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NATÁLIA DE CAMPOS
NATAL - RN
2019
NATÁLIA DE CAMPOS
NATAL - RN
2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Prof. Carlos Guilherme Octaviano do Valle – Orientador
__________________________________________________________________
Prof. Martinho Braga Batista Silva – Examinador Externo
___________________________________________________________________
Prof. Frederico Policarpo Mendonça Filho – Examinador Externo
__________________________________________________________________
Prof.ª. Rozeli Maria Porto – Examinadora Interna
_________________________________________________________________
Prof.ª Angela Mercedes Facundo Navia – Examinadora interna
NATAL – RN
2019
À Pedro Américo, Ana Patrícia Fernandes, Marina Carvalho e todas as outras crianças que
motivam e dão sentido à esta mobilização.
À Liga Canábica, pelo acolhimento e generosidade.
À ABRACE, pela disponibilidade.
À Leilane Assunção (in memoriam), por ter me ensinado tanto.
AGRADECIMENTOS
Conduzido a partir daqueles que são diretamente afetados pela condição de ilegalidade da
maconha e do seu uso terapêutico, este trabalho busca situar e refletir sobre as articulações
coletivas e os caminhos encontrados pelas associações de pacientes e suas famílias que
adotaram, inicialmente de modo ilegal, terapias com derivados da maconha e, percebendo seus
efeitos, têm mobilizado uma rede de atores sociais, instituições e órgãos públicos e privados a
posicionarem-se sobre o tema no estado da Paraíba, para a efetivação do direito de acesso à
saúde e visibilidade social para sua reivindicação. Até pouco tempo, sequer este uso terapêutico
era permitido no Brasil e os pacientes e seus familiares que buscassem os remédios de forma
ilegal no exterior estavam suscetíveis a serem enquadrados como traficantes por praticarem o
ato criminoso de transporte de substâncias ilegais. Com base nas pesquisas e comprovações
científicas internacionais, a reivindicação pelo uso terapêutico da maconha tem emergido no
cenário nacional nos últimos cinco anos como um tema que extrapola questões exclusivamente
de saúde, pois efetivamente envolve uma diversidade de atores e instituições, muitas delas
articuladas entre si, que atuam nas possibilidades ou não de mudar concepções morais e legais
que condenam os usos da planta por considerá-la uma droga. A partir da reivindicação de
pacientes e famílias de pacientes, cujos tratamentos com maconha apresentaram resultados
positivos, ações judiciais solicitando que fosse permitida a importação desses remédios e sua
retirada da lista de substâncias ilícitas classificadas pela ANVISA aumentaram nos últimos
anos, pois, criminalizada, a maconha enfrenta uma série de obstáculos que dificultam a
realização de estudos sobre a planta no país e sua importação se torna uma operação demorada
e de alto custo. O fio condutor desta pesquisa evidencia a visibilidade, as discussões públicas e
os avanços sociais que o uso terapêutico da maconha tem alcançado. Para isso, busco (a)
contextualizar o tema para indicar porque a demanda pelo uso terapêutico da maconha – seja
através de derivados, isolados e manipulados farmacologicamente, seja através de extratos
integrais, ou mesmo da planta in natura – ainda é uma questão indefinida, situando questões
sócio-políticas, morais e econômicas envolvidas na criminalização e na falta de
regulamentação; (b) apresentar as formas de organização e atuação das associações Liga
Canábica da Paraíba e ABRACE; (c) pontuar a participação de órgãos governamentais e
entidades implicadas no tema; e (d) analisar as articulações mobilizadas pelas associações em
busca de uma definição desta demanda por saúde, considerando a complexidade de
posicionamentos e interesses envolvidos. As considerações finais vão no sentido de apontar e
provocar reflexões a partir da pesquisa, ao invés de propriamente fechar uma conclusão
definitiva sobre o tema.
Conducted by those who are directly affected by the illegal condition of marihuana and its
therapeutic use, this research seeks to situate and reflect on the collective articulations and on
the paths found by the patient associations and their families who initially adopted marihuana
therapy illegally and, realizing its effects, have been mobilizing a network of social actors,
institutions and public and private organizations to position themselves on the topic in the state
of Paraíba, for the realization of the right of access to health and social visibility for its claim.
Until recently, even this therapeutic use was not allowed in Brazil and patients and their family
members who brought illegally these medicines from abroad could be classified as drug dealers
for the criminal act of transporting illegal substances. Based on international research and
scientific evidence, the claim for therapeutic use of marihuana has emerged on the national
scene over the past five years as a theme that goes beyond health issues alone, as it effectively
involves a diversity of actors and institutions, many of them articulated with each other, which
act on the possibilities or not of changing moral and legal conceptions that condemn the uses
of the plant for considering it a drug. Following the claim of patients and families of patients
whose marihuana treatments were successful, lawsuits requesting the importation of these
medicines and their removal from the list of illicit substances classified by ANVISA have
increased in recent years, as criminalized marihuana faces several obstacles that make it
difficult to carry out research on the marihuana plant in the country and its importation becomes
a long and expensive operation. The guiding thread of this research highlights the visibility, the
public discussions and the social advances that the therapeutic use of marihuana has achieved.
Therefore, I seek to: (a) contextualize the theme to indicate why the demand for the therapeutic
use of marihuana - whether through derivatives, isolates and pharmacologically manipulated,
or through whole extracts or even in nature plant - is still an undefined issue, situating socio-
political, moral and economic issues involved in criminalization and lack of regulation; (b)
present the forms of organization and performance of the Liga Canábica da Paraíba and
ABRACE associations; (c) indicate the participation of government agencies and entities
involved in the theme; and (d) analyze the articulations mobilized by the associations in search
of a definition of this demand for health, considering the complexity of positions and interests
involved. The final considerations are to point and provoke reflections from the research, rather
than closing a definitive conclusion on the subject.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 15
Caminhos da Pesquisa e escolhas metodológicas ..................................................... 18
1.5. Nem tudo são Flores – a oposição ao uso da maconha para qualquer fim ..... 78
4.1.1.O Saber de quem usa – o conhecimento da prática do uso terapêutico ..... 189
1
“As espécies botânicas Cannabis Sp., da família botânica Cannabaceae, são mais conhecidas no Brasil como
maconha ou cânhamo. Esses nomes fazem referência a três diferentes espécies: Cannabis sativa, C. indica, C.
ruderalis, que se diferenciam por seus hábitos de crescimento, aspectos morfológicos e pela quantidade de
princípios ativos”. (Guimarães dos Santos 2016, p. 59)
2
“A epilepsia é um distúrbio cerebral crônico caracterizado pela ocorrência periódica e imprevisível de
convulsões. As crises são causadas por descargas elétricas anormais dos neurônios cerebrais que podem ocorrer
em qualquer idade. Não se sabe ao certo a causa que inicia exatamente a crise convulsiva e o que leva o seu
encerramento. Estudos estimam que a prevalência mundial de epilepsia ativa seja de 0,5% a 1,0%
aproximadamente e que 30% desses pacientes sejam refratários, ou seja, continuam a ter crises mesmo com
tratamento e foi justamente em um caso de epilepsia refratária que o extrato de cannabis rico em CBD se mostrou
eficaz.” (CARVALHO, BRITO, GANDRA, 2017)
15
série de obstáculos que dificultam a realização de estudos por pesquisadores em nosso país e
sua importação se torna uma operação demorada e de alto custo. Postos estes entraves e visando
a ampla utilização desses produtos no tratamento de variadas doenças para as quais seu uso é
recomendado em outros países, processos jurídicos de diferentes ordens vêm sendo acionados
no país requerendo autorizações para importação, habeas corpus preventivos para cultivo
caseiro, fornecimento custeado pelo Estado, e a regulamentação da maconha para fins
terapêuticos.
Pensar o uso terapêutico da maconha no Brasil atualmente é um tema que extrapola
questões exclusivamente de saúde, pois efetivamente envolve uma diversidade de atores e
instituições, muitas delas articuladas entre si, que atuam nas possibilidades ou não de mudar
concepções morais e legais que condenam os usos da planta por considerá-la uma droga. O
preconceito socialmente compartilhado foi um dos principais entraves iniciais encontrados na
reivindicação do uso terapêutico da planta, mesmo com as comprovações cientificas que
atestam sua eficácia. O papel regulador do Estado, aparece também na forma de controle moral
instituído a partir de concepções e ideais socialmente compartilhados, que envolvem
preconceitos e tabus variados sobre o uso de substâncias que, a princípio, são categorizadas
como drogas e estão condenadas e associadas ao plano das práticas ilícitas. Por consequência,
os sujeitos envolvidos na questão também são criminalizados3. O que poderia ser a solução para
casos de saúde acaba, na verdade, sofrendo barreiras concretas em termos legais e morais
apenas por surgir na contramão do que se instituiu como a “verdade” sobre esta planta. Esta
questão tem avançado no Brasil, porém sua definitiva mudança de status da ilegalidade para a
legalidade ainda tem de enfrentar um longo percurso jurídico-político e moral a enfrentar,
embora seja possível prever que irá avançar se considerarmos que os principais reivindicadores
desta mudança pertencem a um segmento social privilegiado, aspecto importante que pode
(eventualmente) definir os caminhos pelos quais têm transcorrido socialmente esta questão
específica de saúde e todo seu processo de regulação.
Considerando este amplo e complexo emaranhado de questões, esta pesquisa foi
conduzida a partir daqueles que são diretamente afetados pela condição de ilegalidade da
3
Em 2016, 176.691 pessoas (155.669 homens e 21.022 mulheres), cumpriam pena pelos crimes de Tráfico de
Drogas, Associação para o Tráfico e Tráfico Internacional de Drogas, previstos na Lei 11.343/2006, de acordo
com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Esses números correspondem a 26% da população
carcerária masculina e 62% da população carcerária feminina (Infopen, 2017). Disponível em:
https://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf, acessado em 18
de novembro de 2019. Considerando que a lei de Drogas não prevê critérios objetivos para distinção entre usuários
e traficantes, é impossível afirmar que todos os apenados por crimes relacionados ao tráfico de drogas, de fato
sejam traficantes.
16
maconha e do seu uso, os pacientes, mães e pais e suas redes de articulação, mobilização e
reivindicação pelo direito à saúde. Conforme preconizado pelo artigo 196 da Constituição
Federal Brasileira: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
(BRASIL, 1988).
Assim, este trabalho busca situar e refletir sobre as articulações coletivas e os caminhos
encontrados pelas associações de pacientes e famílias de pacientes que tem vivido as melhoras
resultantes do uso terapêutico da maconha no estado da Paraíba, em especial na cidade de João
Pessoa, para a efetivação do direito de acesso a saúde e visibilidade social para sua
reivindicação. Para isso, busco (a) contextualizar o tema para indicar porque a demanda pelo
uso terapêutico da maconha – seja através de derivados, isolados e manipulados
farmacologicamente, seja através de extratos integrais, ou mesmo da planta in natura – ainda é
uma questão indefinida, situando questões sócio-políticas, morais e econômicas envolvidas na
criminalização e na falta de regulamentação; (b) apresentar as formas de organização e atuação
das associações Liga Canábica e ABRACE; (c) pontuar a participação de órgãos
governamentais e entidades implicadas no tema; e (d) analisar as articulações mobilizadas pelas
associações em busca de uma definição desta demanda por saúde, considerando a complexidade
de posicionamentos e interesses envolvidos.
Neste sentido, entendo o campo social desta pesquisa a partir da conceituação elaborada
por Pierre Bourdieu (1989) que, embora o tenha formulada para tratar de aspectos socias amplos
e duradouros, presentes em todas as culturas e sociedades, como os campos cientifico, artístico,
religioso e político, analisados por ele, pode ser replicado para a abordagem de outros processos
sociais em que uma teia de atores sociais e interesses estão em relação e disputa. Assim, entendo
a questão da maconha terapêutica como um campo de disputas jurídico-médico-morais sobre
um problema público que envolve uma variedade de atores sociais influentes e, neste sentido,
o caso aqui tratado pode ser entendido como um campo conjuntural específico, no qual uma
situação social complexa está em pauta, assim como tratou Sérgio Carrara (1996) a respeito da
Sífilis.
Sob a perspectiva de que estão envolvidos aqui processos de mediação, entre a demanda
social por acesso a saúde e as diversas instanciais públicas e privadas envolvidas no tema,
articulada por mães e pais de crianças com doenças graves, acompanhando o entendimento de
Valle (2017) sobre as práticas de mediação como
17
relação, comunicação, trocas e fluxos intersubjetivos entre pessoas e grupos
em mundos sociais específicos, cujos saberes e modos de significação são
articulados. As práticas de mediação dependem de contextos, eventos,
relações, cuja chave de compreensão se dá através da ação. [...] Além disso,
as práticas de mediação estão referidas a processos sociais mais amplos, que
mostram a conexão entre níveis sociais variados. [...] As práticas de mediação
podem ser heterogêneas, produzidas de modo simultâneo, conforme os
contextos, implicando muitas vezes variação e/ou diversidade entre agentes
mediadores e seus projetos, que competem entre si. [...] Nesse caso, os agentes
mediadores não podem ser vistos de modo dualista. Eles não são sempre
“exteriores” aos grupos e coletividades com que estabelecem mediação.
Muitas vezes, fazem parte do mesmo mundo social, instrumentalizando-se
exatamente por sua capacidade de criar relações, articulação e traduções entre
diferentes escalas (VALLE 2017, p. 31).
Assim, o que segue neste trabalho é uma proposta de situar os envolvidos e suas
estratégias de mobilização social, política e legal para alcançar direitos e legitimidade para um
tratamento não convencional, porem eficaz, já em curso, com derivados da maconha, a partir
das associações e suas articulações.
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pesquisador através da observação direta (CARDOSO DE OLIVEIRA 2000), a pesquisa se deu
através da participação nas reuniões ordinárias da associação, que ocorrem mensalmente; em
reuniões extraordinárias; nos eventos promovidos ou com a participação da Liga Canábica; em
algumas reuniões de formação da Liga Canábica do Rio Grande do Norte em Natal – RN, que
contaram com a participação das lideranças paraibanas; em momentos de interação espontânea
com alguns dos envolvidos, pessoalmente e virtualmente (através dos grupos de WhatsApp); e
também com a realização das entrevistas semiestruturadas individuais em 2019.
Já a pesquisa na Abrace se deu de forma bastante distinta. Imagine etnografar uma
empresa. Como será melhor descrito no capítulo dedicado a ela, a organização e o
funcionamento desta associação podem facilmente ser comparados a qualquer empresa de
pequeno ou médio porte e, por isso, estrutura, funcionários e atividades são bastante definidas
e seguem uma lógica de funcionamento contínuo, porém específico pela peculiaridade da sua
produção e comércio. Neste caso, a observação e a interação com a equipe se deu de forma
menos espontânea e contínua, ao longo de um ano e meio, através de visitas previamente
agendadas e sempre acompanhadas por algum dos funcionários, dispostos a explicar e contar
sobre a associação e seu funcionamento, tornando a pesquisa mais regrada e objetiva, o que
considero não ter prejudicado os dados aqui apresentados. Também realizei entrevistas
semiestruturadas com diretores e parte dos funcionários da associação, buscando compreender
o processo de trabalho e os setores envolvidos.
Embora todos estes momentos tenham sido relevantes para a minha aproximação do
tema e das pessoas que fazem este movimento acontecer, bem como para o desenvolvimento
desta pesquisa, selecionei os episódios, acontecimentos e fatos que considerei mais relevantes
para situar as questões aqui desenvolvidas e a atuação destas associações. Esta opção se deu em
razão das longas e talvez cansativas descrições etnográficas que esta pesquisa me propiciou e
que compõem em parte este texto, porém creio que as partes selecionadas são suficientes para
as abordagens propostas. Particularmente no capítulo 3, em que as descrições serão expostas
com mais densidade, optei por intercalar comentários, análises e trechos das entrevistas
realizadas posteriormente, para explicar as questões que a descrição aponta no curso do texto e
que são de interesse para esta pesquisa. Assim, as quebras de sincronicidade serão ressaltadas,
assim como sua retomada.
Todas as entrevistas foram realizadas nos últimos meses da pesquisa, quando o campo
e seus meandros já estavam bastante claros e eu, enquanto pesquisadora, conseguia entender
com mais profundidade as relações estabelecidas entre os envolvidos e os desdobramentos
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práticos, burocráticos e também emocionais desta demanda. Assim, a formulação da estrutura
das entrevistas e o roteiro elaborado seguiram os temas e questões que percebi, ao longo da
pesquisa, como fundamentais e que servissem para contextualizar a participação individual dos
principais envolvidos e seus posicionamentos, pessoais e coletivos, no tema aqui apresentado.
Assim como as descrições etnográficas, considerei substancial transcrever as falas dos
entrevistados de modo extenso, preservando seus argumentos e propósitos, o que pode parecer
eventualmente excessivo, porém fundamental para as finalidades deste trabalho.
Gostaria de salientar que a etnografia não deve ser tomada apenas como método, pois o
produto daquilo que é observado, ou seja, a textualização antropológica é, de fato, teórico-
metodológica construída, pois, além do que seria considerado metodologia, engloba também a
produção teórica necessária para a sua concretização. Nesse sentido, “a etnografia é parte do
empreendimento teórico da antropologia” (PEIRANO 2014, p. 385), e não existe metodologia
separada da teoria, já que para a antropologia a teoria só pode ser elaborada a partir da sua
metodologia científica, a observação empírica de caráter etnográfico.
As mudanças paradigmáticas da história da antropologia nos trouxeram a um modelo
metodológico que comporta uma multiplicidade cada vez maior de abordagens, ao passo que
também direcionam o fazer antropológico para caminhos em que o pesquisador não pode ser a
única voz responsável por falar pelos seus pesquisados. Nas palavras de João Pacheco de
Oliveira,
22
maconha estavam embasadas em pesquisas estrangeiras que recomendavam seu uso para ao
menos 25 doenças ou condições debilitantes, entre elas esclerose múltipla e diversos tipos de
câncer (CARLINI & ORLANDI-MATTOS 2011). Para além do impedimento médico, a
discussão sobre maconha terapêutico perpassava também os interesses dos usuários recreativos
que afirmavam não querer que a legalização desta planta considerasse estritamente suas
aplicações terapêuticas, conduzindo os usuários recreativos (os ditos “maconheiros”) a
buscarem justificativas médicas para poderem fazer uso dela.
A Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), embora preveja a possibilidade de pesquisas e usos
médicos para as substâncias nela enquadradas, estabelece uma regulação para estas aplicações
que até aquele momento não existia e, por isso, qualquer paciente ou familiar que buscasse estas
substâncias em outros países, poderiam ser incriminadas como traficantes ou usuários,
independentemente de sua aplicação (CAMPOS 2013).
Concluída a pesquisa de mestrado e morando em João Pessoa (PB) em 2014, enquanto
almoçava num dia qualquer com a televisão da casa ligada, ouvi o chamado do apresentador do
Jornal da Paraíba, da TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo, sobre a discussão do bloco
seguinte, que iria tratar da reivindicação de um grupo de mães e pais pelo acesso a um derivado
da maconha que poderia melhorar o tratamento das crianças portadoras de epilepsia de difícil
controle4. No estúdio do jornal, estavam Sheila Geriz, mãe de Pedro, um menino de 4 anos na
época, portador da síndrome de West5, acompanhada do médico Pedro Mello e do Secretário
do Conselho Regional de Medicina (CRM), Dr. Roberto Magliano. Os apresentadores abriram
o bloco alertando sobre a imparcialidade do canal televisivo, dizendo não serem “nem contra,
nem a favor”, mas estarem apenas propiciando o debate. Em seguida uma reportagem foi
exibida mostrando o caso do filho de Sheila e de outras famílias com situação semelhante e
com o mesmo propósito, administrar canabidiol (CBD) para os filhos, por saberem dos
resultados positivos em casos similares, tal como o de Anne Fischer, uma menina de 5 anos de
Brasília, a primeira criança brasileira cujos pais conseguiram autorização judicial para importar
4
Epilepsia de Difícil controle ou refratária, como descobri durante a realização desta pesquisa, trata-se de um tipo
de epilepsia resistente aos tratamentos convencionais receitados pela medicina, que não apresentam melhoras
nestes casos. Pode ser considerada uma doença isolada, porém nos casos que conheci, é uma condição debilitante
que caracteriza a doença ou síndrome das quais as crianças são acometidas.
5
A síndrome de West é uma condição epiléptica severa, incidente na infância e caracterizada por uma tríade
sintomática que envolve espasmos musculares, hipsarritmia (padrão eletroencefalográfico específico) e retardo
mental. Quanto às causas, descrevem-se três tipos de espasmos infantis: sintomáticos, criptogenéticos e
idiopáticos. O nome da síndrome é uma homenagem ao Dr. W J West, que fez a primeira descrição da condição
em 1841. Ver: http://www.abc.med.br/p/sinais.-sintomas-e-
doencas/742922/sindrome+de+west+como+ela+e.htm
23
legalmente o extrato de CBD. Na reportagem apareceram ainda o Procurador do Ministério
Público Federal na Paraíba, José Godoy, explicando os caminhos jurídicos para este
requerimento, e o Diretor do Conselho Regional de Medicina, o médico João Medeiros,
concordando com o uso de CBD apenas para casos específicos e sob estrito controle médico.
Após a matéria, o programa seguiu no estúdio debatendo com os convidados suas
experiências e opiniões sobre o uso do CBD. A princípio, todos concordavam com o uso desta
substância e apenas o secretário do CRM apontou preocupação e a necessidade de mais
comprovações científicas. Por fim, Sheila Geriz informou que ela e outras mães estavam
organizando um grupo, que contava, até então, com 15 famílias, e convidou os interessados,
que tivessem familiares com epilepsia de difícil controle, para entrarem em contato com ela
para terem mais informações. Naquele momento, não existia ainda a Liga Canábica, mas foram
aqueles os primeiros passos desta organização.
Esta edição do Jornal da Paraíba foi ao ar no dia 16 de julho de 2014, e foi a primeira
vez que vi e ouvi sobre o tema na cidade que resido e, mesmo sem saber naquele momento, foi
ouvindo Sheila pela primeira vez que nasceu esta pesquisa. Um tema que entrelaça
preconceitos, tabus, estigmas, burocracias, justiça, saúde e doença, além da mobilização
coletiva de mães e pais que buscam tratamento e qualidade de vida para seus filhos através de
um remédio derivado de uma planta classificada como droga ilícita, a mesma planta sobre a
qual tratei sob outro ponto de vista no mestrado. O uso terapêutico que brevemente abordei na
dissertação de mestrado, agora estava aflorando como uma questão relevante a ser resolvida em
termos médicos e jurídicos, mas também problematizada em termos antropológicos.
A fala de Sheila Geriz no jornal paraibano não me saiu da cabeça, mas naquele momento
eu não tinha qualquer pretensão de pesquisa e nenhum conhecido por quem fizesse sentido
entrar em contato para ter mais informações, então apenas registrei aqueles fatos e informações
como intrigantes.
Em 2015, ao ingressar no curso de doutorado do PPGAS/UFRN com uma pesquisa
ambiciosa demais para a minha realidade, vi a necessidade de repensar e reelaborar meu projeto
de pesquisa para algo que estivesse ao meu alcance, mas que, ao mesmo tempo, não fugisse dos
meus interesses, nem fosse irrelevante dentro das possibilidades e da importância que enxergo
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na antropologia diante das inúmeras questões socioculturais que necessitam de atenção das
ciências humanas. Assim, realidades conflituosas, permeadas por interesses e disputas de várias
ordens, que se baseiam na deslegitimação de determinadas culturas em benefício de interesses
outros, como questões econômicas e políticas, provocam a antropologia a posicionar-se e, em
consequência, aos próprios antropólogos.
O papel político da antropologia e do antropólogo em posicionar-se e denunciar através
dos seus trabalhos diante das socioculturais e políticas excludentes, marcam posicionamentos
contrários às formas de preconceito, discriminações e deslegitimação do outro, tão presentes
nas sociedades contemporâneas. Não é à toa que grande parte dos trabalhos antropológicos se
dedicam a sociedades ou culturas consideradas no senso comum como menores, inferiores ou
marginalizadas. De fato, a antropologia, em suas premissas, preza pelo seu papel de
desconstrução das desigualdades e preconceitos ao entender o valor de cada cultura, sem
hierarquiza-la em relação a outras.
É nesse sentido também que Didier Fassin (2008, 2009, 2011) trata os temas referentes
ao papel do Estado como instituição responsável pelo provimento de condições sociais básicas
às suas populações e, ao mesmo tempo, pela condição de sofrimento social provocado em
determinadas parcelas da população pela negligência dos poderes públicos. Focando em casos
específicos, como a epidemia de HIV na África do Sul, Fassin assinala a responsabilidade do
Estado nas desigualdades sociais ao priorizar políticas que privilegiam parcelas da população
em detrimento do sofrimento dos demais. Utilizando os conceitos de condição histórica e
experiência histórica, este autor insere a dimensão temporal nos contextos que pesquisa,
considerando as estruturas sociais e as formas como estas são influentes nas situações
individuais, aliando de forma complementar o plano individual e coletivo para o entendimento
de questões sociais em contextos e épocas específicas.
A abordagem desenvolvida por Fassin nos serve de referência para várias outras
situações sociais em que há conflitos e desigualdades em jogo e, principalmente, em que o
Estado deve ser considerado como fator determinante na causa e também na possibilidade de
enfrentamento, resolução ou amenização dos problemas sociais. Nessa perspectiva, devemos
entender que as políticas sociais afetam e moldam a vida das pessoas, em uma dimensão
corporificada, de acordo com o autor, e a forma como estas políticas são elaboradas fazem parte
de um amplo conjunto de intenções e valores disseminados socialmente. As proposições de
Fassin serão retomadas posteriormente para tratarmos do contexto específico por acesso a saúde
através de um tratamento que esbarra na ilegalidade da planta que dá origem ao remédio e na
criminalização dos seus envolvidos, mas aqui nos servem para situar o interesse e a proposta
26
que este trabalho pretende, trazendo questões sociais em disputa e sedentas de atenção para o
campo da antropologia engajada em contribuir na amenização das desigualdades e injustiças
sociais.
A proximidade geográfica da organização de familiares que reivindicam o tratamento
com maconha terapêutica, somados aos meus interesses acadêmicos diante desta demanda que
considero de extrema relevância social, foram estimulantes o suficiente para que eu buscasse
saber mais sobre esse tema, diretamente relacionado a questões que eu já havia estudado durante
o mestrado. Foi o necessário para fazer desta mobilização social o foco central da minha
investigação de doutorado, completamente apoiada pelo meu orientador. Não foi difícil
encontrar informações na internet sobre a Liga Canábica e, posteriormente, sobre a ABRACE,
ambas sediadas em João Pessoa.
O ponto de partida foi buscar por informações que me possibilitassem entender o que
essa mobilização buscava, quais os entraves que as associações encontravam e como o Estado
brasileiro estava tratando disso naquele momento. A distância entre a demanda social e a falta
de atenção dos poderes públicos, logo me pareceu um tema interessante para pensar a sociedade
brasileira em diversos aspectos que perpassam questões morais, jurídicas, de saúde e a própria
mobilização coletiva, que envolve, além das pessoas que sofrem pelo acometimento de doenças
graves ou de seus familiares, também provoca que os poderes públicos a posicionarem-se,
jurídica e cientificamente, em busca de uma solução para o caso.
A busca preliminar sobre o tema foi intensificada em 2016, quando ocorreram dois
eventos, o lançamento de uma campanha pública, organizada pela Liga Canábica da Paraíba, e
a Marcha da Maconha de João Pessoa, com a participação, por sua vez, da Liga. Estes eventos
foram meus primeiros contatos com as pessoas e com os discursos delas sobre o movimento do
qual fazem parte.
No dia 7 de maio de 2016 aconteceu no Espaço Cultural José Lins do Rego em João
Pessoa – PB, o lançamento da campanha “Para Manter Estes Sorrisos Acessos”, organizado
pela Liga Canábica. O evento teve por finalidade divulgar uma campanha que pretendia
sensibilizar a população sobre a necessidade de acesso ao CBD pelas 16 crianças e jovens que
necessitam deste remédio para seu tratamento e que continuam enfrentando dificuldades para
obtenção deste fármaco.
O evento gratuito, realizado em um espaço público administrado pelo Governo do
Estado, contou com quatro apresentações musicais dos artistas paraibanos, parceiros da Liga,
Adeildo Vieira, Escurinho, Gláucia Lima e a Banda Seu Pereira e Coletivo 401, também sem
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custos para os organizadores. Entre as apresentações, os pais que organizaram o evento subiam
ao palco com as crianças, explicando a causa e as burocracias que enfrentam para conseguir a
medicação que seus filhos necessitam, além de reivindicarem o direito ao plantio da Cannabis
para extração do CBD. Além dos pais, outros apoiadores da causa também falaram, como um
juiz de direito, assistentes sociais, médicos, e representantes de movimentos sociais, tais como
a luta antimanicomial e a Marcha da Maconha. Como primeiro contato etnográfico, foi
interessante perceber a quantidade e diversidade do público presente, de jovens a idosos,
famílias, etc. O auditório tinha, avalio, capacidade de 500 pessoas e estava lotado.
Neste primeiro momento, não tive a oportunidade de me apresentar aos organizadores,
já que eles estavam o tempo todo envolvidos com a organização do evento, entrando e saindo
dos camarins e ao redor do palco. Durante as apresentações, as famílias ficavam na frente do
palco, animadas prestigiando os artistas. Nesses momentos, seria impossível conversar por
causa do som alto. Nos intervalos, subiam ao palco com as crianças para divulgar e informar
sobre o propósito do evento. Pretendia conversar com os organizadores no final do evento, mas
soube que em função da condição das crianças, a maioria deles havia ido embora com certa
pressa assim que as apresentações finalizaram. Obtive informações através de uma amiga dos
pais de uma das crianças que estava colaborando no evento, distribuindo folders e passando
uma lista para recolher telefones e e-mails de quem quisesse saber mais sobre a causa. No
folder, constavam além de informações sobre o uso terapêutico da maconha e dos propósitos
da Liga Canábica, telefones e e-mail para contato.
Na segunda-feira, 9 de maio, liguei para o número que constava no panfleto. Quem me
atendeu foi Júlio Américo, o pai que conduziu o evento. Ao me identificar, expliquei que eu
tinha participado do lançamento da campanha e que, enquanto doutoranda em antropologia,
tinha muito interesse em realizar pesquisa sobre o uso terapêutico da maconha e tinha achado
muito interessante a iniciativa deles em formar a Liga Canábica e divulgar amplamente seus
propósitos. Bastou esta breve apresentação e o telefonema durou quase 40 minutos em que Júlio
me contou muitas coisas sobre a associação, as doenças, os usos da maconha, os entraves legais
e morais que enfrentam e as estratégias que eles estão desenvolvendo para alcançar novas
conquistas para que as crianças tenham acesso ao CBD.
Já nesta primeira conversa, Júlio me forneceu dados importantes que foram
fundamentais para o desenvolvimento da minha pesquisa. Entre eles, destaco os principais:
28
• A Paraíba foi o primeiro estado federativo brasileiro a conseguir permissão
coletiva para importar o extrato de CBD dos Estados Unidos para 16
crianças e jovens, através da articulação da Liga Canábica. Esta conquista
serviu de precedente para todos os outros estados do país. [anteriormente à
esta causa coletiva, apenas 3 pessoas individualmente haviam conseguido
esta permissão];
• Os trâmites burocráticos tinham diminuído mais recentemente. Atualmente,
eles detêm permissão anual para importação do Extrato de CBD sem taxa
de importação, embora continuem arcando com a compra (10g custavam
entre R$1.200 a R$1.500, na época).
• As famílias ainda encontravam muitas barreiras para conseguir a receita
médica para utilização médica do CBD. Segundo Júlio Américo, o
Conselho Regional de Medicina orienta que os médicos apenas forneçam
receitas para crianças com quadros muito severos de doenças convulsivas,
enquanto sua recomendação poderia abranger um número muito maior de
pacientes a serem beneficiados;
• A falta de pesquisas no Brasil para comprovação e extração dos princípios
ativos da maconha comprometem fortemente o uso terapêutico no país.
Júlio Américo afirmou que o processo de extração do CBD é simples e
poderia ser feito em casa, se a lei permitisse. No caso, a proibição trava
tanto a regulamentação legal por falta de comprovação científica, quanto o
cultivo caseiro para fins medicinais;
• A Liga Canábica busca apoio de todas as formas para legitimar seus
propósitos. Uma professora de farmacologia da UFPB estuda as aplicações
da maconha terapêutico e fortalece os argumentos da Liga Canábica.
• O procurador do Ministério Público Federal, José Godoy Bezerra de Souza,
procurador Geral dos Direitos do Cidadão na Paraíba é um forte aliado nas
questões jurídicas e burocráticas para importação do CBD; (Júlio Américo,
por telefone, junho de 2016)
Júlio Américo e Sheila Geriz, são pais de Pedro e são os principais organizadores da
Liga Canábica da Paraíba. Ambos são funcionários públicos, ele é técnico administrativo da
UFPB e ela do Tribunal de Justiça.
Ao falar da minha intenção de pesquisa, Júlio ficou muito interessado e se dispôs ao que
fosse necessário para contribuir. Perguntei se eles tinham sede da associação e ele brincou que
a sede é a casa de Sheila, que é o lugar onde eles se reúnem e onde estão guardados todos os
documentos da associação. Eu disse que tinha interesse em conversar pessoalmente com eles e
Júlio sugeriu que marcássemos um dia na casa de Sheila, assim eu poderia conhecer o filho
deles e teríamos à mão todo o material que eu quisesse ver.
Nos dias que seguiram, busquei documentos dos quais Júlio havia me falado e encontrei
parte das resoluções, leis e termos necessários para o processo de importação do CBD e THC.
Em um dos documentos, um termo de ajustamento de conduta de 2015, da Procuradoria da
República no Estado da Paraíba, está a definição e prescrição dos remédios à base de canabidiol
29
prescrito individualmente para 16 pacientes entre 1 e 22 anos. Este documento está assinado
pelo Procurador José Godoy.
Outro documento que localizei, foi a Resolução nº17 da ANVISA, que define os
critérios e os procedimentos para a importação em caráter de excepcionalidade de produtos à
base de Canabidiol. Entre seus artigos, a resolução estabelece que a importação do CBD está
condicionada à prescrição por profissional legalmente habilitado. Este talvez seja o primeiro e
mais complexo entrave que encontrei nesta trama de burocracias que permeiam o uso
terapêutico dos princípios ativos da maconha, já que a maioria dos médicos não querem
contrariar seu conselho profissional e por isso se recusam a prescrever derivados da maconha e
seus princípios ativos. Trataremos desta questão com mais profundidade posteriormente.
Em nossa conversa, Júlio Américo mencionou, tal como estava no folder da Liga
Canábica, o quanto é fundamental a regulamentação do plantio caseiro da Cannabis para
extração do CBD. Dias antes havia sido veiculada no Fantástico, na Rede Globo de TV, uma
matéria tratando do caso de mães chilenas que fazem este processo caseiro.
Um mês após a conversa esclarecedora com Júlio pelo telefone, aconteceu a Marcha da
Maconha na orla de João Pessoa, no domingo dia 12 de junho. Percorrendo um trajeto entre a
Praia de Cabo Branco até Tambaú pela avenida litorânea, estimo que havia cerca de 200 pessoas
na manifestação. À frente do ato, estavam três famílias da Liga Canábica, vestindo camisetas
da associação e com faixas demandando a regulamentação do cultivo caseiro da maconha para
uso terapêutico.
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Figura 1 Faixa na Marcha da Maconha em João Pessoa pela regulamentação do cultivo da maconha para fins
medicinais. Acervo Pessoal
Figura 2 As três famílias da Liga Canábica que abriam a Marcha da Maconha 2016 em João Pessoa. Acervo
Pessoal.
31
Figura 3 Faixa na Marcha da Maconha em João Pessoa pela regulamentação do cultivo caseiro da maconha
para fins medicinais. Acervo Pessoal
Entre as tantas falas, rimas e outras estrofes ditas no microfone ligado ao carro de som
que anunciava a manifestação, Júlio interviu relatando a situação das famílias que reivindicam
o uso terapêutico da maconha. Sua fala foi ovacionada pelos presentes.
Ao final da Marcha, tive a oportunidade de conversar pessoalmente com Júlio Américo.
Foi quando eu pude me apresentar pessoalmente e conversar um pouco com ele, embora menos
do que eu gostaria já que ele estava sendo muito solicitado por outras pessoas na manifestação
para dar informações sobre a Liga Canábica. Mais uma vez ele se mostrou interessado e
disposto a colaborar com minha pesquisa e combinamos outra ocasião para conversarmos com
mais calma.
A retomada dos contatos e a realização da pesquisa de forma mais sistemática e contínua
se deu efetivamente a partir de março de 2017, quando passei a conhecer outros membros da
Liga Canábica, participar de suas reuniões e eventos. Esta parte da pesquisa etnográfica será
abordada no terceiro capítulo com maior detalhamento dos encontros e temas abordados nessas
ocasiões, abrindo espaço para discussões teóricas que me parecem relevantes neste contexto de
pesquisa.
32
Em 2017, simultaneamente à intensificação da pesquisa etnográfica, aprofundei as
buscas por bibliografias das ciências sociais, e especialmente da antropologia, que se
relacionam com os temas aqui abordados. Documentos relativos aos processos e regulações
sobre o uso terapêutico da Cannabis e a catalogação de matérias da mídia impressa, virtual e
televisiva sobre maconha terapêutica no Brasil, servirão para ilustrar o papel que os meios de
comunicação tem para a visibilização e o estímulo a este debate no país, além da função
documental quase em tempo real, já que grande parte deste conteúdo é compartilhado pelas
redes sociais virtuais.
Durante a leitura atenta deste trabalho, poderia ser questionada a escolha dos termos e
palavras preferencialmente utilizadas para tratar do ponto chave do qual decorre o tema aqui
desenvolvido: a maconha e seus derivados utilizados para fins terapêuticos. Apenas nessa
última sentença, estas escolhas já estão evidentes quando utilizo a palavra maconha – e não
cannabis –, ou sua aplicação terapêutica – e não medicinal. Há ainda outras palavras que
carregam significados específicos e merecem contextualização.
É preciso considerar que as escolhas terminológicas aqui adotadas não são aleatórias.
Ao contrário, estão fundamentadas em um processo de pesquisa e adequação ao histórico de
aprendizagens e desenvolvimentos técnicos, científicos e sociais que envolvem disputas
políticas, morais, sociais e econômicas, sobre o tema.
A primeira e mais ampla destas escolhas aludem justamente das referências à planta que
dá origem não apenas a esta demanda por saúde, mas também a um rol de outras questões
sociais, políticas, econômicas, legais e morais presentes nas sociedades ocidentais, a maconha.
Em grande parte dos estudos e publicações científicas e nas falas de profissionais das áreas da
saúde sobre a maconha terapêutica, o termo principal que encontraremos em referência a ela
será cannabis, por ser este o nome científico da espécie vegetal em questão, como descreve
Rafael Guimarães dos Santos (2016).
6
Me baseio nos dados da pesquisa de campo para formular este argumento. Vi e ouvi, ao longo da pesquisa,
diversas espécies e tipos de óleos, feitos a partir de muitas variedades da planta, e por vezes misturados, serem
testados pelos pacientes em busca de melhores resultados.
34
2014 no Brasil, percebe-se que as discussões partiram da utilização unicamente do canabidiol
(CBD) para o controle de crises convulsivas e por isso era a este princípio ativo presente na
maconha que a demanda por saúde buscava. Posteriormente, chegou ao conhecimento das
famílias que reivindicavam estas terapias o potencial terapêutico também uso do
tetrahidrocanabinol (THC) e outras questões de cunho técnico-cientifico sobre a ação destes
canabinóides relacionados ao uso integral da planta, informações que contribuíram para a
adequação dos termos e da própria reivindicação social aos tratamentos.
Se falava muito em canabidiol, canabidiol, era isso que se tinha. Então, a ideia
era romper o preconceito para que a gente tivesse acesso a essa substância.
Depois a gente começou a entender que a gente sofria, mas não sofria sozinho;
para além das crianças com epilepsia, existiam crianças com autismo, existiam
adultos com câncer, existiam pessoas que tinham ouras dores, e que tinha
direito à saúde também e, por que não pensar nelas? A gente começou a ver
que tanto as crianças com epilepsia precisavam não só do canabidiol, mas
também do THC, mas como eu vou deixar de lado isso aqui, é o sofrimento
dessas outras pessoas, e o meu primeiro foco são as pessoas, não é a
substância, então, naquele momento eu entendia que uma substância dava
conta, depois eu comecei a ver que a substância não dava conta, que é preciso
falar disso. Depois, a gente começou a perceber que tinham pesquisas, coisa
que aconteciam lá, que eles chamam “comitiva”, que fazia com que o efeito
fosse potencializado, o valor terapêutico medicinal, a eficácia, e a gente
começou a perceber que era a planta. Aí a gente, nesse percurso, foi mudando
o discurso, passou de canabidiol, depois canabidiol a outros canabinóides, e
que a gente precisa considerar a planta, pois é nela que os canabinóides que
atuam conjuntamente, e com outras substâncias da planta também. Isso foi
chegando até onde a gente defende hoje, defende a cannabis como um todo;
eu vejo que tem valor a cannabis, as sementes da cannabis, que no caule você
pode ter substâncias, você precisa olhar para a planta. (Júlio Américo,
entrevista, setembro de 2019)
37
outros. Embora esta já tenha sido uma questão de interesse acadêmico para mim (CAMPOS
2013), neste trabalho não aparece com tanta relevância e, sempre que necessário, será tratada
como uso recreativo sem a intenção de pré-julgar ou estimular qualquer inferiorização desta
prática em relação as demais formas de consumo da maconha. Aqui, a intenção é apenas de
distinção em relação sobretudo ao uso medicinal ou terapêutico.
Para os fins deste trabalho, os termos medicinal e terapêutico me intrigaram desde o
princípio da pesquisa por ter acompanhado e percebido a mudança desta semântica de forma
gradual e não homogênea. Lembro-me de ter discutido sobre e a aplicação de cada um deles em
uma conversa informal com o neurocientista e pesquisador do CEBRID, Renato Filev, em
algum encontro que tivemos em evento acadêmico sobre o tema, quando o questionei sobre o
uso destes termos e suas distinções a partir de pesquisas da área da saúde e médicas. Naquela
ocasião, Renato deu uma explicação baseada nas pressuposições que cada uma das palavras
expressa e, ao realizar as entrevistas com meus interlocutores de pesquisa, percebi que esta
semântica de fato foi atualizada a partir de um campo de disputas que envolve outros agentes e
atores relacionados à questão da maconha.
Embora medicinal e terapêutico refiram-se a usos para tratamentos de saúde, o primeiro
remete à medical, ou médico, diretamente atrelado ao conhecimento formal da medicina
ocidental que pressupõe um conhecimento específico deste profissional, delegando e
restringindo a ele o controle sobre como estas terapias devem ser realizadas. Embora de fato,
na realidade atual brasileira de uso da maconha para fins de saúde, haja a necessidade de uma
prescrição fornecida por um profissional da medicina para a importação dos derivados da
maconha, como veremos, há um enorme impasse entre pacientes que adotaram estes
tratamentos e suas famílias em relação a postura conservadora e contrária à estas terapias por
grande parte dos médicos do país e do próprio Conselho Federal de Medicina, postura esta que
restringe fortemente a prescrição da maconha.
Portanto, tendo em vista a discordância entre paciente e famílias – que vivem as
melhoras propiciadas pelo uso de derivados da maconha – e os profissionais que deveriam
acompanhar estes resultados – e que muitas vezes se negam a fazê-lo –, juntamente com a
defesa do uso de fitoterápicos derivados da maconha e benefícios da integralidade da planta, a
defesa das terapias canábicas7 na Paraíba, se enquadra naquilo que conhecemos como terapias
complementares, alternativas ou integrativas, das quais faz parte o uso de fitoterápicos.
7
Termo bastante usado para o uso terapêutico da maconha.
38
As Terapias alternativas, também nomeadas como Complementares e/ou
Integrativas, são denominadas pela Organização Mundial da Saúde – OMS
como Medicina Tradicional e compreendem um grupo de práticas de atenção
à saúde não alopáticas e englobam atividades como a acupuntura, naturopatia,
fitoterapia, meditação, reiki, terapia floral, entre outras. (GALLI et al 2012, p.
246).
De fato, o uso da maconha para fins de saúde na Paraíba tem sido feito de forma menos
controlada em termos médicos (com uma posologia determinada), e orientado pelo saber das
mães e pais que aprendem na prática como administrar e obter os efeitos desejados, ou seja,
como um tratamento que não se enquadra exatamente na prescrição de um remédio alopático,
mas que tem efeitos terapêuticos variados, de acordo com o tipo de planta, concentrações de
CBD, THC e outros canabinóides, doses administradas de acordo com os efeitos percebidos,
entre outros fatores que podem variar de pessoa para pessoa, o que caracteriza um cuidado mais
individualizado, como pressupõem as práticas das terapias integrativas.
Tendo em vista todo este campo social, político e econômico de disputas que se
manifesta na semântica usada e atualizada pelos interlocutores desta pesquisa, preferiu-se aqui
a utilização do termo terapêutico em razão da sua amplitude de possibilidades que
correspondem ao que a pesquisa demonstrou ser a prática corrente. Porém, como dito, esta não
é uma unanimidade entre os envolvidos no tema e, dado o uso espontâneo das duas palavras, e
mais uma vez respeitando a fala e as formas de expressão individuais e seus contextos, o termo
medicinal estará também presente quando assim for referido e quando os contextos específicos,
à exemplo do campo jurídico, assim tratarem a questão.
Muitas questões e disputas envolvidas na escolha e uso dos termos aqui explicados serão
retomadas ao longo do texto porque dizem respeito ao próprio contexto da pesquisa, das pessoas
envolvidas e da demanda mobilizada. Estes esclarecimentos inicias são uma forma de,
introdutoriamente, colocar o leitor a par de muitas possibilidades e envolvimentos que o uso
terapêutico da maconha mobiliza no contexto atual brasileiro de indefinições sobre estes
tratamentos, como veremos.
Assim, para orientar o leitor sobre o desenvolvimento deste trabalho, serão tratados no
primeiro capítulo temas que considero necessárias para a contextualização do problema em
questão, sob diferentes perspectivas histórica, científicas e midiáticas que nos possibilitam
39
entender o desenvolvimento da demanda pelo uso terapêutico da maconha e as formas
organizacionais que esta processo provocou em diferentes estados do país de forma articulada.
E, considerando a necessidade de pontuar que este é um tema controverso, também são
apontados os principais entraves que o assunto provoca.
Explicitado este contexto mais amplo, o segundo capítulo traz uma narrativa etnográfica
importante para situar o leitor sobre o campo em que esta pesquisa foi realizada. Descrevendo
a única Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba com o
tema Cannabis Medicinal, situarei os envolvidos na luta pelo acesso aos tratamentos com
maconha terapêutica na Paraíba a partir da participação e dos posicionamentos que cada um
deles expôs publicamente neste evento. Assim, de antemão, o leitor estará a par de quem são os
agentes mobilizadores e quais são os órgãos e instâncias públicas e privadas relevantes para o
caso abordado.
Do terceiro ao quinto capítulos tratarei sobre as duas associações, sediadas no estado da
Paraíba e fundadas para atuar especificamente na reivindicação do uso terapêutico da maconha,
apresentando as peculiaridades de organização interna e atuação de cada uma.
No terceiro capítulo, abordarei a Liga Canábica da Paraíba e as questões que
caracterizam o movimento pelo acesso ao tratamento terapêutico com maconha terapêutica no
estado a partir do posicionamento e atuação desta associação, suas demandas e articulações.
Considerando a pluralidade desta coletividade, o quarto capitulo é dedicado a
pormenorizar quem faz parte deste coletivo e porque, individualmente, esta é uma pauta que os
mobiliza. A partir da pesquisa etnográfica, as questões que serão apresentadas neste capítulo se
mostraram relevantes para o entendimento da atuação coletiva a partir de uma perspectiva mais
individual de composição e atuação do grupo.
Contemplando a primeira e única associação que produz e comercializa derivados
terapêuticos de maconha no país de forma legal, o quinto capítulo trata sobre a Associação
Brasileira de Apoio Cannabis Esperança – ABRACE. A partir da organização desta associação,
no quinto capítulo serão explanadas questões pertinentes ao trabalho desenvolvido por ela,
considerando suas peculiaridades.
Deslocando o foco das organizações sociais para a implicação de instituições e órgãos
públicos e privados no tema da maconha terapêutica, o sexto capítulo é dedicado a apontar estas
participações e seus posicionamentos diante deste cenário controverso e indefinido. Assim,
trataremos das esferas do Estado brasileiro que estão diretamente implicadas, pelo seu papel
regulador, nesta demanda e também aquelas instâncias que foram mobilizadas pelas
40
associações aqui abordadas para contribuírem legal, cientifica e operacionalmente para o
avanço desta questão. Ao longo do capítulo, as discussões que envolvem conflitos de interesses
e de posicionamentos e, portanto, podem ser consideradas como entraves para o andamento da
regulamentação do uso terapêutico da maconha, também serão explicitadas.
Por fim, as considerações finais encerram este trabalho muito mais no sentido de apontar
e provocar reflexões a partir da pesquisa, do que propriamente fechar uma conclusão definitiva
sobre o tema.
41
1º. CAPÍTULO: MACONHA – ABORDAGENS E PONTOS DE VISTA
PARA O USO MEDICINAL
42
O panorama etnobotânico elaborado por Rafael Guimarães dos Santos (2016) apresenta
dezenas de indícios do uso da maconha em diferentes culturas, referenciando a importância
desta planta não apenas para uso terapêutico, como os citados acima, mas também de ordem
religiosa e espiritual, a exemplo do hinduísmo, budismo, judaísmo, taoísmo e do xamanismo
chinês (Ibid 2016).
Originária da Ásia Central, de uma região próxima à China, acredita-se que os usos da
maconha tenham se expandido para a Ásia Menor, África e posteriormente para a Europa. No
século VIII a.C., a maconha era utilizada pelos citas, povo localizado no território hoje ocupado
por países como China, Rússia, Mongólia e Cazaquistão. Os estudos revisados por Guimarães
dos Santos sugerem que os citas foram responsáveis por levar esta planta para a Europa, quando
gregos e romanos passaram a conhecer as propriedades da maconha (GUIMARÃES DOS
SANTOS, 2016).
Foi a partir da Ásia Menor que a cannabis chegou também à África, possivelmente por
influência do Islamismo, por volta de 600 d.C., e passou a fazer parte da farmacopeia e da vida
espiritual de grupos africanos como os pigmeus, zulus, balubas, hotentotes, bosquímanos,
mfengus e sothos (CAVALCANTI, 2005; SAMORINI, 2005; USO 2005 Apud GUIMARÃES
DOS SANTOS 2016).
Nos séculos seguintes, o uso da maconha parece ter sido mais voltado para tratamentos
medicinais, através de extratos, e industriais, com a utilização da fibra de cânhamo. A expansão
destas aplicações na Europa, somada as grandes navegações, entre os séculos X e XVI, trouxe
a maconha para as Américas, e além destas possibilidades conhecidas na Europa, povos
indígenas presentes no novo continente incorporaram o uso da planta em suas práticas
terapêuticas e religiosas, como acontecera na África (GUIMARÃES DOS SANTOS 2016).
No Brasil, acredita-se que a maconha tenha chegado por duas fontes diferentes. Os
portugueses, em meados do século XVIII, utilizavam a fibra do cânhamo para tecer as velas das
embarcações, por outro lado, os escravos vindos da África entre os séculos XVII e XVIII,
traziam consigo esta planta utilizada por eles para fins medicinais e religiosos (CARNEIRO
2002; HENMAN, 2005; MOTT, 1986 Apud GUIMARÃES DOS SANTOS, 2016).
Segundo estudos compilados pelo psiquiatra americano Lester Grinspoon (2005),
relatos históricos mostram que, nos séculos XVII e XVIII, as utilizações medicinais da
Cannabis estão registradas, incorporadas ao mundo ocidental. O clérigo inglês Robert Burton,
em sua obra “A Anatomia da Melancolia”, publicada em 1621, sugeriu o uso de Cannabis no
tratamento da depressão. O “Novo Dispensatório Inglês” de 1764 recomendou a aplicação de
43
raízes de cânhamo sobre a pele para inflamações, um remédio que já era popular na Europa
Oriental. “O Novo Dispensário de Edimburgo” de 1794, incluiu uma longa descrição dos efeitos
da maconha e declarou que o seu óleo era útil no tratamento de tosses, doenças “venéreas” e
incontinência urinária. Poucos anos depois, o médico Nicholas Culpeper resumiu todas as
condições para as quais a Cannabis era supostamente útil na medicina (Grinspoon ibid 2005).
Embora seu potencial medicamentoso fosse registrado pontualmente em alguns
momentos, o uso terapêutico da Cannabis passou ser recomendado a partir de meados do século
XIX, quando mais de 100 artigos foram publicados pela literatura médica ocidental, entre 1840
e 1900, recomendando-a para o tratamento de doenças e desconfortos, “poder-se-ia quase dizer
que os médicos de um século atrás sabiam mais sobre a Cannabis do que os médicos
contemporâneos; eles estavam certamente mais interessados em explorar o seu potencial
terapêutico”, comenta Grinspoon (2005, p. 2).
Em seus relatos, o doutor Grinspoon afirma que o primeiro médico ocidental a ter um
interesse na Cannabis como remédio foi W. B. O'Shaughnessy, um jovem professor da
Faculdade de Medicina de Calcutá, que tinha observado o seu uso na Índia. Ele deu Cannabis
para animais, satisfez a si mesmo de que era algo seguro, e começou a usá-la com pacientes que
sofriam de raiva, reumatismo, epilepsia e tétano. Em um relatório publicado em 1839, ele
escreveu ter constatado que a tintura de maconha (uma solução de Cannabis em álcool,
administrada por via oral) era um analgésico eficaz. Ele também ficou impressionado com suas
propriedades músculo-relaxantes e a chamou de "um remédio anticonvulsivante do mais alto
valor". Em 1842, ao retornar à Inglaterra, O'Shaughnessy proveu Cannabis a farmacêuticos e,
nos anos seguintes, médicos na Europa e nos Estados Unidos começaram a prescrevê-la para
uma variedade de condições físicas (GRINSPOON, 2005).
Contudo, a cannabis foi listada no Dispensatório dos Estados Unidos em 1854, com
aviso sobre ser um poderoso “narcótico” que em grandes doses poderia ser perigosa, porém
preparações comerciais de cannabis podiam ser compradas em farmácias. Nas décadas
seguintes diversos relatórios sobre o uso da maconha se acumularam na literatura médica.
45
trapaceira moderna, que eles [jovens médicos] são propensos a esquecer os resultados remotos
da administração imprudente de opiáceos.” (GRINSPOON 2005).
Como ele observou, o uso terapêutico da Cannabis já estava em declínio em 1890. A
potência das preparações de Cannabis era muito variável, e as respostas individuais à Cannabis
ingerida oralmente pareciam erráticas e imprevisíveis. Outra razão para o abandono das
pesquisas sobre as propriedades analgésicas da Cannabis foi o grande aumento do uso de
opiáceos após a invenção da seringa hipodérmica na década de 1850, que permitiu drogas
solúveis serem injetadas para o alívio rápido da dor; produtos de maconha são insolúveis em
água e, portanto, não podem ser facilmente administrados através de injeção.
Perto do final do século XIX, o desenvolvimento de drogas sintéticas como a aspirina,
o hidrato de cloro e os barbitúricos, acelerou o declínio da Cannabis como um remédio e a Lei
do Imposto Sobre a Maconha de 1937 minou as experimentações com a planta nos Estados
Unidos. Esta lei foi a culminância de uma campanha organizada pela Agência Federal de
Narcóticos norte americana, em que o público foi levado a acreditar que a maconha viciava e
que seu uso levava a crimes violentos, psicose e deterioração mental (GRINSPOON 2005).
Até aqui, esta recuperação histórica nos mostra algumas das conhecidas utilizações da
maconha ao longo do tempo e em diferentes culturas, porém o início do século XX, é marcado
pela mudança de abordagem e tratamento sobre determinadas substâncias. Como afirma o
historiador Henrique Carneiro, foi a partir do século XX que “o consumo de tabaco e álcool,
assim como das drogas legais e ilegais em geral, passou a ser objeto de uma forte intervenção
reguladora estatal, que redundou em tratados internacionais, legislações específicas, aparatos
policiais” (CARNEIRO 2005:17), gerando, nacional e internacionalmente, uma sucessão de
medidas responsáveis por regular a proibição e as formas de controle sobre estas substâncias
(CAMPOS 2013).
Apesar das descobertas médicas anteriores sobre os benefícios do uso terapêutico da
maconha, as convenções de Xangai – conhecida também como a 1ª convenção do Ópio – e de
Haia, acontecidas respectivamente em 1909 e 1911 (ratificada no ano seguinte), foram as
primeiras discussões internacionais sobre a forma de se lidar com certas substâncias que
proporcionavam algum tipo de alteração psíquica, convencionadas como “entorpecentes” na
época. Foram nessas convenções que os países signatários acordaram criminalizar tais
substâncias a fim de reduzir e até mesmo extinguir seu comércio e consumo (CARVALHO,
2011). Na 1ª Convenção do Ópio foi formada a Comissão Consultiva do Ópio e outras Drogas
Nocivas e, no mesmo ano, no Brasil, um decreto federal passou a punir o comércio de
46
substâncias de “qualidade entorpecente”, e foi a primeira legislação do país a tratar do tema
(MACRAE & SIMÕES 2000).
Cinco décadas após, em 1961, a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU, em
Nova York, marcou as políticas sobre drogas em grande parte dos países, inclusive no Brasil:
No Brasil, o impacto desta Convenção, somada ao regime militar instaurado três anos
depois, foi uma sucessão de leis ainda mais severas, entre elas sobre as drogas, que passaram
do modelo de atenção sanitária/médica para o combate bélico. Em uma época de repressão
social e política, as formas de controle a práticas consideradas subversivas serviram para
aumentar ainda mais a vigilância e as punições ao uso das “substâncias entorpecentes”.
No contexto mundial, em 1972, o então presidente Norte-americano Richard Nixon
declarou a “guerra às drogas” nos EUA e investiu cerca de 100 milhões de dólares em
campanhas antidrogas nos grandes meios de comunicação,
47
organizações narcotraficantes. A um só tempo, uma instrumentalização da
proibição às drogas como artifício de política externa e recurso para a
governamentalização – disciplinarização, vigilância e confinamento – de
grupos sociais ameaçadores à ordem interna como negros, hispânicos e jovens
pacifistas. (RODRIGUES Apud CARVALHO 2011, p.4).
Diversos autores (MACRAE & SIMÕES 2000, CARLINI 2005, VIDAL 2008,
CARVALHO 2011) apontam para o caráter xenofóbico e moralista das medidas adotadas sob
a justificativa dos “danos irreversíveis” que o uso de drogas poderia causar, como sugere a
citação anterior. Sobretudo a maconha teria sofrido depreciação ao ser associada às camadas
menos abastadas e marginalizadas como negros e índios, inclusive no Brasil:
48
apenas em dificuldades de ordem jurídica, como também tem influência nos julgamentos
morais atribuídos a este tratamento, como veremos ao longo dos próximos capítulos, o que não
impediu que os avanços científicos e que pesquisadores continuassem a se debruçar sobre o
potencial terapêutico desta planta em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.
Atualmente, podemos traçar um panorama mundial sobre as permissões e os usos,
terapêutico e recreativo, que podem ser diferenciados a partir da sua condição legal em cada
país. Considerando a atualidade e a dinâmica acelerada de mudanças sobre esta questão ao redor
do globo, a produção acadêmica, mais morosa e aprofundada, acaba sendo desatualizada
rapidamente, enquanto dados mais atuais deste panorama são encontrados em fontes midiáticas,
como matérias e informações divulgadas sobretudo por meio virtual.
Em rápida busca por “países onde o uso medicinal da maconha é permitido” na internet,
facilmente encontramos resultados vinculados aos países pioneiros nesta abertura terapêutica:
Israel, Canadá, vários Estados Norte-americanos, Uruguai, Chile, Bélgica, Finlândia, Itália,
República Tcheca, Holanda, Espanha, Romênia, Dinamarca, Suíça, Suécia, Eslovênia e
França8, dados compilados na edição 338/2016 da revista Superinteressante9. Porém, entre 2016
e 2019, outros países alteraram legislações e passaram a permitir terapias canábicas 10,
reconhecendo o potencial terapêutico desta planta, como Argentina11, Austrália12, Colômbia13,
Croácia14, Alemanha15, Grécia16, Nova Zelândia17, Peru18, Portugal19, África do Sul20,
8
https://super.abril.com.br/saude/maconha-remedio-proibido/ ou
https://www.behance.net/gallery/36366911/Maconha-remdio-proibido
9
Apesar da revista citada, assim como as demais matérias, não serem fontes primárias legítimas para trabalhos
científicos, as rápidas e constantes mudanças políticas e legais sobre o uso terapêutico maconha no mundo nos
últimos anos, dificulta um levantamento atualizado sobre esses dados em fontes acadêmicas e, por isso, recorro as
notícias e matérias jornalísticas e midiáticas para citar estas informações mais recentes, como alertado na
introdução desta tese.
10
Como são chamados os tratamentos de saúde com substâncias presentes na maconha.
11
https://g1.globo.com/mundo/noticia/senado-da-argentina-aprova-uso-de-maconha-medicinal.ghtml
12
https://exame.abril.com.br/mundo/australia-legaliza-a-maconha-para-uso-medicinal/
13
https://exame.abril.com.br/mundo/colombia-entra-no-mercado-de-maconha-medicinal/
14
https://revistaforum.com.br/noticias/croacia-legaliza-uso-da-maconha-para-fins-medicinais/
15
https://g1.globo.com/bemestar/noticia/alemanha-legaliza-cannabis-para-uso-terapeutico-em-doencas-
graves.ghtml
16
https://www.independent.co.uk/news/world/europe/greece-marijuana-legal-medical-cannabis-weed-law-
passes-a7821771.html
17
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,nova-zelandia-legaliza-uso-medicinal-da-
maconha,70002641385
18
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/20/internacional/1508471044_589662.html
19
https://exame.abril.com.br/mundo/consumo-de-maconha-medicinal-se-torna-legal-a-partir-de-hoje-em-
portugal/
20
https://veja.abril.com.br/mundo/africa-do-sul-legaliza-uso-de-maconha-em-locais-privados/
49
Tailândia21, Zimbábue22, entre outros. Nos Estados Unidos apenas três dos 50 estados dos
proíbem o uso de maconha, seja para fins recreativos, seja para fins medicinais23. Embora a
criminalização exista ao nível federal, a autonomia jurídica dos Estados confederados permite
que legislações Estaduais autorizem e regulamentem questões diversas, como é o caso da
cannabis que, para uso terapêutico, atualmente é permitida em 33 estados e no Distrito de
Columbia. Também por causa da autonomia dos Estados norte-americanos, cada um tem uma
legislação própria, específica, que pode incluir ou não exigências e limitações para o uso
terapêutico da maconha, assim como os demais países citados.
A mudança de perspectiva em relação a maconha pode ser percebida não apenas nas
políticas internas dos vários países citados, mas também fica evidente ao observarmos a
mudança de postura adotada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), agência especializada
em saúde e subordinada à Organização das Nações Unidas, sobre o uso medicinal da maconha.
Em 2017, o órgão divulgou o resultado de estudos e investigações sobre a planta, concluindo
que o CBD é um remédio seguro para o tratamento de diversas doenças, como epilepsia, tipos
de câncer, Alzheimer e Parkinson e declarou que o canabidiol não deveria ser tratado como
droga24. Já no início de 2019, em nova manifestação sobre o tema a OMS recomenda que a
planta e seus principais componentes sejam reclassificados em tratados internacionais contra
drogas. Os especialistas da entidade pedem que a planta, o haxixe e o tetraidrocanabinol (THC)
sejam removidos da Lista IV, a categoria mais restritiva e sejam todos designados na Lista I,
onde se enquadram substâncias menos danosas e com propriedades curativas ou medicinais. O
mesmo documento também solicita que o enquadramento do canabidiol seja revisado. De
acordo com o pedido, o óleo feito da substância extraída da cannabis que contiver menos de
0,2% de THC não deveria sequer entrar nas restrições do tratado internacional.
Estas mudanças, que podem ser consideradas de ordem política, legal e econômica,
estão diretamente relacionadas, como veremos nos capítulos seguintes, com pesquisas e estudos
clínicos que têm contribuído para uma nova percepção sobre a maconha em todo o mundo. No
Brasil, apesar da criminalização ainda vigente, não apenas as conjunturas políticas, econômicas
e técnicas internacionais têm influenciado famílias e pesquisadores a encamparem avanços no
21
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/12/assembleia-da-tailandia-aprova-maconha-para-uso-medicinal-
e-pesquisa.shtml
22
https://br.sputniknews.com/oriente_medio_africa/2018042811102869-zimbabue-maconha-legalizacao-
medicinal-africa/
23
https://www.conjur.com.br/2019-jul-06/tres-estados-eua-proibem-algum-uso-maconha
24
http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-12/oms-divulga-recomendacao-para-nao-catalogar-
canabidiol-como-droga
50
mesmo sentido, a necessidade de terapias mais eficazes do que as medicações alopáticas
disponíveis e o direito de acesso à saúde têm estimulado o enfrentamento à proibição e, ao
mesmo tempo, tem sido o exemplo prático de eficácia das terapias canábicas, como veremos.
Como vimos, embora possa parecer a um olhar desatento que o uso medicinal da
maconha é uma descoberta recente e pouco pesquisada, a verdade é que ao redor do mundo e
ao longo da história, muito já se sabe sobre essa planta e suas possibilidades de uso terapêutico
baseado nas suas características e princípios ativos.
Marcos científicos importantes datam das décadas 1960 e 1970, quando pesquisas e
descobertas sobre a maconha foram os primeiros passos do que sabemos atualmente. Em 1964,
o químico israelense, Raphael Mechoulan, identificou a estrutura química do Δ9-THC
(GAONI, MECHOULAM, 1964; MECHOULAM, 1973), marco importante para um
significativo aumento do interesse científico por esta planta e pela proliferação de pesquisas
sobre ela (ZUARDI, 2006), descoberta que deu a ele o título de “pai” das pesquisas sobre
cannabis no mundo.
A partir desta descoberta, houve um aumento significativo de pesquisas sobre a
composição química da maconha e seus efeitos e, neste período (1960-70), um grupo de
pesquisa brasileiro, liderado pelo médico e pesquisador Elisaldo Luiz de Araújo Carlini,
professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), teve uma grande contribuição sobre
as interações de Δ9-THC com outros canabinóides presentes na planta (CARLINI, 2004;
2005b). Desde então, o Doutor Carlini, vem desenvolvendo pesquisas na área e produz de
artigos sobre a maconha. Ele é reconhecido internacionalmente pelas suas
contribuiçõescientíficas relacionadas à maconha, seus efeitos e potenciais terapêuticos
(ZUARDI, 2006), sendo a maior referência médica nacional sobre o tema (POLICARPO,
2019).
