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Os espaços públicos falam cotidianamente, não

apenas quando gritam1.

Paulo Cesar da Costa Gomes

Departamento de Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
pccgomes@yahoo.com.br

1
Preparado para apresentar no Congresso de 2014 da Associação de Estudos Latinoamericanos, Chicago,
Il, de 21 a 24 de maio de 2014.

1
Abstract: This paper deals with the idea that public spaces can be seen as good indicators of the state of
democracy in different scales of political life. Public spaces can be considered as different screens on
which everyday life with all its interactions, conflicts and debates occur. Contrary to what is usually
assumed in recent bibliography, public spaces are not dead. The rigourous and unbiased observation of
what actually happens in these spaces indicates quite the opposite, and provides rich and dense material
for understanding contemporary political dynamics. This can even help us understand better some aspects
of the more reported and vocal demonstrations that have recently taken place all over the world.

Key words : public space ; everyday life ; demonstrations.

Uma superficial consideração dos regimes políticos vigentes na maior parte do mundo
atual indicaria a quase exclusividade de Estados nacionais democráticos. Pelo menos
nominalmente, são excepcionais os países que assumem explicitamente serem
totalitários, ou como justamente se diz, submetidos a regimes de exceção. Obviamente,
esse apressado panorama global não é aceito por ninguém que tenha um mínimo de
informação sobre a situação política no mundo. Não é razoável que muitos desses países
sejam considerados como verdadeiras democracias a despeito, muitas vezes, dos
argumentos de alguns de seus porta-vozes e defensores. A questão que se impõe
imediatamente nesse debate é aquela que indaga sobre as características necessárias
para que possamos reconhecer e distinguir regimes políticos que indiscriminadamente
utilizam a denominação de democracia. Que elementos essenciais devem estar presentes
para definir e avaliar um regime democrático?
Para muitos, a resposta pode ser obtida observando as instituições que regem a vida
política em cada um desses países. A possibilidade da organização partidária livre de
tutelas, o funcionamento autônomo e independente das Câmaras dos representantes
escolhidos pelo voto, sistemas eleitorais que protejam a diversidade e contemplem a
representação das minorias, eleições livres e regulares são, entre outros, os elementos
levados em conta. Para outros, esses aspectos formais não bastam. Eles têm que ser
acompanhados de condições básicas como isonomia de todos em face das leis, garantia
das liberdades individuais fundamentais e eficiência na aplicação dos direitos. Outros
ainda acrescentariam que uma democracia só pode existir com liberdade de expressão e
de informação e, nesse sentido, mais um elemento necessário seria a garantia das
condições para a formação e expressão de uma opinião pública informada, livre, com
canais de comunicação independentes e representativos de todas as nuances sociais.
Essa discussão recobre muitos outros aspectos, mas interessa-nos aqui somente
reconhecer que há nela uma busca de critérios gerais que são constituidores da
democracia. Desde que aceitemos que há esses critérios que são essenciais facilmente
podemos classificar em seguida os regimes que são mais democráticos, quais aqueles
que devem melhorar e como podem e devem melhorar. Assim, a partir da aceitação
desses critérios abstratos é possível fazer um julgamento das situações concretas vividas
nos diferentes arranjos políticos que caracterizam os países no mundo. Muitas agências
e organizações já se dedicam a isso2.

2
Ver a esse respeito a discussão muito bem apresentada por Tilly, (TILLY, 2013).

2
Nesse trabalho queremos sugerir que pode haver outra maneira de avaliar o grau de
democracia em uma dada sociedade. Queremos valorizar um elemento ausente nesses
anteriores esforços e isso a despeito da importância que esse componente tem na vida
política e social. Trata-se da dinâmica comum que habita e define a vida ordinária nos
espaços públicos. Queremos indicar como essas dinâmicas cotidianas da vida social nos
espaços públicos urbanos pode ser um marcador fundamental na análise da experiência
democrática.

Esclarecimentos sobre a ideia de espaços públicos


Dissemos espaços públicos e o uso dessa expressão pode parecer obvio, mas não é. Há
várias e diferentes tradições no uso dessa locução substantiva e aqui queremos que ela
seja compreendida de maneira precisa e específica. Na tradição da ciência política
espaços públicos é uma fórmula muito usada, sobretudo, depois do trabalho pioneiro de
J. Habermas (1962)3. O sentido predominante é o de uma esfera abstrata de instituições
e de formas de comunicação onde há o livre uso público da razão. No dicionário de
Bobbio a expressão correspondente é espaço político e se define como uma área de
conflitos institucionalizada no qual se pressupõe o uso de certa racionalidade nos
comportamentos e nas decisões (BOBBIO, 2004:392). Já na arquitetura e no urbanismo
os espaços públicos são comumente todos aqueles que têm uso comum, são
empiricamente designados como o conjunto de praças, ruas, esplanadas jardins etc. Na
sociologia, a expressão, em geral tem sido utilizada para designar as esferas de ação do
homem público ou ainda para indicar relações que escapam ao domínio do familiar e do
próximo. O sentido que gostaríamos de indicar aqui é uma associação desses três.
Compreendemos que há uma ação política na forma como nos relacionamos em
determinadas situações que ocorrem sobre um espaço público. O sentido de uma ação só
pode ser compreendido quando o analisamos dentro do contexto espacial no qual essa
ação se construiu. Os espaços públicos constituem um estatuto espacial que redefine
inteiramente o sentido de uma ação, ela pode imediatamente ganhar uma dimensão
política pelo quadro espacial onde ocorre e pelas significações que produz. Em outras
palavras, a mesma atitude ou a mesma palavra ganham uma nova acepção quando são
executadas ou proferidas em lugares diferentes. Espaços são diferenciadores e
classificadores essenciais na vida social. Por meio deles são assinalados limites,
fronteiras, usos esperados, comportamentos, atitudes desejadas etc. A vida social se
constrói paralelamente à construção desses espaços sociais que indicam formas e
maneiras de ser dos espaços e de ser nos espaços.
Há na sociologia toda uma teia de autores muito sensíveis a essa dimensão espacial dos
fenômenos. De G. Simmel à Escola de Chicago, passando por E. Goffman e pela escola
do interacionismo simbólico ou de M. Mauss à escola da Morfologia Social passando
depois por H. Lefèbvre e G. Balandier entre outros, observamos sistemas de
compreensão que valorizam a espacialidade como uma dimensão analítica essencial. Os
espaços são delimitadores, servem como sistema de orientação, são o objeto de
fundações ou de inscrições sociais. Igualmente, N. Elias, G. Duby, M. de Certeau ou M.
3
De fato, há uma controvérsia sobre o uso possível da expressão “espaço público” para caracterizar
aquilo que foi primariamente tratado na obra de Habermas. Muitos preferem que se utilize a expressão
“esfera pública”, tendo sido essa a tradução feita, por exemplo, para o inglês e para o português. Isso,
entretanto, não impede que em grande parte da bibliografia nas duas línguas essas expressões sejam
tomadas como semelhantes. Em francês, a tradução do título da obra preferiu a expressão espaço público
e em espanhol, a tradução aparece como “opinião pública”. Para alguns autores ainda a melhor solução
seria utilizar a palavra “publicidade”.

