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Tchekov
Uma viagem à vida do escritor
Janet Malcolm

37 contos
Anton Tchekov
Traduzidos do russo por Tatiana Belinky

'2aA.4s
á
Ediouro

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T
444 TcnzKov

pôde entregar-se tão desamparadamenteàs mãos desta criatura insig-


nificante, falsa, vulgar, mesquinha e, pela própria natureza, para ele
totalmente estranha.
Quando, às ll horas, ele vestia o paletó para ir ao hospital, a criada
entrou no escritório.
- Que deseja? -- perguntou ele.
-- A patroa levantou-se e pede os 25 rublos que o senhor Ihe prometeu.

Ana no pescoço
l

Depois da boda, não houve nem mesmo uma refeição ligeira; os re-
cém-casados beberam uma taça cada um, trocaram de roupa e foram
paraa estação.Em lugar de alegrebaile e jantar de casamento,em
lugar de música e danças,a viagem para uma reza pública a duzentas
verstasde distância.Muitos aprovavamisto, dizendoque Modesto
Alexêitch é um alto funcionário e já não é moço, e um casamento
ruidoso poderia, quiçá, parecer um tanto impróprio; ademais,é abor-
recido ouvir música quando um funcionário de 52 anos se casa com
uma jovem que mal completou os 18. Diziam também que esta viagem
ao convento fora resolvida por Modesto Alexêitch a fim de, como ho-
mem de princípios, dar a entender à jovem esposaque mesmo no casa-
mento ele reservava o primeiro lugar à religião e aos bons costumes.
Houve bota-fora. Um bando de colegasde serviço e parentes, de
taçasnas mãos, ficou à esperada partida do trem para gritar "urra", e
Piotr Leontitch, o pai, de cartola, de fraque professoral,já ébrio e já
muito pálido, estendiapara a janela a mão com a sua taça e dizia em
tom de súplica:
-- Aniutal Ánial ,2' Ama, uma só palavras

24Diminutivos familiares do nome Ana.(N. da T.)

