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classe produtora contra a apro- Entre 18 de março e 28 de

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priadora, a forma política, final- maio de 1871, pela primeira vez
mente descoberta, com a qual se
realiza a emancipação econômi- “[A Comuna] foi essencialmente um governo COMUNA na história, trabalhadores e tra-
balhadoras tomaram o poder

DE PARIS
ca do trabalho”. da classe operária, o produto da luta da classe do Estado e demonstraram, na
Queremos também fazer pre- produtora contra a apropriadora, a forma prática, ser possível inaugurar
sente a prática que nos possibili- política, finalmente descoberta, com a qual se uma nova forma de organização
tará derrubar o domínio do ca- realiza a emancipação econômica do trabalho” social e política. Duramente re-
pital e construir uma sociedade primida pelas classes dominan-
em que “sejamos tudo, ó produ- Karl Marx tes francesas, essa experiência
tores”: a partir da organização, proletária de 72 dias, conhecida

COMUNA DE PARIS 150


do trabalho coletivo e solidário como Comuna de Paris, foi – e
e do internacionalismo. Recor- “A Comuna ensinou o proletariado europeu segue sendo – fonte de inspira-
damos também as palavras de a pôr de uma forma concreta as tarefas da ção e aprendizado para as expe-
Lenin, quando em 1908 trata revolução socialista. O proletariado não riências revolucionárias levadas
dos ensinamentos da comuna: esquecerá a lição recebida. A classe operária a a cabo pela classe trabalhadora
“a Comuna é o modelo mais aproveitará [...]” em todo o mundo.
grandioso do mais grandioso Para celebrar os 150 anos da
V. I. Lenin
movimento proletário do século Comuna de Paris, um conjunto
XIX. [...] agitou profundamen- de 26 editoras de 15 diferentes
te o movimento socialista de países – construindo laços de
toda a Europa, revelou a força solidariedade internacionalista
da guerra civil, dissipou as ilu- – preparou este volume, publi-
sões patrióticas e acabou com a cado em 18 distintos idiomas.
fé ingênua nas aspirações nacio- Todo o processo desta publica-
nais da burguesia. A Comuna ção – contando com a seleção
ensinou o proletariado europeu dos textos, a tradução, o projeto
a pôr de uma forma concreta as gráfico e a capa – foi uma cons-
tarefas da revolução socialista. trução coletiva. Esta edição im-
O proletariado não esquecerá a pressa é uma exclusividade para
lição recebida. A classe operária os/as participantes do clube do
a aproveitará [...]” livro da Expressão Popular.
Dessa maneira, procuramos
Viva a comuna! mais do que manter vivo o le-
gado teórico da Comuna, que
nas palavras de Marx foi “essen-
cialmente um governo da classe
operária, o produto da luta da

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DE PARIS

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[Cc] Expressão Popular, 2021

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Projeto gráfico: Daniela Ruggeri, Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Capa: Jorge Luis Aguilar (Cuba)
Contra capa: Junaina Muhammed (India, Student Federation
of India/Young Socialist Artists)
Impressão e acabamento: Vox

1ª edição: maio de 2021 – 150 anos da comuna de Paris

EXPRESSÃO POPULAR
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Introdução: Abrindo
as portas para a utopia
Vijay Prashad

Durante 72 dias, em 1871, o povo de Paris abriu as portas


para a utopia. Diante de uma classe dominante que levou a
França a uma guerra catastrófica e à subserviência à Prússia,
os trabalhadores parisienses decidiram armar barricadas, es-
tabelecer seu próprio governo com seus próprios princípios
democráticos e tentar resolver os problemas que a classe do-
minante havia criado. Karl Marx escreveu em uma carta a
seu amigo Kugelmann em 12 de abril de 1871:
Que elasticidade, que iniciativa histórica, que capacidade de
sacrifício desses parisienses! Depois de seis meses de fome
e ruína, causada mais pela traição interna que pelo inimigo
externo, eles levantam-se, por sobre as baionetas prussianas,
como se nunca houvera uma guerra entre a França e a Ale-
manha e o inimigo não estivesse às portas de Paris. A história
não tem exemplo semelhante de tamanha grandeza. (Marx,
1997, p. 310)

Esses trabalhadores parisienses caminharam pelas ruas


como herdeiros da Revolução Francesa de 1789 e do le-
vante de 1848. Em cada um desses momentos, os trabalha-

