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A CLÍNICA PULSIONAL DE WILHELM REICH :

UMA TENTATIVA DE ATUALIZAÇÃO

Ricardo Amaral Rego 1


Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica

Busca-se propor uma fundamentação da psicoterapia corporal de


inspiração reichiana dentro do quadro de referência da primeira teoria
freudiana das pulsões. Tenta-se explicar os elementos próprios da
abordagem reichiana a partir da idéia de uma dinâmica psíquica
baseada no conflito entre pulsão e defesa. Também são discutidas,
brevemente, algumas possibilidades de ampliação desse modelo a partir
de propostas oriundas de outras abordagens.
Descritores: Freud, Sigmund. Reich, Wilhelm. Psicanálise. Psicoterapia
corporal. Pulsão.

Psicoterapia corporal e Psicanálise

E ste artigo examina elementos que possam incluir a psicoterapia corporal


de orientação reichiana dentro de um quadro de referência psicanalítico,
explorando um caminho indicado anteriormente (Rego, 1992). É uma for-
mulação original, que se insere num movimento de diversos autores da área
(Albertini, 1994; Boadella, 1997; Briganti, 1987; Silva, 2001; Wagner,
1996, 2003), no sentido de resgate das origens psicanalíticas do pensamento
de Wilhelm Reich.

1 Endereço para correspondência: R. Alm. Marques Leão, 785 - 01330-010 - São


Paulo, SP. Endereço eletrônico: ric.rego@uol.com.br

Psicologia USP, 2003, 14(2), 35-59 35


Ricardo Amaral Rego

Em artigo anterior (Rego, 2002), mostrou-se que a psicanálise na qual


Reich fundamenta suas concepções (da fase psicanalítica) é basicamente
aquela da primeira teoria das pulsões (Freud, 1915/1969, 1915/1974a,
1915/1974b). Interessa aqui, num primeiro momento, manter este fio condu-
tor, como se seguíssemos a pista relativa à pergunta: como teria Reich for-
mulado suas descobertas se ele não tivesse rompido com a psicanálise?

A primeira teoria freudiana das pulsões

Cabe, inicialmente, fazer um breve resumo da teoria freudiana para,


em seguida, examinarmos como Reich se apropria da mesma ao desenvolver
suas propostas.

Inconsciente, recalque e fixação

A noção de inconsciente é central na metapsicologia freudiana. Este


teria origem no afastamento de certos elementos psíquicos do campo da
consciência, essencialmente por meio do mecanismo do recalque (Freud,
1915/1974a, 1915/1974b). Isso levaria a uma fixação, ou seja, o representan-
te da pulsão permaneceria inalterado no inconsciente. As fixações são o e-
lemento fundamental da psicopatologia freudiana, onde os distúrbios men-
tais e emocionais são sempre remontados à fixação em algum element o
passado. O tratamento ocorreria pela análise de derivados do material recal-
cado (os sonhos, os sintomas etc.), no sentido de “conscientizar o que é in-
consciente”.

A pressão (drang) da pulsão

Para elementos não recalcados do inconsciente, o seu destino depen-


derá basicamente do grau de investimento libidinal: se for muito baixo, per-
manecerá inconsciente. Se estiver mais ativado, colocará “em movimento

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todos os processos que terminam na penetração do impulso na consciência”


(Freud, 1915/1974b, p.175).
Em relação aos conteúdos recalcados, se houver um investimento su-
ficientemente intenso da pulsão, serão rompidas todas as barreiras, e as re-
presentações associadas à pulsão chegarão à consciência. Por outro lado, um
investimento fraco permitirá uma ação do recalque, e só derivados muito
remotos poderão atingir o consciente. Freud afirma que “as tendências recal-
cadoras podem encontrar um substituto para o recalque num enfraquecimen-
to do que é detestável” (1915/1974b, p.175).

Contra-investimento e resistência

O material recalcado exerce pressão contínua em direção à consciê n-


cia, e essa força tem de ser equilibrada por uma contrapressão também in-
cessante. Decorre daí a questão da resistência, ou seja, as mesmas forças que
agem para fazer com que certos conteúdos pe rmaneçam inconscientes agi-
rão sobre o tratamento analítico ou psicoterápico no sentido de sabotá -lo,
retardá-lo ou atrapalhá-lo.
Por outro lado, essa dinâmica entre o pólo pulsional e o pólo defensi-
vo permite compreender por que o material aparece quando as resistências
são eliminadas. O recalcado não seria como um peixe fugidio que precisa
ser pescado com grande habilidade: na verdade, de acordo com a visão freu-
diana, ele “quer” pular para o barco (o consciente) e não consegue porque
alguma barreira o impede.

O campo reichiano

1. A análise do caráter

Reich (1995), no livro Análise do Caráter, fundamenta suas concep-


ções e proposições a partir da teoria do recalque. Apesar de concordar com a

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teoria freudiana, ele propõe quatro inovações em relação à abordagem clás-


sica da psicanálise:
a) grande importância atribuída à forma com a qual o paciente se ex-
pressa (ou seja, dar atenção não apenas ao que ele diz, mas também a como
ele diz). Freud já utilizava este tipo de material, mas, em geral, não de forma
prioritária. Reich colocou-o como central em sua abordagem (ver Martinez,
1993).
b) a regra de associação livre de idéias seria aplicável apenas quando
não há resistência importante do paciente ao desenvolvimento da análise.
Quando houver resistência, o analista deve abandonar sua atitude passiva,
substituindo-a por uma postura diretiva até superar as resistências ao proces-
so. Segundo Reich (1995, p. 22), se nossos pacientes aderissem às regras
fundamentais, ainda que aproximadamente, não haveria razão para se escre-
ver um livro sobre análise do caráter. Infelizmente, só uma fração muito
pequena de nossos pacientes é capaz de análise desde o princípio; a maioria
deles adere às regras básicas só depois de as resistências terem sido dissolvi-
das com êxito.
c) o caráte r, como estrutura defensiva global e articulada do ego, as-
sume papel destacado na concepção reichiana. É enfatizado o estudo das
chamadas resistências caracterológicas, que devem ser abordadas clinica-
mente a partir de uma técnica específica chamada análise do caráter.
d) propõe-se uma intervenção direta sobre o corpo a partir da concepção
de que o conflito entre pulsão e defesa é algo que ocorre não apenas no âmbito
psíquico, havendo um componente somático a considerar (ver abaixo).