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Anta se debruçava para ele pela janela, e ele Ihe sussurrava algo, Ele sorriu com os seus olhinhos apertados.E ela também sorria,
bafejando-a com o cheiro de vinho fermentado, soprava-lhe no ouvido perturbada pelo pensamento de que este homem poderia a qualquer
-- não se podia entender nada -- e persignava-lheo rosto, o peito, as momento beija-la com os seus lábios gordos e amidos, e que ela já não
mãos; e ao fazê-lo, tremia-lhe a respiraçãoe nos olhos brilhavam lá- tem mais o direito de Ihe recusar isto. Os movimentos moles de seu
grimas. E os irmãos de Ánia, Pêtia e Andriúcha,:s ginasianos, puxa- corpo rechonchudo a assustavam,ela sentia medo e repulsa. Ele le-
vam-no pelo fraque e murmuravam embaraçados: vantou-se, tirou do pescoço, sem pressa, a condecoração,despiu o
-- Papaizinho, chega... Papaizinho, não... fraque e o colete, e vestiu o roupão.
Quandoo trem partiu, Ánia viu como seu pai correu um pouco -- Assim -- disseele, sentando-seao lado de Ánia.
atrás dos vagões,oscilando e esparramandoo seu vinho, e como ele Ela lembrou-se de como fora penosa a cerimónia das bodas, quando
tinha um rosto tão lamentável, bondoso e culpado. Ihe pareciaque o sacerdote,e os convidados,e todos na igrqa a fita-
-- Urra-a-al -- gritava ele. vam com tristeza: por que, por que ela, tão meiga, bonita, se casa com
Os casadosficaram sós. Modesto Alexêitch examinou a cabina, ar- estesenhorjá idoso e desinteressante?Ainda hoje de manhã, ela se
rumou as coisas pelas prateleiras e sentou-sedefronte da suajovem sentira encantadaporque tudo se arranjara tão bem, mas durante a
esposa, sorrindo. Era um funcionário de estatura mediana, bastante cerimónia e agora no carro, ela se sentia culpada, enganadae ridícula.
opulento, rechonchudo, muito bem alimentado, de suíças longas e sem Ei-la que se casoucom um ricaço e, no entanto não tinha dinheiro, o
bigodes, e o seu queixo escanhoado, redondo e nitidamente delineado vestido de noiva fora feito a crédito, e quando hoje a acompanhavamo
pareciaum calcanhar.O mais característicodo seu rosto era a ausên- pai e os irmãos, ela vira pelos seus rostos que eles estavamsem um
cia de bigodes, este lugar recém-raspado,desnudo, que se fundia pou- copeque. Será que eles jantarão hoje? E amanhã? E parecia-lhe,
co a pouco com as bochechasgordas e trémulas como geleia. Ele se inexplicavelmente, que o pai e os meninos estão agora, sem ela, pas-
tinha com sólida compostura, seus movimentos não eram ligeiros, as sando fome, e sentindo uma angústia tão grande como na primeira
maneiras eram macias. . noite depois do enterro da mãe.
-- Não posso deixar de lembrar agora uma certa circunstância-- "Oh, como sou desgraçadas",pensavaela. "Por que sou tão des-
disseele sorrindo. -- Há cinco anos, quando Kossorótov recebeua graçada?"
Ordem de Santa Ana de segunda categoria e se apresentou para agra- Com a falta de jeito de um homem ponderado, pouco acostumadoa
decer, Sua Excelência expressou-se assim: "Com que então o senhor lidar com mulheres, Modesto Alexêitch tocava-lhe a cintura e dava-
agora tem três Anãs: uma na lapela, duas no pescoço". E é preciso Ihe palmadinhasno ombro, mas ela pensavano dinheiro, na mãe, na
dizer que, naquela época, acabarade voltar para o Kossorótov sua sua morte. Quando a mãe faleceu, o pai, Piotr Leontitch, professor de
esposa,pessoaleviana e rabugenta, chamada Ana. Espero que quando caligrafia e desenho no ginásio, começou a beber, vieram as privações;
eu receber a Ana de segunda categoria, Sua Excelência não tenha os meninos não tinham sapatos nem galochas, o pai foi arrastado ao
motivos para me dizer a mesma coisa. juiz, veio o oficial de justiça e confiscou a mobília... Que vergonha!
Ánia tinha que cuidar do pai bêbado,cerzir as meias dos irmãos, ir à
feira e, quando Ihe elogiavam a beleza, a juventude, as maneiras ele-
25Diminutivos de Piotr (Pedra) e Andrei(André). (N. da T.) gantes,parecia-lheque o mundo inteiro via o seu chapeuzinhobarato

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e os buraquinhos dos sapatos,disfarçadoscom tinta. E à noite, lágri- Ela saiu para a platafonna do cano, debaixo da luz do luar, e pos-
mas, e o pensamento insistente e perturbador de que logo logo despe- tou-se de maneira a ser vista de corpo inteiro, no seu elegantíssimo
diriam o pai do ginásio pela sua fraqueza,e que ele não suportaráisso traje novo com chapéu.
e também morrerá, como a mãe. -- Por que estamosparadosaqui? -- perguntou ela.
Mas eis que senhorasconhecidascomeçarama se movimentar e -- Aqui é um entroncamento -- responderam-lhe --, esperam o trem

puseram-sea procurar um bom homem para Ánia. Logo encontrou-se postal.