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Vijay Prashad

dores alcançaram os céus, na esperança de criar um mun-


do projetado e governado pelos trabalhadores do mundo.
Mas, em ambos casos, o levante lhes foi arrancado, seja por
terem sido enganados por uma classe pequena, mas po-
derosa – a burguesia –, que usou a insurreição das massas
para seus próprios interesses, seja pela violência armada
do Estado mobilizada pelo governo de seus inimigos de
classe (entre eles a burguesia). Napoleão I e Napoleão III
se tornariam os instrumentos dos poderosos contra as as-
pirações de muitos (cf. Marx, 2015). As derrotas de 1789
e 1848 não detiveram os trabalhadores, que sabiam que a
luta em 1871 seria difícil. Esta terminaria em derrota, com
mais de 100 mil homens e mulheres mortos pela implacá-
vel burguesia francesa.

Bandeira vermelha sobre o Hôtel de Ville


Essa experiência de 72 dias ficou conhecida como Co-
muna de Paris. Foi chamada de “comuna” porque, em 1792,
os revolucionários organizaram suas cidades em enclaves
territoriais que desenvolveram princípios de autogoverno
local. Foi por conta dessa tradição de governo popular que
o levante de Paris foi assim nomeado. Em cada arrondis-
sement [distrito] de Paris, os communards estabeleceram
um Comitê de Vigilância, que enviou quatro membros ao
Comitê Central de toda a Comuna. Os representantes de
Paris provinham da classe trabalhadora, em particular dos
vários movimentos revolucionários das décadas anteriores
a 1871. Esse Comitê Central exigia a eleição dos funcioná-
rios municipais, o controle da polícia pelos órgãos eleitos,
eleição dos membros do judiciário, liberdade de imprensa e
de manifestação pública e que civis pudessem se armar para
defender a cidade (Rougerie, 2004; 2014).

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A Comuna começou como um gesto patriótico, uma for-


ma de defender Paris do exército prussiano. Rapidamen-
te, porém, assumiu um caráter mais radical e democrático
como consequência do ânimo popular e da influência dos
grupos revolucionários. Prosper-Olivier Lissagaray, que es-
creveu um relato detalhado da Comuna, da qual era mem-
bro, observou que aqueles que ascenderam a altos cargos
na Comuna eram “desconhecidos”, o que permitiu que ela
fosse “universal, não sectária e, portanto, poderosa”. Em
19 de março, um dia após o início da revolução da Comu-
na, Lissagaray escreveu: “A bandeira vermelha tremula no
Hôtel de Ville. O exército, o governo e a administração se
evaporaram com as brumas matinais. Das profundezas do
faubourg Saint-Antoine, da obscura rue Bastrol, o Comitê
Central é projetado à cabeça de Paris, em pleno sol do mun-
do.” (Lissagaray, 2021).
O Comitê Central realizou eleições para os vários órgãos
da comuna em 27 de março. No dia seguinte, escreve Lissa-
garay, os membros eleitos tomaram posse.
No dia seguinte, 200 mil ‘miseráveis’ foram ao Hôtel de Ville
dar posse a seus eleitos. Os batalhões, ao som dos tambores,
com a bandeira coroada do boné frígio e a franja vermelha
no fuzil, aos quais se somavam os infantes, artilheiros e ma-
rinheiros fiéis a Paris, desceram por todas as ruas até a place
de Grève como afluentes de um rio gigantesco. (Lissagaray,
2021)

Os funcionários eleitos marcharam, com seus lenços


vermelhos sobre os ombros. Os eleitos para vários órgãos
locais tinham mandatos precisos e inclusive poderiam ser
revogados livre e imediatamente se não funcionassem de
acordo com a vontade popular. Gabriel Ranvier, um pintor
de porcelana e um oficial eleito da Comuna, disse: “Em
nome do povo, é proclamada a Comuna”. Vive la Commu-

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ne!, gritavam as pessoas. “Os quepes dançam na ponta das


baionetas, as bandeiras fustigam o ar”, lembra Lissagaray.
“Os corações saltam, os olhos brilham, marejados de lágri-
mas”. Os agentes da contrarrevolução correram para di-
zer aos seus chefes em Versalhes: “Era mesmo toda Paris!”
(Lissagaray, 2021).