3
Foucault nos ensinam, muitas vezes valendo-se de exemplos históricos, como sistemas
comportamentais só podem ser construídos e, por conseguinte, analisados a partir de
matrizes espaciais. Trata-se por isso de um espaço que é material, concreto, um produto
historicamente construído e um dos fundamentos da vida social. Eles são públicos na
medida em que supõe a existência também concreta de pessoas investidas de uma
cultura pública, ou seja, de comportamentos e de valores que constituem aquilo que a
ciência política identifica como a esfera abstrata da res publica.
É nesse sentido que queremos utilizar a expressão “espaços públicos”. Dimensão
material da vida social, diferenciadora de atitudes e comportamentos, produto social de
evoluções diversas e objeto de dinâmicas variadas. Em termos mais gerais, espaços
públicos correspondem à área onde uma população, em geral sob um regime
democrático, exercita a capacidade da convivência entre diferentes, ou daquilo que H.
Arendt denomina como pluralidade de indivíduos (ARENDT, 2002)4. É a aceitação
dessas diferenças que dá nascimento aos códigos sociais que indicam a possibilidade de
tolerância e amabilidade para com o desconhecido e o estranho. Os espaços públicos são
a expressão desses valores, eles são também uma espécie de pedagogia que as
sociedades dispõem para formar os cidadãos e são, por fim, o espaço da política vivida
no cotidiano, na maneira ordinária que as sociedades têm de estabelecer pactos para
uma pacificada vida em comum, resguardando a variedade de interesses de diferentes
pessoas. Em termos mais particulares, essas formas de conviver, dividindo um mesmo
espaço e guardando suas diferenças individuais, ganham maneiras, cores e
características específicas, variam de país para país, de cidade para cidade e até de lugar
para lugar dentro de uma mesma aglomeração.
Nos últimos anos, alguns espaços públicos tem se tornado alvo de muita atenção. Eles
foram e continuam sendo o palco de grandes manifestações populares. Eles deram
visibilidade a uma extensa lista de reivindicações que não apareciam nas outras formas
protocolares de representação democrática. Eles desafiam o poder constituído e clamam
por mudanças radicais e pelo reconhecimento de uma pauta de exigências. Esses
espaços funcionam assim como núcleos potencializadores de mudanças sociais mais
amplas e como tal tem, cada vez mais, atraído a atenção em diferentes países e em
diferentes circunstâncias. De fato, já há muitos anos, alguns desses espaços públicos
tem se tornado símbolos de lutas sociais. Se hoje ninguém é capaz de contestar a
importância creditada a essas mobilizações ocorridas na Espanha, nos Estados Unidos,
na Tunísia, no Egito, na Turquia ou até mesmo no Brasil, antes nem sempre foi assim,
muito ao contrário.

Os espaços públicos estavam mortos, pelo menos na bibliografia.


Na bibliografia das ciências sociais que precede essas grandes manifestações, ou seja,
até um pouco antes de 2007, há um flagrante desencanto com os espaços públicos5. Os
outros grandes momentos de mobilização popular nos espaços públicos do final dos
anos 80 foram comumente vistos com algum ceticismo e pouco entusiasmo.

4
Como veremos a seguir, espaços públicos não são regidos exclusivamente pelo regime nacional vigente.
Espaços públicos dependem assim da existência de um público e da convergência dele sobre um lugar
que congrega um conjunto de normas pelas quais fica garantida a copresença de interesses diversos,
definindo uma arena de pressões e conflitos dos quais a solução pela violência está de antemão excluída.
5
Os exemplos são muito numerosos, ilustrativamente podem ser consultados DAVIS (1990); SORKIN,
(1992); LIGHT & SMITH (1998); MITCHELL (2003); KOHN, (2004); LOW et alii (2005), entre muitos
outros.

4
Lembremos que eles sacudiram os países do antigo bloco da Europa de Leste, na
República Tcheca, por exemplo, com a recorrente mobilização na Praça Wenceslas em
Praga (lugar central da Primavera de Praga, em 1968 e depois, em 1989, da Revolução
de Veludo), ou com a maciça ocupação das áreas em volta do Portão de Brandenburgo,
próximo ao muro de Berlin, no processo de liberação da passagem para a Alemanha
Ocidental ou ainda com a grande e resistente ocupação popular da Praça Tiananmen, em
Beijing, ambos em 1989 (LEE, 2009). Nenhum desses eventos teve, no entanto, a
capacidade de criar a ideia de que um fenômeno mais geral estava acontecendo a partir
da mobilização nesses espaços públicos urbanos centrais e emblemáticos. Parecia algo
exclusivo ao antigo bloco comunista e muito distante da realidade de todos os outros
países, sobretudo os ocidentais. A partir da primeira década deste século, a sequência
quase sistemática de diversos movimentos, a coincidência e mesmo a citação de uns
pelos outros, conseguiu despertar o interesse e a consciência de que se trata de uma
forma mais ou menos sistemática de operar dessas populações que buscam, por meio da
ocupação desses espaços, colocar na pauta um conjunto de questões que não são do
interesse do poder institucionalizado.
Na maior parte dos artigos que trata dos espaços públicos, sobretudo nos anos 80/90, há,
ao contrário, um balanço negativo6. São espaços vistos como abandonados,
corrompidos, sempre traindo sua vocação original de promover o encontro e a troca
entre pessoas diferentes7. A descrição das cidades e de seus espaços comuns é
fortemente marcada por esse viés negativo. Não raramente esse viés é matizado de
saudosismo, como o lamento por alguma coisa melhor que teria existido antes e foi
perdida. A cidade do passado ganha ares mais humanizados, parece mais generosa, mais
acolhedora e até mais aberta. Em contraste, o habitante urbano contemporâneo que
aparece nessas descrições é um homem isolado, egoísta, pouco disposto a entrar em
contato com os outros, sobretudo, quando esses outros estão em situação de
vulnerabilidade social (LIPOVETSKY, 1989). Os espaços públicos são vistos como
hostis, perigosos e segregadores (MITCHELL, 1995). São também descritos como
meros lugares de passagem, de circulação entre a miríade de pequenos universos
fechados onde pessoas semelhantes se segregam entre os seus (SOJA, 1989). A cidade
contemporânea é vista como um arquipélago de pequenas comunidades, estranhas umas
às outras, o tecido urbano se assemelharia à justaposição de fragmentos de urbanidades
específicas e sem diálogo, os espaços públicos são não-lugares, sem identidade, sem
qualquer outra significação senão aquela da função primária que os definem, lugares de
passagem, de comércio, de funcionalidades instrumentais (AUGÉ, 1992).
Um dos elementos mais evocados como causador dessa situação seria a privatização
crescente dos espaços públicos. Na bibliografia sobre as cidades é impressionante
constatar a insistência com a qual vários autores descrevem esse que parece ser um
processo dominante, quase absoluto. Há uma quase unânime compreensão de que o
capitalismo e a existência de uma vida pública compõem um oximoro. Sem a
preocupação de dar explicações muito detalhadas ou localizar na história essa tão vívida
contradição, muitos autores passam diretamente da declaração da crescente

