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A obra The English Dancing Master, de John Playford, apresenta-se como uma coleção
de danças rurais inglesas e algumas teriam mesmo sido impressas diretamente da tradição oral,
pela primeira vez (Kidson, 1918). Só na primeira edição, são 105 danças, impressas com tipos
móveis, sem barras de compasso ou instruções para acompanhamento, contendo apenas as
melodias e instruções para as suas respectivas coreografias (Kidson, 1918).
O livro foi publicado em 1651, apenas dois anos após a decapitação de Charles I, nos
últimos momentos da Guerra Civil, o que torna o lançamento de suas 101 páginas, um
empreendimento ainda mais corajoso. Com isto, Playford saiu à frente de possíveis rivais,
conquistando fama e riqueza com esta e com as sete reedições subsequentes que lançou em
vida, mais onze edições lançadas após sua morte, pelo seu filho, Henry Playford e pelo sucessor
de seu filho, John Young. (Dean-Smith & Nicol, 1943).
Outra caraterística notável desta obra é a semelhança de seu repertório com números
comumente empregados nas masques da corte de Charles I, especialmente aquelas dos
dramaturgos Ben Jonson e Richard Brome (Whitlock, 1999). Tal semelhança ampara o
argumento de que pelo menos parte do repertório do The English Dancing Master tenha
derivado do teatro e enganado a censura de Cromwell, ainda que o monarquismo indisfarçado
de Playford o tenha levado à prisão, pouco tempo antes. John Playford publicou, entre 1649 e
1651, títulos como King Charls His Tryal at the High Court of Justice, com duas “Continuações”,
além do título A Perfect Narrative of the Whole Proceedings of the High Court of Justice in the
Tryal of the King. O Concelho de Estado ordenou sua prisão, bem como a apreensão de toda a
tiragem (Lindembaum, 2001).
Contudo, o objetivo deste trabalho não é tanto argumentar pelo óbvio engajamento de
John Playford com a causa monarquista, mas sim analisar parte do conteúdo desta coleção de
danças, à luz dos acontecimentos da época e das conexões de Playford com o meio artístico.
A obra
O lançamento foi um enorme sucesso e o livro foi reeditado três vezes, só durante o
Interregno. A obra teve sucessivas reedições e ampliações até 1728 (Dean-Smith & Nicol, 1943).
A primeira edição consiste em 105 melodias, impressas em tipos móveis, sem barra de compasso
e sem indicação de tempo, mas com a coreografia escrita em símbolos explicados logo após o
índice das danças.
O ano de 1651 marca a derrota final dos monarquistas, que resistiram mesmo após a
decapitação de Charles I, em 1649. Talvez, a nostalgia por um passado perdido da Golden Age
elizabetana, ou mesmo das masques da corte dos Stuart, tenham alavancado o sucesso da obra
(Nicol & Dean-Smith, 1945). Playford também teria aproveitado o sucesso de uma peça de
William Cavendish, The French Dancing Master, (publicada em 1649), que satirizava um
professor de dança francês, que lecionava à nobreza (Kidson, 1918). A referida peça também
teve considerável sucesso, o que leva o investigador a supor que a escolha do título The English
Dancing Master, tenha sido influenciada por razões comerciais. O objeto da sátira também
merece consideração.
Análises de pesquisadores como Frank Kidson, que afirmam que muitas das danças
foram impressas pela primeira vez, a partir da tradição oral (Kidson, 1918), dão a entender que
o livro todo se trata de um trabalho de folclorista. Tal entendimento pode estar incompleto.
Argumenta-se que parte do material impresso na primeira edição, tanto músicas quanto danças,
tenham vindo de peças teatrais e masques do período pré-Guerra Civil (Whitlock, 1999). Para
Whitlock, a rapidez com que as danças foram selecionadas e organizadas são evidências de que
elas estariam facilmente disponíveis. Whitlock aponta ainda que inconsistências entre os nomes
das danças no Índice e ao longo do livro, também são sinais de uma “compilação apressada”
(Whitlock, 1999).
