Você está na página 1de 6

MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA 107

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, bur-


guês da corporação* e oficial, em suma, opressores e oprimidos,
estiveram em constante antagonismo entre si, travaram uma luta
ininterrupta, umas vezes oculta, aberta outras, uma luta que
acabou sempre com uma transformação revolucionária de toda a
sociedade ou com o declínio comum das classes em luta.
Nas épocas anteriores da história encontramos quase por toda
MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA39 a parte uma articulação completa da sociedade em vários estados
[ou ordens sociais — Stànde], uma múltipla graduação das posi-
Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo. ções sociais. Na Roma antiga temos patrícios, cavaleiros, plebeus,
Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassalos, burgueses
caçada a este espectro, o papa e o tsar, Metternich e Guizot, das corporações, oficiais servos, e para mais com novas gradua-
radicais franceses e polícias alemães. ções particulares dentro de quase todas estas classes.
Onde está o partido na oposição que não tivesse sido vilipen- A moderna sociedade burguesa, saída do declínio da socie-
diado pelos seus adversários no poder como comunista, onde dade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Limitou-se a
está o partido na oposição que não tivesse, em resposta, bran- colocar novas classes, novas condições de opressão, novas for-
dido o ferrete do comunismo tanto contra os oposicionistas mais mas de luta, no lugar das anteriores.
progressistas como contra os seus adversários reaccionários? A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo,
Deste facto decorrem duas conclusões. por ter simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade
O comunismo é já reconhecido por todos os poderes euro- está a cindir-se, cada vez mais, em dois grandes campos hostis,
peus como um poder. em duas grandes classes em confronto directo: a burguesia e o
Já é tempo de os comunistas exporem abertamente ao proletariado.
mundo inteiro o seu modo de ver, os seus fins, as suas tendên- Dos servos da Idade Média saíram os burgueses com direito
cias, e de contraporem à lenda do espectro do comunismo um de cidade [Pfahlbiirger] das primeiras cidades; a partir destes
Manifesto do próprio partido. munícipes desenvolveram-se os primeiros elementos da burguesia
Para este fim reuniram-se em Londres comunistas das mais [Bourgeoisie].
diversas nacionalidades e delinearam o Manifesto seguinte, que é O descobrimento da América, a circum-navegação de África,
publicado em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dina- criaram um novo campo de acção para a burguesia em ascensão.
marquês.
I
registada, era praticamente desconhecida. De então para cá Haxthausen desco-
BURGUESES E PROLETÁRIOS* briu a propriedade comum da terra na Rússia, Maurer provou ter sido esse o
fundamento social de que historicamente saíram todas as tribos alemãs, e a
pouco e pouco descobriu-se que as comunidades aldeãs com propriedade
comum da terra foram a forma originária da sociedade desde a índia à Irlanda.
A história de toda a sociedade** até hoje é a história de lutas Finalmente foi posta a descoberto a organização interna desta sociedade
de classes. comunista original, na sua forma típica, graças à descoberta culminante de
Morgan da verdadeira natureza da Gens e da sua situação na tribo. Com a
dissolução destas comunidades primitivas começa a divisão da sociedade em
* Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietá- classes diferenciadas e por fim antagónicas. Procurei acompanhar este processo
rios dos meios de produção social e empregadores de trabalho assalariado. Por de dissolução em Der Ursprung der Familie, dês Privateigenthums und dês
proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, não Staats, zweite Auflage, Stuttgart 1886. [A Origem da Família, da Propriedade
tendo meios próprios de produção, estão reduzidos a vender a sua força de Privada e do Estado, segunda edição, Estugarda, 1886. — Ver o terceiro tomo da
trabalho para poderem viver. (Nota de Engels à edição inglesa de 1888.) presente edição.] (Nota de Engels à edição inglesa de 1888.J'1
** Isto é, com exactidão, a história transmitida por escrito. Em 1847 a * Guild-master membro pleno de uma corporação, mestre dentro de uma
pré-história da sociedade, a organização social que antecedeu toda a história corporação, e não o seu presidente. (Nota de Engels à edição inglesa de 1888.)
