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Nice: o processo de criação de uma tipografia com

inspiração vernacular
Nice: the processof creatinga “vernacular”typography-inspired

Marques, Amanda; Graduanda; Universidade Federal de Pernambuco


mandamarx@gmail.com

Menezes, André; Graduando; Universidade Federal de Pernambuco


appmenezes@gmail.com

Hazin, Luciana; Graduanda; Universidade Federal de Pernambuco


lucianamhazin@gmail.com

Falcão, Luiza; Graduanda; Universidade Federal de Pernambuco


luizafsc@gmail.com

Resumo

O presente artigo tem como objetivo descrever o processo de criação de uma tipografia
vernacular baseada em um letreiramento específico. A idéia deste trabalho foi proposta
pela disciplina Memória Gráfica Pernambucana, do curso de Graduação em Design da
Universidade Federal de Pernambuco. Os alunos se dividiram em grupos e se dedicaram
a um bairro da cidade de Recife, com o intuito de registrar fotograficamente os
letreiramentos populares encontrados na área visitada. Posteriormente, as fotos foram
catalogadas e foi selecionada uma imagem como referência para a criação de uma
tipografia.

Palavras Chave: tipografia vernacular, letreiramentos, criação tipográfica

Abstract

Keywords: vernacular Typography; lettering; typographic creation


 
Introdução

Conhecida por abrigar diversas formas de manifestações culturais de um local, a


paisagem urbana é o cenário onde pode ser encontrada uma das mais tradicionais formas
da prática do design vernacular1. O letreiramento popular figura como uma importante
forma de expressão gráfica e tem como principal objetivo a comunicação rápida e
econômica de uma determinada informação.
Definidos por Farias (2004) como “processo manual para a obtenção de letras
únicas, a partir de desenhos”, os letreiramentos são veículos comunicacionais
característicos de um grupo normalmente vinculado às classes sociais economicamente
dominadas. O letrista, profissional responsável por sua confecção, normalmente não
possui acesso a métodos de ensino formais, baseando suas criações em peças gráficas
impressas ou na sua própria caligrafia
Conforme observado por Finizola (2010), a criação de leis que visam a
diminuição da poluição visual nos grandes centros urbanos assim como a crescente
popularização de novas tecnologias de criação gráfica e impressão digital, ameaça a
prática do letreiramento popular. Já é possível encontrar banners gerados no computador
e impressos em vinil ocupando lugares antes pertencentes às placas artesanais.
Tendo em vista sua provável extinção, faz-se cada vez mais necessária a
documentação da paisagem tipográfica urbana informal, motivo pelo qual foi iniciada
esta pesquisa. Após o levantamento fotográfico dos letreiramentos populares presentes na
região dos bairros de Casa Forte, Poço da Panela e Monteiro, na cidade do Recife, foi
efetuada uma análise do material encontrado a fim de aplicar o modelo de classificação
tipográfica de Finizola (2010). Uma das placas fotografadas se destacou por retratar letras
espontâneas e peculiares, que em seu conjunto deram origem a uma peça gráfica singular.
A imagem originou o desenho de uma fonte com inspiração vernacular urbana, a Nice,
cujo processo de criação será exposto a seguir.

A prática de criação de fontes no Brasil

Antes de dar início a explicação da metodologia utilizada para a criação da fonte


Nice, faz-se importante a contextualização do cenário do design de tipos no Brasil. Antes
restrita a poucos especialistas, a prática do design de fontes digitais foi difundida pelo
mundo com a massificação do uso dos computadores pessoais, acelerada a partir da
década de 1990.
Esteves (2010) observa que o design brasileiro de tipos digitais iniciou-se de
maneira experimental ainda na década de 1980 com a criação da primeira fonte digital
nacional com desenho inédito. A Sumô, fonte desenhada pelo designer autodidata Tony
de Marco, marca a primeira fase de lançamento de tipografias brasileiras. As fontes
geradas eram em sua maioria display, ou seja, tipografias indicadas para a composição de
textos curtos em tamanhos grandes. A produção da época era caracterizada por
experimentações formais, reflexo direto da ausência da prática de design de tipos no
                                                        
1 O termo vernacular sugere a existência de linguagens visuais e idiomas locais, que remetem a diferentes
culturas. Na comunicação gráfica, corresponde às soluções gráficas, publicações e sinalizações ligadas aos
costumes locais produzidos fora do discurso oficial. (DONES, 2004) 
Brasil e das possibilidades técnicas fornecidas pelas novas ferramentas disponíveis.