O caráter proletário da Comuna


Os decretos da Comuna de Paris mostram claramente o
caráter proletário de sua administração: fábricas abandona-
das deveriam ser ocupadas e geridas pelos trabalhadores; as
multas aplicadas aos trabalhadores foram abolidas; o tra-
balho noturno foi proibido nas padarias; e propriedades da
Igreja foram tomadas para uso social. As casas de penhores,
que davam uma espécie de segurança para os trabalhadores,
foram transformadas. “Fica bem claro que à liquidação da
Casa Municipal de Penhor deve suceder uma organização
social que dê, aos trabalhadores, garantias reais de socorro
e apoio em caso de desemprego. A implantação da Comu-
na prescreve novas instituições reparadoras que protejam o
trabalhador da exploração do capital” (cf. Lissagaray, 2021),
escreveram os communards.
A conduta da Comuna era que todos os membros das
classes trabalhadoras, incluindo os camponeses pobres, de-
veriam ser incorporados à nova sociedade – mesmo aqueles
que haviam lutado contra a Comuna. O chefe do Departa-
mento de Segurança Pública anunciou que “a Comuna ofe-
receu pão a 92 mulheres daqueles que nos matam. Não há
bandeira para as viúvas. A república tem pão para todas as
miseráveis e beijos para todos os órfãos” (Lissagaray, 2021).
Madame André Léo, da Associação Internacional dos Tra-
balhadores, escreveu em seu manifesto aos camponeses no

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interior: “Irmão, estás sendo enganado. Nossos interesses


são os mesmos. O que peço, tu também queres; a libertação
que reclamo é a tua [...]. Afinal, o que Paris quer é a terra
para o camponês, a ferramenta para o operário” (Lissagaray,
2021).
Karl Marx disse em uma mensagem para a Associação
Internacional dos Trabalhadores, dois dias após a queda da
Comuna (em texto que está presente neste livro), “Ela era
essencialmente um governo da classe operária, o produto da
luta da classe produtora contra a apropriadora, a forma po-
lítica, finalmente descoberta, com a qual se realiza a eman-
cipação econômica do trabalho” (ver, adiante, p. 63).
Os funcionários dos vários departamentos descobriram
que o Império os administrava de maneira ineficiente e
começaram a torná-los produtivos. Zéphyrin Camélinat,
um montador de bronze, organizou a Casa da Moeda, en-
quanto Albert Theisz, um entalhador, resolveu o caos nos
correios (Camélinat se tornaria o candidato presidencial do
Partido Comunista da França em 1924). Há outros nomes
que puseram suas mãos calejadas para desfazer a desordem
deixada pela burguesia, entre eles: Jean-Baptiste Treilhard,
no Departamento de Assistência Pública; Jules Fontaine,
nos Correios; Marius Faillet e Amédée Combault, no De-
partamento de Tributação, Louis-Guillaume Debock, na
Imprensa Nacional. Elisée Reclus e Benjamin Gastineau
reorganizaram a Biblioteca Nacional para que fosse usada
pelo povo, enquanto Gustave Courbet, que supervisionava
a Federação dos Artistas, abriu os museus para a fruição po-
pular. O trabalho dessas pessoas, ao longo de apenas alguns
meses, mostrou a eficiência do governo proletário, a capaci-
dade daqueles com sujeira sob as unhas de administrar de-
partamentos de acordo com o interesse de toda a sociedade,
não apenas de alguns.

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Os limites da Comuna
Esses líderes da Comuna tinham origens políticas diver-
sas. Havia seguidores de Louis Auguste Blanqui, de Pierre-
-Joseph Proudhon e de Louise Michel; apenas alguns eram
seguidores de Marx e integravam a Internacional. A partir
de seus vários pontos de vista, os membros da Comuna de-
mandaram uma série de reformas, mas o que lhes faltava era
um programa de ação amplo e claro.
A falta de tal programa ficou evidente em relação ao
Banco da França. Conforme registra Lissagaray, “Desde 19
de março, os diretores do Banco esperavam todos os dias
o confisco de seu cofre”. Centenas de milhões de francos
estavam em seu túmulo, uma riqueza tão grande que os
banqueiros não podiam sequer imaginar transferi-la para os
confins seguros do território da contrarrevolução em Versa-
lhes. A pressão foi tanta que, no dia 23 de março, o diretor
do banco, Gustave Rouland, fugiu de Paris. Ele deixou o
banco nas mãos do vice-diretor, Alexandre de Plœuc. De
Plœuc entendeu os limites dos líderes eleitos da Comuna,
muitos dos quais ficaram deslumbrados com os dados e nú-
meros que ele divulgou. Ele liberou pouco dinheiro para a
Comuna, “franco a franco”, mesmo sabendo que o banco ti-
nha riqueza suficiente para expandir o trabalho da Comuna
e consolidá-la contra o fracasso.
Charles Beslay, membro da Associação Internacional de
Trabalhadores e integrante mais antigo do governo da Co-
muna de Paris, foi falar com de Plœuc, que lhe disse que o
banco detinha a “fortuna de seu país” e deveria ser tratado
como sacrossanto, mais precioso do que a propriedade das
igrejas que haviam sido expropriadas. Beslay voltou às pres-
sas para seus camaradas no Hôtel de Ville com essa nota de
rendição: “O Banco da França é a fortuna do país; sem ele,