2. Reich, a Psicanálise e a musculatura


2
Reich vê “a couraça psíquica como a soma total de todas as forças de
defesa recalcadoras” (1995, p. 289). Segundo ele, esta “couraça funciona

2 Reich usa esta denominação por acreditar que a soma das defesas psíquicas consti-
tuiria uma verdadeira blindagem ou armadura para proteger o ego.

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sob a forma de atitudes musculares crônicas e fixas.” (1995, p. 313). Este é


um elemento-chave de sua teoria e técnica, como se pode perceber pela a-
firmação de que

a dissolução de um espasmo muscular não só libera a energia vegetativa, mas, além


disso e principalmente, reproduz a lembrança da situação de infância na qual ocor-
reu a repressão do instinto. Pode-se dizer que toda rigidez muscular contém a histó-
ria e o significado de sua origem. (Reich, 1984, p. 255).

De acordo com ele, “o que temos em mente não é uma analogia, e sim
uma identidade real: a unidade da função psíquica e somática” (Reich, 19 95,
p. 315).
A partir de tal concepção, o trabalho direto sobre a musculatura do pa-
ciente vai se tornar parte da estratégia analítica: o afrouxamento das tensões
musculares é visto como um equivalente do afrouxamento da censura e da
eliminação do recalque. Inúmeros elementos, descritos por Freud em termos
psíquicos, serão agora retomados somaticamente por Reich:
a) a fixação
Segundo Reich, “na zona oral, o recalque se manifesta pelo enrijeci-
mento da musculatura da boca e por um espasmo na musculatura da laringe,
da garganta e do peito; na zona genital, manifesta-se como tensão contínua
na musculatura pélvica” (1995, pp. 316-317). Afirma ele que “a liberação da
excitação vegetativa de sua fixação nas tensões da musculatura da cabeça,
garganta, maxilares, laringe etc., é um dos requisitos indispensáveis para a
eliminação das fixações orais em geral” (1995, p. 317). Ou seja, a fixação
estaria ancorada em um padrão muscular crônico.
b) o dispêndio contínuo de energia
De acordo com Freud (1915/1974b, p. 175), “a manutenção de uma
3
repressão acarreta ininterrupto dispêndio de força”. Na visão reichiana, “o

3 Seguindo Laplanche e Pontalis (1991), neste artigo o termo alemão Verdrängung é


traduzido como recalque. Entretanto, na passagem citada de Freud (e em outras do
mesmo autor, além de algumas citações de Reich) a mesma palavra aparece tradu-
zida como repressão.

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encouraçamento do caráter requer energia, porque é sustentado pelo consu-


mo contínuo de forças libidinais ou vegetativas” (Reich, 1995, p. 313). As-
sim, “todo aume nto de tônus muscular e enrijecimento é uma indicação de
que uma excitação vegetativa, angústia ou sensação sexual foi bloqueada e
ligada” (p. 315). Nesta formulação, o gasto incessante de energia, descrito
por Freud como um processo psíquico, aparece para Reich como um gasto
real de energia para manter o músculo contraído.
c) o recalque e a resistência
De acordo com Reich,

Observa-se, muitas vezes, que há uma diferença no estado de tensão muscular an-
tes e depois de solucionar um recalque severo. Em geral, quando os pacientes estão
em estado de resistência, isto é, quando uma idéia ou uma moção pulsional é bar-
rada da consciência, eles sentem uma tensão no couro cabeludo, na parte superior
das coxas, na musculatura das nádegas etc. Quando conseguem superar essa resi s-
tência por si mesmos ou pela interpretação correta do analista, sentem-se subita-
mente aliviados. (1995, p. 315)

4
d) a quota de afeto
Para Reich, “a tensão muscular que está presente e não se resolve nu-
ma descarga motora consome a excitação que poderia surgir como angústia;
desse modo, evita-se a angústia.” (1995, p. 319). Segundo o processo descri-
to por Reich, o tônus muscular aumentado consumiria justamente a excita-
ção que, no texto freudiano, é denominada como fator quantitativo ou quota
de afeto. Haveria, assim, uma correlação entre afeto e musculatura que le m-
bra aquilo que Freud descreveu sobre os afetos inconscientes, ou seja, en-
quanto as representações continuam a existir como estruturas reais no ni -
consciente, o que corresponde no sistema Ics. “aos afetos inconscientes é um
início potencial impedido de se desenvolver.” (Freud, 1915/1974a, p. 204).
e) o recalque como um mecanismo tardio

4 Freud chama de quota de afeto à energia pulsional vinculada à idéia (Freud


1915/1974b , p. 176).