6
Mais uma vez, os exemplos são muito numerosos e somente a título ilustrativo pode-se consultar:
FRASER (1990); CRAWFORD (1995); BORJA (1998); DIXON, LEVINE, & MCAULEY (2006);
KUMAR & MAKAROVA (2008), entre muitos outros.
7
O já clássico livro de Richard Sennet (1988) faz um radical e surpreendente diagnóstico. A desmesurada
valorização da intimidade teria, desde a queda do Ancien Régime (1789), comprometido, segundo ele o
desenvolvimento da vida pública, ou seja, o avanço da modernidade se confundiria mesmo com o declínio
do homem público.

5
mercantilização da vida social ao anúncio do fim dos espaços públicos8. Público e
privado são assim tomados como categorias mutuamente excludentes, ou seja, onde há
aumento de um deles, obrigatoriamente há diminuição do outro. Trata-se de um jogo de
soma nula. Nesse sentido, mas somente nesse sentido, pode ser coerente afirmar que
houve a retração da esfera pública já que de fato houve uma crescente incorporação de
áreas da vida social às dinâmicas de mercado. A convivência das esferas públicas e
privadas na vida social moderna, a despeito da demonstração de sua interdependência
no trabalho fundador de J. Habermas, passou, sem explicação aparente, a ser concebida
como impossível, pelo menos em grande parte da bibliografia sobre as cidades. Público
e privado estão assim em perfeita oposição.
O simplismo desse raciocínio excludente pode conseguir uma adesão muito rápida pelo
esquema fácil que o sustenta. O mundo urbano parece, no entanto, se estruturar em
bases bem mais complexas. O sujeito privado é também o sujeito público em momentos
e circunstâncias diversas. Aliás, a concomitância dos estatutos do espaço, públicos e
privados, presentes simultaneamente nas cidades, se complementando, se recobrindo,
demonstram facilmente a necessária coexistência. O mesmo personagem que constrói
sua vida privada em determinados espaços igualmente se relaciona de forma pública em
outros espaços. Sabemos que espaços privados de direito público, como cafés, bares,
pubs já foram identificados e estudados como elementos-chave na criação e no exercício
da vida pública em determinados momentos de certas sociedades. A relativa facilidade
encontrada por alguns autores para aceitar esses exemplos, em geral saídos do século
XIX, se choca com a forte resistência, às vezes dos mesmos, em conceber que
determinados espaços comerciais sejam hoje considerados, ao mesmo título, fóruns da
vida pública. Esse é o caso na literatura das ciências sociais quando a discussão sobre
espaços públicos tem como objeto, por exemplo, os centros comerciais ou shoppings
centers (HOPKINS,1990; GOSS,1993;1999; VOYCE, 2006). Há uma falsa contradição
entre consumidores e cidadãos, que é concebida como uma evidência. Nessa
compreensão democracia e liberalismo passam a ser vistos como antinomias e uma
“verdadeira” ou “radical” democracia só apareceria com a supressão dos mecanismos de
mercado. Essa concepção antiliberal menospreza o fato da Agora grega ter sido antes de
tudo a praça do mercado, das trocas, ou ainda obscurece que a democracia moderna,
surgida nos séculos XVIII e XIX, ter sido um movimento nascido no bojo das novas
ideologias burguesas.
A chamada de trabalhos para o congresso da LASA/2014 (Latin American Studies
Association) traduz isso muito bem. No texto que resume a sessão “Espaços públicos:
conflitos e democracia”, depois de uma breve recapitulação sobre o papel sem
precedentes da globalização e da urbanização, afirma-se a mudança na natureza desses
espaços públicos, originalmente lugares de construção da cidadania e da democracia: os
cidadãos teriam se tornado consumidores e esses espaços de expressão da democracia se
transformado em centros de troca econômica, aumentando a exclusão social, limitando a
democracia.
Essa compreensão se assemelha, às vezes, mais a uma posição de princípio a partir da
qual são evocadas em apoio situações bastante genéricas, pouco trabalhadas

8
Ver a esse respeito, por exemplo: SCHMIDT (2004), SMITHSIMON (2008), KIRBY (2008), NISSEN
(2008).

6
empiricamente ou tomadas de maneira parcial e caricata. Por isso talvez, essa
compreensão tão inespecífica possa ainda persistir e fazer sombra às concretas e
recorrentes mostras de vivências variadas nos espaços públicos. Foi no intuito de reagir
contra esse raciocínio, tantas vezes repetido que já aparece como uma consensual
certeza, que decidimos nos manifestar. A experiência acumulada ao longo de mais de
quinze anos de estudos sobre diversos espaços públicos nos conduz a recolocar essas
afirmações em debate uma vez que elas nos parecem por demais generalizadoras e, às
vezes, fortemente imprecisas. Acredita-se que somente uma observação desses espaços
que seja acurada, cuidadosa e sem um sentido estabelecido a priori pode restabelecer o
interesse e eventualmente contestar o possível equívoco de vê-los como espaços
politicamente bloqueados ou mortos.