Entre a segunda metade da década de 1970 até o final dos anos 1980, a quantidade de
pesquisas sobre a maconha caiu consideravelmente, mas voltou a crescer a partir da década
seguinte, como nos mostra Zuardi (2006).
51
Figura 4 ”Number of cannabis-related publications in the last 50 years. The source used was the
‘ISI Web of Knowledge’ with the keywords: cannabis or marijuana or marihuana”. (ZUARDI 2006,
p. 5)
Antônio Zuardi argumenta que o aumento das pesquisas sobre maconha a partir da
década de 1990 se deve à descrição e clonagem de receptores específicos para os canabinóides
no sistema nervoso e isolamento da anandamida, um canabinóide endógeno.
A diversidade de estudos internacionais sobre o tema cresceu tanto nas últimas décadas
e é tão vasta que, em 2006, o professor Mohamed Ben Amar, do departamento de farmacologia
da Universidade de Montreal, no Canadá, publicou no Jornal Oficial da Sociedade Internacional
52
de Etnofarmacologia, uma revisão do potencial terapêutico dos canabinóides25 para a medicina.
Para o artigo foram identificados através do Medline26 e PubMed27, 72 estudos controlados,
realizados entre 1975 e 2005, oriundos de 12 países, que avaliavam os efeitos terapêuticos dos
canabinóides. A revisão conclui que “os canabinóides apresentam um potencial terapêutico
interessante como antieméticos, estimulantes do apetite em doenças debilitantes (câncer e
AIDS), analgésicos e no tratamento de esclerose múltipla, lesões da medula espinhal, síndrome
de Tourette, epilepsia e glaucoma” (tradução minha) e sugere que outros ensaios clínicos sejam
realizados cuidadosamente para determinar o tipo de canabinóide e a via de administração mais
adequada para maximizar os efeitos benéficos dos canabinóides para estas doenças (AMAR
2006).
Quatro anos depois, considerando o trabalho de Ben Amar como uma excelente revisão,
Arno Hazekamp e Franjo Grotenhermen publicaram outro artigo do gênero, revisando estudos
clínicos com Cannabis e canabinóides, abarcando publicações de 2005 a 2009, também
catalogadas no PubMed e seguindo os mesmos parâmetros científicos da revisão anterior. Neste
artigo mais atual, 37 estudos foram considerados e um conjunto de oito patologias foram
identificadas nos estudos controlados sobre canabinóides: Dor neuropática ou crônica; Dor
experimental; Esclerose múltipla e espasticidade; HIV/AIDS; Glaucoma; Disfunção intestinal;
Náuseas/vômitos/apetite; e Esquizofrenia. Outras doenças citadas com menor incidência foram
agrupadas como “outras indicações”. Como conclusão, os autores argumentam:
25
“Os canabinoides pertencem a uma classe de compostos químicos produzidos pela canabis. Estes canabinoides
agem nos receptores CB1 e CB2 localizados nas células dos mamíferos – parte do sistema endocanabinoide – e
alteram a liberação de neurotransmissores no cérebro. Até o momento foram identificados mais de 100
canabinoides, responsáveis pelos efeitos que a planta tem no organismo. Os canabinoides mais comuns incluem o
THC ou tetrahidrocanabinol, CBD ou canabidiol e o CBG, canabigerol. Os canabinoides são encontrados
naturalmente na canabis como ácidos carboxílicos, praticamente inativos. Porém, quando expostos a um processo
chamado de descarboxilação, onde o calor, luz ou condições alcalinas fazem com que percam seu grupo carboxila,
eles tornam-se ativos no organismo.” Fonte: https://hempmeds.com.br/o-que-sao-canabinoides/
26
Sigla em inglês para Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica – base de dados bibliográficos da
Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos, contendo aproximadamente 4.800 revistas publicadas aos
Estados Unidos e em mais de 70 países de todo o mundo desde 1966 até a atualidade.
27
O PubMed é um serviço da Biblioteca Nacional de Medicina Americana (NLM) e provê acesso a quase 20
milhões de citações bibliográficas (MedLine) catalogadas desde meados de 1960. O conteúdo dessas citações são
artigos médicos publicados nas mais variadas revistas de diversas especialidades.
53
Dois anos antes, em 2008, no Brasil, foi publicado pela Revista Brasileira de Psiquiatria
uma revisão feita por Antônio Waldo Zuardi, pesquisador do Departamento de Neurociências
e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP – USP),
abordando a evolução histórica das pesquisas sobre canabinóides (ZUARDI, 2008). Utilizando
as bases de dados eletrônicas Medline, Web of Science e Scielo, o autor aponta que,
Com estes apontamentos, o pesquisador conclui que nos 45 anos abarcados pela revisão,
foi demonstrada uma variedade de efeitos farmacológicos dos canabinóides de interesse
terapêutico, mas que ainda necessitavam de confirmação por estudos clínicos, assim como
Mohamed Ben Amar já havia indicado em 2005.
Destes estudos até os dias atuais houve uma ampliação significativa de utilizações de
derivados da maconha para tratamento médicos em vários países do mundo, tal como já foi
citado. Esta abertura foi influenciada e também possibilitou uma avalanche de estudos recentes
em todo o mundo.
Em busca simplificada no PubMed, o termo “canabidiol” (CBD), primeiro princípio
ativo da maconha a ser reconhecido com fins terapêuticos, apresenta 1.147 resultados para os
últimos 10 anos (2010 - 2017), e o termo “tetrahydrocannabinol” (THC) 2.837 resultados, para
o mesmo período. Em busca simplificada no Banco de Teses e Dissertações da Capes, os
mesmos termos apresentam 64 e 13 resultados, respectivamente, de estudos nacionais, feitos
por estudantes de pós-graduação da área da saúde entre 2011 e 2016, testando estas substâncias
em uma variedade de patologias e sintomas clínicos. A exorbitante diferença na quantidade de
estudos elencados dentro e fora do país precisa ser contextualizado em termos de contagem, já
que o PubMed reúne estudos do mundo inteiro e, além disso, deve-se considerar que até 2015
54
pesquisas com maconha no Brasil eram proibidas e raramente obtinham autorizações especiais
para serem realizadas.
Os nomes das substâncias citadas nas buscas direcionam a procura para trabalhos das
ciências da saúde, pois consistem em termos específicos que devem ser apontados precisamente
nestes estudos. Já na intenção de quantificar os estudos das demais áreas do conhecimento sobre
este tema, o contexto científico brasileiro é, contudo, mais limitado. Buscas por “maconha
medicinal”, “cannabis medicinal”, “óleo de maconha”, “óleo de cannabis”, apresentam menos
de 10 resultados, dentre os quais a maioria refere-se a apenas um dos termos e não
correspondem ao assunto.
A boa notícia é que esta falta de pesquisas e trabalhos está se tornando um fato do
passado. Como veremos, as aberturas possibilitadas pelas resoluções da Anvisa a partir de 2015,
preveem a realização de estudos e pesquisas com maconha no país e isso está começando a
acontecer.
Antes disso, Frederico Policarpo (2019) remete o “renascimento da maconha como
remédio” no Brasil a partir da atuação de Elisaldo Carlini que, em 2006, apresentou na 58º
Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) a conferência
“Maconha: medicamento esquecido que renasce pela ciência28”. Na ocasião, Carlini defendeu
os potenciais dos usos terapêuticos da maconha, embasando-se na revisão de literatura cientifica
e em suas próprias pesquisas, e anunciou a elaboração de um documento sobre os efeitos
terapêuticos da planta por um grupo de especialistas da recém-criada Associação Brasileira
Multidisciplinar sobre Drogas (Abramd), em contraposição ao manifesto lançado pelo
Departamento de dependência química da Associação Brasileira de Psiquiatria, no início de
2006, que condenava o uso da maconha (POLICARPO 2019).
Atualmente algumas universidades brasileiras já estão desenvolvendo pesquisas sobre
o uso medicinal da maconha e, possivelmente em breve, devem apresentar resultados
significativos no contexto nacional que reafirmam os estudos estrangeiros sobre o tema.
Na Universidade Federal da Paraíba, como será abordado em capítulo posterior, o
Projeto de extensão “Cannabis medicinal: a educação é o melhor remédio e pode salvar uma
vida”, coordenado pela Professora Doutora Katy Lísias Albuquerque, do Departamento de
Farmácia, acompanha pacientes infantis em tratamento com óleos de Cannabis e observa a
28
Disponível em: http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/pdf/5%20Medicina%20&%20Sa%FAde.pdf. Consultado
em 22/11/2019.
55
evolução dos quadros, relatando seus efeitos e buscando encontrar dosagens e composições
mais adequadas para cada paciente.
No departamento de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro está sendo
desenvolvido o projeto intitulado “FarmaCannabis”, coordenado pela Professora Doutora
Virgínia Martins Carvalho que, em parceria com famílias que já usam óleos artesanais extraídos
da maconha, tem como foco principal analisar os extratos de Cannabis e oferecer suporte
farmacêutico aos médicos e seus pacientes. Este projeto consolidou em 2017 uma parceria com
a Fundação Oswaldo Cruz e pretende levar ao desenvolvimento do primeiro fitomedicamento
à base de maconha no país.
Na Universidade Federal de São Paulo existe um grupo de estudo multidisciplinar que
analisa, discute e publica boletins sobre a maconha, liderado pelo médico pesquisador Doutor
Elisaldo Carlini que, como expliquei antes, é reconhecido pelo pioneirismo em pesquisas sobre
Cannabis no Brasil.
Já a Universidade de São Paulo, no campus de Ribeirão Preto, inaugurou em 2017
o Centro de Pesquisas em Canabinóides, da Faculdade de Medicina, para realização de
pesquisas e desenvolvimento de medicamentos contendo canabinóides. O projeto é resultado
da parceria entre a USP e a indústria farmacêutica Prati-Donaduzzi e já tem aprovado estudo
clínico sobre o uso do canabidiol (CBD), um dos primeiros canabinóides descrito
cientificamente, acompanhando mais de 120 crianças e adolescentes com epilepsia refratária,
de acordo com a própria instituição29. Percebe-se como é evidente a relação entre pesquisa
clínica e investimentos da indústria médica/farmacêutica, o que poderá indicar futuros
caminhos para a questão dos usos da maconha medicinal.
No departamento de Gerontologia da Universidade Federal de São Carlos, um estudo
em desenvolvimento avalia o efeito do canabidiol no controle da ansiedade em pessoas
acometidas pela doença de Parkinson, cuja expectativa é confirmar a ação do canabidiol no
combate à ansiedade e, por consequência, na diminuição dos tremores causados pela ansiedade
em portadores de Parkinson30.
Estas são algumas das iniciativas de pesquisas sobre os efeitos terapêuticos da maconha
já em desenvolvimento no Brasil e, além delas, outros institutos e departamentos de pesquisas
clínicas e laboratoriais têm se dedicado ao tema, como Elisaldo Carlini, já citado, os
neurocientistas, com produções conjuntas, Sidarta Ribeiro (2015) e Renato Malcher-Lopes
29
http://jornal.usp.br/universidade/usp-tera-primeiro-centro-de-pesquisa-em-canabidiol-do-pais/
30
http://www.saci.ufscar.br/servico_release?id=94847&pro=3
56
(2007, 2008), Renato Filev (2010), os médicos João Ricardo Lacerda de Menezes (2018),
Dartiu Xavier da Silveira (2002, 2005, 2017), entre outros pesquisadores das ciências da saúde
que tem se dedicado a identificar como as substâncias presentes na maconha agem no corpo
humano e propiciam resultados diversos que podem ser aplicados em tratamentos de saúde.
Já nas Ciências Humanas, os interesses pelo recente caso da maconha medicinal no
Brasil recaem, sobretudo, em estudos da área do Direito e das Ciências Sociais que têm alguns
trabalhos em desenvolvimento atualmente, porém poucos concluídos.
57
referência para quem seja conhecer este campo, porque pretendo me dedicar mais
especificamente aos debates diretamente relacionados com o assunto aqui desenvolvido. Ainda
assim, citá-los aqui, serve de recomendação aos leitores menos experientes nesta área, assim
como foram imprescindíveis para mim desde que me debrucei sobre questões deste campo
desde o mestrado (CAMPOS 2013).
Especificamente sobre a maconha no Brasil, é interessante recuperar os chamados
estudos folclóricos brasileiros que, sob a perspectiva de “valorização dos aspectos folclóricos
brasileiros enquanto patrimônio a ser considerado na formação da identidade brasileira”
(ZANATTO 2016, p. 207), curiosamente citam a maconha como planta de domínio e utilização
por diferentes grupos ao longo de décadas passadas. Em seu livro intitulado Medicina Rústica
(1961), Alceu Maynard Araújo faz um estudo da história da medicina brasileira e, a partir da
sua pesquisa de campo no município de Piaçabuçu, estado de Alagoas, toma como base os
dados coletados para classificar e analisar o acervo recolhido dividindo-o em três categorias
básicas: Medicina Mágica, Medicina Religiosa e Medicina Empírica. Para ele
A descrição deste uso por grupos formados apenas por homens, apresenta ainda
observações sobre os efeitos percebidos após o uso.
59
Curiosamente, esta descrição não apresenta efeitos psíquicos, como o próprio autor
conclui. Estando acompanhado do prefeito da cidade, farmacêutico diplomado, na observação
destes grupos, as constatações de ambos são interessantes ao sinalizarem o caráter
preconceituoso e erroneamente associado a um “mito” que precisa ser revisto.
Décadas antes, no início do século, outro relato de uso coletivo de maconha pode ser
relacionado ao caso descrito, já que apresenta características similares, descritas por Francisco
de Assim Iglesias (1958)
60
Porém, ao contrário do relato anterior, a descrição de Iglesias é recheada de juízos de
valor (“versos toscos”) e elenca diversos efeitos psíquicos derivados do uso da maconha pelos
integrantes do clube de diambistas, enfatizados em tom pejorativo.
31
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=oBgU1fYhZRc, consultado em 23 de abril de 2019.
61
feito com as folhas da planta. A reportagem segue informando a apreensão de quatro sacos de
folhagens de maconha e alerta do risco de prisão caso alguma pessoa tivesse a planta no quintal,
já que um inquérito foi aberto para investigar o caso.
Dada a repercussão deste vídeo na internet com mais de 250 mil visualizações, 22 anos
após a reportagem, uma equipe da BBC32 investigou o acontecido e apurou o desenrolar da
questão.
32
Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45475933, consultado em 23 de abril de 2019.
62
também", comenta Renilda. – Trecho da reportagem da BBC, de 14 de
setembro de 2018.
Neste caso, os moradores e usuários da maconha reconhecem a planta apenas pelos seus
benefícios medicinais, ao passo que sequer conheciam a planta pelos nomes reconhecidamente
associados à ela como droga, maconha, cannabis ou outro. Em nenhuma das reportagens
aparece como os efeitos terapêuticos da planta foram descobertos pela comunidade, mas fica
claro o reconhecimento coletivo dos benefícios proporcionados por ela.
64
As considerações e o exemplo colocado por Rafael Zanatto corrobora com uma das
grandes questões que envolvem o uso medicinal da maconha nos dias de hoje, já que, como
veremos nos capítulos seguintes, a principal demanda das famílias de usuários desta terapêutica
é, atualmente, pelo direito de plantar e extrair o óleo da maconha, seja de forma individual ou
coletiva, com a intenção de reduzir os custos com a compra de extratos e derivados, mas
também para controlar quais plantas, e suas respectivas concentrações de canabinóides, são
mais apropriados para cada patologia. Diametralmente oposto, como também será abordado,
está o Conselho Federal de Medicina, que continua a sustentar uma posição bastante
conservadora em relação ao uso de substâncias isoladas, retiradas da maconha ou sintetizadas
e veementemente contrária a prescrição do uso da planta e seus derivados contendo todos os
princípios ativos presentes no vegetal.
Esta questão nos coloca diante de outra abordagem mais recente e bastante necessária
que nos cabe também pontuar aqui. Muito presente nos estudos médicos, que advogam
unicamente pelo uso de medicamentos industrializados, uma distinção primordial entre
remédios e medicamentos está em foco. Conforme esclarece Eloir Paulo Schenkel (1991),
remédio e medicamento têm significados diferentes, pois,
Seguido esta distinção, fica claro que a disputa em torno do uso da maconha para fins
medicinais parte do entendimento desta planta como medicinal e, portanto, como um remédio
que pode ser utilizado em preparações caseiras, artesanais, e não necessariamente através de
um medicamento fabricado em laboratório, como meus interlocutores da Liga Canábica
defendem.
A antropologia dos medicamentos se apresenta como uma área de investigação
crescente nas últimas décadas e em aprofundamento (AZIZE 2012), que nos interessa dentro
da perspectiva dos usos medicinais da maconha e das discussões que perpassam as formas de
uso e administração, cujos conhecimentos, pautados em uma racionalidade médica
(CAMARGO JR. 2005), estão em disputa, pois advogam o uso unicamente de remédios
manipulados, isolados e sintéticos, tal como expôs Zanatto (2016). Negligencia, assim, o
65
potencial medicinal da planta in natura e seus derivados extraídos de forma menos controlada
de acordo com parâmetros clínico-laboratoriais.
Se atentarmos para a história da antropologia, percebemos que a presença de
medicamentos, melhor dizendo, o uso de substâncias para tratar e curar enfermidades, aparece
na antropologia desde as etnografias clássicas, como a revisão da farmacopeia Zande, na obra
de Evans-Pritchard (2005), no Pensamento Selvagem (2010) de Lévi-Strauss, ao refletir sobre
a relação entre conhecimento, classificação e o uso de substâncias naturais para a cura de
enfermidades, assim como Victor Turner ao tratar do curandeiro Ndembu e Lunda (2005), para
citar apenas algumas, embora medicamentos, como conhecemos atualmente, comprimidos,
capsulas, injetáveis, pomadas, sprays, géis, etc., só tenham se tornado objeto de investigação da
antropologia a partir da década de 1980. Anteriormente ao interesse pelos fármacos, as ciências
sociais já tratavam sobre questões transversais, perpassadas pelos medicamentos, como
questões referentes à assistência em saúde, a expansão da indústria farmacêutica, à aspectos
simbólicos dos fármacos, à globalização e os fluxos de medicamentos entre países, questões de
consumo e os estudos sobre objetos e, ao passar a ser foco central, os medicamentos ganham
uma gama de abordagens e interesses de pesquisa com focos e contextos variados, que vão
desde etnografias em áreas indígenas até pesquisas no ciberespaço (CASTRO, 2012). As
nuances presentes nesta seara, dentro da antropologia, são explanadas por Rosana Castro (2012)
em sua revisão teórico-metodológica da antropologia dos medicamentos – com o devido
cuidado e referenciamento do termo. Centrando sua revisão nos estudos dos medicamentos e
suas análises específicas, Rosana Castro apresenta algumas das abordagens principais sobre o
tema e, entre elas, recupera o ponto de vista proposto a partir de Appadurai (2008) sobre a vida
social das coisas para pensar a circulação de mercadorias, suas trajetórias e diversos
significados e sentidos atribuídos a elas nestes percursos, considerando imensa variação
valorativa conforme cada situação e mercadoria.
66
Seguindo esta linha de entendimento, Kopytoff acrescenta que as mercadorias não são
coisas em si mesmas, são na verdade bens produzidos a partir de um processo cognitivo e
cultural, já que os objetos em geral precisam de um conjunto de ações para serem feitos,
comercializados, adquiridos e valorizados como tal, ou seja, nas palavras dele, “uma biografia
econômica culturalmente informada de um objeto o encarnará como uma entidade
culturalmente construída, dotada de significados culturalmente específicos e classificada
reclassificada em categorias culturalmente constituídas” (Kopytoff, 2008, p. 94 Apud
CASTRO, 2012, p. 151).
Adotando este raciocínio e seguindo em sua interpretação, Rosana Castro conduz a
perspectiva de uma biografia cultural das coisas à uma ideia metodológica que acompanha a
prática antropológica sobre as pessoas, através da investigação cientifica dos objetos que, com
as contribuições de outros autores como Van der Geest, Whyte e Handon (1996), nos conduz a
proposta destes autores de uma análise biográfico-cultural das coisas, inclusive dos
medicamentos, para os quais, especificamente, através da “identificação de fases da vida de um
medicamento a partir das entradas etnográficas e analíticas [...] , sendo cada uma dessas etapas
tanto um ramo possível de pesquisa quanto diferentes regimes de valores pelos quais os
fármacos passam.”(CASTRO, 2012, p. 152). Nesta proposta de análise dos medicamentos,
cinco fases são identificadas na biografia dos fármacos e caracterizadas por um contexto
composto por atores específicos, também permeados por regimes de valores específicos e que
permite uma separação da expertise que os produz, distribui e prescreve (VAN der Geest et al,
1996, p. 170 apud CASTRO, 2012, p. 152.)
Figura 5 Tabela sobre as fases da vida dos medicamentos segundo Van der Geest, Whyte e Hardon
(1996).
67
De acordo com a tabela apresentada na proposta de Van der Geest, Whyte e Hardon
(1996), fica clara que tal metodologia é apropriada para o estudo de medicamentos que se
tornam remédios advindos da indústria farmacêutica, como os atores sociais envolvidos,
descritos na tabela, deixam claro. Porém, se retomarmos os termos remédio e medicamento,
anteriormente esclarecidos e diferenciados por Schenkel (1991), perceberemos que este
percurso não pode ser aplicado aos remédios em geral, sobretudo aos das medicinas tradicionais
que nem sempre são de interesse de empresários e suas indústrias voltadas para o setor da saúde
humana, nem mesmo do marketing e da publicidade, se recuperarmos também a disputa entre
saberes médicos.
Esta discussão, ao tratar do percurso entre as fases de vida dos medicamentos, conforme
a proposição de Van der Geest, Whyte e Hardon (1996) destoa dos dados desta pesquisa porque,
o caso da maconha terapêutica, no Brasil especificamente, os remédios da cannabis têm uma
trajetória diferente, afinal eles partem do interesse e iniciativa de pacientes e seus familiares em
testarem produtos importados e elaborarem seus próprios remédios, até mesmo ilegalmente,
antes do interesse de cientistas, empresários e indústrias farmacêuticas atuantes em nosso país.
A tabela proposta nos interessa por contemplar as etapas que serão discutidas ao longo do
processo de conhecimento das propriedades medicinais da maconha e suas formas de utilização
pelas famílias que foram acompanhadas nesta pesquisa. Veremos que estas etapas, para o caso
aqui analisado, não podem ser compartimentalizadas e distinguidas de forma tão marcada. No
Brasil, um gráfico destas fases sobre a maconha medicinal seria um círculo contínuo,
protagonizado por pacientes e famílias usuárias, que são responsáveis por quase todo o
processo, da fase de produção e marketing (1ª fase), passando pela prescrição (e seu poder de
convencimento de médicos que passam a assumir esta responsabilidade), distribuição, uso e
eficácia.
Ainda assim, esta proposição teórica e metodológica interessa aos propósitos desta
pesquisa no que trata da reinterpretação e valoração específicas, de cunho cultural, que as
famílias que utilizam os derivados de maconha (re)elaboraram não apenas sobre a planta, mas
também sobre a o papel e da relevância dos remédios laboratoriais e da autoridade médica, que
são considerados inquestionáveis. Veremos que esta não é mais a verdade absoluta para as
pessoas que passaram a entender a maconha de outra forma, a partir dos resultados obtidos com
o uso medicinal desta planta, contrariando as recomendações de seus médicos e este conjunto
valorativo alinhado com a proposta descrita por Rosana Castro e que perpassam questões
68
culturais específicas desta mudança de entendimento e posicionamento crítico sobre os saberes
e terapias.
Mais adiante, a partir dos dados desta pesquisa, discutirei sobre outro ponto importante
para a antropologia da saúde e transversal ao uso medicinal da maconha, diretamente
relacionada com os temas recém apresentados e que ampliam o entendimento sobre remédios,
fármacos e saúde, cujo foco está nos trabalhos dedicados ao entendimento da formação de uma
expertise leiga (EPSTEIN 1993, 1995) e a autonomia individual no percurso do cuidado e da
saúde através do itinerário terapêutico33. Trataremos deste tema no capítulo seguinte por
considerar que as trajetórias que acompanhei são permeadas diretamente por estas questões e,
portanto, estarão em diálogo direto.
Próximas à pesquisa aqui desenvolvida, gostaria de destacar as dissertações de mestrado
sobre maconha medicinal, defendidas por Fabiana Oliveira, pelo Programa de Pós-graduação
em Antropologia Social da Universidade de Brasília (OLIVEIRA, 2016a), e por Monique
Oliveira, pelo Instituto de Estudos da Linguagem e Laboratório de Estudos Avançados em
Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (OLIVEIRA, 2016b). Esses trabalhos tratam
dos primeiros momentos da formação da demanda societária e pública das famílias de Brasília,
Rio de Janeiro e São Paulo. Considerei estas dissertações de grande valia para a minha pesquisa,
já que os fatos e os eventos contemplados nas pesquisas realizada por pelas autoras tratam de
um período anterior e importantíssimo para o meu contexto de pesquisa e sobre o qual eu não
teria o mesmo acesso, porque ainda não desenvolvia esta pesquisa na época. Estas dissertações
de mestrado foram bastante úteis para fazer a identificação dos documentos e obter
esclarecimentos sobre os percursos burocráticos traçados entre 2014 e 2015, passos iniciais
importantes para os temas que serão tratados aqui.
Destaco também a dissertação de mestrado de Lucas Lopes Oliveira, pelo Programa de
Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da Universidade Federal
da Paraíba (OLIVEIRA 2016c), voltada especificamente para o caso paraibano e aos discursos
médico e jurídicos envolvidos, de muito valor para recuperar as tramitações judiciais
mobilizadas no estado pelas famílias dos primeiros pacientes, associações em parceria com o
Ministério Público Federal.
33
Ver “O saber de quem Usa”, no Capítulo 4.
69
1.4. Maconha em foco na Mídia
34
Notícia veiculada pela CNN, disponível em http://edition.cnn.com/2013/08/07/health/charlotte-child-medical-
marijuana/index.html e consultada em 10 de agosto de 2017.
35
Lojas onde são comercializadas variedades de maconha e acessórios para seu consumo, comum nos Estados
Unidos e em outros países onde o consumo medicinal e/ou recreativo é permitido.
70
a Charlotte. Em seguida, a mãe relata os impressionantes efeitos observados desde as primeiras
horas após a ingestão da primeira dose e que duraram 7 dias sem que Charlotte tivesse crises
convulsivas. A partir daí os pais da menina entraram em contato com os irmãos Stanley,
produtores e proprietários de uma rede de dispensers, para conseguirem mais maconha, da
variedade certa, para o tratamento de Charlotte. O caso dela foi responsável pela criação de uma
variedade de Cannabis que leva o nome da menina, e também de uma organização sem fins
lucrativos, a Realm of Caring Foundation36, que fornece maconha para adultos e crianças que
sofrem de uma série de doenças, e que não podem pagar pelo tratamento.
Quando a matéria da CNN foi ao ar em 2013, Charlotte tinha 6 anos e estava se
desenvolvendo novamente, voltou a andar, falar e comer, e continuava seu tratamento com uma
média de 3 a 4 miligramas do óleo de Cannabis por quilo corporal diariamente. Seus pais
passaram a registrar apenas 2 ou 3 crises convulsivas por mês e outras 41 pessoas começaram
a usar o mesmo óleo que a menina, o que serviu de alívio para os sintomas de doenças graves
como epilepsia e câncer.
Em sua dissertação, Fabiana Oliveira (2016a) explica que o caso de Charlotte teve
grande projeção nos Estados Unidos, o que motivou que outros pais americanos seguissem essa
iniciativa e, através do exemplo concreto e do contato com esses pais, as famílias brasileiras do
Rio de Janeiro e Brasília souberam dos resultados e investiram na importação clandestina
(Oliveira 2016a).
O curta metragem “Ilegal” (ILEGAL: a vida não espera., 2014a), com duração de 5’41’’,
lançado em 2014, conta a história de Katiele Bortoli Fischer, mãe de Anny, com 5 anos na
época, portadora da síndrome CDKL5, problema genético raro que causa epilepsia grave e sem
cura. Katiele e o marido descobriram o canabidiol (CBD) como uma possibilidade de
tratamento para redução das crises convulsivas e regeneração do desenvolvimento da filha. Na
época em que foi gravado o documentário, o uso e a importação de qualquer derivado da
maconha constituía crime no Brasil. O filme conta resumidamente a história de descoberta desta
substância, da importação ilegal até os resultados obtidos com o uso do CBD em Anny,
buscando ampliar o conhecimento e a aceitação sobre o uso medicinal da maconha, assunto
polêmico e vetado das agendas públicas no país até então. O documentário se utiliza de
linguagem simples e didática para explicar os processos que envolvem a importação e o uso do
derivado da maconha utilizado por Anny Fischer e choca o espectador ao mostrar a dificuldade
36
https://www.theroc.us/, consultado em 10 de agosto de 2017.
71
imputada para que um tratamento de saúde possa ser acessível a pacientes em função da
ilegalidade da planta que contém o princípio ativo do remédio.
Em 30 de março de 2014, a exibição do curta-metragem “Ilegal: a vida não espera” no
Fantástico, programa dominical noturno da Rede Globo de TV, não apenas divulgou
amplamente a informação de que este tratamento era possível e estava dando resultados
surpreendentes, mas possibilitou também a captação de recursos e financiamento para a
produção do longa-metragem de mesmo título (ILEGAL: a vida não espera., 2014b), lançado
no mesmo ano em circuito nacional de salas de cinema, e tratando do mesmo tema, porém com
mais detalhes e apresentando outros casos em que o uso medicinal da maconha proporciona
resultados surpreendentes. A visibilidade do tema impulsionado pela televisão e pelo filme
documentário também pode ser considerada relevante na posterior mudança de leis e na
permissão e regulamentação da importação de Canabidiol por pacientes no Brasil, como tratam
Rogério Azize e Martinho Braga Batista e Silva (2015). A exemplo disso, os pais de Anny
Fischer foram a primeira família brasileira a receber permissão especial da ANVISA para
importar legalmente o extrato de CBD em 3 de abril de 2014, dias após a exibição da matéria,
decisão que serviu de precedente para vários outros pacientes e deu início a uma série de
medidas posteriores para a regulamentação desta conduta.
Se abrirmos a página inicial da Netflix37 e buscarmos por “maconha”, “Cannabis”,
“weed” ou “marijuana”, o resultado exibirá mais de vinte produções audiovisuais sobre o tema,
com abordagens que vão desde comédias pastelão e reality shows de culinária canábica até
filmes documentários que abordam questões legais, raciais, medicinais, recreativas, de cultivo
sobre a erva – de diversas nacionalidades. Pode não parecer grande coisa encontrar essa
multiplicidade de conteúdo, de temáticas variadas, sobre a maconha, porém, se tratando de uma
planta criminalizada por tanto tempo em grande parte do mundo, este boom de visibilidade e
crescente aceitação em uma plataforma em amplo uso nos dias de hoje, nos permite perceber
como a maconha vem abrindo espaço midiático e suas potencialidades vem sendo exploradas
pelos produtores destes materiais audivisuais.
O caso da Netflix é apenas um exemplo, que nos mostra como as novas tecnologias de
comunicação estão presentes na exploração e atualização de informações que por muito tempo,
ficaram restritas aos que estivessem dispostos a procurar conhecimentos científicos bastante
37
Netflix é uma provedora global de filmes e séries de televisão via streaming, atualmente com mais de 100
milhões de assinantes. Produz conteúdo próprio e disponibiliza séries e filmes de produtoras de diversas
nacionalidades.
72
específicos sobre o tema em questão. No caso da maconha, em um único documentário, como
“The Legend of 420” (2017), é possível ver citados diversos estudos realizados desde a década
de 1960, ouvir depoimentos de usuários (medicinais e recreativos), ver exemplares de uma
gama de variedades da planta, cultivos indoor e outdoor, dispensers, toda a variedade de formas
de uso e muitas outras informações em uma hora e meia em frente à televisão, computador,
smartphone ou qualquer outra tela conectada à internet. Vale salientar que um dos produtos
audiovisuais disponíveis na plataforma da Netflix sobre a temática da maconha é o
documentário Ilegal, citado acima, e crucial para entender uma visão cultural que passou a ser
assimilada e legitimada socialmente, ao menos em certos segmentos sociais, no Brasil a partir
de 2014.
O crescimento da veiculação de informação sobre a maconha é igualmente exponencial
nos meios de comunicação e mídias mais convencionais. Para alguém com acesso à internet
que começa a buscar informações preliminares para qualquer pesquisa – seja para uma pesquisa
acadêmica, por curiosidade ou qualquer outra motivação -, fazer uma busca direta nas redes
sociais sobre maconha ou maconha medicinal terá um retorno inumerável de páginas, perfis
pessoais, grupos e postagens sobre o assunto sob várias perspectivas e temas transversais, além
de notícias dos últimos anos que demonstram o crescimento desta pauta em jornais e revistas,
que podem ser acessados em suas versões virtuais.
Assim como acontece com muitos outros temas de pesquisas acadêmicas, a minha busca
preliminar por informações sobre as mobilizações pelo uso medicinal da maconha se deu pelos
meios virtuais e a partir de uma reportagem televisiva. Notícias vinculadas em meios impressos,
matérias de jornais e programas televisivos estão disponíveis em suas respectivas páginas
virtuais ou no YouTube. Associações de pacientes (inclusive as com quem fiz pesquisa) mantêm
seus portais, páginas e perfis em redes sociais (facebook, principalmente) atualizados com
matérias, vídeos e outros tipos de publicações sobre seu interesse central, principalmente
quando elas foram entrevistadas ou são citadas nos materiais. Os perfis pessoais de membros
das associações também são canais de divulgação destes conteúdos. Enfim, contabilizando
todas essas formas de divulgação, pode-se perceber que atualmente, as redes sociais têm
destaque na visibilidade de questões como esta. Durante a pesquisa, passei a acompanhar
páginas virtuais em redes sociais, entrar em grupos e adicionar pessoas com as quais estive em
contato e, aos poucos, outras pessoas e páginas também passaram a me adicionar como contato
virtual, mesmo pessoas que não conheço, mas que pude perceber, através das suas publicações
73
e compartilhamentos, fazem parte de associações de várias partes do país e tem interesse pelo
tema.
Nesse sentido, as redes sociais são responsáveis por formar um tipo de teia, interligando
pessoas virtualmente, extremamente relevante e amplamente utilizada nos dias atuais para
diversos fins e uma incontável quantidade de propósitos. No caso da maconha medicinal,
Facebook, Instagram e WhatsApp são importantes ferramentas para a articulação entre
diferentes associações no Brasil, sobre a qual trataremos no capítulo seguinte pela sua
relevância na comunicação, mas que importa ser citada aqui para explicar que a busca por
informações sobre essa temática se dá muito também através dessa rede de compartilhamento
de conteúdos variados sobre o tema. Por passar a integrar essa rede ao longo da pesquisa, foi
comum ver publicações repetidas várias vezes, até simultaneamente, pela internet e o que
começou para mim como uma busca preliminar acabou se tornando uma estratégia de
acompanhar a atuação de diversas associações brasileiras e mais pontualmente algumas pessoas
mais atuantes e representativas desta pauta. Utilizando uma ferramenta que o Facebook
disponibiliza, passei a salvar dentro da própria rede social, uma pasta intitulada “maconha
medicinal” com todos os conteúdos que apareciam na minha página pessoal sobre este assunto
e, entre 2017 e o início de 2019 esta pasta contava com 166 links salvos, de publicações datadas
a partir de 2014. A análise apenas deste material seria suficiente para uma pesquisa inteira, com
foco nos temas e abordagens dados pela mídia ao recente uso terapêutico da maconha no Brasil
e no mundo.
Embora esse não seja o foco principal aqui, é interessante perceber o papel dessa
visibilidade, sobretudo se fizermos um comparativo com outras questões de saúde que também
tiveram na mídia um destaque (salutar ou não, dependendo dos conteúdos circulados) para o
conhecimento cultural sobre o tema, tal como mostra o caso da epidemia do HIV/AIDS a partir
da década de 1980. Em sua pesquisa de doutorado sobre pessoas vivendo com HIV e AIDS no
Rio de Janeiro, Carlos Guilherme do Valle (2000) destaca o papel que os meios de comunicação
tiveram, entre 1982 e 1996, na divulgação para a sociedade brasileira de uma variedade de
assuntos relacionados a AIDS e como a elaboração desses discursos midiáticos produzem uma
visão cultural sobre o tema e sobre as pessoas afetadas.
As one of its social and cultural aims, the news mass media claims to provide
information to society at large. According to Herzlich and Pierret (1989), the
news media has an important and unique role in constructing a phenomenon
to be apprehended and understood by social actors and groups. As a
‘trustworthy’ source based on ‘fact’ and ‘truth’, the news media have also
74
played a decisive pedagogic role in the construction of cultural representations
of AIDS, mostly in close association with its construction by biomedicine and
scientific research. Although they have different cultural and social objectives,
both are forms and sources of knowledge on ‘real facts’ that have depended
on ideas of technical and scientific credibility. Without grounded information
on this new epidemic, the news media had to rely on the changing circulation
of scientific, biomedical, and epidemiological reports, which also had their
initial problems on the exact definition of HIV/AIDS. Supported by a range
of different dominant cultural discourses and sources (including religion), the
news media produced their own discursive practices that popularized a set of
representations about the AIDS epidemic. Social and journalistic rumours
about AIDS have been continually reproduced by means of constructing the
epidemic with the aid of ‘scientific truth’. Therefore, rumour and scientificity
have both had a formative role in the cultural construction of AIDS. (VALLE,
2000, p. 79)
As part of the cultural field in which the news media are produced, the mass
communication weekly news magazines exert a diffuse pedagogic action in
the sense of an “imposition of a cultural arbitrary” (Bourdieu and Passeron,
1977:5). This cultural arbitrary is defined in terms of the legitimacy that
characterizes, firstly, medico-scientific knowledge and, secondly, the cultural
authority in which the mass media defines its power as the trustworthy source
of ‘information’. Therefore, the power of symbolic imposition of the news
media results from the social circulation and the incorporation of a cultural
arbitrary re-elaborated from other sources, such as biomedicine and
epidemiology, which are mainly produced and circulated by socially dominant
agents and institutions, especially scientists, health professionals, and health
authorities at different levels (Ministry of Health, local authorities, etc).
Following Bourdieu and Passeron (1977), I also understand that different
forms of pedagogic action, brought about by various agencies and institutions
(and their cultural products and social policies), can be mutually reinforcing
through their own ‘effects of domination’, that is, by means of the circulation
75
of an imposed cultural arbitrary or, in other words, the social reproduction of
symbolic violence. In addition, forms of pedagogic action are asserted by the
misrecognition of the power relations and the authority embedded in their own
symbolic legitimacy. (VALLE, 2000, p. 80)
Neste sentido, considerando que existe uma seletividade de significados simbólicos nas
representações apresentadas pela imprensa que produziram e divulgaram informação sobre a
AIDS nas décadas de 1980 e 1990, podemos visualizar a mesma parcialidade e visão seletiva
em relação à maconha, sobretudo por um viés estritamente biomedicalizado, ou seja,
direcionado não apenas pela legitimidade do discurso biomédico, mas também pelo viés
farmacêutico-industrial que pressupõe o uso de derivados da maconha com o isolamento dos
princípios ativos produzidos em laboratórios, naturais e sintéticos. Esta é sim uma visão parcial
sobre a questão, já que, embora as associações e grupos de pacientes sejam muitas vezes citadas
ou entrevistadas para as matérias produzidas pelos mais diversos meios de comunicação
atualmente, este recorte biomédico não é o caminho defendido por estes pacientes e seus
familiares, mas é este o discurso que chega à sociedade mais ampla em formato de informação
e conhecimento cientifico divulgado pelas mídias massivamente.
Igualmente, podemos perceber que, no caso dos discursos sobre o uso medicinal da
maconha no Brasil, existe uma disputas de interesses que está à margem das informações
noticiadas e amplamente divulgadas, pois, se o discurso biomédico, hegemonicamente
dominante e legitimo, serve de embasamento para uma massificação de conhecimento e
aceitação da maconha não mais apenas como droga psicoativa, por outro lado, este mesmo
discurso limita o debate à estes termos de interesse do saber médico ocidental, sem possibilitar
76
que outros tipos de conhecimentos, embasados nos saberes tradicionais, por exemplo, sobre a
medicina natural e os fitoterápicos, formas de extração artesanal dos óleos concentrados, etc.,
sejam de conhecimento mais amplo. E ainda, sequer possibilitam que uma discussão mais
ampla sobre o que é maconha e quais questões sociais, políticas, econômicas, culturais, de
saúde, entre outras, sejam postas em pauta. Assim, percebe-se claramente o quanto é parcial e
limitado o conhecimento difundido ao deter-se unicamente ao medicinal atrelado ao saber
médico ocidental.
Por outro lado, se considerarmos que os pacientes e familiares envolvidos nesta questão
também participam da produção e divulgação deste conteúdo direcionado e limitado, podemos
perceber que existe o interesse em avançar nas discussões, mesmo sabendo destas condições.
Conceder entrevistas, mostrar fotos que comparam o “antes e o depois” do uso medicinal da
maconha, eletrocardiogramas comparativos, expor as crianças para mostrar a evolução do
quadro clínico, entre outros argumentos visuais, são também ferramentas que contribuem para
a construção de uma visão favorável às terapias com maconha, na tentativa de desfazer o
entendimento depreciativo que grande parte da população tem em relação à esta planta.
Entendemos, a partir da análise de Valle, que o caso da AIDS teve grande repercussão
midiática desde o período inicial da epidemia, mas também passou por um continuo e intenso
processo social de disputas sobre as representações culturais e sociais das pessoas doentes,
muitas vezes com interpretações depreciativas ou estigmatizadoras, que eram alvo constante de
rejeição por parte das associações, ONGs AIDS e grupos de pacientes. Desse modo, constata-
se a importância da imprensa escrita e dos meios de comunicação de massa na formação do
conhecimento e dos julgamentos sociais sobre o HIV e a AIDS no Brasil. Nos dias atuais, e
novamente comparando com o caso da demanda pelo uso medicinal da maconha no país, além
das formas de divulgação de conhecimento e informações serem mais diversificadas, com a
77
ampla utilização dos meios digitais, percebemos que a produção de notícias não está mais
restrita aos meios de comunicação tradicionais, mas há, tal como foi exposto, uma gama maior
de segmentos sociais que produz e divulga seus conteúdos de forma independente e
compartilhada em rede. Ainda assim, as informações massivas que podem ser acessadas sobre
o tema continuam seguindo os discursos legitimados da medicina que, como veremos, mantém
um discurso bastante limitado sobre a maconha e seus potenciais medicinais.
1.5. Nem tudo são Flores – a oposição ao uso da maconha para qualquer fim
Até aqui, pode-se perceber que encontramos avanços no desenrolar deste tema, como o
aumento de pesquisas e informações, discussões transversais e visibilidade midiática. No
entanto, o cenário de progresso ainda encontra resistência por uma parte da comunidade
cientifica e médica e na situação jurídico legal que regulamenta a importação e o uso de terapias
à base de cannabis, como será aprofundado no capítulo 6.
É notório e compreensível que as ciências da saúde tenham grande importância nas
discussões que permeiam o uso da maconha para fins terapêuticos, afinal é esta área do
conhecimento, de modo geral, que endossa ou não, através de pesquisas, prescrições de uso e
acompanhamento de quadros clínicos, os tratamentos recomendados para cada situação de
saúde no Brasil. Portanto, é compreensível que este seja um campo científico fortemente
buscado pelos pacientes e seus familiares para viabilizar aquilo que vem sendo comprovado na
prática pelos próprios pacientes, a eficácia das terapias com derivados da maconha. No entanto,
é contraditório que seja exatamente esta área de conhecimento o maior entrave para a expansão
e desburocratização destas terapias, haja vista a resistência que grande parte da comunidade
médica mantém em relação à maconha.
Apesar da regulamentação para importação, as famílias que buscam o acesso aos
tratamentos com maconha medicinal enfrentam uma barreira institucional e político-
corporativa bastante relevante neste contexto. O Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão
que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica, tem se
posicionado contrariamente ao uso medicinal da maconha através de suas resoluções,
despachos e notas técnicas. Como citado por Figueiredo e Otero (2016), “a prescrição de
qualquer componente da planta é legal, porém antiética, nos termos dos arts. 1.º e 4.º da
Resolução 2.113/2014 do Conselho Federal de Medicina (CFM), podendo o médico sofrer
penalidade ético-disciplinar”. De acordo com a resolução citada, apenas médicos neurologistas,
78
neurocirurgiões e psiquiatras estão autorizados a prescrever remédios ou produtos à base
unicamente de CBD e exclusivamente para o tratamento de epilepsias na fase de infância e
adolescência.
O Conselho Federal de Medicina tem restringido a atuação dos seus profissionais quanto
à prescrição e ao acompanhamento de pacientes que queiram fazer uso terapêutico da Cannabis
e isso se constitui como um entrave tanto para pesquisas nacionais, quanto para o acesso a este
tratamento, já que, pela regulamentação atual da ANVISA, é necessário um médico responsável
pela prescrição e acompanhamento do tratamento.
A posição do CFM é claramente um marco formal das restrições sobre o uso medicinal
da maconha, que é refletida também na posição de grande parte dos médicos e outros
profissionais da saúde contrários à essas terapias, embora não seja unanime entre estes
profissionais.
Igualmente interessante e dialogando com a abordagem midiática sobre a maconha
medicinal, conforme apresentamos anteriormente, podemos analisar uma edição do programa
matinal da TV Globo intitulado Bem Estar que, como o nome sugere, contempla assuntou
diversos sobre saúde, cuidado, etc. Em dezembro de 2018, foi ao ar uma edição cuja chamada
era “Maconha: droga ou remédio?”38. Neste programa39, foram convidados dois profissionais
da área da saúde para explicarem a ação da maconha no cérebro, a composição da planta,
possibilidades de uso medicinal e para tirar dúvidas enviadas pelos telespectadores. Os
convidados eram o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade e o neurocientista Sidarta Ribeiro.
Sidarta Ribeiro é conhecido no ciclo de pesquisadores e ativistas pelo uso medicinal da
maconha por causa das pesquisas que realiza como Vice-Diretor e Professor Titular do Instituto
do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Sidarta é autor,
juntamente com o neurocientista Renato Malcher, de um livro intitulado Maconha, Cérebro e
Saúde (2007), que trata sobre a ação da maconha no cérebro e no corpo. Ouvi diversas falas do
professor Sidarta em diferentes eventos e ele é muito solicitado para palestras juntamente por
conhecer e explicar como os princípios ativos da maconha agem no cérebro e permitem que
estas sustâncias ajam no controle de crises convulsivas, por exemplo. A participação dele no
programa televisivo foi justamente com esta intenção, explicando sobre os princípios ativos e
suas possibilidades terapêuticas.
38
Aqui não nos deteremos a uma análise sobre esses termos, problemáticos em si, como já foi discutido
anteriormente, mas focaremos no conteúdo veiculado.
39
Programa disponível na íntegra em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2018/12/13/maconha-droga-ou-
remedio.ghtml, consultado em 09/05/2019.
79
Já o psiquiatra Artur Guerra de Andrade tem larga experiência profissional e acadêmica
no tratamento de dependência química, inclusive possui uma clínica psiquiátrica desta
especialidade, porém nenhuma produção acadêmica publicada sobre o uso ou potencial
medicinal dos princípios ativos da maconha.
Descrevendo brevemente as linhas de atuação e pesquisa de ambos os convidados do
programa Bem Estar sobre a maconha, não é difícil imaginar que o posicionamento dos
participantes foi conflitante. Enquanto Sidarta explicou o que já é conhecido sobre os efeitos e
possibilidades terapêuticas tanto do CBD, quanto do THC e demais componentes da planta
citando pesquisas e comprovações para doenças específicas, Artur enfatizava sempre que
possível os perigos do consumo da maconha, referindo-se várias vezes ao uso fumado
(pouquíssimo recomendado para fins medicinais), ao THC como “a parte ruim” e aos benefícios
do CBD “em pílula” (sintético e isolado), questões bastante debatidas no universo de pesquisa
sobre maconha medicinal que davam a impressão de que o psiquiatra pouco sabia sobre o uso
terapêutico desta planta.
O programa televisivo da Rede Globo pode ser um demonstrativo do que vem
acontecendo com a classe médica no Brasil. Muito já se sabe, desde os anos 1970 sobre os
potenciais terapêuticos da maconha e suas comprovações em várias partes do mundo, porém
não são esses os embasamentos que a classe médica tem utilizado para seus pareceres. Ao
contrário, se considerarmos o posicionamento do psiquiatra convidado para falar sobre o
assunto, o que aparece em diversas falas de pacientes, como veremos nos capítulos seguintes,
é que os profissionais de saúde não têm se atualizado sobre essa inovação terapêutica possível
e comprovadamente eficaz.
Se, como dissemos, para qualquer forma de aquisição e autorização para uso medicinal
da maconha é necessária uma prescrição médica, fica claro que a falta de conhecimento e o
temor dos profissionais diante de possíveis sanções dos conselhos de medicina, se coloca como
um entrave para que esta possibilidade terapêutica seja expandida no Brasil, embora existam
exceções.
Juntamente com a dificuldade de médicos prescritores, veremos nos próximos capítulos
como a burocracia e a falta de regulamentação do uso medicinal da maconha tem consequências
no tramite para importação e fornecimento contínuo destas medicações, representando
dificuldades para um tratamento ininterrupto e eficaz com os derivados da maconha, de
encontro à demanda reivindicada pelos pacientes, familiares e associações organizadas com
este fim.
80
É preciso pontuar ainda o atual cenário político nacional que vivemos desde a eleição
do atual presidente, Jair Bolsonaro (PSL) que, assumindo o cargo em janeiro de 2019, vem
adotando posicionamentos conservadores e retrógrados sobre várias questões, sobretudo em
relação aos direitos e liberdades civis, demonstrados através de sucessivas declarações que
expõem a posição do atual governo federal sobre temas que necessitam de atenção e
direcionamento pelos poderes públicos.
Como veremos no capítulo 6, a demanda pelo uso terapêutico da maconha é uma das
pautas que tramita entre os poderes legislativos e judiciários, e da ANVISA, e que precisa de
definição a partir das decisões destas instâncias deliberativas. Sobre esta discussão,
especificamente, o então presidente declarou que o posicionamento do governo segue a opinião
do Ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB), que, em entrevista40 concedida em julho de
2019, cogitou o fechamento da ANVISA, órgão de regulação de medicamentos, alimentos,
agrotóxicos e outros produtos sujeitos à vigilância sanitária, caso sejam aprovadas regras sobre
o plantio de cannabis para fins medicinais pelo órgão. Nas palavras dele, “Pode ter ação judicial.
Pode até acabar a Anvisa. A agência está enfrentando o governo. É um órgão do governo
enfrentando o governo. Não tem sentido”, indicando a contrariedade do poder executivo sobre
a pauta. Anteriormente, em audiência na Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa (CDH) do Senado Federal, que debatia a regulamentação da maconha para fins
medicinais no Brasil, o ministro argumentou que "Se abrir as portas do plantio [de maconha],
vai ter consumo generalizado", sem citar qualquer embasamento científico ou estatístico, e disse
entender a preocupação de "mães carinhosas e preocupadas" com os filhos doentes, para os
quais a cannabis pode ser uma alternativa medicinal, afirmando que "Elas têm que ter o apoio
necessário. Mas eu poderia fazer uma reunião aqui com as mães que perderam os filhos para a
droga, que são muito mais numerosas"41, claramente confundindo o uso medicinal com
questões que envolvem os usos problemáticos de diversos psicoativos e o tráfico de drogas.
O posicionamento radical e sem abertura ao diálogo, demonstrado pelo poder executivo
através das falas públicas do Ministro da Cidadania sobre as possibilidades de viabilização do
cultivo e produção nacional de maconha para fins terapêuticos, sem apresentar nenhum estudo
ou argumento técnico que o embase, é mais uma das dificuldades que este tema encontra.
40
https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/osmar-terra-defende-fechar-anvisa-se-plantio-de-cannabis-
for-aprovado-23072019
41
https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/07/10/ministro-osmar-terra-diz-que-liberacao-da-maconha-
para-fins-medicinais-abre-portas-para-consumo-generalizado.ghtml
81
Ainda assim, a mobilização protagonizada pelas famílias, em defesa de uma terapia que
tem se mostrado eficaz, sustenta argumentos que merecem ser considerados neste campo de
disputas e em relação aos demais envolvidos na questão, como veremos a seguir a partir do
contexto paraibano.
82
2º. CAPÍTULO: SITUANDO OS ENVOLVIDOS
Creio ser necessário apresentar um panorama geral dos atores, instituições e órgãos
envolvidos nas demandas sociais da maconha terapêutica na Paraíba e, a partir de um momento
importante da minha pesquisa, quando pude participar e etnografar a 1ª Audiência Pública
realizada na Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba com o tema Cannabis Medicinal,
ocorrida em 12 de maio de 2017. Nesta ocasião, os principais envolvidos nesta causa estavam
presentes, representando suas instituições e expondo seus posicionamentos sobre o tema.
Este foi um momento importante para minha pesquisa especificamente, mas também
para a visibilidade da demanda social por acesso à maconha medicinal para tratamentos de
saúde. A realização de uma audiência pública na Assembleia Legislativa da Paraíba foi
relevante pela visibilidade que ganhou na mídia estadual, como também pela oportunidade de
reunir ali, publica e oficialmente, autoridades, especialistas e militantes da questão da maconha
medicinal sob diversos pontos de vista complementares.
A escolha desta Audiência Pública como uma ocasião de destaque, que possibilita uma
percepção geral sobre o contexto da pesquisa, sobre as questões que estão em jogo e os atores
sociais envolvidos, segue a proposta de Max Gluckman (1987) de uma análise situacional como
possibilidade metodológica e analítica do campo etnográfico, em que determinadas situações
sociais podem ser consideradas como privilegiadas para evidenciar os agentes sociais e
posicionamentos envolvidos, utilizando para isso, a matéria-prima dos estudos antropológicos,
como o autor enfatiza.
Apresentei uma amostra típica dos meus dados de pesquisa de campo. Estes
consistem de vários eventos que, embora ocorridos em diferentes partes da
83
Zululândia do Norte e envolvendo diferentes grupos de pessoas, foram
interligados pela minha presença e participação como observador. Através
destas situações, e de seu contraste com outras situações não descritas, tentarei
delinear a estrutura social da Zululândia moderna. Denomino estes eventos de
situações sociais, pois procuro analisá-los em suas relações com outras
situações no sistema social da Zululândia. (GLUCKMAN 1987, p. 238)
Acompanhando o autor, proponho que o papel de destaque dado aos integrantes da mesa
da Audiência Pública em questão, a participação de pessoas da plenária que se manifestaram
espontaneamente, e o conteúdo das falas, como potencialmente úteis para delinear o campo em
análise e as principais questões envolvidas em uma demanda reivindicatória que esbarra em
conflitos de entendimentos e interesses sociais, médicos e jurídico-legais. Neste sentido, parto
de um pressuposto apontado por Van Velsen (1987) sobre a utilização da análise situacional
para contextos de conflito que provocam a participação de múltiplos atores sociais, pois, em
suas palavras,
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individualmente suas posições em um cenário de disputa por direitos, é extremamente relevante
para as análises que compõem este trabalho.
Etnograficamente, foi na nesta ocasião que encontrei pessoalmente, pela primeira vez,
com alguns dos sujeitos ativos neste tema, como o Procurador Federal José Godoy, aliado
fundamental no trâmite da Liga Canábica e da ABRACE na Paraíba pelo direito de uso
medicinal da maconha.
A partir do relato que segue muitas análises podem ser feitas, mas sua função principal
será como contextualização dos atores sociais envolvidos no tema e seus posicionamentos
públicos, que serão recuperados ao longo do trabalho.
A audiência pública durou cerca de três horas e meia e a longa descrição, que aqui segue,
mostrou-se necessária para que fossem contemplados neste trabalho os múltiplos discursos a
favor de mudanças nas leis para que o uso terapêutico da maconha seja amplamente acessível
à sociedade em geral, Deve-se destacar que as falas, durante a ocasião, seguiam
sistematicamente um padrão de retórica e eloquência que a Casa Parlamentar impõe e a
limitação do tempo de fala de cada participante/convidado (entre 10 e 15 minutos) será
importante para a análise das posturas adotadas por cada um dos participantes, na forma como
eles desejaram expressá-las ali.
Proposta e presidida pela Deputada Estela Bezerra (PSB), a audiência estava marcada
para as 9 horas da manhã, o que me fez chegar no local com antecedência a fim de observar o
desenrolar de toda a atividade. Junto comigo, entraram outras três pessoas, duas senhoras e um
rapaz, e fomos todos encaminhados para uma sala de espera antes de sermos levados pelos
corredores da casa legislativa até o Parlatório Tota Agra, onde acontecem as sessões. Na
entrada, um grupo de funcionários fazia o credenciamento de todos que chegavam para
participar ou assistir a sessão, anotando os dados pessoais de cada um dos presentes antes de
permitir a entrada no Parlatório. Ao entrar e me sentar na última fileira de cadeiras do Parlatório,
observei a dinâmica do espaço. Muitos funcionários transitavam para todos os lados e logo
reparei em um grupo de jornalistas em pé, atrás de mim, acompanhados por cinegrafistas e
fotógrafos, que se organizavam para entrevistar os participantes da audiência pública antes que
a sessão começasse. Júlio Américo foi o primeiro a ser abordado. Cercado pela equipe
jornalística, falou resumidamente sobre os propósitos da Liga Canábica e os objetivos
85
pretendidos. A jornalista que conduzia a entrevista quis saber sobre Pedro, o filho de Júlio, e
como o óleo de maconha havia tido resultados para o menino. Em seguida pediram para a
Professora Katy Albuquerque falar com a equipe e ela solicitamente concedeu a entrevista
falando em linguagem científica, sobre sua pesquisa em desenvolvimento na UFPB,
acompanhando algumas das crianças que fazem uso dos óleos de maconha e registrando seus
efeitos e descobertas. Depois foi a vez da Deputada Estela Bezerra explicar aos jornalistas o
propósito daquela sessão e sua importância social. Foram entrevistas rápidas, em que os
repórteres me pareciam tentar entender porque a maconha estava sendo reivindicada ali como
um remédio para crianças.
Enquanto me mantinha atenta às atividades jornalísticas, muitas pessoas chegavam e
ocupavam os assentos disponíveis, inclusive os integrantes da Liga Canábica que eu já
conhecia, Sheila Geriz, Djanira Fernandes, Ricardo Lucena, quando foi necessário colocar mais
cadeiras, de plástico, margeando as paredes do auditório para acomodar mais pessoas. Em
pouco tempo, o auditório foi enchendo de gente e logo ficou totalmente lotado com pessoas
assistindo de pé.
Com a foto das famílias que compõe a Liga Canábica no telão de fundo da mesa
principal do auditório, a Deputada Estela Bezerra abriu a sessão efetivamente quase uma hora
depois do horário marcado, anunciando que daquela manhã começariam os trabalhos de modo
diferente e convidou a cantora paraibana Glaucia Lima para cantar a música “Chega Junto”,
composição do paraibano Adeíldo Vieira. A intérprete, antes de cantar, fez uma fala de apoio a
Liga Canábica e suas conquistas, não apenas pelo alcance do tratamento das crianças, mas
também pelo sucesso em difundir informação e sensibilizar a sociedade, enfatizando o papel da
Casa Legislativa em abrir espaço para este debate e agradecendo a oportunidade de representar
os artistas paraibanos, engajados nas melhorias de vida do povo. Sobre a música, Glaucia Lima
explicou que foi feita por Adeíldo para os movimentos sociais populares, especialmente para o
MST e, portanto, acreditavam que a canção era apropriada para aquele evento também, o que
ajudava a articular pautas e demandas sociais variadas com as demandas mais especificas da
saúde, tal como a da maconha terapêutica. Em seguida, Gláucia cantou a música acompanhada
apenas por caxixis, chocalhos artesanais, e também pelas palmas dos presentes. Ao fim da
apresentação, a Deputada agradeceu a participação da cantora e passou a chamar os convidados
que iriam compor a mesa: Júlio Américo, presidente da Liga Canábica; o neurologista Dr. Mário
Aurélio Smith Filgueiras, vice corregedor do Conselho Regional de Medicina da Paraíba,
representando o presidente do Conselho Regional de Medicina da Paraíba; a Professora Doutora
86
Katy Albuquerque, pesquisadora em Cannabis Medicinal da Universidade Federal da Paraíba,
integrante do Departamento de Fisiologia e Patologia; Endy Lacet, diretora administrativa da
ABRACE Esperança; Dr. José Godoy Bezerra de Souza, Procurador Regional dos Direitos do
Cidadão do Ministério Público da União; Dra. Diana Freitas de Andrade, Defensora Pública da
União; Sheila Geriz, vice-presidente da Liga Canábica da Paraíba; Felipe Santos, coordenador
da assistência farmacêutica da Secretaria de Saúde do Estado da Paraíba, Representando
Cláudia Veras, Secretária de Saúde do Estado da Paraíba. Deve-se salientar que o Procurador
Federal José Godoy e a Defensora Pública Diana Freitas de Andrade são dois aliados
fundamentais no trâmite da Liga Canábica e da ABRACE na Paraíba pelo direito de uso
medicinal da maconha.
Figura 6 Formação da Mesa da Audiência Pública sobre o Uso Medicinal da Maconha na Assembleia
Legislativa da Paraíba. Acervo Pessoal
Formada a mesa, a deputada informou que não havia mais nenhum outro deputado
estadual presente, nem mesmo para secretariar a sessão e ela, então, como presidente da sessão,
faria em seguida sua fala que justificava sua realização. Estela Bezerra começou a leitura do
requerimento de número 6666/2017, informando que aquela audiência, autorizada por todos os
membros da Casa, tinha como objetivo “promover uma discussão sobre o uso da Cannabis para
fins medicinais e a necessidade de implantação de uma política pública nesta área”. Ao ler a
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justificativa para a realização da audiência, a Deputada citou a necessidade do uso medicinal
da Cannabis ser assegurada por lei e, pelo fato do cultivo desta planta ser proibido, acarreta
muitas dificuldades para quem dela depende a fim de se tratar das mais diversas patologias.
Referindo-se à Liga Canábica, Estela Bezerra falou sobre a luta por acesso à Cannabis
medicinal na Paraíba, protagonizada por pais e familiares de crianças com epilepsia de difícil
controle e outras doenças crônicas, organizada em forma de uma associação sem fins lucrativos,
agregando além das famílias, pesquisadores, profissionais de saúde, gestores e outros cidadãos
que acreditam no potencial medicinal da Cannabis e na luta promovida pela associação. Assim,
na perspectiva de atender a uma solicitação da Liga Canábica, foi apresentada esta propositura
para a realização de uma audiência pública, para colaborar e promover uma cultura de
acolhimento e superação dos preconceitos e discriminação ao uso medicinal desta planta.
Espontaneamente, Estela complementou que acrescentaria outro objetivo pois, à medida que a
autorização para uso medicinal tem avançado com a ação da Procuradoria Geral da União e da
Defensoria Pública da União, o objetivo seguinte seria transformar a exceção em regra, através
de uma política pública.
Antes de passar a palavra para os integrantes da mesa, a deputada anunciou que seria
exibido um rápido vídeo. Tratava-se do documentário curta-metragem “Luta” (2014), um dos
materiais produzidos para divulgar o documentário “Ilegal – A Vida não espera”. Neste vídeo,
Camila Guedes, brasiliense, mãe de Gustavo, de 1 ano e 3 meses, fala sobre a descoberta do
CBD como possibilidade para tratar seu filho, portador da síndrome de Dravet e acometido por
fortes crises epiléticas, uma realidade correlata aos casos vivenciados pelas famílias paraibanas.
O curta retrata a preocupação da mãe em conseguir a autorização inédita da ANVISA na época,
para importar o derivado da maconha, porém o menino não resiste à espera e vai a óbito em
consequência de uma forte convulsão dias antes da autorização ser expedida.
Retomando a palavra, a deputada Estela Bezerra leu a justificativa de ausência do
Presidente da Casa, o Deputado Gervásio Maia (PSB), que, segundo ela, deu todo o apoio para
a realização da audiência, mas que alegava a impossibilidade de comparecimento por estar
engajado no orçamento democrático em sua região, no município de Catolé do Rocha. Em
seguida ela destacou a presença do Senhor Moisés Anton, Diretor Geral do Instituto Revertendo
o Autismo; da Senhora Ana Valquíria Peronze, coordenadora da Casa dos Conselhos do Estado
da Paraíba, e advertiu que continuaria fazendo estes registros durante a audiência, mas passaria
naquele instante a palavra para Júlio Américo, Presidente da Liga Canábica, para fazer a sua
fala. De fato, durante toda a audiência e entre as falas, a Deputada citou por diversas vezes as
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ausências e justificativas dos demais parlamentares e também fez menção a algumas pessoas
que estavam presentes e advertiu que continuaria fazendo estes registros durante a audiência.
As participações na Audiência Pública não obedeceram a sequência de composição da
mesa e aqui, afim de situar os discursos a partir de áreas temáticas, optei por não seguir a ordem
das falas, mas agrupá-las de acordo com a representatividade dos participantes, o que não
atrapalha a compreensão dos posicionamentos apresentados na ocasião.
Figura 7 Painel da Assembleia Legislativa exibindo a tela de abertura da apresentação de Júlio Américo
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Abrindo as falas da mesa, Júlio Américo fez uma contextualização histórica e social
sobre a cannabis, citando usos milenares registrados em documentos históricos, sobre os
argumentos da proibição de algumas substâncias, dentre elas a maconha, com propósitos
xenofóbicos da criminalização. Ao mostrar reportagens de jornais a partir da década de 1930,
Júlio caracterizou essa abordagem depreciativa sobre a maconha no Brasil, relacionada à
criminalidade atribuída aos negros e os mais pobres, como sinônimo de bandidagem,
malandragem, violência, etc., e apontou as consequências deste histórico para o uso medicinal
da planta.