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De acordo com Freud (1915/1974b, p. 170), “a repressão não é um
mecanismo defensivo que esteja presente desde o início.” Ou seja, o reca l-
que é considerado um mecanismo de defesa que não tem importância dinâ-
mica nas primeiras fases do desenvolvimento emocional. Dentro da form u-
lação de Reich, isso é quase óbvio, pois o recalque só poderia aparecer de
forma importante por volta do fim do primeiro ano de vida, quando o desen-
volvimento da coordenação motora assim o permitisse.

3. A associação livre de movimentos

Como decorrência das afirmações acima, a regra básica da associação


livre de idéias é complementada de mane ira bastante natural por uma “asso-
ciação livre de movimentos”. Parece não haver traição à idéia original de
Freud, quando se introduz a possibilidade de que o material inconsciente
surja não apenas em termos verbais, mas também na motricidade e na ex-
pressão não-verbal do paciente.

4. O trabalho com o pólo pulsional

A partir da noção de um conflito entre pulsão e defesa, pode-se pensar


em estratégias clínicas que trabalhem não só com o pólo defensivo (que
constitui a abordagem clássica), mas que também permitam intervir no pólo
pulsional. Certamente Reich não foi o único psicanalista a pensar nisso, mas
provavelmente terá sido o autor que mais desenvolveu a teoria e a técnica
desta forma de olhar a clínica.
Tal tipo de intervenção faria aumentar o investimen to do material re-
calcado. Como conseqüência, produzem-se derivados em maior quantidade,
mais próximos do material original e mais carregados afetivamente. Isso
pode facilitar o trabalho analítico, especialmente nos casos onde a resistên-
cia está muito forte.

5 Ver nota de rodapé 2.

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Um dos recursos básicos das instâncias recalcadoras parece ser a di-


minuição da vitalidade geral do organismo, sendo comum verificarmos isso
nos neuróticos. Um dos meios utilizados pelo organismo para tal fim - e que
é da maior importância clínica - é a inibição respiratória. Muito se tem escri-
to sobre o papel da inibição respiratória na desvitalização do organismo e no
bloqueio emocional (Gaiarsa, 1987, 1994; Keleman, 1992) e, aqui, perce-
bemos como isso pode ser compreendido psicodinamicamente.
Fica assim clara a importância de técnicas vitalizantes e mobilizadoras
utilizadas em psicoterapia corporal, como a massagem hipotônica e a mas-
sagem orgonômica (M. L. Boyesen, 2002), trabalhos sobre a respiração
6
(Gama & Rego, 1996; Lowen & Lowen, 1985), o exercício da medusa (jel-
lyfish), os actings desenvolvidos por Navarro (1996).

5. O inconsciente dinâmico e a “couraça secundária”

Como há um equilíbrio dinâmico entre pulsão e defesa, o trabalho a-


nalítico (pela ativação do material recalcado ou pela diminuição da defesa)
favorece o aparecimento do material recalcado na consciência. Mas isso leva
muitas vezes a uma ativação compensatória do recalque. Em outras pal a-
vras, a conseqüência do fortalecimento da pulsão pode ser simplesmente
uma ativação ainda maior da defesa. Conforme Freud (1926/1976) afirmou,
o sinal de angústia teria como função mobilizar os mecanismos de defesa, e
isto pode ter um efeito negativo para o processo analítico, se a dinâmica do
conflito entre pulsão e defesa não for bem manejada pelo analista.
Esta é uma situação à qual Gerda Boyesen deu grande atenção, ch a-
mando-a couraça (ou defesa) secundária. Conforme Samson (1994), a defe-
sa secundária se define como uma defesa recém-formada, em conseqüência
de uma invasão do sistema defensivo e exposição precoce do material in-
consciente reprimido. Sendo precoce, a exposição provoca uma reação de
contração posterior ao primeiro suspiro de alívio, levando à formação de

6 Ver Heller (1993).

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uma nova defesa, mais complexa e menos aparente, que recebe o nome de
secundária porque pr otege contra a mais recente invasora do material repri-
mido: a terapia (p. 44).
Isso indicaria a necessidade de uma postura mais prudente por parte
do analista, no sentido de que tanto a ativação da pulsão quanto a eliminação
das resistências deveriam ser feitas gradualmente, sem afobações, dentro do
que é assimilável pelo paciente. Nesses casos, como diz G. Boyesen (1986),
o pouco é muito (a little is a lot).

Questões relativas à técnica

Tenta-se, aqui, uma apresentação da técnica da psicoterapia corporal


que se assente na metapsicologia freudiana, e não, como é usual, nos pres-
supostos biológicos e energéticos da formulação reichiana tradicional.

1. A Psicologia Biodinâmica de Gerda Boyesen

Foi visto acima que, partindo de uma base teórica bastante semelha n-
te, a técnica psicanalítica e a técnica reichiana clássica tomaram rumos dis-
tintos, chegando mesmo ao antagonismo em muitos aspectos. Na Psicologia
Biodinâmica (G. Boyesen, 1986; Iaconelli, 1997), existem elementos que
talvez permitam uma síntese entre estas abordagens, integrando-as num con-
texto mais amplo.
Recupera-se, por exemplo, a valorização da passividade do analista,
que permite que o terapeuta atue dando espaço para um processo espontâneo
que brote do paciente. De acordo com G. Boyesen (1986),

As senhas durante a vegetoterapia são as seguintes: digo ao paciente: Você pode


dizer ou fazer o que quiser. Mas você não é obrigado a fazer ou dizer, seja lá o que
for. Simplesmente, não contenha nenhuma palavra ou movimento. Diga se existe
alguma coisa que você queira que eu diga ou que eu faça (...) chamo este método
terapêutico de método da parteira. (p. 102). Aí está realmente o segredo da terapia

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biodinâmica: deixar o processo biodinâmico emergir das profundezas do corpo; as


emoções surgem por si e se descarregam. (p. 105).

