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VILLA1

De Guillermo Calderón - Tradução livre de Maria Soledad Más Gandini


13 de dezembro, 2010

Personagens
Carla, 33
Francisca, 33
Macarena, 33

Macarena, Carla e Francisca estão sentadas junto a uma mesa. As três usam o nome Alejandra 2. Votam.
Macarena escreve seu voto com uma caneta Bic e a passa para Carla.

Macarena
Pronto.
Carla
Pronto. Olhem para o outro lado.

Carla escreve. Passa a caneta para Francisca.

Francisca
Obrigada...
Macarena
Sem olhar.
Carla
Não estou olhando.
Francisca
Espere. (Rabisca em círculos.) Não escreve.
Carla
É. Estava meio seca.
Macarena
É.
Francisca
Está seca.

1
NT: Como se trata de referência a um local real, Villa Grimaldi, não cabe tradução do título.
Villa Grimaldi era uma propriedade de 3 acres, localizada na periferia de Santiago, na comuna de Peñalolén. Originalmente um
complexo de luxo usado como ponto de encontro para a elite intelectual do Chile nos séculos XIX e XX, com salas para reuniões,
um teatro e uma escola, entre outros espaços comuns onde eram realizados eventos para artistas e intelectuais chilenos.
Posteriormente tornou-se a prisão secreta mais rígida da ditadura chilena, usada como centro para interrogatórios que
frequentemente envolviam tortura, incluindo choques elétricos, espancamento e abuso sexual. O complexo tinha diversos cômodos
com diferentes tipos de instrumentos de tortura. Estima-se que 4.500 presos foram interrogados em Villa Grimaldi, e pelo menos
226 deles estavam entre os “desaparecidos” durante o governo de Pinochet. 
2
NT: Marcia Alejandra Merino Vega, conhecida por "flaca Alejandra", miltitante e ex-dirigente do MIR (Movimento de Esquerda
Revolucionária), é um dos mitos polêmicos gerados pelo golpe de Estado chileno de 1973. Foi detida, violentamente torturada e
transformou-se numa das mais temidas agentes de repressão da DINA, ligada à denúncia, detenção tortura e desaparecimento de
companheiros. Participou pessoalmente de interrogatórios y sessões de tortura a fim de que delatassem a identidade e o paradeiro
dos militantes clandestinos. Não há nenhum indício direto no texto de que o nome tenha sido escolhido como referência a ela. No
entanto, parece ser uma possibilidade.
Aquece a caneta com as mãos e a testa.

Francisca
Não escreve...
Carla
Deixa ver?

Pega a caneta.

Francisca
Preciso de outra.
Macarena
Espere.

Procura em sua bolsa.


Carla
Você tem que fazer assim.

Carla sopra a caneta. Testa. Não escreve.

Carla
Poxa!
Macarena
Aqui.
Francisca
Agora sim. Pronto.

Pausa. Olham para fora. Voltam a olhar para Francisca.

Francisca
Um momento.

As duas a olhar para fora outra vez.


Carla
Não se decide.
Francisca
Sim. Espere.

Francisca termina de escrever.

Francisca
Pronto.

Passa o voto para Carla. Carla pega os votos e os mistura com as mãos, os abre e os conta.

2
Carla
Pronto. Opção A, um voto. Opção B, um voto. E um nulo.

Se entreolham.

Macarena
Quem votou nulo?
Carla
Espere. Alguém votou nulo.
Francisca
Eu não fui.
Carla
Eu também não. Mas temos que perguntar quem votou nulo.

Pausa.
Macarena
Não. Pronto. (Pausa.) Bom, mas alguém votou nulo.

Pausa.

Francisca
Eu não votei nulo.
Carla
Eu também não.
Macarena
Eu também não.

Pausa.
Macarena
Alguém votou nulo.
Francisca
Bom, alguém está mentindo. Isso é terrível.
Carla
Também não vamos exagerar.
Macarena
Mas assim isto já não serve.
Francisca
Deixa ver?

Pega o voto nulo. Lê.

Francisca
Marichi...véu?
Macarena
Deixa ver?

3
Pega o voto.
Macarena
3
Marichiweu .
Carla
Isso é nulo... porque era opção A ou B.
Macarena
Sim, mas você poderia ter escrito nulo em vez de marichiweu.
Carla
Claro, se eu tivesse votado nulo...mas eu não votei nulo.
Macarena
Então porque escreveu marichiweu?
Carla
Escute...
Francisca
Marichi...véu?
Macarena
Marichi-weu. Marichi-weu.
Francisca
Ah!
Carla
Ganharemos dez vezes.
Francisca
Ah. O que?
Carla
Marichiweu. Cem vezes venceremos.
Francisca
Ah! Que língua é essa?
Carla
4
Mapuche dungun .
Francisca
Ah! Mapuche dungun. Que estranho. (Pausa.) Marichi-véu?
Carla
Não.
Macarena
Marichiweu. Marichiweu. Pronto, mas não importa. Olha. Pronto. Pensa. Olha. Vamos guardar estes votos
e não olhar mais para eles. Não serviram... porque... Melhor votar de novo.
Francisca
Pronto.

As três se preparam para votar.

3
NT: Marichiweu (pronuncia-se maritchiueu) é um grito de guerra ancestral mapuche. Alguns autores traduzem como "cem vezes
venceremos", outros, como “dez vezes venceremos”. É o caso de Calderón. No original, os jogos de palavras são feitos com a
palavra huevo (ovo) – que em Espanhol tem sonoridade semelhante a weu (ueu). Para manter a intencionalidade, fui substituída,
em Português, por véu (sonoridade mais próxima a ueu).
4
NT: A língua mapuche ou mapudungun (literalmente, a fala da terra) é o idioma dos mapuches, povo ameríndio que habita
milenarmente certas regiões do Chile e da Argentina. 
4
Carla
Espere. Melhor não.
Macarena
Por que?
Carla
Não vale a pena porque vai acontecer a mesma coisa.

Francisca
Mas se acabamos de nos conhecer. Como você sabe o que eu penso?

Macarena
Sim.
Carla
Não sei. Acho que faltou debater mais.
Francisca
Debater?
Macarena
É.
Francisca
E, apesar de que eu já tenho certeza.
Macarena
Certeza de que?
Francisca
Certeza de como quero votar. Já votei.
Carla
Bom, eu também.
Macarena
É supergrave do mesmo jeito, porque aqui tem alguém que é uma supermentirosa.

Francisca
Certo, mas não vamos voltar a isso.
Carla
Em todo caso, eu acho que a pessoa que votou nulo (dirigindo-se a Macarena), que poderia ter sido você...
essa pessoa queria votar nulo porque não concordava com nenhuma das opções A ou B.

Macarena
Mas não fui eu.
Francisca
Nem eu.
Carla
Nem eu.
Macarena
Puxa.
Francisca
Então é melhor chegarmos a outro acordo.
5
Carla
Isso. Também acho.
Macarena
O que eu digo é que não...
Carla
Mas por que?

Macarena
Porque, para que votar? Como não vamos chegar a um acordo?

Carla e Francisca
Mas é isso o que estamos dizendo.

Macarena
Por isso eu estou te dizendo. Estou dizendo para conversarmos e chegarmos a um acordo que combine as
duas propostas: A e B. e pronto. As três aprovamos e tudo bem. E não precisamos fazer outra votação.

Macarena
Desculpe (Para Macarena) Alejandra, mas você não pode pretender que todas pensemos a mesma coisa.
Não é um controle mental.
Carla
Que controle mental?
Macarena
(Para Francisca) Mas Alejandra, você acabou de dizer que é melhor chegarmos a um acordo.

Francisca
Eu?
Carla
Você disse a mesma coisa.
Francisca
Sério?
Macarena
Bom, então vamos votar...
Carla
(Para Francisca) Em todo caso, não se trata disso. Alejandra... O que a Alejandra está dizendo é que
podemos negociar entre nós para chegar a um acordo para não ter que votar.

Francisca
Desculpe, Alejandra, mas isto não é um negócio, não tem nada a ver com um negócio.

Macarena
Sim, sim. Óbvio, Alejandra, que não se trata de uma questão de dinheiro, não, nada disso.

Carla
Não negócio... é uma forma de falar de um negócio, de negociação, mas me refiro a outra coisa.

6
Francisca
Sim. Mas é que me irrita que comecemos a falar como se estivéssemos vendendo ovos.
Carla
Não, óbvio. Sim.
Macarena
Sim.
Francisca
Bom. Então eu vou ao banheiro e depois discutimos o assunto...

Sai.

Macarena
Óbvio que foi ela.
Carla
O que?
Macarena
A que votou nulo.
Carla
Por que?
Macarena
Dá para perceber.
Macarena
Todo mundo sabe o que quer dizer Marichiweu.

Carla
Não todo mundo, Alejandra.