E o que é que isso tem a ver com a gente hoje que tá defendendo o uso da
cannabis com erva medicinal? Então, hoje em dia a gente enfrenta, nesses três
anos de luta, uma série de questões que eu vou citar aqui: a falta de incentivo
às pesquisas; resistência de pesquisadores em pesquisar a cannabis; a gente
tem resistência de instituições da academia em também caminhar nesse
sentido; o discurso equivocado e, não raramente, preconceituoso em relação
ao uso medicinal da cannabis, principalmente, muitas vezes, da classe médica,
infelizmente. Nós temos ainda alguns médicos aqui que começam a
prescrever, no entanto, a gente não tem na Paraíba hoje - não é do meu
conhecimento - que tenha qualquer outro profissional médico especializado
em outra patologia que não epilepsia, que prescrevam, eu não conheço. Aí
vem a escassez de médicos. Vem a tendência em negar a planta como um
produto fitoterápico, então a tendência de isolar canabinoides, não é a
substância canabidiol, não é a substância tal, não! É a planta cannabis...é uma
planta que foi demonizada, e por isso eu não posso usar, eu preciso isolar e
tirar dela a parte boa; a demonização do THC. o THC é aquela substância “do
barato”, e quando se fala em “barato” se fala em mil coisas, possibilidades de
crimes, possibilidades de desequilíbrios e uma série de outras coisas, e isso
aqui vem exatamente desse estigma que foi construído a décadas, quase um
século. E aí a gente fica com essa interdição em relação a questão da produção
nacional – o plantio, a extração, a manipulação dessa planta, entregar essa
planta a população de volta, porque foi tirada dela. E aí vem os desafios que a
gente deixa aqui, né?! Primeiro, nós fomos submetidos a usar todos os
remédios, antes de usar a cannabis. A gente tem que passar por todos os
remédios antes, e a gente vê que a cannabis é muito eficaz. Por que não ser a
primeira opção? [Segundo] A cannabis só para epilepsia? Tem pessoas com
Esclerose Múltipla, Câncer, Alzheimer, com Parkinson, com Fibromialgia,
com doenças autoimune...com uma série...com câncer, sofrendo e correndo
risco de morte, perdendo a qualidade de vida e que não tem acesso. [Terceiro]
A planta ou os canabinóides isolados? O grande desafio nosso hoje é devolver
a planta à população, a possibilidade de se ter políticas públicas e a pessoa
possa ter acesso aos canabinóides, aos fitoterápicos, inclusive o direito de se
quiser, segundo a sua vontade, cultivar a planta em casa e extrair o óleo e não
ter a proibição, mas o apoio e o acompanhamento das entidades, das
universidades públicas, dos institutos que se dispunham a orientar e
acompanhar esse tratamento, não proibir! [Quarto] Depois, a questão do auto
cultivo. E aí a gente deixou duas questões muito fortes, que é o que tem
inclusive travado essa luta: afinal, o que é mais importante, o lucro ou a vida
dos pacientes? O direito a saúde é também um direito de escolha? A gente tem
ou não tem o direito de escolher que tratamento dá para o seu ente, para si
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mesmo, para aquele a quem ele é responsável? A gente deixa essas
provocações e agradece o apoio de cada um, obrigado. – Júlio Américo
No tempo que dispunha, Júlio Américo articulou questões amplas, de cunho moral,
jurídico e médico, a questões do universo da Liga Canábica e particularmente enfrentadas pelos
pacientes e suas famílias, o que, introdutoriamente, expôs a motivação para a realização da
Audiência sob o ponto de vista daqueles que reivindicaram seu acontecimento.
No mesmo sentido, porém com um posicionamento ainda mais pessoal sobre a
experiência da doença e do cuidado, Sheila Geriz, falou “como mãe de Pedro”. Ao chegar à
tribuna, a então vice-presidente da Liga Canábica, agradeceu sorridentemente a oportunidade
de estar ali, na “casa do povo”, destacando o significado de falar da maconha, sobretudo da
importância desta palavra:
eu gosto sempre de usar a palavra maconha, porque é isso que ela é, né?! A
maconha é uma planta. Não é que a maconha é uma droga e a Cannabis é uma
planta. A maconha é uma planta, é a mesma coisa maconha e Cannabis. E a
gente precisa começar desmistificando daí! – Sheila Geriz, iniciando a sua fala
na Audiência Pública
Seguida por aplausos, ela retomou sua fala saudando os presentes na pessoa da
Deputada, que aceitou prontamente encampar este tema dentro da Assembleia Legislativa e de
levar adiante as propostas que a Liga Canábica tem enquanto movimento social. No entanto,
ela ressaltou que estava ali para falar não da questão política, mas sob outra ótica, como mãe
de paciente lutando para dar qualidade de vida ao seu filho, e seguiu dando seu relato. Contou
que, há 7 anos, desde que o filho Pedro nasceu, ela luta para dar qualidade de vida a ele, e há 3
anos estava alcançando este objetivo através da maconha. Remetendo-se ao caso citado pela
Dra. Diana Andrade sobre a demora de um ano entre a decisão de concessão da permissão para
importação do óleo de maconha, custeada pelo Estado, para um paciente que só recebeu este
remédio um ano depois, Sheila remeteu-se ao caso do próprio filho:
Meu filho tinha 30 convulsões, no mínimo, por dia. Quem aqui já viu uma
convulsão? Uma crise epilética? O meu filho, com 2, 3 anos de idade, tomava
16 comprimidos, de 5 medicações diferentes, por dia e tinha 30 convulsões ao
dia. Digamos que o meu filho fosse esse paciente que a Dra. Diana citou, em
um ano, meu filho teria tido 10.950 convulsões. Isso era devastador. O meu
filho chegou a andar, chegou a dizer mamãe e mais algumas palavrinhas, e
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com o agravamento das crises ele perdeu tudo, ele não sustentava mais nem o
pescoço. E quem é mãe, quem é pai aqui, sabe o que é ver um filho que
começou a andar, Pedro chegou a andar pequenas distâncias, e com o
agravamento das crises Pedro perdeu tudo, era numa cadeira de rodas,
babando, sem olhar pra gente. E aí a gente conheceu essa planta maravilhosa,
nos aproximamos dela, e como Endy falou, eu digo sempre que onde o
conhecimento chega, onde a aproximação chega, o preconceito vai embora.
Eu digo pra vocês que eu também tinha preconceito, eu faço parte de uma
sociedade que foi treinada pra entender que a maconha era um perigo grave.
E hoje eu digo que perigo grave é o preconceito, e é o que nos afasta dela.
[interrompida por palmas]
Mas a gente precisou fazer esse caminho de descriminalização primeiro
interior, e é esse caminho que hoje a gente se sente responsável em levar pras
pessoas que ainda tem essa distância e esse preconceito em relação a maconha.
E ai, falando desse quadro, desses pacientes que nós temos em casa, que nós
acompanhamos, esse vídeo que vocês assistiram no início, que fala de
Gustavo, nós estávamos começando essa luta, ainda tentando importar,
tentando entender como é que trazia ilegalmente pra cá, porque trazer com
autorização da Anvisa a gente precisava de uma receita médica e nenhum
médico se dispunha a prescrever, então a gente realmente trouxe ilegalmente,
a gente traficou dos Estados Unidos pra cá esses óleos. E nas primeiras
compras que a gente fez, foi a mãe de Gustavo, essa mulher do vídeo, que fez
a primeira compra. E ele chegou a usar 3 dias apenas, e foi muito doloroso pra
nós receber, nos grupos de WhatsApp e Facebook, a festa que ela fez no dia
que chegou o óleo na casa dela e 5 dias depois nos dizer que Gustavo tinha
morrido. Foi uma morte pra todos nós que estávamos começando. Mas desde
esse início, isso foi no final de 2014, é uma experiência que se repete. No ano
passado nós perdemos em torno de 25 crianças, do nosso convívio, que ou não
tiveram acesso, ou já estavam muito intoxicados pelos anticonvulsivantes
tradicionais, ou morreram em decorrência de uma convulsão muito forte...25
crianças. De 10 dias pra cá, eu recebi um contato e Júlio outro, de dois
pacientes que enquanto a gente se virava aqui pra tentar dividir o óleo, mandar
um pouquinho, quando entramos em contato a mãe dizia “não precisa mais, o
meu filho faleceu”, uma criança de 7 anos e antes de ontem uma criança de 10
anos, que faleceu sem tem tido acesso, sem ter conseguido. E pra nós é muito
sofrido, porque a gente vê Pedro, eu vejo Pedro em casa, vivo, voltando a
andar, voltando a sorrir, voltando a existir...recentemente Pedro passou 7
meses sem nenhuma convulsão, desmamando os anticonvulsivantes que dos
5, agora ele toma somente 2 nas doses mínimas, um já está terminando o
desmame e o outro a gente já reduziu pra um terço da dose.
Isso sem falar nas outras patologias de pessoas que nós convivemos. Eu
acompanhei um paciente que entrou em contato comigo, uma pessoa de São
Paulo, que sofria muito com dores, não dormia, e a esposa desse senhor me
dizia “quem não aguenta mais sou eu, faz dois meses que o meu marido grita
de dor sem parar”. E nós conseguimos mandar o óleo pra ele lá em São Paulo
e depois no grupo de pacientes que nós temos no WhatsApp, ela agradecendo
e dizendo que há 15 dias o marido tomava o óleo e há 15 dias ele não sentia
dor. Há 15 dias a família não sentia dor. Porque a gente tá falando de
patologias, de doenças que adoecem a família, não é um paciente só. São
doenças muito graves, incapacitantes, que fazem todos os que convivem
sofrer. Então um óleo de maconha que chega numa casa é vida para toda
aquela família, não só pra aquele paciente. – Sheila Geriz
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Sheila continuou citando o aumento de pacientes com outras doenças que não as
convulsivas, que procuram pela Liga Canábica buscando tratamento com os óleos de maconha,
entre eles, pacientes com Esclerose múltipla e Parkinson. Sheila exclamou o quando é
impressionante o efeito da maconha em pessoas com o Mal de Parkinson, e de fato muitos
vídeos circulam na internet mostrando sua eficácia em poucos segundos, chegando a cessar
completamente os tremores característicos da doença. Ela ressaltou que esses pacientes
precisam ser acudidos pois, estão em sofrimento e precisam ter acesso à tratamento. Em
seguida, Sheila quis pontuar os principais desafios que a Liga tem enfrentado no cotidiano,
“além do desafio de ter um paciente em casa, fazendo uso e precisando dessa continuidade”,
como ela frisou antes de continuar. A primeira questão citada como desafio, foi referente a
classe médica
A segunda dificuldade citada por ela foi relativa à indústria farmacêutica. Dizendo temer
a realidade que pode se instalar sobre as terapias com maconha, Sheila citou primeiramente o
interesse deste mercado em travar o uso medicinal da maconha, porque eles perderiam clientes
que reduzem drasticamente a quantidade de medicamentos consumidos substituindo pelo uso
do óleo artesanal da Cannabis, tal como o filho dela:
Imaginem que o meu filho tomava 16 comprimidos por dia e hoje toma 3.
Agora imagine isso na quantidade de patologias que podem ser tratadas com
maconha e na quantidade de pacientes! Então é uma perda significativa para
a indústria farmacêutica, então não é do interesse deles. – Sheila Geriz.
93
países também é riquíssimo, Sheila disse temer que a mesma maconha que se mostrou uma
porta de saída do coquetel medicamentoso que seu filho tomava, talvez possa se tornar um outro
aprisionamento se a elaboração das políticas e regulação para o uso medicinal no Brasil for
restringido aos derivados industrializados com preços elevados. Na visão dela, existe o risco da
maconha, planta que pode ser cultivada em casa e seus produtos extraídos artesanalmente pelos
próprios pacientes, familiares, associações e organizações sem fins lucrativos, continuar ilegal
e criminalizada, mas sendo permitida apenas a comercialização dos derivados industrializados
desta mesma planta.
95
o tratamento dos nossos pacientes, porque quem conhece, quem sabe o que é
esse tratamento, o tratamento com cannabis, ele não é um tratamento que esses
pacientes vão usar só agora, eles vão ter que usar para o resto da vida... e é por
isso que a gente tá aqui hoje... nós estamos discutindo uma forma de acesso
nacional, porque a gente entende que essa é a melhor forma de continuar esse
tratamento. A importação não dá essa garantia de continuidade do
tratamento... então, uma família, que porventura consiga importar, ou
porventura ganhe juridicamente pelo Estado o direito de fornecimento desse
medicamento, por muitas vezes tem esse tratamento interrompido, seja pela
falta de condição financeira, seja pela descontinuidade de fornecimento do
Estado, seja também pela não efetividade do tratamento, porque o importado,
a gente tá tratando aqui, senhora Deputada. De um acesso nacional, onde a
gente vai ter segurança, a gente vai ter eficácia, a gente sabe onde é plantado,
a gente sabe onde é produzido, e a gente sabe que não vai ser interrompido,
que é o mais importante. Apesar de termos hoje, liminarmente, o direito de
explorar medicinalmente os compostos extraídos da cannabis, e que
indubitavelmente fazem bem aos paciente de que dele se utilizam, ainda
sentimos o peso de décadas e décadas de um pensamento social construído
sob o argumento falho e moralmente frágil de que a maconha é um vegetal
que destrói famílias, que não tem benefícios, e que pasmem, só traz malefícios
a saúde. A nossa luta não é contra a ANVISA, não é contra a União, e muito
menos contra a sociedade civil. A nossa luta é contra um dogma caduco,
ultrapassado, malfadado, e que sobrevive ainda e só, nas camadas sociais mais
reacionárias, que teimam em postular cadeiras nas instituições de
representação social, agitando uma falsa bandeira de proteção a família e seus
preceitos mais caros. Qual seria o preceito mais caro que a saúde dos seus
componentes? O que seria mais importante para uma mãe do que saber que o
seu filho, acometido por mais de cem crises por dia, hoje pode frequentar uma
instituição de ensino? Desconheço, excelentíssima Deputada, senhoras e
senhores, valores mais distintos e mais nobres do que estes. Não podemos nos
apegar a conceitos tidos em décadas passadas, quando a realidade científica
era outra. Devemos marchar para frente, rumo ao desenvolvimento e rumo ao
crescimento social. A ABRACE hoje conta com mais de 400 famílias, porém,
nós só conseguimos a autorização para 151 dos nosso associados, e nós
entendemos que esse momento deve ser aproveitado, não só por nós, mas por
toda sociedade civil, que está na nossa frente, que está nos nosso olhos os
resultados, e isso precisa ser visto, isso precisa ser importante. A cannabis em
si, ela tem de ser tratada como uma questão de saúde e não como uma questão
criminal. Hoje em dia a cannabis é discutida em tribunal, a gente tem que
discutir a cannabis em hospital, porque assim a gente vai começar a avançar,
a gente vai começar a avançar nas pesquisas, a gente vai começar a avançar
na saúde, a gente vai começar a dar qualidade de vida para os nossos filhos.
Por que não? Por que? Por que foi uma planta, que foi proibida a 100 anos
atrás? Senhores, a 100 anos atrás...vou colocar uma comparação para vocês, a
100 anos atrás a cannabis foi proibida, será que dentro desses 100 anos que
ela foi proibida isso não gerou consequências fisiológicas no nosso organismo
hoje? Um exemplo: se você ficar sem tomar vitamina C ... se for proibida a
vitamina C, daqui a 100 anos o nosso corpo estaria sentindo o que a falta dessa
vitamina C causou. Por exemplo, doenças renais, doenças bucais... então da
mesma forma a gente traz isso para a cannabis... 100 anos de proibição, o
aumento das patologias com etiologia do sistema neurológico, que é onde a
cannabis atinge, como o Alzheimer, Parkinson, Esclerose... essas doenças
vieram aumentando com o passar do tempo. Se a gente pegar um cronograma,
uma cronologia de 100 anos atrás, quando a cannabis era autorizada e as
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pessoas faziam uso compassivo dela, e hoje em dia, depois desses 100 anos
de proibição, essas patologias tem um aumento estrondoso. Então é isso que a
gente precisa discutir, o bem que faz para as nossas vidas, para a nossa saúde.
– Endy Lacet
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O médico Marcos Smith estava representando o Conselho Regional de Medicina, porém
advertiu que seu posicionamento seria também como médico neurologista que atende há 36
anos pacientes com epilepsia em todas as faixas etárias, inclusive crianças.
Reconhecendo os benefícios do canabidiol, ele se colocou contra o excesso de
medicamentos recomendados concomitantemente e com baixa eficácia, mas sobre as
recomendações para o uso do CBD especificamente, ele, enquanto representante do CRM,
trataria da resolução 12.113/2014, do Conselho Federal de Medicina, que regulamenta e dispõe
sobre o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias refratárias aos
medicamentos convencionais, detalhando os critérios para emprego do canabidiol com fins
terapêuticos e veda a prescrição da planta in natura para fins medicinais como qualquer outro
derivado.
Parecendo não querer opor-se ao posicionamento da mesa e da discussão, a leitura de
alguns dos itens tratados pela resolução do CFM foi criticada pelo médico. Enquanto o
documento dizia que faltam evidências cientificas que comprovem a eficácia do canabidiol, o
médico citou os endocanabinóides produzidos pelo corpo humano, o que ele chamou de
“maconha produzida por nós mesmos”, a exemplo da anandamida, que faz parte do sistema
nervoso humano e se comunica com os canabinóides da maconha, pois tem efeitos similares.
Afirmou que o CFM precisaria rever isso. Depois, voltou-se à ler a resolução 66/2016 da
ANVISA, que passou a autorizar a prescrição e importação de produtos à base de maconha para
uso medicinal, não apenas do Canabidiol, mas, por intervenção da justiça, admitiu também o
uso do THC. Finalizando sua fala e dizendo-se favorável às pesquisas sobre estas substâncias
que podem ser tão relevantes para o tratamento de doenças graves, o médico enumerou 16
propriedades já descobertas da planta: “É quase uma panaceia!”, terminou o médico,
agradecendo em seguida e lamentando ter que retirar-se antes do fim da sessão em razão de
compromissos assumidos.
A fala de Marcos Smith foi, no mínimo, curiosa, já que o médico falou em nome do
Conselho Regional de Medicina, que, dentro da hierarquia organizacional responde a esfera
Federal do órgão que, sabidamente, adota uma postura bastante conservadora em relação ao uso
terapêutico da maconha, como veremos no capítulo 6. No entanto, os seus conhecimentos e
exercício profissional como neurologista guiaram a sua fala no sentido contrário ao
posicionamento do Conselho Federal de Medicina. A estranheza que esta fala despertou foi
ainda maior porque seria ele, o único membro da mesa com posição oposta aos demais, o que
não aconteceu.
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Em seguida a fala do médico Marcos Smith, a participação da farmacêutica Katy
Albuquerque, professora e pesquisadora da UFPB, teve destaque pelo tom científico e
autorizado, mas, sobretudo, por contrapor-se as normativas estabelecidas pelo CFM que
limitam a prescrição de tratamentos com derivados da maconha.
A professora começou sua fala expondo suas pesquisas, mas centrou seus argumentos
em comentar questões relativas à fala do neurologista Marcos Smith sobre a existência ou não
da ação terapêutica da Cannabis, questão já superada por descobertas científicas, nas palavras
dela.
Uma coisa que eu queria deixar claro e levantar um ponto de discussão, é essa
resolução mencionada por Dr. Marcos, a resolução 2113/2014 do CFM. É uma
resolução que me deixa bastante triste, porque ela é muito engessada,
resolução esta que restringe a especialidade médica a prescrever apenas
canabidiol. [...] Para vocês terem uma ideia, essa resolução restringe apenas
para psiquiatras e neurologistas prescrever canabidiol para crianças com
epilepsia, refratária. Aí a gente se pergunta, nós estamos vendo o benefício da
planta como um todo, mas o médico, se for seguir à risca essa resolução, ele
não vai poder prescrever? Mas a gente sabe que o direito à vida, direito a
saúde, é um direito constitucional, que vem acima de uma resolução de um
conselho. E a ANVISA acredita tanto no poder da planta que lançou agora, no
final de 2016, a resolução 130. O que é que diz essa resolução 130? Que os
medicamentos à base de cannabis registrados aqui no país podem ser
comercializados. Essa resolução 130/2016 da ANVISA atualiza o anexo 1 da
portaria 344 de entorpecentes... atualiza de que maneira? Tirando o THC da
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lista de proscritos e colocando na lista de produtos sujeitos a controle especial.
Então, quer dizer, a ANVISA está trabalhando junto da sociedade através de
várias resoluções que estão sendo emitidas. As primeiras, eu concordo que foi
por meio judicial, mas a partir dessas a ANVISA já está trabalhando e está
reconhecendo que realmente existe um potencial na planta, tanto é que ela está
lançando resoluções para isso. Então, assim, a gente fica triste com essa
resolução do CFM. [...] E a gente está tentando aumentar o número de
pesquisas, aumentar o número de pesquisadores envolvidos, porque existe
realmente uma ação terapêutica dos canabinóides presentes na planta.
Infelizmente não há muitos médicos, mas é importante salientar que os
médicos têm respaldo para prescrever, certo?! A ANVISA, nessa consulta que
fizemos, hoje ela já aceita prescrição médica de várias especialidades, fugindo
completamente dessa resolução emitida pelo CFM. Então se chegar uma
prescrição de um cardiologista, se chegar uma prescrição de um pediatra, se
chegar uma prescrição de um médico do trabalho, a ANVISA anexa essa
prescrição com a documentação necessária para importar. Então ela também
está reconhecendo que outras especialidades médicas são capazes de
identificar no seu paciente o seu benefício, ou então uma possível diminuição
daqueles sintomas que ele tá apresentando. Além das especialidades médicas,
a ANVISA também reconhece o benefício da cannabis para outras doenças,
então ela está aceitando também laudos médicos para autismo, por exemplo,
Parkinson, esclerose múltipla, depressão, são várias doenças... a ANVISA
elencou um rol de doenças, um rol de especialidades médicas, mostrando que
ela reconhece o benefício dessa planta nessa população, tá certo?! – Katy
Albuquerque
Katy Albuquerque também explicou um pouco sobre o seu projeto na UFPB, que agrega
pesquisa e extensão, fugindo das convencionais pesquisas de bancada e lidando diretamente
com as pessoas, considerado por ela muito gratificante por ver os resultados na vida dessas
famílias. A professora agradeceu o apoio da Universidade, do departamento de Farmácia e dos
alunos que fazem parte do projeto que ela coordena, ressaltando que pretendia expandir o
projeto para lidar diretamente com os médicos e com o Conselho Regional de Medicina, para
levar até eles conhecimento sobre as pesquisas e resoluções sobre o tema, porque não é possível
limitar esta questão pela falta de informação e pelo preconceito, indo na contramão do que o
mundo está vivendo. Finalizando sua fala, ela citou uma frase da Fundação Daya42 que diz
“saber que a Cannabis pode aliviar o sofrimento humano e não fazer nada, esse sim é o
verdadeiro crime”.
A participação de um médico que representa seu conselho de classe profissional e uma
farmacêutica pesquisadora do tema, indica a necessidade de vozes legítimas e autorizadas,
“confiáveis” do ponto de vista social e de argumentos (ou justificativas) médicas e cientificas,
42
Organização sem fins lucrativos, fundada no Chile por mães que cultivam, produzem e utilizam extratos de
maconha no tratamento das doenças que acometem seus filhos. Ver http://www.fundaciondaya.org/.
100
para afirmar a credibilidade da reivindicação de terapias canábicas, já que a desinformação e o
preconceito impedem que muitas pessoas admitam que esta planta tenha qualquer benefício.
Como reforçado em muitas falas da audiência, informar e difundir conhecimentos sobre os
potenciais terapêuticos da maconha é uma tarefa importante para desmistificar os tabus e
estigmas associados a esta planta e aos seus usos e, neste sentido, a realização de um evento
político que apresenta argumentos científicos, é um passo nesta direção, como a própria
Deputada afirmou ser um dos propósitos do evento.
Assim como o posicionamento de pacientes e seus familiares voltou a ser expressado
por participantes da plenária que não integravam a mesa, os argumentos médico-científicos
também foram enfatizados por outra intervenção no final da audiência, como veremos.
Por fim, e tão importante quanto as demais, as falas referentes aos aspectos jurídicos e
legais da mobilização e do acesso ao direito a saúde, que nortearam toda a audiência, ficaram
ainda mais explícitas com a participação dos representantes do Ministério Público Federal,
através da Procuradoria da República na Paraíba, e da Defensoria Pública da União, além da
Secretaria de Estadual da Saúde, que publicamente assumem o compromisso de agir em favor
da garantia de acesso às terapias com maconha.
Destes, a primeira a falar foi a Defensora Pública da União, Diana Freitas de Andrade,
que iniciou sua fala saudando aos presentes, agradecendo à Deputada Estela pelo convite à
Defensoria Pública para participar daquele momento, considerando por ela muito importante
para o avanço na efetivação do direito fundamental à saúde, e externando sua felicidade em
discutir sobre o tema na Assembleia Estadual, espaço que, segundo ela, encontra cada vez mais
dificuldade em tratar sobre temas fundamentais para a sociedade, por causa do preconceito em
inovar e mudar leis que não se adequam ou não dão conta das questões sobre as quais tratam.
Ela afirmou que é costume na nossa sociedade, depositarmos muita esperança na judicialização
dos temas e que no proibicionismo como política de drogas, este é o marco atual, a exemplo do
julgamento em curso no SFT desde 2015 sobre a criminalização ou não do uso de drogas, mas
este julgamento não tem avançado como a sociedade espera e precisa, e enquanto isso ficamos
reféns de decisões esporádicas e de vanguarda como as alcançadas na Paraíba.
Exemplificando a morosidade da efetivação de direitos, Diana Andrade citou as duas
primeiras ações da Defensoria, a partir de 2014, solicitando a importação e o fornecimento do
101
óleo a base de Cannabis para pacientes da Paraíba. Nos dois casos a decisão foi concedida de
forma liminar (com caráter de urgência), porém dela se segue o que Diana chamou de “via
crucis” para o cumprimento das decisões judiciais, pois o remédio só chegou até os pacientes
quase um ano após a concessão, depois de vários recursos, petições informando o
descumprimento da decisão judicial e do comparecimento das pessoas interessadas a defensoria
expressando sua total descrença no sistema de justiça diante da demora em conseguirem acesso
ao seu direito à saúde. Com esses casos, ela demonstrou que é preciso avançar imensamente na
política de acesso aos medicamentos à base de Cannabis, já que atual forma da lei não garante
o tratamento adequado aos pacientes que precisam.
A Defensora citou ainda o alto custo, como outro grave entrave para os pacientes que
precisam da versão industrial destes medicamentos, já que muitos não têm condições
econômicas para manter este tratamento. Ela argumentou que, “se muitas vezes os argumentos
fiscalistas, os argumentos dos custos são utilizados para retirar direitos da população, eles
também devem ser utilizados para garantir direitos da população”.
O tratamento hoje em dia tem custado aos poderes públicos, ou aos pacientes,
uma média de 30 mil reais por semestre. É um custo muito elevado,
especialmente para aquelas pessoas que a defensoria pública atende, que são
pessoas muitas vezes cujas famílias sobrevivem com 1 salário mínimo, que é
o caso de uma família que a gente assiste. O único sustento daquela família
vem de um benefício previdenciário no valor de um salário mínimo... e a gente
sabe que jamais uma família dessas terá condições de pagar 30 mil reais por
semestre apara o tratamento da doença dos seus filhos. Então, esse aspecto
econômico também deve ser considerado na análise de uma política de efetivo
acesso aos medicamentos à base de cannabis. – Diana Andrade
Como último argumento, Diana Andrade disse não poder deixar de esclarecer alguns
pontos relacionados à política antiproibicionista e a lei de drogas, que por um lado não
garantem, nem permitem o acesso à saúde, e, por outro, representam grande parte da inflação
do sistema prisional brasileiro. Citando dados como o posto ocupado pelo Brasil atualmente
como o pais com a 4ª maior população carcerária do mundo, na qual um quarto dos presos está
102
lá por crimes relacionados à lei de drogas, ela afirmou que enquanto o encarceramento triplicou
em 15 anos em todos os tipos crimes, em crimes relativos a drogas está população triplicou em
apenas 5 anos. Ela expôs também a fragilidade desta lei que não oferece mecanismos objetivos
para distinguir usuários de traficantes, o que dá margem para interpretações subjetivas, sobre a
criminalização do usuário, e também de atividades como as exercidas pela ABRACE, de cultivo
e produção de derivados da maconha, mesmo sendo essas atividades com fins de garantir acesso
à saúde.
Finalizando sua fala, a Defensora Pública dirigiu-se aos membros da Liga Canábica e
da ABRACE para dizer que, “se hoje as instituições públicas na Paraíba conseguem se articular
para buscar a garantia do direito à saúde para quem precisa da Cannabis medicinal, muito é, ou
na verdade, tudo é por causa da articulação da sociedade civil através dessas duas
organizações”. Em seguida ela agradeceu a oportunidade e a confiança depositada na
Defensoria Pública por todos que fazem esta luta e frisou que mantém a abertura e a disposição
da instituição sempre que for necessário para que se possa avançar ainda mais no uso e na
descriminalização da Cannabis medicinal.
Os últimos a falar, foram Felipe Santos, coordenador da assistência farmacêutica da
Secretaria de Saúde do Estado da Paraíba, Representando Cláudia Veras, Secretária de Saúde
do Estado da Paraíba e o Procurador José Godoy Bezerra de Souza, Procurador Regional dos
Direitos do Cidadão do Ministério Público da União na Paraíba.
Em nome da Secretaria de Estado da Saúde, Felipe Santos ressaltou a pluralidade da
mesa em reunir o poder legislativo, judiciário, executivo, sociedade civil e a academia para
debater um tema fundamental para a garantia do direito à saúde e a vida.
Na Secretaria de Estado da Saúde, como a Sheila trouxe, tem sido cada vez
mais frequente a demanda de produtos à base de canabidiol e esses produtos,
frente a questões burocráticas, dos entraves administrativos, representam
grande dificuldade e barreiras dos órgãos públicos para garantir esse acesso.
A importação desses produtos traz muitas dessas dificuldades, só o elemento
da importação, ela representa 30% do custo relacionado ao medicamento.
Então, para um tratamento de seis meses que o governo do Estado vai fazer
para um determinado usuário, digamos que cinco mil dólares, três mil
dólares... o custo com as importações supera os mil dólares, então chega a ser
30% do tratamento para seis meses. Imagina o que seria desse investimento
investido no desenvolvimento público, desenvolvimento nacional, da
indústria nacional, no fomento ao desenvolvimento científico para cidadãos,
estudantes, para a própria academia, esse recurso investido nas associações
que produzem, enfim, na indústria nacional de desenvolvimento de fármacos.
Então esse é um recurso que a gente tem que colocar lupa sobre isso, olhar
isso enquanto política pública e como a gente pode desenvolver não somente
produtos, mas desenvolver conhecimento, não só na área de produção de
103
fármaco, mas também, principalmente, na produção e acompanhamento
clínico, de pesquisas como a Dr. Katy trouxe, que ajudam não somente a
reafirmar processos que já estão em prática, visualizados aqui, nos pais, mães,
estudiosos, que vem trazendo, mas também principalmente, desenvolvimento
para quebrar paradigmas, preconceitos e reafirmar uma questão clínica. A
gente pode, inclusive o Brasil, participar desse movimento mundial de
abertura da discussão para o uso medicinal da cannabis. – Felipe Santos
Finalizando sua rápida fala, em nome da então Secretária Cláudia Veras, ele colocou a
Secretaria do Estado da Saúde como parceira e interessada em contribuir para o atendimento de
forma mais ampla, não apenas cumprindo determinações judiciais, mas em diálogo para pensar
na ampliação dos cuidados com os usuários de forma mais efetiva.
Em seguida, a Deputada Estela Bezerra passou a palavra ao Dr. José Godoy Bezerra de
Souza, Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público da União na
Paraíba, qualificado por ela como um grande ativista desta e de outras causas e que tem
contribuído muito para o avanço do acesso aos direitos tratados ali.
O Procurador José Godoy iniciou sua fala dizendo que poderia tratar de diversos
aspectos que dizem respeito ao tema da audiência, como o direito a saúde, a situação dos
pacientes, ou mesmo da “irracionalidade” que é esta proibição, e neste item ele não pode deixar
de comentar:
Em seguida ele fez uma retrospectiva de como esta demanda jurídica avançou na Paraíba
através das famílias e posteriormente também com a ABRACE
Eu me lembro que a primeira ação que entramos era para terem o direito de
importar e foi a primeira decisão no Brasil, em uma ação civil pública que, de
forma coletiva, pais e mães tiveram direito de importar, não se falava ainda
em plantar, era algo que estava muito distante. Existiam ações individuais em
alguns cantos do Brasil, mas a primeira coletiva foi aqui da Paraíba, da 1ª Vara
Federal de João Pessoa, através de uma decisão corajosa e muito bem-feita do
105
Doutor João Bosco. Mas nós precisávamos, pra entrar com a ação, de um
médico que prescrevesse, porque como é que eu ia dizer na minha ação que
esse medicamento era essencial se não tinha um profissional médico
assinando? E nós não tínhamos naquela época até surgir o Doutor Pedro
Mello, e com muita coragem e acolhimento foi o médico que prescreveu para
os pacientes e nós pudemos entrar com a ação e teve sucesso naquele
momento.
Já na segunda ação, foi uma ação para que fosse fornecido o medicamento
pelo SUS, que obtivemos sucesso no primeiro momento mas antes que
conseguíssemos importar através do Estado, custeado pela União, que foi essa
a decisão da Doutora Cristina Garcez, da 3ª Vara, a decisão foi cassada no
TRF, e ai nós ficamos no momento mais difícil, porque os pais já não tinham
como comprar, o custo era muito alto, e eu me lembro de relatos que nós temos
nos autos do inquérito civil público, que até hoje eu estou a frente, de que
algumas pessoas já estavam vendendo bens, fazendo rifas e outras coisas e nós
precisávamos de uma saída. E essa saída começa com um rapaz, muito
corajoso, diga-se de passagem, e foi aí que eu conheci o Cassiano da
ABRACE. E realmente a vida é feita, a vida é mudada por pessoas de coragem.
Em nenhum momento, eu nunca interpretei a sua postura como criminal
[dirigindo-se a Cassiano, sentado no plenário], e aí eu falo como jurista, eu sei
que a sua postura nunca se enquadrou no tipo penal da lei, do artigo 33 da lei
11.343. Isso eu sabia, mas até que uma interpretação dessas chegasse aos
tribunais havia sim riscos, e esses riscos você correu [novamente dirigindo-se
à Cassiano]. Mas naquele momento só a coragem da ABRACE, do Cassiano
e dos demais, fez com que as crianças continuassem tendo tratamento. Em me
emociono sempre que lembro disso e fico a pensar que se não fosse a coragem
da ABRACE, talvez nós ainda estivéssemos na luta para importar um produto
que não é de boa qualidade, que é caríssimo, com uma burocracia exagerada
e tantas outras coisas que talvez acontecessem. – Dr. José Godoy, Procurador
Federal
106
pacientes que já vinham sendo tratados com os óleos produzidos por eles. O Procurador
acrescentou que, se outros pacientes não incluídos na permissão já concedida procurassem pelo
Ministério Público Federal, seriam defendidos para que a decisão seja estendida a todos através
de uma ação civil pública.
Ao encerrar sua fala, Dr. Godoy disse sentir-se uma pessoa privilegiada em poder
participar deste movimento construído pelas pessoas que fazem a Liga Canábica e a ABRACE
e agradeceu a oportunidade de contribuir na Audiência Pública.
O procurador foi bastante aplaudido, e a Deputada Estela comentou sua fala dizendo ter
o mesmo sentimento sobre estar na política e ser instrumento para favorecer que este debate
chegue à casa legislativa, que só foi possível pela mobilização da sociedade civil que entende
a saúde como direito e que os interesses de mercado não podem distanciar o direito das pessoas
à saúde e a vida, posicionamento do qual ela partilha. Ela ainda ressaltou ser fundamental que
o acesso se concretize em forma de política pública para ser universal e chegar a todos.
Assim como a participação de representantes dos saberes médicos e científicos, a
presença de autoridades que representam poderes públicos em defesa de uma causa social,
também serve de respaldo jurídico-legal para a reivindicação e para a própria realização da
Audiência Pública, porque evidencia as contradições entre a lei e a o efetivo acesso a direitos
individuais e sociais, tema bastante polêmico nas esferas jurídicas e políticas nacionais em se
tratando de maconha terapêutica. A importante atuação da Defensoria Pública da União e da
Procuradoria do Ministério Público Federal neste contexto de disputas será retomada no sexto
capítulo.
Após a fala do Procurador, a Deputada encerrou a mesa e abriu o microfone para
intervenções do plenário, de acordo com a ordem das inscrições.
Venho falar aqui em nome da minha mãe. Existem vários pais aqui, que sabem
que fazem tudo por um filho, isso é muito lindo, sabem que vão passar por
cima de qualquer coisa, de qualquer lei, de qualquer um que venha aí querer
impedir o direito dessa criança ter saúde, um bem-estar. Eu vim aqui falar pela
minha mãe, pena que ela não pode estar aqui presente. Eu venho de Natal
[RN], certo?! Acho importantíssimo isso que está acontecendo. Eu fiquei
muito emocionado de querer participar porque minha mãe é portadora de
Parkinson, ela tem a doença há mais de dez anos, e minha mãe sempre foi uma
pessoa muito alegre, muito ativa. E eu vi ela definhar, muito rápido, e foi
muito triste participar disso. A dor realmente é familiar, não é só aquela pessoa
ali que está sofrendo não. A dor é a ignorância, a dor abrange tudo, a doença
destrói a família, você se sente realmente um impotente, porque você não
consegue fazer absolutamente nada.
Vou tentar ser breve, a história é muito longa, mas eu sei que o tempo é curto.
[...] Eu consegui convencer a minha mãe a fazer o uso num período que ela
estava muito mal, certo?! Ela tomava vários medicamentos. [...] Ela sabia
fumar porque quando era adolescente já tinha fumado cigarro, mas ela não usa
tabaco. Enfim, ela sabe o que ela sofreu, e no decorrer dessa história ela teve
coragem. Minha mãe tem hoje 65 anos, meu pai tem 75, pra eles era um bicho,
né, maconha! Mas quando eu mostrei para eles a entrevista de Renato
Malcher, que ele até afirma, quando perguntam a ele “maconha serve para
quê?”, ele dá um sorriso, digamos que irônico e diz “Ah, aguente a lista, serve
para um monte de coisa, Parkinson, por exemplo”. Então depois que minha
mãe, que já vinha sofrendo, conseguiu assistir essa palestra, ela teve coragem,
digamos assim, de fazer o uso da droga. Eu pedi para que ela não se medicasse
no dia, certo?! Ela foi até a minha residência, e se tremendo bastante, foi
impressionante! Ela deu um trago, ela parou de se tremer... ela não acreditava!
Foi muito forte a situação, meu pai com 75 anos de idade, na época com 70 e
poucos, altamente preconceituoso, conservador ao extremo, ele calou-se,
baixou a cabeça e disse “se é para o bem dela, que continue”. E assim, isso foi
algo tão surpreendente pra família... o bem-estar dela foi tão surpreendente
para todos. E isso, lógico, antes eu tive que recorrer ao tráfico, né?! Fui de fato
um criminoso, para conseguir levar um medicamento para minha mãe, né?!
Então, prazer, um bandido aqui! Enfim, no decorrer da história a gente
conseguiu.
Disse também que, a partir dos resultados vivenciados pela mãe, mesmo utilizando a
maconha de forma fumada, os efeitos foram tão impressionantes que o avô, com 95 anos
também foi tratado e conseguiu sair de uma depressão utilizando manteiga de maconha. Contou
43
Buscando preservar a situação familiar que envolve práticas ilegais, optei por omitir a identidade deste
participante.
108
também que uma amiga, que fazia tratamento quimioterápico contra um câncer, também sentiu
os efeitos benéficos da planta através de chás feitos com maconha, que reduziram drasticamente
os efeitos colaterais do tratamento, como os enjoos, as dores e a falta de apetite. Depois dessas
experiências, ele questionou se fazia sentido que ele fosse visto como um “criminoso” por
cultivar e extrair de uma planta tão benéfica para a própria mãe e que poderia ajudar tantas
outras pessoas. Trazia, assim, uma experiência, tal como a que Sheila Geriz expôs antes, de
pessoas que cruzavam muito rapidamente a fronteira entre legalidade e ilegalidade, tomando o
sofrimento pessoal como justificativa para essas passagens, que poderiam ter como
consequência a criminalização de alguém.
Impressionante gente, até quando a gente vai ficar sofrendo? A gente só vai
se mobilizar quando dói nas costas da gente? A gente tem que esperar a nossa
família sofrer para tomar alguma atitude? É isso? Vai ser assim até quando?
Eu plantar no quintal da minha casa e fornecer o medicamento para minha
mãe, 100% natural, eu vou ser um criminoso? [...] Tem gente morrendo, tem
gente podendo estar se medicando agora, e porque não? Espera aí que a justiça
vai resolver? É um ano, um ano e meio, dois, e aí, a gente vai esperar até
quando? Vai ver quantas famílias sofrerem? Várias? Não dá! A gente não pode
esperar, a vida não espera, né?! Todo mundo sabe. E o sofrimento, também
não dá para gente continuar dessa forma.
110
Quem também pediu a palavra foi Cassiano Teixeira, presidente da ABRACE. Antes,
sua esposa, Endy Lacet, já tinha apresentado a associação, enquanto vice-presidente. Mas ele
trouxe um testemunho diferente da fala da esposa, que se articulava aos depoimentos-
testemunho de Sheila Geriz, Júlio Américo e também do jovem homem oriundo de Natal, cuja
mãe sofria de Mal de Parkinson. Trazia de novo uma narrativa de forte caráter pessoal, cujo
relato expressava o dever moral de contar:
Eu comecei, como o meu irmão ali [aponta para o rapaz vindo de Natal],
cuidando da minha mãe. A minha tia havia morrido, e por causa disso a minha
mãe entrou em depressão, cinco dias sem comer, e eu decidi tomar uma
atitude, conversei com a minha irmã, para que ela me autorizasse também né,
fazer o óleo na cozinha de casa e ministrar para a minha mãe. E foi incrível,
porque uma hora depois ela se levantou, depois de quase cinco dias sem
comer, ela se levantou, foi lavar os pratos, foi para o computador, para o
Facebook dela, e depois comeu. Naquele dia eu vi que eu tinha feito algo para
salvar a minha mãe, e eu podia agora salvar o meu irmão, que é epilético, que
deve estar assistindo agora. Então foi daí que eu percebi que eu poderia ajudar
não só o meu irmão, porque eu ia ter que fazer mais do que um, porque não
dá para você fazer só um óleo, 100 ml, você tem que fazer pelo menos 1 litro...
Foi aí que eu fiz 1 litro, consegui 10 garrafas, e aí ajudei 10 mães... Dessas
dez mães, veio vinte, veio trinta e veio sessenta. Quando chegou em sessenta
e seis, a gente decidiu registrar a associação, porque a gente pensava que em
grupo seria mais fácil da gente lutar. Foi na mesma época que Júlio estava, a
gente já estava fazendo a importação juntos, a Liga também nasceu. A partir
daí a gente viu que a gente tinha que partir para a luta do importado... naquela
época era o que se falava mais. Conseguimos. Teríamos que conseguir a
isenção do imposto, conseguimos. Teríamos que conseguir que tirasse o THC
e o CBD [da lista de proscritos da Anvisa], para a gente importar o THC
também. Conseguimos. E aí o próximo passo seria esse, seria o do cultivo, da
autorização para acabar com esse mito de não poder plantar. Foi aí que a gente
tomou a iniciativa na época, de começar a coletar os dados, que eu acho que é
uma coisa que eu trago da academia, que eu sou formado na UFPB, e trouxe
essa ideia de a gente pesquisar. Então eu comecei a coletar as informações, os
papéis, a documentão, e no final o Yverson [advogado da ABRACE] chegou
acrescentando que a gente precisaria da procuração para dar entrada na ação.
Foi aí que aconteceu. Janeiro desse ano, na verdade, a gente conseguiu depois
do recesso [do judiciário] dar entrada na ação, e apostamos, apostamos alto,
porque não há caminho de volta, não tinha mais outra opção, e a gente percebia
que as mãe estavam entrando com HC ao invés de ter a liminar ou a decisão
final, que seria o divisor de águas. E foi aí que a gente conseguiu. Graças a
Deus, a gente saiu do anonimato, é por isso talvez que vocês não tenham o
folder da ABRACE, é por isso talvez que vocês não tenham o vídeo da
ABRACE, nada. A gente tinha que se esconder, porque eram vidas que a gente
não podia jogar para o alto. Eu mesmo nunca dei testemunho ou vídeo, tudo
isso eu tive que apagar porque alguns políticos proibicionistas usaram essas
imagens para me denegrir. E aí é onde a gente começa a perceber que havia
essa mistura do recreativo com o medicinal, que foi necessário a gente separar
no início, mas que agora não mais. Eu acho que é importante todas as lutas,
todas as opções, inclusive a industrial, porque não se fala. Eu defendo. O uso
industrial salva florestas e vai gerar muito emprego. Então é importante que a
111
gente deixe registrado que a ABRACE é só uma de várias associações que
podem nascer a partir de agora, e eu me comprometo, junto com o Lifesa, com
as outras associações, de orientar e a gente incentivar que mais associações
tomem essa atitude e esse caminho, seja ele judicial, ou não, depende da
ANVISA até lá, para que a gente possa avançar junto com a academia, e seguir
o caminho que a gente está vendo aqui, qualidade de vida, saúde e a resposta
que tira até lágrimas dos nossos olhos em saber que uma planta pode salvar
tantas vidas. – Cassiano Teixeira, presidente da ABRACE
Agradecendo à esposa, aos pais associados da ABRACE que usam o óleo nos seus
filhos, ao advogado que aceitou o desafio jurídico, e a todos que dão força à esse movimento
pela maconha medicinal na Paraíba, Cassiano finalizou dizendo que “Deus é sábio no que faz
e não fez da maconha uma planta má pra humanidade, mas a humanidade é que fez mal dela.
Cabe a gente saber usar”.
Depois de Cassiano Teixeira, quem falou foi Ricardo Lucena, professor da UFPB e
membro da Liga Canábica. Vestindo a camisa da Liga e em uma fala breve, ele saudou a todos
e disse que não falaria como professor, mas como aprendiz, que está há pouco mais de um ano
envolvido com as pessoas que fazem a Liga Canábica. Ele explicou que não usa maconha, nem
seu óleo, e também não tem qualquer familiar que precise ou faça uso e, diante deste contexto,
disse que a sua participação neste coletivo têm sido de aprendizagem pois, na sua visão, a Liga
trata de uma questão muito mais ampla do que a saúde dos seus filhos e familiares de forma
imediata, mas que a pauta, na verdade, trata da saúde pública de forma muito mais abrangente,
relacionada a questão das drogas de forma política e social e sobre o desejo de viver em um
país que possibilite melhores condições de vida para sua população. Finalizando sua fala,
Ricardo argumentou que, diante de uma realidade em que é comum falar e agir a partir do
“sangue nos olhos”, referindo-se à dor, raiva, ignorância, ele vê que as pessoas que fazem a
Liga Canábica trabalham com “sonhos nos olhos”, e é essa luta pela realização de sonhos que
o cativou e o faz participar, pois reconhece que já houveram muitas conquistas, mas muitas
outras ainda precisam ser alcançadas e para isso é preciso lutar.
Após Ricardo, a Deputada Estela Bezerra chamou Yverson Vasconcelos, o advogado
da ABRACE, que complementou o que foi relatado por Cassiano e compartilhou um pouco da
experiência dele neste tramite jurídico. Disse que quando conheceu Cassiano Teixeira e soube
da causa e da necessidade de um advogado que a representasse, aceitou o desafio mesmo sendo
um advogado iniciante e inexperiente diante do tamanho da causa, que poderia ser defendida
por advogados de renome. Yverson não apenas elaborou a peça jurídica como conseguiu ganhar
112
a liminar permitindo o cultivo para a associação. Provavelmente advogados de renome e
prestígio social pensassem duas vezes antes de entrar em uma causa como o uso da maconha,
que poderia desacreditá-los e estigmatizá-los socialmente.
A última participação da plenária foi de um médico paraibano que prescreve e
acompanha tratamentos com maconha44, que falou sobre a infundada limitação do uso da
Cannabis medicinal apenas para epilepsia refratária e reiterou aquilo que a Professora Bagnólia
havia afirmado quanto ao balanceamento do risco/benefício no uso de qualquer remédio,
citando que a Cannabis apresenta risco muito menor do que muitos medicamentos largamente
prescritos. Ele agradeceu o espaço e afirmou o compromisso dos Médicos de Família e
Comunidade em participar da elaboração de propostas formais para o acesso e a ampliação das
prescrições de uso medicinal da maconha.
Após a fala do último inscrito, a Deputada Estela Bezerra retomou a palavra para, antes
de encerrar a sessão, levantar alguns encaminhamentos que possibilitassem ou auxiliassem na
elaboração de políticas de promoção à saúde que incluíssem a cannabis medicinal como
tratamento, entre as possibilidades de aplicações, para pessoas com epilepsias refratárias, para
as quais a farmacologia tradicional ainda não encontrou tratamentos melhores. De acordo com
esse posicionamento, ela afirmou que o preconceito e o desconhecimento sobre essa planta não
podem ser barreiras na garantia de saúde e qualidade de vida para a população. Ela também
reafirmou que os interesses da indústria farmacêutica não podem ditar ou restringir as formas
de tratamento disponíveis e acessíveis e que, para a garantia deste direito, é necessário que se
torne uma política pública.
Tratando dos encaminhamentos, a deputada paraibana citou como principal proposta o
documento elaborado pela Liga Canábica, anunciado por Sheila Geriz, no qual é solicitada uma
audiência com o Governador do Estado da Paraíba, Ricardo Coutinho, além da criação de um
Programa Estadual de Cannabis Medicinal, que incluísse desde o incentivo e fomento à
pesquisas, o intercâmbio e cooperação de instituições até a produção e distribuição dos produtos
extraídos. Estela Bezerra afirmou seu compromisso em transmitir o documento para respaldo
dos membros da Assembleia Legislativa, antes de encaminhar para o governador que, segundo
ela, já estava a par e era simpático à causa, colocando inclusive o LIFESA em contato para
acompanhar e colaborar para que esta política pública possa ser efetivada dentro dos trâmites
legais.
44
Preferi não identifica-lo em razão das possíveis sansões que o Conselho Federal de Medicina prevê em caso de
descumprimento as suas orientações.
113
Em 2019, o Governo do Estado passou a ser gestado pelo sucessor de Ricardo Coutinho
(PSB), João Azevedo (PSB), e nenhum dos Governadores realizou a audiência solicitada tirada
como encaminhamento da Audiência Pública de 2017, assim como o plano Estadual de
Cannabis Medicinal também não foi mais discutido.
O segundo encaminhamento seria a realização de um seminário em que a Assembleia e
as organizações sociais ali presentes convidariam o Conselho Regional de Medicina a fim de
estabelecer diálogo com os médicos e, eventualmente, desmistificar o uso e a prescrição
medicinal da maconha, porém o evento nunca chegou a acontecer.
Por fim, a Deputada Estela Bezerra divulgou e convidou a todos para participar do
evento “Cannabis: um olhar em perspectiva” promovido pela Liga Canábica na UFPB, no dia
22 de maio de 2017 e, encerrando a Audiência, ela agradeceu imensamente aos presentes, à
Liga Canábica e a ABRACE, por possibilitarem que ela colaborasse com a causa, e as
instituições que participaram e colaboraram para a realização da sessão especial. E terminou
acrescentando que a causa estava apenas sendo iniciada e que a Paraíba daria o exemplo ao
Brasil de como transformar um preconceito em uma política pública que beneficiaria milhões
de pessoas.
Há na realização de uma audiência pública, tal como a que descrevi, questões
importantes a serem destacadas e analisadas por uma abordagem antropológica. Assim como
as audiências públicas estudadas por José Sérgio Leite Lopes et ali (2005) sobre o licenciamento
de uma usina nuclear, a audiência aqui descrita pode ser percebida pelo seguinte ponto de vista:
116
3º. CAPÍTULO: A LIGA CANÁBICA DA PARAÍBA
45
Distrito litorâneo do municio de Parnamirim, região metropolitana de Natal, Rio Grande do Norte.
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Gretel Gretel é Mestre em Antropologia pela UFRN e Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília
e fitoterapeuta. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte.
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Naquele sábado, depois de algumas voltas perdidas pelas ruas de Pium, encontrei a rua
indicada e ao dobrar a esquina da casa com o número que constava no endereço, avistei uma
van com identificação da UFPB estacionando em frente. Só então percebi que os representantes
da Liga Canábica paraibana estavam em número expressivo de 15 pessoas, chegando de João
Pessoa no mesmo instante que eu encontrara o local marcado.
Enquanto eu estacionava, vi pelo retrovisor do carro a descida dos membros da Liga,
todos identificados pela camiseta branca com o logotipo da associação, e as primeiras
apresentações pessoalmente entre eles e Gretel e seu companheiro, Carl 47. Quando cheguei à
porta, todos já tinham entrado, exceto Gretel, que esperava para me receber e fechar o portão.
A casa, com um grande jardim e um espaçoso alpendre, já contava com outras pessoas
sentadas em cadeiras posicionadas em círculo na área externa. Ao entrarmos, terminamos de
ocupar os lugares disponíveis e, aos poucos, as pessoas foram se acomodando e logo o encontro
começou pelas apresentações de cada um aos demais. Antes das formalidades, me dirigi ao
Júlio Américo, perguntando se ele lembrava de mim e das conversas que tivemos pelo telefone
e no encerramento da Marcha da Maconha em João Pessoa. Ele sorriu e disse que lembrava
sim, mas avisou que as vezes não lembra das pessoas com quem fala, já que muita gente tem
procurado por ele e Sheila por causa da Liga Canábica.
No total eram em torno de 25 pessoas. Um professor da Saúde Coletiva da UFRN; dois
representantes do Coletivo Com.cannabis; a Professora de Farmácia da UFPB, Katy
Albuquerque, que realiza pesquisa sobre a maconha medicinal junto às crianças da Liga
Canábica; Júlio Schwantz, fotógrafo; mais alguns estudantes e interessados, além do casal,
Gretel e Carl, que viabilizaram o encontro, e o pessoal da Liga Canábica que chegara na Van.
O grupo da Liga era composto por alguns estudantes da UFPB que fazem parte dos projetos de
pesquisa da professora Katy, além dos integrantes da associação.
Quando todos os presentes já haviam se apresentado, chegou o convidado mais esperado
pelo pessoal da Liga Canábica, o Professor Sidarta Ribeiro, neurocientista e diretor do Instituto
do Cérebro/UFRN. Foi perceptível que sua presença era aguardada, a própria Gretel havia me
dito que os representes da Liga enfatizaram que gostariam de conhecê-lo a fim de apresentar
para ele a mobilização da associação e contar com o seu apoio. A chegada de Sidarta deu
continuidade aos trabalhos. Ao se apresentar, o neurocientista trouxe à tona algumas questões
nas quais está envolvido a partir de seu posicionamento antiproibicionista sobre as drogas. A
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Botânico, horticultor, fitoterapeuta e aromaterapeuta. Está à frente da Cocoyuyo – preparo de óleos essenciais,
hidrolatos e extratos de plantas aromáticas.
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partir daí, seguiu-se um intenso debate que durou aproximadamente duas horas. Este debate
abarcou uma grande diversidade de temas de forma espontânea, sem ordenação ou coordenação,
desde questões específicas sobre o uso medicinal da maconha pelas crianças da Liga até temas
bastante amplos sobre políticas de drogas no Brasil e no mundo.
Júlio Américo, como presidente da Liga Canábica, contou um pouco sobre a trajetória
da associação, sua organização, princípios e propósitos e revezava a palavra com Sheila Geriz
em comentários sobre as preocupações e interesses deles, como pais de uma criança portadora
de uma síndrome grave e com melhoras consideráveis desde o início do tratamento com óleo
derivado da maconha, e também como fundadores da associação.
Como eu esperava, participar deste evento foi de suma importância tanto para a minha
aproximação, quanto para saber mais sobre a Liga Canábica, aspectos que em conversas
particulares seria mais difícil acessar e que foram me dando embasamento para os
encaminhamentos e análises desta pesquisa.
Figura 8 Reunião sobre Plantas Medicinais em Pium - RN. Créditos: Júlio Schwantz
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Figura 9 Reunião sobre Plantas Medicinais em Pium - RN. Créditos: Júlio Schwantz
Entre os temas abordados, sobretudo relacionados à Liga Canábica, pude ter mais
conhecimento sobre a associação e seu funcionamento. Júlio e Sheila, eram, na época,
respectivamente, presidente e vice-presidente da Liga Canábica da Paraíba. Como eu pude
constatar posteriormente, embora formalizada como associação, não existem formalidades para
participar do grupo, basta interessar-se e comparecer nas suas atividades e, conforme a pessoa
se comprometa com a organização ela passa a fazer parte da Liga. Igualmente, não existe uma
contribuição financeira obrigatória para os associados e todas as despesas ou necessidades que
envolvam custos são supridas por doações dos próprios integrantes ou com a ajuda de órgãos
públicos, como a Universidade Federal da Paraíba, que cedeu um carro para que os integrantes
do grupo fossem ao evento em Natal, por exemplo. Além disso, a venda de camisas, adesivos,
canecas e bottons contribui para os custos da associação, assim como doações voluntárias. Em
entrevista posterior, Sheila deu detalhes sobre as finanças da associação:
Até aqui deu para gente se manter. Algumas coisas eu e Júlio acabamos
assumindo durante um tempo, palestrantes que, por exemplo, a gente fazia
evento, como Tárcio Araújo, que a gente trouxe duas vezes pra cá, eu e Júlio
que pagamos a passagem; Emílio, eu e Júlio que pagamos a passagem, mas aí,
depois que a gente já teve essas reuniões ampliadas, de acolhimento, algumas
pessoas já começam a chegar e querer ajudar, aí, pelo menos essas despesas a
gente consegue manter em dia, sem precisar tirar de nosso bolso, porque antes,
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era cem por cento do bolso da gente, e agora, não, graças a deus a gente está
se sustentando. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
Eu não consigo ver muito essa questão chamando por “uso recreativo” eu
prefiro utilizar “uso social”, qualquer coisa que valha, é como se a gente
estigmatizasse; eu acho tão interpenetradas essas categorias às vezes, até o uso
ritualístico, o uso religioso; eu não vejo com muito peso essa categorização,
eu olho pra isso e vejo com tranquilidade, eu não vejo com nenhum medo,
nenhuma apreensão, eu acho que o uso recreativo faz parte, eu não defendo a
descriminalização, eu defendo a regulamentação mesmo, que as pessoas
tenham direito, e que o Estado possa só informar as pessoas. Informe,
converse, que faça um trabalho educativo, escute essas pessoas; eu acho que
antes de estigmatizar a Marcha da Maconha, o Estado deveria se relacionar
com a Marcha da Maconha, por exemplo, no lugar de criticar, por que não
chegar uma equipe do Estado, o Ministério da Saúde, principalmente a questão
da saúde, porque isso é um questão de cunho pessoal, ninguém está fazendo
mal aos outros, as pessoas estão usando, apenas. E, hoje, eu defendo,
inclusive, a regulamentação, não apenas a descriminalização, mas a
regulamentação de todas as drogas, porque o papel o Estado é proteger a
população, e não se protege proibindo a população, se protege dando as
condições para que a população conheça o que está tendo acesso, e a melhor
forma de reduzir os danos dessa população na exposição àquela substância,
então, para o Estado, deveria importar o bem-estar das pessoas. Então, eu
defendo que a política de drogas deve ser coordenada pelo Ministério da Saúde
e ser, muito mais, uma política de informação. Agora, o grande tráfico, esse
sim precisa ser combatido, o grande tráfico não está nas favelas, e sim nos
grandes condomínios, os grandes chefões não estão na favela, mas são os das
favelas que vão se lascar. Pra essas pessoas deveríamos contar com um
sistema carcerário mais humanizado. Eu não sou a favor da prisão pura e
simplesmente, eu acho que tem que ter critérios, quais critérios vou utilizar
para definir quem é traficante ou não? Esse critério não pode ser de classe
social, não pode ser de raça; esse critério precisa ser de algo que abranja todos,
e com a regulamentação, o que aconteceria? Você teria uma quantidade para
você andar, ou, se você for produzir, dependendo do que você for usar, por
exemplo, você pode ter tantas plantas, que seriam o suficiente para o seu
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consumo pessoal. E aí, você pode plantar, colher, extrair óleo, pegar a matéria-
prima in natura e usar a vapor, fazer um chá, você faz como quiser. Mas
humanizar. O que acontece com essas pessoas é que elas são estigmatizadas
de tal maneira que até o aprisionamento, até o traficante enquadrado, precisa
ser olhada de uma maneira diferente, porque o fato de estar num
enquadramento como traficante não quer dizer sou um sacana, sou um
bandido; eu, inclusive, não gosto da palavra bandido, eu prefiro dizer que é
uma pessoa em conflito com lei. Mas, eu prefiro falar de pessoas: uma pessoa
está e conflito com a lei porque cometeu um homicídio, está em conflito com
a lei porque estuprou uma mulher, mas eu não despojo aquela pessoa da
dignidade humana dela, ela está em processo, se ela está em processo, preciso
dar as condições para que ela caminhe para algo que a faça evoluir, então tem
que ter um tratamento digno. Quem é bandido? E quem é cidadão de bem?
Quem é o cidadão de bem? Uma pessoa que chega, vai ali, paga uma propina
para que o seu processo ande; uma pessoa que, numa repartição pública,
chega, passa na frente descaradamente; o cara que, em nome do patrimônio
dele, mesmo que o cara não esteja armado ele dá um tiro na cabeça dele e diz
“aquele bandido estava invadindo o meu patrimônio!”. Aí, esse é o cidadão de
bem? Eu acho que são questões que a gente tem que pensar, “que tipo de
sociedade eu quero?”. Como eu vou criar uma sociedade de acolhimento, de
relacionamento se eu segrego, se eu estigmatizo? Então a gente pensa um
mundo mais tolerante, mais justo, mais fraterno, mais acolhedor. (Júlio
Américo, entrevista, setembro de 2019)
Alguns exemplos deste ponto de vista mais amplo foram citados por Júlio e Sheila no
encontro em Pium, como os diálogos estabelecidos com os organizadores da Marcha da
Maconha em João Pessoa, que antes pensavam que a Liga recriminava o uso recreativo e
buscava um propósito unicamente medicinal e, após a participação de Júlio em algumas das
reuniões de organização do evento, quando ele se posicionou favorável à legalização da
maconha, foi acolhido pelos organizadores do evento, ao ponto de, nas Marchas da Maconha a
partir de 2016, a Liga estar presente com o que eles chamaram de “ala medicinal”, em que as
crianças e pais estão presentes e fazem todo o percurso pouco à frente dos demais manifestantes
e tendo voz no microfone para falar sobre esta demanda.
Júlio Américo ressaltou ainda o interesse deles pela aproximação de cultivadores de
maconha para auxiliar e contribuir nas futuras plantações caseiras que eles querem fazer quando
houver autorização judicial para a extração artesanal, um dos maiores objetivos da Liga, já que
possibilitaria a diminuição drástica dos custos para a produção dos óleos usados pelas crianças
e que tem sido viabilizado em 2019.
Outro exemplo interessante é que, ao visitarem igrejas católicas, quando conseguiram o
apoio de padres, freiras e fiéis, conseguem reverter o preconceito sobre a maconha e difundir
informações sobre as potencialidades medicinais da planta. Sheila ainda contou casos cômicos
em que seus vizinhos passaram a apoiá-la pelo plantio de maconha em sua casa para tratar o
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filho, confundindo as plantas que ela tem no quintal com pés de maconha e agradecendo a Deus
por ela conseguir plantar o remédio do filho.
Existem aí interseções interessantes para entender as formas pelas quais a Liga busca
apoio e visibilidade para seus propósitos. Como o próprio Júlio afirmou, o tabu e o preconceito
vêm da desinformação e se eles não buscarem levar conhecimento aos que não entendem e não
conhecem as potencialidades medicinais da maconha, a sua causa continuaria restrita entre os
que concordam com ela. Porém, como a luta deles é por acesso universal à saúde, tal como diz
a Constituição brasileira, a maconha terapêutica que poderia ser benéfica para muitas outras
pessoas, precisa se tornar conhecida para avançar em seus processos morais e jurídicos para
que, como disse Júlio, “o meu direito possa ser o direito de todos”.
Fica claro que há um grande empenho dessas pessoas em alcançar todos os meios para
fazê-lo. Neste mesmo dia, Sheila citou a audiência pública, anteriormente descrita, que
aconteceria na Assembleia Legislativa de João Pessoa no mês seguinte, em que eles teriam
direito a expor sua causa dialogando de forma publica com os principais representantes de
órgãos do Estado envolvidos no tema. Falou também da audiência que participariam dias depois
na ANVISA em Brasília, sobre a qual fiquei sabendo do conteúdo posteriormente, na primeira
reunião da Liga Canábica que participei, no início do mês seguinte.
Entre os temas discutidos no encontro em Pium, falou-se também da preocupação com
o processo de legalização e regulamentação da maconha para fins medicinais, sobretudo no que
tange ao monopólio da indústria farmacêutica sobre os direitos de produção dos remédios à
base de Cannabis. Sidarta Ribeiro ressaltou que a medida que pesquisas são realizadas para
identificar os princípios ativos que servem para tratamentos de determinados sintomas, é
possível isolar e controlar índices e concentrações destas substâncias em remédios específicos
para cada caso ou doença e certamente alguns pacientes necessitarão de um fármaco controlado
deste nível, embora uma grande quantidade de pacientes também possa ser tratado com o
princípio ativo em concentração suficiente e não milimetricamente calculada, como os óleos
caseiros, por exemplo. Neste ponto chegou-se ao consenso de que o papel da indústria
farmacêutica será importante para desvendar estas potencialidades da maconha, porém o
processo artesanal caseiro precisa estar assegurado para que aqueles que podem seguir
tratamento desta forma não seja obrigado a arcar com altos custos dos fármacos quando podem
obter seu remédio de forma quase gratuita fazendo-o em casa48. Esta é uma preocupação salutar
48
Ver Capítulo 6, sobre a ANVISA.
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para a Liga Canábica. Todos conhecem os altos custos de importação dos derivados da maconha
e agora tem também conhecimento e experiências suficientes com o uso de óleos extraídos
artesanalmente que são eficazes no tratamento das crianças da Liga, logo, o direito e o acesso
ao tratamento, para estas famílias, devem ser, para eles, prioritariamente através do plantio e
extração caseira e este é desta forma que eles querem seu direito assegurado e aguardam apenas
autorização formal para fazê-lo. Nas entrevistas, realizadas posteriormente, este
posicionamento foi explícito:
Se pudesse eu faria na hora! Não sou muito jeitosa com planta, não, mas é
melhor do que a gente ficar dependendo da questão de importação. “O
remédio vai chegar? O remédio não vai chegar? Como é que vai ser?” ficar
nessa, dependendo dos outros. Plantando a gente pode ver a qualidade do que
a gente tá dando [para as crianças] e também a questão de minimizar os custos,
né. Porque o custo é muito alto, a maioria não usa porque não tem condições
de comprar. (Clarissa Carvalho, entrevista, abril de 2019)
Djanira: Se for liberado, você poder plantar no jardim, e colher, e fazer o seu
chazinho, seu óleo, enfim, e o custo é bem menor, né?!
Pesquisadora: Mas você acha que o processo é fácil de extração, para fazer o
óleo?
