poupou
ninguém. Em suas páginas foram satirizados astros de Hollywood, estrelas da música,
personagens dos quadrinhos, políticos e a própria revista. Mesmo o Senador McCarthy foi
alvo de seu humor histriônico.
Entretanto, Mad era uma única revista no universo dos quadrinhos. No início dos
anos 60, aproveitando o vácuo deixado pelos títulos da EC Comics, surge um novo
interesse pelos super-heróis. Capitaneada por Stan Lee e Jack Kirby, a Marvel Comics,
mesmo obedecendo ao Código de Ética, promove uma importante revisão do gênero. Numa
década repleta de transformações sociais e culturais, seu empreendimento consistiu em
buscar no passado os arquétipos que são os super-heróis e reambientá-los num presente
caótico e conflituoso. Assim, o que se via nos quadrinhos Marvel era um Homem-Aranha
que enfrentava vilões durante a noite, era considerado fora-da-lei pela polícia e não tinha
dinheiro para pagar o aluguel na manhã seguinte; um Capitão América que se questionava
sobre os valores norte-americanos; um grupo de mutantes (os X-Men), que mesmo salvando
o mundo continuamente, era rejeitado pela sociedade por razões étnicas.
A sagacidade de Lee e Kirby em lidar com questões contemporâneas e humanizar os
personagens, sem romper padrões hegemônicos, atraiu uma nova geração de leitores para
os comic books. Seu trabalho é um esclarecedor exemplo do processo de tradição seletiva.

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Se os quadrinhos se apresentavam cada vez mais esgotados após a instauração do Comics
Code, a solução encontrada foi buscar no passado das HQs elementos que não só se
ligassem ao presente, mas que o ratificassem, incorporando o contra-hegemônico (aqui
representado pelo constante estado de conflito vivido pelos personagens).Ao invés de
arcaicos, os super-heróis Marvel eram residuais.
Pela definição de Raymond Williams, o residual, ainda que formado no passado,
permanece ativo no processo cultural, não apenas como elemento deste mesmo passado,
mas principalmente como elemento efetivo do presente. Já o arcaico é um elemento do
passado a ser observado, analisado ou revivido de forma especializante. Enquanto os
personagens da editora rival DC Comics (Super-Homem e Batman, por exemplo)
permaneciam trabalhados sob os mesmos moldes arcaicos da década de 30 (e portanto sem
pertinência nos agitados anos 60), o novo padrão estabelecido pela Marvel acabou por se
consolidar como hegemônico no campo das Histórias em Quadrinhos. Todo o quadrinho de
super-herói feito posteriormente teve que usá-lo como referência.
Contudo, mesmo com as transformações perpetradas por Stan Lee e Jack Kirby, os
quadrinhos Marvel continuavam situados no espectro hegemônico, não conseguindo
abarcar as profundas mudanças sociais e culturais contra-hegemônicas colocadas naquele
período histórico. Sintonizada neste espírito, uma nova geração de quadrinistas começou a
surgir, interessada prioritariamente nas possibilidades estéticas, políticas e culturais da
linguagem das HQs. Havia, nesta geração, a vontade de se colocar como sujeitos ativos e
participantes do processo histórico em curso, bem como retomar o projeto de conquista de
uma maturidade artística para os comics americanos. E ao passo em que o residual utilizado
na tradição seletiva feita pela Marvel Comics eram os arquetípicos super-heróis dos anos 30
e 40, os underground comix recuperavam e reinterpretavam os quadrinhos dos jornais do
início do século, as HQs de terror, crime e ficção científica dos anos e 50 e o humor
escrachado de Mad.
Os quadrinhos underground refutavam o Código de Ética e as grandes editoras,
optando por uma completa independência e buscando as máximas autonomia e liberdade
criativas. Seu campo de atuação era, portanto, absolutamente contra-hegemônico. Uma das
características marcantes deste movimento foi o constante diálogo com outras formas de
expressão do efervescente processo cultural que existia no período. As HQs abordavam