Macarena
Então fui eu?
Carla
Não.
Macarena
Mas Alejandra, se você está defendendo a Alejandra e também diz que não foi você, então você está
dizendo que fui eu que votei nulo.
Carla
Não, Alejandra. Eu estou dizendo que não é todo mundo que sabe o que é Marichiweu.
Macarena
Você não sabia?
Carla
Sim, sabia. Fui eu quem disse.
Macarena
Então?
Carla
Bom, nem todo mundo sabe o que é Marichiweu.
Macarena
Mas Alejandra, qualquer pessoa mais ou menos de esquerda sabe o que significa Marichiweu.
7
Carla
Bom, ela não deve ser de esquerda.
Macarena
Bom, não parece de esquerda. Mas parece ter um ar de pioneira.

Carla
Pinta de esquerda?
Macarena
Yes. Instinto.
Carla
Espera aí. Se ela não sabe o que é Marichiweu, como escreveu?

Macarena
Sim. Por isso. Então foi você.
Carla
Não. Espera aí. Não. Mas talvez, se ela escreveu, sabendo o que significa, e depois se fez de boba, como se
não soubesse o que significava?
Macarena
Então é muito mais inteligente do que eu pensava.

Carla
Mas espera. Seria perfeitamente possível que você tivesse escrito Marichweu e agora estivesse me fazendo
de boba.
Macarena
Ou você está tentando me fazer de boba jogando a culpa nela.

Carla
Claro. Pode ser.
Macarena
É isso que dá fazer voto secreto entre três pessoas.
Carla
É.

Entra Francisca.
Francisca
Pronto. Que significava essa coisa em Mapuche que vocês escreveram?

Macarena
Dez vezes venceremos.
Francisca
Ah. Eu me conformo que as mapuche vençam uma vez só.

Carla
Sim.
Macarena
Sim
8
Francisca
O que?
Carla
Nada
Francisca
Vamos votar?
Macarena
Ora, não.
Francisca
Tá. Entendo. Não vamos votar. Vamos debater. Mas que não aconteça de novo o que aconteceu ontem à
noite, né?
Carla
Sim.
Macarena
Sim. (Pausa) O que aconteceu ontem à noite?

Francisca
Não sei. Você não sabe o que aconteceu?
Macarena
Eu?
Francisca
É.
Macarena
Bom, eu sei, sim. (Para Francisca), mas pensei que você não soubesse.

Carla
Eu não sei.
Macarena
Não?
Francisca
Eu também não sei. Escutei alguma coisa, mas não sei de nada.

Carla
Escutei que bateram em alguém.
Macarena
Bom, é.
Carla
Sério?
Francisca
O que aconteceu?
Macarena
Bom. Aconteceu de tudo. Houve gritos. É. E, bom. O que acontece é que na diretoria há
muitos...problemas. E isso não sai daqui. Certo?

Francisca e Carla
Óbvio.
9
Macarena
Vocês devem saber que a vila tem uma diretoria.

Carla
Sim.
Francisca
Não.
Macarena
Bom. Tem uma diretoria eleita pelos sobreviventes.
Francisca
Ah, sei.
Macarena
Sim. Então, o que aconteceu foi que ontem à noite estavam decidindo a mesma coisa que nós. Ou seja,
opção A, reconstruir a vila como era; opção B, fazer um museu... e tudo numa votação aberta.

Francisca
Como?
Carla
Levantando a mão.
Francisca
Ah, que horror.
Macarena
Sim, é. E então eles estavam numa casa e a reunião ficou tão pesada, tão pesada, tão pesada que
começaram a gritar e num momento alguém pirou e atirou um cinzeiro de concha de loco 5 em outra pessoa
da diretoria...
Francisca
Quem atirou?
Macarena
Não vou dar nomes. É. E a pessoa mal se vira e o cinzeiro a atinge na omoplata e volta, cai no chão e quebra
e depois ela cai com a mão assim no chão e corta a artéria aqui e colocam uma toalha nela assim. Mas ela
se recuperou um pouco e deu um pontapé na que jogou o cinzeiro, assim, fá, mas errou a mira e bateu
numa velhinha, assim aqui no queixo e ela estava com a boca aberta e cortou a língua com os dentes e
cuspiu e caiu um filete de sangue no chão. Aí eles disseram, chega, é muito, muito sangue. Como diretoria
chegamos no fundo do poço. É melhor que uma comissão especial decida sim para a opção A ou sim para a
opção B, nós e todos, acatamos o que a comissão especial, nós, decida e pronto. Porque votaram umas oito
vezes e não havia maioria. E de novo e de novo e de novo, eram quatro da manhã e não decidiam se fariam
um museu na vila ou reconstruir a vila. Então eu entendo, foi demais. E ficou gente chorando, como é que é
possível, que toda a questão, era muito, muito deprimente. Porque é gente que, claro, que está sempre
falando em unidade com ideias políticas muito fortes, com muita história. Mas foi muito e eu fiquei mal,
algo entre deprimida e com vontade de dar uma surra em alguém.

Pausa.

Carla
5
NT: Loco é um molusco que vive exclusivamente na costa do Chile muito apreciado na culinária local. Sua concha é grande,
grossa e ovalada, frequentemente usada para fazer objetos de decoração como cinzeiros.
10
Por isso eu acho que é melhor decidir conversando e não votar.

Francisca
E você deu uma surra em alguém?
Macarena
Ainda não.
Francisca
Puxa.
Carla
E por que somos nós a comissão?

Macarena
Não sei, mas é pesado.
Francisca
Muito, muito pesado.
Macarena
Sim.
Carla.
Sim. Que estranho.

Pausa.
Macarena
Então. (Para Francisca) Alejandra, você pode defender a opção B?

Francisca
O museu. Sim. Mas com minhas palavras.

Carla
E eu posso defender a opção A: a reconstrução da vila.

Francisca
Tá. (Para Macarena) E você, Alejandra?
Macarena
Não. Depois da (Para Carla) Alejandra posso moderar a coisa.

Carla
Ah, tá.
Francisca
Bom, então.
Carla
Mas que a gente defenda uma coisa não significa que apoie a opção que está defendendo.

Macarena
Não, claro.

Francisca
11
Não. Mas a gente tem que defender com convicção. Igual.

Macarena
Sim, óbvio.
Francisca
Claro. Mas veja, porque às vezes a gente diz alguma coisa da qual não está convencida e diz assim,
claramente, e a gente se ouve e acaba se convencendo de alguma coisa que não pensava, simplesmente
por ter ouvido tanto. Por exemplo, a gente diz: já não gosto mais de você, já não gosto mais de você, já não
gosto mais de você e pronto, um dia a gente não gosta mais dele, mesmo que no fundo ainda goste. E
depois as facadas, ah, ah, facada, ah. Eu gostava dele, eu gostava dele, eu gostava dele, mas por que me
convenci de que não gostava? Porque me ouvi tanto dizer que não gostava dele quando estava enfurecida.
E agora ele foi embora. Foi embora porque diz que eu não gostava dele, mas gostava e agora ele se foi.
Para San Pedro de Atacama. E anda com uma gringa que diz que gosta dele.

Carla
Sim.

Pausa.
Macarena
Mas isso é privado.
Francisca
Pessoal.
Macarena
Ah.
Carla
Sim. Nunca aconteceu comigo.
Francisca.
Sim. Claro. Comigo também não.

Pausa.

Macarena
Vai.
Carla
Pronto. Opção A. Vou me endireitar. Pronto. Bom. Eu vou defender a reconstrução. Que se reconstrua a
casa que demoliram onde faziam tudo o que fizeram. Olha. É muito simples. Todo mundo sabe que num
momento eles...
Macarena
Eles quem?
Carla
Os guardas da vila. Já chega. Num momento os guardas falaram chega. Já matamos muitos. Me sinto com
vontade de sétimo dia. Além disso me sinto como, como um marquês sádico. Não sei, acontece alguma
coisa comigo. Quero voltar a sentir amor quando faço amor. Já não quero sexo com desconhecidos. Quero
romance. E então disseram chega. Agora vamos fechar o quartel e vamos embora assoviando. Mas não,
meu coronel. Se deixamos a vila trancada a chave ou coberta com galhos, podem encontrá-la de qualquer
modo. Podem nos pegar. Depois podem vir uns suecos ou uns holandeses e dizer: escute aqui, olhe esta
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casa. Parece que esta é a casa vermelha. Parece que este é o Quartel Terranova 6. Parece que esta é a vila
secreta. E vão entrar. E vão chegar com uma lupa e dizer: olha, um cabelo. Olha, uma gota de sangue. Puxa.
Olha. Um silêncio silencioso. Aqui tem que ter acontecido tudo o que aconteceu. Deixa ver? Puxa. Olha,
Ralph. Que foi, Mieke? Esta coisa tem eletricidade. Pronto. Já está claro para mim. E tudo isso em francês.
Pronto. Já está claro para mim que este lugar é o lugar do crime. Este é o cemitério índio. Este é o centro da
injustiça. Esta é a vila miséria 7. Então, meu coronel, eles vão ligar para Nova Iorque e vão dizer: pronto. Alô?
Parece que pegamos o buraco negro. E aí o mundo todo vai saber que o Leão é um sanguinário.