essemesmo Modesto Alexêitch, nem jovem nem belo, mas endinhei- Reparandoque Artinov a fitava, ela apertou os olhos, faceira, e co-
meçoua falar alto em francês;e porque sua própria voz soavatão
rado. Ele tem uns cem mil no banco e possui uma propriedade herda-
bem, e porque se ouvia música e a lua se refletia na lagoa, e porque
da, que arrenda. É um homem de princípios e bem visto por Sua Exce-
Artinov. essefamosoDon Juan e farrista, a fitava com ávida curiosida-
lência; não Ihe custa nada, disseram a Ánia, arranjar com Sua Excelên-
de, e porque todo mundo estavaalegre, ela sentiu uma alegria repen'
cia um bilhetinho para o diretor do ginásio e até mesmo para o curador,
tina e, quando o trem se moveu e os oficiais conhecidosIhe bateram
para que Piotr Leontitch não sqa despedido...
continência em despedida, ela já cantarolava a polca, cujos sons e banda
Enquanto ela recordava essasminúcias, ouviam-se de repente sons militar Ihe mandavaao encalço,de lá detrás das árvores; e ela voltou
de música entrando pela janela junto com o ruído de vozes.O trem
para a sua cabina com uma sensaçãode que, naquela parada, a con-
tinha se detido num parada.Atrás da plataforma, no meio da aglome-
venceramde que ela seria feliz, sem falta e apesarde tudo.
ração, tocavam uma alegre harmónica e um estridente violino barato, Os casadospermaneceram no convento dois dias, depois voltaram
e por detrás dos altos vidoeiros e álamos, por detrás das casasde
para a cidade. Ficaram morando num apartamento do governo. Quan-
verão inundadas de luar, vinham os sons de uma banda militar: decer- do Modesto Alexêitch saía para a repartição, Anta tocava piano, ou
to, havia dança na estação de veraneio. Pela plataforma, passeavam chorava de tédio, ou se deitava no sofá e lia romances ou folheava uma
veranistase moradores do lugar, que vinham até ali quando fazia bom revista de modas. Ao almoço, Modesto Alexêitch comia muito e falava
tempo, para.respirar um pouco de ar puro. Ali estava também o pró- sobre política, nomeações, transferências e prêmios, e que é preciso
prio Artinov. proprietário de toda estaestaçãode veraneio, um ricaço se esforçar, que a vida de família não é um prazer, mas um dever, que
moreno e alto, de rosto parecido com o de um arménio, de olhos sal- "o copequeguarda o rublo", e que acima de tudo)no mundo, ele colo-
tados e traje estranho.Vestia uma camisaaberta no peito e botas altas ca a religião e os bons costumes. E, segurando a faca no punho fecha-
com esporas,e dos ombros Ihe caía uma longa capanegra, que se do como uma espada,ele dizia:
arrastavapelo chão como uma cauda. Atrás dele, os pontudos foci- - Cada pessoa tem que ter suas obrigaçõesl
nhos pendurados,vinham dois galgosborzoi. E Ánia o escutava, e temia, e não conseguia comer, e geralmente
Nos olhos de Ánia ainda bülhavam as lágrimas, mas ela já não pen- deixava a mesacom fome. Depois do almoço, o marido repousavae
savanem na mãe, nem no dinheiro, nem no seu casamento,e apertava roncava alto, e ela ia visitar os seus. O pai e os meninos olhavam-na de
as mãos de ginasianos e oficiais conhecidos,ria alegrementee falava um modo estranho, como se um momento antes da sua chegada tives-
depressa: sem estadoa condena-lapor ter se casadosem amor, por dinheiro, com
-- Boa-noites Como está? um homem aborrecido e maçante; seu vestido farfalhante, as pulseiras e