A importância da observação.
Durante um amplo período, a segunda metade do século passado, a geografia foi em
muitas ocasiões severamente julgada por colegas de outras áreas do conhecimento nas
ciências sociais como uma disciplina pouco teórica e muito presa aos aspectos
empíricos e descritivos. De acordo com esse diagnóstico, os geógrafos seriam pouco
afeitos à abstração. Os resultados analíticos apresentados por essa comunidade
acadêmica seriam escassos e irrelevantes. Cobrava-se também maior engajamento
político nas lutas sociais e até um maior grau de militância por parte dos geógrafos. No
final dos anos 80, por exemplo, o renomado sociólogo francês Pierre Bourdieu, que
fazia parte de uma comissão de intelectuais que discutia o ensino na França, chegou a
advogar a supressão do ensino da geografia nos ciclos básicos e secundário em nome
dos parcos resultados apresentados pela geografia que não condiziam, segundo ele, com
as pretensões e com os desafios que se colocavam às ciências sociais. Para ele a
geografia seria uma “ciência abortada”.
Esse julgamento pode, entretanto, ser convertido em louvor quando a questão é vista
sob outro ângulo. De fato, a tradição da geografia é tributária do curioso olhar dos
viajantes dos Séculos XVII e XVIII, deslumbrados pelo espetáculo da diversidade das
formas, das espécies, das organizações sociais que encontravam. Descrever tudo, em
todos os seus possíveis detalhes, observar com muita atenção, restituir pela narração
criteriosa esse conjunto eram as tarefas que compunham o essencial desse ofício. Outra
tradição veio se somar a dos viajantes, aquela dos naturalistas, que foram também
pioneiros nas jovens instituições de pesquisa aonde chegava todo esse material coletado
nas viagens. Cabia a eles sistematizar, criar associações, fazer analogias, criar conceitos
e categorias, em suma, explicar a variedade, sem, no entanto, negá-la ou diminuir a
complexidade exposta pelo conjunto das observações empíricas. Sem dúvida, essas
tradições deixaram marcas. Nas palavras de A. Von Humboldt, reconhecido como um
dos pilares das modernas bases dessa disciplina, a geografia une o prazer da observação
acurada ao prazer da explicação judiciosa que tem como objeto a contemplação da
variedade dos fenômenos na superfície da Terra (HUMBOLDT, 1848).
Para que não isso não se confunda com chauvinismo, podemos acrescentar que a
tradição dos estudos antropológicos em grande medida seguiu a mesma orientação e,
apelando para contribuições mais recentes, diríamos com C. Geertz da importância de
realizar uma descrição densa dos fenômenos, respeitando assim a riqueza e
profundidade que a observação metódica e rigorosa dos fenômenos é capaz de gerar.
Por isso, a observação rigorosa dos espaços públicos é para nós uma preocupação
central. Durante o longo período durante o qual temos desenvolvido um trabalho
7
sistemático de observação e análise desses espaços a complexidade e a variedade de
situações tem sido a regra9. Fácil é assim comprovar que muitas opiniões e
generalizações bem estabelecidas antes dos trabalhos sobre o terreno são frontalmente
contrariadas ou, pelo menos, fortemente matizadas pela observação ulterior. Houve
também a preocupação em desenvolver instrumentos de pesquisa que pudessem garantir
um papel mais relevante e perene às observações empíricas e para isso foram
empregadas metodologias visuais que preveem a captura e o registro de muitas imagens
que são depois longamente estudadas e analisadas. Os resultados não deixam dúvida
sobre a riqueza do material colhido. A observação dos espaços públicos tem-nos
fartamente mostrado o quanto eles são atravessados por dinâmicas diversas, às vezes
simultâneas, às vezes independentes, outras vezes complementares. A visualização da
gravação, com as imagens e os sons, nos possibilita separar elementos, compará-los e
interpretá-los sem, no entanto, perder de vista aquilo que se mostra nas imagens. A
gravação proporciona também uma condição de afastamento das situações que, de outra
forma, nos pareceriam banais e sem importância, uma vez que fazem parte do cotidiano
urbano de todos nós.
Por fim, a consideração desses espaços públicos em suas práticas cotidianas como
espaços políticos se afirma cada vez mais como uma matéria de estudo. É possível
assim reconhecer que temas relacionados com esses espaços públicos, tomados como
superfícies concretas e substantivas, componentes fundamentais da vida social, vem se
integrando à agenda temática da Geografia política a partir de diferentes entradas,
(associativismo, movimentos sociais, territorializações, geografia eleitoral etc.). Ainda
que tradicionalmente essa área de estudos tenha se caracterizado por acordar maior
interesse às escalas internacionais, nacionais ou regionais atualmente é flagrante
também a valorização da dimensão local do fenômeno político (CASTRO, 2005).

Alguns resultados das observações feitas.


Evidentemente, nossos terrenos de observação são limitados e não têm nenhuma
pretensão de exaurir todas as dinâmicas existentes nos espaços públicos em geral. A
maior parte do que aqui será dito foi coletada em apenas alguns logradouros públicos na
cidade do Rio de Janeiro.
De imediato é necessário estabelecer as substanciais diferenças nas dinâmicas urbanas
nesses logradouros quando variamos os dias da semana ou o horário do dia. Lugares
absolutamente desertos ou pouco frequentados em dias de semana podem se transformar
em fortes áreas de atração no final de semana e vice-versa. No primeiro caso, estão
alguns parques, praças, calçadões, praias etc. que durante os dias de semana recebem
pouco público, muitas vezes apenas os residentes das imediações e nos finais de semana
são importantes coletores de pessoas que vem de distantes e diferentes localidades
dentro da cidade e até de fora dela. Percebe-se facilmente que as atitudes, os códigos de
vestimenta, de apresentação e todo o conjunto comportamental mudam
substancialmente nesses dias de grande afluxo em relação ao que pode ser observado
nos dias ou horários menos concorridos. A heterogeneidade do público é também muito
maior. As atividades nem sempre são as mesmas, os lugares investidos também variam.