Djanira: é sim, que eu já fiz. É só questão de prática. Porque você tem que
colher a planta, aí você limpa as folhinhas, aí bota a flor de molho, pelo menos
o que a gente fez, né?! Bota de molho no álcool, aí vai mexendo... mexe, mexe,
mexe... 45 minutos.Você bota aquele álcool, aí você fica mexendo, sem parar,
porque se grudar, aí perde o óleo, porque o processo que você tira é um óleo,
então ele prega na borda, aí a ideia é você ficar mexendo, mexendo, para não
grudar. O que gruda fica ali e perde. Aí depois você bota numa panela de arroz,
para ter a evaporação do álcool. Aí quando evapora todo o álcool, aí fica só o
extratozinho. Aquele extrato você pode unir com o óleo de coco, com o azeite
de oliva, ou de uva, de gergelim, aí fica tomando. É simples, incrível, e foi
bem gostoso, assim, de fazer...
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articulados (OLIVEIRA, 2016a; FIGUEIREDO et all, 2017), tal como citado anteriormente.
Todas as conquistas e obstáculos são compartilhados em redes virtuais privadas, incluindo
documentos e meandros dos processos judiciais que permeiam a busca pela efetivação de uma
política de saúde acessível a todos os que desejem fazer tratamento com maconha. A partilha
de informações é tão difundida e o propósito de ajudarem-se uns aos outros é tanto que, assim
que fui incluída em um dos grupos de WhatsApp, uma mãe entrou no grupo e pediu para ter
acesso ao óleo para tratar sua filha e prontamente foi estimulada e acompanhada por outras
mães ao produtor do óleo utilizado por todos eles. No encontro em Pium, Sheila chegou a relatar
que a neurologista que acompanha o filho dela e sabe da evolução do quadro desde o início do
tratamento com o óleo da maconha, passou a receitar o mesmo tratamento para outras crianças
com a mesma síndrome e, por falta de informação e experiencia a respeito, ligou diversas vezes
para Sheila perguntando qual seria a dosagem adequada para aquela criança de acordo com a
idade e peso. Fica claro que em função da falta de regulamentação deste uso no Brasil, todo o
conhecimento advém da experiência prática das mães com o tratamento dos próprios filhos, o
que constitui um conhecimento da prática que, como Epstein (1993, 1995) argumenta, passa a
ser reconhecido como uma perícia leiga a partir de estratégias de inserção mobilizadas por
aqueles que estão mobilizados por uma causa49.
Mesmo a burocracia da ANVISA e suas resoluções sobre a importação e permissões
para uso, não alcançam uma consistência para regulamentar na prática o uso terapêutico da
maconha. A professora Katy Albuquerque, que realiza pesquisas farmacológicas na UFPB
sobre os óleos extraídos da maconha e sua eficácia em crianças com epilepsia de difícil controle,
entre elas os filhos dos integrantes da Liga, também estava presente no encontro em Pium e na
ocasião, afirmou que a ANVISA faz as resoluções, mas não sabe o que fazer com elas, como
operá-las. As resoluções são emitidas por ordem da Justiça a cada passo dos processos movidos
pelas entidades interessadas, mas não tem consistência para de fato regulamentar o processo de
pesquisa e uso terapêutico da maconha. Ao mesmo tempo, estas resoluções podem ser
revogadas e editadas, o que contribui para um processo frágil já que o que está estipulado pode
mudar e, por consequência, as práticas de pesquisa que vinham sendo adotadas deixam de ser
válidas e legais sem aviso prévio. Ou seja, enquanto não existir legislação e regulamentação
específicas, não há segurança e consistência para um processo de pesquisa e uso completamente
legais50.
49
Ver Capítulo 4.
50
Voltaremos a estas questões no Capítulo 6.
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No turno da manhã, durante o encontro em Pium, estes assuntos foram articulados e
sucessivamente citados sem qualquer necessidade de ordenamento entre os presentes, de tal
forma que, com o avançar da hora, foi necessário finalizar este momento para o almoço, como
estava previsto. Neste intervalo, espontaneamente nos dividimos para ocupar as mesas à medida
que cada um se servia no buffet de comida vegana servido em um restaurante próximo à casa
onde acontecia o encontro. Diversas conversas foram se cruzando e este foi um momento de
nos conhecermos mais, proveitoso para eu saber quem eram todas aquelas pessoas que
participam da Liga Canábica. Vi fotos das crianças que dão razão ao movimento, ouvi histórias
sobre tratamentos anteriores e seus efeitos colaterais que levaram as crianças quase ao estado
vegetativo, me aproximei e troquei algumas palavras com outros membros do grupo além dos
pais das crianças, e passei a entender a composição da associação paraibana além da presença
de pacientes, mas também por aqueles que não tem necessidade de usar a maconha para fins
terapêuticos mas fazem parte da associação por buscarem e acreditarem na necessidade de
mudança das políticas de acesso ao tratamento adequado com Cannabis, acreditando na sua
eficácia a partir dos casos de sucesso que embasam o propósito da Liga Canábica. Sempre em
tom descontraído e amistoso, não demorou para me sentir bastante à vontade entre eles a partir
de perguntas simples e conversas sobre assuntos variados. Voltei do almoço conversando com
Sheila, muito disposta a me contar as tantas histórias que já viveu nestes anos à frente da Liga,
juntamente com outras mães e com seu ex-marido, Júlio. Nesta conversa, falamos
informalmente sobre a ANVISA e “como as coisas acontecem lá dentro”, como ela me disse,
referindo-se a falta de argumentos científicos para as determinações tomadas pelo órgão, assim
como Katy havia mencionado.
Após um breve descanso da caminhada de volta sob o sol escaldante, retomamos os
trabalhos previstos com uma oficina sobre plantas e suas diversas potencialidades terapêuticas
para o bem-estar físico e mental. Extratos diversos, cada qual para um fim, nos foram
apresentados pelo casal de anfitriões, que trabalham com plantas e conhecem bem estes
processos. Nesta oficina, Carl começou mostrando alguns extratos feitos com Cannabis
misturada à outras plantas e frutos que, segundo ele, potencializariam os efeitos terapêuticos.
Esta parte foi de grande interesse para o pessoal da Liga, que ficou bastante atento e não hesitou
em experimentar os preparos e compará-los aos óleos que já conhecem e usam no tratamento
das crianças. O cheiro, espessura, cor e até o gosto eram o tempo todo comparados aos óleos
produzidos pela ABRACE e alguns importados conhecidos por eles.
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Já no fim da tarde, após a oficina, o encerramento do encontro foi realizado em
agradecimento a Gretel e Carl, e todos demonstraram estar bastante satisfeitos com aquela
vivência e com a possibilidade de expandir a Liga Canábica para o Rio Grande do Norte a partir
daquele momento, tal como foi proposto por Júlio e prontamente apoiado por todos os
presentes.
Este momento em que estive pela primeira vez reunida com uma coletividade maior da
Liga foi fundamental para que eu começasse a entender melhor a organização da associação e
também fosse acolhida pelo grupo. Tanto pela apresentação de cada um, quando pelos papéis
desenvolvidos, percebi a divisão de tarefas entre eles, como comissões de pesquisa, jurídica, de
eventos, além da diretoria executiva. Esta interação com mais pessoas e da forma como se deu
neste encontro também promoveu uma aceitação muito maior da minha participação e possível
contribuição para os propósitos da Liga, a começar pela possibilidade de que eu poderia, como
antropóloga, acrescentar um viés “sociocultural” aos debates promovidos por eles. Essa
intenção foi bastante explícita, ao ponto de já naquele momento ter sido convidada para integrar
uma mesa redonda proposta por eles para o mês seguinte.
Assim, consegui uma abertura bem maior do que nas vezes anteriores em que estive em
contato com Júlio e Sheila. Embora eu já acompanhasse anteriormente os eventos e tivesse
realizado alguns contatos, foi este momento que me proporcionou, por exemplo, ser inserida
em um grupo do WhatsApp denominado “Liga Canábica PB/Executiva”, onde são
compartilhadas todas as informações entre um grupo grande de pessoas consideradas como
apoiadoras (nome que o grupo ganhou posteriormente, em substituição ao termo executiva). A
partir deste grupo virtual passei a ficar a par das programações, da organização e uma variedade
de temas de interesse dos participantes.
Foi também por este grupo virtual que fiquei sabendo sobre a realização das reuniões
mensais da associação, que acontecem para compartilhar informações e decidir formas de
atuação e atividades a serem desenvolvidas. Foi pelo grupo no WhatsApp que soube da primeira
reunião que participei. Sheila havia mandado uma mensagem lembrando da reunião no grupo
e eu, privadamente, perguntei se poderia participar. Ela não apenas respondeu positivamente,
como disse que seria muito bom que eu estivesse presente. Assim, no mês seguinte ao encontro
em Pium, participei pela primeira vez da reunião mensal da associação, no dia 3 de maio de
2017 e, a partir de então, passei a frequentá-las e acompanhar outras atividades da Liga
Canábica até 2019.
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3.1. Formação
Do dia para a noite o nosso celular foi invadido por uma legião de mensagens
[risos]! Eu me lembro que tinha dias que eu e Júlio desligávamos o celular,
desligávamos mesmo, não botávamos só no silencioso não, desligava mesmo.
O Facebook, quando abríamos tinham lá cento e poucas solicitações de
amizade, a vida começou a virar de cabeça para baixo! Ligação de gente que
eu nunca tinha ouvido falar, do Brasil inteiro... porque a gente acabava
divulgando os nossos telefones nas entrevistas e hoje, você dá uma entrevista
no jornal, aquilo fica no Youtube, fica no site daquele jornal o resto da vida, e
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o povo vai ver e vem atrás da gente! [risos] (Sheila Geriz, entrevista, setembro
de 2019)
Ela conta que muitas vezes não conseguia acompanhar as discussões nos grupos e
comentou, rindo, que achava que tinham pessoas que deviam achar ela, Katiele e Margarete,
antipáticas, porque não respondiam as questões direcionada à elas nos grupos, mas elas, na
verdade, não davam conta de tantas pessoas buscando contato ou fazendo perguntas. Ainda
rindo, ela me alertou: “olha, se um dia você falar comigo alguma coisa [pelo WhatsApp] e eu
não responder, ou se eu ficar devendo uma resposta e não der logo, pode cobrar de novo, porque
eu esqueci! São tantas conversas que se eu deixo passar lá pra baixo [na tela do aplicativo], eu
esqueço!”.
Diante da enxurrada de mensagens diárias que ela me relatava, perguntei quantos grupos
de WhatsApp sobre maconha terapêutico ela tinha no celular. Sem saber a quantidade, ela
começou a lembrar de um por um enquanto dirigia, e eu ia contava nos dedos para somar. Entre
os que ela lembrou, sem ter certeza se não esquecera algum, eram 13 grupos. Alguns da Liga
da Paraíba e suas comissões, alguns com profissionais, de áreas específicas, como médicos e
advogados que trabalham sobre o tema, outros apenas de pacientes e familiares, e ainda os que
envolviam as articulações com outras associações do país.
Eu tentava acompanhar o emaranhado de informações que ela me contava, mas com o
carro em movimento e numa conversa informal, não consegui fazer anotações que
posteriormente me permitissem organizar as ideias, no entanto, as informações que mais me
chamaram a atenção foram imediatamente anotadas quando cheguei em casa e algumas
questões foram inseridas na entrevista realizada em 2019. A quantidade de grupos de WhatsApp
e de pessoas que entram em contato diariamente com ela e Júlio certamente me impressionou,
mas também me chamou a atenção para a dedicação que ambos têm à esta causa que muitas
vezes compromete a vida privada e as responsabilidades e obrigações rotineiras, como Sheila
admite.
Têm momentos que é uma carga, tem momento que é difícil, não pelo trabalho
da militância, de lidar com as pessoas, porque, embora seja difícil lidar com
gente [risos], é fascinante, é maravilhoso lidar com pessoas, eu adoro gente,
eu adoro escutar [...] mas, o que às vezes é um peso é você ter a necessidade
de não poder acolher, nunca me esqueço daquela situação que contei, com
aquele cultivador que estava aqui, chorando porque ia ser preso e, do outro
lado, a paciente chorando porque não tinha acesso ao óleo dele, então, essas
situações, de modo particular, cansam, realmente, têm horas que é
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desesperador, é um peso, já teve dias de eu ir dormir chorando de revolta,
raiva, meu sentimento é de indignação e, às vezes cansa, porque assim, por
exemplo, quase todas as noites acaba que a gente tem ou uma palestra, ou uma
reunião interna, sempre tem alguma coisa, uma vida em movimento, um
paciente que você vai atender e, tanto eu como Júlio de ter uma característica,
eu acho, de ser meio sem limites, eu acho que a gente deveria ter um
pouquinho mais [risos], mas também ocupa um espaço muito grande das
nossas vidas, o que, de um lado é cansativo, mas, por outro lado é muito
gratificante, e uma coisa particular que me veio, e eu não pensei que fosse ter
esse problema, é um pouco de falta de privacidade, porque João Pessoa é uma
cidade pequena, e teve esse período que a mídia deu muita cobertura, e aí a
minha cara, a cara de Júlio, a cara de Pedro apareciam muito, e não tem hoje
um só passeio que a gente faça que não chegue o pessoal e diga “ah, vocês são
aquele pessoal da maconha”, não tem um só lugar que a gente vá (a não ser
que seja muito escondido), por exemplo, vai passear na calçadinha [da orla]
“ah, o menininho da Cannabis”, quer tirar foto com o Pedro e “olhe, eu tô com
paciente que está assim, será que dava certo?” e já pega o telefone, e já vai pra
reunião; eu até tirei do meu carro o adesivo da Liga Canábica, porque
acontecia de gente querer que eu parasse no trânsito pra ir conversar, pediu o
telefone e, às vezes, sufoca um pouco, você fica meio “peraí”, [...] tem hora
que você, né, fica meio com medo às vezes, dessa hiperexposição, e de ser
meio que a referência, [...] mas, hoje em dia eu acho que eu não saberia viver
se não fosse desse jeito, é uma demanda realmente empenhativa, o tempo que
muita gente gasta dormindo a gente gasta visitando pacientes, estudando, mas
hoje eu acho que, trazendo um pouquinho das definições da Logoterapia, eu
acho que hoje é muito um incentivo de vida (Sheila Geriz, entrevista, setembro
de 2019)
Apesar da demanda constante que ela e Júlio dividem como principais referências sobre
o tema na Paraíba, para ambos estes trabalhos é necessário e motivador, como Sheila explica.
A vida da gente virou de cabeça para baixo. Se você não tem uma motivação,
eu acho que um sentido de vida até, de melhorar a vida das pessoas, eu acho
que não conseguiria. Eu acho que tem muito a ver com isso, porque, inclusive,
quando a gente começou, existia um grupo bem coeso, de mães e pais aqui, e
que hoje, desse grupo, só restam quatro, eu e Júlio, Clarissa e Djanira. Os
demais não participam mais, tem acesso ao óleo de seu filho, [as crianças]
ficam bem, e não têm essa necessidade, [de] estar à frente, assim, de um
movimento, como eu e Júlio, que é sempre a gente que fala, mesmo que a
gente não queira, a gente é a referência. Infelizmente é assim, se tornou, você
não consegue se manter nessa dinâmica se, de fato, você não tem algo de muito
forte dentro de você, no sentido de ver o coletivo, de se incomodar como
sofrimento do outro, de querer tirar o outro daquela situação. E uma coisa que
é muito característica de mim e de Júlio é que a gente se incomoda demais,
não dorme, com situações de injustiça, é algo que mobiliza muito, tanto eu
como ele. Uma situação de injustiça, um direito que é negado, que é concedido
a aquele ali, que tem uma condição financeira ou de pele considerada melhor,
e não tem para esse outro aqui, a gente não consegue dormir em paz com essa
realidade. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
130
Pelas palavras dela, que expressam um sentimento diante desta realidade, fica evidente
uma motivação particular que dá a ela este entendimento de um papel social importante que
precisa ser exercido apesar da alta demanda pessoal que exige.
Durante a carona, em 2017, Quando eu quis saber mais sobre a existência de outras
associações e das relações que existiam entre a Liga Canábica e elas, Sheila começou me
contando que no início da organização, a intenção era formar uma única associação nacional
que se mostrou inviável tanto em termos operacionais de funcionamento, quanto pelas
diferenças e divergências de posicionamentos entre os membros que se reuniram algumas
vezes, entre 2013 e 2014 e que, percebendo a heterogeneidade dos interessados, dissipou-se
dando origem a 7 associações oficializadas legalmente, a Liga Canábica da Paraíba, a Abrace,
ambas paraibanas sediadas em João Pessoa, a Abracannabis (RJ), a APEPI (RJ), a Associação
Canábica do Piauí (PI), a Cultive (SP) e a AMA-ME (MG).
Sheila me explicou que as 6 primeiras têm um grupo no WhatsApp onde combinam as
ações conjuntas e que a AMA-ME não participa por divergências “antigas”, segundo ela. Este
grupo é chamado por eles de Federação, “a gente que chama assim, existe a intenção e querem
colocar Júlio como presidente”, ela me disse rindo, reconhecendo que a federação não existe
formalmente. Já a AMA-ME também mantém relação com as demais, embora não participe da
federação por ter alguns posicionamentos discordantes, mas não chegamos a entrar nestes
pormenores. Em entrevista, Júlio me contou com mais detalhes esse processo de fragmentação
entre as mais antigas associações pela maconha terapêutica no Brasil.
132
associação adquiriu na Paraíba, já que, como veremos, a Liga Canábica da Paraíba se diferencia
das demais associações pela forma coletiva de acionar a justiça para garantir o direito ao
tratamento de saúde com cannabis terapêutica, ao contrário das demais judicializações que
obtiveram autorizações individuais para importação.
Também existem outras páginas virtuais voltadas para a questão das substâncias
psicoativas de forma mais geral, englobando a maconha e seus diversos usos, que compartilham
também informações sobre o uso terapêutico e, embora não constituam grupos formais, servem
de respaldo e são parceiras na divulgação de notícias e conhecimentos úteis, como o
Growroom51, o Coletivo Desentorpecendo a Razão – DAR52, e a própria Marcha da Maconha53.
Registrada como uma associação sem fins lucrativos, a Liga Canábica da Paraíba tem
particularidades na sua formação e organização. Esta associação foi “criada a partir da luta dos
pais e familiares de crianças com epilepsia de difícil controle, pelo acesso aos derivados da
planta Cannabis para o controle das crises epiléticas de que seus filhos são acometidos”,
conforme consta no seu folder de divulgação, amplamente distribuído nos eventos em que seus
membros estão presentes, embora sua composição nos últimos anos se estenda para além de
familiares e pacientes, como veremos. Este folder foi o primeiro material da Liga a que tive
acesso, no lançamento da Campanha “Para manter esses sorrisos acesos”, um dos primeiros
eventos que acompanhei no início desta pesquisa. No folder, além de telefones de contato, da
conta corrente para contribuições e um breve histórico dos registros “milenares” e uso
terapêutico da maconha em diversas “civilizações”, as três sessões principais do folheto
explicam “quem somos?”, “o que queremos? ” e “quem pode associar-se à Liga Canábica?”,
informações que constam também no endereço virtual da associação54.
Além da breve explicação sobre a criação da associação que citei logo acima, a descrição
de “quem somos” apresenta o objetivo da Liga Canábica em “contribuir para a construção de
uma Política Nacional de Cannabis para fins terapêuticos” que
51
https://www.growroom.net/
52
http://coletivodar.org/
53
http://marchadamaconha.net/
54
www.ligacanabicapb.com.br
133
principalmente, aos seus tratamentos ou das pessoas das quais são
responsáveis. (Folder da Liga Canábica, s.d.)
O último item do panfleto refere-se aqueles que podem se associar e descreve de forma
ampla grupos interessados no uso terapêutico da maconha:
3.2. Organização
134
horizontal. Entre 2017 e 2019, período em que realizei a pesquisa e estive presente na maioria
das atividades e reuniões da Liga Canábica, Júlio Américo era o presidente da associação e
Sheila Geriz sua vice-presidente. A eleição para a nova diretoria aconteceu em outubro de 2019
e Sheila foi eleita como nova presidenta da associação. O cargo de presidente sempre foi
mencionado em tom descontraído e em diversos momentos, Júlio Américo e Sheila Geriz
faziam questão de enfatizar que, apesar da formalidade, o funcionamento da Liga Canábica não
correspondia a esta hierarquia normativa.
De fato, durante esta pesquisa, percebi que Júlio e Sheila sempre tiveram destaque como
representantes da associação muito mais pelo papel de pai e mãe de um menino que adquiriu
uma melhora de qualidade de vida graças ao uso terapêutico da maconha e serve de exemplo
para a eficácia desta terapêutica, do que propriamente pelos cargos formais na associação. No
capítulo seguinte nos deteremos a realidade individual e ao papel de cada um dos participantes
desta mobilização, haja visto que, dentro das suas realidades, cada um dos integrantes do
movimento tem suas particularidades de vida, de inserção e participação nesta mobilização.
Na prática, percebi uma rotina muito mais horizontal, que acolhe diferentes pessoas a
partir da potencialidade de cada uma em contribuir com a associação. Ainda assim, é perceptível
a existência de um núcleo principal, mais constante, de mobilização e articulação formado por
Júlio Américo, Sheila Geriz, Djanira Fernandes e Ricardo Lucena, mas, em determinados
períodos, outras pessoas se aproximavam e participavam deste núcleo, afastando-se depois de
algum tempo. Considero a existência deste núcleo não por cargos formais, mas pelo
engajamento e efetiva participação nas reuniões ordinárias e nas atividades propostas.
As reuniões ordinárias servem para acompanhar a dinâmica habitual de trabalho da
associação, sobretudo no acolhimento e orientação de pacientes e seus familiares sobre as
potencialidades e comprovações de eficácia da maconha no tratamento de diversas patologias
e, para isso, não apenas o conhecimento cientifico é útil, mas principalmente as experiências de
Júlio Américo e Sheila Geriz com seu filho Pedro Américo, e de Djanira Fernandes com sua
filha Ana Patrícia Fernandes.
Durante o período que esta pesquisa foi realizada, acompanhei uma mudança
significativa na organização e estruturação da Liga Canábica, que pode ser percebida na
dinâmica de reuniões da associação. Entre 2017 e meados de 2018, as reuniões mensais que
participei seguiam o mesmo padrão. Todos os meses, os mesmos membros da associação
estavam presentes, Sheila, Júlio, Djanira e Ricardo e, eventualmente, Clarissa. Uma mesa de
lanches também era sempre montada, com as famosas tapiocas feitas por Djanira, e mais
135
algumas opções de bolos, pães e biscoitinhos acompanhados por suco e café. A cada reunião,
sempre aparecem pessoas interessadas conhecer a associação, saber sobre as experiências dos
membros da Liga com o uso dos óleos de maconha e querendo informações de como consegui-
lo para uso próprio ou para familiares. A participação destas pessoas geralmente faziam com
que as apresentações, realizadas no início das reuniões, fossem longas, porque aqueles que
buscam informações se apresentam contando suas histórias, perpassadas pelo sofrimento e
pelas dificuldades enfrentadas na rotina de quem é portador ou cuida de familiares com doenças
graves e debilitantes, que exigem atenção em tempo integral. De todas as reuniões que
participei, grande parte destas pessoas interessadas que compareceram a uma reunião, não
voltaram a participar nos encontros seguintes. Participavam também pesquisadores de diversas
áreas e profissionais da saúde que se interessam em contribuir, e estes geralmente prolongam
sua participação na associação por períodos variados.
A reunião de agosto de 2017 pode ser tomada como um exemplo da mudança que estava
por vir. Esta foi um pouco diferente das anteriores, mas seguiu o mesmo roteiro. Como sempre,
a reunião aconteceria na primeira quarta-feira do mês e mais uma vez seria no apartamento de
Júlio, que comportava razoavelmente a média de 10 a 15 pessoas que participavam das reuniões,
entre os membros sempre presentes e algumas pessoas novas interessadas em saber mais sobre
a maconha terapêutica.
O apartamento de Júlio fica no bairro Tambauzinho, em um prédio com mais de vinte
andares com vista para o mar e boa parte do litoral da capital, a alguns metros da Avenida
Presidente Epitácio Pessoa, a principal avenida da capital paraibana.
A reunião sempre marcada para as 19:30 nunca começara na hora, e desta vez não foi
diferente. No entanto, esta foi a primeira vez que cheguei alguns minutos depois desse horário,
porém tranquila, por achar que o meu atraso seria pequeno em relação ao início da reunião, que
geralmente começava com as apresentações, seguida dos informes e pautas, por volta das 20
horas. Já na entrada do prédio, me deparei com 3 pessoas, um casal jovem e um senhor, que
aparentava ter em torno de 50 anos. O rapaz vestia a camisa da Liga e todos pareciam um pouco
perdidos. Indiquei a entrada e perguntei se estavam ali para a reunião da Liga. Com a resposta
positiva, me apresentei e disse que também estava indo para o apartamento do Júlio, mostrando
o caminho. Subimos até o 12º andar e, para a minha surpresa, quando as portas do elevador se
abriram, vimos a porta do apartamento aberta e o interior do apartamento cheio. Provavelmente,
estavam em torno de 30 pessoas ali, sentadas em todas as cadeiras disponíveis, no sofá, no chão
da sala e da varanda e algumas em pé na cozinha! Depois do susto inicial, que me fez parar por
136
alguns instantes na porta do apartamento, entrei cuidadosamente entre as pessoas, saudei a todos
e passei para a cozinha para deixar o bolo que eu havia levado para contribuir com o lanche,
como era de praxe em todas as reuniões. Na cozinha estava Sheila Geriz, que deve ter percebido
minha cara de espanto e já me olhava rindo. Ela também estava impressionada com a quantidade
de pessoas, e brincou que a próxima reunião deveria ser no auditório da Reitoria da UFPB – o
maior da Universidade.
Pela quantidade de pessoas e passando do horário marcado, logo a reunião começou
com as apresentações de cada um ao grupo, já que a maioria estava ali pela primeira vez e
poucos se conheciam. Me sentei no chão, ao lado de outras pessoas e em seguida Júlio Américo
também se sentou no chão, cedendo uma cadeira para mais um recém-chegado. Enquanto cada
um se apresentava, mais pessoas iam chegando e as apresentações eram interrompidas pelas
risadas e movimentações para que os recém-chegados conseguissem se acomodar de alguma
forma, mas os últimos a chegar tiveram que ficar em pé, pois já não havia mais espaço para
sentar, nem mesmo no chão. Ao todo, 39 pessoas participaram daquela reunião.
Durante as apresentações, ficou claro que muitos dos presentes sabiam da existência da
Liga Canábica há algum tempo, mas após assistirem ao seminário sobre maconha terapêutica
ocorrido na semana anterior na UFPB55, se interessaram ainda mais em participar do grupo. 7
médicos, um dentista, 3 cultivadores, 2 professores da Universidade, 7 familiares de pacientes
e pacientes com doenças graves, além dos integrantes da Liga, formavam o grupo presente.
55
O “I Seminário sobre Uso Terapêutico da Cannabis” aconteceu no dia 26 de julho de 2017, no auditório da
Reitoria da UFPB, organizado pela professora Katy Albuquerque em parceria com a Liga Canábica e a ABRACE.
O evento, além da mesa de abertura, contou com a palestra da Psiquiatra Eliane Lima Guerra Nunes, sobre o uso
terapêutico da maconha em pacientes com autismo. O evento foi amplamente divulgado e estava com o auditório
completamente lotado.
137
Figura 10 Parte dos presentes na Reunião da Liga Canábica de agosto de 2017, no apartamento de Júlio
Américo. Registro de Djanira Fernandes.
138
Sheila como sempre, foi muito amável com as palavras ao explicar que a Liga era
formada não apenas por pais que querem remédios para seus filhos, mas por um grupo de
pessoas que querem um mundo melhor;
56
Na nota do Conselho Federal de Medicina a entidade discorda da inclusão da Cannabis Sativa L. na relação de
plantas terapêuticos pela Anvisa e reitera seu posicionamento contrário ao uso terapêutico da maconha in natura
ou qualquer outro derivado que não o Canabidiol (CBD) isolado, classificando a medida da Anvisa como “risco
para a saúde pública”.
139
apoio à inclusão da Cannabis Sativa L. na relação de plantas terapêuticos da Agência. Outra
ação foi protocolada também na Defensoria Pública Federal, que defende os direitos humanos,
para acionar juridicamente o CFM, pedindo a revogação da nota ou a apresentação de
argumentos científicos que comprovem seu posicionamento. Esta ação jurídica possibilita ainda
que o Conselho seja obrigado a indenizar às associações de pacientes que se beneficiam do uso
terapêutico da maconha por danos coletivos.
Em seguida, foi a vez de Júlio Américo fazer seus informes que, na verdade, foram
informações sobre projetos e atividades da Liga Canábica, para situar aqueles que participavam
pela primeira vez da reunião, sobre o desenvolvimento das ações da associação. Ele falou sobre
grupos de outros estados do país que tem se organizado para fundarem Ligas Canábicas, e para
isso, a Liga Paraibana tem dado suporte, através do WhatsApp, por telefone e através do
compartilhamento de documentos, contando sua experiência e tirando dúvidas sobre os tramites
para fundação das associações. Segundo ele, estas articulações estão acontecendo no Piauí,
Maranhão, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Goiás e Paraná, cada uma com suas
particularidades e em níveis diferentes de organização, mas até o fim desta pesquisa não tive
notícias sobre a formalização de nenhum destes grupos.
Depois foi a vez de Ricardo Lucena, professor de pedagogia, vinculado ao
Departamento de Fundamentação da Educação do Centro de Educação da UFPB e membro da
Liga, dar o informe da comissão de eventos, da qual ele faz parte, relatando que a comissão
estava organizando um evento de lançamento da Liga Canábica em Campina Grande, assim
como acontecera em 2016 em João Pessoa, aquele que foi o meu primeiro contato com a
mobilização desta associação. Ricardo disse que a comissão pensou neste evento para estender
as ações e a divulgação da Liga no interior do estado, e que estavam pensando em realizá-lo no
final de setembro ou início de outubro, porém a comissão só teria informações mais precisas na
próxima reunião.
Terminados os informes e passando para as pautas, Júlio Américo informou que na
manhã seguinte aconteceria uma reunião no Ministério Público Federal, com o Procurador José
Godoy, para esclarecer algumas questões e, por isso, a primeira pauta seria definir quais pontos
e demandas poderiam ser colocados para o Procurador. A primeira demanda foi sugerida por
um dos médicos presente, que prescreve maconha terapêutica, trouxe para a reunião a legislação
do Estado Norte Americano de Washington sobre o uso terapêutico da maconha para várias
doenças. Ele contou ter feito um curso lá e, por considerar a legislação bastante eficiente,
gostaria de consultar o Ministério Público sobre a possibilidade de usar essa legislação como
140
base para, de alguma forma, assegurar aos médicos o direito de prescrever, de acordo com uma
regulação específica. Todos concordaram imediatamente e Sheila sugeriu que ele participasse
da reunião com o Procurador para discutir essa possibilidade, já que o medo dos médicos em
serem punidos pelo Conselho Federal de Medicina por prescreverem os óleos de maconha é
considerado por todos um dos principais entraves desta demanda. Sheila esclareceu que o
ministério público poderia transformar essa e outras ideias em ações judiciais que podem ter
validade em todo o Brasil, que sirvam de prerrogativa para outras ações e assim, “ir
conquistando terreno” e avançando nas propostas, até que se efetivem leis que deem conta
destas demandas judicializadas. Aproveitando a fala, ela lembrou que tinha mais um informe
que esquecera de falar antes das pautas, e anunciou rapidamente que a Liga está pensando em
propor uma audiência pública no Ministério Público Estadual, porque os casos de cultivo
caseiro que a Liga pretende iniciar, são julgados pela justiça comum estadual, considerada por
ela como extremamente conservadora e desinformada sobre o tema, e por isso seria preciso
sensibilizá-los para que entendam e julguem positivamente os pedidos de habeas corpus que
virão em breve, para garantir o direito das famílias plantarem em casa seus pés de maconha
para extração do óleo terapêutico.
Voltando a pauta, Júlio colocou que um dos pontos já elencados para a reunião do dia
seguinte com o Procurador, seria juntamente sobre o cultivo caseiro e como o Ministério
Público pode auxiliar nesta demanda. Sobre o auto cultivo, Júlio também explicou que uma das
comissões da Liga Canábica, a comissão de cultivo, estava preparando um material para
divulgação de questões jurídicas e práticas sobre plantar maconha em casa, para pacientes e
famílias que queiram cultivar e participar da proposta de distribuir o óleo gratuitamente para
pacientes que não tem condições financeiras para comprar e não podem cultivar.
Ao falar sobre cultivo caseiro, houve uma empolgação geral e um dos médicos presente
disse que sonhava que seus pacientes tivessem acesso, pelo SUS, aos óleos de maconha
fabricados aqui mesmo no país, por laboratórios públicos. Júlio completou dizendo que eles
estavam em sintonia, e que o desejo do médico era o mesmo da Liga, que está trabalhando para
trilhar esse caminho através do estabelecimento de convênios com o INSA – Instituto Nacional
do Semiárido e com o LIFESA – Laboratório Industrial Farmacêutico da Paraíba para viabilizar
141
o cultivo e a extração, respectivamente, nestes órgãos públicos 57. Estes convênios e sua
viabilidade jurídica também seriam pautas da reunião no Ministério Público.
Retomando quais seriam os pontos elencados para serem tratados com o procurador José
Godoy, além dos que tinham acabado de ser discutidos, sobre os médicos prescritores, assegurar
o direito ao plantio caseiro e sobre firmar os convênios com órgãos públicos de forma legal,
Júlio Américo acrescentou que levaria ao Ministério Público questionamentos sobre as
associações que representam os pacientes que fazem uso terapêutico da maconha. Ele explicou
esta questão afirmando que deve haver um modo de assegurar o caráter público e social
necessário para, de fato, representar pacientes e famílias, porque, segundo ele, algumas
entidades oficializadas como associações podem ser na verdade empresas, que não tem trabalho
coletivo, nem diretoria e sócios discutindo, apenas uma diretoria que decide e age. Júlio afirmou
que essa discussão é fundamental para que possa ser efetivada uma política pública de saúde
que realmente esteja voltada para a sociedade e seja discutida no âmbito público, como um
conselho estadual de cannabis terapêutica, tal como ele sugeriu, ou uma agência nacional de
Cannabis terapêutica, como disse Sheila, “sonhando alto”. Superficialmente, Júlio Américo
contou já ter recebido ligações de uma empresa do ramo, sediada no Colorado – EUA,
oferecendo assistência jurídica, estrutura física, transferência de tecnologia, etc., mas querendo
em troca 20% de royalties sobre cada produto vendido. Ele afirmou ter negado a oferta, porque
o interesse e a proposta da Liga são inclusão, abertura, e não a criação de um mercado limitado
a quem pode pagar caro.
A pauta seguinte foi sobre um ofício redigido por Júlio para ser enviado ao presidente
nacional da ANVISA, convidando-o a vir à João Pessoa conhecer a mobilização e as propostas
da Liga Canábica para uma política de acesso à maconha terapêutica.
Para evitar que a descrição se torne desnecessariamente cansativa, pontuo que cada um
dos itens da pauta foi discutido com a participação de vários dos presentes na reunião, com a
exposição de argumentos e contribuições de acordo com uma ordem dos pedidos de fala. Outra
parte dos presentes apenas ouviu as discussões sem se manifestar.
Já nos aproximávamos das 22 horas e o teto da reunião havia sido definido para as 22:15.
Durante as discussões das pautas, era possível ouvir os barulhos vindos da cozinha e naquele
horário, Djanira já havia preparado as tapiocas, sucos e café e arrumado a mesa com o lanche
57
Esta proposta foi de grande interesse da Liga Canábica por alguns meses, mas não chegou a ser concretizada,
permanecendo como uma possibilidade interessante viabilizar as demandas da associação, mas sem previsão para
implementação.
142
de encerramento no canto da sala, como em todas as outras reuniões, mas ainda faltava fazer a
avaliação do I Seminário sobre uso terapêutico da Cannabis, que acontecera na semana anterior
na UFPB.
Anastácia Alencar, integrante da Liga Canábica bastante participativa naquele ano,
sugeriu começar ouvindo as opiniões daqueles que estavam participando da reunião pela
primeira vez e que tivessem comparecido ao evento. As opiniões expostas demonstravam
pontos de vista diversos. Um rapaz timidamente disse ter ficado decepcionado, pois esperava
que a Doutora Eliane, a palestrante, utilizasse mais embasamentos científicos e considerou a
fala dela muito superficial e aleatória sobre algumas questões que já são bastante difundidas
sobre o uso terapêutico da Cannabis. Outro discordou, pois considerou a fala da psiquiatra
introdutória e bastante elucidativa para pessoas que, como ele, não tinham qualquer
conhecimento sobre o tema, o que ele considerou importante pela diversidade de pessoas ali
presentes, tanto profissionais e estudantes de diversas áreas, quanto pacientes leigos no assunto
que estavam à procura das primeiras informações sobre o assunto. Um médico, concordou com
a opinião anterior e disse que apesar da expectativa e curiosidade dos médicos presentes para
saber mais dos aspectos clínicos da experiência da médica, entendia a abordagem dela voltada
para aquele público heterogêneo, considerando um evento importante e marcante que deixou a
expectativa de que aconteçam outros para que o assunto possa ser aprofundado. Em seguida,
falou um estudante de medicina que apesar de concordar com a opinião do médico que falara
antes, disse que esperava da palestra mais embasamento para ajudar aos médicos que desejam
prescrever maconha para seus pacientes e que sentia falta disso no currículo do curso de
medicina.
Estas colocações abriram um debate acalorado entre os estudantes e profissionais da
área medica sobre o desprezo que os cursos de saúde tem pelo sistema endocanabinóide,
presente no corpo humano e influente em vários outros sistemas do corpo, mas que não é visto
durante a graduação em medicina, pois caso fosse abordado, seria uma porta para os estudos e
a abordagem da interação da maconha neste sistema e seus efeitos decorrentes do seu uso, o
que também aproximaria esses estudantes do interesse em desenvolver pesquisas sobre essa
interação. Esta discussão resultou na proposta de elaborar e sugerir ao colegiado dos cursos de
saúde a criação de uma disciplina optativa sobre o sistema canabinóide e os efeitos da Cannabis
143
terapêutica no organismo humano58. Júlio ficou bastante empolgado com a ideia pela
possibilidade da Universidade formar médicos mais preparados para entender e prescrever
maconha terapêutica para mais pacientes e patologias e por isso assumiu o compromisso de
tratar sobre esta proposta com a professora Katy Albuquerque, que não estava presente na
reunião. Depois Moises Anton, diretor do Instituto Revertendo o Autismo, disse que esperava
que a Dra. Eliane trouxesse mais dados sobre o uso da Cannabis em autistas, já que era essa a
proposta da palestra, mas que o tema não chegou a ser aprofundado.
Júlio Américo complementou que era necessária maior formação dos médicos sobre
maconha terapêutica, e retomou uma proposta que havia sido cogitada em uma reunião anterior
sobre a necessidade de realizar um evento maior, com algumas atividades direcionadas para
médicos e a comissão de eventos ficou responsável por articular uma reunião com os médicos
ali presentes para elaborar a proposta deste evento. Depois, Júlio retomou a avaliação da
palestra dizendo que também tinha sentido falta de referências científicas, mesmo que só
estivessem citadas no fim da apresentação, mas que dariam a possibilidade de as pessoas
procurarem mais informações por conta própria, e finalizou dizendo que as críticas expostas
serviriam como experiência para os próximos eventos.
A reunião se estendera além do horário combinado, como era comum, e todos pareciam
cansados quando Júlio perguntou se alguém mais gostaria de fazer outra colocação, e o silêncio
seguido de risadas evidenciou o fim da reunião, quando todos se levantaram para buscar alguma
bebida ou petiscar entre as opções servidas na mesa. Durante cerca de meia hora, grupinhos de
3 ou 4 pessoas seguiram conversando sobre os temas da reunião, e aos poucos as pessoas foram
se despedindo daqueles que ficavam, até sobrarem poucas pessoas. Ajudei na reorganização do
apartamento e ofereci carona aos restantes, mas desci sozinha, pois todos que ficaram estavam
com seus próprios carros.
A descrição desta reunião é representativa da forma como as discussões e decisões são
realizadas na associação, de forma horizontal e participativa, sem distinção de cargos durante
os debates, porém, ela explicita também que a dinâmica de trabalho das reuniões mensais não
estava mais funcionando para a associação pois, em razão da quantidade de pessoas, cada vez
maior, e do tempo disponível para discussão, entre as 19 e as 22hs, era impossível fazer a
dinâmica de acolhimento dos que participavam pela primeira vez em busca de informações,
58
Em Agosto de 2019 a UFPB aprovou a introdução de uma disciplina optativa sobre o sistema endocanabinoide
para os cursos de medicina, farmácia e enfermagem, proposta pela professora do Departamento de Farmácia, Katy
Albuquerque.
144
como era o costume nas reuniões com menos pessoas, e também discutir os assuntos de ordem
organizacional e prática da associação.
Os pontos principais que esta reunião evidencia e que de fato são importantes para a
Liga Canábica, dizem respeito, por um lado, a parceria criada com os poderes públicos,
procuradoria e defensoria pública, para a judicialização e formalização oficial dos
posicionamentos da Liga Canábica como ferramentas indispensáveis para os avanços já
conquistados e aqueles ainda pretendidos, como foi descrito. Por outro lado, a presença
excepcional dos médicos nesta reunião evidencia outro ponto relevante, sobre as articulações
da Liga Canábica com alguns profissionais da saúde dispostos a aprender e contribuir com os
avanços do uso de maconha terapêutica no Brasil, apesar do posicionamento conservador do
Conselho Federal de Medicina. Voltaremos a estas questões no capítulo seis.
Além disso, o que parece menos evidente nesta descrição, mas tem extrema importância
do ponto de vista etnográfico, e também de impulsionamento desta causa é o comparecimento
regular e cada vez maior de pacientes e familiares em busca de informações. Considerado
prioritário para a Liga Canábica, o acolhimento de usuários potenciais que chegam não apenas
querendo saber sobre as possibilidades de uso, mas também compartilhar suas angustias em
razão do acometimento de doenças graves em suas famílias foi perdendo espaço e tempo nas
reuniões à medida que a quantidade de pessoas presentes foi aumentando.
Esta dinâmica de acolhimento, no momento inicial de apresentações em que cada um
fala porque está presente na reunião, geralmente relatando o histórico da doença e peregrinação
terapêutica entre médicos, remédios e tentativas de obter melhoras clínicas e de qualidade de
vida, que se repetia também ao final das reuniões em conversas particulares, são momentos que
demandam tempo e atenção para escutar e orientar cada caso. Se nas primeiras reuniões que
estive presente, a quantidade de participantes variava de 8 a 15 pessoas, nas últimas
ultrapassavam 100 presentes.
Por isso, a partir de 2018 foi decidido que as reuniões de acolhimento e de organização
deveriam ser separadas, considerando que são demandas diferentes que não estavam sendo
supridas em um único encontro mensal com três horas de duração. Assim, as reuniões de
acolhimento continuaram a acontecer na primeira quarta-feira de cada mês e foram realocadas
para a sede social da Associação dos Docentes da UFPB – ADUFPB, no bairro de Cabo Branco,
uma casa espaçosa que comporta melhor estes momentos, embora o aumento significativo de
participantes tenha alterado também a dinâmica do acolhimento, porque seria impossível ouvir
e atender as dúvidas de cada um individualmente em uma única reunião. Portanto, as reuniões
145
de acolhimento passaram a ter outra dinâmica, sendo iniciadas por uma exposição dos
potenciais terapêuticos da maconha para as diversas doenças em que o uso já é feito e apresenta
resultados positivos e, em seguida, as formas de acesso aos derivados da planta e as formas de
uso são explicados detalhadamente, citando documentos e profissionais que podem orientar os
pacientes que desejem começar esta terapia. Por fim, abre-se espaço para as perguntas.
Terminada a reunião, é comum que os mais interessados aguardem a possibilidade de conversar
individualmente com Júlio, Sheila e Djanira, assim como acontecia antes da divisão das
reuniões, em busca de orientações mais específicas para cada caso.
Já as reuniões de planejamento e organização passaram para a terceira quarta-feira do
mês, e, posteriormente, passaram a acontecer semanalmente, quando questões como as
apresentadas na descrição anterior podem ser discutidas entre os membros realmente
envolvidos com a associação.
A rotatividade de participantes efetivamente participativos não apenas nas reuniões, mas
sobretudo nas articulações e organização da associação também parece uma questão
interessante. Entre 2017 e 2019, acompanhei esta mudança ao perceber o afastamento de
algumas pessoas inicialmente bastante engajadas e a aproximação de novos membros que se
mobilizaram para contribuir com a associação, inteirando-se dos processos em curso e trazendo
novas propostas. Foi a partir da chegada de novos integrantes engajados que se efetivou, em
2019, a proposta de uma casa sede da Liga Canábica, para acolhimento dos pacientes e seus
familiares, e realização de atividades, denominada Casa Verde.
Além das reuniões presenciais, o aplicativo para smartphones WhatsApp não pode ser
menosprezado neste contexto de pesquisa. Na verdade, é através dos grupos existentes dentro
desta plataforma que muitas questões são discutidas e até mesmo resolvidas pelos membros da
Liga Canábica, além de se mostrar útil para a marcação de reuniões e compartilhamento de
materiais de interesse comum, inclusive políticos e culturais. Os grupos de WhatsApp são
instrumento característico e, nesse contexto, fundamentais para a forma como a Liga Canábica
conduz suas atividades. Seja a organização de um evento, o compartilhamento de material sobre
maconha e outros temas, links sobre reportagens e programas sobre maconha terapêutica, dentre
uma diversidade de conteúdos, todos emitem comentários nos grupos do aplicativo que
registram as conversas coletivas.
Como Sheila Geriz havia relatado, e descrevi anteriormente, existe mais de uma dezena
de grupos no WhatsApp compostos por membros da Liga Canábica, divididos por temas, como
grupo de pacientes, e por comissões de trabalho, como a comissão jurídica, de eventos,
146
cientifica, dos outros estados (um grupo por estado), de articulação entre associações e um
grande grupo principal, intitulado “Apoiadores”, compostos por uma variedade de pessoas que
participam virtualmente destas redes de informações.
Porém, nem todas as informações circulam no grupo principal, muitas discussões
importantes só são repassadas nas reuniões e eventualmente, acredito, que entre os membros
em conversas privadas, o que é compreensível, já que o grupo virtual principal reúne mais de
70 participantes, enquanto os membros realmente envolvidos com a atuação da associação, que
participam das reuniões e efetivamente colaboraram, são em torno de 12 pessoas, variando de
acordo com a dinâmica de vida e disponibilidade individual.
Esta dinâmica de segmentação dos grupos não se dá apenas pelos interesses de cada um
deles, mas acredito que principalmente pelo cuidado relativo à circulação de documentos e de
informações importantes de não devem ser “vazadas” antes da hora. Assim, é possível constatar
que existem diferenças entre as articulações virtuais e presenciais e que, é nas reuniões e
encontros presenciais que de fato as articulações da Liga Canábica se concretizam.
3.3. Atuação
Como descrito até aqui, percebemos que a Liga Canábica se propõe a realizar uma
atuação social e política de forma bastante ampla, voltada para as questões relacionadas ao
direito de usar a cannabis de forma terapêutica. Para isso, uma variedade de eventos e atividades
são organizados pela associação, assim como a participação de seus representantes em todos os
eventos a que são convidados, em diversos órgãos públicos, universidades, associações e
mobilizações em que possam dialogar sobre seus argumentos e propostas.
De forma objetiva, a Liga Canábica propõe um modelo de regulação para os usos
terapêuticos da maconha a partir de uma visão universalista de acesso à saúde, incorporada ao
SUS e a inclusão da fitoterapia através das farmácias vivas59. Para tal, foi sistematizada uma
proposta de Política Pública Nacional De Cannabis Medicinal, conforme documento elaborado
pela associação. A partir das diretrizes deste documento, eventos acadêmicos para discussão de
59
Instituída pela Portaria nº. 886/GM/MS, de 20 de abril de 2010, a Farmácia Viva é um ente público sob gestão
estadual, municipal ou do Distrito Federal, que foi criado para atender às necessidades do SUS, não podendo assim
comercializar plantas medicinai s e/ou fitoterápicos. Estão sob sua responsabilidade o cultivo, a coleta, o
processamento, o armazenamento de plantas medicinais, a manipulação e a dispensação de preparações de plantas
medicinais e fitoterápicos. Disponível em:
http://189.28.128.100/dab/docs/legislacao/portaria886_20_04_2010.pdf. Consultado em 10/09/2019.
147
diferentes aspectos envolvendo a maconha são promovidos pela associação, geralmente em
parceria com a Universidade Federal da Paraíba, para que a realização destas atividades
aconteça nas dependências da instituição de ensino. Rodas de conversa, exibição de filmes e
documentários seguidos de discussão, mesas redondas, palestras e seminários são organizados
sob diversas abordagens cientificas, das ciências sociais, jurídicas, da saúde e farmacologia,
contando com convidados da própria instituição ou convidados pela Liga Canábica.
Há também o intuito de divulgação da associação e suas propostas. Este intuito é
viabilizado através de eventos culturais como a campanha de lançamento “Para Manter estes
sorrisos acessos”, descrita anteriormente, e a comemoração ao dia da Visibilidade da Cannabis
Medicinal no Estado da Paraíba e no município de João Pessoa, no dia 7 de maio de 2019, que
contou com uma programação acadêmica no período da manhã, com a palestra do
Neurocientista Sidarta Ribeiro (UFRN) e a noite com uma apresentação coletiva de músicos
paraibanos renomados no estado, como Escurinho, Adeildo Vieira, Poliana Rezende, Nathalia
Bellar, Seu Pereira, entre outros. Nestas ocasiões são vendidos camisetas, botons, adesivos e
canecas com o símbolo da Liga Canábica para divulgar e arrecadar fundos para a associação.
Neste quesito, a parceria com músicos e artistas locais de prestigio na cena cultural paraibana
é uma forma de visibilizar os eventos e propósitos da associação.
148
Figura 11 Artes de divulgação das atividades em comemoração ao Dia de Visibilidade da Cannabis
Terapêutica. Acervo da Liga Canábica.
A Liga Canábica também participa de outros eventos que abram espaço para
participação de movimentos sociais e políticos, como o Festival Marielle Vive, realizado no dia
14 de março de 2019, data que completou um ano após a execução da Vereadora Carioca que
deu nome ao evento. Este festival aconteceu no Parque da Lagoa Solon de Lucena, no centro
de João Pessoa e contou com várias atividades ao longo do dia. Nesta ocasião, a Liga ocupou
uma tenda, ao lado do palco principal, onde foram realizadas rodas de conversa e palestras sobre
aspectos jurídicos, médicos e sociais relacionados à proibição da maconha e a necessidade de
novas políticas de drogas, sobretudo para o uso terapêutico. Nestes eventos, além das
atividades, os souvenirs da Liga Canábica também são expostos para venda.
Politicamente, há a articulação com os poderes legislativo municipal e estadual, através
do contato com vereadores e deputados que apoiam os avanços para o uso terapêutico da
maconha. A Deputada Estadual Estela Bezerra e o Vereador da cidade de João Pessoa, Tibério
Limeira, ambos filiados ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), são os parlamentares mais
atuantes pelas causas da Liga Canábica e foram responsáveis por propor e coordenar audiências
149
públicas sobre o tema nas casas legislativas e instituírem o Dia Estadual60 e Municipal61 de
Visibilidade da Cannabis Terapêutica no Estado da Paraíba e na capital, respectivamente. A
relação estabelecida com os poderes legislativos é um ponto relevante para as conquistas
relacionadas ao uso terapêutico da maconha no âmbito estadual e destaca o envolvimento dos
poderes públicos provocado pela atuação das associações.
Dentro desta perspectiva política, a Liga Canábica está articulada com outras
associações de pacientes usuários de maconha terapêutica e familiares de outros estados
brasileiros, fundadas com o mesmo propósito e com posicionamento contrário aos órgãos
conservadores sobre o uso terapêutico da maconha e a falta de regulamentação desta
possibilidade terapêutica. Conjuntamente, as associações brasileiras tem se articulado para
marcar posição e reivindicar explicações das instâncias legislativas, jurídicas e médicas sobre
a atual situação da maconha terapêutica. A união das associações é para seus membros, uma
forma de demonstrar que existem muitas pessoas em todo o território nacional que precisam e
querem que o uso da maconha para fins medicinais seja legalizado e regulamentado e que esta
não é uma reivindicação individual ou excepcional, já que muitos pacientes podem ser
beneficiados.
A partir destas 3 frentes de atuação, acadêmica, cultural e política, muitas propostas da
associação são viabilizadas, embora a principal seja realizada de modo praticamente contínuo
no dia a dia dos principais integrantes da Liga Canábica e nas reuniões mensais, o que eles
denominam de acolhimento aos pacientes e familiares.
É perceptível a intenção da Liga Canábica de agregar diferentes frentes de atuação social
e política nas ações promovidas pela associação e sua interface com profissionais e interessados
em colaborar com o tema de formas variadas.
A Liga tem o objetivo de também plantar e extrair o óleo e ter esse óleo com
o preço mais acessível, para que todas as pessoas possam ter, né?! Para aquelas
que tenham condições ou aquelas que não tem... e também a gente tem esse
trabalho de incentivo para que as pessoas plantem e produzam o seu próprio
óleo... e a gente tá na luta aí... aí a Liga se destaca dessa forma, né?! Através
de política pública, e a gente tenta quebrar o preconceito, fazendo na parte
cultural shows, apresentando o trabalho da Liga, apresentando os benefícios
que a Cannabis traz, né... as crianças que a gente já tem as histórias...e vai
60
Lei 268/2019 de autoria da Deputada Estadual Estela Bezerra (PSB). Informações disponíveis em:
https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2019/04/23/alpb-aprova-lei-que-institui-dia-estadual-em-prol-da-
maconha-terapeutica.ghtml. Consultado em 09/09/2019.
61
Lei Lei 13.647/2018 de Autoria do Vereador Tibério Limeira (PSB). Informações disponíveis em:
https://portalcorreio.com.br/joao-pessoa-tera-dia-municipal-da-maconha-medicinal/. Consultado em 09/09/2019.
150
apresentando...e tá conseguindo, aí... que as pessoas entendam que a maconha
só faz bem. (Djanira Fernandes, entrevista, abril de 2019)
A mais recente iniciativa que está sendo viabilizada pela associação é a estruturação de
um espaço físico para realizar atividades, reuniões e atendimentos de práticas integrativas, a
intitulada Casa Verde. Através do apoio do Vereador Tibério Limeira, a associação foi
contemplada com uma verba parlamentar para a realização de atividades de cunho social
propostas por entidades não governamentais. No ano de 2019 o vereador destinou esta verba
para a Liga Canábica iniciar seu projeto de abrir um espaço próprio para as atividades que
desenvolve, embora sejam necessárias outras fontes de renda para manter a Casa Verde em
funcionamento:
Quando a gente pensou na Casa Verde, a ideia era ter um lugar onde se
pudesse acolher os pacientes, que pudesse oferecer a eles práticas integrativas,
um atendimento mais holístico para esses pacientes, de acolher projetos de
extensão da UFPB, de acolher grupo de pesquisa, reuniões da Liga, de poder
oferece a essas pessoas a possibilidade de ter um médico do SUS prescrevendo
cannabis na Casa Verde, uma vez tendo um local pra gente poder se reunir,
uma sede, a gente ter mais captação de recursos e tudo, para poder aperfeiçoar
as coisas, de ter um espaço administrativo para a Liga poder funcionar
administrativamente, as pastas, os computadores, tudo certinho, todas essas
questões para fazer a burocracia funcionar, ter uma contabilidade, muitos
elementos envolvidos. Seria um pouco a estruturação da Liga, a Liga, agora,
existindo em um espaço, um canto da Liga, um lugar de referência.
A Casa Verde vai contar com uma proposta do vereador Tibério Limeira,
porque cada parlamentar tem uma cota de verba que eles podem colocar à
disposição de algum projeto, uma entidade que ele pode indicar, como
relevância social, alguma coisa que mereça esse projeto, e aí ele colocou esse
projeto por lá e foi aprovado, por unanimidade. Uma vez aprovado, o dinheiro
vai chegar. Precisamos, então, fazer um projeto pra dar conta do que a gente
vai gastar com aquele dinheiro, como isso vai ser colocado à disposição da
prefeitura e ver como a prefeitura vai lidar com essa coisa. (Júlio Américo,
entrevista, setembro de 2019).
151
A organização e as formas de atuação da Liga Canábica possibilita que percebamos esta
associação pela perspectiva que Maria da Gloria Gohn (2008) elabora sobre uma mudança das
abordagens e terminologias empregadas para a análise das mobilizações socias contemporâneas
que englobam “movimentos de luta por melhores condições de vida e de trabalho, no meio
urbano e no rural, que demandam acesso e condições para terra, moradia, alimentação,
educação, saúde, transportes, lazer, emprego, salário etc. (GOHN, 2008, p. 440). Portanto, a
reivindicação por acesso a saúde, através da mobilização protagonizada pela Liga Canábica,
pode ser entendida dentro dos parâmetros definidos por Gohn.
Fazendo um apanhado teórico sobre as abordagens teóricas no estudo dos movimentos
sociais na América Latina, esta autora aponta a centralidade de novas categorias de análise nas
ciências sociais a partir dos anos 1990. Entre estas categorias, a autora cita o termo mobilização
social para exemplificar mudanças de entendimentos sobre a expressão, que anteriormente era
subordinada à outras, e passa a ganhar “vida, significado e dinâmica própria” (Gohn 2008, p.
446). Para ela, as mobilizações sociais passam a ser entendidas como processos políticos e
culturais presentes em todas as formas de organização das ações coletivas e tem sentidos
variados, de acordo com a fonte ou campo onde sua organização é articulada, seja em
movimentos sociais, ONGs, isoladas ou em rede, por meio de políticas públicas estatais, etc.
A autora dialoga com a proposta do colombiano José Bernardo Toro (2007 apud GOHN
2008), que fez do tema da mobilização social “o centro de um plano estratégico de atuação na
realidade social visando a provocar mudanças de comportamento.”. ela explica que,
152
Como vemos, as premissas estabelecidas por Toro e comentadas por Gohn, podem ser
relacionadas com os modos que a Liga Canábica tem utilizado para viabilizar suas ações, em
diferentes tipos de atividades e envolvendo diversos atores sociais, congregando interesses e
participações em busca de mudanças reais para uma condição que vivenciam, através de uma
engenharia do social, para usar o termo da autora, ou seja, voltada para a ação coletiva, que
busca resolver problemas sociais diretamente, via a mobilização e engajamento de pessoas.
Em comparação com os movimentos sociais, tema central para Gohn em muitos
trabalhos, a autora explica que as atuais mobilizações sociais são uma nova face dos
movimentos sociais, que transformaram-se em organizações e associações registradas por uma
“exigência estrutural ou conjuntural” para lidar com governos e possíveis institucionalização
das suas causas e passam a ser entidades da sociedade civil organizada. Porém, ela adverte que
“o movimento não morre porque criou uma associação” pois, “a forma movimento continua a
ser um referente identitário para milhares de cidadãos, que se engajam naquele movimento ou
em outro, com os mesmos objetivos.” (GOHN 2008, p. 451), sobretudo porque as mobilizações
mais recentes são por políticas de identidade que buscam legitimidade e inclusão, através dos
poderes do Estado.
As definições de Maria da Glória Gohn sobre este novo modelo, agora tratado como
mobilização social, e não mais movimento social, refletem muitas mobilizações que temos
acompanhado nos dias atuais sobre demandas específicas que buscam a garantia de direitos,
como é o caso da Liga Canábica. A forma de reivindicação, formalizada em associação, também
nos permite relacionar o contexto desta pesquisa a caracterização exposta pela autora, já que os
pais e mães precisaram “existir” formal e coletivamente, para demandarem o apoio da
Universidade Federal da Paraíba, do Ministério Público, entre outros, e também para falar e
representar outras famílias que vivenciam a mesma situação, porém não estão engajadas na
mobilização – que só é legitima porque é representativa e, por esta característica, pode
demandar ao Estado suas reivindicações.
Se as mobilizações sociais são formas de dar visibilidade e conquistar a atenção pública
a uma questão que interessa a uma parcela da população diretamente afetada, as mobilizações
pelo direito de uso terapêutico da maconha em todo o país, especialmente na Paraíba nos
últimos cinco anos, é uma forma de expor publicamente que mais pessoas estão sendo afetadas
e tem consciência de que as leis e normativas em vigor ferem seu direitos à saúde e a qualidade
de vida de pacientes que poderiam se beneficiar destas terapias.
153
3.4. Propostas e Objetivos
156
conexões globais na forma de tratar esta questão (CAMPOS 2013) e, sem esquecer que a
possibilidade do uso terapêutico da maconha faz parte deste tema, esta também é uma
característica marcante para o caso que estou analisando.
Pensando no que sugere Mike Featherstone (1999) sobre os aspectos culturais
globalizados, é interessante perceber que cada país adota uma postura específica para lidar com
as possibilidades terapêuticas da maconha e tem, nos últimos anos, caminhado para certa
identificação comum sobre possibilidades de legalização deste uso em muitos países, como já
citado. Nas palavras de Ulf Hannerz (1997), seriam culturas transnacionais formadas a partir
de fluxos contínuos de pessoas e suas culturas que, em contato, estabelecem nos híbridos
culturais, formas de entendimento comum sobre as mesmas questões.
Basta pensarmos nas pesquisas científicas que respaldam o uso terapêutico da
maconha pois, não é o país onde a pesquisa foi realizada que impede que outras pesquisas ou
posições políticas sejam adotadas a partir dos resultados obtidos em países estrangeiros. Ao
contrário, produções científicas são transnacionais não apenas no compartilhamento de
resultados, como também muitas vezes são realizadas em parceria entre instituições e países, e
seus resultados podem ser validados em qualquer parte do mundo. No caso do Brasil, um país
de dimensões continentais, as escalas de hibridismo e mútua influencia podem ser entendidas
tanto internamente, entre estados, quanto em relação com dinâmicas estrangeiras sobre
pesquisas, modelos regulatórios, mobilização e reivindicação social, por exemplo.
Apesar de termos um contexto nacional único, legal e regulatório, as conquistas da
Liga Canábica e da ABRACE são casos isolados na Paraíba em função da atuação social,
legislativa e judicial estadual, embora as reivindicações da Liga sejam propostas para o âmbito
nacional e a atuação da ABRACE também beneficie pacientes de outras partes do país, como
veremos. Ao mesmo tempo, as mobilizações pelo direito ao uso terapêutico da maconha têm
acontecido em outros estados brasileiros e, articulados entre si ou não, cada um à sua maneira,
em seu contexto, busca as formas que considera mais viáveis para obter visibilidade e conquista
de direitos que, se regulamentados, serão válidos para todo o território nacional. Também faz
parte destas mobilizações utilizar exemplos internacionais de estudos, casos clínicos e
legislações para endossar os argumentos favoráveis a legalização desta terapia no Brasil.
Também o processo de aprendizado e desenvolvimento de um saber leigo sobre a maconha, as
formas de utilização, seus efeitos, etc., fazem parte deste compartilhamento de experiências e
saberes que transcendem os contatos e influências restritas ao plano local, como foi exposto e
será retomado no capítulo seguinte.
157
Ao tratar sobre essas dinâmicas internacionais de influências transnacionais, Arjun
Appadurai (1996) conceituou como panoramas as intercessões culturais e fluxos humanos que
possibilitam fluidez e compartilhamento de práticas, ideias e compreensões comuns que
independem de nacionalidade ou região. São, portanto, diferentes sociedades e culturas que, em
determinados aspectos demonstram entendimentos e determinações comuns sobre situações ou
realidades similares. No caso das drogas especificamente, há um ideopanorama estruturado
entre os países ocidentais que constituem uma ideologia de combate às substâncias tidas como
ilícitas, e esta ideologia dá suporte à criminalização de qualquer contato das pessoas com essas
substâncias. Porém, em relação a maconha, este ideopanorama tem sido revisto e reestruturado
em muitos países nos últimos anos, mesmo que apenas para o uso terapêutico.
Estas abordagens que nos possibilitam articular diferentes escalas de influências, entre
o local e o global, podem ser aplicadas para diversos aspectos desta pesquisa além das
mobilizações sociais. Ao considerarmos que aspectos globalizados são compartilhados e estão
relacionados entre si também entre diferentes planos, do micro ao macro social, perceberemos
que as demandas da Paraíba fazem parte de uma conjuntura mais ampla nacional e
internacionalmente, demonstrando similaridades e convergências que nos permitiriam conectar
as reivindicações propostas em diversos lugares do país e do mundo, e não apenas sobre as
demandas mobilizadas pelas associações, mas também no tratamento dado ao tema pelos
poderes públicos nacionais, estaduais, em relação também com posicionamentos internacionais
como a Organização Mundial de Saúde, por exemplo.
Como vimos até aqui, a atuação da Liga canábica se dá em diversas frentes sociais e
políticas, tentando alcançar uma pluralidade de pessoas a serem sensibilizadas sobre esta
demanda e a colaborarem com a causa.
Com este intuito, uma das frentes de mobilização encabeçadas pela associação
paraibana é expandir esta forma de organização e atuação para outros estados do país e em
diversas reuniões que participei a existência de grupos intitulados Liga Canábica em outros
estados era citada como uma demanda de pacientes, familiares e outros interessados na causa
que gostariam de repetir a mobilização paraibana em seus estados. Em decorrência deste pedido
de assistência, que vai ao encontro dos propósitos da Liga Paraibana, a diretoria, sobretudo
Júlio e Sheila, participam de grupos virtuais no WhatsApp dessas organizações que, em menor
158
ou maior grau, se articulam com o mesmo propósito e, por isso, são autorizados a utilizarem o
mesmo nome nos estados do Piauí, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Goiás
e Paraná.
Tive a oportunidade de participar da formação de um deles, o grupo da Liga Canábica
do Rio Grande do Norte. Lá, esta articulação começou a partir do encontro realizado em Pium,
em maio de 2017, no qual estive presente, e continuei acompanhando pelo grupo virtual no
WhatsApp e, eventualmente, presencialmente em algumas reuniões.
Apesar de inicialmente coordenada pelos integrantes da Liga paraibana, a composição
do grupo potiguar se deu de forma distinta e sua organização também pode ser distinguida da
sua precursora.
Como já descrito, a Liga paraibana é encabeçada por mães e pais de crianças que fazem
uso da maconha terapêutica, o que, ao meu ver, confere não apenas legitimidade para falar em
causa própria, como também faz transparecer a necessidade de uma militância, de um
engajamento para que os entraves reais que esta terapia envolve sejam superados. Já o grupo da
Liga Norte-rio-grandense é conduzido por pesquisadores e usuários recreativos que acreditam
no potencial terapêutico da planta e consideram esta mobilização necessária. A distinção destas
formações, ao meu ver, conferem diferentes dinâmicas aos grupos e sua atuação, sobretudo por
perceber que nestes dois anos de existência do grupo do Rio Grande do Norte, poucos avanços
foram efetivamente realizados e mesmo o grupo virtual, com 98 participantes62, mantem sua
interatividade com conversas pessoais nem sempre ligadas ao tema, compartilhamento de links,
matérias e informações sobre diversos usos da maconha, além de discussões permeadas por
desentendimentos e mal-entendidos entre os membros.