Francisca
Quem?
Carla
O Leão. E se isso acontecer meu general vai ficar sabendo de que todo mundo já sabe e vai ficar com
vergonha. E vai se sentir um pouco incompreendido. Por isso, meu coronel. Para evitar essa dor de cabeça
o melhor é não deixar pistas nem para os suecos, nem para os holandeses. Tenho uma ideia, capitão.
Poderíamos queimar esta casa. Não, meu coronel, melhor demolir. Melhor deixar tudo no chão. E os
escombros? Poderíamos jogar no mar. Boa ideia. E então, fecharam e queimaram e demoliram. E jogaram
ao mar. Porque queriam um crime perfeito. Mas bom. O que aconteceu? O tempo passou. E um dia, anos
depois, vamos andando por fora e dizemos.
Francisca
Dizemos quem?
Carla
Nós. E puxa. Olha. Sobe no tamborim. Olha. Sim. Tem que ter sido aqui. Sim. Sim. Parece que foi aqui onde
eu disse, melhor matem-me. Por que não me matam de uma vez? Sim. E nos aproximamos de uma
moradora vizinha: senhora, desculpe, a senhora se lembra se tinha um zoológico aqui? ... como que
tentando jogar verde. E a senhora diz, não senhoritas. Zoológico não. Aqui houve um centro de violação e
extermínio ultra secreto chamado Quartel Terranova, um forno de puro mistério, um campo de pura
maldade. Puxa. A senhora estava super informada. Acontece que tinha sido Lautara 8.
Macarena
Lautara?
Carla
Sim. É. Obrigada, senhora. Muito obrigada.
Francisca
E por que mão avisou antes?
Carla
Não sei. Mas, fazer o quê? E depois de uma ligação telefônica: alô, padre, alô, meninas. Encontramos a vila,
avisem os suecos e os holandeses. E enquanto os outros chegam, olhamos por cima da muralha e não tem

6
NT: Quartel Terranova era o nome dado a Villa Grimaldi pela DINA (Direção Nacional de Inteligência), a polícia secreta da
ditadura chilena.
7
NT: Vila miséria é o termo usado em diversos países da América do Sul para referir-se às favelas.
8
NT: Não foi encontrada referência direta a Lautara, mas a Brigada Lautaro foi um dos grupos operativos de extermínio
pertencente à DINA, dedicado a assassinar prisioneiros, notadamente lideranças comunistas.
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nada. Tem uma espécie de demolição. A torre 9 não está. As casas Corvi não estão. O casarão não está. Não
há absolutamente nada.
Francisca
Nada.
Macarena
Nada.
Carla
Nada. Partiram com tudo. É como um crime perfeito. Então o tempo passa, é, e vai cair e vai cair, toda a
questão. E um dia, tem um pouco de democracia e a gente sente que a vila não escandaliza tanto como nós
pensávamos que iria escandalizar. E alguém diz: meninas, isto não pode ser um crime perfeito, isto tem que
ser conhecido com escândalo. E se reconstruirmos? Boa ideia. Se eu tivesse dinheiro reconstruiria a coisa.
Para que os suecos e holandeses saibam e digam: a-ha. Era isso. Estava aqui. Se eu tivesse dinheiro
reconstruiria tudo, até o detalhe irrelevante. Não apenas tudo o que é a realidade arquitetônica do que foi
o casarão, mas também a piscina de água, as árvores da terra, o jardim das rosas, o silêncio, o cheirinho
terrível, o grito, as correntes, os motores na noite, tudo o que é a ambientação artística. E criaria um antigo
falso. Pintaria as paredes com água com terra, outra paleta de cores ao fundo. Tons sépia. E compraria
parafernália. Compraria uma cama metálica, compraria cabos elétricos e tomadas, compraria uniformes,
compraria roupa com gola, compraria cheiro de cocô. Para criar uma espécie de Disneylândia de realidade
realista. Para que as pessoas sentissem isso que as pessoas que sentiram devem ter sentido. E o público se
sentiria como os presos. Faria que esperassem, pediria seus nomes, separaria as mulheres das mulheres.
Enfim, faria com que sofressem. E conseguiria alguns sobreviventes da vila original para que fossem como
guias do inferno. Uns Virgílios. E pediria aos guias que fizessem uma pausa nos lugares onde estiveram
trancados ou nos lugares onde mais gritaram. Como se não pudessem prosseguir e segurassem um soluço.
E que dissessem devagarinho: aqui foi a última vez que vi a mulher. Essa mulher me disse: se você sair vivo,
diga à minha mãe que os peixinhos alaranjados da piscina têm gosto de banana.

Macarena
Que mulher?
Carla
Sua namorada. E essa mulher também me disse: reconstruam o partido e matem todos os milicos...E eu
respondi. Si. Prometo. E aí o guia poderia fazer outra pausa e dizer. Mas só...

Macarena
Dizer para quem?
Carla
Dizer ao público. Mas só consegui cumprir metade da minha promessa... mas algum dia vou cumpri-la por
inteiro. Referindo-se à metade de matar todos os milicos. E aí alguns podem rir. Porque é uma ironia.
Porque não vai fazer isso. E isso pode fazer rir. Um pouco. E esse riso, no fundo, cumpre a função de dividir
9
NT: O complexo de Villa Grimaldi era organizado em diferentes edificações: O casarão, onde os prisioneiros eram horrivelmente
torturados com métodos bastante diversos - em muitos casos até a morte. La Torre: que havia funcionado originalmente como o
reservatório de água da vila, um prédio de três andares, posteriormente divididos em dez cubículos de madeira de 70 x 70 cm e 2
metros de altura, com uma pequena porta por onde era necessário entrar de joelhos. Cada cela mantinha até quatro prisioneiros em
regime de prisão permanente. La Torre também tinha uma sala de tortura. Aparentemente, as pessoas levadas para lá eram
detentos de certa relevância que tinham terminado a sua fase de intenso interrogatório. Muitos daqueles que permaneceram em La
Torre nunca mais foram vistos. Casas Corvi: pequenos quartos de madeira construídos no interior de uma sala maior e que
aparentemente era o lugar onde permaneciam os detentos que estavam sendo submetidos ao regime mais intenso interrogatórios e
torturas.

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o público. Porque de um lado estão as pessoas que dizem: concordo com você, eu também mataria todos
os milicos. E do outro lado estão as pessoas que se ofendem com as risadas. As que não concordam. As que
dirão: claro, esta pessoa está ferida e tem direito de fantasiar com matar. Mas eu não concordo. Essas
pessoas. Bom. Pronto. Dá para entender. Público dividido. Mas mesmo assim continuamos avançando com
o guia. Escorregando pelo tobogã da emoção da vila reconstruída. Aqui você chora. Passa por aqui. Aqui te
dá raiva. Aqui você se indigna. Aqui você aperta a mão do namorado. Aqui você sente um frio no meio das
pernas. Aqui você diz: dezoito anos? Pela boca? Não posso acreditar. E essas pessoas depois vão dizer. Oi.
Fui à vila. Você tem que ir. Foi reconstruída. Parece um pouco falsa. Parece um set de televisão. Pintaram
as muralhas com água e terra. É impactante. Você tem que ir. Tem que ir. Não, em Peñalolen. Sim, de
graça. E reconstruíram toda a vila como era. E é muito impactante. Impacta porque está igualzinha. É.
Penduravam elas pelos cabelos. Fizeram com que traíssem umas às outras. Ir à vila reconstruída é o melhor
que me aconteceu na vida.

Macarena
Excelente.
Francisca
Muito excelente.

Pausa. LER ATÉ AQUI

Macarena
Tá. Tá. Tá. Vamos com você, Alejandra?
Carla.
Tá mas não venham comigo porque vou um pouco ao banheiro.

Sai.
Francisca
A Alejandra...
Macarena
Sim.
Francisca
Sim.
Macarena
Sim, o quê?
Francisca
Não sei.
Macarena
O que?
Francisca
Não sei. Você que disse.
Macarena
O que é que eu disse?
Francisca
O que?
Macarena
Sim.
15
Francisca
Ah. Percebe?
Macarena
O que?
Francisca
Não?
Macarena
O que?
Francisca
Não?
Macarena
Você não reparou?

Francisca
Não. E você?
Macarena
Sim.
Francisca
Sim?
Macarena
Sim. A cara.
Francisca
Que cara?
Macarena
A cara que fez quando você disse que já ficaria feliz se as mapuche ganhassem uma vez.