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todo o seu ar de senhora os incomodavam,os ofendiam; na sua pre- passo, e passeavacom ela no braço pelos corredores e pelo Joga. Cum-
sença, eles ficavam um pouco embaraçados e não sabiam de que falar primentando alguém, ele imediatamente sussurravapara Ánia: "Conse-
com ela; mas, apesar disso, continuavam a amá-la como dantes e ain- lheiro Civil... recebido por Sua Excelência..." ou: "Homem de recur-
da não se acostumaram a almoçar sem ela. Ela sentava-see comia com sos... possui casaprópria..." Quando passavampelo bufo, Ánia tinha
eles, sopa de repolho, aveia e batatas, fritas em banha de carneiro que muita vontade de comer doce; ela gostavade chocolate e de docesde
cheirava a vela. Piotr Leontitch, com mãos trémulas, vertia vodca de maçã,mas não tinha dinheiro e se acanhavade pedi-lo ao marido. Ele
uma jarrinha, e entornava rápido, com avidez, com asco, depois bebia pegavauma pêra, amassava-aentre os dedos e perguntava hesitante:
outro cálice, depois o terceiro... Pêtia e Andriúcha, meninos magri- -- Quanto custa?
nhos e pálidos, de olhos grandes,tiravam a jarrinha e falavam - Vinte e cinco copeques.
atarantados: -- Deverasl -- dizia ele, e punha a pêra no lugar; mas como não dava
-- Não faça, papaizinho... chega, papaizinho... jeito de sair sem ter comprado nada, ele exigia água de Seltzer e toma-
E Ánia também se preocupava e implorava-lhe que não bebessemais, .va sozinho a garrafainteira, e as lágrimas assomavam-lheaos olhos, e
mas ele de repente ficava irado e dava murros na mesa. Ária o'odiava neste momento.
-- Não permitirei que ninguém me faça observaçõesl-- gritava ele. -- Ou então, de repente, enrubescendo todo, ele Ihe dizia apressado:
Moleques! Meninotal Vou expulsa-los para a rua, todosl -- Cumprimente esta senhoras
Mas na sua voz transparecia a fraqueza, a bondade, e ninguém o -- Mas eu não a conheço.
temia. Depois do almoço, ele costumava se anumar; pálido, o queixo -- Não importa. É a esposado presidente da CâmarasCumprimente,
com talhos de navalha, espichando o pescoço seco, ele ficava meia estou dizendol -- resmungava ele, insistente. -- Não Ihe vai cair a cabeça.
hora diante do espelho se enfeitando, ora penteando o cabelo, ora Anta cumprimentava,e a cabeça,de fato, não Ihe caía, mas era pe-
torcendo o bigode negro, perfumava-se com o pulverizador, amarrava noso. Ela fazia tudo o que o marido queria, e se detestavaporque ele a
a gravataem laço, depois enfiava as luvas, punha a cartola e saíapara enganaracomo a última das tolinhas. Ela se casaracom ele só pelo
as aulas particulares. E nos feriados, ele ficava em casa e escrevia com dinheiro, e entretanto, agoraela tinha menos dinheiro do que antesde
tintas de cor ou tocava a harmónica, que chiava e rugia: ele se esforça- casar.Antes, pelo menos, o pai Ihe dava pratinhas de vinte copeques,
va por extrair dela sons harmoniosos e melódicos, e cantarolava, ou mas agora, nem um cêntimo. Pegar dinheiro às escondidas ou pedir,
então se irritava com os meninos: isto ela não podia,tinha medo do marido, temia-o.Parecia-lheque
-- Patifesl Imprestáveisl Estragaram o instrumento l estepavor ao marido elajá traz na alma há muito tempo. Longe, na
Todas as noites, o marido de Ánia jogava baralho com os seus cole- infância, a força mais temível e impressionante, crescendopara ela
gas,que moravam sob o mesmo feto que ele, no prédio do governo. como uma nuvem, ou uma locomotiva prestes a esmaga-la,parecia-
Durante o jogo, reuniam-se as esposasdos funcionários, feias, enfeita- Ihe sempreo diretor do ginásio; outra força igual, da qual semprese
das com mau gosto, grosseirascomo cozinheiras, e no apartamento falava na família e que, por alguma razão misteriosa, todos temiam,
começavamos mexericos, tão feios e de mau gosto como as próprias era Sua Excelência; e havia ainda uma dezena de forças menores, entre
mulheres dos funcionários. Acontecia que Modesto Alexêitch saía com elas os professores do ginásio, de bigodes raspados, severos, impiedosos,
Ama para o teatro. Nos intervalos, ele não a deixava afastar-senem um e agora,finalmente,Modesto Alexêitch, homem de princípios, que até