No entanto, o que censura tentava esmagar com mão de ferro, escapava-lhe por entre
os dedos. Era praticamente impossível impedir a adaptação de melodias famosas,
aparentemente inofensivas e de fácil memorização, às letras subversivas que os derrotados da
Guerra Civil lhe imprimiam. A melodia de Jog on (Playford, nº53), também era conhecida pelo
nome The Catholick Balllad. Uma pessoa que fosse pega assoviando melodias como Heigh boys
up go we (dança nº67), uma tradicional cavalier song, poderia ir para prisão, por “traição por
assovio” (Wells, 1937). Mesmo assim, as letras desta canção poderiam ser adaptadas para a
melodia de Cuckolds all a row (dança nº67), contida na primeira edição do The English Dancing
Master (Wells, 1937). A dança Drive the Cold Winter away (dança nº39) outra famosa cavalier
song da época, também enfrentou censura do parlamento (Whitlock, 1999). A balada Faine I
would if I could (dança nº46), também conhecida como The King's Complaint ou A Coffin for King
Charles, era acompanhada por uma coreografia complexa e foi apresentada na corte, quando
ela ainda era sediada em Oxford (Whitlock, 1999).
Não são apenas as melodias contidas nas obras, que merecem uma análise mais
detalhada. O prefácio da primeira edição é intitulado To the Ingenious Reader e chama atenção,
por não ser direcionado nem ao dançarino, nem ao músico, mas ao “leitor engenhoso”
(Whitlock, 1999). Neste prefácio, Playford relembra a importância da dança na Grécia Antiga e
evoca até mesmo o exemplo de Platão, para ressaltar sua importância na formação do indivíduo.
Ele prossegue seu panegírico à dança, afirmando que tal habilidade havia sido “honrada nas
Cortes dos Príncipes, quando apresentada pelos mais nobres heróis de todos os tempos”
(Playford, 1651). Ele segue afirmando que a dança é uma atividade ótima para recreação e que
deixa o corpo “ativo e forte”, porém “gracioso”, qualidades estas “semelhantes à de um
cavalheiro” (Playford, 1651).
Talvez, não fosse necessário tanto “engenho” para o leitor atencioso compreender o
subtexto do referido prefácio. A dança tinha lugar de destaque na Corte dos Stuart, tanto para
James I, como para Charles I. James I teria até mesmo interrompido uma apresentação de
Pleasure Reconciled to Virtue, indignado por não haver dança no espetáculo e vociferando aos
artistas que o “diabo os carregassem” (Whitlock, 1999). Para os Stuart, a dança representava a
harmonia do Cosmos e tinha papel fundamental na cultura de sua Corte (Whitlock, 1999).
Seguindo a linha pouco sutil do prefácio, Playford argumenta que as qualidades inerentes à
dança não seriam o principal motivo para a publicação do livro, pois “os Tempos e a Natureza”
encontravam-se “em desacordo” (Playford, 1651). Os acenos mais sutis à causa monarquista,
Playford reservaria para a seleção do repertório.
Richard Brome (que também poder aparecer como Broom ou Broome, a depender da
fonte), dramaturgo e poeta inglês, tem sua obra referenciada de forma recorrente no livro de
Playford. Citando apenas quatro peças de Brome, Whitlock encontra dezenove destas
“coincidências”. São as peças A Joviall Crew, The Antipodes, The New Academy (ou The New
Exchange) e Sparagus Garden (Whitlock, 1999). Todas foram escritas e encenadas antes da
Guerra Civil, embora algumas tenham sido impressas após 1651. Argumenta-se até mesmo que
Brome possa ter participado ativamente da elaboração do livro, prestando assistência como o
amigo incógnito, citado no prefácio To the Ingenious Reader (Whitlock, 1999). Há uma dança
intitulada Broome (nº74), nesta edição.
The New Exchange foi publicada em 1659, sete anos após a morte de Brome, em volume
onde continham quatro outras peças suas, sem indicação de data de composição ou
performance (Leslie, s.d.). Contudo especula-se (por motivos que não cabem a este trabalho
abordar) que a peça tenha sido escrita e encenada em 1636 (Leslie, s.d.). A Joviall Crew foi
publicada em 1652, mas foi estreada em 1641, no teatro The Cockpit (Leslie, s.d.). The Antipodes
foi publicada em 1640 e Sparagus Garden estreou em 1635 (Leslie, s.d.).
Quanto às peças de Jonson, nas masques Oberon (1611) e Queens (1609), pode-se
encontrar referências à dança Merry Milke Mayds (dança nº31), embora o título da dança seja
incrivelmente parecido com a da peça The Two Merry Milkmaids, de John Cumber, apresentada
em 1620 (Whitlock, 1999). Confesse his Tune (dança nº19), seria possivelmente, uma
homenagem à Monsieur Confesse, professor de dança em duas masques de Jonson (Whitlock,
1999, p. 554).