Francisca
Eu disse isso?
Macarena
Sim.
Francisca
Quando?

Macarena
Antes.
Francisca
Ah, quando eu trouxe a cadeira e sentei aqui?

Macarena
Sim.
Francisca
Sim.
Macarena
Não reparou?
Francisca
Em que?
16
Macarena
Na cara que ela fez.
Francisca
Não. Que cara ela fez?
Macarena
(Faz a cara.)
Francisca
Você pode fazer para este lado?

Macarena movimenta o rosto.

Francisca
Essa cara?
Macarena
Sim. Como dizendo, é...não é que a Alejandra não sabia o que era marichiweu?

Francisca
Ah.
Macarena
Sim.
Francisca
Significa dez vezes venceremos.

Macarena
Você sabia?
Francisca
Não. Eu não sei nenhuma palavra mapuche.

Macarena
Não?
Francisca
Não.
Macarena
Ah. Mas todo mundo que é de esquerda sabe isso.

Francisca
Ah, é?
Macarena
É.

Francisca
Eu não anulei o voto, Alejandra.
Macarena
Não?

Entra Carla.
17
Carla
Pronto.
Macarena.
Pronto.
Francisca
Pronto. Agora eu?
Macarena
Sim.
Francisca
aquiTá. Bom. Então, opção B. Tá. Eu vou defender o museu. Olha, é muito simples. Eu acho que tem que ser
feito um novo museu. E enorme. E eu sei que muita gente pode dizer: escuta, a vila já é um museu sem
teto. Sim. Mas um museu é outra coisa: um museu é uma grande caixa branca. Bom. Exato. O museu tem
que ser branco. Porque vai estar na pré-cordilheira dos Andes e tem que ser como a neve. Ou seja, branco.
E tem que ser bonito. E por que bonito? Sei que é uma coisa complicada. Bom. Eu digo que não podemos
estar tristes e feios a vida toda. Não. Não podemos ser natureza morta. Temos que trocar de pele. Temos
que colocar os cachinhos ao sol. Precisamos voltar de cara limpa e calças novas. E essa ressurreição
perfeitamente pode ser um museu da lembrança dolorosa, mas bela. E alguém tem que ir passando e dizer:
olha. Aqui havia uma mansão sinistra e agora... agora tem um museu de arte contemporânea. É
ultramoderno. Me interessa. Vamos entrar? Isso. Olha. Olha. Tem coisas deprimentes.... mas o deprimente
também é da arte contemporânea. Olha. É belo. E tem aquecimento central. Não tem um aquecedor a
parafina. Posso tirar meu colete artesanal. E tem quatro andares. Com amplas janelas. E tem grama no
telhado. É super sustentável. E branco. Hospital novo? Não. Não, senhorita. É o museu da vila.

Carla
Quem disse isso?
Francisca
A senhora na porta. É. E o que mais tem dentro? Continue andando. Dentro está a morte e a vida. Por isso
digo: um hospital. Bom, senhorita. Parece um hospital, mas é um museu. Entre. Obrigada. E por que tão
branco? Bom, para fugir um pouco da estética da dor. Bom, para mim o branco é terrivelmente doloroso.
Ah, bom, senhorita, isso é particular. Pessoal. Então você entra e tem um salão branco com uma bandeja
rubro-negra que diz: os que morreram aqui eram marxistas. Pronto. Impactante. Me interessa. E isso te dá
uma ideia do que vem pela frente. Porque, claro, você está num museu que por fora é branco, assim com
espelhos, como concurso internacional de arquitetura, que no fundo, é a estática do capitalismo
contemporâneo. E a gente diz: isto é super contraditório. Me interessa. É. E então você entra no museu
querendo saber quem eram esses marxistas que morreram. Então te colocam numa sala com mesas cheias
de computadores Mac. Com uma música, assim. E a gente pode entrar nos computadores e ver listas de
todas as pessoas que passaram e morreram na vila. E a gente pode fazer clic no nome e aparece tudo sobre
a pessoa. Fotos de criança, a família, com quem namorava, se gostava do cochayuyo 10, se voltava comendo
o pão quando mandavam buscar pão, tudo isso. E se a gente faz um duplo clic em VILA, clic, clic, aparece
descrito, é tudo o que realmente aconteceu na vila. Clic. Quem abraçou. Clic. Com quem falou. Clic. A quem
ajudou. Se gostava de cantar, se cantava ou se não cantou. É. E a gente vê isso e depois dá outro duplo clic:
clic, clic, em um ícone que diz O QUE ACONTECEU? E aparece um vídeo do testemunho da família contando
tudo. Clic, clic. Quando foi presa. Clic, clic. Como bateram nela. Clic, clic. Se foi encontrada embrulhada em
papel de jornal ou se não foi encontrada. E se foi morta, como morreu. Clic, clic. Como ficaram sabendo.

10
NT: Nome popular de origem quetchua de uma alga comestível que habita a região costeira do Chile.
18
Clic, clic. Como choraram. Clic, clic. Como ficaram tristes para sempre. E se saiu viva, contam se ficou
estéril, se virou alcoólatra ou se agora tem filhos maravilhosos. E pronto. E se a gente faz clic, menu, baixar,
duplo clic: Clic, clic num ícone que diz: O CAMINHO NÃO PERCORRIDO, aparece o que a sua família e os
seus amigos pensam que teria acontecido com ela se não tivesse acontecido nada. Se nunca tivesse estado
na vila. Então aí a gente vê, claro, com multimídia, que este senhor teria sido ciclista. Ou maratonista. Clic,
clic. Olha. Esta menina teria sido concertista. E teria tido duas filhas violinistas. E teria feito tranças nelas.
Clic, clic. Olha: este outro senhor teria sido frágil como uma pipa. Clic, clic. Olha, esta menina teria sido boa
para jogar raquete em El Quisco 11. Clic. É. Ou seja, todos os sonhos, as possibilidades. O caminho não
percorrido. É. Então a ideia é que as pessoas vejam isso e entendam que isso não pode ser. Que é uma
imaginação. Que isso nunca aconteceu. Então a gente fica bem deprimida e desliga o Mac. Clac. E anda,
sobe, segundo andar... Outra sala onde não há nada além de uma tela que diz: pão, trabalho, justiça,
liberdade. É. Me interessa. Terceiro andar. Uma sala cheia de fotos. Muitas fotos. Fotos, fotos, fotos.
Muitos rostos. Que cabeleira farta. Que felicidade farta. O que aconteceu com todo esse cabelo? O vento
levou. Foi o que o vento levou. E mais fotos. Fotos, fotos, fotos. Fotos de graduação. Foto de festa. Foto
3x4. Foto na praia com amigas. Foto não olhem para mim. Foto não gosto das fotos porque fico feia. Foto
com lenço na cabeça. Foto com roupa que alguma vez teve cheirinho. Foto com penteado para o lado.
Vestido emprestado. Juventude colérica. Pronto. Clic. Flash. Pronto. Ficou bonita. Esta foto é para você não
esquecer de mim. Mas não sabiam. Os detentos. Não sabiam que um dia iam passar pela vila da morte. E
que essas fotos iam acabar virando fotos de museu. E que essas fotos felizes agora são super deprimentes.
Fico feliz porque um dia você viveu. Mas, puxa. Ficou suspensa tão jovem. Parou de crescer. Tinha um belo
cabelo. E depois, quarto andar. Você entra numa sala que tem um cercado. Estranho. E dentro do cercado
tem um cão. Um cão. Um pastor alemão. E você diz: um cachorro? Ah. Por que os guardas eram uns
cachorros? Talvez. Me interessa. E o cachorro ali. Um pouco simpático. Andando. Sem entender com sua
mente de cão que é parte de uma instalação de arte contemporânea. É. E tomara que tivesse protesto de
protetores dos animais. Libertem o pastor. Libertem o pastor. O animal não tem culpa. E onde estão vocês
quando se mantêm presos os presos humanos? Claro, eles querem proteger o cão porque o cão é um cão
desideologizado. Mas se o cão dissesse: o marxismo leninismo é a pedra angular da filosofia que viviam
Lenin, Engels e Carlos Marx, garanto a você, garanto, que metade dos manifestantes diria, bom, o cão fez
uma escolha, não tenho porque ficar defendendo cachorros antissistema. Esse cachorro parece um pastor
alemão, mas certamente é um cachorro pastor operário alemão, desses cachorros operários que exigiam
ser enterrados com um manifesto comunista no peito. Esses cachorros. Já não me importa que sejam
mortos. Mas, claro. Nós nunca abusaríamos do cão pastor. Para nada. Teríamos uma criação de vários cães
no pátio atrás do museu branco e colocaríamos um por vez na instalação, só um par de horas por dia, com
um sistema de turnos e comida de pessoa humana. Os cães sofreriam menos que o cão policial, esses que
são obrigados a ficar viciados em cocaína e depois não recebem mais. É. Bom. Mas por que um cão? Ah.
Puxa. Ah. Bom. Porque elas eram violadas com cães. Sim. Com cães. E isso diz tudo. Sim. E aí termina. Então
... uma diz: o que este museu tentou me dizer? Ah. Me disse que nós não nos iludimos. Estamos acordadas
para a dor. Este é o mundo em que vivemos e não vamos negá-lo. Vamos habitá-lo. Aqui vamos construir
nossa minoria e vamos construí-la com uma dignidade branca. E essa dignidade será bela. Fui ao museu da
vila. Você tem que ir. É lindo. Está cheio de arte contemporânea. Mas é uma experiência contraditória.
Mãe, elas eram violadas com cães. Sim. Sim, sei. E tem um cão. Sério. Claro que eu chorei. Sim. E numa
parte tinha uns Macs pro e a gente fazia clic, clic, clic, clic botão da direita, menu, clic e aparecia o que as
pessoas imaginavam que poderiam ter sido se a vila nunca tivesse sido. O caminho não percorrido. E foi

