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A Atualidade Revolucionária Do Conceito "Apoio Mútuo" de Piotr Kropotkin - Autonomia Literária
A Atualidade Revolucionária Do Conceito "Apoio Mútuo" de Piotr Kropotkin - Autonomia Literária
(https://autonomialiteraria.com.br/)
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B USC A R
No final do século XVII, um homem público hurão* chamado Kondiaronk, que visitou
a Europa e estava bem familiarizado com a sociedade colonizadora francesa e
inglesa, envolveu-se em uma série de debates com o governador francês do
Quebec, e um de seus principais assessores, um cara chamado Lahontan. Nesses
debates, ele apresentou o argumento de que as punições e todo o aparelho estatal
não existiam por causa de alguma falha fundamental na natureza humana, mas
devido à existência de um outro grupo de instituições – propriedade privada,
dinheiro – que por sua própria natureza fazem as pessoas agir de modo que
medidas coercitivas sejam necessárias. A igualdade, ele argumentava, é portanto
uma condição para qualquer liberdade significativa.
Mais tarde, Lahontan registrou os debates num livro, que nas primeiras décadas do
século XVIII ficou incrivelmente famoso. Virou uma peça que ficou em cartaz por
vinte anos em Paris, e parece ter sido muito imitado pelos iluministas. Esses
argumentos – e a crítica indígena mais ampla à sociedade francesa – ficaram tão
poderosos que defensores da ordem social vigente, como Turgot e Adam Smith,
efetivamente tiveram que inventar a ideia de evolução social como uma resposta
direta a eles. As pessoas que inventaram esse argumento – de que as sociedades
humanas se dividiam em diferentes estágios de desenvolvimento, cada um com
características tecnológicas e formas organizativas próprias – eram bem sinceras
quanto a suas intenções. “Todo mundo ama a liberdade e a igualdade”, observou
Turgot; a questão é quanto de cada uma é consistente com uma sociedade
comercial avançada baseada em uma divisão sofisticada de trabalho. As teorias de
evolução social resultantes dominaram o século XIX, e ainda estão conosco hoje,
ainda que um pouco diferentes.
No final do século XIX e começo do XX, a crítica anarquista ao Estado liberal – de que
o domínio da lei em última instância se baseava na violência arbitrária, sendo assim,
enfim, apenas uma versão secularizada do Deus todo-poderoso que pode criar a
moralidade porque está fora dela – foi levada tão a sério por defensores do Estado
que juristas de direita como Carl Schmitt acabaram tendo que criar a estrutura
intelectual do fascismo. Schmitt termina sua obra mais famosa, Teologia Política,
com um discurso contra Mikhail Bakunin, cuja rejeição do “decisionismo” – a
autoridade arbitrária de criar uma ordem legal, e portanto de também suspendê-la –
era, dizia Schmitt, tão arbitrária quanto a autoridade à qual Bakunin dizia se opor. A
própria concepção de teologia política, fundamental para quase todo pensamento
contemporâneo de direita, foi uma tentativa de responder a Deus e o Estado, de
Bakunin.
O desafio colocado por Piotr Kropotkin em Apoio Mútuo: Um Fator de Evolução vai,
em certo sentido, ainda mais afundo, uma vez que não se trata apenas da natureza
do governo, mas da natureza da própria natureza – isto é, da realidade.
Ainda assim, devemos dar crédito a Kropotkin. Ele era muito mais que um mero
companheiro de viagem. Esses homens foram completamente ignorados por
darwinistas ingleses do alto de seu império – foram ignorados, de fato, por quase
todo o resto do mundo. O tiro de aviso de Kropotkin, no entanto, não foi. Isso sem
dúvida ocorreu em parte porque suas descobertas científicas foram apresentadas
num contexto político mais amplo, de modo que se tornou impossível negar o
quanto a versão prevalecente da ciência darwinista não era apenas um reflexo
inconsciente de pressupostos liberais (como Karl Marx notoriamente escreveu, “a
anatomia do homem é a chave para a anatomia do símio”). Era uma tentativa de
catapultar as perspectivas das classes comerciais à universalidade.