Sumô – Tony de Marco (1989)

Quadrada – Priscila Farias (1997)

Sobre o início da criação tipográfica no Brasil, o designer de tipos Gustavo


Ferreira reitera que além das experimentações formais, “outros temas de criação eram
fontes a partir da escrita popular e fontes a partir da geometria” (FERREIRA. In:
GOMES, 2010). No tocante à inspiração vernacular, percebe-se que essa se tornou uma
tendência no cenário de design de tipos nacional. É possível observar a influência da
estética popular em fontes como a Cordel (1997) e Brasilêro (2001).

Cordel (1997) – Buggy e Brasilêro (2001) – Crystian Cruz


O estudo formal de vários designers brasileiros em escolas européias
especializadas no ensino do design de tipografias como a University of Reading, na
Inglaterra ou a Royal Academy of Arts (KABK), na Holanda, foi um ponto decisivo na
mudança de paradigma da produção tipográfica do país (ESTEVES, 2010). Atualmente o
design de fontes brasileiro encontra-se mais amadurecido ao produzir excelentes famílias
tipográficas para texto como a Adriane (2007) e a Frida (2007).

Frida (2007) – Fernando Mello e Adriane (2007) – Marconi Lima

Mesmo com a especialização de profissionais da área, ainda é clara a influência


vernacular em muitas das produções tipográficas brasileiras mais recentes, entre as quais
figuram a Filezin (2006) e a Teteia (2004). O fato esclarece que a valorização de
elementos advindos da cultura popular não existia apenas por ser um reflexo da falta de
especialização profissional no design de tipos, mas sim por se tratar de um “rico
manancial de inspirações para a prática do design formal” (FINIZOLA, 2010).

Filezin (2006) – Vinícius Guimarães e Teteia (2004) – Pedro Moura


Inspiração na cultura vernacular x inspiração em
letreiramentos específicos

As fontes inspiradas por artefatos populares podem ter como referência a estética
vernacular em geral ou se basear em algum letreiramento específico. No primeiro caso o
designer de tipos desenvolve fontes baseadas em diversas manifestações tipográficas com
estética similar. Podem ser encontradas diversas fontes representativas do conceito, entre
elas a Folk (2008) e a Cabulosa (2009).

Folk (2008) – Marcelo Magalhães e Cabulosa (2009) – Frederico Antunes (Chiba Chiba)

A inspiração em uma manifestação tipográfica específica também é uma prática


bastante difundida entre os designers de tipos. Essa geralmente acontece quando o
letreiramento se destaca por sua singularidade ou quando o designer se depara com uma
extensa produção tipográfica com características similares executada por um mesmo
letrista. Nesse caso, é interessante citar a fonte Seu Juca (2001), inspirada nas placas
populares pintadas pelo pernambucano João Juvêncio Filho, e a Ghentileza Original
(2001), inspirada nas placas pintadas pelo poeta popular carioca Gentileza.

Seu Juca (2001) – Priscila Farias e Ghentileza Original (2001) – Luciano Cardinalli

A partir destes conhecimentos, foi proposto ao grupo pesquisar nas regiões


próximas ao bairro de Casa Forte, na cidade do Recife, registros da cultura vernacular
tipográfica e produzir uma fonte digital baseada em um letreiramento específico.
A Nice (2011), fonte desenvolvida nesse trabalho de pesquisa, foi baseada nas
expressões tipográficas da costureira Ivanize Leite de Lima, residente do bairro de Casa
Forte na cidade do Recife. A metodologia para criação desta fonte será descrita a seguir.

Metodologia de criação da fonte Nice

A primeira etapa da pesquisa foi a realização de um roteiro do bairro de Casa


Forte e seus arredores (Santana, Poço da Panela e Monteiro) a fim de obter registros
fotográficos dos letreiramentos deste percurso. Foram encontrados diversos tipos de
escritas e desenhos, alguns pintados diretamente na parede ou fachada do local e outros
executados em suportes como papelões ou cartolinas.
O roteiro (figura 1) foi elaborado de maneira a atingir os principais pontos e ruas
dos bairros citados. Todo o percurso foi feito de carro e os registros foram efetuados com
uma câmera digital 12.1 megapixels. De um total de 108 registros fotográficos, 32 foram
escolhidos para se trabalhar, a princípio. Esta escolha foi realizada com base em critérios
definidos pelo grupo em questão e levou-se em conta aqueles que se destacaram por
diferenciação de tipografia, inovação ou idéia peculiar ou apenas por conter
características singulares marcantes.