11
NT: Balneário do litoral central do Chile que pertence ao Litoral das Artes e dos Poetas.
19
pesado. E não sei por que fiquei com vontade de ser marxista. E estou com raiva, mamãe. Me sinto culpada
por viver. É estranho. Me sinto materialista e dialética. Mas é bonito. Vá. Tem aquecimento central.

Macarena
Isso. Muito bem.
Carla
Excelente.
Francisca
(Para Carla) Sério, Alejandra?
Carla
Sim.
Francisca
Obrigada. E é estranho, porque não acredito em quase nada do que eu disse.

Macarena
Sério?
Francisca
Sim.

Pausa.
Carla
Bom. Excelente.
Macarena
Sim. Muito bom.
Carla
Bom, eu acho que o melhor é que...
Macarena
Espere, Alejandra. Eu vou moderar a coisa. Vai em frente.

Carla
Bom, o melhor talvez seja fazer uma combinação. Fazer um museu grande...

Francisca
E branco.
Carla
Sim. E dentro colocar a mansão sinistra.
Macarena
É. E por que é chamada a mansão sinistra?
Carla
Porque é como uma casa assombrada, a gente vai andando por um corredor tenebroso e fazem buh.

Macarena
Ah.
Francisca
Por Fantasialândia.
Macarena
20
Ah. Óbvio.
Carla
Sim.

Macarena
Bom. Não.
Carla
Como não?
Macarena
É que eu acho que ou se faz uma coisa ou outra porque uma mistura dessas acaba não sendo nem um
museu ultramoderno nem a mansão sinistra.

Francisca
Totalmente.
Carla
Sério.
Macarena
Sim.
Carla
Ah.
Francisca
(Para Macarena) Bom então vamos votar.
Carla
Mas não, Alejandra, dissemos que teríamos chegar a um acordo.

Francisca
Não, porque eu claramente estou a favor da mansão sinistra opção A. (Para Carla) você pela mistura entre
A e B e a (Para Macarena) Alejandra por marichiweu.

Macarena
Eu não anulei meu voto.
Francisca
Sim. Claro.
Macarena
Ah.
Francisca
Vamos votar.
Carla
E por que agora você gosta da mansão sinistra?

Francisca
Bom, porque não gosto do conceito do museu.
Macarena
Mas eu gosto um pouco do conceito do museu.
Carla
Nossa!
21
Francisca
Mas por que? Você não gostava de marichiweu?

Macarena
Não. A mansão sinistra. Desculpa. Mas olha. Desculpa a mudança, mas eu sou assim. Agora gosto do
museu. E porque eu não me importo que seja um museu bonito e tal. O que eu gosto é que você pode por
coisas dentro dele, sejam históricas, dados, os computadores Mac e é... e coisas, é diretamente como arte.
Porque a arte artística é o que, afinal, dá sentido à coisa...

Carla
A que?
Macarena
Ao que aconteceu na vila. Ao que aconteceu.
Carla
Ah.
Macarena
Sim, porque isso é tão grande que não se pode entender, não há justiça, né. Então a arte faz o que a arte
faz e...é. Mas se vocês me entendem, não me façam explicar isso...

Francisca
E que não se entende o que a arte faz.
Carla
Arte como a instalação do pastor alemão?
Macarena
Isso é arte. Sim. Mas não. Porque a coisa do cachorro me parece exagerada.

Francisca
Por que?

Carla
Por que você acha exagerada?
Macarena
Porque é muito óbvio...como você vai ter um cachorro ali no museu?

Francisca
Mas eu gosto da coisa do cachorro.
Macarena
Bom, porque foi ideia sua.
Francisca
Claro.
Macarena
Mas você sabe o que acontece com a coisa do cachorro. Acontece que é muito sofrido colocar um cachorro
ali. Porque é verdade. Porque foi verdade. E há que se respeitar as pessoas que passaram pela vila e o que
elas verão lá... e não, é muito.

22
Carla
Mas se o que aconteceu na vila já é muito. Por que você quer como que suavizar as coisas e tirar o
cachorro?
Macarena
Porque é muito óbvio. É muito impactante.
Carla
Bom, então que seja impactante, a vida é impactante. O que você quer é embelezar a vida.

Macarena
Embelezar?
Francisca
Tornar mais bonita.
Macarena
Ah. É que você não pode colocar o público que vai na vila na mesma situação em que estiveram os
detentos, porque, em primeiro lugar, é impossível e em segundo lugar, porque coloca você como parte do
museu, como vila, nós, na posição de infringir violência e isso já é terrível, que invertam as coisas e a gente
termine como que se vingando com as pessoas que vão ver o museu...

Carla
Mas não se trata disso, se trata de que se você vai ver a história da vila, vai ser algo terrível. Então não pode
esperar que seja algo bonito e belo e artístico. Tem que ser forte e doloroso. E se você tem que colocar um
pastor alemão, coloca.
Francisca
Pastor alemão.
Macarena
É que você não pode, como museu, não propor nada e ficar só dor, dependurado na cruz como se fosse o
Yeshua12 da Judeia.
Carla
Mas como é que eu não vou propor nada?
Macarena
O que?
Carla
É, então.

Pausa.
Macarena
Ai, me confundi.
Carla
Que eu não propunha nada.
Macarena
Por que eu disse isso?
Carla
Caramba.
Macarena

12
NT: O nome hebraico Yeshua é considerado por alguns estudiosos o nome original de Jesus.
23
Ah. Porque… ah, porque isso não propõe nada... olha, não sei o que foi que eu disse...

Francisca
Não, espera. Você disse que colocar só a mansão sinistra é como não acrescentar nada porque é pura dor e
não propõe nada.
Macarena
É. Isso... e não propõe nada porque...
Carla
Mas o que eu propus foi uma combinação de mansão sinistra e museu.

Macarena
Como?
Francisca
Espera. Espera, (Para Macarena) Alejandra. Olha. Dá na mesma fazer um museu artístico combinado ou não
combinado com mansão sinistra, é querer embelezar as coisas. É colocar uma coisa ali como para ah, que
bonito o museu, que artístico, que bonito o nu, que bonito, o rito. Fui à vila, que bonita, ai, que bonita, saí
me sentindo melhor, saí como se tivesse ido a um parque da paz. Bom, não. Eu acredito, e nisso concordo
com a (Para Carla) Alejandra, que a gente tem que ir à vila e voltar, nossa, fiquei mal, é terrível, mamãe,
quero morrer, mamãe... mamãe, não quero ir nunca mais. Clac.

Carla
Exato. E além da arte, a arte, se você coloca arte vai cair em duas coisas. Ou, num extremo, coloca alguém
na parilla13...
Francisca
Mas você acabou de dizer que quer mansão sinistra e museu.

Carla
Sim, eu sei.
Macarena
Caramba.
Francisca
Então defina sua proposta.
Carla
Espera.
Macarena
(Para Carla) Alejandra, se você quer por algo terrível, então coloca alguém na parilla elétrica falsa para que,
aí sim, todo mundo saia aterrorizado.
Francisca
Tá bom, vamos colocar alguém.

13
NT: Numa tradução literal parrilla é sinônimo de grelha. Também foi o nome dado à forma mais comum de tortura realizada em
Villa Grimaldi. Consistia no uso de uma cama de campanha metálica sobre a qual o detento era amarrado nu para receber
descargas elétricas em diferentes partes do corpo, especialmente as mais sensíveis como lábios ou genitais ou mesmo feridas e
próteses metálicas. Uma modalidade particularmente cruel deste método consistia no uso de um beliche metálico , como modo de
pressão e enfraquecimento psicológico, colocando o interrogado na parte inferior e, na superior, se torturava um familiar ou amigo.
Mantido como no original.
24
Macarena
Não.