108 KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA 109

O mercado das índias orientais e da China, a colonização da aqui uma cidade-república independente, além um terceiro-
América, a troca com as colónias, a multiplicação dos meios de -estado da monarquia sujeito a impostos, depois ao tempo da
permuta e das mercadorias em geral deram ao comércio, à nave- manufactura contrapeso contra a nobreza na monarquia de
gação e à indústria um impulso nunca até então conhecido, e, estados [ou ordens sociais — stándisch] ou absoluta, a base
com ele, um rápido desenvolvimento ao elemento revolucionário principal das grandes monarquias em geral, acabou por con-
na sociedade feudal em desintegração. quistar, desde o estabelecimento da grande indústria e do mer-
A organização até aí feudal ou corporativa da indústria já cado mundial, o domínio político exclusivo no moderno Estado
não era suficiente para a procura que crescia com novos merca- parlamentar. O executivo do Estado moderno não é mais do
dos. Substituiu-a a manufactura. Os mestres das corporações que uma comissão para administrar os negócios colectivos de
foram desalojados pela classe média industrial; a divisão do tra- toda a classe burguesa.
balho entre as diferentes corporações desapareceu ante a divisão A burguesia desempenhou na história um papel altamente
do trabalho dentro de cada uma das próprias oficinas. revolucionário.
Mas os mercados continuavam a crescer, a procura conti- A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas as rela-
nuava a subir. Também a manufactura deixou de bastar. Então ções feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos
o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus supe-
Para o lugar da manufactura veio a grande indústria moderna; riores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem
para o lugar da classe média industrial vieram os milionários que não o do interesse nu, o do insensível "pagamento em
industriais, os chefes de exércitos industriais inteiros, os burgue- dinheiro". Afogou a sagrada reverência da exaltação devota, do
ses modernos. fervor cavalheiresco, da melancolia sentimental do burguês filis-
A grande indústria criou o mercado mundial que o desco- tino, na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a dignidade
brimento da América preparara. O mercado mundial veio dar ao pessoal no valor de troca, e no lugar de um sem-número de
comércio, à navegação e às comunicações por terra um desen- liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem
volvimento imensurável. Este, por sua vez, veio reagir sobre a escrúpulos, do comércio. Numa palavra, no lugar da exploração
expansão da indústria, e na mesma medida em que a indústria, o encoberta com ilusões políticas e religiosas, colocou a explora-
comércio, a navegação e os caminhos-de-ferro se expandiam, ção seca, directa, despudorada, aberta.
desenvolvia-se também a burguesia, que multiplicava os seus A burguesia despiu todas as actividades até aqui veneráveis e
capitais e relegava para um plano secundário todas as classes que estimadas com piedosa reverência da sua aparência sagrada.
a Idade Média tinha legado. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de
Vemos, pois, como a burguesia moderna é ela própria o produ- ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.
to de um longo curso de desenvolvimento, de uma série de pro- A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu
fundas transformações no modo de produção e de intercâmbio. sentimental e reduziu-a a uma mera relação de dinheiro.
Cada uma destas etapas de desenvolvimento da burguesia foi A burguesia pôs a descoberto que a exibição brutal de força,
acompanhada de um correspondente progresso político. Estado que a reacção tanto admira na Idade Média, teve na mais indo-
[ou ordem social — Stand] oprimido sob o domínio dos senho- lente mandriice o seu complemento adequado. Foi ela quem
res feudais, associação armada e auto-administrada na comuna*, primeiro demonstrou o que a actividade dos homens pode con-
seguir. Realizou maravilhas completamente diferentes das pirâ-
mides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas,
* "Comuna" se chamava em França à cidade que nascia mesmo antes de ter levou a cabo expedições completamente diferentes das antigas
conquistado dos senhores e amos feudais a auto-administração local e direi-
tos políticos como «terceiro estado». De um modo geral, para o desenvolvi- migrações de povos e das cruzadas 55 .
