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Essa luz
Os filósofos do século XVIII só concordavam em um único ponto: podiam discordar, publicamente, usando a razão
Rodrigo Elias
1/5/2014
A palavra “Iluminismo” não existia no século XVIII. Nas línguas ibéricas, só apareceu no século
seguinte, e a primeira ocorrência em um dicionário na língua portuguesa é de 1836. Difícil acreditar, John Locke / Biblioteca Nacional da França
já de saída, que o século XVIII tenha apresentado um conjunto coeso de ideias, ou uma ideologia
unitária que possamos classificar com o sufixo “ismo”.
É fato, entretanto, que letrados europeus da primeira metade daquele século utilizavam metáforas
que remetiam à luz da sabedoria em contraposição às trevas da ignorância e, em alguns casos, do
despotismo. Esta fórmula, entretanto, não era nova – e também podia ser, em certa medida, uma
transposição do processo religioso bem versus mal presente nas tradições cristãs. Esta dualidade
está na própria raiz do Renascimento moderno, entre os séculos XV e XVI, sobretudo em sua crítica
à Europa da Idade Média ou “Idade das Trevas”. Luz, luzes, ideias luminosas, esclarecimento eram
metáforas que os philosophes (como se autodenominavam)utilizavam para caracterizar seu
programa – que incorporava, mais do que ideias fixas, uma nova atitude em relação ao
conhecimento. Esta atitude está relacionada com o que conhecemos por razão científica.
John Locke / Biblioteca Nacional da França
O livro-manifesto desta nova atitude é O experimentador, publicado por Galileu Galilei em 1623.
Este livro, manifesto fundador da ciência moderna, foi inspirado no trabalho do português Estevão
Rodrigues de Castro, professor de medicina na Itália, formado em Coimbra em 1588. O livro se chama De meteoris microcosmi (“Microcosmo dos meteoros”)
e foi publicado em Florença em 1621. Rodrigues de Castro, dois anos antes de Galileu, reafirmava princípios supostamente sepultados pela autoridade
científica acadêmica e religiosa da sua época. O experimentador, por sua vez, escrito de maneira polêmica e opondo-se diretamente ao conhecimento
oficial, lançado com uma estratégia de publicidade que incluía o apoio do próprio papa, que aprovou o livro publicamente sem tê-lo lido, teve enorme
impacto.
Segundo o filósofo alemão Ernest Cassirer, o século XVIII vai na mesma direção deste manifesto e rejeita
Leia também terminantemente aquela filosofia do conhecimento (ou epistemologia) confrontada por Galileu no século XVII: a
dedução a partir de um princípio incontestável, capaz de ser sustentado unicamente pela tradição. A filosofiada
Dossiê Iluminismo época, ao contrário, adotaria um método essencialmente diverso: a análise (ou crítica). Os philosophes tomam
como modelo a física de Isaac Newton, exposto em sua obra Princípios matemáticos da Filosofia Natural, de
Kant e as armadilhas do tempo 1687. De acordo com o físico inglês, os próprios fenômenos da natureza, aos quais o homem é sensível, são os
dados. A partir de sua observação e análise, chega-se aos princípios – e não ao contrário, como determinava a
Luzes, mas só para a elite
tradição.
O historiador alemão Reinhart Koselleck, autor de Crítica e crise (1959), também remonta o problema ao século
XVII, no qual esta transformação no método do conhecimento se relaciona com as discussões sobre a vida
pública. Para ele, a questão é indissociável da constituição do Estado absolutista em meio às guerras religiosas. A guerra civil na Inglaterra (1642-1651)
impediu momentaneamente, segundo ele, a formação do Estado moderno. Mas acabou sendo o motivo do erguimento do Absolutismo, contra o qual, no
século seguinte, se formaria esta crítica que chamamos de Esclarecimento.