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TCHEKOV ANA NO PESCOÇO
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de rosto se parecia com o diretor. E na imaginação de Anta, todas acontecer" o tradicional baile de inverno. Todas as noites, depois do
essasforças se fundiam numa só, e, na figura de um temível, enonne, jogo de baralho, Modesto Alexêitch, excitado, cochichavacom as es-
medonho urso branco, avançavam para os fracos e os culpados, tais posasdos funcionários, lançando olhares preocupados na direção de
como o seu pai, e ela tinha medo de dizer qualquer coisa em protesto, unia, e depois ficava muito tempo andando dum canto para outro,
e soda um sorriso forçado, e exprimia uma satisfação fingida, quando pensando em qualquer coisa. Finalmente, uma vez, tarde da noite, ele
a submetiam a carícias grosseiras e a maculavam com amplexos que parou diante de unia e disse:
Ihe causavamhorror.
-- Tu tens de mandar fazer um vestido de baile. Entendes? Mas, por
SÓuma vez Piotr Leontitch atreveu-sea pedir-lhe cinqüentarublos favor, primeiro aconselha-tecom Mana Grigorievna e Natália
emprestados,para pagar uma dívida muito desagradável,mas que so- Kusminichna.
frimento foi issol E deu-lhe cem rublos. Ela os tomou; mas, ao encomendar o vestido
- Está bem, eu Ihe darei -- disse Modesto Alexêitch, tendo pensado de baile, não se aconselhou com ninguém, apenasconversou com o
um pouco. -- Mas advirto-o de que já não vou ajuda-lo mais, enquanto pai e procurou imaginar como teria se vestido a mãe. Sua defunta mãe
não abandonar a bebida. Para um homem na situação de funcionário
sempre se trajava pela última moda e sempre se ocupava de unia e a
do governo, tal fraqueza é vergonhosa. Não posso deixar de lembrar- vestia elegantemente, como uma boneca; ensinara-lhe o francês e
Ihe o fato de sobejo conhecido, de que muito homem bem-dotado foi
a dançar a mazurca com perfeição(antes de casar,ela trabalhara cin-
arruinado por esta paixão, ao passo que, se se abstivessem,essaspes-
co anos como governanta). Ánia, do mesmo modo que a mãe, sabia
soas poderiam, quiçá, vir a ser personagens altamente colocados.
transformarum vestido velho num traje novo, lavar as luvas com ben-
E sucederam-selongos períodos: "na medida em que...", "partindo
zina, usar btjoux alugados, e, do mesmo modo que a mãe, sabia aper-
do pressupostode que...", "em vista do recém-mencionado",enquan-
to o infeliz Piotr Leontitch sofria e sentia uma forte vontade de beber tar os olhos, rolar os "erres", assumir atitudes bonitas, ficar, quando
necessário, entusiasmada, parecer triste e misteriosa. E do pai ela her-
um trago.
dou a cor escurados cabelose dos olhos, o nervosismoe estamaneira
E os meninos, que vinham visitar Ánia, geralmente de sapatosrotos
e calças puídas, também tinham que escutar admoestações:
de estar sempre se enfeitando.
- Todo homem tem que ter as suas obrigaçõesl -- dizia-lhes Modes- Quando, meia hora antes da saída para o baile, Modesto Alexêitch
to Alexêitch. entrou no quarto dela para, diante do seu/rumeau, colocar no pesco-
ço a condecoração, ele, encantado com a sua beleza e o brilho do seu
E não lhes dava dinheiro. Mas, em compensação,presenteavaÁnia
com anéis, braceletese broches, dizendo que é bom ter essascoisas traje fresco e vaporoso, acariciou as suíças com ares satisfeitos e disse:
para uma hora de necessidade.E muitas vezesele abria a.cómoda da -- Então é assim que é a minha... é assiml Aniútal -- continuou ele,
esposae fazia uma revisão -- se todos os objetos estavam em ordem. súbito caindo num tom solene.-- Eu fiz a tua felicidade,e agoratu
podes fazer a minha. Peço-te, apresenta-te à esposa de Sua Excelências
11 Pelo amor de DeusaAtravés dela, eu posso conseguir o posto de pri-
meiro -relator l
Entretanto, chegou o inverno. Ainda bem antes do Natal, anunciava- Saírampara o baile. Eis a AssociaçãoFidalgae a entradacom o por-
se no diário local que a 29 de dezembro, na Associação Fidalga, "irá teiro. O vestíbulo com os cabides, casacosde pele, lacaios apressadose