Carla
Então, não.
Macarena
Como não? Não tínhamos concordado?
Carla
Nisso não, porque você não pode colocar alguém na parilla falsa...

Francisca
Eu não.
Macarena
Não.
Carla
Não, mesmo. Você não pode colocar alguém na parilla falsa por que não pode, porque é tão terrível que a
gente não pode, porque sempre vai parecer falso. Não vai ficar nem parecido com o que realmente era
estar na parilla. Então, se você faz isso e não fica tão terrível como foi, então isso embeleza a experiência e
nunca atinge o nível da coisa.
Francisca
Bom, então a gente não faz nada.
Macarena
Exato.

Pausa.

Carla
Podemos fazer a coisa do cachorro.

Macarena
Mas isso continua sendo uma instalação artística, Alejandra.

Carla
Não é, não.
Macarena
Sim.
Francisca
(Para Carla) Espera. Mas você ia dizer outra coisa, Alejandra.

Carla
O que?
Francisca
Que se você coloca arte, vai cair em duas situações.

Carla
Não lembro.
25
Francisca
Eram duas coisas.

Carla
Ah, sim. Lembrei (Para Francisca) A mesma coisa que você disse. A arte permite que você coloque num
extremo, isso, alguém na parilla, o cachorro... terrível. E no outro extremo você pode colocar uma obra de
arte, uma coisa bonita. E puxa, triunfou a beleza, triunfou o espírito humano, triunfou a paz... quando na
realidade, a verdade e que aqui não há salvação nem nada, aqui a gente morre violentada e coberta com
cocô de cachorro.
Macarena
Tá. O cachorro é suficiente.
Francisca
Desculpe, eu nunca achei que a coisa do cachorro fosse ser tão importante.

Macarena
Sim. É, mas então o museu não.
Carla
Não.
Francisca
Não acredito.
Macarena
Então vamos na opção mansão sinistra?
Francisca
Não. Eu não.
Macarena
Ah.
Carla
Por que?
Francisca
Porque é super falso.
Macarena
Mas você falou que gostava da mansão sinistra...
Francisca
Eu disse isso?
Macarena
Sim.
Francisca
Não. A (Para Carla) Alejandra propôs a mansão sinistra e agora diz que é falso.

Carla
Sim, sei. É falso. Mas e se for bem reconstruída, com todos os detalhes?

Francisca
O que?
Macarena
A mansão sinistra.
26
Carla
Se for bem reconstruída?

Francisca
Não. Não porque quanto mais parecida for ao original ela ficar, mais falsa vai parecer. É o que você disse
antes de se contradizer, (Para Carla) Alejandra. Porque as pessoas dirão, ah, que mansão mais sinistra, deve
ter sido assim. Mas foi muito pior. Teríamos que colocar, sei lá, milicos de verdade...

Carla
Mas isso é impossível.
Francisca
Por isso. Então melhor não fazer nada.
Macarena
O que a gente imagina é sempre mais forte.
Carla
Sim.
Francisca
Não.
Carla
Não?
Francisca
Claro que não, porque se você lê os testemunhos, seja o Relatório Valech 14 e tudo isso, você sente alguma
coisa. Você sente raiva. Mas essa raiva não parece nem um pouco com a experiência real. Então, por isso,
repito que em vez de fazer algo falso, melhor não fazer nada.

Macarena
Mas se a mansão sinistra é impossível e se vocês não gostam do museu, então o que fazer?

Pausa.
Macarena
O que?
Carla
Eu gosto um pouco das duas.
Francisca
Eu também fiquei com a contradição.
Carla
Sim.
Macarena
Sim.
Francisca
Vamos votar?
Carla
14
NT: Informe Valech é um relatório elaborado em 2011 pela Comissão para a Qualificação de Detentos Desaparecidos,
Executados Políticos e Vítimas de Prisão Política e Tortura que elencou 30 casos de presos desaparecidas e executados políticos e
9795 pessoas que sofreram prisão política e tortura.
27
Não.

Macarena
Não. Olha. Tudo outra vez. Vamos pensar em outro museu...
Carla
Museu não.
Macarena
Mas por que?
Francisca
Mas se acabamos de dizer que museu não.
Macarena
O que?
Carla
Pois é.
Francisca
Além disso, para que outro museu?
Macarena
Como outro museu?
Francisca
Mas se já tem outro museu.
Macarena
Onde?
Francisca
15
Em Matucana .
Macarena
Qual?
Francisca
O Museu da Memória.

Macarena
Ah.
Francisca
É como a opção B, (Para Macarena) Alejandra. É um museu. É super bonito, branco, tem arte, tem
testemunhos, não tem cachorro, dá para levar crianças de todas as idades.

Carla
Sim, mas isso é um Museu da Memória. Foi feito para dar a todo esse assunto um peso histórico.

Francisca

15
NT: Nome da avenida onde se localiza o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Santiago, dedicado a homenagear
as vítimas de violações de Direitos Humanos durante a ditadura militar.
28
Não, (Para Carla) Alejandra. Esse museu é como uma visão assim super concetracionista 16 da história e faz
da Quinta Normal17 um ponto final. Como a coisa já aconteceu, como as feridas já estão cicatrizando,
como estamos tão unidos como país que já podemos gastar dinheiro num museu da memória que parece
museu de arte contemporânea.
Macarena
Pode ser, mas é uma visão muito, muito, muito, muito, muito respeitável. E é um grande esforço para que
todo o país veja que o assunto é reconhecido e se coloca em primeiro plano.

Francisca
Não, Alejandra. Essa é uma visão muito particular da presidenta que...
Carla
Ah, não. Não.
Francisca
O que?
Macarena
Não. Deixa ver, para. Não.

Carla
Não. Não mexa com a minha presidenta, merda.

Macarena
Não mexa com a presidenta dela, merda.
Francisca
Eu mexo com o que eu quiser, sua presidenta é patrimônio nacional...

Carla
Não. Mais respeito.
Macarena
Sim. Mais respeito.
Francisca
Depois conversamos sobre a presidenta.
Carla
Sim.
Macarena
(Para Carla) Alejandra, deixa esse troço aí. Isso. Senta. Bom. Isso.

Carla se senta.

Macarena

16
NT: Refere-se à Concertación de Partidos por la Democracia, uma coalizão de partidos políticos de esquerda, centro-esquerda e
centro que governou o Chile de 1990 a 2010, e aglutinou os principais setores de oposição ao governo militar de Pinochet e
recentemente ao governo de centrodireita de Sebastián Piñera.
17
NT: Parque Quinta Normal é o primeiro parque urbano público do Chile. Uma extensa área verde de Santiago, ponto de lazer
para as famílias de melhor condição social. Além da beleza natural, abriga os Museus Ferroviário, de História Natural, de Arte
Contemporânea e de Ciência e Tecnologia.
29
Pronto. (Para Francisca) mas olha. Esse Museu da Memória, podemos fazer muitas críticas a ele, mas é um
museu que...
Carla
Tem muita gente que processa o que aconteceu de formas diferentes.

Francisca
Mas esse museu é um ponto final. Porque cria a impressão de que o que aconteceu, já foi, já foi, já foi. A
verdade é que não passou, não passou, não passou, não passou. E aqui não aconteceu nada. Eu prefiro que
não tenha museu. Prefiro que não passe, que não passe, que não passe. Prefiro continuar à margem e
amargurada. Agora. Os outros dizem taí seu museu, comunistas de merda. Não queriam gastar dinheiro?
Taí seu caixote branco. Mas não se esqueçam de contar direito a história. Se houve uma vila é porque vocês
queriam cobre e copo de leite. Contém a história completa. Isso é o que dizem agora.

Macarena
É um pouco verdade.
Carla
Não concordo.
Macarena
Então não vamos construir nada, melhor.
Carla
Mas eu gosto de me sentir zangada. É como eu sou.

Macarena
Eu também, mas estar triste.
Francisca
Ela disse zangada.
Macarena
Sim. Zangada.
Carla
Sim.
Macarena
Estar zangada é... não é. Eu não quero viver toda a vida como uma cadela.

Carla
Já chegamos a um acordo?
Macarena
De não fazer nada?
Francisca
Eu tenho clareza de como vou votar.
Macarena
É que não vamos votar.
Francisca
Mas se conversar não serviu.
Carla
Sim.
Francisca
30
Puxa.

Carla
Puxa.