Não é difícil ver o que deixou a intelectualidade liberal tão desconcertada. Considere
o seguinte trecho de Apoio Mútuo, que realmente merece ser citado por completo:
Ideias riquíssimas de Apoio Mútuo foram no melhor dos casos ignoradas e, no pior
dos casos, descartadas com um muxoxo condescendente. Há uma tendência tão
persistente entre acadêmicos marxistas e, por extensão, acadêmicos de esquerda
em geral, a ridicularizar o “socialismo salva-vidas” e o “utopismo ingênuo” de
Kropotkin, que um renomado biólogo, Stephen Jay Gould, achou necessário dizer,
em um famoso ensaio, que “Kropotkin não era nenhum palhaço”.
Há duas explicações possíveis para essa rejeição estratégica. Uma delas é puro
sectarismo. Como já notamos, as intervenções intelectuais de Kropotkin eram parte
de um projeto político mais amplo. Foi no final do século XIX e começo do XX que
surgiram as fundações do Estado de bem-estar social, cujas instituições-chave
foram, de fato, em grande parte criadas por grupos de ajuda mútua, de forma
totalmente independente do Estado. Este, junto a partidos políticos, gradualmente
as cooptaram. A maior parte da intelectualidade de direita e de esquerda estava
perfeitamente alinhada quanto a isso: Bismarck admitiu que criou as instituições
alemãs de bem-estar social como um “suborno” à classe trabalhadora, para que não
se tornasse socialista; socialistas insistiam que nada, nem a seguridade social nem as
bibliotecas públicas, fossem administradas pelos grupos sindicalistas e comunitários
que as criaram, mas sim por partidos de vanguarda, de cima para baixo. Nesse
contexto, ambos os lados consideraram imperativo representar o socialismo ético de
Kropotkin como bobagem.
Vale também lembrar que – parcialmente por esta mesma razão – no período entre
1900 e 1917, ideias anarquistas e marxistas libertárias eram muito mais populares na
classe trabalhadora que o marxismo de Lenin e de Kautsky. Para abafar esses
debates, foi preciso que o setor leninista do partido bolchevique na Rússia (naquela
época, considerado a direita dos bolcheviques) vencesse e suprimisse os sovietes, o
Proletkult, e outras iniciativas dentro da própria União Soviética organizadas de baixo
para cima.
Há outra explicação possível, contudo, uma que tem mais a ver com o que
podemos chamar de a “posicionalidade” tanto do marxismo tradicional quanto da
teoria social contemporânea. Qual é o papel do intelectual radical? A maioria dos
intelectuais ainda se dizem radicais de um tipo ou de outro. Em teoria, todos
concordam com Marx que não basta compreender o mundo; a questão é mudá-lo.
Mas o que isso significa na prática?
Um dos autores deste texto ainda lembra sua alegria juvenil ao ler essas palavras.
Quão diferente do treinamento sem vida recebido na academia do Estado-nação!
Essa recomendação deveria ser lida junto àquela de Karl Marx, que se dedicou a
entender a organização e o desenvolvimento da produção capitalista. N’O Capital, a
única atenção verdadeira dada à cooperação é um exame das atividades
cooperativas como formas e consequências da produção fabril, onde trabalhadores
“formam meramente um modo particular de existência de capital”. Parece-me que
os dois projetos se complementam muito bem. Kropotkin queria entender
exatamente o que foi que um trabalhador alienado perdeu com sua alienação.
Porém, integrar os dois leva a entender que até mesmo o capitalismo se baseia no
comunismo (“apoio mútuo”), ainda que seja um comunismo que ele não admita;
que o comunismo não é um ideal distante e abstrato, impossível de ser mantido,
mas uma realidade prática que todos vivenciam diariamente, em diferentes graus, e
sem a qual nem mesmo indústrias poderiam funcionar – mesmo que grande parte
desse comunismo aconteça às escondidas, entre as fraturas, ou entre turnos, ou
informalmente, ou naquilo que não é dito, ou de forma completamente subversiva.
Virou moda hoje em dia dizer que o capitalismo entrou em uma nova fase em que
ele se tornou parasitário de formas de cooperação criativa, principalmente na
internet. Isso é besteira. Ele sempre foi assim.