mento económico da burguesia, é a Inglaterra tomada como país típico; para o A burguesia não pode existir sem revolucionar permanente-
desenvolvimento político, a França. (Nota de Engels à edição inglesa cie 1888.) mente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações
Assim chamavam os habitantes das cidades da Itália e da França às suas de produção, por conseguinte todas as relações sociais. A con-
comunidades urbanas, depois de terem comprado ou conquistado aos senhores servação, sem alterações, do antigo modo de produção era, pelo
feudais os primeiros direitos de auto-administração. (Nota de Engeh à edição
alemã de 1890.) ' contrário, a condição primeira de existência de todas as anterio-
HOv. KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA 111

rés classes industriais. O permanente revolucionar da produção, narem-se burguesas. Numa palavra, a burguesia cria para si um
o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e mundo à sua imagem e semelhança.
o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Criou
as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cor- cidades enormes, aumentou num grau elevado o número da
tejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, população urbana face à rural, e deste modo arrancou uma parte
todas as recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar- significativa da população à idiotia [Idiotismus] da vida rural. E
-se. Tudo o que era dos estados [ou ordens sociais — stàndisch] do mesmo modo que tornou dependente o campo da cidade,
e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os tornou dependentes os povos bárbaros e semibárbaros dos civi-
homens são por fim obrigados a encarar com os olhos bem aber- lizados, os povos agrícolas dos povos burgueses, o Oriente do
tos a sua posição na vida e as suas relações recíprocas. Ocidente.
A necessidade de um mercado em constante expansão para Cada vez mais a burguesia suprime a dispersão dos meios de
os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. produção, da propriedade e da população. Aglomerou a popula-
Tem de se fixar em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte, ção, centralizou os meios de produção e concentrou a proprie-
criar ligações em toda a parte. dade em poucas mãos. A consequência necessária disto foi a cen-
A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, deu tralização política. Províncias independentes, quase somente
uma forma cosmopolita à produção e ao consumo de todos os aliadas, com interesses, leis, governos e direitos alfandegários
países. Para grande pesar dos reaccionários, roubou à indústria a diversos, foram reunidas numa nação, num governo, numa lei,
base nacional em que assentava. As primitivas indústrias nacio- num interesse nacional de classe, numa linha aduaneira.
nais foram aniquiladas, estão ainda dia a dia a ser aniquiladas. Com o seu domínio de classe de um escasso século, a burgue-
São desalojadas por novas indústrias cuja introdução se torna sia criou forças de produção mais massivas e mais colossais do
uma questão de vida ou de morte para todas as nações civiliza- que todas as gerações passadas juntas. Subjugação das forças
das, por indústrias que já não trabalham matérias-primas nacio- naturais, maquinaria, aplicação da química à indústria e à
nais, mas matérias-primas oriundas das zonas mais afastadas, e lavoura, navegação a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléc-
cujos produtos são consumidos não só no próprio país mas em tricos, arroteamento de continentes inteiros, criação da navegabi-
todos os continentes ao mesmo tempo. Em lugar das velhas lidade dos rios, populações inteiras brotando do solo — que
necessidades, satisfeitas pelos produtos do país, surgem necessi- século anterior teve ao menos um pressentimento de que estas
dades novas que exigem para a sua satisfação os produtos dos forças de produção estavam adormecidas no seio do trabalho
países e dos climas mais longínquos. Em lugar da velha auto- social?