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não há mais indústria, não há mais comércio; se o violardes,


todos os seus títulos irão à falência” (Lissagaray, 2021). A
Comuna não teve coragem de ocupar o banco, colocá-lo sob
controle democrático e usar sua riqueza para o bem social.
Engels (2015, p. 352) escreveu mais tarde que “O mais di-
fícil de compreender é, certamente, o sagrado respeito com
que se ficou reverenciosamente parado às portas do Banco
da França”. A principal explicação é que as formas de socia-
lismo utópico que dominavam a Comuna não lhes permitiu
entender a necessidade de subordinar as finanças à demo-
cracia; de transplantar o coração pulsante da burguesia para
as mãos do proletariado.

Esmagar o Estado
A reverência ao Banco da França veio com a crença nas
estruturas do Estado francês. Em 12 de abril de 1871,
Marx lembrou a Kugelmann o que ele havia dito em O 18
Brumário de Luís Bonaparte; a saber: que após a Revolução
de 1789, a próxima tentativa de criar uma revolução “não
será mais, como antes, de transferir a máquina burocrática
militar de uma mão para outra, e sim de esmagá-la” (Marx,
1997, p. 310, grifo do autor).
A rigidez de classe se calcificou nas instituições do Estado,
hábitos dos funcionários tão lamentáveis quanto as regras e
regulamentos dos escritórios. Em 72 dias, essas mudanças
não poderiam ser implementadas, mas a Comuna sequer
tentou. Após sua queda, Marx escreveu à Internacional:
“Mas a classe operária não pode apossar-se simplesmente
da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para
os seus próprios objetivos” (ver adiante, p. 56). Essa máqui-
na acabará sendo o Cavalo de Troia da contrarrevolução,
advertiu, já que não se dobrará à vontade popular, indepen-

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dentemente das melhores intenções do novo governo. En-


gels destacou esse ponto em seu prefácio de 1891:
A Comuna teve mesmo de reconhecer, desde logo, que a classe
operária, uma vez chegada à dominação, não podia continuar
a administrar com a velha máquina de Estado; que essa classe
operária, para não perder de novo a sua própria dominação,
acabada de conquistar, tinha, por um lado, de eliminar a velha
maquinaria de opressão até aí utilizada contra si própria, mas,
por outro lado, de se precaver contra os seus próprios depu-
tados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer exceção,
revogáveis a todo o momento. (Engels, 2015, p. 354-356)

Então, Engels concluiu em uma reflexão precisa e teórica:


Mas esses órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham se
transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios in-
teresses particulares, de servidores da sociedade em senhores
dela. Como se pode ver, por exemplo, não simplesmente na
monarquia hereditária mas igualmente na república demo-
crática. (Engels, 2015, p. 354-356)

Duas décadas depois, durante a Revolução de Outubro de


1917, V. I. Lenin releu a mensagem de Marx sobre a Comu-
na e refletiu sobre os perigos da máquina estatal herdada. As
velhas instituições do Estado – e não o sistema parlamentar,
escreveu Lenin – tinham de ser destruídas e substituídas
por novas formas de governo proletário. Durante a Revo-
lução de 1905 contra o império tsarista, os trabalhadores
russos criaram uma forma de governo e administração re-
presentativa chamada soviete. Em 1908, escrevendo sobre a
Comuna e sobre a Revolução Russa de 1905, Lenin (1977)
escreveu: “A Comuna ensinou o proletariado europeu a co-
locar concretamente as tarefas da revolução socialista”; uma
revolução tinha que enfrentar as aspirações imediatas da
democracia e atender às necessidades humanas. O Soviete
avançou na forma da Comuna, embora a própria Comuna
tivesse feito avanços imensos. Em O Estado e a revolução,