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senhoras decotadas, protegendo-se com os leques contra as correntes claro, e nem podia ser de outra maneira, ela sufocava de emoção, aper-
de ar, cheira a gás de iluminação e a soldados. Quando Anta, subindo tava convulsivamente o leque na mão e queria beber. O pai, Piotr
a escadariapelo braço do marido, ouviu a música e se avistou de cor- Leontitch, de fraque amarrotado, cheirando a benzina, aproximou-se
po inteiro no enorme espelho,toda iluminada pela inanidade de luzes, dela, estendendo-lhe um piões com sorvete vermelho.
na sua alma acordou a alegria, o mesmopressentimentode felicidade -- Estásencantadora
hoje -- dizia ele, fitando-acom entusiasmo
-- e
que ela experimentara naquela noite enluarada na parada do trem. Ela nunca ainda lamentei tanto que tenhas te apressadotanto em casar...
caminhavaorgulhosa, segura,sentindo-sepela primeira vez não uma Para quê? Eu sei, tu o fizeste por nós, mas... -- Com as mãos trémulas,
menina, mas uma senhora, e imitando, sem querer, o modo de andar e ele tirou do bolso um pacotinho de notas e disse:-- Hoje eu recebi
as maneiras da sua falecida mãe. E, pe]a primeira vez na vida, e]a se pelas aulas e posso pagar a dívida ao teu marido.
sentia rica e livre. Nem mesmo a presença do marido a incomodava, Ela soltou-lhe nas mãos o pires e, enlaçada por alguém, adejou para
porque, assim que cruzara a soleira da associação,ela adivinhara com longe, e de relance, por cima do ombro do seu cavalheiro, ela viu
o seu instinto que a proximidade do marido idoso não a diminuía nem como o pai, deslizandopelo soalhoencerado,convidou uma senhora
um pouco, mas, pelo contrário, a distinguia com o selo de picante e voou pelo salão.

mistério, que tanto agrada aos homens. No grande salão, já soava a "Como ele é agradável,quando sóbrios" pensou ela.
Ela dançou a mazurca com o mesmo oficial enorme; solene e pesa'
orquestra e começavamas danças. Depois do apartamento governa-
do. comouma carcaçade unifonne, ele andava,movia os ombrose o
mental, envolvida pelas impressões das luzes, das cores, da música, do
peito, mal e mal batendo os pés no ritmo da dança -- ele não tinha a
ruído, Ánia correu os olhos pelo salão e pensou: "Ah, como é boml", e
menor vontade de dançar,mas ela adejavaao seu lado, provocando-o
imediatamentedistinguiu na multidão todos os seusconhecidos,to-
com a sua beleza, com o seu colo nu; seus olhos ardiam de malícia,
dos a quem antes havia encontrado em festase passeios,todos esses
seus movimentos eram cheios de paixão, mas ele, cada vez mais indi-
oficiais, professores,advogados,funcionários, proprietários, Sua Ex-
ferente, estendia-lhe os braços condescendentemente, como um rei.
celência, Artinov e as senhoras da alta sociedade, enfeitadas, muito de-
- Bravo, bravos...-- ouvia-se entre o público.
cotadas,bonitas e feias, que já ocupavamseus postos nas barracase
Mas, pouco a pouco, mesmo o enorme oficial não resistiu; ele des-
pavilhões do bazar beneficente, para começar as vendas em favor dos
pertou, ficou excitado, e, já entregue ao encantamento,inflamou-se e
pobres. Um enorme oficial de dragonas -- ela o conhecera na rua Staro-
já se movia com leveza,como um jovem, e ela só mexia os ombros
Kievskaia, quando ainda frequentava o ginásio, mas agora não se lem- e olhava maliciosa,como se agoraa rainha fosseela, e ele o escravo,e
brava do seu sobrenome-- surgiu como que de sob a tema e convidou-a neste momento, Ihe parecia que todo o salão os fitava, que toda esta
para a valsa, e ela voou para longe do marido, e já Ihe parecia que estava gente os admirava e os invejava. Nem bem o enorme oficial acabou de
navegando num barco a vela, no meio de forte tempestade, e o marido agradecer-lhe,eis que de repente o público abriu alas e os homens se
ficou na margem, lá longe... Ela dançavacom entusiasmo, apaixonada- perfilaram de um modo estranho, abaixando os braços.::'Era Sua Ex-
mente, tanto a valsa, como a polca e a quadrilha, e passavade braço celência que se encaminhava para ela, de fraque, com duas estrelas.
em braço, atordoada pela música e pelo barulho, misturando o russo Sim, Sua Excelência dirigia-se justamente a ela, porque a fitava no
com o francês,rolando os "erres", rindo, sem pensar no marido, nem rosto com um sorriso adocicado,e ao faze-lo movia os lábios como
em nada, nem em ninguém. Ela tinha sucessocom os homens, era quem mastiga,o que fazia sempreque via uma mulher bonita.