-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surgem um Vimos assim que: os meios de produção e de intercâmbio
intercâmbio generalizado e uma dependência generalizada das sobre cuja base se formou a burguesia foram criados na socie-
nações entre si. E tal como na produção material, assim também dade feudal. Numa certa etapa do desenvolvimento destes meios
na produção espiritual. Os produtos espirituais de cada uma das de produção e de intercâmbio, as relações no quadro das quais a
nações tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da
nacional vai-se cada vez mais tornando impossível, e das muitas agricultura e da manufactura — numa palavra, as relações de
literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial. propriedade feudais — deixaram de corresponder às forças pro-
Pelo rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de dutivas já desenvolvidas. Tolhiam a produção, em vez de a
produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas, a bur- fomentarem. Transformaram-se em outros tantos grilhões.
guesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a Tinham de ser quebradas, e foram quebradas.
civilização. Os baixos preços das suas mercadorias são a artilha- Em seu lugar surgiu a livre concorrência, com a constituição
ria pesada com que derruba todas as muralhas chinesas, com que social e política a ela adequada, com o domínio económico e
força à capitulação o ódio mais obstinado dos bárbaros aos político da classe burguesa.
estrangeiros. Compele todas as nações a apropriarem o modo de Um movimento semelhante desenrola-se diante dos nossos
produção da burguesia, sob pena de ruína total; compele-as a olhos. As relações burguesas de produção e de intercâmbio, as
introduzirem no seu seio a chamada civilização, isto é, a tor- relações de propriedade burguesas, a sociedade burguesa mo-
K.ARL MARX E FRIEDRICH ENGELS MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA 113

derna que desencantou meios tão poderosos de produção e de igualmente expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a
intercâmbio, assemelha-se ao feiticeiro que já não consegue todas as flutuações do mercado.
dominar as forças ocultas que trouxe à luz. De há decénios para O trabalho dos proletários perdeu, com a expansão da maqui-
cá, a história da indústria e do comércio é apenas a história da jnaria e a divisão do trabalho, todo o carácter autónomo e, por-
revolta das modernas forças produtivas contra as modernas rela- tanto, todos os atractivos para os operários. Ele torna-se um
ções de produção, contra as relações de propriedade que são as mero acessório da máquina ao qual se exij>e apenas o manejo
condições de vida da burguesia e do seu domínio. Basta mencio- mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. Os custos
nar as crises comerciais que, na sua recorrência periódica, põem que o operário ocasiona reduzem-se por isso quase só aos meios
em causa, cada vez mais ameaçadoras, a existência de toda a de subsistência de que carece para o seu sustento'e para a repro-
sociedade burguesa. Nas crises comerciais é regularmente des- dução da sua raça. O preço de uma mercadoria, e portanto tam-
truída uma grande parte não só dos produtos produzidos como bém do trabalho 56 , é, porém, igual ao seu custo de produção. Na
das forças produtivas já criadas. Nas crises declara-se uma epi- medida em que aumenta a repugnância causada pelo trabalho
demia social que teria parecido um contra-senso a todas as épo- decresce portanto o salário. Mais ainda: na medida em que cres-
cas anteriores — a epidemia da sobreprodução. A sociedade vê- cem a maquinaria e a divisão do trabalho, cresce também a
-se de repente retransportada a um estado de momentânea quantidade do trabalho, seja pelo aumento das horas de traba-
barbárie; parece-lhe que uma fome, uma guerra de destruição lho seja pelo aumento do trabalho exigido num dado lapso de
generalizada lhe cortaram todos os meios de subsistência; a tempo, pelo funcionamento acelerado das máquinas, etc.
indústria e o comércio parecem-lhe aniquilados. E porquê? Por- A indústria moderna transformou a pequena oficina do mes-
que a sociedade possui civilização em excesso, meios de subsis- tre patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas
tência em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso. de operários, reunidas na fábrica, são organizadas como exérci-
As forças produtivas de que dispõe deixam de servir para a pro- tos. São colocados, como soldados rasos industriais, sob a vigi-
moção das relações de propriedade burguesas; pelo contrário, lância de uma hierarquia completa de sargentos e oficiais. Não
tornaram-se demasiado poderosas para estas relações, e são por são apenas servos da classe burguesa, do Estado burguês; dia a
elas tolhidas; e assim que superam este obstáculo lançam na dia, hora a hora, são feitos servos da máquina, do capataz, e
desordem toda a sociedade burguesa, põem em perigo a existên- sobretudo de cada um dos próprios burgueses fabricantes. Este
cia da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se despotismo é tanto mais mesquinho, mais odioso, mais exaspe-
demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas criada. —E rante, quanto mais abertamente proclama ser o lucro a sua fina-
como supera a burguesia as crises? Por um lado, pela destruição lidade.
forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela Quanto menos habilidade e dispêndio de força o trabalho
conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda manual exige, isto é, quanto mais a indústria moderna se desen-
de mercados velhos. Como, então? Preparando crises mais gene- volve, tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo das
ralizadas e mais graves, e reduzindo os meios para prevenir as mulheres*. Diferenças de sexo e de idade já não têm qualquer
crises. validade social para a classe operária. Há apenas instrumentos
As armas com que a burguesia derrubou o feudalismo viram- de trabalho que, segundo a idade e o sexo, têm custos diferentes.
-se agora contra a própria burguesia. Terminada temporariamente a exploração do operário pelo
Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a fabricante, na medida em que recebe o seu salário em dinheiro,
morte; também gerou os homens que vão usar essas armas — os logo lhe caem em cima os outros sectores da burguesia, o senho-
operários modernos, os proletários. rio, o merceeiro, o penhorista, etc.
E na mesma medida em que a burguesia, isto é, o capital se As pequenas classes intermédias anteriores, os pequenos indus-
desenvolve, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos triais e comerciantes e os rentiers**, os artesãos e os camponeses,
operários modernos, os quais só vivem enquanto têm trabalho e
só têm trabalho enquanto o seu trabalho aumenta o capital. * Na edição de 1848: das mulheres e crianças. (Nota da edição portuguesa.)
Estes operários, que têm de se vender a retalho, são uma merca- ** Em francês no texto: os que possuem ou vivem de rendimentos. (Nota
doria como qualquer outro artigo de comércio, e estão, por isso, da edição portuguesa.)
114N» ^ K A R L MARX E FRIEDRICH ENGELS MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA 115

todas estas classes caem no proletariado, em parte porque o seu juntam-se em defesa do seu salário. Fundam eles mesmos asso-
pequeno capital não chega para o grande empreendimento ciações permanentes para se prevenirem para as insurreições
industrial e sucumbe na concorrência com os capitalistas maio- ocasionais. Aqui e além a luta declara-se em motins.
res, em parte porque a sua habilidade é desvalorizada por novos De tempos a tempos vencem os operários, mas só transito-
modos de produção. De todas as classes da população se recruta, riamente. Ò verdadeiro resultado das suas lutas não é o êxito
assim, o proletariado. imediato, é a união dos operários que cada vez mais se amplia.
O proletariado passa por diferentes etapas de desenvolvi- Fomentam-na os meios crescentes de comunicação, criados pela
mento. A sua luta contra a burguesia começa com a sua exis- grande indústria, que põem os operários das diferentes localida-
tência. des em ligação uns com os outros. E só é necessária esta ligação
A princípio os operários lutam individualmente, depois os para centralizar as muitas lutas locais, por toda a parte com o
operários de uma fábrica, depois os operários de um ramo de mesmo carácter, numa luta nacional, numa luta de classe. Mas
trabalho numa localidade contra cada um dos burgueses que os todas as lutas de classes são lutas políticas. E a união, para a
exploram directamente. Dirigem os seus ataques não só contra qual os burgueses da Idade Média, com os seus caminhos muni-
as relações de produção burguesas, dirigem-nos contra os pró- cipais, precisaram de séculos, conseguem os modernos proletá-
prios instrumentos de produção; destroem as mercadorias estran- rios com os caminhos-de-ferro em poucos anos.