Entretanto, quando existe resistência, a postura proposta é semelhante


à de Reich (ver item 3.1, item b): “fiz uma distinção entre os pacientes que
já tinham em si um processo dinâmico e aqueles que precisavam de uma
intervenção de minha parte.” (G. Boyesen, 1986, p. 104).
Este tipo de concepção talvez possa constituir um eixo em torno do
qual seria possível estruturar uma técnica que integre aspectos das várias
escolas psicanalíticas e das diversas abordagens reichianas e neo-reichianas
numa proposta abrangente e, ao mesmo tempo, coerente.

2. O paradigma pulsional e a análise da resistência

Os aspectos abordados a seguir configuram uma visão da clínica e s-


truturada com base na noção de resistência, procurando articular o manejo
dos vários graus e das diversas formas de ocorrência da mesma.
Outros elementos fundamentais de um processo analítico deveriam ser
examinados para que se constituísse uma proposta mais completa, mas não
serão aqui abordados por estarem fora do âmbito deste artigo. Entre estes,
merece atenção especial a questão da transferência, dado que as alterações
propostas em relação ao setting analítico tradicional acarretam uma profunda
modificação dos aspectos transferenciais do tratamento. Note-se que existem
autores do campo reichiano que têm estudado o fenômeno da transferência
no contexto da psicoterapia corporal, como Wagner (2003) e Samson
(2002).
Examinemos, então, a questão da resistência. Ela varia (em quantida-
de e qualidade) de pessoa para pessoa. Ela varia, ainda, ao longo do tempo
para um mesmo paciente, ocasionando fases do tratamento com maior ou
menor resistência, podendo inclusive ser diferente em momentos diversos de
uma mesma sessão. Assim, propõe-se uma postura geral que deverá levar
em conta, para sua aplic ação, a leitura atenta da especificidade de cada pes-
soa e de cada momento do processo analítico. É o que se pode chamar de

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A Clínica Pulsional de Wilhelm Reich: Uma Tentativa de Atualização

postura do alfaiate: em vez de usar a mesma roupa pronta para todos, busca-
se criar uma que se adapte às medidas específicas daquele que está sendo
atendido.
Considerando a quantidade de resistência, propõe-se, aqui, que este
tema seja visto como um continuum onde podem ocorrer infinitos graus de
variação entre dois pólos: de um lado, a resistência absoluta e impenetrável;
de outro, a ausência completa dela. Quanto menor a resistência, mais os
conteúdos recalcados inconscientes podem aflorar sem distorções, até mes-
mo sem necessidade de interpretações. Desta maneira, quando a resistência é
mínima, cabe ao analista apenas cuidar de não atrapalhar o processo.
Pela mesma lógica, quanto maior a resistência encontrada, maior será
o papel diretivo do analista. Isto também parece óbvio, e é um dos pontos
7
enfatizados brilhantemente por Reich : se há uma forte resistência, não leva-
rá a lugar algum a postura de abrir espaço para as associações livres (verbais
ou motoras) do paciente, pois ele simplesmente andará em círculos, cercea-
do pelos seus próprios mecanismos de defesa. Graus intermediários de resis-
tência exigirão uma atitude mista do analista, obviamente. Ou seja, o co-
mando do tratamento é atribuído ao paciente ou ao analista, conforme a
quantidade de resistência, e esta pode variar a cada momento do processo: é
muito freqüente que a um momento de fluidez siga-se, subitamente, na
mesma sessão, um período de resistência. Ou o contrário: depois de um iní-
cio frio e resistente, abre-se a comunicação.
Além da quantidade de resistência, seria importante a atenção à quali-
dade da mesma. Além da resistência comum descrita por Freud, Reich in-
troduz o estudo da resistência que está ligada ao caráter. A proposta dele é
8
que esta forma de resistência, por suas características especiais , só pode ser

7 “No período de resistência, recai sobre o analista a difícil tarefa de dirigir o and a-
mento da análise. O paciente só tem comando nas fases livres de resistência” (Rei-
ch, 1995, p. 49).
8 O traço de caráter, normalmente, estaria estruturado na personalidade, não sendo
visto como algo estranho à pessoa; seria crônico; muitas vezes apareceria somente
na forma e não no conteúdo das comunicações do paciente; ocorreria ainda, fre-
qüentemente, como uma resistência oculta ou latente.

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eliminada quando se usa uma técnica específica, denominada de análise do


caráter (Reich, 1995).
Outra forma de resistência diferente da descrita por Freud seria aquela
constituída a partir de aspectos somáticos. Desta forma, abre-se a possibili-
dade de uma ação para eliminar a defesa a partir de um trabalho direto sobre
o corpo do paciente. Por exemplo, afrouxando a tensão muscular (e as defe-
sas contra o recalcado) por meio de massagens (ver G. Boyesen, 1986, pp.
34-41) ou de exercícios de sobrecarga da musculatura (Lowen, 1985). Reich
enfatizou a questão da hipertonia muscular no seu estudo dos aspectos so-
máticos da defesa psíquica. Outros autores acrescentaram novos elementos à
sua concepção: o papel defensivo da hipotonia muscular, das “couraças”
tissular e visceral (G. Boyesen, 1986).
O emprego da leitura corporal, ou seja, a valorização dos elementos de
comunicação não-verbal que se manifestam na relação analítica, pode ser
considerado um outro elemento decisivo. Supõe-se, aqui, que os derivados
do material recalcado aparecem não só no discurso, mas também na ação. A
forma, portanto, seria tão reveladora quanto o conteúdo das comunicações
do paciente. Assim, neste tipo de abordagem, o “olhar analítico” adquire a
mesma importância da “escuta analítica”. Ele pode ser decisivo para a iden-
tificação tanto de aspectos crônicos (como um traço de caráter), quanto em
relação a resistências só detectáveis por certo brilho no olhar ou uma mu-
dança sutil na postura.
Até aqui a abordagem da resistência ocorreu, basicamente, por meio
de uma abordagem do pólo defensivo do conflito entre pulsão e defesa. Um
outro princípio seria a possibilidade de trabalho com o pólo pulsional. Como
foi visto anteriormente (item 2), Freud afirmou que um “enfraquecimento do
que é detestável” poderia substituir o recalque, pois a retirada do investimen-
to de um representante da pulsão faria com que este não pressionasse, ou
pressionasse menos, em direção à consciência e à ação. Inúmeros exe mplos
de técnicas deste tipo são encontrados nas abordagens reichianas e neo-
reichianas (ver item 3.4).