9
Utilizo a primeira pessoa do plural pois de fato esses estudos tem sido desenvolvidos por um conjunto
de pessoas de formações diversas (sociólogos, historiadores, arquitetos e geógrafos) entre pesquisadores e
estudantes reunidos pelo Grupo de pesquisa denominado Território e Cidadania, do Departamento de
Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

8
O fato marcante é que em determinados dias, em determinados horários, é como se,
pessoas que não se conhecessem, tivessem marcado um encontro ali. Todos se dirigem
para o mesmo local, trazem expectativas e interesses diversos, cumprem muitas vezes
atividades variadas, se apresentam de forma diferente, em família, em grandes grupos
da mesma faixa etária, sozinhos, em casais, em grupos de afinidade etc. Essas pessoas
contemplam, estão sentadas, caminham, permanecem em pé, se expõem ao sol,
procuram as sombras, se deslocam, seguem determinados circuitos, tiram fotos, se
exercitam, jogam, não fazem nada... Elas são oriundas de bairros diversos, tem níveis de
escolaridade muito variável e classes de renda também diversa, percebe-se que possuem
muitas vezes repertórios de referencias culturais próprios. Não obstante toda essa
variedade é como se fosse necessário estar ali, naquele lugar, naquele momento. Existir
socialmente nesse sentido corresponde a participar desse espetáculo que desfila sobre
esses espaços. Há uma forte demanda de reconhecimento dessa variedade que se
apresenta, fazer parte dela é fazer parte da cidade.
Todas essas informações não são apenas coletadas pela observação passiva. Além da
observação participante, foram feitos inúmeros questionários e entrevistas abertas em
logradouros na cidade do Rio de Janeiro (Cinelândia, Parque do Flamengo, Quinta da
Boa Vista, Largo do Machado, Parque Guinle, Praia do Flamengo, Praia de
Copacabana, Praia da Barra da Tijuca, Piscinão de Ramos, Calçadão de Caxias,
Calçadão de Bangu, Calçadão de Copacabana, Praça Afonso Pena, Praça Xavier da
Silveira, Praça Saens Pena). Sempre que nos foi possível, depois da tabulação dos dados
sobre a origem do público, confeccionamos mapas que exprimem o raio de influência
ou de atração de cada um desses logradouros e esses mapas permitem avaliar e
comparar o grau de centralidade exercido por esses lugares dentro do tecido urbano.
Facilmente percebemos que há lugares que são mais centrais que outros, ou seja,
recebem um público de uma bacia bem mais larga. Às vezes, lugares vizinhos são
frequentados por públicos bastante diferentes. Muitos guardam a preponderância dos
habitantes mais próximos, outros recebem um número enorme de pessoas vindas de
outras localidades e os moradores locais podem corresponder à minoria, talvez por
evitar a frequência nesses dias ou horários de maior afluxo. Percebemos também que
esses graus de centralidade não são sempre estáveis e que embora a acessibilidade seja
um fator preponderante em quase todos os casos, não chega nunca a ser o único
elemento explicativo uma vez, por exemplo, que outros lugares de fácil acesso são
pouco frequentados.
A primeira conclusão acerca do que foi brevemente apresentado até aqui é aquela que
coloca em evidência a diferenciação no funcionamento dos espaços públicos dentro de
uma mesma aglomeração. São muito diversas as dinâmicas que animam esses lugares,
eles são muito particulares quanto ao público que atraem, na maneira como funcionam,
na heterogeneidade que são capazes de absorver. Percebe-se também que a
complexidade existe pelo fato de que esses logradouros não são os únicos destinos do
encontro social, há sempre vários e de variados tipos, eles comumente funcionam como
um sistema de lugares.
De qualquer forma, como falar da morte dos espaços públicos se as pessoas ainda
insistem em investi-los, se em algum momento e em alguma circunstância pessoas
diversas se reúnem para o simples encontro social para o simples exercício da
sociabilidade? Essa é a pergunta que devemos fazer à bibliografia que, partindo de um
diagnóstico genérico e abusivamente generalizante conclui que esses espaços não estão
mais funcionando.

9
Nesses lugares foram também pesquisadas as razões declaradas para que as pessoas ali
estivessem, que atividades são mencionadas, que tipo de atração é primeiramente
evocada? O motivo predominante em todos os casos traduzia sempre a ideia do primário
interesse do encontro social (“ver pessoas”, “se divertir”, “encontrar gente” etc.) Muitos
sublinham a possibilidade da casualidade e da gratuidade dos encontros – encontrar
conhecidos sem marcar com eles, conhecer pessoas novas, ver gente nova...
Nesse sentido surge outro grupo de perguntas: Quem são as pessoas que, embora
desconhecidas, podem interessar e atrair? Quem são as pessoas que, ao contrário,
seguem um padrão que compromete a afinidade com esses lugares? Em síntese,
interessa saber os possíveis conflitos trazidos pela frequência de pessoas tão diversas.
Qual é a amplitude do leque de diversidade possível de ser suportado pelos
frequentadores e que limites são transgredidos quando se abre o conflito?
A segunda parcial conclusão é que a sociabilidade e os limites aceitos nessa
coexistência entre diferentes dividindo um mesmo espaço é uma medida socialmente
bastante significativa do estabelecimento e aceitação de preceitos comuns que regem a
convivência com estranhos em situação de partilha de um mesmo espaço. Isso tem a ver
diretamente com a questão da democracia pois interpela o conjunto de direitos e deveres
que temos socialmente estabelecido para suportar a variedade e tolerar as diferenças.
Não são regras escritas somente, são regras vividas cotidianamente, esse conjunto é
também o fruto de compromissos e de acordos contextuais. Poderíamos denominar a
variação desses limites como grau de publicidade dos lugares. Esse grau traduziria então
a magnitude da expressão da vida democrática no cotidiano desses lugares.
Os limites que marcam a aceitação ou não de determinados tipos de pessoa são
expressos por identidades muito gerais, pelos comportamentos, pelas formas de
apresentação ou pelo respeito a determinadas regras vistas como essenciais ao convívio,
regras que recebem também o nome de civilidade, urbanidade ou polidez. São assim
muitas vezes citados nos depoimentos como indesejáveis os moradores de rua, os
usuários de drogas, os travestis, as prostitutas, os homossexuais, as crianças de rua,
gente mal-educada etc. Ainda que assim o seja, esses personagens vistos como
problemáticos estão ali, dividindo o espaço, o conflito gera a necessidade de se refletir
sobre os direitos: direito de estar ali, direito de fazer determinadas coisas em
determinados lugares, direito de reclamar o reconhecimento social etc.
Outro caso significativo que foi estudado diz respeito ao bairro da Lapa no centro da
cidade do Rio de Janeiro (SOUZA, 2014). Esse bairro recebe nos finais de semana uma
quantidade muito grande de frequentadores que se distribuem pelos bares, restaurantes,
cabarés, casas de show ou simplesmente ocupam as calçadas e as ruas, caminham ou se
aglomeram diante dos vendedores ambulantes de bebida ou de um grupo de artistas que
se apresenta ou diante de uma casa de onde provém uma música do interior, ou ainda
simplesmente se mantêm em pé, conversando em pequenos grupos, mas que estão
amontoados em trechos das calçadas ou das ruas.
As pessoas são provenientes de diferentes bairros da cidade, tanto os mais populares
quanto aqueles mais valorizados, mais próximos ou muito distantes. O público é
predominantemente jovem, mas não exclusivamente. As composições do vestuário e de
alguns adereços muitas vezes indicam um viés de pertencimento a um grupo de
afinidade, outras vezes, os códigos não são tão explícitos, mas é possível ler origens e
repertórios culturais diferentes.