Macarena
E se a vila ficar como está?
Carla
Como está agora?
Macarena
Sim.
Francisca
Não.
Macarena
Não. É que, espera. Olha. Olhem. Quando terminou o antigo regime nenhum presidente foi até a vila
correndo, dizendo me deixem passar. Me deixem passar. Foi aqui? Foi aqui? Não pode ser. Não. Não.
Espinhos de Israel18. Espinhos de Israel. Que crime horrível. Ai. Não. Chega. Daqui em diante este vai ser o
umbigo do mundo, o quilômetro zero da justiça. Esta terra. Neste país não se dança nem uma cumbia 19,
não se constrói nenhuma escolinha, não se borda nem uma arpillera 20 até que não solucionemos o
problema desta vila. Mas não. Isso nunca aconteceu. Nenhum presidente se ajoelhou nem pegou um
punhado de terra dizendo: juro que isto não vai passar para a história como se fosse uma lufada de ar. Aqui
vamos construir um museu branco. Não, melhor, aqui vamos reconstruir a mansão sinistra. Não. Ninguém
disse isso. O que disseram foi: puxa. Vamos fazer justiça, mas na medida do impossível. E essa vila deserta
ficou vazia. Até que voltaram os traumatizados, os feridos, os ex-presos, os sobreviventes, os ex-chutados,
os iluminados, as intocáveis, as eleitas, as raivosas. E entraram e disseram, vamos fazer alguma coisa com a
vila. Tá. Mas não temos dinheiro. Não. Nem sequer somos donos do imóvel. Então começaram pouco a
pouco a plantar umas rosinhas por aqui, umas violetas por ali. E varreram. E juntaram outros vilarejos e
lhes disseram: podem falar? Não. Eu não quero falar disso, estou super traumatizada. Então tá. Não. Por
favor. Não. Tá. Bom, talvez. Deixa ver. Não sei. Bom, eu me lembro de que aqui estavam as casas Corvi.
Sim. Aqui estava a torre, aqui estava a dama de ferro. Aqui estava a natureza. Basicamente carvalhos e
pardais. Havia entardeceres e anoiteceres, mas não amanheceres. E assim, de lembranças, foram
reconstruindo o parque. Pouco a pouco. Sem um plano mestre. E cometendo erros. Como no amor. E este é
o resultado. Uma mistura esquisita de estilos de fim de século. Uma colagem pastiche mistura pot pourri.
Todos davam sua contribuição. Eu prego. Você pinta. Ele cava. Todos mandamos. E uma dia tinha um
parque. E esse parque era um parque de paz. Cheio de mosaicos de ladrilhos quebrados, casinhas de
madeira, graminha, azulejos e piscina. Símbolos simbólicos. Um grande quebra-cabeças misterioso. E é isso.
É. Você gosta? Sim. Ou seja. É um começo. É um monumento à coleta, à organização popular. E vamos

18
NT: Referência aos espinhos da coroa de Jesus.
19
NT: A cumbia é um ritmo musical e dança folclórico tradicional originário da Colômbia. Tem influência de três vertentes culturais:
indígena, negra africana e espanhola, fruto da intensa miscigenação dessas culturas durante a época colonial.
20
NT: A arpillera é uma técnica têxtil chilena. É confeccionada com retalhos e sobras de pano montadas em suporte de pano
rústico proveniente de sacos de farinha ou batatas, geralmente fabricados em cânhamo ou linho grosso (chamado arpillera). Como
forma de registrar a vida cotidiana das comunidades e de afirmar sua identidade, as arpilleras representaram os valores da
comunidade e os problemas políticos e sociais que enfrenta. Tornaram-se uma forma de comunicar ao mundo exterior o que estava
acontecendo no Chile, apresentando denúncias e constituindo expressões de tenacidade na luta pela verdade e pela justiça. Não
cabe tradução.

31
montando pouco a pouco porque nunca ninguém nos deu nada. Que doido. É como nossa história nacional.
Por isso parece um pouco um cemitério. Quem poderia imaginar que teríamos nossa Pompéia em
Peñalolén? Ninguém. Bom. Por isso agora eu penso que é melhor que tudo fique igual. Para que a vila
conte esta história. A história de não fazer muita diferença. E não é que eu não acredite que a vida esteja
maravilhosa. Não. Fizemos o que pudemos com o que tivemos. E isso não é tão pouco. Fizeram um muro
dos nomes que diz os nomes. Todos finados. A gente pode encontrar a tia e dizer olha, minha tia tinha
nome completo. Segundo nome Dolores. Coitadinha. Talvez não gostasse, mas assim ficou para a
eternidade. Dolorida. E tudo isso com um ar de orçamento baixo. De alguma forma é como se estivéssemos
na década de oitenta. Sim. Temos que deixá-la como está. Porque parece matagal. Parece parque tomado.
Parece casa demolida. A gente chega e não tem ninguém. É um pouco como um povoado abandonado. E
tem umas pessoas que circulam. São todos que pensam como nós. Alguns são os guias. São sobreviventes.
Homens com bigodes. Mulheres brancas. Olha: um guia. É um escolhido. É um santo. É um fantasma da
dor. Um asqueroso. É um intocável. Claro, a gente poderia dizer que não dá para entender nada, mas tudo
o que tem foi feito pelas pessoas com muito carinho. Cuidaram das plantinhas. Plantaram a graminha. E
cuidaram da piscina. Tem uma piscina onde dizem para você: aqui tomaram banho os filhos dos guardas.
Imagina. Alguns guardas levavam suas famílias à vila nas férias de verão. Como se fosse Papudo,
Chitakelindo, Cártago21. E essas crianças agora são grandes e dizem: tenho lembranças da infância. Meu pai
me levava ao centro secreto de violação e extermínio chamado Quartel Terranova. A água estava uma
delícia. Se a gente fazia pipi na piscina a água ficava vermelha. E na vila também tem uma casinha com os
trilhos que amarravam nos presos para jogá-los no mar. Meu capitão, temos que esconder os corpos. O
senhor acha, meu general? Sim. O que acontece se aparecem os suecos e os holandeses? Tem toda razão.
Poderíamos jogá-los ao mar. Acho que não, porque poderiam boiar. E o que acontece se os amarrarmos a
trilhos de trem para que afundem no mar? O mar está sereno. Vão afundar. Não serão encontrados.
Desaparecerão. Boa ideia. E foi o que fizeram. Mas anos depois, um corpo se soltou de seu trilho e boiou. E
um dia estávamos caminhando pela praia grande e dissemos. Olha. O mar está sereno. Sereno está o mar.
Espere. Olhe. Esse não é o corpo de uma detenta desaparecida morta que, que vem flutuando em direção à
praia grande. Sim. Que impactante. Mas é história real. E depois seguramos o ar e mergulhamos no mar e
descobrimos um arrecife de muitos trilhos. E bom. E o que fazemos com os trilhos? São manto sagrado.
Vamos leva-los até a vila e colocá-los num cubo que pareça uma escultura de arte contemporânea. E
fizemos isso e aí está. Tem tudo isso na vila. Bom. É verdade. É como para escrever uma tragédia. Bom. Eu
digo que a vila fique assim. É pobre mas conta muito bem a história dos que sobreviveram. E assim a gente
sente o peso do fato de que vivemos em um campo santo 22. Que estávamos adormecidos. Que o país
inteiro está construído sobre uma vila. Sim. Assim é melhor deixá-la como está.

Francisca
Totalmente de acordo.
Carla
Totalmente
Macarena
Sim?
Francisca
Sim. Totalmente. Que fique como está.
Carla

21
NT: Regiões turísticas de veraneio no Chile.
22
NT: Aqui um jogo de palavras impossível de traduzir: campo santo e camposanto, que significa cemitério.
32
Sim. Boa.
Macarena
Sim?
Carla
Claro.
Francisca
Sim.
Macarena
Sim?
Carla e Francisca
Sim.
Macarena
Sim?
Carla e Francisca
Sim.
Macarena
Tá. Que bom. Agora eu chamo e digo que já decidimos que fique tudo do jeito que está.
Carla
Tá.
Francisca
Tá. E poderia dizer para eles também que com todo o dinheiro que não vai ser gasto poderiam fazer um
super subsolo para colocar os computadores Mac.
Carla
Como?
Francisca
Sim. O que dissemos. Para que tragam os estudantes e vejam e que fiquem traumatizados. E que depois
perguntem: onde se pode fazer justiça? Onde a gente pode se inscrever no partido popular revolucionário
do povo armado vanguarda esquerdista popular dos pobres da terra? O que dissemos.

Macarena
Então, não.
Carla
Não.
Francisca
Por que?
Macarena
(Para Francisca) Não, Alejandra. Tínhamos chegado num acordo.

Francisca
Entendo. Mas a única coisa que eu digo é que façamos um subsolo com computadores Mac. Para gastar o
dinheiro em alguma coisa.
Carla
Não. Porque nesse caso a vila seria como uma fachada pobre para o teu museu subterrâneo.

Francisca
(Para Carla) Vocês estão dizendo que o dinheiro deve ser devolvido?
33
Carla
Sim.
Francisca
Quanto dinheiro é?
Macarena
Vinte e seis milhões.
Francisca
De Pesos?
Macarena
De Euros.
Francisca
Caramba.
Carla
Quanto?
Macarena
Sim.