Figura 1. Roteiro elaborado pelo grupo a partir do Google Maps.

Para facilitar a posterior consulta para este e outros projetos similares, os 32


registros escolhidos foram submetidos a uma catalogação de acordo com uma Ficha de
Análise sugerida por Finozola e Coutinho (2010) onde constam informações do
letreiramento, tais como autor, materiais e técnicas utilizados na sua confecção, local
onde foi encontrado e informações do momento da captura como câmera utilizada e autor
da foto. A Ficha de Análise também contém um espaço reservado para a foto registrada e
um “rodapé” destinado a observações gerais ou uma breve descrição do registro.
O processo que se segue após a pesquisa de campo e análise dos artefatos
catalogados é a execução da fonte baseada em uma das placas registradas. Com critérios
de singularidades mais marcantes, a placa escolhida denominada “Nice” – apelido da
autora da placa - representa bem o descrito popular não só em seus desenhos como
também em seu texto.

Figura 2. Foto original tirada pelo grupo da placa que originou a tipografia Nice.

O grupo teve a oportunidade de entrevistar a autora da placa “Nice”, situada na


Rua Lemos Torre, a principal da comunidade Lemos Torre. O tráfego de não-moradores
da comunidade é comum no local, porém para encontrar Ivanize foi necessário solicitar
ajuda de outra moradora da comunidade.
Vários fatores comprovaram a singularidade e o amadorismo nos letreiros de
Nice. A autora tem o fundamental II incompleto e admitiu ter ingerido doses de álcool
quando escreveu a placa. Confeccionada em uma base de madeira, as letras foram
desenhadas com um pincel e tinta preta e a escrita foi feita sem medições ou base para ser
decalcada. Com exceção a primeira placa fotografada, a autora afirmou que haviam mais
três escritos pela comunidade e levou o grupo até as mesmas.

Figura 3. Demais placas.

Quando foi pensado num método para construir uma tipografia que caracterizasse
a autora, alguns elementos chave entraram em questão e foram tomadas algumas decisões
para que pudesse se adaptar a uma tipografia digital. Comparando as placas, observa-se
que existem diferentes caracteres para as mesmas letras. Em apenas uma placa, existem 4
versões da letra “e” e os “g”s da palavra “geral” de cada uma das placas são diferentes
entre si. Foi escolhido trabalhar apenas com os caracteres da primeira placa registrada,
pois de acordo com a autora, esta foi a primeira a ser confeccionada, além de conter os
caracteres mais diferenciados.
A placa original de Nice apresenta uma grande inconsistência de caracteres sendo
alguns em caixa alta e outros em caixa baixa, alternando entre letras. Devido a esse
aspecto espontâneo da autora decidimos produzir um alfabeto de 26 letras mais formal
para tomar o lugar das caixas altas e outro alfabeto mais livre e orgânico para as caixas
baixas, este último incluindo os caracteres-chave como o 'e', 'g', 'v', etc. É esperado que o
usuário da fonte alterne entre os alfabetos numa mesma frase assim como Nice alterna
essas letras em suas placas.
Antes do processo de desenho das letras, sentiu-se necessidade de estudar e
definir as partes anatômicas das letras pintadas com pincel pela autora, pois mesmo sendo
projetada a partir de uma placa improvisada o desenvolvimento de um projeto tipográfico
ainda precisa de uma mínima consistência entre caracteres. Vimos que a maioria dos
terminais ascendentes apresentam forma oblíqua (geralmente declinando para a direita)
enquanto os descendentes com um acúmulo de tinta semelhante a um palito de fósforo. A
maioria das junções resulta em um excesso de tinta aumentando consideravelmente sua
espessura, fato normalmente evitado na produção tipográfica formal. Já a espessura geral
dos traços é bastante variada, devido à quantidade de tinta presente no pincel. Esse é um
dos critérios que define o contraste de espessuras nas letras de Nice, outro conceito que
vai de encontro aos preceitos clássicos da tipografia e caligrafia, porém totalmente
comum entre peças amadoras.