Estas danças eram apresentadas nas antimasques (danças cômicas, apresentadas antes
ou nos entreatos das masques principais), ou mesmo nas próprias masques (Collins English
Dictionary, s.d.). Portanto já teriam também a coreografia organizada, o que oferece enorme
praticidade de compilação e reforça o argumento de que ao menos parte das danças do livro,
tenham derivado deste repertório. Entretanto, muitas melodias foram, de fato, trazidas das
danças populares. Pode-se encontrar também canções populares, adaptadas para o formato de
dança (Wells, 1937).
A tabela acima organiza somente o repertório que teria sido “importado” diretamente
das masques. Danças populares ou com referências a personalidades da época, ou marciais,
foram deixadas de fora. É importante notar que a mesma dança pode aparecer em masques
diferentes. Seu aparecimento redundante foi mantido propositalmente, pois reforça o
argumento da origem deste repertório. A obra de Richard Brome parece ter sido referenciada
mais vezes do que qualquer outra, o que pode ser considerado como um indício de sua
participação na compilação da obra.
A infidelidade feminina (em inglês, cuckoldry) era um tema recorrente das antimasques
e é possível que a dança Cuckolds all a row (nº67) tenha sido apresentada em diversas masques.
O mesmo ocorre com a temática cigana, portanto é possível que as danças que aparecem no
Entertainment, de Buckingham, tenham sido usadas também em outras masques (Whitlock,
1999).
Discussão
As fontes abordadas neste trabalho argumentam que as danças do livro The English
Dancing Master não se restringem às tradições rurais inglesas. Ao menos parte do repertório
tinha cunho político e continha até mesmo melodias proibidas pela censura puritana. As
constantes referências às masques serviam ao duplo propósito de resistência cultural (num
momento em que as masques eram criminalizadas) e de fonte de acesso rápido para elaboração
do livro, uma vez que muitas já teriam instruções coreográficas prontas.
Mesmo para estas danças derivadas das masques, não há informações sobre
compositores. Mas, os irmãos William e Henry Lawes escreveram para diversas masques e peças
de teatro e é possível que tenham escrito algumas das melodias. Henry Lawes era amigo
próximo de Playford e padrinho de seu filho mais velho. Das masques mencionadas na tabela,
ele e seu irmão teriam feito a música para pelo menos Triumphs of the Prince d'Amour, de
Davenant (Whitlock, 1999).
O monarquismo de Playford foi uma marca impressa em toda sua produção, mas seu
interesse pela música era partilhado por ao menos uma parte de seus inimigos. Henry Lawes
escreveu a música para uma masque de John Milton, antes deste divertimento cair em desgraça.
Para o puritano desavisado, The English Dancing Master não trazia nada de subversivo. Ao
contrário, soava até patriótico, se comparado à sátira The French Dancing Master. Contudo, para
o “leitor engenhoso”, a mensagem de resistência estava ali.
A contextualização histórica do livro, bem como do seu conteúdo, ajuda a organizar pelo
menos parte deste gigantesco repertório, em blocos temáticos. Isto facilita a seleção e a
execução deste repertório, com o devido enquadramento histórico. Esta contextualização
orientará minhas futuras incursões neste repertório, que é objeto da minha pesquisa de
mestrado.
Bibliografia
Bridge, S. F., & Squire, W. B. (1908). The Masque of Comus (by John Milton - the original music
by Henry Lawes). Londres: Novello and Company, Limited.
Chaney, N., Noga, C., & Luxon, T. H. (s.d.). The John Milton Reading Room. Fonte:
dartmouth.edu:
https://www.dartmouth.edu/~milton/reading_room/areopagitica/intro/text.shtml
Dean-Smith, M., & Nicol, E. (Dezembro de 1943). "The Dancing Master": 1651-1728. Journal of
the English Folk Dance and Song Society, Vol. 4, No. 4, pp. 131-145.
Kidson, F. (Outubro de 1918). John Playford, and 17th-Century Music Publishing. The Musical
Quarterly, Vol. 4, No. 4, pp. 516-534.
Lindembaum, P. (2001). John Playford – Music and Politics in the Interregnum. Huntington
Library Quarterly, Vol. 64, No. 1/2 , pp. 124-138.
Nicol, E. J., & Dean-Smith, M. (Dezembro de 1945). The Dancing Master: 1651-1728: Part III:
Our Country Dances. Journal of the English Folk Dance and Song Society, Vol. 4, No. 6,
pp. 211-231.
Wells, E. K. (Dezembro de 1937). Playford Tunes and Broadside Ballads. Journal of the English
Folk Dance and Song Society, Vol. 3, No. 2 , pp. 81-92.
Whitlock, K. (1999). John Playford's the English Dancing Master 1650/51 as Cultural Politics.
Folk Music Journal, Vol. 7, No. 5, pp. 548-578.