Esse é um projeto intelectual digno. Por alguma razão, quase ninguém está
interessado em desenvolvê-lo. Em vez de examinar como relações de hierarquia ou
exploração são reproduzidas, negadas, e misturadas a relações de apoio mútuo,
como relações de cuidado se tornam contínuas com relações de violência, sendo
mesmo assim essenciais para que sistemas de violência não se desmantelem por
completo, tanto o marxismo tradicional quanto a teoria social contemporânea
teimosamente rejeitam basicamente qualquer generosidade, cooperação ou
altruísmo, como se fossem algum tipo de ilusão burguesa. O conflito e o cálculo
egoísta se provaram mais interessantes que a “união” (além disso, é bem comum
que acadêmicos de esquerda escrevam sobre Carl Schmitt ou Turgot, embora é
quase impossível encontrar quem escreva sobre Bakunin ou Kondiaronk). Como se
queixava o próprio Marx, sob o modo capitalista de produção, existir é acumular.
Nas últimas décadas, ouvimos quase nada além de exortações incessantes quanto a
táticas cínicas para aumentar nosso respectivo capital (social, cultural ou material).
Tais exortações são publicadas como se fossem observações críticas. Mas se tudo
que você tem a dizer é aquilo ao que diz se opor, se tudo que você consegue
imaginar é aquilo ao que diz se opor, então em que sentido você realmente se opõe
a isso? Às vezes parece que a esquerda acadêmica acabou, como resultado disso,
gradualmente internalizando e reproduzindo todos os aspectos mais incômodos do
economismo neoliberal ao qual ela diz se opor. Chega a um ponto em que ler tantas
análises (vamos ser gentis e não dar nomes aos bois) faz você se perguntar quão
diferente isso realmente é das hipóteses sociobiológicas de que nosso
comportamento é governado por “genes egoístas”!
É verdade que esse tipo de internalização do inimigo já passou de seu ápice, nos
anos 80 e 90, quando a esquerda global estava em franca retirada. Deixamos isso
para trás. Kropotkin é relevante de novo? Bem, é claro, Kropotkin sempre foi
relevante, mas esse livro está sendo relançado na convicção de que há uma nova
geração radicalizada, com muita gente que nunca foi exposta diretamente a essas
ideias, mas que dá todos os sinais de ser capaz de fazer uma análise melhor sobre a
situação global que seus pais ou avós, no mínimo porque sabem que, se não o
fizerem, o mundo se tornará um inferno muito em breve.
Quando Apoio Mútuo foi lançado pela primeira vez em 1902, havia poucos cientistas
corajosos o suficiente para desafiar a ideia de que o capitalismo e o nacionalismo
estavam enraizados na natureza humana, ou de que a autoridade dos Estados era
em última instância inviolável. A maioria daqueles que o faziam eram de fato
desacreditados como malucos ou, se eram obviamente muito importantes para
serem ignorados dessa maneira, como Albert Einstein, “excêntricos” cujas visões
políticas tinham tanta significância quanto seus penteados esquisitos. O resto do
mundo, no entanto, está virando a página. Será que cientistas – até mesmo, quem
sabe, cientistas sociais – vão fazer isso também algum dia?
Escrevemos essa introdução durante uma onda de revolta popular global contra o
racismo e a violência do Estado, enquanto autoridades públicas cospem veneno
contra “anarquistas” quase da mesma forma como faziam no tempo de Kropotkin.
Parece um momento peculiarmente propício para brindar ao velho “desprezador da
lei e da propriedade privada” que mudou o rosto da ciência de formas que
continuam a nos afetar hoje. A obra acadêmica de Pyotr Kropotkin era cuidadosa e
colorida, perspicaz e revolucionária. Ela também envelheceu estranhamente bem.
Kropotkin rejeitava tanto o capitalismo quanto o socialismo burocrático, e previa
aonde o último levaria; várias vezes vimos que ele estava certo. Olhando para a
maioria dos debates de sua época, não há nenhuma dúvida sobre quem estava
certo.
Neynaldo
10 De S etembro De 2021 Em 21:03 (Https://Autonomialiteraria.Com.Br/A-Atualidade-Revolucionaria-
Do-Conceito-Apoio-Mutuo-De-Piotr-Kropotkin/#Comment-97550)
Muito bom..