Por estar presente na reunião que deu origem a este grupo, fiz parte do grupo virtual
desde o princípio, quando os primeiros integrantes foram adicionados por Júlio Américo, até
bem recentemente. O que observei entre 2017 e 2019, é que outros membros foram sendo
adicionados apenas por suas afinidades com o tema da maconha de forma ampla, mas poucos
de fato se envolvem nas discussões do grupo ou estiveram presentes em alguma das reuniões
eventuais realizadas pelos membros mais atuantes.
Dentre as reuniões que participei presencialmente em Natal e outras das quais vi
registros fotográficos, em nenhuma estiveram presentes mais de 10 pessoas e o que pude
perceber é que as discussões pouco evoluíram de lá para cá, seja em termos de formalização da
62
Dado referente ao mês de agosto de 2019. É necessário pontuar que a rotatividade de membros neste grupo é
bastante relevante.
159
associação, seja na realização de atividades, embora um pequeno grupo participe de eventos
realizados por outros coletivos antiproibicionista em Natal, como os fóruns e festivais
organizados pelo coletivo/produtora cultural de eventos canábicos Delta9, com estande da Liga
Canábica do Rio Grande do Norte, as vezes em parceria com a Liga Paraibana. Algumas das
integrantes da Liga potiguar participam também de outros coletivos, como a Rede Nacional de
Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e o Coletivo Antiproibicionista Cannabis Ativa
(CACA).
A demanda levantada pela Liga Canábica reivindica mudanças de ordem política, legal
e moral sobre a planta e seus usos, porém, este movimento diz respeito principalmente às
condições de saúde de portadores de doenças graves e debilitantes, e aos direitos individuais de
escolha entre os tratamentos disponíveis para suas patologias, considerando suas experiências
pessoais que perpassam a eficácia de medicamentos alopáticos, efeitos colaterais e a longo
prazo, sofrimento, entre outros aspectos de ordem individual que são desconsiderados pelas leis
que querem impedem ou limitam o uso terapêutico da maconha em razão da ilegalidade da
planta. Porém, como veremos a seguir, a mobilização pela maconha medicinal esta alicerçada
em condições objetivas e individuais de saúde, que respaldam a reivindicação protagonizada
pelas associações.
160
4º. CAPÍTULO: QUEM FAZ PARTE DA “LUTA”
161
Desde o princípio desta pesquisa, me chamou a atenção o fato de apenas duas mães e
um pai estarem à frente da Liga Canábica, atuando verdadeiramente, enquanto a autorização
especial que a associação conquistou para importação de óleos de maconha, antes mesmo da
formalização da associação, contempla 16 pacientes de 15 famílias. Foge dos objetivos deste
trabalho entender porque estas outras famílias não estão envolvidas nas atividades da
associação, mas perceber as motivações e o perfil daqueles que estão engajados, se faz salutar
para a constituição desta demanda.
Durante as entrevistas, questionados sobre as peculiaridades da formação e atuação da
Liga, seus principais representantes fizeram uma distinção interessante desta associação em
relação as demais, com as quais estão constantemente em contato:
A gente percebeu isso muito claramente agora com o evento no Rio de Janeiro,
a Liga Canábica é muito mais um movimento social do que uma associação,
lá, eles convidaram a Liga, a Ama-me, a Cultive que é de Cidinha, em São
Paulo, e a Abracannabis, um núcleo de cultivadores, lá do Rio de Janeiro; são
essas quatro associações que falaram na mesa, no evento, lá no Rio de Janeiro;
as outras três falaram muito em quantidade de pacientes, em patologias,
quantidade de dosagens, era uma preocupação muito medicinal, com os seus
pacientes. E, eu nem falei de pacientes, a apresentação que eu levei para lá
destoou totalmente do dia-a-dia das outras associações, a primeira
característica: nós temos mais associados não pacientes do que pacientes;
temos mais militantes do que pacientes na Liga Canábica; tem essa
intervenção muito para fora, de dar palestras, eventos culturais, e as outras
associações fazem muito pouco disso, a preocupação é, realmente produzir
óleo e assessorar pacientes. (Sheila Geriz, entrevista em setembro, 2019)
162
Para isso, realizei entrevistas presenciais semiestruturadas com as principais lideranças
que identifiquei ao longo da pesquisa de campo, para que, embora eu já tivesse tido acesso a
muitas informações ao longo da pesquisa etnográfica, a voz dos meus interlocutores estivesse
aqui reproduzida de forma fidedigna ao seu discurso, com suas próprias palavras. Ressaltando
o protagonismo das mães e pais que estão à frente da associação e dão legitimidade social e
jurídica à demanda pela maconha terapêutica na Paraíba, destaquei este grupo, composto 3 mães
e 1 pai, como as Famílias fundadoras e veremos como a atuação delas tem características
próprias. O segundo grupo de pessoas atuantes, que responderam individualmente um
questionário aberto, nomeei como Participantes Colaborativos e, como veremos, tem
características distintas do primeiro grupo.
Para utilizar o material proveniente das entrevistas e questionários, tomo como base as
recomendações de Pierre Bourdieu (2006) sobre o uso de informações biográficas como fonte
de dados, para alertar ao leitor que não é possível “tratar a vida como uma história, isto é, como
um relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção”
(BOURDIEU 2006, p. 185). Apesar do cuidado necessário, acredito que as informações que
me foram relatadas e serão aqui expostas, devem ser considerados em relação ao contexto em
que se inserem, aos temas relevantes para a mobilização em análise e aos propósitos desta tese,
embora devamos avaliar possíveis imprecisões. Como alertou Bourdieu:
não podemos compreender uma trajetória […] sem que tenhamos previamente
construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo,
o conjunto das relações objetivas que uniram o agente […] ao conjunto dos
outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo
espaço dos possíveis. (BOUDIEU 2006, p. 190)
Assim, tratarei de aspectos pessoais dos que estão mais diretamente envolvidos nesse
debate, por um lado, como pacientes e familiares de pacientes, em seus contextos individuais,
e, por outro lado, como agentes sociais, pessoas que se inserem como lideranças do movimento
pela maconha terapêutica, objetivando articular e interpretar os aspectos pessoais e sociais que
motivam a associação, seguindo as orientações teóricas de Clifford Geertz (1978) sobre a
atividade antropológica como uma ciência interpretativa que estuda a cultura como uma “teia
de significados” em que os indivíduos estão envolvidos, não apenas descrevendo-as, mas
também buscando perceber o contexto social e a importância que cada informação ocupa na
situação pesquisada. Desta forma, esclareço que a advertência de Bourdieu e a proposta de
163
Geertz sobre a pesquisa cultural servem de base para orientar este trabalho e os cuidados que
assumo com as informações coletadas, sobretudo através de conversas e entrevistas.
Buscando elucidar a formação de um projeto coletivo, que reúne pessoas diferentes
numa mesma proposta, acompanho as proposições de Gilberto Velho a respeito das mudanças
pessoais dentro e a partir de um contexto sociocultural específico, no caso, as sociedades
complexas contemporâneas. Velho propôs que os projetos sociais são desenvolvidos a partir da
união de projetos individuais que buscam interesses comuns dos seus integrantes e, por isso,
são também a dimensão política das intenções, vivências e percepções dos seus integrantes
(VELHO, 1981). Para este autor, cada indivíduo, conscientemente, estabelece para si um
projeto de vida de acordo com a sua formação e valores particulares, mas é também
influenciado pelo seu convívio e inserção sociais para a construção de seu projeto individual.
Logo, nas palavras do autor, “a ideia central é que, primeiramente, reconhece-se não existir um
projeto individual ‘puro’, sem referências ao outro ou ao social. Os projetos são elaborados e
construídos em função de experiências socioculturais, de um código, de vivências e interações
interpretadas.” (VELHO 1981, p. 28). Assim, a formulação de um projeto individual é, também,
reflexo de um contexto específico em que o sujeito está inserido socialmente.
Gilberto Velho escreve a partir de uma proposta de um campo de possibilidades que
situa cultural e historicamente as possibilidades de projeção dos sujeitos sobre suas próprias
vidas, ponderando também que este plano individual está relacionado com as disposições
sociais que, impreterivelmente, coincidirá, ao menos parcialmente, com interesses de outros
sujeitos, gerando identificações entre eles.
Outra dimensão, citada por Gilberto Velho, sobre os projetos individuais trata da
dinamicidade, pois sempre acompanham as mudanças da vida do indivíduo e são passíveis de
influências externas, de outros indivíduos e das mudanças sócio históricas. Portanto, os projetos
individuais serão reelaborados para se adequarem as finalidades do momento que a pessoa vive.
Portanto, é nesta convergência entre projetos de vida individuais que a formação de
projetos coletivos se dá, porque os interesses que pareciam ser individuais passam a ser
pensados e viabilizados coletivamente e, por isso, ganham uma dimensão não apenas social,
mas também política de organização e atuação coletivas em busca de mudanças sociais que
podem ter grande potencial transformador:
Creio já ter ficado claro que toda a organização aqui apresentada não existiria se não
fossem mães e pais engajados na melhoria do quadro de saúde dos seus filhos e é por eles
começaremos essa contextualização individual, dando um foco mais minucioso da realidade
desta mobilização coletiva.
Começo pelas mães e pais porque a maioria esmagadora dos casos de adeptos à
terapêutica da maconha medicinal são portadores de doenças incapacitantes que necessitam de
165
cuidados intensos e são seus responsáveis, geralmente pais, e sobretudo as mães, que assumem
este papel de cuidar e assumir protagonismo nas decisões referentes aos tratamentos,
acompanhamento médico, entre outras responsabilidades. Sobretudo as mães, é preciso
pontuar. Assim como outras pesquisas e trabalhos que tratam sobre o lugar do cuidado, neste
contexto de pesquisa também é evidente que esta é uma função delegada às mulheres, como
Waleska Aureliano aponta em relação a portadores de doenças raras, “gênero é, assim, uma
dimensão importante na esfera do cuidado e de quais membros da família se tornam cuidadores”
(AURELIANO 2018, p. 377), geralmente mães, esposas, irmãs ou filhas. Logo, preciso
mencionar que esta característica é também um dado etnográfico, porque não pude deixar de
reparar nas dezenas de pessoas que vi participarem das reuniões mensais de acolhimento da
Liga Canábica, em busca de informações de como conseguir e como usar os óleos de maconha
para seus familiares e, sim, a grande maioria eram mulheres, geralmente mães, ou mães e avós.
A maior parte das famílias que procuram informações sobre as terapias com maconha
compareciam uma única vez à uma reunião, raramente em 2 ou 3 e depois deixavam de
participar. Conhecendo mais sobre a realidade dessas famílias ao longo da pesquisa, ouvindo-
as se apresentarem no início das reuniões, dando depoimentos de sofrimento e peregrinação em
busca de tratamentos que tivessem melhores efeitos, somados à sobrecarga emocional,
financeira e de outras ordens, entendi o tamanho da demanda que é cuidar de uma pessoa com
comprometimentos graves de saúde. No caso das crianças, muitas doenças e síndromes das
quais são portadores os coloca em condição de total dependência dos seus familiares mais
próximos e de muitas terapias aliadas na melhoria do seu desenvolvimento global. Portanto, é
fácil entender que aliar esta demanda integral aos compromissos de uma agenda militante não
é tarefa fácil e, a depender da situação, impossível para alguns.
Nos primeiros dias de cada mês, mensagens informando a data, local e horário da
reunião ordinária, na primeira quarta-feira, são enviadas por Sheila nos grupos de WhatsApp
da Liga Canábica. Em seguida, sucedem-se pedidos de desculpas e justificativas pelo não
comparecimento. Desde o princípio da pesquisa me inquietou esta falta de participação de
outras famílias, mas fui percebendo da impossibilidade de muitas delas em razão dos cuidados
com suas crianças, trabalho, entre outras obrigações.
Me inquietava também, à medida que conheci Pedro Américo, filho de Sheila e Júlio,
como eles conseguiam conciliar os cuidados com o filho, com seus trabalhos, com o cuidado
dos pais idosos e ainda com a associação e toda a atenção solicitada por centenas de pessoas
que entram em contato com eles individualmente e diariamente procurando orientações sobre
166
o uso da maconha desde o dia que Sheila participou daquele fatídico jornal do meio dia que me
fez despertar para esta questão.
Sheila Geriz tem 45 anos, é advogada de formação, mas trabalha como Analista do
Tribunal de Justiça da Paraíba. Mora com os pais idosos e com único filho, Pedro, atualmente
com 10 anos e portador da Síndrome de West desde o nascimento. Em razão dos
comprometimentos cognitivos e motores decorrentes da síndrome, Pedro precisa de
acompanhamento em tempo integral e para todas as suas necessidades, motivo pelo qual 4
cuidadoras se revezam para suprir as necessidades do menino, permitindo que Sheila se ausente
temporariamente, trabalhe fora de casa, compareça a outros compromissos, etc.
Ao longo da pesquisa, soube que Sheila também usava óleo da maconha para tratar a
doença que lhe afeta e, em entrevista, ela relatou que outros membros da sua família também
fazem uso
Tudo começou com Pedro, pra tratar de epilepsia refratária (ele tinha síndrome
de West, depois, Lennox-Gastaut), depois que começou a utilizar a maconha
melhorou e, hoje, ele tem epilepsia focal. Começou com ele, depois eu (por
conta da artrite reumatoide) e o meu pai, por conta de insônia e de diabetes,
minha mãe, por conta de dores também toma aqui e acolá, mas não de forma
regular. (Sheila Geriz, entrevista em setembro, 2019)
O caso de Pedro é emblemático pelos resultados que o tratamento com óleos de maconha
vem apresentando, mas também pelo fato de que foi ele que motivou Sheila e Júlio a organizar
um movimento em João Pessoa para divulgar e reivindicar o direito a esta terapia. Questionada
sobre porque Sheila e Júlio se envolveram e tomaram a frente dessa articulação na Paraíba,
Sheila respondeu:
Por causa de Pedro, inicialmente. Era Pedro, mas, assim, eu e Júlio, a gente
tem, eu acho que tanto eu como ele, uma característica nossa, a gente não
consegue ser individualista, todo mundo é um pouco individualista, mas
quando se trata do bem que eu consigo pra mim, quero para os outros também.
(Sheila Geriz, entrevista em setembro, 2019).
Júlio e Sheila são separados, mas Júlio contribui nos cuidados com o filho, inclusive nos
revezamentos rotineiros. Ele tem 54 anos, é psicólogo e trabalha fazendo atendimentos clínicos
e também como servidor técnico administrativo na UFPB.
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É esta rede de apoio, entre familiares e cuidadoras que possibilita a Sheila e Júlio
dedicarem-se a outras atividades, como as demandadas da associação que presidem. Mas não é
só a necessidade individual e familiar que parece ter peso na motivação para estar à frente deste
movimento. Fui percebendo que a Liga Canábica é para eles um caminho em busca de ideias
sociais mais amplos, somados as demandas individuais.
Os cuidados com o filho vêm desde o nascimento, após complicações nas primeiras
horas de vida de Pedro, como os pais relatam.
Olha, Pedro, quando nasceu, aparentemente estava tudo bem, tudo muito bem.
Ele nasceu com o APGAR (que é a medição dos sinais vitais do recém-
nascido) 8 no primeiro minuto, tudo muito bem. Aí depois levaram ele para o
quarto para poder mamar, acho que umas 3 horas e meia depois, aí eu percebi
que ele não pegou no peito, não se sentiu estimulado, aí eu achei estranho e já
falei com a enfermeira, ela levou ele para examinar e quando trouxe ele de
volta, ela disse que provavelmente eram gases resultados da cesariana e que
isso talvez estivesse dificultando um pouco o desempenho dele, faltando
oxigênio, mas que isso aí iria se regularizar, só que eu não me convenci com
isso porque depois eu vi que Pedro estava com a respiração meio irregular, aí
eu fui lá falar para eles, no que eles me disseram que isso era normal, que nas
primeiras 24 horas a respiração é meio irregular, “ele está se adaptando a esse
meio agora” e tal. Depois eu comentei, “mas olha, meu filho está dormindo
muito”, “isso também é normal, pai”. Aí no final das contas, no fim da tarde
e início da noite, a médica de plantão veio conversar comigo, disse “olha, seu
filho está só preguiçosinho, o senhor vai ver que amanhã ele está bem”. Aí
não tinha mais o que dizer, né? Se a médica está me dizendo isso, certamente
ela está muito confiante. E para nossa surpresa, a pediatra que fez a sala de
parto dele foi no hospital fazer uma cesárea de urgência e em torno de 5 horas
da manhã ela foi examinar Pedro, de rotina. Pedro estava no berçário, como
qualquer outra criança e quando ela abriu, ela percebeu que as mãos e os pés
dele estavam apresentando cianoses e ficando roxinho, como se estivesse
perdendo oxigênio nas extremidades e eles estava muito secretivo, sem
conseguir respirar direito. A gente acreditou que ele iria morrer ali. Aí quando
eles foram examinar Pedro, já o levaram para a UTI e em pouco tempo ele
estava entubado e eu me lembro que eu sofri muito, porque nessa terça-feira,
eles levaram ele para UTI às 5 horas da manhã e depois disso eles passaram
o dia todo sem dar notícias para a gente, a gente ficou muito angustiados e aí
a gente conseguiu que uma pediatra que era irmã de uma amiga nossa, entrasse
lá, e ela veio de lá emocionada, eu me lembro como se fosse hoje, perguntando
se a gente já tinha batizado Pedro e como ela era religiosa, o que a gente
entendeu? Pedro vai morrer. Ele estava quase desenganado nesse dia, estava
entubado, respirando só com ajuda de aparelhos, e eu fiquei desesperado, me
lembro como se fosse hoje, “Meu Deus, eu não posso perder meu filho”[...] aí
esse momento passou, graças a Deus, descobriram que era uma infecção,
quando eles foram olhar, a infecção já tinha tomado boa parte dos pulmões
dele e aí evoluiu para infecção generalizada, que é mais grave ainda. Ele ficou
entre a vida e a morte, desenvolveu o que eles chamam de hipertensão
pulmonar, que é um endurecimento das paredes do pulmão, e insuficiência
respiratória grave e ele teve parada respiratória e teve lesão cerebral por conta
168
disso. Aí conseguiu sair da UTI, depois de 13 dias e conseguiu se recuperar.
(Júlio Américo, entrevista, setembro de 2019).
Pedro, a primeira coisa que apareceu foi uma pneumonia, não sabemos se ele
nasceu com a pneumonia ou se a contraiu no berçário, mas o fato é que, com
oito horas de nascido começamos a perceber nele alterações na respiração,
como se estivesse fazendo força e a boquinha ficando escura. Na maternidade,
o pai dele afirmando o tempo todo que ele não estava bem, e a pediatra
afirmando que era normal, que a respiração de bebê era assim mesmo, que ele
estava ótimo. Ele nasceu numa terça-feira pela manhã, quando foi para
amanhecer a quarta, a pediatra que fez o parto dele foi fazer um parto de
urgência por lá, e resolveu ir vê-lo no berçário, quando desenrolou ele da
manta, ele já estava todo roxo. Era uma pneumonia, que só então foi
diagnosticada, ele teve três paradas cardiorrespiratórias, porque o pulmão
parou de funcionar. Aí, virou uma sepse neonatal, hipertensão pulmonar, e aí
ele teve um quadro de anoxia mesmo, “zerou” o oxigênio, passou ainda dez
dias o pulmão completamente parado, só sustentado na máquina. Foi tratado,
conseguiu sair da UTI, chegou em casa bem, fizemos exames, tudo normal e,
com três meses, ele teve uma convulsão. Com três meses de nascido, o
desenvolvimento normal, e aí, convulsionou. As convulsões eram sempre na
forma de espasmo, típico da síndrome de West, ele projetava o corpo pra
frente, como se fosse abraçar (chamam até de “síndrome do abraço”), aí ficou
nesse quadro, não parava mais, começou com três meses e três dias a primeira
crise e não parou mais, era direto, direto, direto, trinta a quarenta vezes por
dia. Quando estava com quatro anos, fizemos um tratamento, com medicação
normal e tudo, sempre aumentando os anticonvulsivantes, quando estava com
quatro anos, ele tinha uma média entre trinta e quarenta convulsões todos os
dias, e aí, ele já tinha de todo tipo, antes eram só espasmos, sequências de
espasmos, típicos da síndrome de West, mas, dos quatro aos cinco anos ele fez
a transição de West para a Lennox-Gastaut, que é uma epilepsia ainda mais
severa. Aí, ele tinha crise de ausência, crise tônico-clônica generalizada,
espasmos, crises de riso, passava vinte minutos rindo, era uma convulsão,
vinte minutos chorando, outra convulsão; com todo tipo de convulsão a gente
conviveu, quando ele estava com Lennox-Gastaut. (Sheila Geriz, entrevista,
setembro de 2019).
Desde então, a partir do diagnóstico da síndrome de West, Pedro passou a ser submetido
a uma série de tratamentos para conter as crises convulsivas, através do uso de medicamentos
e outros procedimentos que, além dos efeitos parcialmente esperados, também causavam
diversos outros comprometimentos de desenvolvimento.
169
um tempo sem crise quando usou o ACTH, só que, era um tratamento assim,
injetável, altíssimas doses desse hormônio, e, eu lembro que era em vinte e
um dias, a gente conseguiu fazer em quatorze dias, no décimo quarto dia Pedro
teve um surto psicótico, com dois anos de idade. E, foi bem complicado tirar
ele desse surto, ele passou quase quarenta e oito horas acordado direto, ele
alternava meia hora de grito, meia hora de choro, meia hora de riso; nem se
alimentar conseguia; e aí, a médica suspendeu, mas ele ficou um tempo sem
crise com o ACTH, e tomando os anticonvulsivantes ainda. Como ele tinha
uma lesão, ela disse: “olhe, ele vai voltar a ter crise, é comum que as crianças
voltem”. Quando foi depois de quase um ano, as crises voltaram, e voltaram
com força. Foi quando ele chegou a ter, para ser mais exata, trezentos e
noventa e oito espasmos num só dia. Aí, a gente foi atrás da dieta cetogênica,
que foi o único tratamento que ele fez antes do óleo [de maconha]. Os
anticonvulsivantes a gente já tinha tentado tudo, todas as combinações, os
tarjas preta, e ele só ficava dopado, muito dopado, essa história da tontura e aí
eu percebi que os anticonvulsivantes, além de não conseguirem controlar as
crises, tinham esses efeitos colaterais, onde ele ficava muito dopado, babava
demais, vivia todo molhado, não usava as mãos, não interagia, aquele olhar
distante, embaçado, parecia que não estava vendo nada, e aí, à medida que a
gente foi retirando, ele foi existindo, nasceu de novo, quando a gente tirou os
anticonvulsivantes. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
O início do tratamento com extrato de cannabis foi em abril de 2014 e, de lá pra cá, a
evolução do desenvolvimento cognitivo e motor de Pedro Américo é impressionante para
qualquer pessoa que veja o comparativo de fotos, vídeos e de exames clínicos, como a
171
eletroencefalografia que demonstra as correntes cerebrais do menino sem e com o uso dos óleos
de maconha.
172
O exame de eletroencefalografia ou EEG, nada mais é que o registro gráfico das
correntes elétricas do cérebro e é utilizado principalmente em diagnósticos de epilepsia, como
é o caso de Pedro. Mesmo para uma pessoa leiga, que não saiba avaliar o que a diferença entre
as ondas cerebrais significa, é visível a reorganização e padronização das linhas que
demonstram uma ação do tratamento com os derivados da maconha nas funções cerebrais de
Pedro.
Na prática, a melhora geral do quadro cognitivo e motor do menino é impressionante.
Lembro-me bem da primeira reunião da Liga Canábica que participei, em maio de 2017. Na
ocasião, além de conhecer os integrantes da associação e algumas mães e pais que timidamente
também comparecem a reunião em busca de informações, conheci também Pedrinho, na época
com 7 anos de idade, sentado em uma cadeira de rodas especial que o mantinha preso com uma
espécie de cinto de segurança. Ele não andava e tinha pouco controle dos movimentos da cabeça
e membros superiores, sem fixar o olhar ou interagir. Amarrado com uma corda em um dos
braços da cadeira de rodas havia um brinquedo colorido que fazia barulho ao ser chacoalhado
e vi Júlio colocar o brinquedo no colo de Pedro, que mal conseguia brincar até que o objeto
escorregasse e voltasse a ficar pendurado ao lado da cadeira. Os pais interagiam com ele e
algum traço de resposta fisionômica podia ser percebida no rosto do menino, mas de forma
bastante limitada. Naquele tempo, Pedro já fazia uso do óleo de maconha e de outros
medicamentos também e o quadro que eu percebera já era considerado pelos pais dele como
um avanço em relação ao período anterior ao uso do óleo, quando Pedro era praticamente uma
criança vegetativa.
Ao longo da pesquisa fui à casa de Sheila em vários momentos, para reuniões, em busca
de documentos e informações para a pesquisa, etc., e nestes momentos eventuais acompanhei
o entusiasmo da família com os primeiros passos de Pedro, inicialmente sendo segurado pela
mãe ou pelo pai, e depois sozinho, além de interações muito claras como sorrisos e abraços. Já
no final desta pesquisa, no segundo semestre de 2019, voltei a casa de Sheila duas vezes para
realizar a entrevista formal e gravada em áudio para a pesquisa, realizada em duas partes em
razão da extensão do questionário e também das respostas minuciosas dadas por ela. Nestas
duas últimas visitas me encantou ver Pedro, agora com 10 anos, brincando e correndo pela casa,
sempre acompanhado por uma cuidadora, mas bastante expressivo, interativo e autônomo nos
seus movimentos, além de responder com um sorriso cada vez que a mãe e a avó se dirigiam a
ele.
173
Para os pais, que acompanham atentos todo o desenvolvimento do filho desde o início
do tratamento com os óleos da maconha, os efeitos positivos são ainda mais completos.
Primeiro, o essencial foi a diminuição das crises epilépticas. Uma das coisas
que a gente percebeu logo no início também, é que apesar de não controlar as
crises todas, a gente viu como se tivesse uma proteção neuronal, era como se
minimizasse o efeito das crises epilépticas no cérebro. Normalmente, ele tinha
uma crise epiléptica e ficava muito baqueado, atrasava o desenvolvimento,
ficava mais molinho e a gente percebeu que mesmo não diminuindo quanto a
gente queria, ele já não ficava mais tão vulnerável às crises. Depois a gente
foi percebendo com o tempo que ele teve um desenvolvimento cognitivo bom,
foi melhorando as respostas aos estímulos, o pessoal que trabalhava com ele
na fisioterapia, fono, terapia ocupacional, começou a perceber que ele
respondia melhor aos estímulos, que ele às vezes focava mais, que ele
conseguia dar os passos que a gente queria que ele desse, no sentido de avançar
cognitivamente e depois na situação clínica dele, a gente percebeu nesse
período todo que foi equilibrando, começou a controlar por exemplo, a
deglutição, aí já não tinha mais tantas idas ao hospital por pneumonia de
repetição, melhorou mais o sono dele, a imunidade também, ele passou a ficar
menos vulnerável a viroses e essas coisas todas e aquelas funções que estavam
aqui, de pâncreas, de fígado, foram normalizando todas, então assim foi muito
bom para Pedro, no geral. No estado geral dele, clínico, no estado cognitivo
dele e no controle das crises. (Júlio Américo, entrevista, setembro de 2019)
O que surpreende a todos que conhecem Pedro é saber que há dois anos o menino deixou
de tomar todas as medicações alopáticas e é tratado atualmente apenas com dois óleos da
cannabis, um rico em CBD – para controle da epilepsia – e outro rico em THC – para amenizar
a estereotipia associada ao autismo, também decorrente da Síndrome.
Os efeitos alcançados por Pedro são tão satisfatórios que, a partir do conhecimento
adquirido pela família sobre os potenciais benefícios da maconha não apenas para epilepsia,
outros membros da família passaram a ser tratados com óleos da maconha, como Sheila e Júlio
descrevem.
Meu pai também usou, quando ele estava com 93 anos, acho que em 2016. Ele
foi diagnosticado com uma demência senil severa e ele tinha todos aqueles
sintomas parecidos com Alzheimer, que ele não conseguia se orientar dentro
de casa, a memória recente comprometida, acabava de almoçar e dizia “vamos
almoçar?” de novo, às vezes não reconhecia a gente, tinha crises de ausência,
ficava parado assim, babando, um monte de coisa, até alucinações visuais e
auditivas ele tinha como sintomatologia, aí a gente começou a dar o óleo de
THC pra ele, nas primeiras duas semanas a gente ajustou a dose direitinho
para ele, até que chegou um ponto que equilibrou bem direitinho e aí reverteu
o quadro todo dele. Isso foi quando ele tinha 93 anos, segunda-feira agora ele
estará fazendo 97 e ele está bem, dentro da idade dele, que já é uma idade bem
174
avançada ele está bem, mas daqueles sintomas, a maioria deles, parou.
Recentemente a gente começou a dar uma gotinha, uma coisinha assim, mais
para ajudar a dar uma levantada no humor, a gente viu ele quietinho ou
comendo menos e aí “opa, vamos dar uma levantada”.
E minha mãe, ela está com um início de Alzheimer e no começo desse ano
teve um AVC hemorrágico e foi bem difícil, e ela agora está tomando um óleo
importado rico em canabidiol e associado com um óleo rico em THC, e é o
que tem dado uma certa qualidade de vida a ela. Logo quando ela teve o AVC
ela ficou sem reconhecer a gente e com a memória recente muito
comprometida e passou a depender muito de cuidadores porque ela tem uma
artrose severa e ela já está sem andar. Hoje ela não anda, a cuidadora troca
fralda, mas ela está lúcida, ela conversa com a gente, sabe que a cuidadora
está cuidando dela, ela tem noção de quando está na hora de xixi e cocô e
melhorou muito o quadro dela, inclusive está retardando muito o quadro dela
de Alzheimer. E eu acho que assim, essas pessoas que me rodeiam estão
respondendo muito bem (Júlio Américo, entrevista, setembro de 2019)
Conforme fui desenvolvendo a pesquisa, passei a saber também destes casos familiares
que, embora não fossem o foco ou a causa da mobilização, acabaram sendo incorporados como
exemplos da eficácia terapêutica da cannabis, mesmo sem acompanhamento médico. Sheila,
por causa da experiência com Pedro, ao saber do diagnóstico de artrite reumatoide, também
passou a se tratar apenas com o óleo de maconha, como ela relata.
Eu tinha tido câncer de mama e sempre fazia as revisões, tudo certo, tudo
certo, até que começaram essas dores, e eu já com medo achando que tinha
alguma coisa a ver com o câncer, aí fui pra minha oncologista, ela me disse
pra procurar uma reumatologista, já há quatro meses que eu não conseguia
trabalhar, e os dedos já ficando deformados (pois, a artrite reumatoide é aquela
que os dedos vão se deformando), os dedos ficando endurecidos, eu já não
conseguia, por exemplo, nem dirigir, todas as articulações doíam muito e
chegou no ponto de eu ficar de cama sem conseguir me levantar, quatro meses
de licença do trabalho, bem malzinha mesmo, parecia uma Chikungunya. Aí
nas revisões, minha oncologista disse que estava parecendo uma artrite
reumatoide, eu pensava que era fibromialgia, e não era. Quando fiz os testes
era artrite reumatoide, e tinha uma taxa lá que estava exorbitante, muito alta,
e disseram que era para eu estar de cama já e eu nunca tinha tomado o óleo,
quando eu comprava para Pedro, eu provava, pra ver qual era a reação que eu
iria ter, para dosar para ele; na reumatologista, ele disse que eu estava com
artrite reumatoide, que pode ser sido desencadeada pelo tratamento do câncer,
e aí, vamos fazer o tratamento. E aí [a reumatologista] me passou um monte
de remédios, corticoides em doses altíssimas, que baixavam a imunidade, e eu
muito preocupada com essa taxa altíssima. Antes de aparecerem essas dores,
eu já tinha lido numa revista que no Canadá a artrite reumatoide era uma das
primeiras doenças tratadas com maconha, mas assim, li, e como não tinha nada
eu deixei pra lá, não me interessei. Quando eu cheguei, com aquele monte de
remédio para comprar, e talvez precisasse me internar, para tomar alguns na
veia, eu pensei, “minha nossa senhora, o que eu vou fazer da minha vida agora
com isso?”. Aí, me ligou uma paciente lá de Recife que tinha artrite
175
reumatoide, querendo fazer uso do óleo, porque, de tanto baixar a imunidade
(por conta da artrite reumatoide ser uma doença autoimune, você tem que
baixar a imunidade pro seu sistema imunológico não estar te agredindo tanto),
ela disse, “Sheila, de tanto baixar a imunidade eu acabei contraindo
tuberculose e está sendo difícil de tratar, eu já vou no terceiro programa de
antibióticos e não consigo melhorar da tuberculose porque já estou há dez anos
deprimindo o sistema imunológico”. Ela disse, “estou desesperada, queria
tomar o óleo, fazer alguma coisa”, aí eu orientei ela quanto ao óleo e achei que
aquilo tinha sido uma coisa de Deus pra mim! Como é que eu chego do médico
e me liga uma pessoa com artrite reumatoide?! Eu pensei, “não vou tomar
esses remédios nem a pau, vou tomar o óleo!”. Aí, comecei com o [óleo] de
Pedro, o Charlotte’s [Web], o importado, que é o com o Canabidiol (que é um
antiflamatório bem potente), e percebi que as articulações começaram a
desinchar (porque estavam bem vermelhas e bem inchadas), começou a ficar
menos vermelho e a desinchar, mas continuava com dor, com menos, mas
ainda com dor. Aí, um amigo lá de Campina [Grande] fez um óleo de uma
planta que ele tinha, que era uma semente que ele comprou na Holanda, que
era “um pra um”, CBD e THC nas mesmas quantidades. Quando eu comecei
a tomar esse óleo foi um milagre! No segundo dia, comecei numa segunda
pela manhã e na quarta-feira eu já não tinha dor em lugar nenhum, dor
nenhuma, desinchou tudo e desapareceu. Só que eu não tinha mais, acabou a
planta, não tinha mais semente, não tinha como cultivar e não tinha mais óleo.
Aí, eu continuei no óleo com THC, tem pouquinho CBD e mais THC, mas, o
efeito foi quase que o mesmo. Tenho de administrar a chapação, por que eu
fico chapada [risos], então eu tomo três gotas de manhã, porque, se eu tomar
quatro, já começo a ficar tonta, eu tomo três de manhã e sete à noite, dez gotas
por dia é o que eu preciso. Tem sido assim. Ás vezes, se eu tenho um dia mais
estressante (porque a artrite reumatoide é também uma doença muito
emocional), recebi uma preocupação, uma raiva, uma contrariedade, começa
a doer, em mim, normalmente, começa pelos ombros, aí eu já sinto aquele
ombro meio dolorido, ao invés de sete eu tomo dez à noite, eu tomo e vou
dormir, porque se eu tomar e ficar acordada, como um dia desses, que eu tomei
e saí com Djanira, aí, começou, parece que clareia, eu disse, “eita, Djanira, eu
tomei o óleo, nem puxe conversa comigo que eu não vou conseguir conversar,
ficar só aqui quietinha esperando a hora de ir pra casa” [risos]. Mas, assim,
nada demais também, não dá pra você funcionar, fazer alguma coisa, mas é
muito melhor o efeito do que beber, por exemplo. Se eu estivesse tomando
esse monte de remédios eu nem sei como estaria, bem inchada, e hoje eu sei
que artrite reumatoide é uma doença grave, porque me colocaram num grupo
de Facebook de artrite reumatoide, e aí eu vejo lá os depoimentos, e nem
parece que eu tenho essa doença, e a reumatologista disse que eu tivesse muito
cuidado, porque é uma doença autoimune, e eu não tô tendo os sintomas, mas
ela está aqui, aí, eu disse “então tá, deixa ela aqui, eu não tô tendo nada, pode
ficar”, não sinto dor em canto nenhum, a gente vai convivendo aqui; e, eu não
tomo nenhum Dorflex. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
Além da própria doença dela e do filho, Sheila percebeu que o óleo de cannabis poderia
ser benéfico para tratar a insônia do pai, avô de Pedro e, de fato, percebeu efeitos benéficos
novamente.
176
Pesquisadora: E o teu pai, começou a usar depois de ti?
Sheila: Foi, para a insônia. Na verdade, ele era aquela pessoa que não dorme,
ele trocava o dia pela noite, ele tinha insônia noturna, passava a noite pra lá e
pra cá, e a manhã debilitado, não dormia, o dia todo às vezes. Aí, começou a
tomar [o óleo], ela toma três gotas antes de dormir, do mesmo do meu, o THC.
E, é bom porque previne demência, essas coisas, é impressionante como o
THC aumenta a capacidade de concentração da pessoa, o foco, até Pedro,
quando eu comecei a dar essas duas gotinhas, duas vezes ao dia de THC, até
as terapeutas perceberam, “o que você está fazendo com o Pedro, ele está
prestando atenção nas coisas, está ficando concentrado?”, e meu pai, que
gosta muito de ler, disse que melhorou muito. Meu pai toma três gotas, ele
melhorou muito, eu acho interessante porque ele é diabético há muito tempo
e teve um quadro, ele teve pedra na vesícula, que desceu para o pâncreas, um
início de pancreatite, e fez uma cirurgia bem na urgência assim, e poderia ser
grave. O médico ficou impressionado com a recuperação dele, a cicatrização,
tudo foi muito rápido, em oito dias ele já estava dirigindo, e a gente só acha
que tenha a ver com a maconha. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
Conforme eu ouvia os relatos de cada um dos casos que Sheila descreve, em que,
sabendo do potencial terapêutico, a família resolveu testar o óleo para outras patologias e
sintomas clínicos, percebi que ela, assim como outras mães da Liga, tratam com muita
naturalidade os efeitos da maconha, sem demonstrar preocupação com efeitos adversos tão
temidos e enfatizados quando se fala em maconha. Questionada sobre a existência de efeitos
colaterais e quais seriam, ela é precisa em responder:
Sheila: Fome, muita fome, Pedro mesmo come o dia todinho, sono, em alguns
pacientes o sono, o que é bom, em outros um pouco de insônia, por exemplo,
em mim, se eu tomar um óleo rico em canabidiol eu fico com um pouco de
insônia, já em outros pacientes é o contrário, ficam com insônia se tomarem o
óleo com o THC e, se tomar uma dose alta, ficar chapado, você fica tonto, às
vezes com um pouquinho de dor de cabeça, a memória recente fica bem
comprometida, você começa a conversar e daqui a pouco você esquece o que
estava dizendo, os efeitos de quem fumou um cigarro de maconha para quem
usa o óleo com o THC ativado, que normalmente é pra dor, Parkinson, câncer,
esclerose múltipla, que precisam ser com o THC aquecido, mas as crianças
que usam o óleo extraído a frio o efeito é só a fome e o sono, não tem esses
outros efeitos, a não ser que se tome uma dose muito alta. (Sheila Geriz,
entrevista, setembro de 2019)
Perceba que Sheila usa termos como ficar chapado e chapação, ao se referir ao efeito
nela mesma, se tomar uma dose superior ao normal, para referir-se ao efeito similar ao uso
fumado da maconha. Mesmo esses efeitos, que poderiam ser temidos, na fala dela aparecem de
177
forma descontraída e nem um pouco temerosa, mas como algo esperado e controlável através
da dose, como ela descreve.
De fato, o que transparece nas palavras de Sheila, Júlio e de outras mães, como será
mostrado a seguir, é que lidar com a maconha como uma terapia de saúde requer a quebra de
muitos pré-conceitos sobre a planta e seus efeitos pois, à medida que essas pessoas passam a
conhecer os potenciais medicinais da planta, entendem que os ditos efeitos psicoativos que
podem ser provocados por algumas variedades do óleo – como o rico em THC utilizado por
Sheila – não são tão preocupantes, sobretudo quando comparados aos efeitos benéficos.
Ficou claro para mim que, quando essas pessoas passam a reconhecer o potencial
terapêutico da maconha, perdem o medo de experimentar seu uso para tratar os mais diversos
sintomas passiveis de serem revertidos ou amenizados e, por isso, sentem-se seguras em testar
e sugerir tratamentos com maconha caso saibam de evidências científicas ou casos similares de
uso que apontem para a eficácia da cannabis.
Ao me contar sobre um paciente que foi a uma reunião da Liga e demonstrava medo
pelos efeitos que poderia ter por se tratar de um derivado da maconha, Sheila deixa ainda mais
clara a minha constatação sobre a sensação de medo que muitas pessoas tem em relação a
maconha e que já não está presente para ela e os demais membros da Liga.
O problema é que as pessoas têm tanto medo do que se criou com a maconha
que, parece que o corpo providencia efeitos colaterais que não existem por
causa da tensão, a pessoa vai usar com tanto medo que, por exemplo, teve um
que disse “eu tô sentindo o meu corpo todo tremendo”, eu disse, “você não
está sentindo o seu corpo todo tremendo”, era muito mais o estado emocional
de estar tomando uma coisa derivada de maconha do que o efeito em si, tanto
é que tem os pacientes que, com o tempo, vêm para as reuniões, e tudo, veem
outros pacientes que usam, aí os medos, os tremores desaparecem, é muito
mais o emocional de estar lidando com maconha. (Sheila Geriz, entrevista,
setembro de 2019)
Como aparece nas descrições anteriores, Djanira Maria Fernandes Maia, 51 anos,
professora de educação física, é outra mãe bastante ativa na organização da Liga Canábica da
Paraíba. Sempre muito animada e a frente de questões logísticas como os lanches nas reuniões
e a venda de camisetas e outros souvenirs da Liga em eventos, Djanira está sempre presente nas
atividades da associação e é muito receptiva com aqueles que se aproximam. Assim como
Pedro, filho de Sheila e Júlio, a filha de Djanira, Ana Patrícia, 21 anos, foi diagnosticada como
portadora da Síndrome de West nos primeiros meses de vida, como ela relata
178
Eu tenho minha filha, Ana Patrícia, que ela ao final de terceiro mês de vida
apresentou convulsões, foi uma Síndrome de West, que ela passou a ter e hoje
ela tem Lennox-Gastaut que é uma epilepsia de difícil controle, tem crises de
ar, então por conta dessas crises ela tem um retardo mental.
Os primeiros sintomas foram quando ela tinha três meses que ela começou a
se contrair... ela estava deitadinha, aí tinha as contrações, flexionando as
pernas e os braços, né... e aí a gente achou que fosse para defecar, mas aí isso
continuou de manhã, de tarde e de noite... aí eu entrei em contato com a
médica... a médica disse que era porque eu estava comendo muita massa,
fermentando o leite e tava dando cólica... que eu deixasse. Em uma semana
não aconteceu nada, as crises continuaram... aí foi quando a gente foi fazer um
eletro e uma bateria de exames... aí constatou que era Síndrome de West.
Assim que fez o eletro foi diagnosticado Síndrome de West, que é uma
síndrome de auto risco, que afeta a questão motora, física e mental... aí quem
tem West fica predisposta a ter novas crises... pode ser de fácil e difícil
controle... a dela veio de difícil controle que é o Lennox-Gastaut. (Djanira
Fernandes, entrevista, abril de 2019 )
Djanira mora sozinha com a filha, mas conta com ajuda de pessoas contratadas para
cuidar de Ana Patrícia em tempo integral, em casa e na escola, inclusive para que a mãe possa
trabalhar fora de casa e se dedicar a outras atividades de lazer e também da Liga Canábica.
Apesar do desenvolvimento comprometido pela síndrome, Ana Patrícia se comunica, interage
e tem mobilidade suficiente para andar sozinha, o que possibilita que Djanira faça uma
variedade de programações de lazer com a filha, como ir a praia, caminhar na orla, ir a festas,
etc.
Djanira conheceu a Liga Canábica através de um conhecido que viu Júlio falar em algum
programa televisivo e anotou o telefone dele, passando as informações para Djanira. Como ela
conta, a aproximação foi imediata:
A Liga eu conheci, foi quando começou tudo com aquela notícia em Brasília,
com Anny Fisher, aí daí começou esse movimento aqui, em João Pessoa
através de Júlio e Sheila. Um conhecido meu viu e me disse, mas eu fiquei
resistente e ele “vá lá, ligue para ele”. Quando eu conheci, eles estavam
organizando uma passeata lá na praia, mas eles já estavam na mídia já,
falando, só que eu não vi, quem viu foi esse menino e aí ele pegou o telefone
de Júlio... aí eu liguei para Júlio, e Júlio “ó, tem uma passeata lá na praia, num
sei quê...chegue lá”, aí quando eu cheguei eu já me entrosei, já falei com Sheila
e, através dela, que eu consegui o óleo. Nesse dia mesmo eu já entrei na onda,
já comecei a listar com o abaixo assinado, eu peguei os papéis, eu já fiquei. E
aí era reunião por cima de reunião e eu fui me enxerindo (risos). Então, foi
nesse processo que não era Liga ainda, era só um movimento de pais que
estavam lutando pelo acesso a cannabis, né?! E eles estavam importando o
óleo sem ter autorização. Aí quando eu soube, eles já tinham dado entrado na
justiça. Quando eles compravam, aí compravam o óleo para mim, e aí a gente
179
foi testando. De imediato foi incrível! (Djanira Fernandes, entrevista, abril de
2019 )
Ana Patrícia, começou a usar o óleo de maconha em 2014 e, de lá pra cá, Djanira vem
percebendo os efeitos positivos no desenvolvimento da filha e as mudanças em relação aos
efeitos dos demais medicamentos alopáticos que ela continua utilizando.
Com os outros anticonvulsivantes que ela toma, ela sempre ficava muito
agitada, era um estresse, nunca conseguia ficar com ela muito tempo num
determinado local, que ela ficava estressada, né?! A parte cognitiva era
afetada, ela não tinha o desenvolvimento bom e na época que ela estava tendo
crises de trinta a quarenta minutos, convulsionando direto, né?! E aí quando a
gente começou a introduzir o óleo, esse tempo já foi reduzido para cinco, dez,
quinze minutos e o tipo de crise mudou. Ela já chegou a passar duas semanas
sem crise. Aí hoje ela passa um dia, passa dois, passa uma semana. A gente as
vezes diz “oxe, ela nunca mais teve crise!”. Aí quando a gente vai ver, já fez
uma semana que ela não tem tido, as vezes passa dois dias e quando ela passa
esse tempo sem crise, quando volta, não volta com tanta intensidade, como
das outras vezes. Porque quando ela tomava só os remédios, ela passava
dois/três dias sem crise. Quando vinha, era um absurdo, num dia ela tinha
cinco as vezes no dia e tudo crise forte, de contração, de queda... e agora não,
as vezes ela tem uma crise forte, e passa uma semana... as vezes tem só
espasmos... Então houve uma melhora na redução das crises, na forma das
crises... ela não fica mais assim, tão sonolenta, como antes... o cognitivo
melhorou... e a questão de estresse, assim, foi outra coisa. Todo mundo
percebe, ela tá mais tranquila, a gente consegue sair. Claro, tem dias que ela
dá uns “revestrés”, que é só a graça. Mas no geral, ela tá mais social... ela não
é alfabetizada, né?! Mas você percebe na conversação... antes ela tinha muita
ecolalia63, “como é seu nome, como é seu nome, como é seu nome?”, era o
tempo todo assim. Hoje ela não tem mais essa ecolalia, hoje ela já forma
frases. Aí hoje a gente percebe também a questão da coordenação motora, né?!
Ela faz um acompanhamento com a psicóloga e assim, ela tem sempre me
dado informações “ela tá ótima...ela forma uma história, dá sequência na
história, mostrando assim, as figurinhas, ela dá sequência, ela dá nomes as
coisas... (Djanira Fernandes, entrevista, abril de 2019 )
63
forma de afasia em que o paciente repete mecanicamente palavras ou frases que ouve.
180
fisioterapeutas que dizem que ela tem que fazer, para pegar tônus muscular,
que ela não tem, enfim, não faz mais coisa porque não tenho condições
financeiras, né?! Infelizmente tudo é pago e caro! (Djanira Fernandes,
entrevista, abril de 2019 )
Djanira: Teve vezes que a gente pagou mais de 500 reais, chegou a 700 eu
acho.
Djanira: Durava um mês e meio, por aí. Aí foi quando eu não tive mais
condições. Aí eu disse “não, vou testar o óleo da Abrace”. Tava tendo umas
respostas boas nos meninos, aí testei o óleo da Abrace, aí vi que não deu muito
certo, aí desistia, aí depois voltei. Aí quando eu voltei, fiquei dando esse óleo
da Abrace, foi quando ela passou umas duas semanas sem crises. Aí hoje eu
dou da Abrace, tanto THC quanto rico em CBD.
Eu acho caro, porque, assim... se a gente pudesse plantar seria um custo quase
que zero, né, porque você vai plantar, você vai extrair o óleo de uma planta
artesanal, então o custo seria bem mais em conta... eu acho caro esses óleos...
(Djanira Fernandes, entrevista, abril de 2019 )
181
experiencias e, ao mesmo tempo, individual na observação dos efeitos e ajustes de doses para
cada pessoa.
No começo a gente, assim, como ninguém sabia de nada, a gente foi pegando,
né?! Já tinha uma mãe lá no Rio que tinha falado com um médico e o médico
disse que era pra fazer umas contas lá... aí Sheila era a orientadora, ainda hoje
é (risos). A gente via pelo peso, “vai dá tantas gotas e vai observando”. Então
é uma questão de observar, né?! Você quem vai ver a quantidade que ele
precisa. A gente começa com doses pequenas, aí você aguarda dez dias... aí
você vai olhando...vê que não deu resultado, você vai aumentando uma
gotinha, e assim a gente vai tentando acertar a dosagem. (Djanira Fernandes,
entrevista, abril de 2019 )
Assim como Sheila, Djanira também é uma expert ou perita nas terapias canábicas.
Incontáveis vezes presenciei as duas dando orientações a outras pessoas sobre como iniciar o
tratamento, baixar ou aumentar as doses, alterar horários, desmamar medicamentos, entre outras
sugestões apenas ouvindo o relato dos familiares responsáveis pelo paciente que está usando
óleos de maconha e apresenta determinadas características naquele momento. Um
conhecimento adquirido na experiência prática do cuidado com os seus familiares.
No caso de Ana Patrícia, Djanira optou por não retirar o uso das medicações alopáticas
recomendadas pelos médicos, mas conciliar com o uso dos óleos e, eventualmente, também
com uma pomada à base de maconha.
Djanira: Os óleos ela usa três vezes ao dia, 0,2 ml de THC e 0,8 de CBD, 3
vezes ao dia. E quando ela tem uma crise muito forte, aí a gente passa uma
pomada de maconha na planta do pé, e incrivelmente, quando eu começo a
massagear até esquentar, a crise instantaneamente vai parando assim e acaba.
(Djanira Fernandes, entrevista, abril de 2019 )
182
Porque é uma esperança que a gente tem, né?! A gente fica nessa luta de
esperança mesmo, de sanar as crises, porque o problema de Ana Patrícia ela
tinha que deixar de ter essas crises, para poder crescer mentalmente... então,
assim, como eu já tinha feito duas cirurgias, ela tomava cinco
anticonvulsivante e a gente não via resultados, né... era crise praticamente
todos os dias, as vezes três quatros vezes ao dia... e aí a gente foi vendo essa
questão da melhora, né, foi mostrando os gráficos aí, que tomava, que ficava
sem crise... e aí, foi aí que a gente é, vamos tentar... Como eu fiz as duas
cirurgias, né, eram tentativas... como deu certo, vamos tentar... sempre na
esperança de um dia essa danada desaparecer para sempre. (Djanira
Fernandes, entrevista, abril de 2019 )
Djanira nunca participou de outros movimentos sociais e também nunca tinha tido
contato com maconha antes desta experiencia terapêutica da filha. Ao contrário, ela conta que
condenava o uso recreativo baseada no que ouvia sobre a maconha.
Eu nunca fui de condenar as pessoas que usavam, mas a gente tinha aquele
receio, tinha aquela opinião formada que você foi crescendo, ouvindo que a
maconha faz mal, que a maconha traz dependência, que a maconha é a porta
para outras drogas...então isso é o que eu escutava, né?! era assim, eu sabia
que, pelo que tinha me dito, que fazia mal, que trazia dependência. Eu acho
que eu era da linha de negar, né?! De não aceitar, era dessa coisa de condenar,
mesmo. (Djanira Fernandes, entrevista, abril de 2019 )
Assim como Djanira, vários outros membros da Liga Canábica condenavam a maconha
e qualquer uso que se fizesse dela, como grande parte da sociedade brasileira.
Clarissa Figueiredo de Carvalho, 40 anos, é mais uma mãe que desde o princípio desta
pesquisa eu encontrava eventualmente nas atividades e reuniões da Liga Canábica. Aos poucos
fomos nos reconhecendo nos encontros esporádicos e ela se mostrou muito extrovertida e
simpática. Na primeira vez que a ouvi falar sobre a filha, Marina, percebi uma alegria na forma
de expressar as melhoras que a menina tem conquistado a partir do uso do óleo de maconha no
tratamento da Sindrome de Rett, doença diagnosticada nos primeiros meses de vida.
Marina que usa a maconha medicinal, porque ela tem uma síndrome rara
chamada Síndrome de Rett, e essa síndrome dá um comprometimento total de
comportamento, além de convulsões... então ela tem epilepsia, por isso que eu
fui para o lado da cannabis medicinal.
A gente começou a notar de quatro para seis meses [de idade], por aí...O
primeiro sintoma que a gente notou foi o desenvolvimento dela que era muito
lento. A gente achava ela muito quietinha, muito molinha e comparava com
outras crianças da mesma idade e ela não fazia quase nada do que as outras
crianças faziam;
183
Quando a gente descobriu a síndrome foi uma tia do meu marido que tinha
uma escola só para crianças especiais. E ela notou umas estereotipias nela, só
que aí ela atribuiu isso a manha, porque como eu tinha voltado a trabalhar a
minha sogra que ficava com ela. Mas a médica dela, pediatra também, já tinha
encaminhado ela para o neurologista, mas o neurologista até então não tinha
falado nada. Por ele era só “não, vamos fazer fisioterapia, vamos fazer fono,
que ela tá preguiçosa”. Até então ele dizia que era só porque tinha criança que
era mais lenta mesmo. Mas aí essa tia do meu marido, como ela não morava
aqui, ela morava em Campina [Grande], a gente só se encontrava em festa. E
assim, era de dois em dois meses, de três em três meses... então ela chegou
num ponto, quando Marina já tava com quase um ano, um ano e dois meses,
que ela chegou, a gente foi para um casamento, era num sábado, ela fez: “olhe,
vou falar com uma amiga neurologista, vou ficar aqui, não vou para Campina,
e a gente vai mudar de neurologista”. Aí levei nesse outro neurologista, e ela
de certo já disse o que ela tinha, sem fazer exame nenhum, só pela conversa.
(Clarissa Carvalho, entrevista, abril de 2019)
Os cuidados diários com Marina são compartilhados entre Clarissa e seu marido, além
do espaço escolar adequado às necessidades da menina, onde ela tem uma cuidadora há seis
anos. Ao contrário dos outros casos descritos, Clarissa percebeu que a troca de medicações
pesadas e adequação de doses era complicada e comprometia o desenvolvimento de Marina, e
por isso, assim que soube do potencial terapêutico da maconha em casos como o da sua filha,
optou logo por este tratamento com maconha, quando a Liga Canábica ainda não existia
formalmente.
Assim, dos medicamentos ela tentou poucos. Mas a gente tinha muita
preocupação com os efeitos colaterais que esses medicamentos poderiam,
futuramente, trazer, né?! Porque se você ler as contraindicações você não tem
nem coragem de dar. Só que como ela estava apresentando convulsões, ela só
veio a apresentar mesmo com quase quatro anos...até a médica dela sugeriu,
quando ela fechou o diagnóstico, aí ela disse: “você quer logo começar a dar
o remédio para convulsão? porque ela provavelmente vai ter...”, só que eu
optei por não... se ela apresentar, aí a gente dá, mas como ela não está
apresentando, a gente não dá. E assim, ela tentou um medicamento, que fez
efeito, eu adorei o medicamento, mas depois de um ano ele começou a ter os
escapes e ela voltou a ter [convulsões]. É tanto que aumentou a dosagem, aí
segurou alguns meses, mas depois teve que trocar de medicação. Aí vai tirando
um, colocando outro, e eu meio que notei que ela estava fazendo experiência:
“bota esse, vê se dá...se esse não der, a gente troca por outro”. Então, eu disse:
“Ah, se for pra fazer experiência, eu prefiro uma coisa mais natural. E foi aí
que surgiu a cannabis”
Clarissa: Não, não sabia que existia. Minha irmã viu uma reportagem, e por
coincidência eu conheci a Sheila da clínica de fisioterapia. Tanto que esses
primeiros grupos que a gente formou foi de pessoas que as fisioterapeutas
184
conheciam que tinha epilepsia, né, convulsões, e a gente foi juntando um
grupo. (Clarissa Carvalho, entrevista, abril de 2019)
Como Djanira também citou, o custo do tratamento com as opções importadas tem um
alto custo financeiro para as famílias, o que leva as mães a testarem outras opções e, muitas
vezes, a trocar produtos por outros que tenham efeito benéfico e se adequem as condições
financeiras da família, como Clarissa descreve.
Ela começou usando uma tintura [importada]. Aí depois dessa tintura, quando
a gente conseguiu os dezesseis pacientes, uma liminar [judicial], o pessoal fez
uma compra muito grande, porque já tava achando a tintura fraca, aí fez uma
compra muito grande da Hempmeds, que era o extrato, aí ela usou o extrato.
Só que esse extrato era bem caro para mim, uns R$700,00 reais, uma seringa
com 10 ml, que para ela durou uns dois, três meses. [Esse] é o extratozinho
mesmo, uma pasta. Você mistura e fica administrando... porque você tinha
que diluir ela, ou no azeite, ou no óleo de coco. Então depois dessa a gente
descobriu outro óleo, o Apothecary, também importado. E depois desse
Apothecary, aí ela usou da ABRACE, o óleo daqui que era mais barato. E
depois, que atualmente ela usa o Charlotte’s Web, que é importado também.
[...] O Apothecary era o mais barato de todos, eu acho que era $180, $200
dólares e para ela [durava] uns quatro meses.
Clarissa: Baixíssima, até hoje. Todos fizeram efeito satisfatório com ela,
graças a Deus.
Pesquisadora: E esse que ela tá tomando agora, Charlotte’s Web, é mais caro?
Clarissa: Ele é mais caro, só que eu compro 100 ml, eu compro dividido com
uma mãe e eu fico com 50ml e a [outra] mãe com 50ml e dura também uma
média de quatro meses. E como ele é bem concentrado, a dose dela que já era
baixa, fica mínima. Esse sei que em reais é 900 e lá vai... Só que dura quatro
meses. É mais vantagem do que a ABRACE, que é $150 pau por mês. E o
dela, como rende, perde o efeito, eu já tenho que comprar outro, porque, o
efeito já é quase que nada depois de quarenta dias... (Clarissa Carvalho,
entrevista, abril de 2019)
Ao me contar sobre a forma de administração do óleo e das medicações que Marina faz
uso contínuo, Clarissa expõe uma característica importante sobre o uso terapêutico da cannabis
que pode ser percebido em todas as entrevistas e que é também esclarecido nas reuniões e
orientações sobre essa terapia. Fica claro que a administração de derivados da maconha não
segue uma posologia rígida como as medicações alopáticas. Na prática, começar com doses
baixas e ir observando os efeitos é o recomendado sempre, inclusive quando há a mudança de
185
produtos e mesmo entre o fim de um frasco e início de um novo. Igualmente, o desmame dos
medicamentos concomitantes ao óleo também não segue uma regra, mas depende da
experiência de cada mãe.
Pesquisadora: Como é que você faz esse controle, tem algum motivo que faz
você decidir não usar?
Clarissa: Às vezes, assim, quando eu noto ela muito agitada, ou quando ela as
estereotipias dela estão maior, pra ver se dá uma acalmada, aí eu dou o óleo.
Se ela tá tranquila, eu não dou o óleo. Todo dia, de manhã, eu dou, porque aí
segura o dia todo, de boa.
Natália: Ela tem tido convulsões ainda? Ou não tem tido mais crises?
Pesquisadora: Você fazia uso de algum remédio que não faz mais, desde que
começou a usar o óleo?
Clarissa: Não é que não faz mais, mas a dosagem é mínima. É tanto que a
médica dela disse: “olha, essa dose aí e nada é a mesma coisa". Mas eu não
tenho coragem de tirar tudo de uma vez, principalmente porque a médica dela
me fez medo, que como ela completou dez anos, é época de os hormônios
darem uma mexida com ela, então eu preferi não tirar agora. Vê se ela vai
menstruar, não vai menstruar. Quando eu notar que ela tá bem estável, aí eu
tiro de vez a medicação. (Clarissa Carvalho, entrevista, abril de 2019)
Assim como as outras mães engajadas na Liga Canábica, Clarissa percebe efeitos muito
positivos no desenvolvimento da menina, o que convence inclusive os profissionais que
acompanham Marina.
186
Ela é outra criança. Ela não interagia, não prestava atenção em nada que estava
ao redor. Agora, em todo canto que ela chega, ela nota, presta atenção, fixa o
olhar... eu digo que ela fala com os olhos. Ela não balbucia nada, mas ela fica
olhando para você como você tivesse querendo lhe dizer alguma coisa... Fora
que a televisão também, o comportamento dela, com todas as pessoas, que é
outra, exemplo do desenho... ela só assiste o que ela quer. Se você botar um
desenho que ela não goste, ela começa a reclamar, e só para de reclamar
quando chegar no que ela quer. Tem uma interação, manda na casa sem dizer
nada, sem abrir nem a boca. De coordenação motora não, mas cognitiva 80%.
Clarissa: Olha, atualmente eles aprovam. Assim, tão vendo que ela evoluiu,
que ela é outra criança depois, mas a princípio ninguém queria. Foi a
contragosto, a gente começou a goela abaixo dos médicos, aí quando eles
viram os efeitos, foi que eles começaram a abrir o leque pra gente, até
divulgam isso para outros pacientes, as vezes passam o meu contato para
conversar, passar informação, tirar dúvidas... (Clarissa Carvalho, entrevista,
abril de 2019)
Pesquisadora: Nesse período todo até você começar a usar a cannabis, como
era a relação dos médicos que acompanhavam ele, você acha que os médicos
tinham conhecimento sobre o caso?
Assim, a gente não tinha ainda essa coisa que a gente foi desenvolvendo
depois da cannabis. A gente seguia direitinho as orientações dos médicos,
então a gente estava sempre vendo com os médicos as medicações, vamos
entrar com isso, vamos entrar com aquilo, vamos fazer a dieta cetogênica, que
antes da cannabis a gente fez a dieta cetogênica, então a gente seguia e
confiava na orientação médica, vez ou outra fazia algum questionamento e
antes da cannabis era mais ou menos assim, aí quando entrou a cannabis, que
a gente começou a ter que ir atrás, a ter que estudar, foi quando a gente
começou a se tocar que com os médicos na verdade, a gente estava sendo meio
cobaia, não é que eles sabiam tanto, foi aí que a gente começou a perceber que
187
a gente poderia descobrir mais coisas, ir atrás. Aí, quando a gente começou a
ir atrás, começou a perceber uma série de contradições dos médicos.
Por exemplo, desmamar, quando a gente falava sobre desmamar alguma
medicação, eles desmamavam de um jeito que a criança começava a ter crises
e depois a gente começou a ler as bulas dos remédios e percebeu que o
desmame que ele estava fazendo não era o mais adequado, além de que a
criança da gente é uma criança muito sensível, qualquer mudança pra criança
que tem epilepsia refratária descompensa. Aí a gente começou a fazer o
desmame a partir do que a gente tinha visto, e às vezes mais lento ainda. Se o
médico passava uma caixa a cada semana, a gente pegava e dividia em ¼ e
tirava ¼ a cada quinze dias, aí o menino não descompensava. Isso aconteceu
muito nesse processo, quando a gente entrou no uso da cannabis e ia
desmamando os medicamentos. Aí a gente começou a entender depois que
eles não dominavam tanto quanto a gente imaginava, e aí isso de certa forma
foi empoderando, a gente foi saindo de uma relação hierárquica para uma
relação de parceria e a gente foi exigindo isso dos médicos também. Tanto é
que hoje a gente aconselha as outras mães a observarem seus filhos, a elas
fazerem as experiências delas, vai dando dicas. Então assim, foram muitas
situações, que apesar da dor desse processo que a gente passou, que a gente
foi saindo de um padrão que a gente tinha, para um outro padrão, que era um
padrão mais ativo, que questionava, que não se colocava como inferior, como
aquele que sabe menos, mas numa parceria de igual para igual. Essa relação
de dependência onde o outro vai dizendo aquilo que tem que ser feito e eu vou
fazendo, e a gente agora não, nós somos os pais de Pedro, a gente conhece o
quadro dele, a gente acompanha esse processo todo, então nós somos
especialistas no nosso filho. Teve médicos lá em Recife, eu me lembro de uma
que falou sobre Pedro “tá muito grave”, no que eu disse “não, ele teve uma
crise no caminho, por isso ele está molinho assim”, aí ela “você quer saber
mais do que eu que sou a presidenta da sociedade brasileira de epilepsia?” e
eu “e a senhora quer saber mais do que eu, que sou o pai do meu filho?” Aí
ela disse que eu era um pai complicado porque eu questionava a autoridade
dela. Eu me lembro de uma outra, Doutora Cláudia que teve uma sessão que
a gente teve que ela disse “olha, pai, a gente vai fazer assim, a gente vai pegar
essa medicação, vai mudar isso e isso, tá combinado?” e eu disse “não. não tá
combinado não, porque isso aqui que você está passando pro meu filho eu
preciso ver se isso dá certo com ele, porque eu não posso dizer que tá
combinado e fazer exatamente o que você está dizendo, porque o que eu
observo no meu filho não é assim”, “você sabe, né, pai que nenhum médico
gosta de está ouvindo isso aqui não, você está desrespeitando a minha…”,
“não, eu não estou desrespeitando a senhora de jeito nenhum, a senhora tem
um conhecimento que eu prezo e que eu respeito, mas eu tenho também um
conhecimento que a senhora deve prezar e respeitar e a gente fazer essa
parceria”. Foram situações que a gente teve que ir se impondo, e aí, depois
disso essa mesma médica hoje prescreve cannabis, indica pacientes para a
gente e teve outras que a gente chegou a fazer o absurdo de fazer a prescrição
da cannabis e o médico carimbar e assinar. A gente conseguiu chegar num
patamar que esses médicos respeitavam o conhecimento da gente e já iam
atrás. Através da gente eles sentiram a necessidade de estudar, de ler artigo,
de pensar em possibilidades e tal. (Júlio Américo, entrevista, setembro de
2019)
188
É a partir desta mudança de postura que se constitui o saber da prática, que extrapola o
conhecimento técnico e cientifico e possibilita não apenas encontrar um tratamento eficaz,
como impulsionar uma mobilização social para que outros pacientes tenham conhecimento e
acesso à uma terapia não convencional cujos efeitos tem sido comprovados na prática da
experimentação, como veremos.