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Lenin refletiu sobre os procedimentos democráticos da Co-


muna:
Assim, a Comuna ‘contentava-se’, por assim dizer, em
substituir a máquina do Estado destruída por uma demo-
cracia mais completa: supressão do exército permanente,
elegibilidade e amovibilidade de todos os funcionários. Na
realidade, ela ‘contentava-se’, assim, em substituir – obra
gigantesca – certas instituições por outras instituições
essencialmente diferentes. É esse, justamente, um caso
de‘transformação de quantidade em qualidade’: a democra-
cia, realizada tão plenamente e tão metodicamente quanto
é possível sonhar-se, tornou-se proletária, de burguesa que
era; o Estado (essa força destinada a oprimir uma classe)
transformou-se numa coisa que já não é, propriamente fa-
lando, o Estado. (ver, adiante, p. 105)

Refletindo sobre a Comuna para Kugelmann, Marx


escreveu: “A história não tem exemplo de tamanha gran-
deza” (Marx, 1997, p. 310). Mas aqui ele estava errado.
As lutas da classe trabalhadora contra o capitalismo es-
tão repletas de exemplos de tentativas heróicas e cria-
tivas de substituir o governo repressivo e estabelecer
novas formas democráticas. No final do século XVIII, a
classe trabalhadora no Haiti se revoltou e se emancipou
da dominação das plantations capitalistas; eles tentaram
criar novas formas de governança, algumas delas inspi-
radas pelos modelos dos “marrons” criados pelo povo es-
cravizado que fugiu e estabeleceu suas próprias comuni-
dades igualitárias. Essas experiências enriquecem nossa
compreensão da tendência à organização democrática em
meio às revoltas proletárias. Há uma linha que conecta a
experimentação do Haiti (1804) e a Comuna de Xangai
(1927). Todos esses são exemplos a serem detidamente
estudados para que possamos ter maior clareza sobre as
limitações da dinâmica das revoluções proletárias e estu-
dar como construir melhor a democracia proletária.

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Revolução interrompida
Quando os trabalhadores tomaram Paris, eles não con-
fiscaram o Banco da França. Tampouco reuniram suas con-
sideráveis forças e marcharam sobre Versalhes para forçar a
rendição do governo burguês. Tendo permitido que a ad-
ministração de Adolphe Thiers permanecesse no comando,
a Comuna de Paris deu início à sua própria destruição. Isso
deixou Marx furioso em meados de abril, poucas semanas
depois do início da Comuna. Ele escreveu a Kugelmann no
dia 12 de abril de 1871:
Se eles forem derrotados, apenas se poderá censurar seu ‘bom
caráter’. Eles deviam ter marchado imediatamente sobre Ver-
salhes depois que Vinoy, primeiro, e em seguida a seção rea-
cionária da Guarda Nacional de Paris se retiram. O momento
preciso foi perdido por causa de escrúpulos de consciência.
Eles não queriam começar a guerra civil, como se esse nocivo
aborto Thiers já não a houvesse iniciado com sua tentativa de
desarmar Paris. (Marx, 1997, p. 310-311)

A inação da Comuna permitiu que Thiers levasse o go-


verno reacionário e as Forças Armadas para Versalhes. Os
communards não deveriam ter permitido que as tropas de
Versalhes partissem de Paris; se os tivesse retido na cidade,
é possível que a Comuna tivesse conquistado o apoio da
maioria dos soldados. Mas isso não aconteceu.
Essa lição ficou marcada em outros revolucionários.
Após a Revolução de Outubro, os jovens soviéticos es-
tabeleceram o Exército Vermelho Operário e Camponês
para defender sua tomada do poder contra as velhas clas-
ses reacionárias e os exércitos imperialistas; estava claro
que a revolução seria destruída, a menos que as forças
revolucionárias construíssem sua força e fragmentassem
a oposição. Essa foi uma lição importante aprendida nas
ruínas da Comuna de Paris.