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O ambiente é fortemente marcado pela música e os estilos musicais ajudam a demarcar
alguns terrenos de afinidades. Há vários estilos em competição, dos mais tradicionais
aos mais atuais: samba, boleros, reggae, eletrônico, funk, brega, entre muito outros. Por
vezes, como foi dito, a música forte gera uma espécie de territorialidade e ajuda a
definir grupos que se mantêm no perímetro até onde o som é audível. Muitas pessoas,
no entanto, circulam e simplesmente passam continuamente, formando um fluxo
ininterrupto de deslocamento entre as concentrações de pessoas que se mantêm paradas.
Muitos conflitos surgem. Interesses diferentes se chocam. Moradores querem que as
ruas sejam abertas aos carros, os frequentadores preferem as ruas interditadas; os donos
dos bares querem a regulamentação da venda de bebida dos ambulantes; o volume de
uma música pode incomodar alguns transeuntes; alguns querem mais policiamento,
outros preferem que a área se mantenha com a sua aura de transgressão; são alguns
conflitos entre muitos outros. Os mais frequentes são aqueles conflitos que surgem dos
comportamentos tidos como aceitáveis ou próprios para o lugar. Algumas pessoas
podem chegar a discutir, o mais provável, no entanto, é que os comportamentos
discordantes se transformem em assunto, em comentário, em tema para a uma conversa.
Nesse sentido, é possível afirmar que nessa área, nesses momentos de grande afluência,
onde a heterogeneidade do público é tão grande, há uma cenarização da vida urbana. A
variedade urbana se apresenta aos olhos do público que é simultaneamente espectador e
centro das atenções. Em outros termos, todos são partícipes da cena pois todos estão
incluídos nela. Nesse desfile, se estabelecem os limites da tolerância, da aceitação da
diferença, daquilo que é apropriado ser mostrado, daquilo que adquire legitimidade pois
possui publicidade.
Quando a madrugada do final de semana acaba, o bairro volta a funcionar em sua
“normalidade”. Os cafés, os bares, os restaurantes continuam abertos, mas o público é
outro. As ruas são ocupadas com as atividades banais, a circulação dos carros e das
pessoas volta a ter um ritmo semelhante ao do resto da cidade.
Podemos legitimamente nos perguntar por que e como alguns lugares, a exemplo do
bairro da Lapa, se ativam em determinados momentos como lugares centrais do
encontro social, como ganham notoriedade, que valores veiculam e quais desses valores
se associam ao lugar, que limites são aceitos na publicização da heterogeneidade social.
Sem dúvida, essas perguntas não tem uma resposta simples e definitiva. De qualquer
maneira, elas apontam para a constatação da importância dessas dinâmicas sócio-
espaciais na vida urbana. As cidades se reconhecem nesses desfiles. Nessas comuns
situações dos finais de semana onde se configura uma manifestação fundamental da
vida pública de uma cidade.

Espaços públicos são marcadores da expressão democrática


Chegados aqui, já somos capazes a reconhecer que a forma pela qual esses espaços são
vividos, os limites da heterogeneidade, a prática e os limites da tolerância, os
comportamentos que geram conflito, os compromissos estabelecidos, a flexibilidade
contextual das normas, entre outras características, são ingredientes fundamentais que
fundam um espaço político. Esse espaço político não dispõe da formalização dos
espaços institucionalizados pelo Estado, não segue as clivagens partidárias, nem seus
eventuais acordos tem caráter generalizado e permanente. Muitos conflitos locais,
entretanto, são transformados em matéria de debate nas câmaras de representação e se
transformam em objetos de leis e disposições jurídicas.

11
Podemos citar as recentes disposições que regem as práticas nas praias cariocas como
um exemplo disso. Os conflitos eram constantes, as reclamações eram encaminhadas a
inúmeros canais, o interesse de muitas pessoas era contrariado pelo de outras. Isso é
muito natural, em um espaço fortemente cobiçado nos dias de sol dos fins de semana,
recebendo um público bastante variado. O fato é que através desses mecanismos a
sociedade transforma valores em decisões e limites, regula conflitos e reconhece direitos
e deveres. A forma como esses mecanismos são vividos, a maneira como são ou não
respeitados pelos frequentadores, a pacificação ou não dos conflitos são, nesse sentido,
uma medida bastante objetiva da vivência e do exercício da democracia nesses espaços.
Podermos avançar então para dizer que essa medida deve ser vista como um critério
fundamental para avaliar o grau de democratização de uma dada sociedade.
A vantagem desse critério é que partimos de uma observação da vivência e não somente
de propósitos gerais abstratos. O fato de os motoristas dos carros, por exemplo,
obedecerem às leis de transito significa que as pessoas estão convencidas de que essa
regulação é benéfica, que há domesticação da força (afinal carros se impõe sobre os
pedestres), que a ordenação dos ritmos do deslocamento e dos limites para ele é fruto de
um acordo para atender a maior parte dos interesses em jogo, interesses que são muitas
vezes contraditórios quando apreciados sob um único ângulo. O antropólogo R.
DaMatta, depois de um longo estudo, sublinhou, por exemplo, a dificuldade de
regulação e obediência às leis de transito no Brasil como uma dificuldade da cultura
cidadã brasileira de se colocar em igualdade face às situações sociais (DAMATTA,
2010). Se assim o é, então podemos medir com relativa objetividade os lugares nos
quais essas disposições mais facilmente são desrespeitadas e são mais facilmente vistas
como indesejáveis e concluir que isso é uma medida do grau de democratização da
sociedade.
Nesse sentido, é lícito também argumentar que essas situações variam de lugar para
lugar. Há, por assim dizer, lugares onde a cultura cidadã está mais presente que em
outros. Os comportamentos sobre os espaços públicos, cívicos ou não, se exprimem pela
visibilidade que têm. Eles se apresentam sobre um espaço que possui como um dos
atributos primários essa visibilidade geral garantida. Trata-se daquilo que originalmente
chamava-se de publicidade, aquilo que se mostra ao público, aquilo que se apresenta ao
olhar de todos. Por isso, os comportamentos característicos que ocorrem sobre o espaço
público compõem e dão uma “espessura” para aquele lugar. Dão a tônica, são um meio-
ambiente que funciona como base informacional, como terreno de interação, sem
esquecer o papel pedagógico que isso também pode ter. Assim, ao chegarmos a algum
lugar onde determinadas práticas sociais são correntes, tentamos nos adaptar a elas, seja
seguindo-as seja reagindo a elas.
Ora, as cidades são compostas de muitos espaços públicos. Alguns são muito centrais,
ou seja, atraem pessoas a partir de um raio muito grande. Muitas vezes eles conseguem
também absorver um leque mais amplo de heterogeneidade em situação de contiguidade
espacial.
O grau de publicidade de um logradouro é proporcional à capacidade que ele tem de
atrair um público mais variado, ou seja, de origens diversas do ponto de vista sócio-
espacial. Em uma praça que é quase exclusivamente frequentada pelas pessoas que
moram nas suas imediações a chegada de visitantes poderá causar forte estranheza,
tanto aos locais quanto ao visitante. De fato, tal praça se assemelha muito mais à