Com base nas teorias da experiência e focados sobretudo em estudos sobre a doença,
como Arthur Kleinman (1988), Byron Good (2003), Paulo César Alves (1993) e Ester Jean
Langdon (1995), a “experiência da enfermidade” se refere aos meios pelos quais os indivíduos
e grupos sociais respondem a um dado episódio de doença, que não fica restrita à esfera
individual, mas diz respeito aos aspectos sociais que imprimem um entendimento à própria
experiência sobre estar doente, “esta experiência, em si mesma, desvela aspectos tanto sociais
como cognitivos, tanto subjetivos (individuais) como objetivos (coletivos)” (Alves 1993, p.
264). É neste sentido que, para as ciências sociais, é necessário buscar a compreensão dos temas
e casos relacionados à saúde e a doença também por um viés sociocultural, diretamente
relacionado as características fisiológicas das doenças, como argumenta Langdon (1995):
Para esta autora, o processo terapêutico é melhor entendido como uma sequência de
decisões e negociações entre várias pessoas e grupos com interpretações divergentes ao respeito
da identificação da doença e da escolha da terapia adequada e, concordando com ela, entendo
que meus interlocutores desta pesquisa refletem exatamente este tipo de processo social, de
decisões, negociações e escolhas para optarem por um tratamento não convencional para seus
189
filhos. Neste contexto, são comuns os relatos de mães e pais que consultaram variados médicos
e pesquisaram por conta própria os benefícios e riscos do uso dos extratos à base de cannabis
para o tratamento dos seus filhos, muitas vezes indo de encontro as recomendações médicas
brasileiras. Atualmente, são as próprias mães que melhor sabem dosar o extrato para administrar
para as crianças, sapiência esta aperfeiçoada com o tempo de uso, na experiência prática com o
remédio e nas trocas e compartilhamento de informações entre as famílias. Estes casos são um
exemplo das teorias da doença como experiência subjetiva, mas que considera também aspectos
sociais, culturais e econômicos na manutenção das interpretações e escolhas terapêuticas
particulares. Para Paulo César Alves (1993), os conhecimentos técnicos e científicos que cada
um deles dispõe e compartilha coletivamente, não apenas são apenas passiveis dessa
interpretação particular, como também são reformulados e interativos, características presentes
no caso em estudo:
190
sociedades complexas modernas, acompanho também as elaborações interpretativas de Paulo
César Alves e Iara Maria Souza (1999), derivadas de Velho, sobre as escolhas individuais e
aderência a tratamentos de saúde em suas análises sobre o conceito de itinerário terapêutico
como uma área de interesse da antropologia que tem como principal objetivo “interpretar os
processos pelos quais os indivíduos ou grupos sociais escolhem, avaliam e aderem (ou não) a
determinadas formas de tratamento.” (ALVES & SOUZA 1999, p. 125). Portanto, nos
itinerários terapêuticos estão incluídas uma variedade de terapias, profissionais, espaços de
cuidado e atenção à saúde, até mesmo alternativas às práticas médicas convencionais ocidentais,
que são acionadas pelos pacientes e suas famílias na esperança de alcançar melhoras e até
mesmo a cura.
Não são raras as descrições de cura por milagre ou poder divino, atreladas à tratamentos
religiosos, ou, também, da eficácia de terapias não convencionais para o tratamento e cura de
diversas doenças. Paula Andréa Pinho e Pedro Pereira (2012), ao tratarem da sua pesquisa com
pacientes soropositivas em tratamento no Centro de Referência e Treinamento em DST/aids de
São Paulo, expõem casos de tratamento medicamentoso paralelo à crença religiosa para a
melhora e cura e, a partir desta experiência de pesquisa, assumem o conceito de itinerário
terapêutico como
E advertem que
191
Compartilhando das formulações destes autores e transpondo-os para meu campo de
pesquisa, percebo que a proposta analítica dos itinerários terapêuticos, assim como a doença
como experiência, tem completa relação com o caso em análise. Como vimos, as patologias
para as quais o uso terapêutico da maconha tem se mostrado eficazes são, geralmente, graves,
debilitantes e incuráveis, e, no caso das crianças, filhas das famílias fundadoras, diagnosticadas
desde o nascimento ou primeiros meses de vida, o itinerário terapêutico enfrentado por estas
famílias se estende por anos e, para serem apreendidas integralmente, exigiriam uma pesquisa
específica. No entanto, me interessa destacar um aspecto pontual deste percurso. Aqui, importa
perceber como o compartilhamento de experiências e conhecimentos sobre a maconha
proporciona a construção de um conhecimento coletivo.
Apenas o fato destas famílias, após a utilização de diversos coquetéis medicamentosos,
entre outros procedimentos, buscarem e testarem o uso de uma terapia sem prescrição médica
reconhecida no Brasil e sem regulamentação até então, além da forte carga moral sobre a planta
que dá origem ao remédio, já demonstra a pluralidade de possibilidades cogitadas em busca da
qualidade de vida para as crianças e suas famílias.
Ao longo desta pesquisa, informações sobre as terapias e os cuidados dedicados aos
filhos e familiares, em razão das patologias das quais são portadores, são compartilhadas e
comentadas o tempo inteiro, explicitando o quanto esta é a realidade individual de cada um dos
envolvidos no âmbito familiar, explicitando como os percursos médicos e terapêuticos
enfrentados pelos pacientes e familiares são uma realidade vivenciada continuamente por estas
famílias, que encontraram na maconha um caminho mais eficaz do que as terapêuticas
convencionais.
Embora este não seja o ponto central, mas sendo a busca por saúde a motivação que dá
origem a organização coletiva e suas reivindicações aqui analisadas, as formas de lidar com a
maconha como remédio, ou seja, como uma possibilidade de tratamento de saúde que não
encontra apoio e orientação na medicina ocidental convencional, mais acessível e presente nos
centros urbanos, requer que nos detenhamos a perceber como esta terapia passa a ser possível
e eficaz a partir do aprendizado da e na prática de utilização, acompanhamento, percepção e
atenção aos efeitos causados pelos óleos da maconha, considerando suas variadas cepas de
origem, concentrações de canabinóides (sobretudo CBD e THC), doses administradas,
interações medicamentosas e a identificação de variáveis que interferem direta e indiretamente
nos tratamentos com derivados da maconha.
192
Como Monique Oliveira (2016, 2017) descreve a partir dos casos das primeiras famílias
brasileiras a importar e usar os derivados da maconha no tratamento de crianças portadoras de
síndromes raras, a atenção dedicada as medicações e seus efeitos é uma realidade constante na
qual a maconha foi inserida.
193
Djanira: Eu comecei com o Apothecary que é CBD, aí depois veio lá do Rio
uma notícia, acho que foi o Dr. Faveret que disse que o ideal era usar o CBD
e um pouquinho do THC, ou quem usava o THC usava um pouquinho do CBD
para cortar os efeitos que o THC traz, aí já foi descoberto que os dois dá mais
resultado. Então hoje a gente usa os dois porque já se sabe que os dois juntos
são melhores.
Djanira: É. Pedro mesmo, [filho] de Sheila, ele usava só o CBD. Aí teve umas
crises, aí Sheila disse “não, acho que eu vou colocar um pouquinho de THC”.
Aí quando botou, uma gotinha, duas gotinhas, aí já estabilizou. Então já tem
estudos que o THC junto com o CBD só faz bem, né?!
Desde o começo, desde 2014, a gente criou esse laço de amizade, tinha um
grupo em Brasília, que era os Ficher, tinha outra mãe de lá, a Camila, que o
filho dela até morreu, Camila, mãe de Gustavo, o Ficher, com Katiele, No Rio
de Janeiro, a Margareth, São Paulo a Cidinha, em Belo Horizonte o Leandro
Ramires, o menino dele usa, tem síndrome de Dravet. A cada quinze dias a
gente se encontrava por Skype, para conversar. Leandro Ramires ele é médico,
ele nos ajudava muito a entender o funcionamento da coisa, e a gente trocava
muita experiência, depois apareceu uma mãe do Paraná, a Priscila Inocente,
que se incorporou ao grupo, uma mãe do Maranhão, Piauí, depois a gente criou
grupos de Whattsapp, e esses que vieram primeiro, a gente, começou a servir
de referência. Como a gente tinha começado antes, já sabíamos mais ou menos
como agir, a gente começou a trocar experiências. (Sheila Geriz, entrevista,
setembro de 2019)
194
compartilhamento, a noção coletiva de partilha, é um aspecto importante tanto no sentido da
mobilização e articulação política, quanto na esfera do cuidado e dos saberes sobre as formas
de usos e efeitos.
Este aprendizado da prática, que caracteriza fortemente o movimento pela maconha
medicinal, pode ser relacionado diretamente com outras situações de saúde que, em razão da
falta de pesquisas e conhecimentos científicos específicos e conclusivos sobre patologias e
tratamentos, abre espaço para que a sociedade se organize e construa seu conhecimento a partir
da realidade objetiva, vivenciada por pacientes e suas famílias.
Este é um dos temas abordados por Steven Epstein (1993, 1995) ao debruçar-se sobre o
ativismo da AIDS nos Estados Unidos. Assim como a importância da visibilidade midiática
dada a emergência do HIV/AIDS, já descrito no primeiro capítulo de acordo com a abordagem
de Valle (2000, 2002), podemos fazer um paralelo daquela situação com a atual emergência da
demanda pelo uso terapêutico da maconha no Brasil também em relação a formação de um
ativismo informado e articulado, que conquista respaldo para suas reivindicações através do
conhecimento embasado na empiria que vivenciam nos cuidados com saúde. Como Epstein
relembra, estas estratégias podem ser relacionadas a outras questões e contextos.
The AIDS movement is broad based and diverse, ranging from grassroots
activists and advocacy organizations to health educators, journalists, writers,
service providers, people with AIDS or HIV infection, and other members of
the affected communities. The members of this movement are not the first
group of laypeople to put forward claims to speak credibly on biomedical
matters (see Dutton 1984; Shapiro 1985; von Gizycki 1987). Cancer activists
in the 1970s, for example, provide an interesting counterpoint in an analogous
situation (Petersen and Markle 1981), while the feminist health movement is
perhaps the clearest case in point (Fee 1982). Patient self-help groups, now a
common and rapidly proliferating phenomenon (Stewart1 990), also some-
times engage in the evaluation of scientific knowledge claims. But the AIDS
movement is indeed the first social movement in the United States to
accomplish the mass conversion of disease "victims" in to activist-experts, and
in that sense the AIDS movement stands alone, even as it begins to serve as a
model for others. Its distinctive approach toward scientific and medical
questions owes to a specific constellation of historical and social factors.
(EPSTEIN 1995, p. 413)
197
O protagonismo destas pessoas em representarem-se, falarem por si mesmas, também é
pontuado por Epstein como uma maneira de buscar credibilidade para si e suas demandas no
universo da AIDS. Como o autor diz, “a basic ‘credibility achievement’ of treatment activists
has been their capacity to present themselves as the legitimate, organized voice of people with
AIDS or HIV infection” (EPSTEIN 1995, p. 419). Esta é também a estratégia adotada pelos
membros da Liga Canábica ao não delegarem para outros agentes as decisões das quais eles
querem participar, como Sheila relata:
Eu lembro de uma reunião que a gente teve na Anvisa e fui eu e uma outra
mãe. O chefe da Anvisa daqui, lá em Cabedelo, disse para mim que eu não me
preocupasse (isso ainda em 2014, quando a gente não conseguia importar),
que ele como autoridade iria cuidar, que eu entregasse a ele que ele iria cuidar,
que aquilo era uma caixa preta que as mães deveriam entregar a ele, que ele
iria resolver. Eu lembro que na hora fiquei em pé, disse a ele que isso era
exatamente o que não queríamos, “a gente quer resolver com o senhor, a gente
está cansado do Estado brasileiro estar resolvendo coisas de cima para baixo,
a gente não quer mais isso, a gente quer participar, a gente não vai dar sossego,
vamos vir em toda reunião aqui, nós queremos construir com o senhor.”
(Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
In fact, the past few years in the United States have seen an upsurge of health-
related activism of a distinctive type: the formation of groups that construct
identities around particular disease categories and assert political claims on
the basis of those new identities. To be sure, not every such group owes
64
Voltaremos ao papel das instituições no Capítulo 6.
198
directly to AIDS activism, although the tactics and political vocabulary of
organizations such as ACT UP would seem, at a minimum, to be "in the wind".
[…] But what most such groups appear to share is a certain suspicion of
biomedical claims making; an emphasis on empowerment and a repudiation
of "victim" status; a push toward greater equality in the doctor-patient
relationship; and the demand for a greater role for patient groups in
determining research priorities, assessing research findings, or making
regulatory or policy decisions on the basis of those findings. (EPSTEIN 1995,
p. 417)
Sim, é uma experiência muito particular. Você vê, por exemplo, tem crianças
que respondem com mais CBD, já controla todas as crises, a necessidade dela
de canabinoides é diferente da do meu filho, meu filho tem uma outra resposta,
então eu preciso entender qual é a resposta, por isso a gente defende tanto a
planta e a fitoterapia, porque é fundamental a relação dessa pessoa com a
planta, qual a planta que melhor se adequa a realidade clínica daquele
paciente. Às vezes tem paciente que responde melhor a uma planta que tem a
mesma quantidade de THC e CBD e numa dose pequenininha. Tem crianças
que precisa de doses cavalares de óleo CBD, por exemplo, e isso independe
do peso da criança como os médicos fazem, mais peso, mais superfície
corporal, dose maior. No caso da cannabis, não é assim. Tem uma mãe aqui,
a filha dela estava tomando o óleo importado, a dose que ela tomava era duas
ou três vezes menor que a dose de Pedro. Pedro tinha 30 quilos, ela tinha 60,
então pela regra médica, ela estaria com uma dose maior do que a de Pedro,
no entanto, não é assim. Então são muitos elementos que a gente vê. Crianças
com autismo que responde ao THC, a gente observa na nossa experiência, que
respondem muito bem, inclusive minimizando muitos dos sintomas do
autismo. Então, o que é que é bom, THC? CBD? Pode colocar uma regra aqui,
como o governo está recomendando pra Anvisa só aprovar o THC? Isso é uma
afronta ao direito à saúde das pessoas e colocando em risco a saúde das
pessoas, porque se ele proíbe isso aqui, como é que as pessoas vão poder usar?
se elas respondem ao óleo de THC, como é que elas vão ficar? Mesmo crianças
com autismo e epilepsia, isso sem falar no monte de outras patologias que tem
aí precisando. Então é uma relação que a gente precisou tomar posse disso
aqui, precisou tomar pé e exigir uma outra postura dos médicos, então hoje a
gente tem médicos com a gente, médicos junto com a liga. Interessante, tem
médicos começando a prescrever, que eles trazem os casos pra gente e eu acho
uma coisa impressionante isso, é uma inversão do paradigma da relação
médico e paciente, é como se a gente tivesse meio que quebrando esse
paradigma que se construiu e que continua até hoje. (Júlio Américo, entrevista,
setembro de 2019)
A fala de Júlio reflete muito mais do que o processo de aprender a usar e perceber
individualmente os efeitos e dosagens adequados. Expõe também a elaboração de uma proposta
de entendimento sobre o uso da maconha a partir destes conhecimentos descobertos na prática.
Vale salientar que o reconhecimento desta expertise não se dá apenas entre pacientes
que buscam entre si informações, mas também por médicos que acreditam e respaldam as
experiências deles.
Essa coisa que eu não imaginei que pudesse acontecer, a gente ouvia falar
desse conhecimento empírico que as pessoas têm, das benzedeiras do sertão,
200
eu me sinto hoje uma pessoa assim. Depois desses cinco anos, a gente
acompanha gente com câncer, Parkinson, Alzheimer, e a gente já sabe, para
certas patologias, o tipo de óleo. E, a depender de como a pessoa reage, se a
dose está alta, está baixa, na prática, não sei lhe dizer porque é que eu sei, eu
sei que eu sei, é quase como se fosse uma coisa instintiva. Essa semana mesmo
ligou um médico pra mim, com uma paciente de Parkinson, esse médico que
me ligou, disse: “olha, Sheila, é que eu estou com um paciente aqui, querendo
usar e tal, eu sei que o médico sou eu, mas quem sabe é tu”, e eu aprendo com
os médicos que estão estudando, como é que funciona o sistema
endocanabinoide, como é que essa história do cortisol, por exemplo, eu
aprendo com os médicos, mas o funcionamento do negócio [uso do óleo], na
prática, eu acho que são muito mais os médicos que aprendem com os
pacientes, porque a gente é que vai vendo os efeitos. Agora mesmo, tem um
paciente que está usando um óleo bem forte, bem concentrado, pra Alzheimer.
Normalmente Alzheimer precisa de óleo rico em THC, só que numa dose bem
baixinha, bem diluída; a esposa dele me ligou e estava desesperada, o homem
estava muito agitado, o óleo dele não estava servindo, e aí quando eu
perguntei, ela estava em vinte gotas, três vezes ao dia! Eu disse “você passou
da dose, está muito alta, por isso ele está assim”, ela perguntou, “ e como é
que a senhora sabe?”, eu disse “eu sei”, “volte, vá voltando até ficar em cinco
gotas, três vezes ao dia, vá observando, porque geralmente Alzheimer precisa
de pouca coisa.
Hoje em dia, alguns médicos até já ligam perguntando, como é que
prescrevem, tem paciente assim, se vai servir, como é que faz, qual é o óleo,
veem o resultado dele [Pedro] e não tem o que discutir. Eu me lembro que a
gente chegava no consultório, Pedro numa cadeira de rodas, não sustentava
nem o pescoço, só babando, encostado; pra fazer a fisioterapia era uma luta,
porque ele não tinha interesse por nada, não olhava pra nada, todos os
movimentos que a gente tentava estimular ele a fazer o movimento, ele não
conseguia, porque, como ele não tinha interesse de pegar um brinquedo, então
ele não fazia o esforço de ficar sentado, era só deitado, uma planta num canto.
E aí, hoje Pedro está andando, brincando, pegando nas coisas, ele chega no
consultório a médica fica louca porque ele quer mexer em tudo; é uma melhora
que eles acabam tendo de concordar. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de
2019)
201
desperta medo e atenção sobre seus efeitos, como parte de uma espécie de pânico moral sobre
as drogas, para utilizar os termos designados por Stanley Cohen (1987), em que normas e
valores morais justificam a condenação a determinadas práticas desviantes, entre elas, o uso de
psicoativos (BECKER 2008).
No entanto, o que transparece nesta pesquisa é que esta lógica moralista e temerária
sobre a maconha e seus efeitos nos usuários, independentemente do tipo ou finalidade do uso,
foi quebrada por estas pessoas a partir do momento que elas passam a manipular e experimentar
os efeitos causados pela planta, com distintas concentrações de CBD e THC, podendo inclusive
conhecer o efeito psicoativo como um dado importante para o reconhecimento dos efeitos
terapêuticos, como Sheila relata sobre os óleos ricos em THC ativado recomendado para dores
e Alzheimer. Mesmo essa sensação do torpor, comumente como “chapação”, termo utilizado
inclusive pelas mães e pais da Liga, não está associada a um efeito negativo que mereça
cuidado. Na prática, mesmo este efeito está dentro das possibilidades que a maconha propicia
e é encarado como um fator referente a dosagens excessivas. Estas sensações provocadas pela
maconha, mesmo quando indesejada, é tratada por eles com certa jocosidade e nenhum espanto,
o que demonstra que estas mães perderam o medo da maconha e dos efeitos que ela pode
provocar.
Neste sentido, este dado que pode parecer tolo, demonstra que a prática corriqueira de
lidar com variados tipos de maconha, concentrações de canabinóides e efeitos desmistificou as
impressões que estas pessoas tem sobre a planta, dissolvendo os prejulgamentos que eles
mesmos carregavam antes deste contato e, só através desta quebra de expectativas e temores é
que os benefícios do uso terapêutico foi possível.
A mudança de entendimento sobre a maconha é uma questão extremamente individual,
já que confronta aspectos da base moral familiar de cada um, como foi relatado por Clarissa,
por exemplo. No entanto, o suporte coletivo, compartilhado não apenas no uso terapêutico da
maconha, mas também em tantos outros espaços de tratamento e cuidados com a saúde das
crianças, faz com que esta mudança seja um elo de pertencimento ao grupo, uma ligação que
dá vida a uma integração social que compreende e acolhe as dificuldades no enfrentamento as
condições de saúde dos filhos. Neste sentido a formação da associação e a interação entre seus
membros se dá numa lógica parecida com outras associações de pacientes articuladas em todo
o mundo em razão das patologias das quais seus associados são portadores ou responsáveis por
pacientes e, como afirma Barbosa (2015), no contexto das doenças raras,
202
Assim como é necessário buscar na rede de contatos as pessoas para
formalizarem uma associação civil, os indivíduos que iniciam a militância
pelas doenças raras experimentam, já na busca pelo diagnóstico da doença, a
força existente dos laços de sua rede de contatos. A partir de sua rede de
contatos os indivíduos conseguem chegar até ao diagnóstico, ao tratamento e
as melhores formas de cuidado para o doente. Assim, são os laços existentes
na rede que dão condições para a formação das associações civis e geram as
respostas que não foram encontradas nos processos formais dos sistemas de
saúde. (BARBOSA 2015, p. 59)
Assim, a Liga Canábica se configura como um espaço de cuidado mutuo entre pacientes
e familiares de pacientes que encontram no coletivo uma forma de compartilhamento dos
tratamentos e resultados, objetivo que extrapola a proposta política que dá razão a existência da
associação, mas que é responsável por fazer dela também uma rede de apoio importantíssima
em um contexto de tantos percalços no emaranhado das vidas individuais em torno das questões
de saúde que encontram no coletivo motivação e acolhimento.
203
demonstraram não apenas estarem integradas ao núcleo principal, como tomaram para si
responsabilidades importantes da associação, a exemplo da viabilização e organização da Casa
Verde, projeto recente, descrito em capitulo anterior.
Considerando este movimento de aproximação e distanciamento dos participantes e das
suas formas diversas de colaboração – alguns mais ativos e presentes, outros mais esporádicos
– delimitei um grupo de 12 pessoas, intituladas aqui como Participantes Colaborativos, que
podem ser consideradas parte importante da organização da Liga Canábica pelo suporte e
participação que desempenham. Esta categoria se faz necessária para diferenciar este grupo de
um número impreciso de associados e simpatizantes que conhecem a Liga Canábica, sabem das
suas atividades, eventualmente comparecem à algum evento promovido ou com participação
de representantes da associação, mas não estão engajados nem participam ou contribuem na
organização da Liga Canábica65.
Para este grupo colaborativo, enviei pelo WhatsApp e e-mail um link para
preenchimento de um questionário curto, comporto por 11 questões que tratavam sobre a
participação de cada um na Liga Canábica, sobre sua relação com a maconha e seus usos, e
também sobre suas experiências com uso terapêutico, caso usem ou tivessem algum familiar
que use. Deste grupo 2 pessoas não responderam ao questionário e, curiosamente, foram as
pessoas que não estão mais envolvidas com as atividades da associação. As demais foram
bastante receptivas e solícitas em contribuir com os dados que aqui serão apresentados. Como
dito, parte destas pessoas estiveram mais presentes em anos anteriores e atualmente não estão
mais tão próximas, já outras não estavam tão integradas à associação ou nem a conheciam em
anos anteriores, mas agora, em 2019, tem demonstrado comprometimento e participam
ativamente da associação.
A mudança pôde ser percebida por mim de forma mais concreta quando, em agosto de
2019 quando fui convidada para uma espécie de formação que seria dada para um grupo restrito
de participantes da Liga, com a intenção de capacitar um grupo maior que pudesse falar pela
associação em diversos tipos de eventos para os quais a Liga Canábica e convidada a participar
e quem a representa é Júlio ou Sheila. Fui convidada porque em dois momentos durante esta
pesquisa, participei de eventos acadêmicos em que falaria sobre a minha pesquisa e pedi a eles
autorização para falar sobre a associação e sobre os casos mais emblemáticos que atestam o
65
Assim como as motivações e circunstâncias da vida individual das famílias fundadoras, dos participantes ativos
e dos profissionais engajados merecem espaço para contextualizar a participação individual destas pessoas no
movimento pela maconha terapêutica, a realidade deste grupo não engajado também poderia ser explorada, mas
extrapola os propósitos deste trabalho.
204
propósito da Liga Canábica. Nestas ocasiões, não apenas fui autorizada a falar sobre e pela
Liga, como Júlio e Sheila me forneceram fotos, vídeos e exames médicos que deixam claro os
efeitos dos óleos de maconha no desenvolvimento de Pedro.
Este curso foi realizado durante um sábado, nos turnos da manhã e da tarde, com quatro
exposições tratando, cada uma, de um segmento de conhecimentos sobre a maconha e sua
utilização terapêutica, princípios ativos, tipos de óleo e outros aspectos da composição e
utilização medicinal da cannabis; aspectos da política proibicionista; questões jurídicas
relacionadas à maconha e ao percurso jurídico já percorrido pela Liga Canábica e outras
associações com o mesmo fim; e sobre a experiência de formação e atuação da Liga, seus
propósitos e fundamentos.
O grupo que fora convidado para esta atividade era composto por doze pessoas, entre
elas, Djanira Fernandes, Clarissa Carvalho (durante parte do tempo), Ricardo Lucena, Sheila
Geriz, Júlio Américo e eu. Deste grupo, Ricardo eu conhecia desde o início da pesquisa, pois
ele sempre esteve muito próximo de Júlio, Sheila e Djanira, podendo ser considerado também
como parte do núcleo principal da associação.
Todos os presentes nesta atividade de formação responderam ao questionário que
elaborei, com exceção de Júlio, Sheila, Djanira e Clarissa, com quem realizei pessoalmente
entrevistas semiestruturadas longas e detalhadas. Além deles, mais três pessoas que eu
conhecera em anos anteriores durante a pesquisa e que continuam participando da associação
de forma menos constante, também responderam ao questionário. Assim, tive como parâmetro
para caracterizar este grupo de Participantes Colaborativos, 10 pessoas que estão engajadas e
responderam as questões que propus. Vale lembrar que, além das entrevistas, estive em contato
com este grupo de forma espontânea em reuniões e atividades da associação, quando pude saber
mais sobre cada um em conversas aleatórias.
É interessante perceber algumas características desse grupo que, como foi dito no início
desde capítulo, não pode ser considerado como homogêneo ou estático. A forma como cada um
deles conheceu a Liga Canábica e se aproximou da associação, passando a integra-la de modo
ativo, é uma das características que nos mostra a pluralidade do grupo. Seis deles conheceram
a associação através de relações de amizade, diretamente com algum membro das Famílias
Fundadoras, ou através de amigos em comum com eles. Outras duas pessoas conheceram a Liga
Canábica através de eventos e pesquisas acadêmicas, enquanto uma pessoa viu uma reportagem
na televisão e outra procurando informações sobre maconha medicinal na internet, e assim
205
souberam das reuniões e se aproximaram do grupo, motivados por variadas questões atreladas
a importância que todos percebem na atuação da associação.
A Liga Canábica tem um trabalho belo, de grande relevância social, pois luta
por uma política de cannabis medicinal e terapêutica que seja inclusiva, que
garanta a toda a população o acesso a planta e seus derivados. A Liga Canábica
tem pautado a saúde pública, a política de drogas, a inclusão social, a
responsabilidade do Estado e a valorização da medicina popular com muita
maestria e coerência. É uma associação que com poucos recursos tem
mostrado a força do trabalho voluntariado. A Liga é construída com
solidariedade, empatia, coragem e ousadia. Quando ninguém queria falar
sobre maconha medicinal a Liga se expôs e criou um movimento forte de
debate sobre o tema com evidências científicas e relatos de casos incríveis. A
Liga Canábica é necessária e consegue descontruir pré-conceitos com leveza
e força ao mesmo tempo. (Suzyanne Araújo de Moraes, questionário, outubro
de 2019.)
Queria que todos pudessem ter sua planta em seus quintais... temos acesso tão
fáceis ao álcool e ao tabaco que não nos trazem benefícios.... porque não
podermos plantar a maconha no quintal como fazemos com o boldo, a cidreira,
o alecrim? (Soraya Correia Cartaxo, questionário, outubro de 2019.)
66
É importante destacar que existem muitas interpretações sobre o que distingue as formas de uso e se essa
distinção é válida, sobretudo sob a ótica de que a ação terapêutica presente nos princípios ativos da planta também
é usufruída por quem fuma, come ou utiliza qualquer outra forma de ingestão da maconha. Porém, considera-se
uso medicinal ou terapêutico quando usado de modo contínuo, em que há certo controle sobre quantidades,
horários e efeitos desejados sobre determinada patologia ou sintoma clinico atrelado à doenças, em oposição a um
uso menos controlado e que, embora conserve efeitos terapêuticos, tem por objetivo obter os efeitos psicoativos
propiciados pela planta eventualmente.
207
contrário; todos levam a opção política de legalização com regulamentação
pelo Estado. (Daniel Adolpho, questionário, outubro de 2019.)
Como é uma planta cujo efeito é muito menos prejudicial do que o álcool, por
exemplo, penso que seu uso deveria ser regulamentado para maior segurança
dos que dela fazem uso frequente. Uma ampla regulamentação seria mais
adequada. Digo ampla porque creio que deva ser para fins medicinais, para
fins recreativos e costumeiros (chás, unguentos, pomadas, etc). A
descriminalização traria mais segurança ao usuário e melhor controle pelo
Estado, tirando do domínio da contravenção. (Ricardo Lucena, questionário,
outubro de 2019.)
Embora esta opinião seja compartilhada por todos, é interessante perceber que apenas a
metade deste grupo, 5 deles já tiveram contato com o uso não terapêutico da maconha, enquanto
4 nunca haviam tido qualquer contato e uma pessoa preferiu não informar. Isso nos mostra que
mesmo aqueles que nunca haviam consumido maconha de forma recreativa ou conviviam com
pessoas que faziam este tipo de uso tiveram uma mudança de percepção mais ampla sobre a
maconha e entendem esta planta como menos danosa do que aqueles que a veem como droga.
Vale ressaltar que as respostas foram individuais e que não há qualquer orientação da
Liga Canábica sobre um posicionamento específico sobre estas questões, o que permitiria que
algumas pessoas fossem contrárias ao uso recreativo ou favoráveis a uma legalização e
regulamentação unicamente para fins medicinais. No entanto, percebo que a aproximação real
com casos de tratamentos, melhoras clínicas e com os demais integrantes da Liga contribuem
para uma visão mais integral sobre a maconha e seus efeitos, bem como sobre a conjuntura
proibicionista que afeta estes usos. A explicação de Vânia demonstra isso. Ela, como portadora
de epilepsia, não apenas encontrou na cannabis um tratamento eficaz para conter suas crises
convulsivas, como passou a perceber que a ilegalidade afeta usuários recreativos e terapêuticos
e compromete o conhecimento social sobre esta planta.
208
Como visto até aqui, a Liga Canábica é uma das protagonistas dos avanços e conquistas
no contexto da maconha terapêutica no estado da Paraíba, fundamentalmente pelo
envolvimento e disposição dos seus integrantes em provocar espaços de discussão e recrutar
parceiros para viabilizar suas demandas. Em seguida, veremos como outra iniciativa tem
contribuído para esta reivindicação, viabilizando o acesso à este tratamento para muitos
pacientes através das suas atividades.
209
5º. CAPÍTULO: A ABRACE
A escolha da Paraíba como recorte principal para a realização desta pesquisa se deu,
como apresentado na introdução, inicialmente por saber da mobilização de mães e pais pelo
direito de importar extratos de CBD para o tratamento de crianças com epilepsia de difícil
controle. Assim, esta pesquisa começou pela minha aproximação diretamente com a Liga
Canábica, que pode ser considerada o braço político e social da mobilização pela maconha
terapêutico na Paraíba.
Porém, ao aprofundar minhas pesquisas iniciais em busca de informações que me
permitissem elaborar uma proposta de pesquisa, tomar conhecimento de outra associação
existente neste Estado também foi estimulante para tornar essa pesquisa ainda mais relevante.
O fato de que a única associação de pacientes que fazem uso da maconha terapêutica autorizada
legalmente a fazer o plantio, extração e distribuição dos derivados terapêuticos desta planta
estar sediada na Paraíba, me possibilitou um olhar singular sobre esta questão. Isso porque
atualmente existe uma demanda crescente pelo uso destes produtos. Quanto mais as
informações sobre os potenciais terapêuticos da maconha para o tratamento de diversas
patologias se espalham pelo país, maior é o número de interessados em fazer esta tentativa e,
na maioria dos casos, perceber melhoras. Esta demanda social seria suficiente para que outras
associações replicassem o trabalho que a ABRACE realiza, porém, até então, todas as demais
organizações coletivas que tentaram legalizar suas atividades não tiveram sucesso. Sim, é
necessário pontuar que existem dezenas, talvez centenas de grupos de cultivadores em todo o
país que mantém cultivos de cannabis e realizam extrações artesanais dos óleos terapêuticos de
forma ilegal e, mesmo aqueles que já repetiram o processo judicial para regulamentação,
seguindo os passos da ABRACE, não tiveram sucesso jurídico. Portanto, a ABRACE –
Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança, realiza um trabalho pioneiro e sui generis
no país.
Responsável pelo que a Deputada Estela Bezerra chamou de braço “operacional”
durante a Audiência Pública em sobre maconha terapêutica em 2017, a ABRACE é responsável
pelo plantio, colheita e extração artesanal de óleos, sprays e pomadas feitas à base de variedades
de maconha, com diferentes concentrações de CBD e THC, distribuídas para os seus associados.
210
Por diversas vezes encontrei com Cassiano Teixeira e Endy Lacet67, o casal diretor da
associação, em eventos sobre o tema. Porém todas as vezes que os vi, em nenhuma tive
oportunidade para uma conversa de apresentação e por isso entrei em contato com eles via
Facebook, pois percebi que os perfis particulares de ambos eram porta-vozes das atividades que
exercem na associação, divulgando informações, eventos, casos de pacientes que usam o óleo,
resultados destes usos, publicidade da ABRACE, opiniões pessoais referentes ao tema, entre
outras informações que caracterizavam sua abertura aos contatos interessados pela associação
que dirigem e pelo uso terapêutico da maconha. Resolvi adicioná-los como amigos, para então
trocarmos algumas mensagens.
Independente do contato virtual, nos conhecemos pessoalmente em um dos eventos
promovidos pela Liga Canábica na UFPB, uma roda de conversa intitulada “Por uma Política
Nacional de Cannabis Terapêutica”, realizada em 25 de agosto de 2017, que contou com a
presença do neurocientista do CEBRID e do PROAD/UNIFESP, Renato Filev. Renato esteve,
nos dias anteriores a esta data, em Natal-RN participando do VIII Ciclo de Debates
Antiproibicionistas, na UFRN, assim como eu. Aproveitando a vinda dele até a capital vizinha,
a Liga Canábica entrou em contato para que ele viesse até João Pessoa participar de uma
atividade. Eu voltaria de Natal para João Pessoa após o Ciclo de Debates, pois eu faria o trajeto
para voltar para casa e me dispus a levá-lo para João Pessoa.
Quando chegamos à UFPB, apresentei Renato ao Júlio, Sheila e aos demais presentes e,
antes do início da atividade, Cassiano chegou e foi cumprimentar o palestrante e,
aparentemente, eles já se conheciam. Eu estava ao lado de Renato neste momento e também
troquei algumas palavras com Cassiano e logo ele nos convidou para conhecermos a ABRACE
após o evento, esclarecendo que seria necessário que alguém nos levasse, pois ele tinha ido até
a UFPB de moto e não poderia dar carona. Renato ficou empolgado com o convite e brincou
que eu estava como sua motorista e cicerone até aquele momento e perguntou se eu aceitaria
levá-lo até a ABRACE. Concordei e Cassiano me passou seu número de telefone e o endereço
da associação, porém assim que a roda de conversa terminou, um motorista da UFPB já estava
esperando para levar Renato de volta para Natal, onde ele pegaria o voo de retorno para São
Paulo.
67
No segundo semestre de 2019, no período em que este trabalho estava em conclusão, soube do desligamento de
Endy Lacet das atividades da ABRACE, o que não interferiu nos dados anteriormente coletados por intermédio
dela enquanto colaboradora da associação na função de Integradora Científica – cargo destinado a receber
demandas e intermediar pesquisa externas sobre a associação.
211
Por causa deste desencontro, informei a Cassiano que Renato não poderia ir, e em
resposta ele me convidou para, quando eu quisesse, ir conhecer a ABRACE. Agradeci e fiquei
de marcar a visita para que eu me apresentasse como pesquisadora e pudéssemos conversar
melhor.
Em todas as vezes que estive com Cassiano, diretor da ABRACE, antes de começar
efetivamente a pesquisa, ele se mostrou bastante aberto e disposto a colaborar com o meu
trabalho. Estive pela primeira vez na ABRACE em fevereiro de 2018, depois de várias outras
tentativas que não deram certo por motivos variados. Em fevereiro, entrei em contato com ele
mais uma vez para conhecer a sede da associação não apenas para começar a minha pesquisa
como também para que um casal que eu havia conhecido em Palmas – TO68 também conhecesse
e se associasse a ABRACE, por necessidade de um de seus filhos, portador de epilepsia, que
fazia uso de óleos de Cannabis. Eduarda e Júnior se mudaram para João Pessoa e queriam saber
como conseguir o óleo para seu filho, pretexto suficiente para que eu não adiasse mais a visita
a associação. Entrei em contato com Cassiano, marquei a visita me certificando que ele poderia
nos receber e fui acompanhada do casal e seus dois filhos.
Cassiano foi muito simpático, nos mostrou todas as instalações, laboratório, espaços de
cultivo indoor e outdoor69 repletos de plantas, sala de reunião e depois fomos ao dispensário,
local separado, em outro endereço próximo, onde funciona apenas o atendimento às famílias
que vão buscar os frascos mensalmente. Lá, enquanto Eduarda conversava com uma das
atendentes para fazer seu cadastro, fui conversar em tom informal com Cassiano em outra sala
para explicar o meu propósito de pesquisa. Nessa ocasião ele foi bastante solícito novamente e
me falou sobre diversas questões relacionadas ao trabalho dele a frente da associação e até
implicações deste trabalho em sua vida pessoal.
Depois dessa visita em que ficou clara a disposição dele, enquanto diretor, em permitir
e colaborar com a minha pesquisa, visitei novamente a associação para uma reunião em que
expliquei como eu pretendia realizar a pesquisa a partir de uma proposta antropológica,
diferentemente das experiências que ele já conhecia com jornalistas e outros pesquisadores,
68
Estive em Palmas e Porto Nacional para participar de uma mesa-redonda sobre “usos da Maconha, a convite da
professora Janaína Capistrano na UFT - Campus Porto Nacional. Na ocasião, além da mesa-redonda, foi proposta
uma conversa com famílias que estavam fazendo uso de cannabis terapêutica e gostariam de saber mais sobre as
formas de organização de um movimento neste sentido a partir das informações que tiveram sobre a Liga Canábica
da Paraíba. Nesta atividade conheci quatro famílias que conseguiam os óleos ilegalmente e administravam para
crianças, entre elas, Eduarda e Junior, que no final do mesmo ano se mudaram para João Pessoa, motivo pelo qual
ela entrou em contato comigo.
69
Modo como são distinguidos os ambientes de cultivo em local fechado (indoor) e em espaço aberto (outdoor),
que exigem técnicas e cuidados distintos.
212
sobretudo da área da saúde, que tinham interesses bem específicos e procuravam a ABRACE
para coletar dados, fazer filmagens e outros formas mais “ágeis” de investigação. Expliquei que
levaria alguns meses e que, guiada pelo preceito da observação participante, precisaria estar
presente nas variadas atividades da associação para escrever sobre ela. Nesta ocasião, sabendo
que os funcionários têm tarefas definidas, me dispus a servir como voluntária, em algo que me
colocasse em contato com os trabalhos realizados. Ele disse que não seria preciso, mas que eu
teria total acesso aos espaços e poderia ficar à vontade para conversar, realizar entrevistas e
coletar os dados que achasse necessário. Foi através de Endy Lacet, esposa de Cassiano e
responsável pelas pesquisas na associação, que iniciei a pesquisa e tive todo o suporte
necessário dentro da associação, inicialmente com breves apresentações e posteriormente em
contato com cada setor, suas atividades e colaboradores.
Apesar de toda a disponibilidade de Cassiano, Endy e todos os funcionários com quem
tive contato durante esta pesquisa, o modo de operação da ABRACE conduziu esta parte da
pesquisa por metodologias um pouco diferentes das que foram adotadas com a Liga Canábica
e mesmo em pesquisas anteriores que eu realizara. Veremos que a ABRACE tem uma
configuração empresarial de trabalho, dividida em setores, com funcionários contratados para
atividades específicas e com um cotidiano de trabalho repetitivo, rotineiro e previsível em cada
um dos seus setores. Neste contexto, a pesquisa etnográfica não me trouxe tantas descobertas
quanto as conversas e explicações em que os funcionários e diretores me davam informações
precisas sobre seus processos de trabalho. Conhecendo um pouco sobre cada um dos setores,
realizei entrevistas presenciais semiestruturadas com pelo menos um dos funcionários de cada
área para que neste trabalho estejam contidas informações precisas sobre o funcionamento da
ABRACE, como veremos.
Esta dinâmica da pesquisa, assim como a relação dos funcionários da ABRACE com a
questão da maconha medicinal, também precisa ser considerada em paralelo com a abordagem
pormenorizada dedicada aos integrantes da Liga Canábica. Isto porque, com exceção de
Cassiano, os demais trabalhadores da ABRACE são profissionais contratados, formam uma
equipe de trabalho e não tem relação pessoal com o tema.
213
5.1. Formação e Atuação
Em 2013 minha tia, Marta Buriti, morreu de câncer e um mês depois minha
mãe começou a ter uma tosse e aí começou a fechar o pulmão e teve
internação, 7 dias internada, aí eu pensei que eu iria perder ela, aí eu disse "eu
não vou perder ela", eu tive um sonho de um dente caindo, aí eu pensei
"pronto, vou perder minha mãe". Meu tio morreu na quinta e eu acreditei que
minha mãe iria morrer no outro dia. Daí eu comprei maconha no tráfico,
peguei 50 gramas, coloquei no azeite, joguei na panela e mexi até não saber
onde dava, por uma hora. Depois joguei na latinha de volta e esperei esfriar e
botei na colher, ela estava na cama, recebeu alta, mas estava debilitada e sem
comer, ela estava se indo, né. Então eu fiz o óleo, botei na colherzinha, ela
estava deitada, levantou, tomou e voltou a dormir aí eu fui fazer outras coisas.
Quando foi uma hora depois, mamãe se levantou, era umas quatro horas da
tarde, foi na cozinha, lavou prato, depois foi no computador e ficou no
Facebook. Fazia mais de vinte dias que ela não fazia isso e aí eu percebi o
efeito terapêutico na minha mãe, conversei com minha irmã, disse que eu iria
continuar dando o óleo a ela, pedi autorização a essa minha irmã, como são
seis irmãos, eu tive que esconder dos outros e logo eles descobriram, inclusive
ficaram com raiva de mim, um sobrinho meu me disse que se eu matasse a
minha mãe ele iria me matar, eu sofri muito isso com meus irmãos. A minha
irmã caçula me apoiou, mas mesmo assim ela me deu um prazo "olha, com 30
dias a gente vai dizer pra mamãe". Mamãe não sabia. E aí toda vez que a gente
ia almoçar, eu pegava a latinha e jogava na salada dela. Então ela comia ao
meio dia, deitava e dormia até umas 16 horas, acordava e comia toda a
cozinha. Em menos de duas semanas, mamãe ganhou cinco quilos e ela nunca
mais teve internação ou recaída, nunca mais teve acessos de alergias, como
ela tinha. Faz cinco anos e mamãe nunca deixou de usar. Esses dias eu postei
um vídeo dela dirigindo, 83 anos de idade, 7 livros escritos e tem mais dois na
fila de espera pra lançar. Altamente capaz. Ela é uma pessoa que tem saúde.
(Cassiano Teixeira, entrevista, setembro de 2019)
Cassiano conta que, após essa experiência e com os resultados positivos, começou a
pensar em outra forma de continuar tratando sua mãe com cannabis, mas de forma menos
artesanal e sem usar maconha ilegal.
214
queria”, eu queria o que acalma. Aí eu comecei a entender que um acalmava
e o outro dá energia, o que eu tomava acalmava e o que eu tava dando para
mamãe era energia e aí eu quis dar um pra ela de noite que dava sono. Aí,
como eu importei pela primeira vez pro Brasil, foi a primeira venda que eles
fizeram pro Brasil e eu ganhei meio que uma exclusividade, a gente ficou
amigos, eles fizeram uma vídeo conferência e disseram “Cassiano, a gente
quer entrar no Brasil, como é que a gente faz?” aí eu disse para eles que aqui
é ilegal e tal, aí começou a amizade, eu terminei trabalhando para eles por um
ano, no ano de 2014. Aí eu comecei a ajudar as mães a importar. As mães que
estavam desesperadas, eu dizia “olha, pessoal, vocês compram nesse link”. Eu
mandava o link, elas compravam e recebiam, as vezes elas recebiam no posto,
era sempre complicado. Aí quando foi em 2015, eu vi que eu estava com mais
de 300 mães me procurando, foi aí que eu pensei em registrar uma associação.
Aí eu capturei algumas mães, oito mães, para a gente fazer um quadro diretivo
e aí a gente registrou o estatuto social e eu fundei. Em setembro de 2015 eu
consegui registrar no cartório. Quando eu cheguei no cartório para registrar, o
cara do cartório era amigo do meu irmão, ele conhece meu irmão epilético,
joga bola com ele. Aí ele “cara, vocês vão fazer isso aqui”, “eu pretendo fazer,
mas eu preciso registrar a associação”, aí ele olhou assim “bicho, nem passa
isso aqui falando de maconha, mas eu dou um jeito”, aí no outro dia ele me
ligou “olha, Cassiano, está pronto o estatuto”. Eu cheguei a chorar. Outras
associações não conseguiram chegar nesse passo, registrar. Aí eu voltei para
cá, eu tinha uma casa, que é onde a ABRACE é hoje sede, que minha mãe
construiu para eu morar com minha esposa da época. Aí a gente se separou, a
casa ficou alugada e a pessoa que estava morando lá estava destruindo a casa,
aí eu pedi a casa de volta, peguei o endereço, registrei a associação ali e hoje
o que é.
Como as mães já tinham muita confiança em mim, a gente já tinha passado
muitas importações, teve a alta do dólar, em outubro de 2015, que chegou a
quatro reais, na época de Dilma [Roussef]. Não dava. Era 1.200 reais uma
seringa, passou para 1.900 mais os impostos. Então alguns pais já tinham
vendido o carro, outros o apartamento, Aí a gente entrou em colapso mental
“o que é que a gente faz?” eu disse “eu vou comprar maconha e vou fazer.”
(Cassiano Teixeira, entrevista, setembro de 2019)
A ABRACE existe desde 2014, está sediada em João Pessoa e começou sua produção
ilegalmente. Como relatado por Cassiano, somente em 2017 a associação conseguiu, em caráter
liminar, a autorização para produzir e distribuir seus produtos exclusivamente para 151
pacientes que já eram atendidos por ela ilegalmente, inclusive os filhos dos membros da Liga
Canábica, que são associados a ABRACE desde a sua fundação. Foi documentando os quadros
clínicos e avanços nos tratamentos desde grupo de pacientes que o pedido de autorização
judicial foi embasado e conquistado, porém limitado a continuação destes tratamentos, sem
atender novos pacientes. Posteriormente a associação conseguiu uma decisão definitiva que
permitia a continuação das suas atividades e a expansão da quantidade de pessoas atendidas que
no início de 2019 já atendia cerca de 1.200 pacientes.
215
Ao longo da pesquisa, ouvi muitas vezes conversas sobre plantações e extrações caseiras
para poucos pacientes e todas elas eram ilegais e consideradas pela lei atual como criminosas.
O pioneirismo da ABRACE começou também na ilegalidade, mas com o propósito de, assim
como a mãe de Cassiano, proporcionar qualidade de vida para pacientes e suas famílias.
Ao plantar e realizar todo o processo para fabricação dos extratos de maconha, mesmo
que para fins terapêuticos, essas práticas estavam inclusas na Lei de Drogas (11.343/2006),
podendo seus responsáveis serem presos e julgados como traficantes. Só a partir de 2017, todo
o trabalho da associação passou a ser regularizado, após a primeira (e única até então)
autorização judicial no país para esses fins. Cassiano conta que o modelo associativo fundado
por ele, foi inspirado em associações estrangeiras com a mesma finalidade.
Endy Lacet: Os óleos de CBD são os óleos da cor laranja... aí esses laranjas
tem três tons, das três concentrações, entendeu?! Então vamos lá: laranja claro
é o 0,5% [de concentração], o laranja escuro é 1%, e o marrom é o 2%. Isso é
o óleo de CBD, ele tem todos os canabinoides...porém, a maior concentração
é de CBD. Aí tem o óleo rico em THC, que são três também, três
concentrações diferentes, três tons de verde. O verde claro, que é o menos
concentrado [0,5%], o verde escuro [1%] e o preto, que é o de 2%. Aí tem o
outro, que é o balanceado, que é rico em CBD e THC, também tem três. Eles
são do mesmo jeito: azul claro, azul escuro e roxo.
Endy Lacet: São nove tipos de óleo, porque as concentrações variam... aí fora
os óleos administrados via oral, a gente tem a pomada (a pomada de 15 g e a
pomada de 30 g), a gente tem o spray, que é esse de 25 ml, rico em THC, e
tem também...deixa eu ver aqui o que mais... o óleo de vaporizar. (Endy Lacet,
entrevista, abril 2019)
É indicado pela própria associação que o tratamento varia de caso para caso, mas
recomenda iniciar com 3 a 5 gotas, 2 vezes ao dia e ir gradualmente aumentando 2 gotas a cada
semana até encontrar a melhor resposta terapêutica70. Individualmente, é recomendado que
médicos prescritores de cannabis acompanhem o tratamento dos pacientes e receitem o melhor
70
A página virtual da ABRACE tem excelente interface e qualidade técnica e reflete o padrão de profissionalismo
que a associação inspira. Nela está disponível grande quantidade de informações sobre usos medicinais, relatos de
pacientes e seus responsáveis, notícias e orientações para sócios e não-sócios. Além do conteúdo, a página serve
também como acesso para associados fazerem as solicitações dos produtos a serem retirados em um dos
dispensários ou recebidos pelos Correios. Ver: https://ABRACEesperanca.org.br/home/. Consultado em
10/09/2019.
217
tipo de produto e concentração de acordo com a patologia e/ou sintomas dos pacientes que
buscam essa terapia.
5.2. Organização
[...] a ABRACE era só na outra casa, que era a casa que eu e Cassiano morava
(sic). Então começou a ser metade casa, metade ong... começou assim, três
quartos casa, um quarto ong. Aí depois, dois quartos casa, dois quartos ong...
aí depois três quartos ong, um quarto casa, aí a gente teve que se mudar (risos).
[...]Aí pronto, Mizael e Cassiano foram criando site, formulário, aí começou
a criar uma estrutura, entendeu? Administrativa. Na época éramos nós quatro
[Cassiano, Endy, Mizael e Aquiles]. Aí Aquiles, que é o outro menino que
está com a gente desde o início, também ajudava no óleo... era assim, todo
mundo fazia tudo... a gente não tinha função, não. Todo mundo fazia tudo. Aí
a gente saiu de lá e lá ficou sendo setor de cultivo e laboratório, produção, e
aí alugamos aqui, que é o resto dos setores administrativos. Aí do lado de lá
tem o acolhimento, aí o acolhimento é tanto presencial, do pessoal que vem
218
aqui fazer a retirada do óleo e fazer novos cadastros, tirar dúvidas. E tem o
acolhimento e atendimento virtual, que é através dos nossos canais de
atendimento pelo Whatsapp, Instagram, Facebook e site. (Endy Lacet,
entrevista, abril 2019)
Cassiano conta que a construção do espaço físico foi sendo improvisado e adequado
Atualmente a associação conta com dois endereços, conforme a descrição de Endy, com
distância de aproximadamente 500 metros entre eles. Enquanto a primeira sede, que começou
sendo a residência do casal diretor e passou a ser a plantação e o laboratório tem aparência
discreta, a fachada do endereço onde funciona a parte administrativa e o acolhimento é
devidamente identificada com o nome, logotipo da associação, slogan e fotos de divulgação.
219
Figura 15Fachada externa do Dispensário da ABRACE em João Pessoa. Acervo da ABRACE.
71
Este aumento foi potencializado pelo espaço midiático que o tema da maconha medicinal alcançou nos últimos
anos, a partir dos casos citados na introdução.
220
[...] Depois que tem o extrato pronto, a gente faz análise com o HPLC, aí vê a
quantidade de concentração de canabinóides dentro dele, e direciona para qual
vai ser o produto, o produto de CBD, o produto de THC e outro balanceado.
Aí o laboratório que a gente fez a compra desse equipamento – HPLC – eles
vão emprestar mais dois ou três equipamentos para gente fazer o teste na
produção do óleo, na análise, em tudo, com a opção de compra. Então, assim,
se a gente quiser comprar no final desse tempo de teste, eles vão facilitar para
gente. E porque que eles estão fazendo isso? Nós somos a primeira no Brasil
que é autorizada. Então eles já estão pensando lá na frente...
Endy: Eles já estão pensando assim “vamos fazer o teste aqui, vamos ver qual
é a máquina que dá certo, e pronto. Depois vamos direcionar isso para esse
mercado”.
Pesquisadora: Porque essa máquina serve para outras coisas além dos óleos
de maconha?
Endy: Serve para outras coisas, com certeza. Mas aí eles querem saber se, no
nosso processo de produção, se essa máquina auxiliaria ou melhoraria o nosso
processo de produção, o processo de concentração dos óleos, ou o tempo de
produção, entendeu? O intuito é sempre melhorar, né. Aí eles, com essa visão,
eles estão fazendo isso [facilitando]. Mas assim, é bom, porque querendo ou
não, essa máquina HPLC, a gente comprou com 50% de desconto, só pelo fato
de ser de cunho social. Mas nós compramos, fizemos depósitos periódicos, de
15 em 15 dias um determinado valor, aí quando acabou esses depósitos, eles
pegam e mandam uma equipe para fazer um treinamento e em seguida eles
mandam a máquina, para deixar toda instalada. (Endy Lacet, entrevista, abril
2019)
A própria ABRACE reconhece que seria impossível para uma única associação
conseguir suprir toda a demanda nacional por estes tratamentos e tem interesse em dar suporte
a novos projetos inspirados na sua atuação para que mais pessoas sejam atendidas por produção
nacional autorizada e com controle de qualidade – característica nula em produções artesanais
ilegais, entre outras questões, pelo alto custo dos equipamentos necessários e de local adequado
para os cultivos e manipulação.
Eu acho que porque a gente começou uma história, e hoje em dia a gente já
tem um certo padrão que as associações que estão começando agora não
poderiam ter, até mesmo a gente, quando começou, não tinha e, pelo fato da
ABRACE tá sendo muito conhecida, ser conhecida como a única associação,
acaba que os outros juízes pegam a ABRACE como referência, entendeu?
Então, foi uma faca de dois gumes, porque a gente conseguiu a autorização,
mas querendo ou não a gente virou uma certa referência para outros juízes
julgarem, fazerem essa comparação com outros pedidos similares. O que é que
a gente tá fazendo agora? Antes dessas associações entrarem, a gente tá
221
prestando ajuda “ó, faz assim... faz assado...”, a gente está tentando orientar
eles a caminhar, mais ou menos, por onde a gente caminhou e que deu certo.
Endy: Antes de pedir a autorização. Porque? Primeiro você tem que cometer
o crime... você tem que tá fazendo... tem que tá dando certo... mas para você
tá fazendo e tá dando certo, você tem que ter alguns cuidados... tem que pegar
documento de paciente, tem que desvincular completamente o uso medicinal
do recreativo...[...] Aí a ideia é a seguinte, pedir ao juiz quando for essas
associações, a gente dá apoio... quando essas associações for pedir ao juiz,
pedir uma autorização após capacitação... entendeu? Então assim, ou o pessoal
vem para cá, ou a gente vai até lá, prestando consultoria in loco, entendeu,
com plantação, com produção, com acolhimento...aí assim, a gente orienta o
máximo que pode, o nosso advogado também orienta como é que tem que
fazer. quando tá juntando os pacientes, pegando plantas selecionadas. Aí tá
fazendo o mesmo processo que a gente fez, agora junta laudo, receita, tudo...
porque se não for assim... é o que a gente conseguiu fazer, organizando
documentos, coletando os médicos, então, assim, isso dá certa segurança,
porque o juiz vai olhar e vai dizer “não, você realmente é uma associação”, os
caras não querem plantar e vender maconha, enfim... (Endy Lacet, entrevista,
abril 2019)
5.2.1. Administração
222
5.2.2. Produção
72
https://www.growroom.net/
73
Como são chamados os cultivadores de maconha.
223
escondido, oculto, então meio que ele ficou sabendo do meu trabalho e essa
foi a minha primeira aproximação com a ABRACE. Aí agora a pouco tempo,
eu estava morando no Chile, aí surgiu a necessidade de uma pessoa
responsável pelo cultivo, aí ele foi e me chamou novamente. Aí agora eu já
voltei com outra responsabilidade, né, já voltei com a ABRACE empresa, eu
saí na ABRACE “associaçãozinha”, fundo de quintal, e voltando encontrei
uma empresa, um quadro de funcionários, uma gestão. (Rauny Castanha,
entrevista, setembro de 2019)
Esta experiência prática que ele descreve foi o início da sua trajetória como cultivador,
mas não bastou para sua formação e atual papel na associação. Como ele conta, certificações e
um curso superior que desse respaldo a sua expêriencia também são importantes para a
atividade que ele desenvolve a frente do cultivo da ABRACE como profissional.
Além desta experiência inicial, ilícita, para consumo recreativo próprio e de amigos, e
dos cursos que fez, Rauny se especializou ainda mais no cultivo de cannabis de modo prático
trabalhando em uma plantação legalizada no Chile para um grupo de quase 9 mil associados,
como ele relata.
224
O trabalho que Rauny desenvolveu no Chile é muito superior, em termos quantitativos,
da realidade que a ABRACE desenvolve atualmente. Somados, os espaços de cultivo da
ABRACE comportam em torno de 3 mil pés de maconha em estágios de desenvolvimento
diferentes, desde as mudas até os pés prontos para colheita e secagem das flores, para então
serem armazenados em refrigeração até o momento de serem usados para extração dos seus
derivados.
Todo o processo de produção de flores, para a extração dos óleos na ABRACE, começa
pela escolha das variedades e por adquirir sementes específicas de cada variedade.
Hoje, 90% das nossas plantas são clones. Então a gente tem sementes
importadas de vários doadores de várias partes do mundo, maior parte delas
simpatizantes com a causa e algumas delas também, eu viajava, trazia a
semente, entendeu? Aí a gente meio que perpetuou algumas espécies, para
ficar tirando clones. Aí hoje 90% é clone, mas a gente ainda faz alguns ciclos
de sementes, fica intermediário, mas essas sementes também são todas
adquiridas no estrangeiro, não tem no Brasil. São maconhas modificadas,
porque na natureza a gente não encontra plantas com esse percentual de THC
e CBD que a gente precisa, porque hoje a ABRACE são três rótulos de óleo,
o verde, o laranja e o azul, cada um tem uma diferença entre a quantidade de
canabinóides e isso não tem como você misturar em um laboratório e fazer,
você tem que encontrar na planta para ela passar essa propriedade para o óleo,
então foi assim que chegou nessas genéticas. (Rauny Castanha, entrevista,
setembro de 2019)
O uso de clones, feitos a partir de plantas crescidas, é uma estratégia importante para
manter a periodicidade das plantas em quantidade suficiente para a manipulação dos óleos
conforme a demanda da associação. O uso de sementes importadas, como Rauny descreve, pode
trazer complicações para a associação, como aconteceu no início de 2019,
225
Atualmente, o que torna a produção um pouco mais segura é a seleção de plantas de
acordo com as concentrações de canabinóides adequados para cada tipo de óleo, quantificadas
com uma máquina adquirida recentemente pela associação.
Sim, sim, hoje a ABRACE chegou em três, quatro genéticas, a partir de toda
essa caminhada e agora, por conta do HPLC, que tem a capacidade de medir
a curva de canabinóides em cada planta, então as dúvidas que a gente tinha a
máquina sanou, então hoje se a gente entrega um óleo CBD, ele é CBD. Então
a forma que a gente chegou para se estabilizar nessas plantas, quem trouxe
essa segurança foi o HPLC. Agora a gente sentou e pronto, vamos trabalhar
só com essas.
Cultivadas hoje, a gente tem mais de trinta, mas as que a gente vai criar laços,
vínculos são as Charlotte Angel, Night Girl, Texaco, Master Hemp e New
CBD são genéticas todas exportadas de bancos espanhóis. A gente recebeu do
Medical Marijuana Genetics, o pessoal que sempre ajudou. [Antes] a gente
comprava outras muito mais caras, já teve semente que a gente comprou
caríssimas, de custar 500 reais uma semente, com promessas de ser tudo e
pronto, fazia o óleo, o óleo não dava, a gente não entendia porque, depois que
a gente vai para HPLC, o HPLC mostra até a descendência da planta, a
curvatura dos canabinóides, então hoje ficou mais fácil. (Rauny Castanha,
entrevista, setembro de 2019)
As principais etapas do cultivo são sempre observar, todos os dias a gente vem
e observa se há necessidade de fazer a rega, a poda, um dos nossos
colaboradores aqui dessa parte de baixo, ele vem e sempre delega os meninos
“olha, hoje vamos fazer um mutirão, vamos plantar X, hoje vamos trazer
planta do Castelo”, “hoje vamos tirar planta da estufa três para a estufa dois e
colocar a um para florar”, então a rotina teoricamente é essa, mas assim, é
mais trabalho braçal mesmo, mexer com terra, carregar vaso. (Rauny
Castanha, entrevista, setembro de 2019)
A rotina do cultivo obedece ao ciclo de crescimento das plantas que, entre germinar a
semente e a planta estar pronta para a colheita, dura, em média, 120 dias. Então, para que
mensalmente tenham pés prontos para serem colhidos, é necessário que a equipe mantenha
quantidades necessárias em diferentes estágios de desenvolvimento, como Rauny explica:
226
No máximo em 120 dias, as plantas que são feminizadas, porque elas
dependem do fotoperíodo para floração e as automáticas no máximo 90 dias.
Hoje nós temos clones aí sendo colhidos com menos de 120 dias, 110 dias, o
ciclo completo desde que cortou a estaca, fez o clone, até a floração, mas aí
varia de genética para genética. No máximo a cada três meses a gente está
colhendo uma planta, por isso que é possível colher mensalmente, porque
sempre está entrando e está saindo.
Exato, a gente está chegando nisso. O que a gente espera é isso, não esperar
como antigamente, passar três meses com um estoque que vai recarregar daqui
a três meses. Então, se nesse meio tempo a demanda aumenta, de onde é que
vai tirar o estoque? Não tem de onde tirar, então tem que ter mensalmente,
tem que ter sempre a planta em floração porque se por ventura der um colapso,
a gente vai cortar planta que não está pronta ainda, que já serve, só não dá o
mesmo rendimento. Ela vai crescer mais, vai dar mais flores, mas assim, na
necessidade, a gente vai na planta e corta. Ela tem o mesmo percentual de
canabinóides, desde o início. [Poderia] aumentar a quantidade para dar mais
[flores]. Mas ela já funciona desde que você muda para a floração, que aparece
os tricomas (que são os cristais que dá na flor), apareceu os tricomas, você
cortou o pedacinho da folha, ela já tem utilidade.
Porque assim, a gente não tem mais condições de segurar uma estufa inteira
para colher de uma vez, então, a gente vai acrescentando parcela para estar
colhendo semanalmente alguma coisa porque a demanda é muito grande.
(Rauny Castanha, entrevista, setembro de 2019)
227
O controle de concentração todo é feito pelo laboratório. As plantas por
natureza têm seus percentuais, 18% de THC, 1% de CBD e assim
sucessivamente. Aí temos a máquina que testa a flor, certo? Mas quando é
feito o óleo, o óleo é feito em cima de uma base, ou seja, é feita a extração do
princípio ativo de várias plantas e a posologia, a forma como ele é fraccionado,
para dar os percentuais, é tudo feito pelo laboratório, porque eles fazem óleo
a 1%, 2%, 3% [concentrações], porque como são fitoterápicos, existem
miligramagens mais específicas para cada patologia, porque fibromialgia se
trata com o óleo verde claro, Parkinson trabalha melhor com o óleo azul
escuro, aquela criança que tomava para autismo aquele óleo, não está fazendo
efeito, então todo esse fracionamento é feito pelo laboratório. Eles fazem a
base, o óleo, o extrato concentrado e vai fazendo as diluições de acordo com
as patologias. (Rauny Castanha, entrevista, setembro de 2019)
As etapas do cultivo terminam com a colheita dos galhos com as flores e sua secagem,
penduradas de cabeça para baixo, para, em seguida serem armazenadas em um freezer ou
seguirem para o laboratório onde é feita a extração.
228
Figura 18 Área de cultivo indoor da ABRACE, com plantas em crescimento. Acervo da
ABRACE.
229
É no laboratório, vizinho as áreas de cultivo e dos freezers de armazenamento que
acontece a segunda etapa de produção, a manipulação da matéria prima, extração dos seus
derivados e diluição. O laboratório tem acesso mais restrito e os profissionais que lá trabalham
precisam estar devidamente equipados para entrar, inclusive visitantes. A equipe de laboratório
é composta atualmente por 4 pessoas, um farmacêutico, Carlos Espínola, a química, Jéssika
Freitas Soares, que estão a 8 meses e 1 ano, respectivamente, à frente do processo de produção,
e dois auxiliares de laboratório.
Ao contrário do que eu imaginava ao ver um espaço bastante organizado e com regras,
Jéssika e Carlos me disseram não haver regulamentação, protocolo de segurança ou sanitário
que determine normas para o funcionamento do laboratório da ABRACE.
Carlos: Não. A gente que é preocupado quanto a isso e a gente tenta se adequar
ao mais real possível do que é ofertado por aí.
Jéssika: Por isso que Cassiano contratou os profissionais da área para poder
resolver essa questão, porque antes a gente fazia tudo mais caseiro e tal e desde
que ele contratou os profissionais da área que a gente vem organizando e tudo
de acordo com a capacidade. (Carlos Espínola e Jéssika Freitas Soares,
entrevista, setembro de 2019)
230
as vezes tenta ajudar a gente com ideias e ações, tenta interpelar entre a justiça
e a ABRACE. (Cassiano Teixeira, entrevista, setembro de 2019)
Jéssika: É teste, principalmente quando você está fazendo uma coisa que
ninguém ainda fez.