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-- Muito prazer, muito prazer... -- começou ele. -- Acho que vou dar dez rublos e afastou-sesolenemente, sem dizer palavra. Pouco depois,
ordens de trancarem o seu mando num calabouço, por ter-nos oculta- ela o viu saindo com o par para o granelromã,e destavez elejá oscilava
do até agora tamanho tesouro. Venho com uma incumbência de mi- e soltavainterjeições em voz alta, para grande embaraçoda sua dama, e
nha esposa - continuou ele, dando-lhe a mão. -- A senhora precisa nos Ánia lembrou como, uns três anos atrás, num baile, ele oscilava assim
ajudar... S-sim... É preciso conceder-lhe um prémio de beleza... como mesmo e exclamava -- e a coisa terminou com o guarda levando-o à casa
na América... S-sim... Os americanos...Minha esposaespera-a com para dormir, e no dia seguinte o diretor ameaçou despedi-lo do empre-
impaciência. go. Como vinha mal a propósito esta lembranças
Ele a acompanhou até uma barraquinha, para junto de uma senhora Quando nas banaquinhas se extinguiram os samovares e as fatigadas
idosa com a parte inferior do rosto desproporcionalmente grande, de benfeitoras entregaram os seus ganhos à idosa senhora de pedra na
modo que parecia que ela tinha uma grande pedra na boca: boca, Artinov levou Ánia pelo braço para o salão onde estava sendo
-- Ajude-nos -- disse ela em tom cantante e anasalado. -- Todas as servida uma ceia para todos os participantes do bazar beneficente.
moças bonitinhas trabalham no bazar beneficente, apenas a senhora é Ceavamumas vinte pessoas,não mais, mas o barulho era grande. Sua
a ümca que passeia,não sei por quê. Por que não quer nos ajudar? Excelência ergueu um brinde: "Neste refeitório suntuoso, cabe brin-
Ela saiu e Ánia ocupou o seu lugar junto do samovar de prata e das dar ao florescimento dos refeitórios baratos que serviram de motivo
xícaras. Imediatamente, as vendas se animaram. Por uma xícara de chá. ao bazar de hoje"l Um general-de-brigadapropôs beber "à força, dian-
Ama cobravanão menos de um rublo, e obrigou o enormeoficial a te da qual se curva até a artilharia", e todos se puserama chocar taças
tomar três xícaras.Aproximou-se ArtinoM o ricaço, que sofria de falta com as senhoras. Foi muito, muito alegres
de ar, masjá sem aquele traje estranhocom o qual Ánia o vira no verão, Quando acompanhavam Anta para casa,já amanhecia e as cozinhei-
e sim de fraque, como todos. Sem tirar os olhos de Ánia, ele bebeu uma ras iam à feira. Satisfeita, ébria, plena de novas impressões,exausta,
taça de champanhe e pagou cem rublos, depois, tomou chá e deu mais ela se despiu, tombou na cama e adormeceu imediatamente...
cem -- e tudo isso em silêncio, sofrendo de asma....Ánia atraía os com- Pelasduas horas da tarde, foi acordada pela criada, que anunciou a
pradores e cobrava-lhesdinheiro, já profundamente convencida de que visita do senhorArtinov. Ela vestiu-serapidamentee foi para a sala.
os seus sorrisos e olhares não lhes causavam nada além de grande pra- Pouco depois de Artinov. chegou Sua Excelência, para agradecer-lhe
zer. Ela já compreenderaque fora criada exclusivamentepara esta vida pela participação no bazar beneficente. Fitando-a com o olhar adoci-
ruidosa,brilhante e risonha, com música,danças,admiradores,e o seu cado e mastigandocom os lábios, ele beijou-lhe a mãozinha e pediu
velho medo diante da força que avançae ameaçaesmaga-laparecia-lhe licença de voltar, e saiu, e ela ficou parada no meio da sala, espantada,
ridículo; elajá não temia ninguém, e só lamentavaque não tivessea encantada,não podendo acreditar que a mudança na sua vida, a extra-
mãe, que agora se alegrada junto com ela pelo seu êxito. ordinária mudança, tivesse acontecido tão cedo; e neste momento,
Piotr Leontitch, já pálido, mas ainda firme nas penas, aproximou-se entrou o seu marido, ModestoAlexêitch... E agora, também diante
da banaquinha e pediu um cálice de conhaque.Ánia corou, esperando dela, ele tinha a mesma expressão adocicada, aduladora, servilmente
que ele dissessealguma coisa imprópria(ela já sentia vergonha de ter respeitosa, que ela se acostumara a ver-lhe na presença dos fortes e
um pai tão pobre, tão comum), mas ele bebeu, tirou do seu pacotinho dos ilustres; e foi com exaltação,com indignação,com desprezo,já