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Coerentemente com as considerações anteriores, o setting deve ser


flexível. Isso significa, por exemplo, que a distância entre paciente e analista
pode variar conforme o caso - algumas pessoas necessitarão de pouca dis-
tância, para que o calor humano do contato próximo “derreta as resistên-
cias”. Outras, entretanto, acharão essa mesma proximidade invasiva, e suas
resistências diminuirão quando a angústia trazida por essa ameaça atenua -se
9
por meio de um afastamento físico entre os participantes da sessão . Além
disso, o psicoterapeuta não precisa ficar “aparafusado” na cadeira durante
10
uma mesma sessão: ele pode circular , ficando mais próximo ou distante,
conforme o decorrer dos acontecimentos, podendo, assim, mudar o ângulo
11
de interação.
Em certas fases do processo de alguns pacientes é muito útil o setting
analítico tradicional. A posição relaxada e a falta de contato visual induzem
a um contexto propício ao contato do paciente consigo mesmo, ao mesmo
tempo em que a ausência de contato físico lhe assegura que não será invadi-
do. O material pode aparecer sob a forma clássica de relatos verbais, mas há,
também, a liberdade para que isso aconteça por meio da associação livre de
movimentos, podendo ocorrer mudanças de postura, gestos, sons e movi-
mentos expressivos.

9 Obviamente, a proximidade entre pessoas não se mede apenas em metros, podendo


a distância afetiva ser modulada por meio do tom de voz, entre outras possibilid a-
des. Entretanto, o manejo apropriado da distância física permite uma intervenção
mais precisa: pode-se determinar o grau ótimo de proximidade para um dado paci-
ente e investigar como ele vivencia, em seu corpo e em seus afetos, quando nos a-
fastamos (ir embora, abandono) ou nos aproximamos (invasão, sedução).
10 G. Boyesen (1986, p. 102) relata: “eu podia me sentar longe do paciente, a seu lado,
atrás, na frente, muito perto e mesmo podia tocá-lo.”
11 Estar à frente pode ter uma conotação de enfrentar, mas também pode constituir um
contato mais direto e com exposição mútua. Estar ao lado tem um significado ób-
vio, e pode ser uma posição de escolha em certos momentos do processo. Um ângu-
lo de 90o pode caracterizar um ambiente de interação menos exposto e mais prote-
gido, adequado para condições que requeiram um contato no qual é importante que
não se caracterize um clima de enfrentamento.

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Para alguns, entretanto, a falta de contato visual gera angústia, pode n-


do chegar ao ponto de inibir a comunicação. O mesmo acontece com a pos-
tura deitada que, em alguns momentos, pode ser sentida pelo paciente como
algo ameaçador que vai precipitá -lo num abismo desconhecido. Em certos
casos, interpreta -se a resistênc ia e permanece o enquadre original. Em ou-
tros, o tratamento pode fluir melhor ao optar-se pela inserção do contato
visual e/ou da postura sentada. Sempre partindo de uma leitura psicodinâmi-
ca do que está acontecendo com aquela pessoa, naquele momento e dentro
de qual vivência transferencial específica.
Com pacientes para os quais o contato físico não é problema, pode -se
usar uma variação da posição analítica tradicional, acrescentando a ela o
toque: o psicoterapeuta coloca suas mãos sob a cabeça do paciente, apoian-
do-a, enquanto seus dedos trabalham sobre a nuca e parte posterior do pes-
coço. O afrouxamento da resistência ancorada nas tensões em sua nuca e
pescoço contribui, muitas vezes, para o surgimento mais fácil do material
recalcado. O medo de “perder a cabeça” é comum quando nos aproximamos
do contato com o desconhecido que somos para nós mesmos, e a tentativa
de controle, freqüentemente, está ancorada em tensões desse tipo. Uma van-
tagem adicional dessa posição é que muitas pessoas referem uma sensação
de conforto e confiança pelo fato de terem a cabeça apoiada. O aspecto rela-
cional tem, então, um efeito sinérgico com o trabalho somático, facilitando o
derretimento das resistências. Como já afirmado, outras pessoas perceberão
esse contato como algo inva sivo que motivará um sentimento de repulsa.
Cada caso é um caso.
Obviamente, estas possibilidades não são as únicas, podendo uma ses-
são ocorrer com os participantes em pé, sentados, em movimento ou em
qualquer posição que se perceba ser efetiva para os objetivos.
De um modo geral, existe a necessidade de estruturar o setting, a a-
bordagem, a técnica e o manejo da relação no sentido de ter como resultado
a diminuição ou eliminação da resistência. Como cada pessoa é diferente, a
estratégia também será diversa em cada caso. Para alguns, o importante é
sentir-se acolhido e protegido. Isso fará com que as defesas baixem a guarda