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projeção da vida familiar, guarda um compromisso com aquele pequeno grupo de
pessoas que residem por ali e por isso possui um pequeno grau de publicidade.
Já nos espaços públicos mais centrais, o público se coloca simultaneamente em situação
de exposição e de espectador, a variedade social se apresenta em espetáculo, a variedade
que no sítio da cidade pode estar contida em lugares muito diferentes aparece aí em
conjunto sobre um mesmo espaço. Grupos diversos, às vezes opostos, estão expostos à
situação de contiguidade, os conflitos dos comportamentos, dos valores, das atitudes
podem aparecer e ter curso. As delimitações, os umbrais de suportabilidade são
estabelecidos. A cidade dialoga a partir desses espaços centrais. A experiência da
democracia se traduz em coabitação, copresença, nos conflitos, nos debates, nas
apreciações, nos confrontos de valores, nos limites dos direitos de cada um. A cidadania
não se confunde somente com a forma de tomada de decisão, com a delegação ou com
os rituais de escolha das representações através do voto, ela é vivida nas ações mais
comuns, ao atravessar uma rua, ao utilizar um equipamento público, ao estabelecer
contato e interação entre cidadãos.
A maneira pela qual se estruturam os espaços públicos, como eles são apropriados,
como são vividos, tudo isso pode corresponder a uma medida objetiva do grau de
democratização social. Há outra vantagem nesse marcador. Ele é capaz de mostrar que
essa democratização não é homogênea, varia de lugar para lugar, de cidade para cidade,
de região para região. Ele pode ser capaz por isso de mostrar como a democratização de
uma sociedade é multiescalar e variada. A observação e análise das dinâmicas
cotidianas nos espaços públicos podem e devem ser consideradas como elementos
centrais da avaliação da vida política de uma dada sociedade.

Do ordinário ao extraordinário
As recentes manifestações que ocorreram em diversos países, inclusive no Brasil,
chamaram a atenção de todos. Muitos se apresentaram imediatamente para explicar o
que estava acontecendo. Alguns viram nelas a falência dos modelos de representação
política, sobretudo aqueles que defendem a bizarra ideia da possibilidade de uma
democracia direta. Outros viram nessa explosão popular o despertar dos movimentos
revolucionários que almejariam derrotar o modelo das democracias ditas liberais.
Outros ainda viram nas manifestações uma demanda generalizada de participação maior
nas decisões.
Nos países em que a participação da população nas decisões políticas era muito restrita,
como na Tunísia ou no Egito, por exemplo, os regimes caíram rapidamente. O poder
estava bem preparado para as ameaças externas, mas teve uma enorme dificuldade em
fazer frente ao movimento que se organizou nas ruas. A praça Tahrir foi o símbolo
dessa mobilização no Egito. Ela, que nem era uma verdadeira praça, se transformou na
metonímia do movimento e do que acontecia em todo o país. O documentário The
Square mostra bem como a ocupação da praça funcionou como uma imagem síntese do
que acontecia, aqueles que a controlavam ou os grupos que a dividiam, se apresentavam
como os líderes. Da mesma forma aqueles não estavam lá ou que dali foram desalojados
eram vistos como os “perdedores”.
Na Tunisia, a avenida Habib Bourguiba, artéria central e desde sempre considerada
como coração político e econômico, cumpriu um papel similar. As manifestações e os
conflitos entre os diferentes grupos que disputavam o controle dos rumos da Revolução

