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7 June, 2022 | created using PDF Newspaper from FiveFilters.org

A tarefa do crítico quanto mais o tempo passa (a concepção de que o conteúdo


material está ligado à sobrevivência da obra já tinha sido exposta
por Benjamin no seu ensaio sobre a tarefa do tradutor). Essas
Oct 2, 2016 02:00PM
coisas, no mundo onde elas surgem, não são jamais
experimentadas quanto ao seu sentido, não são objecto de uma
verdadeira experiência. A ideia teórica subentendida em todas as
análises literárias de Benjamin é a de que os textos tornam
possível uma verdadeira experiência, um acesso ao teor de
verdade das coisas.

Encontramos ainda neste ensaio uma argumentação polémica


contra a operação crítico-interpretativa de um estudioso de
Goethe, Friedrich Gundolf, que fazia parte do círculo do poeta
Stefan George. Benjamin refuta violentamente a tentativa de
Gundolf de expor a vida de Goethe como uma vida mítica, uma
tentativa que parte da concepção do poeta típica de George, o
poeta como profeta e herói mítico, a quem é confiada a obra por
No sexto volume das Obras Escolhidas de Walter Benjamin, mandato divino. Assim, toda a argumentação benjaminiana contra
Ensaios Sobre a Literatura, João Barrento reuniu um conjunto de Gundolf é a de que ele cai numa perniciosa confusão, comum a
textos importantes e representativos da actividade do filósofo toda a crítica biográfica: a confusão entre mito e verdade, entre a
alemão enquanto crítico literário. O livro organiza-se em duas vida e a obra.
secções: uma sobre autores de língua alemã (Hölderlin, Goethe,
A relação entre vida e poesia constitui precisamente o centro do
George, Walser, Brecht, Kraus e Kafka) e outra sobre autores
ensaio que abre este volume, sobre dois poemas de Hölderlin,
franceses (o surrealismo, Proust, Valéry). Numa carta ao seu
Coragem de poeta e Timidez. Nesse texto escrito em 1914–1915
amigo Scholem, Benjamin declarou a ambição de se tornar “o
(portanto, num momento em não tinha ainda iniciado a sua
primeiro crítico de literatura alemã”, acrescentando que tal
actividade de crítico e estava voltado para questões filosóficas de
objectivo estava confrontado com uma dificuldade: “Há mais de
carácter metafísico), Benjamin põe em confronto o poema
cinquenta anos que a crítica, na Alemanha, não é considerada um
Coragem do Poeta (Dichtermut) com uma segunda versão desse
género sério”. Afirmar uma posição cimeira enquanto crítico
mesmo poema, Timidez (Blödigkeit). É neste ensaio que surge pela
significou então, para ele, recriar a crítica como género e como
primeira vez a noção de que a literatura contém uma forma de
uma disciplina cognitiva central.
verdade, e é aqui que Benjamin começou a explorar a relação
O extenso ensaio sobre As Afinidades Electivas, de Goethe, escrito entre linguagem poética e problemas epistemológicos.
em 1922, começa precisamente com uma densa reflexão teórica
No centro da sua análise dos dois poemas de Hölderlin
sobre o trabalho do crítico literário. A sua ideia de crítica consiste
encontramos um conceito fundamental de das Gedichtete
em iluminar a obra a partir da própria obra, e pode ser definida
(tradução literal: o poetizado), que João Barrento traduziu por “a
justamente como uma crítica filosófica. A relação entre filosofia e
matéria densa do poema”, explicando a sua opção numa nota (em
crítica funda-se numa concepção da obra como forma em que
França, o filósofo Philippe Lacou-Labarthe, num estudo magistral
surge “o ideal do problema da filosofia”. E se, por um lado, é de
sobre este texto bastante hermético de Benjamin, traduz das
facto a elaboração filosófica a orientar a crítica, por outro, é o
Gedichtete por dictamen, servindo-se assim da afinidade
confronto com os próprios textos a sugerir e a revelar as
etimológica entre o alemão Dichten, poetar, e o latim dictare; esta
categorias filosóficas adequadas à sua interpretação. Na abertura
tradução é, em si mesma, uma peça dotada de um alcance teórico
do ensaio sobre As Afinidades Electivas, Benjamin estabelece uma
e analítico, no estudo de Lacoue-Labarthe). Com esse conceito,
distinção metodológica fundamental entre comentário e crítica: “A
Benjamin visa precisamente explicar a “passagem da unidade
crítica busca o conteúdo de verdade de uma obra de arte; o
funcional da vida para a unidade funcional da poesia”; é o a priori
comentário busca o seu conteúdo material objectivo “.
da poesia, enquanto unidade sintética de forma e conteúdo, é a
Autor: Walter Benjamin “forma interna”, aquilo que Goethe definia como Gehalt.
Edição e tradução de João Barrento
Com esse conceito, Benjamin desenvolve a ideia de que a relação
Assírio & Alvim
da arte com a vida não é uma relação imediata, tudo tem de passar
Ler excerto
por esse conceito-limite, das Gedichtete, que é o esquema
Segundo ele, a tradição da crítica literária caracteriza-se por uma mediante o qual a vida se torna forma na poesia. Estamos aqui,
atenção filológica ao texto que é da ordem do comentário. Trata-se portanto, longe das premissas da interpretação biografista. E
de uma aproximação que não alcança jamais o conteúdo de surge assim uma ideia fundamental: quanto mais o poema procura
verdade do texto comentado, fica-se pelos elementos objectivos, os converter a unidade da vida na unidade da arte sem transformá-la,
elementos reais do texto que o compõem e fazem dele uma obra de mais ele se revela inepto e medíocre. A superioridade que
época. E esses elementos são tanto mais notórios e significativos Benjamin atribui à segunda versão do poema de Hölderlin em

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relação à primeira reside precisamente na superação da passagem
imediata da vida à poesia (criando entre as duas nexos funcionais
que não são redutíveis a nenhum biografismo), assim como da
superação do classicismo, do princípio grego da forma.

Este conceito central no texto onde analisa os dois poemas de


Hölderlin reenvia para um outro – fundamental, na crítica e na
estética benjaminianas – que surge no ensaio sobre As Afinidades
Electivas: o conceito de inexpressivo (Ausdruckslose), que
Benjamim relaciona com a noção de cesura de que Hölderlin fala
nas suas notas sobre a tragédia grega. O inexpressivo é o que
imprime uma paragem, uma interrupção da aparência de
completude, de beleza e de harmonia da obra. O inexpressivo é
aquilo que na obra está em antítese relativamente à aparência da
falsa totalidade e representa uma “potência crítica”. Com a noção
de inexpressivo, Benjamin não só se afasta de uma concepção
classicista da obra (e das suas inócuas declinações moderna),
como refuta toda uma concepção teológica da arte e da literatura
como “criação”.

O único criador é Deus, que faz nascer o mundo do nada. A arte,


diz Benjamim, não nasce do nada, mas do caos, converte-o em
forma. E é a forma artística que encanta por um instante o caos no
mundo.

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