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e deixem vir à tona o que estava guardado. Para outros, talvez porque te-
nham sido muito manipulados na infância, isto terá efeito contrário. Certa
vez, uma paciente pediu-me indicação de um psicoterapeuta para seu namo-
rado. Assim o fiz e, algum tempo depois, ela relatou que o rapaz não havia
gostado da psicoterapeuta indicada, pois lhe parecera “boazinha” demais.
Ou seja, ele não precisava de alguém que fosse acolhedor e atencioso, mas
de um psicoterapeuta mais franco e direto, que apontasse seus conflitos sem
muitos rodeios, sem “sedução”. A questão da confiança no analista pode ser
um fator decisivo no afrouxamento das resistências. Uma pessoa submetida
a tratamento biodinâmico nos conta, por exemplo: “eu sabia que, se eu mer-
gulhasse dentro de alguma coisa, que o massagista ia ficar comigo, que ele
não ia escapar e ir por outro caminho (...) a prioridade dele era me acompa-
nhar.” (Iaconeli, 1997, p. 55).
Um último princípio consiste na postura biodinâmica de fazer amizade
com a resistência (G. Boyesen, 1986). Este princípio tem como base, por um
lado, não ceder à resistência e não compactuar com ela. Por outro, não tentar
removê- la de uma forma que exceda a capacidade de assimilação do pacien-
te. Em uma analogia que pode ser útil, a resistência seria como uma muleta
que permite à pessoa andar e que, em uma dada situação infantil, foi prova-
velmente a melhor solução possível, dentro dos recursos então existentes. Se
tentarmos chutar essa muleta para longe, o paciente reagirá, aga rrando-se a
ela para não cair. Mas se lhe oferecermos um programa viável de tratamento
que recupere as capacidades perdidas, ele provavelmente aderirá e logo a-
bandonará por si mesmo a muleta.

Para além do paradigma pulsional

Até aqui, seguimos o fio condutor do paradigma pulsional. Entretanto,


o exame do campo da psicoterapia corporal atual aponta elementos que pa-
recem não caber dentro desta fundamentação. Dentro dos propó sitos deste
artigo, não cabe o exame aprofundado deste tema. Entretanto, o assunto fica-

49
Ricardo Amaral Rego

ria um tanto incompleto se não fossem indicadas algumas direções em que


se pode ampliar a base conceitual e técnica.

1. Outras Psicanálises

Em primeiro lugar, é necessário examinar a produção freudiana não


incorporada por Reich. Como foi dito, a teoria reichiana articula -se bem com
a primeira teoria das pulsões de Freud. Mas isso não quer dizer que ela este-
ja correta. Um primeiro questionamento seria: por que não seguir a segunda
teoria freudiana, que fala da pulsão de morte? Afinal de contas, o próprio
Freud deixou de lado sua primeira formulação em favor da segunda. Este é
um tema amplo, e alguns aspectos dessa discussão foram elaborados em
trabalho anterior (Rego, 2001 ), no qual se procura mostrar que pode não ser
inapropriado preferir a primeira teoria das pulsões.
Quanto à psicanálise depois de Freud, fica difícil posicionar-se, tama-
nha a diversidade de escolas e formulações dentro do campo psicanalítico.
Segundo Bleichmar e Bleichmar (1992, p. 17),

a teoria psicanalítica cresceu, a partir de Freud, por aposição de uma grande quan-
tidade de escolas, correntes de pensamento, grupos, autores, cada um com seu e n-
foque particular sobre quase todos os problemas. Poderíamos dizer que, neste mo-
mento, não há uma psicanálise, mas muitas.

Utilizaremos, aqui, a proposição de Mezan (1996), de agrupar as dife-


rentes abordagens psicanalíticas em três grandes paradigmas: o paradigma
pulsional (Freud, Abraham, Reich), o paradigma relacion al ou objetal (Fair-
bairn, Winnicott, Sullivan) e o paradigma do sujeito (Lacan).
De acordo com este autor, “foi a chegada aos consultórios de pacie n-
tes deprimidos, psicóticos, fronteiriços, portadores de distúrbios de caráter
ou de falhas profundas na organização do narcisismo que deu origem ao
questionamento do paradigma pulsional” (Mezan, 1996, p. 353). Como res-
posta a isso, organiza -se, a partir dos anos 50, outra forma de compreender o
inconsciente, que recusa a centralidade do conceito de pulsão. Trata -se de
uma perspectiva na qual a experiência humana não é primordialmente mol-

50
A Clínica Pulsional de Wilhelm Reich: Uma Tentativa de Atualização

dada pelo interjogo das pulsões, mas pela maneira como se organizam as
primeiras relações do bebê com os outros seres humanos. Nessa linha, vários
autores “(...) buscam conceitualizar a importância central que atribuem ao
objeto e às relações como constituintes últimos do inconsciente” (pp. 350-
351).
Ainda segundo Mezan, a frase “a libido não busca prazer, busca obje-
tos”, de Fairbairn, “se converte na senha de todos os autores desta tendên-
cia.” (1996, pp. 350-351). O que se vê hoje é que o campo reichiano, sem
negar sua fundamentação pulsional, tem dialogado com autores da escola de
relações objetais como forma de ampliar os horizontes clínicos. Entre estes,
especialmente as idéias de Donald Winnicott têm motivado interesse, como
se pode ver, por exemplo, em Cintra (2002) e Cornell (1998).
Quanto ao diálogo com o paradigma lacaniano, este é um campo em
aberto, e poucas explorações desse território existem. Entre elas, pode -se
citar aquela feita por Cukiert (2000), que parece apontar, a meu ver, mais
para uma complementaridade do que para um antagonismo entre as visões
de Reich e Lacan.