13
de Jasmim se atualizavam sobre esse espaço em face dos cafés, dos cinemas e dos
teatros que nos dias normais atraem também muita atividade pública nessa capital.
Nesses casos, todos estavam unidos em torno da rejeição a um governante ou ao regime
e o consenso naquele momento foi facilmente obtido pela concordância sobre o que
parecia ser o obstáculo absoluto. A complexidade brota logo depois que o objetivo foi
alcançado. Os aliados da véspera podem se transformar nos adversários de hoje e quem
sabe nos coligados de amanhã. Tudo o que parecia simples e consensual, depois da
queda do regime aparece como conflituoso e matéria para longas e difíceis negociações.
A praça e a avenida se desmobilizaram, as discussões ganham novos fóruns, a vida
política não está mais com a imagem concentrada em um só lugar.
Nas democracias mais maduras e flexíveis os impactos foram menores, mas a
insatisfação foi muito bem transmitida aos governantes. Na Espanha o movimento dos
Indignados em 2011 ocupou continuamente durante duas semanas a Puerta Del Sol
apesar das diversas tentativas das forças de ordem para desalojar os manifestantes.
Seguiram-se também ocupações em diversas outras cidades da Espanha e em Portugal.
Em Nova Iorque, o movimento Occupy Wall Street permaneceu acampado no Zuccotti
Park por quase dois meses e gerou inspiração para que diversas outras áreas públicas em
outras cidades americanas e no resto do mundo também fossem ocupadas (CASTELLS,
2010). Mais recentemente, em 2013, a praça Taksin, em Istambul, também foi ocupada
por manifestantes que contestam os planos de reconversão desse espaço verde da capital
proposto pelo polêmico primeiro-ministro. No Brasil, igualmente em 2013 alguns
manifestantes tentaram manter áreas ocupadas, dentre elas uma no Bairro carioca do
Leblon, local de residência do governador do Estado. Esses movimentos de ocupação se
dizem inspirados na primavera árabe e guardam com ela alguns elementos análogos:
uso de mídia digital e das redes sociais para comunicação e criação de fóruns,
preocupação com a criação e veiculação de uma imagem independente dos tradicionais
meios de comunicação, um declarado cuidado para evitar o controle explícito de um
partido ou de uma tendência, a proclamada falta de lideranças e o uso de assembleias
deliberativas que funcionam como formadoras de um consenso, naquilo que vem sendo
definido como democracia participativa direta.
De fato, percebe-se facilmente que cada um vê nesses movimentos aquilo que lhes
interessa. As narrativas sobre o movimento procuram dirigir as significações, mas estas
dependem fundamentalmente do anterior ponto de vista de cada um. A narrativa sobre a
ocupação da praça da Independência em Kiev, o Maïdan, última em data desses
movimentos, pode ser um bom exemplo. Tomamos como base os pontos comuns entre
as entrevistas da professora francesa de Ciência Política, Alexandra Gujol, da
Universidade da Borgonha, especialista da Ucrânia10 e do comentarista, também
especialista em assuntos ucranianos, Michel Eltchaninoff11.
Os dois apresentaram essa ocupação como a fundação de uma nova sociedade. Para eles
a solidariedade é desde então a tônica das interações – “A ajuda mútua é extraordinária.
O auxílio material é farto e espontâneo”. Todos são voluntários para a ajuda, no
abastecimento de água e alimentação, no atendimento médico, no controle das
condições sanitárias, na vigilância. Nessa narrativa se forja a ideia de que há uma nova
ordem moral que surge, cheia de virtudes e de bondade. A praça, lugar desse mundo
novo, é delimitada por nítidas fronteiras O controle das entradas é cuidadosamente

10
A entrevista foi concedida à estação de rádio France Culture, Paris, em 13/03/2014.
11
Esses propósitos fazem parte de uma matéria da revista Philosophie Magazine, de fevereiro de 2014.

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levado em consideração pelos ocupantes, os provocadores, ladrões e bêbados, segundo
esses relatos, são afastados e impedidos de entrar. Tudo é decidido pela vontade
majoritária. Os políticos tradicionais não são bem-vindos pois “o movimento não tem
guias (...) Aqui, a tradição anarquista do pais, do Makhno [1889-1935] é o que está
sendo honrado”. Para a professora, “o Maïdan lembra um acampamento cossaco” com
tudo o que isso pode evocar: rebeldia, valentia, auto-determinação, identidade histórica
etc. Para Eltchaninoff, “reina aqui uma atmosfera de democracia direta e de autogestão”
e mais adiante completa: “Cooperação, dignidade de todas as tarefas, crença em
objetivos coletivos, tudo isso é palpável. O Maïdan é mesmo uma nova agora.”
Evidentemente, nesse relato ficam de fora os paramilitares, a extrema direita, os
ultranacionalistas entre outras sensibilidades que se misturam com os socialistas, os
comunistas, com os favoráveis à aproximação com a Europa, com os anarquistas, com
os cristãos ortodoxos etc. Nenhuma palavra surge sobre os variados conflitos, sobre as
agressões e espancamentos, sobre a homofobia que parecem ter acontecido, mas como
não colaboram no teor da narrativa que nos apresenta apenas “um ambiente de harmonia
e alegria”, deixam de ser lembrados . Decididamente, é necessária uma observação mais
acurada, menos abertamente tendenciosa que procure genuinamente compreender o que
se passa, tente ver e ouvir e não simplesmente mostre o alinhamento ou a discordância
do depoente com o movimento.
Grandes manifestações sempre existiram. Elas passaram a ser vistas como revoltas
urbanas após a sequência de choques entre comunidades étnicas ocorridas em 1992 em
Los Angeles. Desde então muitas outras ocorreram. Um grande impacto, por exemplo,
foi causado pela sequencia de 19 dias de manifestações variadas que tiveram inicio no
subúrbio de Paris de Clichy-Sous-Bois em 2005. Igualmente, a sequência de
manifestações que se iniciou no bairro de Tottenham, no norte de Londres, e se estendeu
para vários outros, inclusive Brixton, ao sul, que nos anos 80 já havia assistido a
grandes mobilizações, também chamou a atenção.
O que talvez exista de novo é que a partir dos anos 2010 alguns desses movimentos
foram se sedentarizando, criando o fenômeno das ocupações de algumas áreas
urbanas12. Outro elemento que parece também inovar é que as manifestações e
ocupações podem acontecer em lugares antes pouco mobilizados por esse tipo de
evento. Esse foi, por exemplo, o caso no Rio de Janeiro, que viu diversos logradouros
sem nenhuma tradição serem ocupados pelos manifestantes. Há nesse sentido talvez
uma nova geografia da política na cidade, novas centralidades e novos sentidos que se
aliam a essas inéditas localizações.
Qualquer que seja a impressão que superficialmente tenhamos é preciso ver e ouvir o
que está acontecendo, reunir dados, observar criteriosamente. É preciso criar meios de
controlar nossos julgamentos de valores construídos a priori. É preciso conceber a
possibilidade de uma narrativa aberta que se estabeleça junto com exame dos elementos
que se apresentam e da maneira como se apresentam, sem censura prévia, sem vetos. A
doutrina que pregava a possibilidade de neutralidade científica foi com justiça
severamente criticada, mas isso não quer dizer que possamos nos oferecer raciocínios
amparados tão somente em nossos anseios e vontades. A neutralidade da ciência não
existe, mas é exatamente a consciência disso que pode nos premunir contra os excessos
de nossas convicções.

12
Nesse sentido, o pioneirismo cabe talvez à ocupação da Praça de Tiananmen, em Beijing, 1989.

15
Por fim, a justificada atração e atenção despertada por esses eventos extraordinários
como grandes manifestações e ocupações do espaço não devem tampouco nos fazer
esquecer que há uma política que se constrói na cotidianidade sobre esses espaços
públicos. Compreendê-la e estudá-la talvez seja um passo importante para reconhecer as
formas pelas quais esses movimentos mais amplos ocorrem, onde ocorrem, como e por
que ocorrem. Isso nos evitaria, por exemplo, de pensar que esses espaços públicos só
são espaços políticos nesses pontuais e extraordinários eventos.

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