geiras concorrentes, destroçam as máquinas, deitam fogo às Esta organização dos proletários em classe, e deste modo em
fábricas, procuram recuperar a posição desaparecida do traba- partido político, é rompida de novo a cada momento pela con-
lhador medieval. corrência entre os próprios operários. Mas renasce sempre, mais
Nesta etapa os operários formam uma massa dispersa por forte, mais sólida, mais poderosa. Obtém o reconhecimento na
todo o país e dividida pela concorrência. A coesão de massas dos lei de interesses isolados dos operários, na medida em que apro-
operários não é ainda a consequência da sua própria união, mas veita as divisões entre a burguesia. Assim aconteceu em Ingla-
a consequência da união da burguesia, a qual, para atingir os terra com a lei das dez horas.
fins políticos que lhe são próprios, tem de pôr em movimento De um modo geral, as colisões da velha sociedade fomentam,
todo o proletariado, e por enquanto ainda o consegue. Nesta de muitas maneiras, o curso do desenvolvimento do proleta-
etapa os proletários combatem, pois, não os seus inimigos, mas riado. A burguesia acha-se em luta permanente: primeiro contra
os inimigos dos seus inimigos, os restos da monarquia absoluta, a aristocracia; mais tarde contra os sectores da própria burguesia
os proprietários da terra, os burgueses não industriais, os cujos interesses entram em contradição com o progresso da
pequeno-burgueses. Todo o movimento histórico está, assim, indústria; sempre contra a burguesia de todos os países estran-
concentrado nas mãos da burguesia; todas as vitórias assim geiros. Em todas estas lutas vê-se obrigada a apelar para o prole-
alcançadas são vitórias da burguesia. tariado, a recorrer à sua ajuda, e deste modo a arrastá-lo para o
Mas com o desenvolvimento da indústria o proletariado não movimento político. Ela mesma leva, portanto, ao proletariado
se multiplica apenas; é reunido em massas maiores, a sua força os seus próprios elementos de formação, ou seja, armas contra si
cresce, e ele sente-a mais. Os interesses, as condições de vida no mesma.
interior do proletariado tornam-se cada vez mais semelhantes, na Além disto, como vimos, com o progresso da indústria, sec-
medida em que a maquinaria vai obliterando cada vez mais as tores inteiros da classe dominante são lançados no proletariado,
diferenças do trabalho e quase por toda a parte faz descer o ou pelo menos vêem ameaçadas as suas condições de vida. Tam-
salário a um mesmo nível baixo. A concorrência crescente dos bém estes levam ao proletariado uma quantidade de elementos
burgueses entre si e as crises comerciais que daqui decorrem tor- de formação.
nam o salário dos operários cada vez mais flutuante; o aperfei- Por fim, em alturas em que a luta de classes se aproxima da
çoamento incessante da maquinaria, que cada vez se desenvolve decisão, o processo de dissolução no seio da classe dominante,
mais depressa, torna a sua posição na vida cada vez mais inse- no seio de toda a velha sociedade, assume um carácter tão cru,
gura; as colisões entre o operário isolado e o burguês isolado tão violento, que uma pequena parte da classe dominante se des-
assumem cada vez mais o carácter de colisões de duas classes. Os liga desta e se junta à classe revolucionária, à classe que traz nas
operários começam por formar coligações contra os burgueses; mãos o futuro. Assim, tal como anteriormente uma parte da
116% K A R L M A R X E FR1EDRICH ENGELS MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA 117

nobreza se passou para a burguesia, também agora uma parte da toda a superstrutura das camadas que formam a sociedade oficial.
burguesia se passa para o proletariado, e nomeadamente uma Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proleta-
parte dos ideólogos burgueses que conseguiram elevar-se à com- riado contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O
preensão teórica de todo o movimento histórico. proletariado de cada um dos países tem naturalmente de come-
De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia só çar por resolver os problemas com a sua própria burguesia.