2. Outros inconscientes

De acordo com Freud (1915/1974b, p. 191), “tudo que é reprimido


deve permanecer inconsciente; mas, logo de início declaremos que o repri-
mido não abrange tudo que é inconsciente. O alcance do inconsciente é mais
amplo: o reprimido é apenas uma parte do inconsciente.” Em “O Ego e o
Id”, essa tese é confirmada quando se diz que “o reprimido se funde com o
id, e é simplesmente uma parte dele” (Freud, 1923, p. 38).
Muitos elementos do funcionamento mental e do tratamento de dis-
túrbios psíquicos podem não ser explicáveis pela teoria do recalque. Mas,
talvez, seja útil pensá-los no âmbito mais amplo de processos inconscientes
que podem ser trazidos à consciência em um dado processo terapêutico. Isso
não é novidade, constituindo uma idéia abordada de diferentes maneiras por
diversos autores.

51
Ricardo Amaral Rego

Klein (1991), por exemplo, enfatiza a importância dos processos me n-


tais que ocorrem no primeiro ano de vida, numa época da vida em que o
mecanismo do recalque ou está ausente ou ainda não tem a importância que
terá posteriormente. O inconsciente é entendido como algo também relacio-
nado a mecanismos de defesa mais primitivos, como a negação, a cisão, a
projeção e a introjeção. Isso amplia e modifica a visão freudiana descrita
acima.
Alguns autores propõem a hipótese da existência de um inconsciente
filogenético, que faria parte do psiquismo humano e que teria uma similari-
dade com o que Jung chamou de inconsciente coletivo. Stevens e Price
(1996), por exemplo, propõem um modo de conceber a Psiquiatria a partir
da hipótese, proposta por C. G. Jung, do funcionamento dos arquétipos co-
mo unidades dinâmicas do psiquismo filogenético:

... arquétipos são concebidos como unidades neuropsíquicas que evoluíram através
da seleção natural e que são responsáveis pela determinação de características
comportamentais e também de experiências afetivas e cognitivas típicas dos seres
humanos (...) por exemplo, o sistema arquetípico mãe-bebê apenas será plenamente
preenchido se for ativado pela presença e pelo comportamento de uma figura ma-
terna (pp. 6-7).

Não cabe, aqui, discutir a validade ou não deste tipo de concepção. In-
teressa-nos, apenas, citar exemplos que falam da possibilidade da existência
de outros tipos de inconsciente que influenciam a vida mental, e para os
quais continuaria existindo um efeito terapêutico na atividade de “conscien-
tizar o que é inconsciente”. Do me smo modo, em psicoterapia corporal,
muitas vezes deparamo-nos com fenômenos que sugerem a existência de um
outro tipo de inconsciente (aqui chamado de neurolocomotor), que parece
ser formado sem a ação do recalque.
É o que acontece quando se aprende a andar, por exemplo. O aprendi-
zado depende, em geral, de uma atenção consciente, que permite um desen-
volvimento e aprimoramento do movimento e da capacidade de ação. Gra-
dualmente, a coordenação vai se automatizando e ficando inconsciente, até
um ponto em que é necessário um grande esforço para conscientizar nova-

52
A Clínica Pulsional de Wilhelm Reich: Uma Tentativa de Atualização

mente os procedimentos que constituem a ação como, por exemplo, alguém


que quer corrigir uma postura errada ao tocar um instrumento.
Desta maneira, existiria um processo inconsciente de comando da mo-
tricidade. Entretanto, a dinâmica, aqui, pode ser inteiramente diferente da-
quela que ocorre no recalque:

a) não haveria uma força impelindo naturalmente o conteúdo in-


consciente em direção à consciência;
b) não existiria, portanto, uma pressão pelo “retorno” do material
inconsciente, e este não estaria presente em atos falhos, sonhos e
sintomas;
c) o que está inconsciente não seria uma pulsão ou um representan-
te da pulsão, isto fazendo com que o papel da sexualidade não
seja necessariamente o principal, como ocorre no caso do in-
consciente recalcado;
d) este seria simplesmente um mecanismo neurológico normal, e
não um processo patológico;
e) não parece haver uma representação recalcada que é afastada da
consciência;
f) existiriam procedimentos que podem tornar-se inconscientes em
qualquer fase da vida, não havendo assim, necessariamente, uma
predominância dos elementos infantis;
g) o papel da angústia parece ser diferente neste caso, tanto no pr o-
cesso de tornar inconsciente um material consciente, como no
processo inverso.