Para entender os procedimentos e etapas, da planta até os frascos, a explicação que eles
me deram foi bastante objetiva: “O princípio ativo é extraído das flores, para isso a gente tritura
a planta, coloca para macerar e faz a extração alcoólica”, me disse Jéssika. Certamente para eles
este é um processo comum com o qual eles lidam diariamente – já que os óleos são feitos de
acordo com a demanda repassada para eles pela equipe de acolhimento de acordo com a
demanda dos pacientes associados. No entanto, o que eu entendia como extração não se limita
á esta etapa da produção. Isso porque o procedimento de extração produz um extrato bruto e
concentrado, chamado por eles de base. Com esta base, outros produtos serão misturados para
fazer a diluição para as concentrações de 0,5%, 1% e 2% dos óleos vendidos pela ABRACE,
além da pomada e spray que requerem outros métodos.
Jéssika: Não, muda para pomada, para vaporizador, tem outras formas de fazer
e tem outros recipientes, outros processos mais complicados, demora mais um
231
pouco, mas a ideia é a mesma, em todos eles eu faço isso [extração], até o
momento que eu estava, o que muda é o que eu vou fazer com o extrato. Aqui
eu já botei o MCT, mas dependendo do que for, vai variar a quantidade de
MCT e o que eu vou colocar a mais, porque pomada vai outras coisas, para
poder deixar na consistência certa, o vaporizador é menos MCT e por aí vai.
(Jéssika Freitas Soares, entrevista, setembro de 2019)
Embora seja feita a seleção das plantas para o cultivo, como Rauny esclarece, a real
concentração dos princípios ativos mais importantes, o CBD e o THC, nos óleos era uma
incógnita até mesmo para os profissionais que trabalham no laboratório até recentemente. Isso
porque o processo de extração pode modifica essas concentrações. A aquisição de um novo
equipamento pela associação, o HPLC, permite um controle mais preciso destas concentrações,
como Carlos e Jéssika explicam:
Jéssika: É pela genética [da planta]. A gente sabe, por exemplo, que uma
planta específica de uma genética específica tem mais CBD do que THC e
essa era usada para fazer o óleo correspondente. Mas isso era uma coisa que
não tinha garantia, porque pode ter cruzado, fica uma perto da outra, por acaso
pode ter fertilizado e mudado a genética dela. Aqui tem-se todo um cuidado
para isso não acontecer, mas antes de vir para cá, a semente, ninguém sabe.
Então com o HPLC agora, vai ter certeza.
Carlos: Antigamente a gente usava esse equipamento aqui que dava para ter
uma noção mais ou menos dos teores de THC e CBD, só que na flor. Aí o que
é que acontece, depois do processo de produção, a gente não tinha como
mensurar o que estava ali dentro do óleo porque tinha um processo físico
relativo a isso, então a gente não tinha como saber, a gente colocava o que era
fornecido numa flor e não no óleo pronto.
Pesquisadora: E tem diferença então da flor para quando ela vira óleo?
Embora a estrutura seja bastante sistemática e completa para o cumprimento das etapas
de produção, há uma incompatibilidade da capacidade de produção em relação à demanda que
232
a ABRACE continua recebendo crescentemente, sobretudo pelo fato desta ser a única
associação que desenvolve esta atividade legalmente. Dada a limitação de espaço, já
completamente utilizado, a ABRACE se prepara para ampliar suas atividades
Endy: A gente já está nesse projeto de expansão, porque assim, aqui em João
Pessoa, a gente faz a plantação aqui na sede, onde era a nossa casa... aqui a
sede tem a capacidade para 3 mil pés, mais ou menos, é uma quantidade boa,
dá! Só que a gente não quer parar por aqui, entendeu? Não é nem questão de
não querer parar por aqui, a gente não pode parar por aqui, até porque não tem
outra associação autorizada. E essa é uma das nossas preocupações, é ajudar
outras associações a também conseguir esse direito. Até porque a gente não
pode, nem consegue abraçar o mundo, com os braços e com as pernas,
entendeu?! Como eu falei, a gente não atende um por cento da população
doente no Brasil, então não adianta a gente querer atender todo mundo, não
vai dar! Então a política é essa... é ajudar também as outras associações a
crescer, a conseguir autorização como a gente conseguiu. Aí o que acontece,
aqui em João Pessoa tá ficando pequeno e nós conseguimos uma doação de
um terreno, na verdade uma fazenda, em Campina Grande. Lá a gente já
começou a trabalhar na terra, não começamos a plantação ainda, até porque
para conseguir a plantação lá, a gente tem que entrar com o pedido na Justiça
Federal de novo. Na verdade, é uma... uma...é um adendo? Não, nem sei como
é que se fala... é como se fosse uma complementação da nossa autorização
para [a plantação em] Campina Grande... Só que lá a gente já está fazendo
teste de solo, né?! A gente plantou um ou outro pé, para poder ver como a
terra responde, como a planta responde, como responde a pragas, se tem algo
que de repente possa ser prejudicial. Lá a gente vai ter a capacidade para uns
dois mil pés, por aí. O intuito, com essa plantação de lá, é a gente conseguir
atingir dez mil famílias. Aqui hoje é mil e duzentas, e já é essa loucura! (Endy
Lacet, entrevista, abril 2019)
233
deste ciclo. Isso porque tudo começa com a demanda dos pacientes associados, esta demanda é
enviada ao laboratório que necessita da matéria prima do cultivo para preparação do produto
que, quando pronto, será disponibilizado para os pacientes através do dispensário, operado pelas
atendentes do acolhimento no mesmo local. Portanto, a etapa final das atividades da ABRACE
demanda bastante controle administrativo e social para lidar com a demanda e interação com
pacientes e suas famílias e possibilitar o controle entre a demanda e a real capacidade de
fornecimento pela associação.
A produção da ABRACE atende atualmente em torno de 1.200 pacientes portadores de
diversas patologias, residentes em todas as regiões do país e, por isso, grande parte dos
atendimentos são feitos por meios virtuais, como redes sociais e telefone, assim como os
produtos são enviados pelos Correios para o endereço do paciente.
Para os residentes na Paraíba, a ABRACE oferece 2 espaços de acolhimento para os
atendimentos presenciais, um em João Pessoa, em prédio comercial próximo à sede de produção
e outro em Campina Grande, segunda maior cidade do estado e principal cidade de referência
para as zonas mais interioranas da Paraíba e estados limítrofes. Em cada um dos dispensários o
atendimento ao público é realizado em horário comercial, de segunda a sexta.
Assim como as matérias televisivas influenciaram desde o princípio na divulgação dos
potenciais medicinais da maconha e no aumento exponencial de pacientes em busca deste
tratamento, desde a autorização judicial que permite a ABRACE desenvolver suas atividades
legalmente, a exposição televisiva também tem exercido impacto na atividade de acolhimento
da associação.
Uma das vezes que estive na ABRACE, já próximo a finalização desta pesquisa,
coincidiu com ser o dia posterior à uma matéria veiculada no Jornal nacional, da Rede Globo,
na noite de terça-feira e reapresentada no programa Encontro na manhã seguinte, quarta-feira,
mesmo dia em que fui fazer algumas entrevistas que constam neste trabalho. Neste dia, 18 de
setembro de 2019, assim que entrei na sala principal do acolhimento, percebi as três
funcionárias em atendimentos virtuais, duas delas pelo computador e a terceira pelo telefone.
Não pude deixar de perceber que ela explicava calmamente a uma mãe de São Paulo quais os
procedimentos para iniciar o cadastro na ABRACE. Disse que ela precisaria da prescrição
médica que poderia ser dada pelo médico que acompanha o paciente ou outro que já seja
prescritor de terapias com cannabis, além dos formulários disponíveis no site da associação. Ao
termino da ligação, após um longo suspiro, sua colega que digitava agilmente comentou que
aquele dia estava impossível, pois tinham mais de 200 pessoas em espera no atendimento
234
virtual. Neste dia entrevistei uma das acolhedoras que me confirmou sobre o impacto das
matérias vinculadas nacionalmente na noite e manhã anteriores geravam na procura da
associação. Esta reportagem74 contextualizava o pedido da Procuradora-Geral da República,
Raquel Dodge, para que o Supremo Tribunal Federal estabelecesse um prazo para a
regulamentação da cannabis para fins medicinais e, para isso, entre outras informações, citou
casos de crianças que são tratadas com os produtos da ABRACE, mostrando imagens da
associação na matéria. Como Jamiles, responsável pelo setor de acolhimento me contou, é
comum a procura exorbitante pela associação nos dias seguintes a este tipo de matéria,
principalmente de veiculação em rede nacional em um dos principais jornais da televisão
brasileira.
Agora [hoje] é que realmente está um dia muito atípico, eu não vou nem dizer
isso porque na verdade é um dia que a gente já sabia que seria assim mesmo,
então tem que esperar, alongar os dedos e saber que vai digitar muito, falar
muito, porque todas as vezes que tem uma entrevista o número de ligações por
dia triplica e digamos que chega 30 por pessoa [normalmente], hoje está 230
e eu não sei nem em que número vai terminar hoje! Por isso que eu digo a
você, é um dia atípico que, na verdade, a gente já sabia que seria assim, muito
previsível, é a palavra certa, porque a gente já passou por outras entrevistas e
a gente já sabe que esse tsunami é esperado. (Jamiles Lopes Santos, entrevista,
setembro de 2019)
A procura pela Associação é, a princípio, por informações e orientação sobre como usar
derivados da maconha para diversas patologias e sintomas. Caso a pessoa se interesse por iniciar
o tratamento, a equipe de acolhimento explica a documentação e o procedimento necessários
para se associar a ABRACE e poder começar a receber os produtos.
A ABRACE não é titulada como comércio, então ela tem que se obter algum
cadastro que requer receita, laudo, documentos pessoais. Esse documento
permite que ele faça o cadastro, entre em nosso sistema e assim a gente possa
estar respaldado judicialmente a fornecer o óleo da cannabis. Então, primeiro,
para que ele possa ter o óleo, ele tem que se submeter a um cadastro. Esse
cadastro se faz pelo nosso site, tem lá todo um formulário, todo um campo
responsável por cada documentação, aí tem o tempo de análise, tem o
pagamento da taxa associativa. Caso seja presencial, traz todo o documento,
faz tudo aqui, aí o processo é um pouco mais rápido porque não tem essa
análise. Tem um tempinho de espera para que a gente possa abraçar a demanda
com um pouco mais de facilidade. Uma lista de espera para organização
interna mesmo, por conta da safra, para que a gente não possa abraçar uma
74
Disponível na íntegra em https://globoplay.globo.com/v/7931106/. Consultado em 19/09/2019.
235
demanda e não atender, para que a gente possa abraçar a demanda de uma
forma mais segura e mais rápida. Não é tão rápido quanto a gente gostaria,
porque a procura é absurda. É algo assim, a cada três dias entra 16 pessoas.
Hoje a gente está chegando num número de duas mil pessoas. Mas eu vou
dizer mais de mil porque ainda elas estão em um processo de ativação, porque
a gente entrou em lista de espera no começo de maio, daí de maio para cá,
entrou em média 1500 pessoas, quase a quantidade que a gente já tem.
(Jamiles Lopes Santos, entrevista, setembro de 2019)
De fato, a cada vez que eu conversava com alguém sobre a quantidade de associados da
ABRACE, o número era superior. A lista de espera, a que Jamiles se refere, são as pessoas que
já enviaram a documentação e aguardam para serem efetivadas de acordo com a capacidade de
atendimento à demanda pela associação. Como vimos, a demanda é muito superior ao que a
ABRACE é capaz de produzir atualmente e por isso o planejamento para expansão de uma nova
área de cultivo na sede e a tentativa de expansão para um cultivo outdoor próximo a Campina
Grande, como Endy conta.
Para viabilizar a entrada de novos associados, é necessário fazer um controle da saída
de frascos do óleo por paciente, para que a associação consiga estimar se a produção pode
atender mais pessoas ou não. Este controle engloba várias questões para a associação e também
para os pacientes em tratamento, como Jamiles explica:
Para ter acesso aos produtos da ABRACE é necessário fazer um cadastro pela página
virtual da associação, anexando documentos pessoais do paciente e responsável (caso haja
responsável); Receita médica prescrevendo uso de extrato de Cannabis; Laudo caracterizando
a patologia; e Termo de ajuizamento preenchido – todos com modelos disponíveis para
download na própria página. É necessário também pagar uma taxa anual no valor de R$350,
além do pagamento mensal pelos frascos dos produtos solicitados – de acordo com a prescrição
médica e o cadastro na associação e a taxa de frete para envio dos produtos quando o paciente
recebe em casa, pelos correios.
Para o tratamento em si, o ato do cadastro tem uma taxa associativa que são
de 350 [reais] anual. Para o envio, tem o frete também, mas o local, que vem
retirar aqui, fica só com o valor da taxa associativa e o valor do óleo, tem óleos
a partir de 150 [reais]. O de 89.90 é o óleo do vaporizador, mas o produto que
mais sai realmente é o óleo mesmo, via oral. (Jamiles Lopes Santos, entrevista,
setembro de 2019)
237
Os valores pagos mensalmente, após o cadastro e pagamento da taxa associativa, são
variáveis de acordo com os produtos e quantidades solicitados por cada paciente. Há ainda uma
porcentagem de pacientes isentos ou com desconto de 20% ou 50% nos valores, de acordo com
as possibilidades financeiras da associação e das condições sociais dos pacientes, durante um
ano, período de validade de todos os cadastros. Após um ano, as receitas médicas e o pagamento
da anuidade precisam ser renovados, assim como a condição dos isentos pode ser revista.
Apesar da parte burocrática de cadastro, pagamentos e documentos, as atividades da
equipe de acolhimento são mais amplas e são direcionadas ao acompanhamento dos pacientes
associados.
Ficou claro para mim, desde que passei a conhecer o trabalho do acolhimento na
ABRACE que o papel desempenhado por esta equipe é praticamente de acompanhamento dos
pacientes, sobretudo daqueles que tem mais dúvidas e dificuldades em lidar com uma terapia
que foge das orientações médicas tradicionais, como Jamiles descreve. Em alguns momentos
presenciei atendimentos na sala de acolhimento ou, como descrito, pude ouvir as instruções
238
dadas pelo telefone pelas atendentes e sempre me pareceu uma comunicação muito sensível,
disponível para auxiliar as famílias nesta descoberta e adequação à um tratamento eficaz.
Como eu imaginava, são muitos os casos e por isso esta equipe já tem certo domínio
sobre a forma de lidar com os pacientes e quais orientações dar em cada caso, além de
acumularem relatos da eficácia do tratamento, quando adequado.
239
Figura 19 Sala de Acolhimento e Dispensário da ABRACE em João Pessoa. Acervo da ABRACE.
240
A estruturação e o funcionamento da ABRACE, desde o princípio desta pesquisa, me davam a
impressão de parecer uma espécie de empresa, que, ao contrário da Liga Canábica, desenvolve
suas atividades pontual e centralmente na produção dos derivados da maconha para uso
terapêutico. Este é um formato que pode parecer estranho para uma entidade registrada como
associação, mas como o próprio Diretor Executivo explica, a organização administrativa e
deliberativa é fundamental para que haja agilidade na tomada de decisões.
Durante a pesquisa, esta impressão sobre o que Cassiano chama de “tino empresarial”
de fato ficou evidente e, ao mesmo tempo, parece ser estratégica para que a associação consiga
desenvolver o trabalho de atender a tantos pacientes.
Esta dinâmica de trabalho e atuação me provoca a pensar sobre uma questão que pontuei
anteriormente sobre a formação da Liga Canábica e a falta de participação de mais mães e pais
atuantes e presentes nas reuniões e demais atividades daquela associação. Aqui, embora eu não
tenha acessado informações sobre quem são os associados da ABRACE, por uma questão de
privacidade do banco de dados da associação, que me permitissem traçar um perfil dos
pacientes, uma das possibilidades interpretativas desta não-participação direta de muitas
famílias, também no caso da ABRACE, já que todo o funcionamento depende de funcionários
contratados, é perceber que os filhos e/ou outro membro da família adoecidos, necessitam de
atenção em tempo integral e muitos cuidados, dificultando que seus responsáveis e cuidadores
possam se dedicar a outras demandas como, por exemplo, uma mobilização coletiva. Neste
sentido, é compreensível que as famílias desses pacientes tenham interesse pelo acesso e
utilização de opções terapêuticas eficazes, como a maconha vem mostrando ser, mas não
podem, ou não conseguem, ou não querem, despender tempo com a reivindicação deste direito.
Portanto, ter acesso através da produção da ABRACE se torna uma possibilidade mais viável e
realista para a maioria delas, pois, não esperaríamos que mães, pais ou o responsável pelo
241
familiar adoecido deixa de cuidá-lo para dedicar-se a trabalhar durante expediente comercial
nas funções administrativas, de cultivo e acolhimento, como funciona a ABRACE.
Tanto é que, ao associarem-se a ABRACE, as famílias passam a ser parte desta
organização, como beneficiários e financiadores, concordando com a sua forma de organização
em troca dos benefícios e da segurança de receber um produto que tem demonstrado eficácia
por um custo mais acessível que a importação.
Portanto, se a atuação da ABRACE corrobora para os avanços sobre o uso terapêutico
da maconha no Brasil, significa que estas famílias associadas a ela, também fazem parte deste
protagonismo, da forma como lhes é possível, através da manutenção da associação. E para
atender à esta demanda crescente, de fato a organização da ABRACE precisa funcionar
meticulosamente como uma fábrica responsável por todas as etapas de produção, como busquei
demonstrar.
Também é preciso apontar que o fato desta ser a única associação no Brasil com
permissão legal para realizar este trabalho, significa dizer que ela serve de modelo para outras
entidades sociais que queiram fazer o mesmo, sobretudo porque a ABRACE vem aperfeiçoando
seu processo de produção e representa uma iniciativa coletiva que não corresponde a um modelo
industrial, ao contrário, pode ser entendida como um modelo próximo ao idealizado pela Liga
Canábica, em que organizações sociais tenham o direito de cultivar e extrair coletivamente os
óleos para uso terapêutico – independentemente de ser operado por funcionários ou pelos
próprios pacientes e suas famílias.
Este é, inclusive, um dos modelos de regulação já em vigor, adotado pelo Canadá há
quase vinte anos, através de um programa oficial da Health Canada de acesso à Cannabis para
uso terapêutico, o Medical Marihuana Purposes Regulation, que inicialmente limitou as
doenças para as quais era possível prescrever Cannabis, mas abandonou este tipo de restrição
com o objetivo de reduzir barreiras de acesso aos tratamentos. Lá, de acordo com os termos
estabelecidos pelo programa, o paciente possui quatro vias de acesso orientadas pelo princípio
de acessibilidade: o auto cultivo, cultivo por terceiros, compra de uma empresa via internet e
dispensários (ROBAINA et all, 2019). Portanto, em comparação ao modelo canadense,
podemos vislumbrar o modelo associativista como uma possibilidade viável de acesso a
maconha terapêutica, como a ABRACE vem fazendo.
242
específico, é possível perceber que os modelos de associativismos descritos até aqui constituem
possibilidades de engajamento e contribuição social para uma demanda que pode ser viabilizada
por vários caminhos, como o exemplo canadense nos permite ventilar. E, considerando que a
principal questão demandada sobre o uso terapêutico da maconha trata das formas de acesso
aos derivados da planta, produzidos com esse fim, é possível que mais de uma forma seja
estabelecido dentro de uma regulação, como o programa canadense detalha.
É fato que, no Brasil, a indústria farmacêutica está presente neste campo de disputas,
com pelo menos um produto já disponível nas farmácias, representando um modelo que parece
aos poderes públicos mais “seguro”, isolando e sintetizando substâncias presentes na maconha.
Por outro lado, as demandas coletivas não são atendidas por este único meio, tanto em razão do
alto custo destes produtos, quanto pelo saber desenvolvido na prática por famílias que tem
comprovado a eficácia dos fitoterápicos integrais da planta, que pressupõe a manipulação da
maconha em cultivos domésticos ou coletivos de mais fácil acesso aqueles que desejam se
dedicar e ter o controle sobre este processo de produção. Porém, a divergência de interesses e
as possibilidades de acesso dependem dos poderes públicos para se tornarem legais e
regulamentados ou não, como veremos no capítulo seguinte.
243
6º. CAPÍTULO: SAÚDE, PESQUISA, MEDICINA E DIREITOS
Como vimos até aqui, órgãos e instituições do Estado brasileiro, envolvidos na demanda
por saúde foram acionados pela sociedade civil organizada, no entanto, o desenvolvimento
desta pesquisa mostrou que, além dos órgãos regulatórios e jurídicos diretamente envolvidos,
outras interações e parcerias com Instituições públicas, que tem interesse ou possibilidade de
contribuição no tema, também somaram forças no endosso, fortalecimento e credibilidade do
movimento em defesa do uso medicinal da maconha na Paraíba de forma relevante e, por isso,
precisam ser inseridos como parte do tema aqui abordado. Por outro lado, entidades médicas,
jurídicas e governamentais se contrapõe à demanda social e dificultam a legalização e
regulamentação desta possibilidade terapêutica, como trataremos agora.
Na tentativa de definir os contornos que delimitam o que é o Estado, de que forma ele
se concretiza e os limites que o distinguem da sociedade, Timothy Mitchell (1999) sugere que
Estado e sociedade não podem ser pensados de forma isolada um do outro, embora devam ser
distinguidos. Para este autor, o Estado não pode ser entendido como entidade independente, que
apenas se efetiva em seus processos e políticas governamentais em relação com a sociedade.
No mesmo sentido, Michel Foucault (1979), ao abordar as relações de poder e formas
de controle, definiu o Estado como “uma realidade compósita e uma abstração mistificada, cuja
importância é muito menor do que se acredita. O que é importante para nossa modernidade,
para nossa atualidade, não é tanto a estatização da sociedade, mas o que chamaria de
governamentalização do Estado” (FOUCAULT 1979, p. 292), alertando para a importância da
dimensão concreta do Estado, que se efetiva através das políticas governamentais da
administração pública, muito mais do que do seu caráter abstrato.
Em direções opostas, Foucault e Mitchell dedicam-se a problematizar as formas como
o poder opera na sociedade. Enquanto o primeiro está interessado em pautar sua análise no
micropoder, ou seja, na forma como o poder perpassa de forma transversal entre os indivíduos,
o segundo dedica-se ao papel estrutural que o poder desempenha entre as instituições, no caso
o Estado, e como emana para a sociedade através das políticas governamentais. Neste ponto de
conexão entre os planos estrutural e social, ambos concordam que estas instâncias se
244
influenciam na consolidação de padrões culturais, morais e legais. Enquanto o Estado institui
regras de forma burocrática e legal, a sociedade as materializa em valores, moralidades e
comportamentos. Dessa forma, seguimos a proposição de Mitchell em considerar Estado e
sociedade como instâncias diferentes, porém complementares, pois, tanto as práticas sociais são
capazes de impulsionar mudanças estruturais, como leis e políticas do Estado moldam os
padrões sociais.
Na proposta que Mitchell adota a respeito do Estado, vale considerar a dupla concepção
entre Estado-sistema e Estado-ideia como proposição interessante do ponto de vista das práticas
governamentais envolvidas. Enquanto o Estado-ideia se caracteriza pela abstração mistificada
da qual fala Foucault, a proposta de Estado-sistema se materializa nas instituições e leis que
regem a vida social através de mecanismos de coerção e normatização que, de acordo com
Foucault, se dão pelo poder disciplinar e biopoder, onde a disciplina é “um tipo de poder, uma
modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de
procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma física ou uma anatomia do poder,
uma tecnologia” (Foucault 2001, p. 177) que se concretiza nos corpos dos sujeitos através de
técnicas que tem por objetivo docilizar os indivíduos, ou seja, torna-los úteis e adequados as
normas sociais. Por seu turno, o biopoder aplica-se na vida coletiva, nas formas de controle e
regulação social sobre os processos populacionais, como, por exemplo, as políticas de saúde
que visam o controle de natalidade, campanhas massivas de vacinação contra a proliferação de
doenças ou a melhoria da qualidade de vida para assegurar maior expectativa de vida. Ambos
os conceitos compartilham do intuito de normatização social, atuando em frentes
complementares: enquanto o poder disciplinar é inscrito no indivíduo, de modo corporificado,
o biopoder, ou biopolítica, alcança a dimensão coletiva de regulamentação social massificada,
sobretudo através de políticas governamentais de controle. O entendimento de Foucault sobre
o papel político do Estado é direcionado para a maneira como as instituições políticas cuidam
dos cidadãos, porém, esta orientação possibilita direções opostas já que, ao mesmo tempo em
que a biopolítica afirma uma política da vida, no sentido de proporcionar cuidado, preservação,
longevidade, etc., indica também a atuação de uma política sobre a vida, enquanto vida
controlada e submetida ao biopoder e que não necessariamente será conduzida para a garantia
de condições satisfatórias de atenção aos indivíduos. Comparado ao poder soberano, definido
por Foucault como o regime de deixar viver e fazer morrer, o biopoder se estabelece em termos
de fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT 1977). Para tanto, é necessário considerar que a
elaboração de políticas sobre a vida, das biopolíticas sobre as quais fala Foucault, se dão de
245
forma particular a depender de contextos históricos e sociais específicos, o que significa que
distintos países, como cargas históricas e culturais diferentes, manterão diferentes meios de
controle e técnicas sobre a vida das suas populações.
A abordagem de Didier Fassin (2008, 2009, 2011) é significativamente influenciada
pela teoria de Foucault e, a partir dos seus conceitos, também entende o Estado como instituição
orientada para normatizar a sociedade. Ao tratar das políticas públicas de saúde na África do
Sul direcionadas à população portadora do vírus HIV, Fassin não se detém a problematizar o
caso a partir dos conceitos de biopoder ou poder disciplinar, no entanto, este autor coloca a
situação de saúde concomitante a diversos outros fatores que têm significados mais amplos para
a sociedade sul africana, como a discriminação racial, as baixas condições de higiene,
saneamento e saúde de uma parcela desprivilegiada da sociedade, e conceitua tal situação como
bio-desigualdades (“bio-inequalities”). É esta parcela que é afetada de forma grave pela AIDS
e não tem acesso ao tratamento adequado. Nesse sentido, as colocações do autor convergem
para os conceitos de Foucault ao situar estas populações em condições vulneráveis sob a gestão
da administração pública e suas políticas sobre a vida, ou seja, pela forma como questões
estruturais, balizadas pelas políticas governamentais, influem vida dos indivíduos.
Concomitante a interpretação do biopoder que opera na formulação das políticas
governamentais, Fassin relaciona a influência de princípios morais como um fator importante
na determinação dessas políticas direcionadas às populações desprivilegiadas, já que são estes
princípios que orientam as formas de segregação e os preconceitos transmitidos a esses
segmentos sociais. Em sua análise, o autor problematiza que os princípios morais que orientam
os preconceitos contra os portadores da doença, também os distinguem em termos de raça e
condição social. A soma destas discriminações seria fundante para a forma como as políticas
governamentais são elaboradas e disponibilizadas para estas populações. Tais proposições
embasam o conceito de bio-desigualdades formulado por Didier Fassin, que nos interessam do
ponto de vista das questões de saúde e serão retomados no item 6.4, quando tratarei das
tramitações jurídicas e legais pelo acesso aos derivados da maconha para fins terapêuticos.
Também parcialmente amparadas pela abordagem foucautiana e partindo de pontos de
vista semelhante aos de Fassin, os esforços de Veena Das e Deborah Poole (2004) em definir
as formas de ação do Estado e suas margens, se colocam como uma visão interessante sobre as
formas que o Estado intervém na vida social e os limites que ele estabelece, aos quais também
está condicionado. As autoras citam diversos contextos em que a atuação do Estado se dá de
forma parcial, imprecisa ou mesmo é inexistente em função dos seus limites de intervenção
246
social, territorial e legal. Das e Poole, através de situações diversas, conseguem definir algumas
questões substanciais para problematizar esta relação entre Estado e sociedade, sobretudo
através das suas funções ordenadoras, limitações, incongruências e da marginalização de
determinados segmentos sociais.
Como primeiro ponto comentado por Veena Das e Deborah Poole (2004) que me
interessa recuperar, é o uso legítimo da força pelo Estado, através dos poderes militares, para
garantir a ordem social, manter a vigilância e, quando necessário, intervir no descumprimento
da lei. Das e Poole recorrem aos escritos de Max Weber para conceituarem que,
O monopólio do uso da força pelo Estado, ou por outros tipos de organização quando
prescrito por ele, é para Weber tão essencial na constituição do Estado quanto sua natureza de
jurisdição obrigatória e constante. De fato, a legitimidade do uso da força se dá enquanto braço
ativo do ordenamento jurídica para a vigilância e o cumprimento das leis na ordem do cotidiano
social. Para as autoras, esta questão é primordial, pois o controle sobre o cumprimento da lei e
da ordem social estabelece os limites entre o que deve ser considerado como parte do Estado e
o que deve ser excluído dele. Isso vale para o uso da força em contextos de guerra, mas também
no uso da violência policial.
Esta forma de intervenção governamental é problemática se considerarmos, no caso do
Brasil, por exemplo, que as forças policiais, uma das instâncias mais expressivas da
administração pública, age direta e principalmente em periferias de forma violenta e
direcionada aos segmentos sociais desfavorecidos, vitimando milhares de pessoas por ano e
ainda assim é considerada legítima pelos órgãos da justiça.
No entanto, como comentado por Fassin, há o fator moral presente também na forma e
no direcionamento da força, que permite que o abuso desta ferramenta seja tolerado e até mesmo
positivado pelas instâncias jurídicas do Estado. Nesse sentido, Das e Poole entendem que “los
hombres cuyas habilidades para representar al estado, o hacer cumplir sus leyes, están basadas
en el reconocimiento de la impunidad de los mismos para moverse entre la apelación a la ley y
247
las prácticas extrajudiciales” (DAS E POOLE 2004, p. 29), o que os coloca em posição
privilegiada diante das normas estabelecidas.
Outro sentido atribuído por Das e Poole à proposta de estabelecer as margens do Estado,
diz respeito as formas de poder exercidas sobre os corpos, assim como conceituou Foucault
sobre o poder disciplinar e biopoder, e seus mecanismos de controle sobre os indivíduos e a
sociedade. Para as autoras, a concepção de margens, nesta perspectiva, reside entre os corpos,
as leis e a disciplina, pois o poder soberano do Estado não é efetivado apenas sobre territórios
e esferas coletivas, mas está sendo concretizado nas formas de controle médicas que
estabelecem padrões de normalidade em oposição a quesitos patologizantes. O uso de
substâncias psicoativas ilícitas se configura como uma forma de controle que nos fornece a
dimensão precisa entre normalidade/anormalidade, legalidade/ilegalidade, pois, entre tantas
substâncias lícitas, seja de uso médico (fármacos), alimentar (açúcar, cafeína) ou lúdico (álcool,
tabaco) amplamente aceitas socialmente e utilizadas em larga escala, que provocam alterações
metabólicas e tem poder viciante, as condenadas pela lei como ilegais (maconha, cocaína, LSD,
etc.) são alvo de recriminação legal e moral (CAMPOS, 2013).
Assim como nas questões envolvendo o uso da força de forma legítima unicamente pelo
Estado, nas formas de controle exercidas sobre o corpo, é evidente a dimensão moral presente
nestas estratégias de intervenção do Estado, através de políticas governamentais que refletem
padrões normatizados da vida social. A conceituação de Michel Foucault sobre as formas de
controle individuais e coletivas, como já foi colocado, se efetivam nas normas sociais acatadas
massivamente pela sociedade em forma de valores e práticas.
A ordem jurídica e legal é um dos pilares cruciais que estabelece estas normas sociais,
demarcando os preceitos básicos de determinada cultura a partir de um conjunto burocrático de
regras reunidas sob forma de lei. Porém as normas estabelecidas burocraticamente pela
administração pública não têm sua aplicação restrita aos poderes legais. É importante perceber
que elas passam a ter status de verdades absolutas que, reafirmadas socialmente, interagem na
contínua manutenção social da normatividade estabelecida. Por um lado, se “as regras do direito
delimitam formalmente o poder, por outro, os efeitos de verdade que este poder produz,
transmite e por sua vez reproduzem-no. Um triângulo, portanto: poder, direito e verdade”
(FOUCAULT 1979, p.278). Nos termos foucaultianos, esta é mais uma condição estabelecida
pela biopolítica que se reproduz em diferentes direções. Há que se considerar como a instituição
governamental implica na sociedade. Suas postulações desdobram-se em valores morais
248
socialmente compartilhados que definem populações, grupos sociais, práticas ou
posicionamentos específicos em termos de sua adequação ou não à normatividade.
Aqui, mais uma vez, como fazem as ciências sociais ao longo da sua existência, recordo
que as construções sociais são culturalmente construídas, assim como todos os aspectos da vida
em sociedade, desde suas instituições mais rígidas até as concepções que pensamos ser
universais ou individuais, da noção de Estado aos valores morais e práticas sociais. Sequer a
vida, em si mesma, tem valor natural ou igual entre diferentes indivíduos. E quanto ao valor da
vida, não me refiro ao seu valor entre diferentes espécies – o que também é fato. Mesmo a vida
humana tem diferentes valores perante a lei e a sociedade a depender de quem é o indivíduo.
Seu valor estará condicionado ao seu papel e inserção social, e isso diz muito sobre a moralidade
presente em determinada sociedade. Entre os indianos, por exemplo, as diferentes castas
atribuem valor aos Brâmanes, enquanto subjugam os Dalit, baseados em valores religiosos que,
embora não sejam mais determinados em termos legais, implicam diferentes valorações morais
reais e concretas naquela sociedade.
Em termos da administração pública e de políticas governamentais, as distinções
valorativas se dão em outros termos. A biopolítica que serve para gerir a vida social no sentido
de prover as condições necessárias à vida normatizada daqueles que estão socialmente
integrados e que, por isso suas vidas são valorizadas, é também formada por mecanismos de
abandono aos que são julgados como sem valor e que, portanto, “se dejan morir” (DAS E
POOLE 2004, p. 40). Não é difícil perceber essa dupla valoração.
O uso medicinal da maconha no Brasil é mais um exemplo das formas como o biopoder
age sobre a vida dos indivíduos, por um lado limitando seu acesso à saúde (nos termos de fazer
viver e deixar morrer) e, por outro, criminalizando práticas que poderiam garantir melhor
qualidade de vida a uma parcela da sua população. Mesmo o acesso a este tratamento e suas
possibilidades de cultivo, uso e reivindicação deste direito são perpassados por características
sociais e econômicas dos interessados que os permitem acessar tais possibilidades, o que não
seria possível para outros grupos sociais menos privilegiados social e economicamente.
Entender o Estado nas suas ramificações de poder a partir desta complexa rede de
influências, implica percebê-lo, através da administração pública e seus órgãos e instâncias,
como dotado de moralidades e valores a serem expostos e reproduzidos socialmente. Para tanto,
é necessário entender que, por administração pública devemos considerar além das suas esferas
governamentais – municipal, estadual e federal –, sua morfologia, operações cotidianas – nas
práticas estruturantes e estruturadas pela história institucional e pela interação de seus
249
funcionários – e seus aspectos normativos (VIANNA 2013, p. 18). Este amplo entendimento
sobre as ramificações do Estado na sociedade através das instâncias da administração pública e
seus agentes, nos permite perceber a infinidade de definições normativas a que uma sociedade
está condicionada e com as quais opera, não apenas em termos legais, mas sobretudo de forma
prática entre os indivíduos pois, como consideraram Veena Das e Deborah Poole, “las personas
representan la ley, la burocracia y la violencia, son las que juntas constituyen el movimiento
del estado por detrás del reino de lo mítico, para unirse en la realidad de la vida cotidiana.”
(DAS e POOLE 2004, p. 30).
Se as autoras buscaram definir o Estado nos termos do que o constitui e das suas margens
enquanto aquilo que foge ou deforma sua concepção, vale considerarmos que os aspectos
estruturais sob os quais elas constroem sua argumentação não são apenas legais, mas operam
sobretudo dentro do território social e político em que de fato se dão. As proposições conceituais
dos autores aqui recuperados nos fornecem moldes para traçar contornos teóricos que facilitam
a compreensão desta estrutura abstrata que é o Estado, porém, nos interessa sobretudo sua
operacionalização real, que se estabelece através de políticas governamentais efetivadas no
cotidiano social. Nesse sentido, é a administração pública que consolida, através da
implementação dessas políticas, os preceitos estruturais que configuram o Estado em sua
relação com a sociedade. Logo, devemos perceber “o papel da administração pública enquanto
nexo articulador/normatizador/codificador entre costumes heterogêneos, constituindo
[inclusive] moralidades” (SOUZA LIMA 2002, p. 16) e, por consequência, a forma como estas
questões estão intrinsecamente relacionadas.
Partindo deste entendimento, este capítulo trata das instâncias do Estado brasileiro, suas
políticas governamentais e da administração pública do estado da Paraíba, direta ou
indiretamente, relacionadas à demanda por saúde através do uso terapêutico da maconha e seus
avanços. Para tanto, os órgãos e instituições já citados ao longo deste trabalho serão abordados
diretamente, indicando sua participação e importância no tema em questão.
Os capítulos anteriores foram dedicados aos principais agentes desta mobilização pelo
uso medicinal da maconha na Paraíba, porém, como vimos ao longo do texto e pode ser
identificado na realização da Audiência Pública na Assembleia Legislativa da Paraíba, a
mobilização existente, os avanços já alcançados e aqueles ainda almejados e em processo de
negociação e intervenção jurídica, só são possíveis porque as associações organizadas na
Paraíba buscaram apoio e parcerias com outros atores sociais.
250
Portanto, passo agora para uma análise mais minuciosa da atuação exercida pelos
Profissionais Engajados que, como veremos, tem significativa importância neste campo de
disputas. São atores sociais que operam em suas áreas de formação e atividade profissional e
dão respaldo aos propósitos da Liga Canábica e da demanda pelo uso terapêutico da maconha
na Paraíba. Estas pessoas não estão envolvidas apenas profissionalmente com esta causa, mas,
como veremos, intercalam questões pessoais em suas atividades de trabalho em prol de avanços
para o uso terapêutico desta planta e por isso estão incluídos aqui.
Em seguida, trataremos do envolvimento dos órgãos governamentais diretamente
relacionados as reivindicações pelo uso terapêutico da maconha, através das regulamentações
e processos jurídicos, que têm sido chamados a posicionarem-se diante das demandas sociais
sobre o tema.
Como pude perceber ao longo desta pesquisa, e como era bastante enfatizado pelos
membros da Liga Canábica e também na ABRACE, o apoio ao uso terapêutico da maconha por
profissionais de diversos segmentos sempre foi valorizado e incentivado pela associação. Em
busca de embasamento científico e técnico sobre essas terapias, profissionais da área da saúde
são parceiros importantes para a legitimidade não apenas do uso medicinal da maconha, mas
também para a demanda jurídica que estava sendo mobilizada. Neste quesito, destaco a
participação de UFPB, através de pesquisas realizadas por uma professora do Departamento de
Fisiologia e Patologia e dos médicos prescritores.
Em busca de apoio, uma rede de docentes da Universidade Federal da Paraíba foi
articulada para iniciar estudos clínicos e acompanhar as crianças que estavam sendo tratadas
com óleos de maconha no estado, porém esta inserção no ambiente acadêmico não se
estabeleceu na primeira tentativa.
Júlio havia feito psicologia na UFPB e no curso de Psicologia ele teve contato
com alguns professores que trabalharam com saúde mental e, em conversas,
alguns professores se interessaram em pesquisar; criou-se, ainda em 2014, um
grupo que, na época, tinha cerca de 15 pesquisadores, da área de Farmácia, de
Biomedicina, de Nutrição, Medicina, do CCJ [centro de ciências jurídicas]
também, eu sei que tinham uns quinze pesquisadores, todos da UFPB; e
começamos a fazer reuniões com essas pessoas (que ocorriam na OAB, que
estava nos apoiando no início) e, ficaram de traçar uma linha do que seria o
251
trabalho na UFPB (já muito interessados e tudo), e foi interessante que, nessa
semana, a gente meio que firmou parceria e a começar a escrever um termo
de cooperação da UFPB com a Liga Canábica, e que na época nem era Liga
Canábica, foi exatamente nessa época que surgiu a necessidade de ter um
registro, de ter uma associação (até para poder fazer essas parcerias), aí a
gente, nessa caminhada (mais uma vez com a imprensa, que chegou junto),
teve uma semana de muita divulgação, dessa movimentação, desses
professores, no sentido de estudar a maconha na UFPB; e a exposição foi
muito grande, algumas matérias falavam “Professores da UFPB vão estudar
maconha” e, ao invés disso ajudar, muitos professores recuaram com medo.
Eu escutei de uma professora que disse que os professores ficaram com medo
de serem associados à maconha, “o professor da maconha”, “o professor
maconheiro”, resultado: esses professores deram tanto para trás que chegou
ao ponto da gente ter marcada já uma agenda de reuniões e a gente ficou uma
hora e meia em um estacionamento da UFPB com os pacientes, as mães com
os meninos nos braços, e não apareceu um professor para dizer “se dirijam à
sala tal, que a reunião vai ser lá”, abandonaram geral. Só ficou essa professora
que tinha sido professora de Júlio no curso de psicologia, ainda tentando
alguma coisa, mas veio sozinha. Quando a gente elaborou o projeto de
pesquisa que ela foi registrar na plataforma, lá no MEC, já havia o registro de
uma pesquisa na UFPB, de alguém estudando a mesma coisa, Cannabis para
epilepsia em crianças (canabidiol, todo mundo só falava em canabidiol); aí,
quando fomos saber desse projeto que já estava registrado, era da professora
Katy [Albuquerque]. (Sheila Geriz, entrevista, outubro de 2019)
Apesar da primeira tentativa frustrada de ter a UFPB como uma parceria importante, em
seguida e por outros caminhos, a Universidade tornou-se um apoio importante para o
movimento pela maconha medicinal na Paraíba, como Sheila relata, através da Professora do
Departamento de Fisiologia e Patologia, Katy Lísias Gondim Dias de Albuquerque que, apesar
de desconhecer a mobilização das associações, teve um motivo pessoal para focar seus projetos
de pesquisa no uso medicinal da maconha.
252
trazer um resultado bom pra ela”, eu imaginei, né? Aí foi quando é nessa
busca, eu cheguei à ABRACE, cheguei à Liga, tudo na internet.
Aí eu disse: “nossa, tem... essas coisas estão acontecendo aqui?” E eu não
sabia. Eu não tinha ideia. Aí foi quando a gente começou a entrar em contato.
Eu conheci o Cassiano. Conheci Júlio. Aí Júlio falou pra mim: “Katy, a gente
já tava em contato com uma professora da universidade, mas aí não deu certo”;
eu disse, “nossa, então vamos tentar fazer essa parceria de novo pra ver se as
coisas acontecem”. Aí eu entrei em contato com Cassiano também, né? Da
ABRACE. Aí pedi pra ele... falei pra ele a história dela. E ele disse: “Katy,
você quer testar?”. Aí ele me deu uma amostra de um óleo que eles estavam
produzindo. Eu disse: “quero, a gente já tentou de tudo”.
Aí ele me deu a amostra. Foi quando eu usei. Natália! No... usei no sábado...
não esqueço nunca. Ela tinha em média quarenta e cinco à cinquenta crises
por dia. Fora todos os outros comprometimentos. Aí quando a gente utilizou,
no dia seguinte: ela já teve uma redução de cinquenta porcento das crises. Em
vinte e quatro horas de uso. Aí aquilo me chamou a atenção, né? Aí eu, meu
irmão – que é o pai dela –, minha cunhada, ficamos todo mundo ficou super
feliz. E a gente continuou o tratamento. E ela começou a ter ganhos muito
perceptíveis: ela começou a segurar o pescoço; começou a acompanhar a gente
com o olhar. Então, coisa assim que a gente nota mesmo, né? Sem contar que
as crises de convulsão diminuíram bastante. Então, tudo começou com isso.
Aí eu imaginei: “poxa, então se eu tô aqui, dentro da universidade, tô achando
o produto que tá beneficiando a minha sobrinha, porque não estudar pra chegar
a um resultado que beneficie outras pessoas?”. Aí eu montei um projeto de
pesquisa, com esse produto, que foi o acompanhamento farmacoterapêutico
em crianças com epilepsia refratária que usavam produtos de cannabis.
Porque, quando eu montei esse projeto, isso foi uma coisa que eu também
verifiquei com a minha sobrinha. Então, isso foi meu compromisso com ela.
Hoje ela não tá mais aqui. Eu disse: “não, você não tá. Mas os seus amiguinhos
ainda estão! Então, titia vai lutar por todo mundo até o final. Esse foi o meu...
minha missão com ela!”. Então, tudo começou por aí. (Katy Albuquerque,
entrevista, outubro de 2019.)
Foi interessante saber que, assim como os demais participantes da Liga Canábica, o
envolvimento com o tema da maconha medicinal para Katy Albuquerque, também teve uma
motivação pessoal que a fez, em sua área de trabalho, iniciar uma pesquisa em farmacologia
com este foco em 2016, intitulada “Estudo do efeito do canabidiol em pacientes com convulsões
graves resistentes à terapia convencional”.
Nesta pesquisa, a farmacêutica e sua equipe de discentes acompanharam, através de
consultas mensais, 20 pacientes que já faziam uso de óleos de cannabis. Neste acompanhamento
eram passadas instruções e solicitado aos responsáveis que preenchessem um diário de crises
que deveria relatar o quadro sintomático dos pacientes e suas alterações. Entre os pacientes
selecionados e acompanhados pela pesquisa estavam Pedro Américo, filho de Sheila Geriz e
Júlio Américo, Ana Patrícia Fernandes, filha de Djanira Fernandes, e Marina Carvalho de
Souza, filha de Clarissa Carvalho. Porém nem todos os pacientes residiam em João Pessoa.
253
Porque todos os pacientes, obrigatoriamente, tinham que ser associados da
ABRACE. Porque senão não passava no Comitê de Ética. E como ela tem essa
autorização, então a gente acompanhava os pacientes da ABRACE. Mas a
ABRACE tem paciente do Brasil inteiro, né? Aí, a gente pediu, perguntou
quem queria participar. Os pacientes que quiseram participar, eles assinaram
um termo de consentimento. E a gente explicava o projeto, um a um, desses
pacientes. Os daqui a gente ia na casa deles, e muitos vinham até aqui no
laboratório, pra fazer essa consulta mensal. Os de fora a gente fazia uma
chamada de vídeo, a gente fazia uma ligação. Mas todo mês a gente entrava
em contato com as famílias. (Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
254
encontrou pacientes que estavam tomando psicotrópicos, há muitos anos, e
não tinham feito mais um exame pra saber como é que tava o fígado, como é
que tava o rim. Pra alguns profissionais, na cabeça deles, eu acho, né? Eu não
sei. Tipo assim: “não tem cura, já tá tomando muito [remédio], então vamos
deixar pra lá”. E a gente não via dessa forma, sabe? Eu disse: “Caramba, como
é que esse paciente tá tomando esse medicamento aqui, que ataca o fígado?
Tá tomando há mais de dois anos, e não faz um exame pra avaliar o fígado?”.
Na minha cabeça isso era um absurdo! Mas não faziam, né? Aí, eu: “Poxa, eu
não vou questionar o porquê não fazia. Eu quero fazer. Eu quero o resultado.
Então se não fazia, agora vai fazer”. Aí eu solicitava os exames no meu
relatório. Mandava pro médico, ele aceitava, tá? E mandava na guia, o
paciente fazia o exame, trazia o resultado pra mim e mostrava pra ele também.
Então, a gente já pegou crianças com taxas de transaminases hepáticas, que
são enzimas que avaliam a funcionalidade renal, elevadíssimas. A gente já
sugeriu também alguns medicamentos para se tratar isso. Agora, tudo a gente
sugeria no relatório, mandava pra ele, ele acatava ou não. Mas graças a Deus,
cem porcento acatou. E as crianças começaram a ter uma melhora.
Entende? Então não é só usar. A gente tem que saber como usar e quando usar.
Então quando a gente afastava um pouquinho os horários [de administrar o
óleo]: a criança já melhorava muito. Então, qualquer sugestão, qualquer
conduta que a gente fazia, com o apoio dos médicos, a criança melhorava
absurdamente! Então, esse foi o nosso papel como farmacêutico nesse projeto
também. Não foi só acompanhar, a gente detectou o problema e sugeriu
mudança. (Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
Eu entrei em contato com alguns médicos e eles chegavam pra mim: “não, a
gente não acompanha porque não existe estudo”. E era sempre a mesma
conversa. Aí eu disse: “poxa, se não existe estudo, a gente faz o estudo!”. Aí
eu montei esse projeto, e esse projeto ele precisava muitas vezes do médico
pra solicitar os exames, porque nessa amostra de pacientes que aceitou
participar do meu estudo... foi quando a gente entrou em contato com o Júlio,
com Sheila. E Pedrinho também fez parte da pesquisa. Então assim, uma das
coisas que eu mais vislumbrava era: “eu tenho que fazer com que esses
255
médicos, eles comecem a ver, que os estudos estão acontecendo – e aqui em
João Pessoa! –, e que muita gente agora comece a perceber que realmente traz
um benefício e coloque a ignorância um pouquinho de lado. Então a gente
cadastrou as crianças, começou a acompanhar, eu comecei a quantificar,
porque até então, os pais chegavam pros médicos e diziam: “olha, meu filho
não tá convulsionando mais”; ou então, “reduziu muito a crise convulsiva”.
Mas era de boca. Então o médico não tinha uma estatística, não tinha um
gráfico, não tinha nada! Né? Os pais chegavam com essa informação. Aí eu
comecei com esses meus pacientes. Eu montei um fichário. Cada um tinha o
seu diário. E a gente, junto com os alunos, pegou aquele diário de crise do
antes e do depois. Quantificou. Fez uma análise estatística. E as crianças
levavam nas consultas. Então os médicos recebiam aquele gráfico e dizia:
“Nossa! Realmente reduziu! E tem aqui uma estatística em cima!”. Então eles
já tinham um olhar científico em cima daquilo que os pacientes não sabiam
dizer pra ele. Aí eles começaram a abrir. Começaram a aceitar. A abrir a
mente. Então eu fiquei muito feliz em poder participar dessa construção
também, sabe? Aí a gente terminou esse projeto. Aí dizia: “não, esse negócio
não pode parar por aí!”. Aí a gente começou a ver outras perspectivas, outras
coisas, a divulgação. (Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
Considerando o que já foi citado anteriormente, desde o princípio desta demanda social,
a resistência dos profissionais da medicina em assumirem a responsabilidade da prescrição de
terapias com cannabis e do acompanhamento clinico destes pacientes se mostra como um
entrave gigantesco para os avanços da implementação destes tratamentos para mais pessoas.
Como Katy relata, desenvolver pesquisas que deem aporte cientifico para estes profissionais
legitimarem sua conduta médica é de grande importância para que avanços nesta direção
possam ser efetivados no Brasil.
Este primeiro projeto desdobou-se em outro, no ano seguinte, intitulado “Avaliação do
impacto do acompanhamento farmacoterapêutico em pacientes com convulsões graves
resistentes à terapia convencional que utilizam canabidiol”, no qual foram feitas as análises do
acompanhamento realizado. Embora os resultados desta pesquisa ainda não tenham sido
publicados, ela relata as principais descobertas
Olha só. Algo que me chamou muita atenção, foram as reduções de crises
convulsivas. E essas reduções de crises convulsivas foram acompanhadas à
redução de medicamento psicotrópico. Né? De anticonvulsivo clássico. Então,
isso foi algo que me chamou a atenção demais! Então, você reduz crise
convulsiva e tira o medicamento e a criança ainda só faz melhorar! Né? Isso
me chamou atenção. Outra coisa que me chamou muita atenção no projeto,
é... foi a melhora clínica das crianças, porque não é só diminuir convulsão. As
crianças melhoram o quadro geral! Então, você vê... a cognição melhorando.
Você vê o estado motor melhorando. Você vê tudo melhorando! Às vezes
você não tem no eletro, mas na parte clínica você tem. Então, você tem que
256
explicar pela parte clínica. E isso não é um absurdo. Isso realmente acontece.
Então, isso me chamou atenção. Que nem sempre a gente tem que ficar
olhando só pro exame, pro exame de eletro, por exemplo. A clínica é
importante. Deixa eu ver mais... sim! Outro achado que eu achei muito
interessante: a gente tem uma mania (a gente que eu digo, nós brasileiros, de
uma maneira geral), a gente tem uma mania de querer exaltar muito o que vêm
de fora. E não dá muito valor ao que a gente tem aqui. De uma forma geral.
Mas o que foi que eu visualizei? Que o óleo artesanal produzido aqui, com
todas as suas peculiaridades de óleo artesanal, né? Não é uma indústria. Não
tem um controle. Tudo aquilo que envolve óleo artesanal. Ele tinha um efeito
tão bom quanto um importado, que vêm de uma indústria. Mesmo que esse
importado não seja registrado como medicamento lá fora, mas é produzido
por uma indústria. De qualquer forma tem um nível no know-how maior do
que uma ONG, vamos dizer assim. E a gente tava vendo a qualidade do
produto daqui. Tá? Isso me chamou muito a atenção. Pra gente não só dar
valor ao que vem de fora. Então assim, isso foi algo que também me chamou
a atenção. “Poxa, o artesanal funciona”. Imagina se a gente melhorar a
qualidade do artesanal! Né? A que ponto esse óleo não pode chegar? (Katy
Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
É um projeto muito maior porque ele envolve tanto pesquisa quanto extensão.
Porque do mesmo jeito que eu tinha essa falta de informação, eu vejo que
muitos profissionais de saúde também têm essa falta de informação. Então,
não adianta eu tá só dentro da universidade fazendo pesquisa, se eu não levar
informação para as pessoas, até orientar a sociedade, dizer: “olha, busque isso
aqui porque existe essa possibilidade”. Aí foi a partir disso que eu disse: “não,
a gente vai ter que criar um projeto maior”. A gente criou o PEXCANNABIS.
E o ramo da extensão é justamente esse: levar informação pra diferentes
segmentos da sociedade. (Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
Este projeto elege segmentos sociais específicos para fazer a divulgação do uso
medicinal da maconha, de acordo com a relevância que o grupo percebe como necessário e
prioritário.
75
http://www.ufpb.br/pexcannabis
257
projeto só para aluno de farmácia, medicina que só da área de saúde participa.
De jeito nenhum. Então, quando o edital abre, eu abro pra todo mundo! Então
se quiser um aluno de música. Se quiser uma pessoa, como já tive aqui, de
jornalismo. Todo mundo tem que com o que colaborar nessa temática. Aí a
gente seleciona esses alunos, e a gente vai levar a informação pra sociedade.
A gente já fez curso para os pais. Porque esses pais, das crianças que eu
acompanhava, muitas vezes, eles chegavam pra mim cheios de dúvida. “Como
é que funciona? Por quê que funciona? Por que que eles tomam esses remédios
que muitos médicos prescrevem, há anos, e não funcionam, e porque com a
Cannabis funciona tão rápido?”. Aí eu comecei a pensar: “poxa, esses pais
também precisam de informação”. Aí, o que foi que eu pensei? Eu chamei
esses pais, e pedi pra que eles colocassem as principais dúvidas que eles
tinham sobre o tema. Eles me enchiam, colocaram uma lista de dúvida,
Natália! Aí, diante dessa lista de dúvidas, eu disse: “eu vou preparar um curso
pra esses pais”. Aí, a gente criou, bolou um curso, né? Produziu esse curso.
Chamou os pais. E a gente deu uma aula sobre todas as dúvidas que eles
tinham, que eles selecionaram. E esse ano de 2019, o foco vai ser levar essa
informação, inclusive a gente já tá fazendo isso, para profissionais de saúde.
Então, a gente já foi na Unidade Básica de Saúde, no distrito, não sei se foi o
quatro, que engloba várias unidades de saúde. Então, a gente tá em um
momento de capacitação, porquê o distrito, eles têm um dia de capacitação
dos profissionais das Unidades Básicas de Saúde. Então, nesse dia de
capacitação, que juntam todos os profissionais, de várias unidades de saúde, a
gente entra. E a gente dá uma manhã de capacitação para diferentes
profissionais que trabalham nas UBSs. Então, desde o agente comunitário de
saúde, até o médico, até o enfermeiro que coordena tudo. Porque muitas vezes
o agente comunitário de saúde, é ele que tá em contato com o paciente. O
paciente às vezes nem fala com o médico. Então, nem adianta eu tá
capacitando só médico, enfermeiro, a gente tem que capacitar todo mundo. E
a gente tá envolvido nesse ano com isso. Nesses profissionais, pra levar, a
informação. (Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
Além do PexCannabis, Katy Albuquerque aprovou para iniciar em 2019, mais uma
pesquisa, desta vez um ensaio clínico, com crianças autistas, intitulado “Avaliação do efeito do
extrato de cannabis rico em canabidiol, como adjuvante terapêutico, em crianças com o
transtorno do espectro autista”, que aguarda autorização da ANVISA para começar.
258
cego, placebo controlado, que é todo um esquema. Então, pra esse sim a gente
precisa de uma autorização da ANVISA, e por isso que a gente não começou
ainda. Mas esse projeto já foi aprovado no Comitê de Ética. Já tá tudo certinho
pra começar. A gente só precisa da autorização da ANVISA. Pra gente poder
selecionar essas crianças. (Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
Além das pesquisas, Katy também é responsável por uma iniciativa pioneira na
educação em saúde voltada para o conhecimento de como a maconha atua no corpo humano76.
A partir do segundo semestre de 2019, a UFPB passou a ofertar uma disciplina optativa,
disponível para alunos dos cursos de medicina, farmácia e biomedicina, sobre o “Sistema
Endocanabinoide e Perspectivas Terapêuticas da Cannabis Sativa e Seus Derivados”. Tanto a
proposta da disciplina quanto o seu programa foram elaborados pela Professora Katy
Albuquerque, que ministrará o curso. Ela conta como e porque propôs esta disciplina
Eu acho isso primordial. Porque não adianta, por mais que a gente tenha algum
projeto de extensão, não adianta a gente tá trabalhando só na ponta. A gente
tem que fazer essa formação dentro da graduação. A necessidade já existe.
Então, esses profissionais têm que ser formados dentro da universidade
pública. Do mesmo jeito que eles são formados pra ser um médico, pra ser um
enfermeiro. Por que não agregar essa formação aqui dentro? Por que não a
gente trabalhar na base? Então foi aí que eu comecei a pensar, bolei um plano
de curso, uma ementa. Então, inicialmente a gente agregou essa ementa ao
curso de biomedicina. Faz parte do PPC do curso de biomedicina. Mas como
é uma disciplina optativa, então todas as pessoas, de diversos cursos, podem
fazer. Aí a gente ofertou pra farmácia e medicina também. Porque na minha
concepção, os médicos, os farmacêuticos, eles são os profissionais que vão
lidar com medicamentos e com pessoas, eles precisam ter essa formação, da
base. Assim como os biomédicos também. Aí a gente começou a ofertar pra
esses três cursos inicialmente. E antes de fechar... engraçado, né? Eu tinha
pensado nesses três cursos, e o pro... a disciplina tá vinculada ao curso de
biomedicina. Mas antes de fechar a minha chefe aqui no departamento disse:
“Katy, o coordenador de odonto tá pedindo dez vagas pra o curso de
odontologia da tua disciplina”. Aí eu disse: “Que maravilha! Fornece pra
odontologia também!”. Aí eu abri mais dez vagas pra odonto. Resumindo:
depois que eu disse OK, que eu fui olhar: “Pera aí. São x pra biomedicina, x
pra farmácia... A gente já tá com quase oitenta vagas!”. Pra essa disciplina.
Não sei se vai preencher as oitenta. Mas é muita gente querendo. E eu estou
muito feliz por saber que a gente tá contribuindo aqui também, pra formação
desses profissionais. (Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
76
Disponível em: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2019/08/19/ufpb-aprova-criacao-de-disciplina-sobre-
uso-medicinal-da-maconha-em-tres-cursos.ghtml. Consultado em 23/10/19.
259
Além da UFPB, apenas da Universidade Federal de Santa Catarina tem uma disciplina
intitulada “Endocanabinologia”, ministrada para o curso de medicina veterinária, mas não
direcionada à saúde humana.
A abertura da Universidade em aprovar a criação desta disciplina, única em uma
Instituição Pública de Ensino Superior, demostra o apoio que a Professora Katy conquistou a
partir das suas pesquisas e resultados. Além dos projetos concluídos e em andamento, Katy
percebe atualmente novas de possibilidades e o aumento de interessados em atuar neste campo
de pesquisa:
É preciso pontuar que esta aceitação não acompanha o tema desde a sua emergência no
Brasil, nem na Paraíba. Além da frustração inicial, relatada por Sheila, Katy também enfrentou
resistências dentro do seu departamento, por parte de colegas, que sequer queriam saber sobre
o tema ou os propósitos das pesquisas encampadas por ela.
Eu tinha colegas aqui do meu departamento, que não queria nem falar comigo
pra não serem vistos conversando comigo, porque eu era a professora da
maconha. Eu ainda sou a professora da maconha aqui da UFPB (risadas)!
Então assim, eu passava: “oi”; “oi”; era bem rápido. E eu bati muito na porta
de vários colegas. “Olha, me ajuda a estudar. Você trabalha em outra área
diferente da minha! Então, vamos tentar trabalhar da forma mais universal?
Então, se eu estudo aqui a parte de farmacologia, você faz fitoquímica, você
faz microbiologia, você faz patologia, vamos ampliar isso!” Então assim, logo
no começo ninguém queria. Agora, que já tá saindo na mídia. Que é chique
falar em maconha. Hoje é chique! Hoje é bonito! Tá no auge. Tanta gente me
procurando pra estudar, sabe? Aqueles que viravam assim o rostinho pra mim,
agora: “Katy, como é mesmo?” (risadas). “Ai, gente. Senta aqui que eu vou
explicar como é que é”. Explico. Dou sugestão de projeto. Então assim, a
minha missão, aquilo que eu disse a você, eu tenho uma missão! Vai muito
mais além de pesquisa. Muito mais além. Então se eu tenho essa missão dentro
de mim, quanto mais as pessoas quiserem estudar e precisarem da minha
ajuda, pra diferentes áreas, eu estou aqui pra isso. Então, esses que viraram
com o rostinho pra mim eu vou dizer: “não, antes você não queria saber,
porque está querendo saber agora?”. Mas eu não faço isso. “Tá. Tudo bem.
Venha cá. É assim. Faça assado”. Então, eu acho que a gente tem que aumentar
260
mesmo. Divulgar o máximo que possa. Fazer uma rede. A gente tem que fazer
uma rede. Porque um dia a coisa sai. Pra quem nem se falava, hoje já se fala
em uma regulamentação. Então, a gente já avançou muito!
Então, hoje a gente tem apoio, tanto da direção do centro, apoio do meu
departamento, quando eu submeto os projetos todo mundo entende. Quando
tem alguma dúvida, vêm falar comigo... porque antes, era assim: eu não
entendo, eu não pergunto e não aceito. Tá? Agora não. Agora, na maioria das
vezes ele é aceito de forma bem direta, porque a gente tenta escrever de uma
forma que não reste dúvida. Né? Mas mesmo assim às vezes fica uma dúvida
ou outra, porque é uma coisa clara pra mim, mas pode ser que pro relator não
seja. Aí, eles vêm, entra em contato com a gente. Então, a gente tá tendo apoio
desde o nosso departamento de fisiologia e patologia, apoio do centro, a gente
tem apoio da nossa reitora. Então, a professora Margareth [Diniz, Reitora da
UFPB] é uma pessoa que apoia muito a nossa causa. Ela me ajuda bastante!
Então, ela já chegou a bater na porta comigo: “Olha, a professora Katy tá
querendo fazer isso aqui, vamos dar uma ajuda”. Então assim, a gente não tem
recurso pra executar tudo o que eu penso. Um dia a gente vai ter, se Deus
quiser, mas ao menos assim, apoio logístico, apoio das pessoas, a gente tem.
(Katy Albuquerque, entrevista, outubro de 2019.)
77
https://sbec.med.br/bemvindo/
78
Em consulta ao site oficial do Conselho Federal de Medicina (http://portal.cfm.org.br/), é possível encontrar ao
menos 20 páginas ou link que citam o posicionamento contrário do órgão sobre o uso de derivados da maconha
para tratamentos de saúde apenas em 2019.
261
Psiquiatria, este órgão divulgou um documento intitulado “Decálogo sobre Maconha79” no qual,
sem qualquer introdução ou elaboração textual argumentativa, enumera, em uma única página,
dez itens, com no máximo quatro linhas de extensão cada um, nos quais condena
veementemente qualquer aplicação medicinal ou terapêutica desta planta, a começar pela
censura ao termo maconha medicinal, item que abre o documento.
É interessante vermos a estrutura do documento e como as afirmações são expostas
sinteticamente:
79
Disponível em: https://www.abp.org.br/post/abp-e-cfm-decalogo-maconha. Consultado em 24 de outubro de
2019.
262
Figura 21 Decálogo sobre Maconha, publicado pelo Conselho Federal de Medicina e pela
Sociedade Brasileira de Psiquiatria.
263
A divulgação deste documento certamente causou espanto e descontentamento em
pesquisadores e profissionais que, como eu, vem trabalhando neste tema e encontrado
materialidade real da eficácia dos tratamentos com óleos e outros derivados da maconha. Gerou
também revolta em pacientes e suas organizações que, além do respaldo cientifico e jurídico
que vem conquistando, vivem o dia a dia desta mudança substancial que a maconha tem
proporcionado para crianças e demais pacientes que encontraram qualidade de vida a partir o
uso desta planta.
Apesar do peso simbólico e institucional que estes órgãos carregam, a contraposição de
argumentos se mostrou necessária muitos profissionais atuantes neste contexto. Por esta razão,
dias após a divulgação do decálogo, a Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis – SBEC,
publicou um documento em resposta, intitulado “Dez coisas que você precisa saber sobre
Cannabis”, em que contra-argumenta ponto a ponto dos itens expostos pelo CFM e SBP ao
longo de 10 páginas, seguidas de outras 5 contendo 58 referências. Já na introdução do
documento, a SPEC deixa clara a sua interpretação a respeito do documento a que se contrapõe.
O que segue à esta introdução é a reprodução de cada um dos itens do decálogo, seguidos
respectivamente de um comentário elaborado pela SBEC. Apenas a extensão do documento, se
264
comparado ao emitido pelo CFM e SBP, expõe o cuidado que os redatores tiveram em explicar
suas posições, sempre referenciadas em cada um dos argumentos com numeração ordinária das
citações que estão ao final, além de gráficos também referenciados às pesquisas
correspondentes80.