Figura 4. Detalhes de ascendentes, descendentes e junções

Uma vez definidas as formas básicas da fonte deu-se início o desenho dos
primeiros caracteres baseados na placa escolhida. A placa escolhida como referência
contém 37 letras e 3 números ao total. Dentre os caracteres expostos foram selecionados
20 para utilização na fonte:
Figura 5. Caracteres selecionados para vetorização direta.

Um dos pontos cruciais no processo de criação da fonte, foi a seleção de algumas


letras que se repetiam, como o A, E e o R repetidas 6, 5 e 4 vezes respectivamente.
Nesses casos foram prezadas aquelas que se mostraram mais harmônicas no conjunto e
apresentam formas mais interessantes. No caso do 'e' foram escolhidos dois exemplares,
um para caixa baixa e outro para caixa alta. No caso do 'a' apenas um foi escolhido,
devido a constatação de que embora se repetisse 6 vezes, ele não variava muito em traço
e forma. As letras selecionadas foram 'decalcadas' de forma fiel, sendo realizadas
alterações com o intuito de melhorar a consistência, num processo de vetorização manual
no software Adobe Illustrator.

Figura 6. Comparação entre letras pintadas e vetorizadas.

A princípio, foi tentado copiar o traço fielmente, para dar um tom mais
espontâneo aos caracteres. Porém, somado ao contraste aleatório da modulação,
resultaram-se caracteres exagerados. Posteriormente, foram suavizados os contornos e
percebemos que era o bastante para refletir o caráter espontâneo do desenho.
Com as primeiras letras desenhadas deu-se início ao processo de derivação de
caracteres. Para projetar os caracteres de Nice foi utilizado um sistema mais livre de
aproveitamento e montagem de formas desenhadas na placa original. Após o desenho dos
caracteres básicos, conseguiu-se compor uma fonte tipográfica digital usando a
tecnologia TrueType via o software específico Fontlab Studio. Nesta etapa do processo
foram criados outros caracteres de apoio, como acentos gráficos, para deixar o set
tipográfico mais completo. A construção desses caracteres foi efetuada diretamente no
software FontLab Studio.

Figura 7. Set tipográfico de Nice.


Figura 8. Texto composto com a fonte Nice.

Considerações Finais

Ao chegar ao final do processo de criação de Nice, o grupo pôde visualizar com


clareza a transformação de letreiros populares, a princípio limitados às ruas da cidade, em
arquivos digitais que podem ser repassados para o mundo e utilizados na confecção de
novas peças impressas. Neste artigo estão descritas todas as fases e detalhes do processo,
servindo como modelo de metodologia de criação tipográfica.
O processo teve acompanhamento em todas as fases, sendo analisado e refeito,
sempre que necessário, para se chegar a um resultado satisfatório. Desta forma, a
tipografia vernacular Nice, está de acordo com o que se propõe: uma tipografia digital
baseada em um letreiramento popular específico.
Durante a pesquisa nas ruas da cidade, foi notada a singularidade dos letreiros
populares, muitas vezes ignorados pelos transeuntes. Após esta pesquisa, o grupo
adquiriu um novo olhar, passando a observar a cidade e a forma como ela se comunica
graficamente de uma forma completamente diferente, onde placas ou muros escritos se
tornam mananciais de inspiração para projetos tipográficos.

Referências

DONES, V, L. As apropriações do vernacular pela comunicação gráfica. Disponível


em:
<http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/18266/1/R0608‐
1.pdf>. Acesso em: 06 de novembro de 2011.

ESTEVES, R. O Design Brasileiro dos Tipos Digitais. São Paulo: Edgard Blücher,
2010.

ESTEVES, R. O Design Brasileiro dos Tipos Digitais: elementos que se articulam na


formação de uma prática profissional. Rio de Janeiro, 2010.Disponível em:
<http://issuu.com/outrasfontes/docs/dissertacao>. Acesso em: 06 de novembro de 2011.

FINIZOLA, F. Tipografia Vernacular Urbana. São Paulo: Edgard Blücher, 2010.

FINIZOLA, F; COUTINHO, S. Em busca de uma Classificação para os


Letreiramentos Populares. InfoDesign – Revista Brasileira de Deisgn da Informação.
v6. n2. São Paulo: Sociedade Brasileira de Design da Informação, 2010.

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