o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As demais Ao traçarmos as fases mais gerais do desenvolvimento do
classes vão-se arruinando e soçobram com a grande indústria; o proletariado, seguimos de perto a guerra civil mais ou menos
proletariado é o produto mais característico desta. oculta no seio da sociedade burguesa vigente até ao ponto em
As camadas médias, o pequeno industrial, o pequeno comer- que estala abertamente uma revolução e o proletariado, pelo
ciante, o artesão, o camponês, todos eles, face ao declínio, com- derrube violento da burguesia, lança os fundamentos do seu
batem a burguesia para assegurar a sua existência como camadas próprio domínio.
médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras. Mais Até aqui a sociedade assentou, como vimos, no antagonismo
ainda, são reaccionárias, procuram fazer andar para trás a roda de classes opressoras e oprimidas. Mas para se poder oprimir
da história. Se são revolucionárias, são-no apenas à luz da sua uma classe, têm de lhe ser asseguradas condições em que possa
iminente passagem para o proletariado, e assim não defendem os pelo menos ir arrastando a sua existência servil. O servo da gleba
seus interesses presentes, mas os futuros, e assim abandonam a chegou, sem deixar de ser servo, a membro da comuna, tal como
sua posição própria para se colocarem na do proletariado. — o pequeno burguês chegou a grande burguês sob o jugo do abso-
O lumpenproletariado, esta putrefacção passiva das camadas lutismo feudal. Pelo contrário, o operário moderno, em vez de se
inferiores da velha sociedade, é aqui e além atirado para o elevar com o progresso da indústria, afunda-se cada vez mais
movimento por uma revolução proletária, e por toda a situação fundo nas condições da sua própria classe. O operário passa a
que ocupa na vida estará mais disposto a deixar-se comprar para indigente, e a indigência desenvolve-se mais rapidamente do que
maquinações reaccionárias. a população e a riqueza. Torna-se com isto evidente que a bur-
As condições de vida da sociedade velha já estão destruídas guesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo a
nas condições de vida do proletariado. O proletário não é pro- classe dominante da sociedade e a impor à sociedade como lei
prietário; a sua relação com a mulher e os filhos já nada tem de reguladora as condições de vida da sua classe. Ela é incapaz de
comum com a relação familiar burguesa; o trabalho industrial dominar porque é incapaz de assegurar ao seu escravo a própria
moderno, a subjugação moderna ao capital, que é a mesma na existência no quadro da escravidão, porque é obrigada a deixá-
Inglaterra e na França, na América e na Alemanha, tirou-lhe -lo afundar-se numa situação em que tem de ser ela a alimen-
todo o carácter nacional. As leis, a moral, a religião são para ele tá-lo, em vez de ser alimentada por ele. A sociedade já não pode
outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos quais se acoitam viver sob a sua dominação, isto é, a sua vida já não é compatível
outros tantos interesses burgueses. com a sociedade.
Todas as classes anteriores que conquistaram o poder procu- A condição essencial para a existência e para o domínio da
raram proteger uma posição já alcançada na vida, submetendo classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particu-
toda a sociedade às condições do seu lucro. Os proletários só lares, a formação e multiplicação do capital; a condição do capi-
podem conquistar as forças produtivas sociais abolindo o seu tal é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado assenta
próprio modo anterior de apropriação e com ele todo o modo exclusivamente na concorrência entre os operários. O progresso
anterior de apropriação. Os proletários nada têm de seu a asse- da indústria, de que a burguesia é portadora abúlica e inerte,
gurar, têm sim de destruir todas as seguranças privadas e seguros coloca no lugar do isolamento dos operários por meio da con-
privados anteriores. corrência a sua união revolucionária por meio da associação.
Todos os movimentos anteriores foram movimentos de mino- Com o desenvolvimento da grande indústria é retirada debaixo
rias ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o dos pés da burguesia a própria base sobre que ela produz e se
movimento autónomo da maioria imensa no interesse da maioria apropria dos produtos. Ela produz, antes do mais, o seu próprio
imensa. O proletariado, a camada inferior da sociedade actual, não coveiro. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente
pode levantar-se, não pode endireitar-se, sem fazer ir pelos ares inevitáveis.

Você também pode gostar