Acompanhando a consolidação da nova ordem monárquica do final do século XVII, e as teses de pensadores como Thomas Hobbes (1588-1679), Koselleck
observa o apaziguamento das forças internas. De um lado, foi estabelecida uma esfera política, própria do rei, destituída do julgamento sobre o que é certo
ou errado (ou seja, uma moral), e que obedece unicamente à razão de Estado. De outra, uma esfera privada, que pode ser moral, na qual os filósofos estão
livres (embora confinados) para exercer a razão propriamente dita, isto é, o pensamento crítico sistemático.
Assim, no período em que os conflitos religiosos se generalizaram, alguns letrados observaram que a liberdade de consciência – e de crítica – era
incompatível com a paz: a discordância pública sobre o que era certo ou errado levaria à guerra. Deste modo passaria a existir uma nítida divisão entre o
mundo exterior, político, no qual só quem fala é o monarca, e o mundo interior, em que o indivíduo esconde a sua consciência. É justamente aí, no espaço
secreto da consciência, que vai se desenvolver o Esclarecimento.
O processo do Esclarecimento é a projeção para o mundo público desta nova racionalidade. Isso terá um impacto ainda maior na medida em que o século
XVIII vai conhecer uma inédita expansão da alfabetização e um significativo barateamento da produção de textos. Um autor que simboliza esta transposição
de atitude de um mundo privado e científico para um mundo público e político é outro inglês, John Locke, através do seu Ensaio sobre o entendimento
humano, de 1690. Para ele, a capacidade individual de formar juízo existe independente da vontade do soberano, independente da autorização estatal, e
extrapola a consciência individual. A sociedade se submete às suas próprias leis morais, que têm a mesma importância das leis civis (criadas pelo governo).
Forma-se, paulatinamente, a chamada “opinião pública”, capaz de definir o que é uma ação virtuosa – que deve ser encorajada; e uma ação viciosa – que é
objeto de censura.
A razão, materializada no infinito processo de crítica, legitima a si própria. É este o mundo dos letrados do início do século XVIII, no qual as ideias são
evidentemente conflitantes. Mas a atitude de discutir publicamente, por escrito, sobre todos os assuntos se tornaria a regra da atividade intelectual nos
países que conheceram o Esclarecimento (daí a impropriedade de um “absolutismo esclarecido”).
É justamente no domínio letrado dos anos posteriores a 1750 que se estabelece uma postura de
aberto antagonismo em relação à esfera política. A Enciclopédia, que começou a ser publicada em
1751, sofreu perseguições do Estado francês em 1752 e 1759. Voltaire teve todos os seus escritos
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22/03/2021 Essa luz - Revista de História
Gravura da época da Revolução Francesa critica
http://rhbn.com.br/secao/capa/essa-luz
os poderes tradiconais / Biblioteca Nacional da
proibidos, e viajava de um lado para o outro fugindo das autoridades.
Go MAY A postura
NOV DEC crítica, que
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os dualismos no processo do conhecimento (o certo x o errado; o verdadeiro x o falso), colocará ❎
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França paulatinamente o próprio exercício da razão como uma prática incompatível
29 com a política f 🐦
28 May 2014 - 29 Nov 2016 2014 2016 2017 ▾ About this capture
tradicional.
Se há uma novidade filosófica neste princípio – que norteia a organização da obra – é a sua adoção
como programa em todas as áreas do conhecimento. Da física à teologia, passando ao mundo da
política. Esta atitude representaria não a enunciação de uma verdade universal no sentido
tradicional, o que seria incongruente com o próprio clima intelectual do Esclarecimento, mas uma
constatação sobre a impossibilidade de conhecer o mundo sem experimentá-lo.
Saiba mais:
D’ALEMBERT, Jean le Rond & DIDEROT, Denis. “Discurso preliminar”. In: Enciclopédia ou Dicionário racionado das ciências, das artes e dos ofícios por uma
sociedade de letrados. São Paulo: Unesp, 1989.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Eduerj/ Contraponto, 1999.
REDONDI, Pietro. Galileu herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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