Entre os argumentos articulados para contrapor os dez itens apresentados pelo CFM e
SBP, o primeiro deles, que trata sobre não existir maconha medicinal, é rebatido da seguinte
maneira: “A Cannabis é uma planta utilizada como medicamento há mais de 4 mil anos, tendo
relevante história na Índia. Israel, por exemplo, é líder em pesquisas científicas com a planta e
tem seu uso aprovado desde 1992.” E cita um artigo científico intitulado “History of cannabis
as a medicine: a review”, de autoria de Antônio Waldo Zuardi (2006), como referência, assim
como reconstruímos, na introdução e no primeiro capítulo deste trabalho, a historicidade do uso
medicinal da maconha. Neste artigo, após recapitular decádas de estudos e descobertas
importantes que embasam os conhecimentos atuais sobre a maconha, o autor encerra afirmando
que
80
Assinam o documento nominalmente, representando o SBEC, 8 membros, sendo 6 deles médicos, assim
apresentados: Ana G. Hounie, psiquiatra, Doutora pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e
prescritora de Cannabis medicinal desde 2016; Camila Sirieiro Abreu, Farmacêutica industrial, Mestrado na
Fiocruz e Especialização em pesquisa clínica na Invitare; Eliane Lima Guerra Nunes, Doutorado FMUSP,
especialista em Psicanálise Sedes Sapientiae, especialista em dependência química UNIFESP, Coordenadora Geral
da SBEC; Jackeline Barbosa, Neurologista e Médica da Família. Doutorado em Ciências Médicas – UFRJ.
Mestrado em Neurologia - FMUSP-RP. Especialização em Bioética, Pesquisa Clínica e Desenvolvimento em
Fitoterapia e Biotecnologia Vegetal, Diretora do Comitê Científico para Pesquisas Clínicas da SBEC; João Carlos
Normanha Ribeiro, médico intensivista, diretor médico da AGAPE, prescritor de 2016; Paula Fabrício, psiquiatra,
Mestranda pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca ENSP/ FIOCRUZ e prescritora de Cannabis
desde 2018; Rafael Evangelista Ladeira - Presidente do Instituto de Pesquisas Científicas e Medicinais das Plantas
- Aliança Verde e Membro Honorário da SBEC; Wilson Lessa da Silva Jr, psiquiatra, professor UFRR, prescritor
desde 2017.
265
Ao longo das 10 laudas do documento emitido publicado pela Sociedade Brasileira de
Estudos da Cannabis, que pode ser conferido na íntegra na sua página virtual81, a construção
textual, adequada às práticas acadêmicas, demonstra uma argumentação embasada em
pesquisas e na prática de médicos que acompanham factualmente casos clínicos.
Como podemos perceber, o posicionamento do CFM e da ABP não expressa posição
unânime entre os profissionais da área. Neste contexto de tentativas de desmistificar, aplicar
tratamentos e possibilitar que dadas científicos e clínicos embasem as decisões e posições não
apenas do CFM, mas dos profissionais da medicina, médicos em todo o país tem adotado
postura diversa da recomendada pelo CFM e fazem a prescrição e o acompanhamento de
pacientes em tratamentos com derivados terapêuticos da maconha, como aponta Frederico
Policarpo (2019)
Ao longo desta pesquisa, vi circular nos grupos virtuais da Liga Canábica e em outros
com a temática da maconha medicinal, no WhatsApp e Facebook, listas de médicos prescritores
em quase todos os estados do país, com exceção do Acre, Amazonas, Pará, Piauí e Mato Grosso
do Sul. Estão nessa lista mais de 300 médicos de especialidades diversas, além das estipuladas
pelo CFM na Resolução nº 2.113/2014. Essa lista circula entre pacientes e interessados para
que estes médicos sejam procurados para fazer o acompanhamento e a prescrição, necessária
inclusive para o pedido de importação direcionado à ANVISA pelos pacientes que desejam
iniciar este procedimento.
81
Disponível em: https://sbec.med.br/bemvindo/wp-content/uploads/2019/10/Resposta-da-SBEC-ao-Decalogo-
da-maconha.pdf. Consultado em 24/10/19.
266
Durante a pesquisa, estive em contato com três médicos prescritores que participavam
esporadicamente das reuniões e eventos da Liga Canábica, muitas vezes convidados a proferir
falas sobre questões médicas do uso terapêutico da maconha. Preferi não os identificar em razão
possíveis sanções estabelecidas pelo conselho da classe, como já citado, sobretudo porque eles
não obedecem aos parâmetros estabelecidos pelo CFM para prescrever tratamentos com
derivados da maconha, pois, os médicos a que me refiro são médicos de família e comunidade,
prescrevem terapias canábicas para pacientes de várias idades, portadores de diversas patologias
além de epilepsia de difícil controle, características que ferem a Resolução 2.113 de 2014 do
CFM que restringe a prescrição apenas de canabidiol (e não das demais substâncias presentes
na maconha, como o THC) a profissionais das especialidades de neurologia, neurocirurgia e
psiquiatria para o tratamento de epilepsias em criança e adolescentes que sejam refratárias aos
tratamentos convencionais82.
Considero que a participação deles é fundamental para dar legitimidade social, política
e moral as associações e ao uso da maconha para fins terapêuticos. No entanto, é preciso
destacar que a participação efetiva de apenas três médicos deixa clara a escassez destes
profissionais nesta temática e, por isso, é comum que sejam estes os responsáveis por
acompanhar os pacientes da Paraíba e emitir os laudos e prescrições necessárias para o pedido
de importação junto a ANVISA.
Contrariar o conselho da classe e expor-se ao risco de perder o direito de exercer a
medicina, é uma preocupação legítima, assim como a preocupação com o bem-estar dos seus
pacientes também o é. Portanto, é admirável que estes médicos transgridam as determinações
do CFM por reconhecerem, através das suas práticas profissionais, a eficácia dos tratamentos
com maconha.
Como apontado pelos meus interlocutores e descrito nos capítulos anteriores, a
dificuldade em encontrar médicos que se disponham a prescrever e acompanhar os pacientes
que fazer uso medicinal da maconha é um, se não o principal, entrave apontado pela Liga
Canábica para a expansão de pesquisas e usos desta planta com fins terapêuticos. Os médicos
que prescrevem são exceção à regra e sem eles não seria possível qualquer avanço nesta
questão.
82
http://portal.cfm.org.br/images/stories/pdf/canabidiol.pdf
267
Assim como a participação de profissionais e pesquisadores, a partir da demanda e ação
da sociedade civil, o Estado, através de alguns dos seus órgãos reguladores, foi obrigado a
debruçar-se sobre o tema do uso medicinal da maconha e elaborar regras que possibilitassem a
importação e, posteriormente, o cultivo e extração em território nacional, como a ABRACE
vem fazendo. Os procedimentos jurídicos, legais e burocráticos que devem ser seguidos
atualmente para o uso medicinal da maconha dentro da regulamentação nacional específica
sobre este tratamento constituem parte importante para compreensão das mudanças em curso.
Emílio Figueiredo, advogado e consultor jurídico atuante na reivindicação de famílias
pelo cultivo caseiro de cannabis em todo o país, e Lorena Otero, tratam no Boletim do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais, de setembro de 2016, sobre o início desta “jornada jurídica”
por avanços regulatórios para o uso medicinal da maconha no país.
A menina a quem eles se referem é Anne Fischer, cuja história está documentada no
filme Ilegal, descrito anteriormente. A visibilidade pública do caso de Anne teve como
consequência o interesse de outras famílias em usar o óleo rico em CBD no Brasil que, assim
como os pais da menina, buscaram na justiça o direito de importar o produto. Organizados em
associações, o movimento pela legalização da maconha medicinal vem crescendo de lá pra cá
e, na Paraíba, a busca por acesso ao óleo seguiu um caminho distinto dos demais casos do
mesmo período, em que as familias entraram individualmente com pedidos de permissão para
importação. Em 2014, na Paraíba, um grupo de pais e mães de 16 pacientes de doenças
neurológicas solicitaram ao Ministério Público Federal que acionasse a Justiça Federal da
Paraíba, através de uma Ação Civil Pública83, para determinar que a ANVISA autorizasse a
83
TRF 5.ª Reg., Seção Judiciária da Paraíba, 1.ª Vara Federal de João Pessoa, processo 0802543-
14.2014.4.05.8200, Juiz Federal João Bosco Medeiros de Souza, decisão em 18.08.2014.
268
importação do extrato de cannabis rico em CBD. No mesmo ano, a Justiça Federal de Minas
Gerais determinou ao órgão autorizar a importação do medicamento Sativex84, cujo principal
principio ativo é o THC, outro canabinoide presente na maconha.
De acordo com Figueiredo e Otero (2016), estas duas decisões judiciais foram
fundamentais para impulsionar a regulamentação da importação da cannabis para fins
medicinais, iniciada pela Anvisa em 2015, através da publicação de duas resoluções da
Diretoria Colegiada do órgão, a RDC385 e a RDC1786 que, respectivamente, reclassifica o CBD
como substância controlada e define os critérios e procedimentos para importação de produtos
à base de CBD.
Os autores observam mais uma ação civil pública, ajuizada do Ministério Público
Federal, com relevante importância neste contexto de reivindicação e abertura para a
possibiliadde de uso medicinal da maconha. Trata-se da ação objetivando a exclusão do THC
da lista de substâncias proscritas da ANVISA,
A ação foi julgada pelo Juízo Federal de Brasília que deferiu parcialmente os pedidos,
84
TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária de Minas Gerais, 13.ª Vara Federal de Belo Horizonte, processo 0065693-
21.2014.4.01.3800, Juiz Federal Valmir Nunes Conrado, decisão no dia 22.08.2014.
85
Anvisa, RDC 3, de 26.01.2015, publicada no Diário Oficial da União no dia 28.01.2015 às fls. 53/57.
86
ANVISA, RDC 17 de 06 de maio de 2015, publicada no Diário Oficial da União no dia 8.5.2015 às fls.50/51.
87
Anvisa, RDC 66, de 18.03.2016, publicada no Diário Oficial da União no dia 21.03.2016 às fls. 28/32
269
a “prescrição de medicamentos registrados na Anvisa que contenham em sua
composição a planta Cannabis sp., suas partes ou substâncias obtidas a partir
dela, incluindo o THC” e para a “prescrição de produtos que possuam as
substâncias canabidiol e/ou tetrahidrocannabinol (THC), a serem importados
em caráter de excepcionalidade por pessoa física, para uso próprio, para
tratamento de saúde, mediante prescrição médica”. (ANVISA, RDC66/2016)
Como comentado pelos advogados e decorrente das ações judiciais provocadas pela
sociedade civil, tal como vimos, a importação de derivados da maconha está prevista e é
regulada pela Anvisa, agora mais acessível do que antes das resoluções, porém ainda de forma
burocrática e limitadora. No portal virtual do órgão está disponível uma página específica de
orientação para importação “de produtos à base de Canabidiol, em associação com outros
canabinóides, dentre eles o tetrahidrocanabinol (THC), por pessoa física, para uso próprio,
mediante prescrição de profissional legalmente habilitado88”, para fins medicinais e de acordo
com a RDC 17/201589.
88
Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/importacao-de-canabidiol consultado em 01/09/2017.
89
Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/legislacao#/visualizar/29340. Consultado em 7 de agosto de 2017.
270
O procedimento de importação resulta da solicitação e concessão de uma autorização
excepcional da ANVISA, com validade de um ano. Durante sua validade, os pacientes ou
responsáveis legais precisam apresentar a prescrição médica, constando a quantidade necessária
para o tratamento, nos postos da Anvisa nos aeroportos para a entrada do produto no país. De
acordo com a ANVISA
90
Disponível em http://formsus.datasus.gov.br/site/formulario.php?id_aplicacao=19489, consultado em 1º de
setembro de 2017.
271
Com a permissão emitida é possível fazer alterações de cadastro ou mesmo solicitar
ampliação das quantidades necessárias, caso exista uma nova prescrição médica atestando a
necessidade. Dentro de um ano, próximo à data em que a o período de autorização expira, é
necessário pedir a renovação do cadastro, para a qual é necessário anexar
272
É importante destacar que a ANVISA tem agido também em relação à indústria
farmacêutica que começa a receber autorização para comercializar medicamentos
industrializados contendo os princípios ativos da maconha no Brasil. Desde 2017 a Anvisa
autorizou a comercialização do Mevatyl, medicamento composto por 25mg de canabidiol e
27mg de tetrahidrocanabinol, indicado para tratar os sintomas de pacientes adultos que
apresentam espasmos de moderados a graves, por causa da esclerose múltipla91. No mercado
nacional, é possível em encontrar o produto com valores a partir de R$2.719,0092, embora
poucas farmácias tenham o produto disponível, possivelmente em razão da baixa procura. Não
é preciso dizer que esta forma de acesso é extremamente onerosa para a grande maioria dos
pacientes e suas famílias.
A ANVISA, como órgão regulador responsável não apenas pela autorização para
importação e comercialização destes produtos no país, vem trabalhando, em 2019, em uma
proposta de regulamentação para plantio, pesquisa e manipulação da planta e seus derivados
em território nacional, já que até o momento apenas produtos estrangeiros são permitidos dentro
das normativas estabelecidas. Em junho de 2019, a ANVISA abriu consulta pública sobre duas
propostas de resoluções referentes ao uso da maconha para fins medicinais. A primeira pretende
estabelecer que o plantio seja restrito a empresas (pessoas jurídicas) e feito de forma controlada,
em locais fechados, sem identificação externa e itens de segurança obrigatórios, como câmeras,
portas de segurança e biometria de acesso, além de ser necessário apresentar um plano de
segurança para evitar desvios. A venda e a entrega da planta produzida seriam somente para
instituições de pesquisa, fabricantes de insumos farmacêuticos e fabricantes de medicamentos.
O transporte teria de ser feito em veículos especiais. A autorização para cultivo valeria por 2
anos, podendo ser renovada, e haveria uma cota de cultivo e controle de estoques e de liberação
do produto. De acordo com esta resolução, pessoas físicas não poderiam ter pés de maconha
em casa, exceto com uma autorização especial da Anvisa e supervisão da Polícia Federal93.
A segunda proposta de resolução prevê que os medicamentos desenvolvidos sejam
submetidos a regras específicas de análise e aprovação para registro, aval necessário para que
sejam comercializados no País. A apresentação de uma versão final da proposta, que precisa do
91
Informações disponíveis na bula do produto. Disponível em:
http://www.anvisa.gov.br/datavisa/fila_bula/frmVisualizarBula.asp?pNuTransacao=950732017&pIdAnexo=467
6126
92
Consulta feita em farmácias em outubro de 2019.
93
https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2019/06/11/diretoria-da-anvisa-vota-proposta-que-pode-liberar-o-
cultivo-de-maconha-para-fins-medicinais-no-
brasil.ghtml?fbclid=IwAR3QwaH5b7BbMOT_bhWKo4rwcNH8jXxvF1SoV6YIzSD-ySo9mSxnwO6A-sc
273
voto favorável da maioria dos cinco diretores da Anvisa para ser aprovada, foi remarcada três
vezes e acabou saindo da pauta do órgão indeterminadamente.
Embora não haja justificativa objetiva para o adiamento da apreciação das propostas, é
de amplo conhecimento dos interessados que há posições antagônicas nas esferas públicas e
civis sobre o tema.
Assim como o Conselho Federal de Medicina, que expressa claramente sua reprovação
aos usos terapêuticos da maconha no país, representantes do atual Governo Federal também
deixam clara a posição da gestão de Jair Bolsonaro sobre o tema. Em entrevistas a jornalistas
em agosto de 2019, o Presidente evitou posicionar-se e indicou que o Ministro da Cidadania é
o responsável pela questão em seu governo, dizendo que “O Osmar Terra trata esse assunto e
estou na linha dele nessa questão da maconha. Ele diz que [a proposta em questão] abre as
portas para o plantio de maconha em casa94”. Em entrevista sobre o assunto, o Ministro adota
uma postura bastante conservadora e também ameaçadora, defendendo o fechamento da
ANVISA, caso o órgão discorde da posição do governo: “Pode até acabar a Anvisa. A agência
está enfrentando o governo. É um órgão do governo enfrentando o governo. Não tem sentido”.
Com argumentos de que “Os caras que querem liberar a maconha se escondem atrás do
desespero das mães de pacientes” e que “Tem de estar puro o canabidiol. Quando estiver com
THC, é a droga que causa dependência”, Terra admite apenas o uso de medicamentos com
canabidiol sintético isolado, produzido e comercializado por indústrias farmacêuticas e nega
qualquer possibilidade de que, no Governo de Jair Bolsonaro, o plantio de maconha para
qualquer fim seja legalizado:
Qualquer empresa que estiver desenvolvendo o sintético vai ter apoio. Acho
pior o governo estar advogando pela liberação da maconha. Que interesses
estão por trás da liberação da maconha? A dependência cria um cliente eterno.
(Osmar Terra, entrevista para o G1)
Vamos falar claramente. Pergunta pra quem pesquisa no mundo. Para quem
vive lá na ponta, quem trata o dependente químico. Essas pessoas têm de ser
ouvidas, não é o filósofo da esquina, que leu Foucault, achou que é lindo e
quer legalizar tudo. Acho que a pessoa pode fumar maconha, plantar, fazer o
que quiser. Se morar sozinha numa ilha. E tiver de se virar sozinha. Mas
94
https://oglobo.globo.com/sociedade/2019/08/01/582327-bolsonaro-indica-ser-contrario-cannabis-medicinal-
mas-diz-que-decisao-da-anvisa
274
quando faz isso socialmente, ela se prejudica. E prejudica quem está na volta
dela. Conheço vários casos, tive até na família. Gente que era brilhante, genial,
virou um zumbi. Fumando só maconha, não fumando outras drogas. (Osmar
Terra, entrevista para o JOTA95)
95
A entrevista completa pode ser acessada em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/osmar-terra-
defende-fechar-anvisa-se-plantio-de-cannabis-for-aprovado-23072019
96
http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28252:2019-05-22-16-42-
03&catid=3
275
entrevista97, acreditar que até o final de 2019 o plantio de maconha para uso medicinal e em
pesquisas estará liberado no Brasil98.
A gente acredita que até o final do ano teremos a legislação publicada e pronta.
Se a empresa já tem o terreno, e é só uma questão de adaptação, ela fará isso
rápido. Em seis meses, teria a primeira florada e poderia começar a produzir.
Não importa se é a indústria nacional ou internacional (que vai dominar o
mercado brasileiro), o que importa é quem se viabilizar primeiro. Pode
começar pelo plantio, mas pode começar pela importação do insumo e
produzir aqui. Isso seria tão rápido quanto (começar pelo plantio). Por quem?
Por todo mundo que tem laboratório. (William Dib)
Ainda que a proposta da ANVISA seja aprovada, os termos a que ela se propõe não
atendem as reivindicações daqueles que esperam por um tratamento contínuo e acessível, sem
depender da iniciativa e dos valores atribuídos aos medicamentos da indústria farmacêutica.
Embasadas por um modelo produtivista empresarial, o desejo pelo direito de plantar e extrair
de forma caseira os derivados da maconha para tratamentos de saúde, reivindicado pelas
famílias que iniciaram e continuam mobilizando esta questão no país, não é contemplado pelo
modelo proposto pelo órgão, como Júlio enfatiza:
Pra essa legislação da Anvisa, a gente não quer que qualquer produção de
cannabis no Brasil, que tenha agrotóxico, porque é meu filho quem vai usar,
são os pacientes que vão usar, então a gente tem o direito de escolha com
relação a isso, a gente não pode fazer o que eles querem, então pesticidas,
agrotóxicos, os cuidados normais que a gente tem, existem formas simples,
caseiras de preservar o material livre de fungos e bactérias sem que tenha que
passar por aqueles equipamentos todos. Os óleos artesanais tinham que ser
reconhecidos, a cannabis deveria ser reconhecida como produto fitoterápico,
então não há como você chegar e prender a cannabis e deixar nas mãos dessas
pessoas para que elas tomem conta desse mercado e não olhe para o direito do
paciente, não reconheça, até porque, foi o movimento dos pacientes que abriu
o mercado para eles, o movimento dos pacientes que fomentou as pesquisas
nas universidades, que levou essa realidade da cannabis para a sociedade, que
foi lá para dentro das câmaras, das assembleias legislativas levar essa questão,
sensibilizar parlamentares, gestores públicos, então a gente criou todo um
ambiente favorável e agora vem uma legislação que pega esse ambiente
favorável, pega o mercado e entrega de mão beijada para o grande capital
privado e a gente fica à margem, sendo que a gente quem criou todo esse
contexto favorável. As pessoas estão conhecendo a cannabis, estão usando a
planta, a gente está atendendo a milhares de pacientes que foram desassistidos
97
https://oglobo.globo.com/sociedade/plantio-de-maconha-medicinal-deve-ser-liberado-ate-fim-do-ano-diz-
presidente-daanvisa-
23732497?fbclid=IwAR3BRS5WyTR3N7vwNjdSvPFoaIKAYsdABzJV9c9mWvJV2hofbWdt6jYn3bA
98
Esta tese foi defendida em dezembro de 2019 e, até então, a perspectiva do Diretor-Presidente da ANVISA não
se efetivou.
276
por eles, por conta da omissão deles, então é um absurdo. A gente acabou meio
que dando a vida por essa galera, a gente construiu um espaço de discussão,
de aprendizado, empoderando essas pessoas, garantindo o direito à saúde delas
e agora essas pessoas não reconhecem o movimento social que construiu tudo
isso e coloca esse povo de lado. (Júlio Américo, entrevista, setembro de 2019)
Por esta razão e em comparação com a lenta e parcial atuação da Anvisa na questão, a
justiça tem se mostrado mais ágil e presente na garantia dos direitos da população, atuando
através de ações ajuizadas no sentido de garantir direito como as importações antes mesmo das
regulamentações da ANVISA, o direito individual ao plantio da maconha e extração caseira
dos derivados para utilização terapêutica, e a permissão para que a ABRACE desenvolva suas
atividades legalmente. Ainda assim, o diretor da associação considera que a proposta tem seus
pontos positivos:
A resolução que eles propuseram tem várias lacunas, aumenta muito o custo
e vai dificultar muito o acesso, mas é um início, depois que a gente conseguir
aprovar isso, a gente pode diminuir as arestas e como é um país muito grande,
se você regulamenta uma coisa da primeira vez muito fácil, você abre muito
espaço para muita gente errada entrar, dessa forma, dificultando, a gente pode
fazer uma peneira. [...] O que eu fico muito preocupado é olhar a cannabis
como um medicamento que precise de dois anos para comprovar sua eficácia,
e que só seja vendido em farmácia e que precise gastar 20 milhões para
registro, então isso vai encarecer muito o produto. O que está acontecendo?
Muitas empresas estão com o olho grande, estão com muito capital, tentando
entrar nesse negócio e fazer isso da forma como é hoje, mas eles vão ter os
mesmos problemas que os que já estão fazendo estão tendo, por exemplo, o
Mevatyl está sendo vendido na Drogasil por quase 3 mil reais e eles mandaram
para o Brasil 900 frascos, foram vendidos menos de 30 frascos e já deu a
validade e eles estão sendo devolvidos, então o prejuízo foi grande. É uma
prova de que não há sucesso para um medicamento só porque ele é novidade,
o preço é importante. Então se tem na farmácia por R$2.800,00 reais e a pessoa
sabe que maconha a pessoa pode comprar na esquina, então ela vai comprar
na esquina, ou ela vai plantar ou vão na justiça ganhar autorização e fazer.
Ele não só dificulta, como impedia, a gente teve que ir para cima para que as
associações também fossem incluídas. Aí eles terminaram dizendo que iriam
incluir as associações, desde que as associações sigam as normas, ou seja,
agora a ABRACE pode conseguir, o problema é o custo para registrar o
medicamento, porque a ABRACE não pode fazer o ensaio clínico, quem tem
que fazer o ensaio clínico é uma empresa chamada CRO, custa 4 milhões para
se produzir um ensaio, pra registro de uma doença só e a gente ainda vai ter
que manter as cobaias pelo resto da vida. Então, quer dizer, a gente vai ter
muita dificuldade para registrar, porém, como a ABRACE está através de uma
277
autorização judicial, não há perigo de a gente perder a autorização e a
ANVISA ainda está obrigada a registrar. A gente vai tentar e a gente vai
tentando e eles vem aqui, diz que está errado aqui, a gente muda ali, a gente
vai até o fim para que a gente possa registrar.
Uma decisão judicial só é revogada através de outra decisão superior. Não é
porque saiu uma lei regulamentando, não é por causa disso que a ABRACE
vai perder a autorização. Ela continua vigorando e o que a ANVISA
determinou foi que registrasse. Quando a ANVISA registrar aí sim a
ABRACE vai estar sobre suas próprias tutelas. (Cassiano Teixeira, entrevista,
outubro de 2019)
Para o caso da maconha terapêutica no Brasil, é através da justiça que direitos têm sido
assegurados enquanto os poderes públicos que poderiam viabilizar leis ou um entendimento
jurídico único sobre o tema não se manifestam.
À luz das ciências sociais, as questões que envolvem justiça e direitos relacionados à
casos de saúde e doença e, consequentemente, a demandas específicas por cidadania, podem
ser analisadas pelo seu contexto de ordem política.
Retomando os referenciais já expostos no início deste capítulo, há outros
desdobramentos do que foi abordado por Foucault e Fassin que envolvem questões de saúde
diretamente relacionadas com as biopolíticas, porém com direcionamentos e contextos
específicos. É o caso do acidente nuclear de Chernobyl ocorrido em 1986, analisado por
Adriana Petryna em “Life Politics after Chernobyl” (2002). A pesquisadora relata o que
conseguiu colher em 18 meses de pesquisa de campo com vítimas do acidente e documentação
sobre o evento a respeito do impacto social e biológico provocados pelo desastre. Após a
catástrofe, a omissão do governo ao não reconhecer as consequências do desastre implicou em
sequelas e danos ainda piores para a população e para o meio ambiente. Na tentativa de diminuir
o número de pessoas assistidas, sintomas e doenças que apareceram posteriormente ao acidente
foram desconsideradas e, por esta razão, até os dias atuais não existe uma quantificação precisa
278
do número de pessoas afetadas pelo desastre e o número de mortes decorrentes dele. Fica claro
no texto a falta de assistência à população a época do acidente, mas também posteriormente a
ele. Petryna destaca as manobras governamentais para negar direitos aos afetados e dá atenção
especial aos percursos e estratégias elaboradas pelas vítimas para garantirem direitos e
assistência governamental.
Articuladas em termos de cidadania biológica (PETRINA, 2002; ROSE, 2013), a
reivindicação por amparo do Estado foi elaborada a partir de categorias biomédicas,
classificando os afetados em termos dos efeitos que sofreram e que podiam comprovadamente
serem relacionados a radioatividade do desastre. Entre categorias como “deficientes” e
“sofredores”, parte dos afetados foram desconsiderados como merecedores de assistência pelo
Estado, mas, do ponto de vista das vítimas, seria melhor ser classificados como deficientes à
ficarem sem direitos, sobretudo no contexto histórico e político da época, em que o regime
soviético havia declinado e a recente Ucrânia era um país pobre marcado pela escassez de
trabalho. Aceitar e reivindicar a classificação de deficiente, foi a alternativa acionada pela
população afetada pelo desastre nuclear para garantir direitos.
Aqui, fica clara a discordância entre as biopolíticas elaboradas pelo Estado para conter
e tentar mascarar os graves efeitos do desastre de Chernobyl, em oposição às reivindicações
sociais daqueles que foram diretamente atingidos pela radiação. A reivindicação de uma
biosocialidade (ROBINOW, 1999), amparada por conceitos e classificações biomédicas
permitiu as vítimas obter legitimidade em sua demanda, conquistando direitos imprevistos pelo
Estado. O caso investigado por Petryna representa aquilo sobre o que falavam Michel Foucault
e Didier Fassin, sobre a imprevisibilidade da vida concreta em relação às normas instituídas.
João Biehl e Adriana Petryna, em trabalho conjunto, abordam outro tema interessante
para pensar as políticas de Estado sobre a vida dos indivíduos. Trata-se da judicialização da
saúde, pesquisada por eles a partir do caso de pais que entram com ações litigiosas contra o
Estado Brasileiro pelo acesso aos medicamentos de alto custo que seus filhos, portadores de
mucopolissacaridose, necessitam para tratamento contínuo por toda a vida. No Brasil o litígio
por acesso à saúde, sobretudo à medicamentos, é uma rota alternativa de acesso à um direito
social previsto na Constituição Federal. Embora o país tenha um sistema público de saúde, o
Sistema Único de Saúde (SUS), ele não é eficaz e não consegue arcar com toda a complexidade
dos casos de saúde existes na realidade brasileira. Os autores apontam as diversas instâncias de
governo, sobretudo estaduais e municipais, como responsáveis pelos problemas de má gestão
que, por consequência, não conseguem suprir as necessidades de saúde da população, nem
279
mesmo fornecer os tratamentos e medicamentos que, de acordo com a lei deveriam estar
disponíveis. Por outro lado, o sistema de saúde privado, embora pretenda fornecer um serviço
melhor, não inclui medicamentos e nem sempre oferece um serviço de qualidade superior.
Biehl e Petryna situam que as demandas judiciais por acesso à saúde começaram pelo
esforço de ativistas da Aids por acesso aos medicamentos antirretrovirais (ARVs). Até 1998 os
requerentes exigiam quase exclusivamente os medicamentos para tratamento do HIV/Aids,
porém, a partir do ano seguinte houve uma diversificação dos tipos de tratamentos e patologias
que entraram em litígio por direito à saúde. Além da diversificação, a quantidade de
requerimentos também aumentou significativamente de 4 casos em 1995, para 314 em 1997 e
chegou a 1.144 em 2002, apenas no estado do Rio de Janeiro (BIEHL E PETRYNA 2011).
Os casos estudados por eles referem-se a um novo limiar do direito à saúde, isso porque
o tratamento para mucopolissacaridose diz respeito às terapias genéticas que, por serem
oriundas de tecnologias de ponta, e fazerem parte de um mercado altamente rentável, tem custos
bastante elevados e não fazem parte da lista de medicamentos disponibilizados pelo SUS.
Somados ao alto custo, a burocracia do sistema jurídico brasileiro não permite que uma decisão
judicial favorecendo os pacientes seja suficiente para garantir o tratamento reivindicado. Ao
contrário, cada decisão, individual para cada paciente, tem validade determinada, o que obriga
os pais das crianças a sempre retornarem ao sistema judicial com um novo pedido de tratamento
que nem sempre é julgado e concedido antes de interromper o tratamento conquistado
anteriormente, descontinuando as terapias e prejudicando a melhora e a saúde dos pacientes.
Problematizando este caso a partir dos conceitos de Michel Foucault, percebe-se a
precariedade das intervenções biopolíticas da saúde pública brasileira em tentar suprir, sem
sucesso, as demandas sociais e ceder aos interesses de um mercado farmacêutico que negociam
com o governo o alto custo para acesso ao que os autores chamam de biotecnologia, necessária
para tratamentos raros ou recentemente descobertos.
Neste sentido, o artigo de Biehl e Petryna aponta para questões que, como vimos em
Foucault e Fassin, tratam da tentativa do Estado de estabelecer controle sobre a vida dos
indivíduos, mas que, além de não obter sucesso nas formas de gestão das suas políticas, também
abre brechas para que os indivíduos exijam aquilo que lhes é de direito, mas não é acessível,
por vias do próprio Estado. A judicialização da saúde em um país que preconiza o acesso a ela
de forma universal e irrestrita, porém não a fornece, é um exemplo do que Fassin escreveu sobre
vidas concretas que escapam à normatização, ou, como diria Foucault, “foi a vida, muito mais
280
do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem
através de afirmações de direito” (Foucault 1979, p. 157).
Assim também ocorre com o estudo etnográfico realizado por Vinh-Kim Nguyen (2010)
no contexto da epidemia de HIV/Aids no oeste africano, a respeito da “promessa de tratamento”
e mobilização coletiva por acesso à medicamentos anti-HIV. Este autor apresenta a organização
de uma militância terapêutica que desafia as imposições internacionais e desenvolve suas
próprias estratégias para conseguir tratamento: pressionando politicamente instituições
biomédicas pela cura; engajada no processo de pesquisas laboratoriais, disponibilizando-se,
inclusive, para experimentar as novas drogas; desenvolvendo a expertise entre os ativistas sobre
o campo biomédico; estimulando o engajamento político dos seus participantes; organizando
um grupos de ajuda mútua em torno da doença.
Estas estratégias e a inserção dos ativistas nas diversas frentes de reivindicação por
tratamento, configuram o que Nguyen (2010) chama de cidadania terapêutica que, neste
contexto, tem papel fundamental para a conquista do tratamento para o maior número de
pessoas do grupo. O que o autor ressalta são os processos internos de disputa pelo tratamento
entre os próprios membros do grupo, quem receberá tratamento primeiro, já que não está
disponível para todos? Uma questão delicada, já que aqueles que não recebem imediatamente
as medicações têm maiores chances de não sobreviverem. Assim, a triagem nasce em um campo
de batalhas: recursos escassos para o tratamento e a necessidade de manter aqueles que são mais
ativos na luta pelos demais, em detrimento dos que terão que esperar, sem saber se sobreviverão.
A estratégia desenvolvida pelo grupo surpreende ao empregar uma forma de escolha que
beneficia indiretamente o maior número de pessoas. Por isso são escolhidos aqueles que melhor
sabem contar sua história e detém a habilidade de “capitalizar redes sociais” para representar o
grupo e conseguir apoio e maior quantidade de medicamentos para o tratamento dos demais, a
fim de tratar mais pessoas, numa espécie de cálculo social – aquele que receber o medicamento,
precisa transpor esse bem aos outros.
Nesse sentido, a organização do grupo em redes de solidariedade, comunidades de
pessoas com HIV, diferencia as pessoas que receberiam tratamento (e viveriam) das que não
receberiam, o que poderia gerar a aflição dos que precisam esperar e o sentimento de
desigualdade. No entanto, a formação destas redes, a interação entre os doentes, as narrativas
das experiências com o HIV, testemunhos e confissões aproximaram as pessoas e diminuíram
a competitividade, produzindo a afirmação de uma cidadania terapêutica.
281
Os casos empíricos relatados em pesquisas, usados aqui para ilustrar a discussão,
perpassam os conceitos e teorias que tratam das formas de poder do Estado, mas também das
estratégias individuais e coletivas acionada por populações para burlar ou adequar suas
demandas as normas, ou para converter as normas às suas demandas. Ainda assim, a questão
que perpassa estes estudos diz respeito ao valor dado à vida de diferentes povos. Quais vidas
contam, quais vidas valem? Quem merece acesso a tratamento e a direitos? Aqui retomo aquilo
que foi explanado anteriormente a respeito das proposições de Fassin sobre as discriminações
e os valores desiguais atribuídos a diferentes povos. Porém, faz sentido neste caso também,
aquilo que foi afirmado sobre o papel do ativismo e da militância para obtenção de direitos e
sua importância no emaranhado de relações de poder para encontrar as formas de acesso ao
Estado por meios não previstos nas biopolíticas. Didier Fassin tratou profundamente sobre estes
temas e é interessante perceber que sua visão sobre a necessidade de encontrar formas de acesso
às políticas sobre a vida se torna a única forma de garantir a sobrevivência daqueles que são
desprezados pelas políticas de Estado e até pelas instituições internacionais. Lutar pela vida,
nesse sentido, significa considerar que “a ameaça que pesa sobre a vida física se torna sua razão
para viver” (Fassin 2012, p. 384).
Neste sentido, acionar uma rede articulada que viabilize o acesso a saúde é também uma
estratégia para obtenção de direitos dentro das instâncias do próprio Estado, e esta tem sido a
estratégia adotada também em relação as terapias com derivados da maconha mobilizada pelas
associações descritas. Até novembro de 2019, cerca de 50 famílias brasileiras conseguiram
individualmente, através de ações judiciais, habeas-corpus preventivos para realizarem o
plantio doméstico, segundo levantamento da Organização não-governamental Rede Jurídica
pela Reforma da Política de Drogas99.
Além dos casos individuais, também através de ação judicial, a Abrace obteve
autorização única para exercer as atividades já descritas, mas, considerando as resoluções
propostas pela ANVISA, nem mesmo a ABRACE poderia desenvolver suas atividades, se não
fosse por determinação judicial.
Desde 2011, mudanças nas políticas sobre drogas são discutidas na Câmara dos
Deputados e Senado Federal, sobretudo em relação à maconha, embora temas relacionados ao
uso medicinal da planta só tenham virado pauta a partir de 2014, após a demanda provocada
99
http://www.reforma.org.br/
282
pela sociedade civil ganhar visibilidade midiática e atenção da Anvisa, que, acionada
judicialmente, iniciou as regulamentações para importação de canabidiol, na época.
Em 2019 no Senado Federal, estão em tramitação sete Projetos de Lei e Sugestões
Legislativas que tratam sobre maconha medicinal:
100
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/138890
101
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/138415
102
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/132047
103
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137580
104
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/133915
283
Sugestão n° 25, de 2017105
Autoria: Programa e-Cidadania
Ementa: Descriminalização do cultivo da cannabis para uso próprio
Último local: 19/12/2017 – Plenário do Senado Federal (Secretaria de Atas e
Diários) – transformada em Projeto de Lei do Senado
Sugestão n° 6, de 2016106
Autoria: Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC)
Propõe um padrão regulamentar abrangente para a maconha medicinal e o
cânhamo industrial no Brasil.
Último local: 01/10/2019 - Secretaria de Atas e Diários – transformada em
Projeto de Lei do Senado
Já na Câmara dos Deputados, são seis Projetos de Lei que tratam diretamente sobre a
maconha para fins terapêuticos, três deles tendo sidos vinculados a outros e, portanto, tramitam
conjuntamente.
PL 4565/2019107
Autor: Alexandre Padilha – PT/SP
Ementa: Atualiza a Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, e dá outras
providências (considera unidade relativa a uma dose individual de THC
(cannabis) 1 grama)
Situação: Aguardando Parecer do Relator na Comissão de Seguridade Social
e Família (CSSF)
PL 10549/2018108
Autor: Paulo Teixeira – PT/SP
Ementa: Disciplina o controle, a fiscalização e a regulamentação do uso da
“cannabis” e de seus derivados e dá outras providências.
Situação: Apensado ao PL 7270/2014
PL 5090/2016109
Autor: Onyx Lorenzoni – DEM/RS
Ementa: Dá nova redação ao artigo 28 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de
2006, tipificando a conduta de proibição de importação para consumo pessoal,
drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar.
Situação: Apensado ao PL 7187/2014
PL 7270/2014110
Autor: Jean Wyllys – PSOL/RJ
Ementa: Regula a produção, a industrialização e a comercialização de
Cannabis, derivados e produtos de Cannabis, dispõe sobre o Sistema Nacional
de Políticas Públicas sobre Drogas, cria o Conselho Nacional de Assessoria,
105
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129900
106
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125497
107
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2216080
108
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2181385
109
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2082552
110
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=608833
284
Pesquisa e Avaliação para as Políticas sobre Drogas, altera as leis nºs 11.343,
de 23 de agosto de 2006, 8.072, de 25 de julho de 1990, e 9.294, de 15 de julho
de 1999 e dá outras providências.
Situação: Apensado ao PL 7187/2014
PL 7187/2014111
Autor: Eurico Júnior – PV/RJ
Ementa: Dispõe sobre o controle, a plantação, o cultivo, a colheita, a
produção, a aquisição, o armazenamento, a comercialização e a distribuição
de maconha (cannabis sativa) e seus derivados, e dá outras providências.
Situação: Aguardando Criação de Comissão Temporária pela MESA
PL 399/2015112
Autor: Fábio Mitidieri – PSD/SE
Ementa: Altera o art. 2º da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, para
viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos,
substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação.
Situação: Aguardando Parecer do Relator na Comissão Especial destinada a
proferir parecer.
111
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=606843
112
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=947642
113
https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-09-30/senado-acata-sugestao-popular-que-libera-uso-medicinal-
da-cannabis.html
285
Já na Câmara, o projeto mais avançado é o de autoria do deputado Fábio Mitidieri (PSD-
SE), que viabiliza a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou
partes da planta Cannabis. Uma comissão foi criada para dar parecer ao PL-399/2015,
aguardando parecer do relator na comissão especial destinada ao tema.
Apesar das 13 matérias propostas desde 2014 sobre o tema, até 2019 nenhuma das casas
legislativas aprovou qualquer mudança neste período, que possibilitasse alterações legais nas
formas de importação ou produção de remédios à base de maconha no país, além das regulações
emitidas pela ANVISA.
Por outros caminhos, via Supremo Tribunal Federal, tramita desde 2011 um Recurso
Extraordinário (RE 635659114) que versa sobre a descriminalização da maconha para uso
pessoal. Movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu pego com 3 gramas
de maconha na prisão, a Defensoria argumenta que a lei de Drogas (Lei 11.343/2006) fere o
direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que
prejudiquem apenas si mesmo), garantidos na Constituição Federal.
Até então, a pauta conta com três votos favoráveis. O relator, ministro Gilmar Mendes,
votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que define como crime o porte
de drogas para uso pessoal e propôs que seja usado como parâmetro objetivo para distinguir
usuários de traficantes o limite de porte de 25 gramas. O ministro Edson Fachin defendeu
descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio115, assim como o Ministro Luiz
Roberto Barroso que também considera que a lei atual é inconstitucional e concorda com os
argumentos apresentados pela Defensoria Pública de São Paulo116. Embora os três votos dados,
a ação está parada desde 2018, sem data definida para que a apreciação seja retomada.
Apesar a abrangência da ação ser mais ampla, caso o recurso seja aprovado, o uso
medicinal também seria beneficiado, mesmo que sem uma regulação apropriada sobre as
formas de cultivo e manipulação da planta, por se tratar de uso pessoal.
Também em tramite, desde 2017, está a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
5708117, ajuizada pelo Partido Popular Socialista (PPS) para que “seja afastado entendimento
que criminaliza plantar, cultivar, colher, guardar, transportar, prescrever, ministrar e
adquirir Cannabis para fins medicinais e de bem-estar terapêutico”, que deverá ser analisada
114
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4034145
115
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299756&caixaBusca=N
116
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150914_drogas_barroso_ms
117
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5193491
286
pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)118, inconclusa até então e sem data prevista
para apreciação.
De modo mais amplo, os casos de judicialização da saúde no Brasil crescem
exponencialmente há anos, como demonstraram Biehl e Petryna (2011) e, dada a morosidade
legislativa e falta de uma resolutiva por parte do STF, a judicialização das demandas pelo acesso
aos tratamentos de saúde com maconha se apresentam como a única medida possível para as
famílias que não podem esperar anos até uma legislação adequada permitir e regulamentar estas
terapêuticas. Como Virgínia Carvalho (2017) alerta, os casos em que o uso terapêutico da
maconha pode ser aplicado aumentam exponencialmente o que, por consequência, também
resultará no aumento desta demanda ao estado através das judicializações.
Alguns pacientes ingressaram com ações judiciais, para que o tratamento seja
custeado pelo Estado, porém a demora e a dificuldade em executar as decisões
junto às secretarias estaduais ou municipais (quando a decisão é favorável)
fazem com que muitos pacientes desistam e procurem os mercados ilegais.
Gera-se um problema de grande dimensão porque, além da situação de
ilegalidade, a ausência do Estado provoca o uso indiscriminado de extratos de
cannabis feitos a partir de plantas desconhecidas, muitas vezes oriundas do
tráfico (conhecida por maconha prensada), que pode conter inúmeros
compostos neurotóxicos como altos teores de metais pesados e praguicidas,
além de adulterantes com maior potencial de abuso que possam ser
adicionados intencionalmente na droga como, por exemplo, cocaína e nicotina
118
http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=349147&ori=1
287
(Nascimento et al., 2015) e altos teores de THC buscados no contexto de uso
social/recreativo (ElSohly et al., 2016).
Outra consequência da falta de regulação que permita o acesso terapêutico à
cannabis é a situação de iniquidade entre aqueles que dispõem de recursos
para comprar o medicamento em países estrangeiros e aqueles que não
dispõem. A situação é inadmissível, sobretudo se for considerado o baixo
custo da produção da cannabis e de seus extratos em comparação com outros
medicamentos sintéticos. Assim, o Estado, ao invés de proteger a saúde da
população e dos indivíduos, coloca em risco a saúde e a integridade das
pessoas que fazem uso da substância sem controle de qualidade e que recorrem
ao mercado ilegal. Estas pessoas já estão em estado de vulnerabilidade por
seus quadros patológicos e o Estado, ao não cumprir com o seu papel, coloca
esses pacientes num estado ainda maior de vulnerabilidade. (CARVALHO et
al, 2017, p. 62)
a) promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos
constitucionais da pessoa;
b) expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de
relevância pública, bem como ao respeito a interesses, direitos e bens cuja
defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das
providências cabíveis;
c) requisitar informações e documentos a entidades públicas e privadas;
d) realizar inspeções e diligências investigatórias.
Todas as denúncias relativas à violação de direitos constitucionais são
recebidas e examinadas. É vedada, contudo, a defesa, em juízo, de direito
individual lesado. Quando a ação cabível não é de atribuição da Procuradoria
119
Informações disponíveis em: http://www.mpf.mp.br/pb/institucional, consultado em 27 de fevereiro de 2019.
288
dos Direitos do Cidadão, o caso é encaminhado ao órgão competente para que
a defesa do direito lesado seja realizada. (LEI COMPLEMENTAR Nº 75, DE
20 DE MAIO DE 1993)
Conhecendo os caminhos pelos quais o Ministério Público pode ser acionado e ágil em
defesa dos cidadãos, as mães e pais que hoje integram as associações paraibanas buscaram a
PRCD para orientação e esclarecimentos sobre o fornecimento do canabidiol.
No Estado da Paraíba, quem exerce o cargo de Procurador Regional dos Direitos do
Cidadão, desde 2014, é José Godoy Bezerra de Souza, citado diversas vezes ao longo deste
trabalho pela sua contribuição expressiva nos avanços da demanda pelo uso medicinal da
maconha protagonizados pela Liga Canábica e pela Abrace, como Júlio relata.
289
movimento, com a Abrace, que a gente foi chamado, então, assim, eles
continuam abertos. Um dia desses encontrei com ele [Dr. Godoy], e ele disse
“olhe, estamos aqui, viu? Qualquer demanda...”. Uma vez, ele conversando
com a gente, disse: “mas por que vocês não cultivam? Se preparem para isso,
entrem com uma ação e deixem com a gente, a gente vai dar esse apoio, vai
dar esse suporte.” (Júlio Américo, entrevista, setembro de 2019)
Como o procurador citou em sua fala na Audiência Pública, seu primeiro atendimento
ao assumir a PRDC, no dia 20 de junho de 2014, foi com as famílias que formariam
posteriormente a Liga Canábica e, desde então, ele vem atuando junto as associações.
A primeira atuação da PRDC foi para garantir as 15 famílias que iniciaram esta
articulação terem o direito de importar legalmente os extratos de canabidiol, como Sheila Geriz
relata
Quando a gente chegou [na procuradoria] e começou a falar, ele [José Godoy]
disse “vamos ali para minha sala”, e estávamos muito desesperados, porque a
remessa que a gente tinha comprado estava “presa”, a gente com medo dos
meninos ficarem sem nada, aí foi aquele chororô, aquele desespero, e ele se
sensibilizou muito, ele disse que tinha assistido em março a reportagem que
tinha passado no Fantástico meses antes, disse que nunca pensou que, tão
próximo dele tivesse aquela realidade de crianças precisando, aí disse “faça
um requerimento provocando o Ministério Público, e aí eu tomo as
providências”. A gente veio para casa, nessa época já tínhamos reunido mais
famílias, já foram quinze famílias, e conseguimos a documentação de todo
mundo, fizemos uma petição, ele entrou com uma petição na Justiça e, no dia
19 de agosto de 2014, saiu a liminar autorizando a importar sem passar pela
Anvisa. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
Esta foi a primeira decisão no Brasil, resultante de uma ação civil pública, a conquistar
este direito coletivamente, já que anterior a ela, as autorizações solicitadas eram de cunho
individual, solicitadas para cada paciente. Nesta ação, o Ministério Público, através da PRDC,
solicitou uma liminar contra a União e a Anvisa para que fosse liberada a importação da
substância Canabidiol e o uso por 16 crianças e jovens paraibanos que sofrem com síndromes
convulsivas, argumentando que a situação dos pacientes é urgente e explicando que os pacientes
em questão não apresentavam resultados satisfatórios ao tratamento medicamentoso
tradicional. . Esta ação foi instaurada em 31 de julho de 2014, e no dia 19 de agosto de 2014 a
Justiça Federal emitiu uma liminar atendendo ao pedido do Ministério Público. No documento,
a decisão é justificada dizendo que a “saúde é um valor humano, ascende ao imaterial, ao
intangível. Ao direito cumpre a missão de preservá-la. Daí a ideia do direito à proteção da saúde.
290
Trata-se de direito de dupla face, que se insere no âmbito dos direitos fundamentais e na ordem
dos direitos de personalidade, marcados pela essencialidade e indisponibilidade dos bens”.
Posteriormente, em 28 de novembro do mesmo ano, foi emitida a sentença definitiva sobre o
caso em primeira instância120. Para o Juiz João Bosco Medeiros de Sousa, que concedeu a
sentença,
não faz sentido impedir que os substituídos processuais do autor MPF possam
ganhar melhores condições de saúde unicamente porque as rés [União e
ANVISA] debatem interminavelmente sobre a "conveniência", ou não, da
liberação de tal substância medicamentosa, deixando os cidadãos reféns da
burocracia estatal. (Ação Civil Pública nº 0802543-14.2014.4.05.8200)
Até hoje, o óleo que eu importo para Pedro, eu importo com essa sentença
judicial. Todos esses pacientes ainda compram com a sentença, mesmo depois
tendo pedido autorização da Anvisa, que foi mais para mostrar que existia essa
demanda, pois a Anvisa dizia que era um ou outro paciente, que não havia
demanda. Então, para mostrar que existiam esses pacientes, a gente entrou
com a autorização na ANVISA também, mesmo sem precisar da autorização
deles. (Sheila Geriz, entrevista, setembro de 2019)
Em ação posterior, em junho de 2015, a PRDC/MP ajuizou, outra ação civil pública,
novamente com pedido de liminar, para que a União e o estado da Paraíba fornecessem
o canabidiol gratuitamente a 18 pacientes, mensalmente, em quantidade suficiente para o
tratamento de cada um deles, por tempo indeterminado, realizando todos os contatos com os
fornecedores para a aquisição, assim como todo o processo de compra, importação, frete e
liberação do canabidiol perante a aduana brasileira, e a estocagem e distribuição da
substância121. Antes de ajuizar a ação, a PRDC buscou uma solução por vias extrajudiciais,
através de um termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado entre o MPF e o Estado da
Paraíba, porém o estado não cumpriu com as determinações e foi necessário dar entrada na
120
Disponível em: https://pr-pb.jusbrasil.com.br/noticias/153991382/sai-sentenca-de-merito-em-favor-da-
importacao-do-canabidiol-por-familias-paraibanas?ref=serp Consultado em 23/11/2019.
121
Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/mpf-pb-quer-que-uniao-e-estado-da-
paraiba-fornecam-canabidiol-para-pacientes Consultado em 23/11/2019.
291
ação. A liminar novamente foi concedida pela juíza federal Cristiane Mendonça Lage122, porém
em dezembro do mesmo ano a decisão foi revogada123.
Já em 2017, a atuação da PRDC/MP se deu através de um parecer emitido pelo órgão
sobre a ação ajuizada pela Abrace em 19 de janeiro em que foi solicitado que a Anvisa
autorizasse a associação a cultivar e manipular a planta Cannabis sp, exclusivamente para fins
medicinais. No parecer, a PRDC opinou pelo deferimento do pedido124 e a decisão liminar da
2ª Vara da Justiça Federal125, de 27 de abril, foi dada em conformidade com o parecer do
Ministério Público Federal na Paraíba (MPF/PB) nesta primeira decisão, ficou estabelecido que
a produção deveria ser destinada apenas aos 151 pacientes associados ou dependentes dos
associados que foram listados pela associação na petição inicial. Em novembro do mesmo ano,
a ABRACE recebeu a sentença definitiva de autorização para suas atividades126 e permissão
para expansão da quantidade de pacientes atendidos.
Além das atuações propriamente jurídicas, a PRDC permanece em contato próximo com
as associações através de reuniões para orientar as futuras condutas, a exemplo do futuro pedido
de autorização para cultivo que a Liga canábica pretende iniciar. Em relação a ABRACE, a
PRDC é responsável por fiscalizar o funcionamento da associação, mas também mantém esta
relação de diálogo e orientação sobre questões como a ampliação de pacientes atendidos,
expansão e alteração dos locais de cultivo.
122
Disponível em:https://mpf.jusbrasil.com.br/noticias/206676739/mpf-pb-obtem-liminar-que-determina-
aquisicao-de-canabidiol-pela-uniao Consultado em 23/11/2019.
123
Disponível em:
http://www.trf5.jus.br/data/2015/12/PJE/08053096520154050000_20151218_64958_40500003522454.pdf
124
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292
necessário que os poderes judiciário e legislativo estabeleçam estes direitos em lei ou via
regulamentação da ANVISA. Portanto, os caminhos que esta demanda trilhará, ainda é incerto.
293
CONSIDERAÇÕES FINAIS
295
como foi apontado ao longo do texto. Se, por um lado, as mobilizações sociais tem tido destaque
nas investidas por direitos, por outro, os posicionamentos contrários ao uso da maconha para
fins terapêuticos têm mantido as barreiras que impedem uma solução definitiva e favorável a
pacientes e suas famílias.
Assim como as associações e demais categorias empregadas para situar quem são os
envolvidos favoráveis e atuantes à estas terapias, poderes legislativos e judiciários nacionais
tem mantido intactos os ordenamentos legais que restringem o uso da maconha através da
inércia de suas atividades relacionadas ao tema. Igualmente, a ANVISA, órgão a que compete
exercer o controle, fiscalização e regulação sanitária de todos os produtos e serviços, nacionais
ou importados, submetidos à vigilância sanitária, tais como medicamentos, alimentos,
cosméticos, serviços de saúde, entre outros, também mantem-se inativa desde 2015, sobre a
regulamentação da produção nacional e usos de maconha para fins terapêuticos, apesar da
pressão exercida pelas associações em defesa da causa.
Com peso político, representativo do atual governo federal brasileiro, as declarações do
então Ministro da Cidadania, porta-voz do Presidente da república sobre diversas questões,
entre elas a legalização e regulamentação do cultivo e uso de maconha para fins terapêuticos,
tem demonstrado o conservadorismo sem embasamento científico que a gestão sustenta, ao
repreender qualquer iniciativa que busque atender a demanda social exposta.
De modo mais explícito, o tensionamento encabeçado pelo Conselho Federal de
Medicina e pela Sociedade Brasileira de Psiquiatria tem marcado posição conjunta e contrária
ao uso terapêutico da maconha, reendossada ao longo dos últimos cinco anos, sem qualquer
diálogo com a sociedade e sem preocupar-se em buscar argumentações científicas mais recentes
sobre pesquisas e experiências estrangeiras. Como estratégia para manter seu posicionamento,
as resoluções emitidas pelo CFM que restringem fortemente a prescrição destes tratamentos aos
profissionais submetidos ao órgão, passiveis de penalidades, constituem uma barreira grave
para a popularização do uso terapêutico da maconha, pois, sem prescrição e acompanhamento
médico a adesão a esta possibilidade fica restrita aqueles que buscam autonomamente
informações sobre o tema e ainda impossibilita o pedido de importação destes produtos junto a
ANVISA. Ainda assim, busquei pontuar que parte dos profissionais da medicina descordam do
conselho da classe e tem exercido sua profissão de acordo com os resultados que eles mesmos
vem acompanhando.
Esta dualidade de posicionamentos é composta também por questões e temáticas menos
explícitas, entre elas, deve ser adicionada ao embate a força econômica e política dos interesses
296
da indústria farmacêutica em, por um lado, não perder mercado consumidor de fármacos já
existentes e, por outro, conquistar a hegemonia de produção e comércio de produtos derivados,
isolados ou sintetizados da maconha, dada a evidência dos efeitos positivos demonstrados pela
planta em casos clínicos e pesquisas científicas. Este interesse se contrapõe a reivindicação das
associações que defendem um modelo mais acessível financeiramente, que pressupõe o direito
ao cultivo doméstico e extração caseira artesanal com custos infinitamente inferiores às drogas
industrializadas.
Outro interesse menos explícito que necessita ser considerado nesta arena de disputas,
está o poder regulador do Estado, que aparece na forma de controle moral e legal, como
discutido a partir de Michel Foucault. Este aspecto, embora menos evidente, ressoa em
concepções e julgamentos socialmente compartilhados, que envolvem preconceitos e tabus
sobre o uso de substâncias psicoativos, sobretudo ilícitas, categorizadas como “drogas”. Neste
sentido é preciso registrar também que, embora a ênfase aqui tenha sido sobre o uso terapêutico
da maconha, qualquer discussão sobre “drogas” ilícitas precisa, necessariamente, ser
compreendida como parte de um contexto proibicionista que abrange questões sociais mais
amplas sobre preconceitos, marginalização, criminalização, encarceramento, entre outros
aspectos relacionados ao uso problemático e ao tráfico destas substâncias.
Ainda assim, no campo de disputas, interesses e possibilidades sobre o uso terapêutico
da maconha, é importante registrar que avanços vêm sendo conquistados paulatinamente, como
busquei apontar, em favor das demandas levantadas pelas associações. Neste sentido, embora
alguns avanços sejam mais evidentes, como as sentenças judiciais obtidas, outros, como a
sensibilização e divulgação de informações e conhecimentos sobre essa possibilidade
terapêutica e seus benefícios evidenciados na prática, estão voltados para um trabalho menos
objetivo e mais amplo de conscientização e dissipação de pré-conceitos socialmente
estabelecidos como verdade. Infelizmente, este não é um objetivo fácil ou rápido de ser
apreendido em uma pesquisa qualitativa focada no centro desta temática, pois suscitaria uma
pesquisa específica sobre as percepções sociais sobre a maconha, seus potenciais e usos
terapêuticos, que fogem das possibilidades aqui desenvolvidas.
A realização desta pesquisa e a contextualização deste cenário de disputas e diferentes
entendimentos sobre a maconha terapêutica, me permitiram chegar a algumas questões centrais
que parecem pautar as discussões em torno desta questão.
A primeira delas, como apresentado desde a introdução, diz respeito aos termos
utilizados pelos diferentes atores sociais envolvidos e as conotações positivadas ou pejorativas
297
implicadas na nomenclatura da planta e na submissão do seu uso em casos de saúde a
prerrogativa médica como único conhecimento válido para atestar quando e quem pode utilizar
este tratamento. Aliás, é juntando os discursos científicos das ciências biológicas e da saúde
que se falar em cannabis medicinal, nome científico e domínio médico, que este tema parece
conquistar mais abertura, embora subestime o saber construído pela prática de uso
desautorizado, porém eficaz, produzido pelas famílias que iniciaram esta reivindicação no
Brasil. Por outro lado, falar em maconha terapêutica amplia os sentidos do termo, pois, embora
estejamos tratando sobre a mesma planta e um uso direcionado para os cuidados de saúde,
possibilita um entendimento mais amplo e, em certo nível, desafiador sobre o que sabe desta
planta, a maconha. Por isso, estando a par deste campo de disputas e percebendo durante a
pesquisa que, de fato, os usos que conheci se dão pelo conhecimento empírico e não
necessariamente orientados por médicos, assim como os produtos utilizados são extratos
integrais da planta, optei por posicionar-me diante deste quadro de múltiplos entendimentos
utilizando preferencialmente o termo maconha terapêutica ou uso terapêutico da maconha.
Outro ponto central, me parece ser a legitimidade da demanda reivindicada. Sob a
perceptiva desta pesquisa, em que pude conhecer a realidade das famílias e das doenças para as
quais os derivados da maconha tem sido usados, acompanhando durante quase três anos a
evolução dos quadros clínicos e melhoras cognitivas-comportamentais das crianças que
motivaram a formação da Liga Canábica e ouvindo o vasto conhecimento desenvolvido e
articulado pelas mães e pais que se sentem seguros e confiantes com os efeitos propiciados pela
maconha, me parece relevante pontuar que esta é uma questão que contrapõe tipos de saberes
e autoridades sobre questões amplas, porém refletidas em casos particulares. Por isso, os
argumentos expostos por estas famílias, que consideram seus direitos individuais como
prerrogativa para a livre escolha de um tratamento, a partir da experiência cotidiana e do
itinerário terapêutico vivido por eles ao longo da vida das crianças, me parece se tratar de uma
demanda legítima e viável, que só é necessária em função das restrições legais e morais
impostas à maconha, que despreza seus potenciais benéficos.
Por outro lado, é possível compreender as ressalvas científicas sobre a necessidade de
estudos de longo prazo e adequados aos parâmetros das pesquisas clínicas randomizadas, duplo-
cedo, etc. Porém, este não parece ser exatamente o ponto central para a persistente restrição ao
uso terapêutico da maconha, já que na prática, os efeitos objetivados têm sido superiores aos
apresentados por medicamentos alopáticos, enquanto os efeitos adversos e colaterais são
considerados inferiores e menos danosos aos usuários, como todas as mães afirmam. É comum,
298
e foi evidenciado por algumas das falas da Audiência Pública, que o balanceamento entre riscos
e benefícios é necessário para a recomendação de uso de qualquer substância ou remédio e,
como já ouvi de médicos prescritores de tratamentos canábicos, a maconha tem apresentado
risco muito menor do que medicamentos largamente prescritos.
Se, de fato, a preocupação principal sobre a maconha recai sobre seus possíveis efeitos
negativos e danosos, não seria o caso de incentivar a realização de pesquisas em busca de
comprovações científicas? A rigor, o caminho tem sido o oposto pois, ao manter as restrições
de cultivo e uso, o desenvolvimento de pesquisas com a planta ainda depende de autorizações
especiais, entre outras burocracias que limitam e dificultam a sua realização.
O que esta pesquisa me permitiu perceber, foi que os argumentos restritivos ao uso
terapêutico se aproximam muito mais de um viés moral condenatório sobre a maconha, do que
propriamente sobre comprovações científicas. Procurei explicitar que mesmo o Conselho
Federal de Medicina, uma entidade de profissionais, não busca respaldar seus posicionamentos
em critérios científicos e, quando o faz, é de forma bastante concisa, como o decálogo aqui
exposto. Especialmente os demais opositores à demanda reivindicada pelas famílias, como o
posicionamento do poder executivo e mesmo as discussões em análise no Supremo Tribunal
Federal e nas tramitações legislativas, não se atém a critérios técnicos e científicos sobre a
planta, mas debruçam-se sobre a ilegalidade da planta como “droga”.
Esta provavelmente seja a questão menos explicita, porém mais importante deste debate:
o peso moral acerca da maconha que, de acordo com uma política proibicionista, impede que
avanços consistentes sejam viabilizados para o uso terapêutico. Este é um aspecto que pode ser
observado não apenas em declarações rasas como as proferidas pelo Ministro da Cidadania,
citadas anteriormente, mas faz parte de um entendimento social sobre as drogas e sua imediata
condenação legal e moral, alicerçada por desinformação e preconceito.
Afirmo isto pelos relatos que ouvi ao longo da pesquisa, em que as pessoas hoje
engajadas nas mobilizações e beneficiadas pelo uso medicinal dizer terem sido contrárias à
maconha e repreenderem o seu uso, sem qualquer fundamentação científica sobre a planta. Até
mesmo a professora da UFPB, hoje pesquisadora sobre o tema, compartilhava deste
entendimento socialmente difundido sobre a maconha. Essas pessoas só mudaram de visão ao
perceberem os efeitos derivados do uso terapêutico.
Ainda assim, esta pesquisa me leva a pensar que, considerando os principais
reivindicadores desta mudança como pertencentes a um segmento social privilegiado social e
economicamente, que conhece e tem desenvolvido uma rede de interações propositiva e
299
embasada científica e juridicamente, posso supor que este demanda ainda será alcançada,
embora seja difícil prever em quais termos e critérios. Por outro lado, me parece que esta
mobilização só pode acontecer por este segmento social informado, que encara barreiras
menores do que outros grupos marginalizados e criminalizados ao menor contato com a mesma
planta.
Muitas outras questões não foram ser exploradas neste trabalho, porém merecem ser
mencionadas como, quem sabe, insights para futuras pesquisas e análises, a serem
desenvolvidas por aqueles que se sentirem provocados pelo tema, assim como eu e outros
pesquisadores de diversas áreas cientificas vem fazendo.
Entender a opinião pública sobre o uso terapêutico da maconha, ou o porquê da não
participação de mais famílias nas mobilizações por este direito, mesmo experienciando os
efeitos benéficos deste uso, talvez tenham sido pontos relevantes que esta pesquisa não
alcançou. Outros marcadores sociais, como as trajetórias de vida e características pessoais e
familiares, como processos importantes para a formação da posição que as pessoas mobilizadas
assumem, também poderiam ser exploradas como um fator determinante para contrapor pessoas
engajadas e não-engajadas.
Os itinerários terapêuticos percorridos até a descoberta da maconha como uma
possibilidade terapêutica e as minúcias do aprendizado inicial sobre a maconha e seus efeitos,
embora tenham sido explorados por mim em conversas e nas entrevistas, constituem um
material rico e que será futuramente aproveitado para tratar deste ponto tão interessante.
Teorizações mais profundas sobre quem são as vozes legítimas e autorizadas a falar
sobre a maconha e seus potenciais terapêuticos, também possibilitariam uma análise
interessante que alia ciência e direito.
A aproximação entre os termos reivindicados pela Liga Canábica e os princípios da
fitoterapia, possibilitariam uma discussão interessante sobre práticas terapêuticas, tipos de
cuidados e modelos médicos em disputa por legitimidade.
O papel de cuidado, rapidamente mencionado por mim como uma atribuição destinada
sobretudo às mulheres, tema desenvolvido também por outros pesquisadores e pesquisadoras,
relacionado ao saber desenvolvido pela prática do uso da maconha e ao compartilhamento de
informações entre mães, me parece extremamente pertinente e necessário, bem como questionar
qual seria o papel dos pais, nestas situações.
Igualmente, pautar as redes de cuidado e afeto tecidas no convívio e compartilhamento
das dificuldades pessoais relacionadas as doenças e aproximadas ainda mais pelo uso de um
300
tratamento não convencional eficaz, me parece também interessante sob a perspectiva das
sociabilidades e emoções.
Buscar a fundo os embasamentos de juízes, legisladores e políticos também me parece
um ponto relevante que permitiria uma interpretação sobre o papel individual exercido por cada
um destes agentes em suas funções profissionais, ou seja, como a dimensão individual está
presente no papel administrativo exercido por eles, assim como as questões pessoais fazem
parte da construção de um movimento coletivo reivindicatório.
Estas são algumas das possibilidades que este campo me possibilitou observar e
desenvolver parcialmente nesta tese. As brechas, como dito, constituem um rico campo de
investigação e teorização a ser explorado.
Por fim, para quem acreditava que concluiria esta pesquisa com novas perspectivas para
o tema, em um cenário diferente, em que a regulamentação estivesse vigente e melhor adequada
as demandas sociais, passados quatro anos, encerar este trabalho no final de 2019 se mostrou
difícil diante da contínua enxurrada de acontecimentos, notícias e posicionamentos diversos
sobre o tema que continuam a tensionar e manter a indefinição jurídica e legal sobre o uso
terapêutico da maconha. Porém, é diante deste contexto em aberto que novas pesquisas e
abordagens poderão ser realizadas.
301
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http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462006000200015.
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