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abertamente temas polêmicos, como a tríade sexo, drogas e rock’n’roll. Suas edições eram
bancadas pelos próprios autores em limitadas tiragens, usualmente vendidas de mão em
mão ou em alternativos esquemas de distribuição, tais como lojas de discos e cartazes.
Oblíquos às instituições, os uderground comix eram um movimento efetivo na vida
intelectual e artística, com decisiva influência no desenvolvimento ativo da cultura da
época. Logo, para Williams, eles se constituíam uma formação, cujo produto seria uma
cultura emergente (já que criavam continuamente novos valores, práticas e significados,
valendo-se de um residual em relação claramente antagônica à cultura dominante).
Robert Crumb foi o mais importante autor underground, responsável pelo primeiro
gibi independente da história, a Zap Comix (com “x”, para se diferenciar dos comics
correntes). Antológico entre suas várias criações é o gato Fritz, possuidor tanto de um
visual que remete ao infantil universo Disney, quanto de uma trajetória emblemática: de
universitário boçal passou a hippie decadente para, em seguida, tornar-se um abjeto astro da
mídia. Mesmo publicado exclusivamente em edições independentes, Fritz foi um sucesso
inesperado e acabou por ganhar as telas no primeiro longa-metragem de animação adulta
produzido. Dirigido por Ralph Bakshi, o filme agradou público e crítica. Crumb, porém,
entendeu que sua criação havia se tornado “hegemônica” demais e resolveu dar um fim a
Fritz numa história em que o gato é assassinado, com um picador de gelo, por uma avestruz
rejeitada.
Victor Moscoso, Rick Griffin, Gilbert Shelton e Robert Williams foram outros
notáveis participantes dos underground comix. Temáticas políticas, femininas e raciais,
tratadas sob enfoque adulto, eram assuntos recorrentes. Contudo, Air Pirates, de Dan
O’Neill, merece destaque. A paródia em que os camundongos Mickey e Minnie têm
tórridas relações sexuais e assumem a paternidade de seus conhecidos sobrinhos, causou
sensação junto aos leitores e irritou a Disney. O processo judicial perpetrado pela empresa
contra o autor durou 13 anos. Mais que isso, o fato mostra que, na impossibilidade de se
incorporar um fenômeno emergente contra-hegemônico, a hegemonia se vale de formas as
mais contundentes para anulá-lo. Conforme Williams sublinha, “a cultura dominante não
pode permitir demasiada experiência e práticas residuais fora de si mesma, pelo menos sem
um risco” (WILLIAMS, 1979: 126).

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Os quadrinhos underground contra-hegemônicos permaneceram à margem das
grandes corporações editoriais. Ainda assim, mesmo não movimentando grandes volumes
de capital, influenciaram uma série de novos trabalhos, nos subseqüentes anos 70 e 80. Isto,
mais uma vez, reafirma a inadequação do esquemático modelo da superestrutura como
reflexo da infraestrutura para a explicação dos fenômenos culturais. Pelo contrário, as HQs
de Crumb, Griffin e tantos outros são uma prova da autonomia que – mesmo relativa – é
possível na esfera superestrutural.
Na década de 80, quadrinhos sobre experiências pessoais, realistas e cotidianas
ganham força e se elevam a novos patamares criativos. Mesmo sem atingir os números da
grande indústria, os trabalhos de autores como Harvey Pekar, Linda Barry e os irmãos
Hernandez conquistam o respeito dos setores mais intelectualizados da sociedade. Art
Spiegelman ganha o Prêmio Pulitzer com Maus, sua íntima visão dos campos de
concentração nazistas. Daí nasceria uma nova e importante mudança no ramo dos super-
heróis.
Dado que a função hegemônica decisiva é controlar, transformar ou incorporar as
alternativas ou oposições contra-hegemônicas, as grandes editoras (especialmente a DC
Comics) passaram a incorporar características comuns dos quadrinhos independentes. Duas
obras são laminares neste processo, uma vez que conseguiram considerável grau de
autonomia: Batman, o Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller e Watchmen, de Alan Moore.
Notáveis nos aspectos gráfico e narrativo, as duas séries incorporavam o enfoque intimista,
pessoal e realista das HQs alternativas. A questão levantada de “como seria o mundo se os
super-heróis realmente existissem?” passou a ser recorrente nas tramas super-heroísticas
que vieram em seguida (tal como o pretensamente humanizado Super-Homem, de John
Byrne). Conforme Raymond Williams, ainda que o fato da prática cultural emergente seja
inegável, há uma constante confusão com os fac-símiles e novidades da fase incorporada.
A década de 90 se mostrou particularmente complicada para os super-heróis.
Vitimizados por uma verticalização da indústria do entretenimento, os autores ficaram cada
vez mais limitados na construção das histórias de personagens que se converteram em
franquias cinematográficas ou brinquedos nas prateleiras das megastores. Quadrinistas
como Frank Miller e Alan Moore migraram para editoras menores, buscando realizar

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projetos mais autorais. Em contrapartida, mais do que nunca novos autores têm publicado
seus próprios quadrinhos, repletos de liberdade e experimentação.
Em seus pouco mais de cem anos, as Histórias em Quadrinhos dos Estados Unidos
se mostraram mais do que o mero reflexo das forças produtivas e relações de produção
daquela sociedade. Mostraram-se, sim, espaço de luta na construção da hegemonia. Pois
como enfaticamente afirma Raymond Williams, “nenhum modo de produção e portanto
nenhuma ordem social dominante e portanto nenhuma cultura dominante, nunca, na
realidade, inclui ou esgota toda a prática humana, toda a energia humana e toda a
intenção humana.” (WILLIAMS, 1979: 128, grifo do autor)

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