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certa de que nada Ihe aconteceriapor isso, que ela disse, destacando sair sozinho para a rua, receandoque ele caísse;e quando, nos passeios
claramente cada palavra: na Staro-Kievskaia, acontecia cruzarem com unia de carruagem de
-- Saia daqui, boçall dupla, com Artinov na boleia em lugar do cocheiro, Piotr Leonüch tirava
Depois disso, Ánia não tinha mais nem um dia livre, já que tomava a cartola e se preparava para gritar alguma coisa, mas Pêtia e Andriúcha
parte ora num convescote, ora numa excursão, ora num espetáculo. o tomavampelos braços e diziam, como que implorando:
Todos os dias, ela voltava para casa de madrugada e dormia na sala de -- Não, papaizinho... chega, papaizinho...
visitas, no chão, e depois contava a todos, comovedoramente.como
ela dorme debaixo das flores. Era necessáriomuito dinheiro, mas ela
já não temia Modesto Alexêitch, e gastavao seu dinheiro como se
fosse dela. E ela não pedia, nem exigia, mas apenasIhe mandavaas
contas ou bilhetes: "entregar ao portador desta duzentos rublos", ou:
"pagar imediatamente cem rublos"
PelaPáscoa,Modesto Alexêitch foi agraciadocom a ordem de Santa
Ana de segunda categoria. Quando ele se apresentou para agradecer,
Sua Excelênciapõs de lado o jornal e afundou na poltrona.
-- Quer dizer que agora o senhor tem três Anãs -- disse ele, exami-
nando suas alvas mãos de unhas rosadas-- uma na lapela, duas no
pescoço.

Modesto Alexêitch põs dois dedos sobre os lábios como precaução


para não rir alto, e disse:
-- Agora, resta esperar a vinda ao mundo do pequeno Vladimir. Atre-
ver-me-ei a convidar Vossa Excelência para padrinho.
Ele insinuava uma indireta a respeito da ordem de Vladimir de quarta
categoria,e já imaginavacomo iria contar a todo mundo esteseu tro-
cadilho, tão feliz pelo engenhoe alojo, e quis dizer mais algumacoisa
igualmente espirituosa, mas Sua Excelência voltou ao jornal e despe-
diu-o com um movimento de cabeça...
E Ama passavao tempo correndo de troíka, ia à caça com Artinov.
representava em peças de um ato, ceava, e as visitas que fazia aos seus
eram cadavez menos õeqüentes. Elesjá almoçavamsós. Piotr Leontitch
bebiamais do que nunca, dinheiro não havia, e a hamiõnica há muito
que fora vendida por uma dívida. Agora, os meninos já não o deixavam

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