Entretanto, algumas similaridades podem ser notadas entre este pr o-


cesso de automatização e o recalque. Uma é a questão dos afetos, pois quan-
do um procedimento motor é automatizado, ele pode incorporar em si algo
da dinâmica emocional do momento em que este procedimento foi gerado.
Por exemplo, uma criança aprende a andar num momento em que vive in-
tenso ódio pela chegada de um irmão. Ao ser automatizada sua maneira de

53
Ricardo Amaral Rego

andar, nessa época da sua vida, ela possivelmente incorporará em seu modo
12
um jeito de andar “pisando duro ”, que poderá permanecer, assim, pelo
resto de sua existência. Ou seja, haveria aqui também uma “fixação” infan-
til, cuja dinâmica, entretanto, pode ser bem diversa daquela originada pelo
recalque. É de se supor que a intervenção terapêutica também apresente ca-
racterísticas diferentes daquelas descritas acima.
Outra semelhança seria a resistência à mudança. Parece haver uma
tendência de preservação dos comportamentos aprendidos, o que é compre-
ensível neurologicamente: seria um contra-senso, em termos do or ganismo,
desorganizar um comportamento que “funciona”, é preciso conservar aquilo
que foi organizado e tornou-se um padrão viável. Porém, aparentemente,
não há uma psicodinâmica envolvida nesta resistência. Se a hipótese aqui
analisada for verdadeira, o modo de lidar com esta resistência terá de ser
diferente daquele discutido anteriormente.
A metodologia proposta por Keleman (1992, 1995) parece estar volta-
da para este tipo de questão e, talvez, não seja à toa que ele não utiliza o
referencial teórico e técnico da psicanálise ou da tradição reichiana. É um
trabalho voltado para a reorganização de padrões musculares e emocionais,
no qual a ampliação da propriocepção e do controle sobre a motricidade
adquirem papel preponderante. Não há algo que se deixa vir à tona, pois o
ego vai buscar ativamente aumentar seu controle, numa mudança escolhida
e dirigida para uma direção determinada.

Conclusões

Em primeiro lugar, parece ser possível descrever a clínica da psicote-


rapia corporal, tendo como base a teoria freudiana das pulsões. Isto confi r-

12 Decorrente dos fortes sentimentos de ódio e insegurança que estiveram muito pre-
sentes na época do aprendizado motor. Talvez, expressando até um desejo de pisar
no irmão.

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A Clínica Pulsional de Wilhelm Reich: Uma Tentativa de Atualização

maria a hipótese de que o paradigma pulsional foi o eixo teórico, a partir do


qual Reich derivou suas abordagens técnicas inovadoras.
Em termos de um diálogo com a psicanálise, este posicionamento
permitiria localizar a psicoterapia corporal dentro de um tipo de abordagem
psicanalítica específica, possibilitando que ela se enriqueça no contato com a
vasta literatura que aborda temas teóricos e clínicos neste campo.
Quanto ao desenvolvimento das possibilidades aqui apontadas, parece
ficar claro que o paradigma pulsional freudiano não dá conta de todas as
possibilidades e propostas da psicoterapia corporal contemporânea. Talvez
se possa dizer que o conflito entre pulsão e defesa é um modelo necessário,
mas não suficiente, para compreender a clínica reichiana atual. Podem e
devem ser buscados novos elementos em autores psicanalíticos que trouxe-
ram inovações e perspectivas diferentes da tradicional, para que se complete
este quadro. Citam-se, aqui, especialmente, as idéias de Donald Winnicott
como promissoras neste aspecto.
A grande inovação reichiana é a idéia da participação dos aparelhos
locomotor e respiratório na dinâmica psíquica. Este é um tema que merece
ser aprofundado e debatido, tanto no sentido de um desenvolvimento da
metodologia clínica, quanto em relação ao seu embasamento científico no
âmbito da biologia e das neurociências. Note-se que esta hipótese reichiana
não é essencialmente diferente da abordagem psicanalítica tradicional. Ao
descrever a importância das zonas erógenas oral, anal e genital, em “Três En-
saios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud (1905/1972, p. 188) ressalta que

qualquer outra parte do corpo pode adquirir a mesma suscetibilidade ao estímulo


possuída pelos órgãos genitais e pode tornar-se uma zona erógena (...) fui levado a
atribuir a qualidade de erogeneidade a todas as partes do corpo e a todos os órgãos
internos.

Desta maneira, Reich nada mais faz do que investigar uma possibili-
dade já assinalada por Freud, ampliando os horizontes do corpo erógeno ao
explorar as possibilidades de se entender e trabalhar clinicamente com a
importância psíquica dos aparelhos respiratório e locomotor. Talvez se possa

55
Ricardo Amaral Rego

caminhar ainda mais nesta direção, incorporando, por exemplo, a pele (An-
zieu, 2000; G. Boyesen, 1986) e outros órgãos e sistemas do organismo a
uma visão mais abrangente do funcionamento psíquico.

Rego, R. A. (2003). Wilhelm Reich´s drive practice: an attempt of


updating. Psicologia USP, 14(2), 35 -59.

Abstract: The aim of this article is to understand the Reichian body


psychotherapy within the framework of the first Freudian drive theory. We
try to explain specific elements of the Reichian approach starting from the
idea of a psychodynamic based on the conflict between drive and defense.
Some possibilities of expanding this model through the integration of
proposals from other theories are also briefly discussed.

Index terms: Freud, Sigmund. Reich, Wilhelm. Psychoanalysis. Body-


psychotherapy. Drive.

Rego, R. A. (2003). La clinique pulsionnelle de Wilhelm Reich : une


tentative d'actualisation. Psicologia USP, 14(2), 35-59.

Résumé: On propose une base de psychothérapie corporelle d'inspiration


reichienne dans le cadre de référence de la première théorie freudienne des
pulsions. On cherche à expliquer les éléments propres à l'abordage
reichinien à partir de l'idée d'une dynamique psychique basée sur le conflit
entre pulsion et défense. On discute aussi, brièvement, des possibilités
d'extension de ce modèle à partir des propositions venant d'autres façons de
voir.

Mots clés: Freud, Sigmund. Reich, Wilhelm. Psychanalyse,


Psychothérapie corporelle. Pulsion.

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A Clínica Pulsional de Wilhelm Reich: Uma Tentativa de Atualização

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Recebido em 05.06.2003
Aceito em 17.09.2003

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