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Thiers e seu governo reacionário negociaram com os


prussianos para recuperar os soldados franceses capturados,
remontar seu exército e atacar Paris. Os communards cons-
truíram barricadas e se prepararam para o eventual ataque.
Quando este ocorreu, entre 22 e 28 de maio, não consegui-
ram manter o controle sobre a cidade. Cada rua se tornou
um campo de batalha, mas, a cada batalha, os communards
tiveram que recuar cada vez mais em sua cidade perdida.
O exército da burguesia foi brutal, matando os communards
onde estivessem, lavando as ruas com sangue. Lissagaray
escreveu que o exército de Versalhes “se transformou em
um imenso pelotão de fuzilamento” (Lissagaray, 2021). Em
Montmartre, o batalhão de mulheres da comuna manteve
sua posição por horas. As tropas do general Justin Clin-
chant as fulminaram e capturaram o líder dos communards
da área, que foi colocado diante das tropas de Versalhes.
“Quem é você?”, perguntou o oficial comandante. “Lévè-
que, operário pedreiro, membro do Comitê Central”, foi a
resposta. O comandante bufou, “Ah! Agora são os pedreiros
que querem comandar!”. Esse era o nível de desprezo da
burguesia. Lévèque levou um tiro no rosto.
O exército conduziu os communards capturados ao ce-
mitério Père Lachaise, onde foram alinhados e fuzilados.
O general Gaston Alexandre Auguste, marquês de Galli-
ffet, dirigiu essas tropas para o assassinato. Mais tarde, ele
seria enviado à Argélia, para onde levou suas habilidades
brutais praticadas contra os communards para apoiar as
aspirações imperiais francesas no norte da África. No
cemitério, o “Muro dos communards” parece ainda estar
manchado com o sangue deles, os buracos de bala ainda
visíveis 150 anos após o massacre. Em uma semana, as
forças de Versalhes assassinaram 40 mil parisienses. Se-
gundo Lissagaray (2021):

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Como o sepultamento desse exército de mortos ultrapassava


todas as forças, tentaram dissolvê-los. As casamatas tinham
sido atulhadas de cadáveres; espalharam substâncias incendiá-
rias e improvisaram fornos crematórios; o resultado foi um
lamaçal. Nas colinas Chaumont, foi erguida uma fogueira
descomunal encharcada de petróleo e, durante dias a fio, uma
fumaça espessa e nauseabunda coroou os cimos.

Adolphe Thiers examinou as ruas encharcadas de sangue


e declarou: “O solo de Paris está coberto com seus cadá-
veres. Podemos esperar que este terrível espetáculo ainda
possa ser uma lição para aqueles insurgentes que ousaram se
declarar partidários da Comuna de Paris”. Isso foi no dia 25
de maio. Três dias depois, em 28 de maio, a Comuna caiu.

Cada derrota é uma lição


para a classe trabalhadora
A Comuna durou apenas dois meses. Sobre os corpos dos
communards, a burguesia da França construiu uma enorme
catedral, a Sacré Coeur (“sagrado coração”). Foi construída,
disse a Igreja Católica, para “expiar os crimes da Comuna
de Paris”. Hoje, não há nenhuma menção à história gro-
tesca que se assenta sob este enorme edifício com sua vista
para Paris. A visão burguesa sobre a Comuna trata o levante
como um pecado e culpa os communards por suas próprias
mortes. Mas a revolta não matou a si mesma; foi morta pela
burguesia vingativa que procurou arrancar a soberania du-
ramente conquistada das mãos da classe trabalhadora e res-
tabelecer sua ordem para beneficiar a si mesma. Os avanços
democráticos da Comuna de Paris foram deixados de lado,
sua memória apagada sob a catedral.
Em seu prefácio à compilação de cartas de Marx a Ku-
gelmann, Lenin escreveu: “Marx sabia reconhecer que havia

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momentos na história em que uma luta das massas, mesmo


em uma causa sem esperança, era necessária para o bem da
educação futura dessas massas e sua formação para a próxi-
ma luta”. A lição da Comuna não foi apenas para os traba-
lhadores parisienses ou para a França, mas uma lição para a
classe trabalhadora internacional, para nossa formação em
nossas próprias lutas para superar os dilemas da humanida-
de e avançar em direção ao socialismo. Refletindo sobre a
Comuna de Paris em 1911, no quadragésimo aniversário do
levante, Lenin escreveu: “A causa da Comuna é a causa da
revolução social, é a causa da completa emancipação política
e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado
mundial. E, nesse sentido, é imortal” (Lenin, 2017).

Referências
ENGELS, F. Introdução à edição de 1891. In: A revolução antes da revolução, v.
II. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
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LENIN, V. I. O estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
LENIN, V. I. Os ensinamentos da comuna. Publicado originalmente em Za-
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www.marxists.org/portugues/lenin/1908/03/23.htm. 1977. Acesso em: 19
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LENIN, V. I. Prefácio à edição russa de Cartas a Kugelmann. In: O 18 brumário
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