Pausa.

Macarena
Sim. O dinheiro tem que ser usado.
Carla
E por que a comissão somos nós?
Francisca
(Para Carla) Mas por último aceite a coisa do museu subterrâneo.

Carla
Jamais.

Francisca
Puxa. Jamais.
Macarena
Sim. Puxa.
Carla
Sim.
Macarena
Então não há decisão?
Francisca
Não.
Carla
Não.
Macarena
Não.
Carla
Puxa.
34
Francisca
Assim mesmo.
Macarena
Vou ao banheiro. Em todo caso, agora a vila não é, não parece pobre. É um jardim de natureza.

Sai.

Francisca
Puxa.
Carla
Ela é a chefe?
Francisca
Não sei.
Carla
Porque age como se fossa a chefe.

Francisca
Disse que é da diretoria.
Carla
Sim.
Francisca
E você viu quando ela disse que tinha vontade de dar uma surra em alguém?

Carla
Sim.
Francisca
Sim.
Carla
E como ela é da diretoria?
Francisca
Não sei.
Carla
É muito jovem.
Francisca
Sim. Como nós.
Carla
Quantos anos você tem?
Francisca
33.
Carla
Eu também.
Francisca
Ah.
Carla
E obviamente foi ela que escreveu marichweu.
Francisca
35
Sim. Porque eu não sabia o que era.
Carla
E quando você saiu ela me disse que tinha sido você e que estava dando uma de boba.

Francisca

Que traidora.
Carla
Mas eu disse para ela que tem gente de esquerda que não sabe o que é marichiweu.

Francisca
Cem vezes venceremos.
Carla
Dez vezes.
Francisca
Dez vezes. Caramba. Viu como eu não sei?
Carla
Óbvio.
Francisca
Sim.
Carla
E se faz de confusa, que não se decide e agora quer que fique tudo igual.

Francisca
Não, sim e terrível.
Carla
Sim.

Macarena volta. Senta. Pausa.


Francisca
Vou ao banheiro.

Sai.
Carla
Que bom que você voltou.
Macarena
O que?

Carla
Ela disse que você votou por marichiweu.
Macarena
Não. Por que?
Carla
Porque eu perguntei se ela tinha anulado e ela disse que não, mas que estava cansada de que estivessem
suspeitando dela. E que você dá uma de chefe porque é da diretoria. E como era possível que você fosse da
36
diretoria sendo tão jovem e tão indecisa. Que o mais provável era que o cinzeiro de concha de loco que
quebraram ontem tenha sido jogado por você. E que tem medo de dizer para você que você votou
marichiweu, você vai dar uma surra nela.
Macarena
Por que?
Carla
Você está bem?
Macarena
Não.

Entra Francisca. Senta-se.

Francisca
Pronto. Tudo outra vez. Escutem. Qual é a proposta de que vocês mais gostaram? De todas.

Carla
Por que?

Francisca
Espera.
Macarena
A minha.
Francisca
Exato.

Carla
Que fique tudo como está.
Francisca
Sim. Tá. E depois eu disse que o dinheiro tem que ser usado.

Carla
E eu disse que não.
Macarena
(Para Carla) Silêncio.
Francisca
Posso falar?
Macarena
Fala.
Francisca
Obrigada. Tá. Tá. Agora vamos esquecer o dinheiro. Vamos esquecer. Porque tá. Eu sei que você (Para
Carla) Alejandra, não gosta do subterrâneo.
Carla
Não.
Francisca
Tá. Muito bom. Você não gosta. (Para Macarena) Mas você gosta, Alejandra?

37
Macarena
Sim.
Francisca
Tá. Eu também. Vamos votar?

Carla
Não.
Macarena
Por favor.
Francisca
Mas vamos ganhar, (para Macarena) Alejandra.
Macarena
Não.
Francisca
Olha Alejandra. Eu gosto muito de você...
Macarena
Mas me conhece há meia hora.
Francisca
Sim. É um modo de dizer.
Macarena
Tá.
Francisca
Mas olha. Essa história de entrar em acordo conversando não aconteceu. Porque está conversa já está
tremendamente agressiva. Não dá para notar em mim...

Macarena
O que?
Francisca
(Apontando para Carla) mM ameaçou com uma concha de loco.

Carla
Quando?
Macarena
Calma.
Francisca
Sim.
Macarena
Sim.
Francisca
Tá. Então isso aqui já ficou como o que aconteceu ontem à noite. Portanto é melhor votar, Alejandra. Dois a
zero. Você e eu. E ganhamos e pronto.

Pausa.
Francisca
Nós vamos ganhar. A vila fica como está agora. E com museu subterrâneo.

38
Carla
Não, Alejandra.
Francisca
Não se meta.

Carla
Sim

Macarena apoia a cabeça na mesa.


Francisca
Que foi?
Macarena
Quero ir embora.

Pausa. Levanta a cabeça.


Macarena
Tá. Vamos votar.

Macarena começa a preparar os votos.


Francisca
Bom.
Carla
Está errado.

Carla segura bruscamente a mãe de Macarena. Macarena se solta.

Macarena
(Para Carla) É maioria.
Francisca
(Para Carla) Dois a um.
Macarena
Sim.

Pausa.
Carla
Desculpa. Desculpa. Tá. Entendo. Bom. Vamos votar. Vamos votar.

Macarena
Obrigada.
Francisca
Obrigada.
Carla
Mas que opção eu vou votar?
Francisca
É um sim ou um não. Se você não concorda, vota que não.

39
Carla
Ah. Posso votar não. Bom.
Francisca
Sim.

Macarena
Que bom.
Carla
Apesar de eu gostar um pouco da opção sim.

Francisca
Como?
Macarena
O que?
Carla
Isso. A opção sim. Apesar de não gostar, gosto um pouco.

Pausa.
Francisca
Viu o que você está fazendo?
Macarena
O que?
Carla
O que estou fazendo?
Francisca
É um controle mental.
Carla
Por que?
Francisca
Se quando a Alejandra foi ao banheiro você acabou com ela porque ela não gostou da sua mansão sinistra.

Carla
Eu?
Macarena
Sério?
Francisca.
Sim.
Carla
Não.
Macarena
Mas tá. Não importa.
Carla
Eu nunca.
Francisca
Ah, não?
Macarena
40
Não importa eu disse. Não importa. Melhor votarmos e pronto.

Carla
Tá bom.

Francisca
Tá.

Votam.

Macarena
Pronto. Um voto sim. Um voto não. E um voto... marichiweu.

As três ficam de pé.


Macarena
Tá.
Carla
Uma de vocês mentiu.
Francisca
Mudar de opinião não é mentir.
Macarena
Calma.
Carla
Ah, não?
Francisca
Não, mentir é escrever marichiweu em todas as votações.

Carla
Eu não escrevi marichiweu.
Macarena
Calma. Calma. Eu sei o que eu votei. E não é marichiweu. Mas digo que votei marichiweu. Aquela de vocês
que não votou marichiweu vai saber que foi a outra e não. E não. Prefiro que não se saiba.

Francisca
Melhor falar. Se já sabemos que foi a (Para Carla) Alejandra.

Carla
E como sabemos que não foi você? (Para Macarena)

Macarena
Porque não fui, Alejandra.
Francisca
(Para Macarena) Não foi?
Macarena
Não.
Francisca
41
Então foi você? (Para Carla)
Carla
Não.

Macarena
Não. Mas talvez tenha sido eu. Sim. Talvez tenha sido eu. Sim. É melhor que fique a dúvida. Porque senão
vamos terminar mal.
Francisca
Vamos sentar.
Carla
Sim.

Sentam-se.
Carla
Agora entendo.
Macarena
O que?
Carla
O que aconteceu ontem à noite.
Macarena
O que aconteceu?
Carla
A discussão.
Macarena
Ah. Sim. E se supõe que nós somos a comissão especial das pessoas sérias.

Francisca
Imagine.
Carla
(Para Francisca) Imagine o que?
Francisca
(Para Carla) Cale-se, controle central.
Carla
(Para Macarena) Por que me chama de controle central?

Macarena
Chega. Silêncio.

Pausa.
Francisca
A vila... eu gostaria que a vila doesse em todos. Eu construiria um obelisco. Enorme. Que fosse visível de
todos as partes. E pintaria esse obelisco. De rosa e azul claro. E colocaria um cartaz em neon no topo
dizendo VILLA.
Carla
Que divertido.
42
Francisca
Por que?
Carla
O obelisco. É divertido. Mesmo que na vila as graças não funcionem. Não. Porque a vila é algo
absolutamente triste. E solene. Não dá vontade de rir. Porque isso é sério. E o mínimo respeito que
devemos aos mortos e aos sobreviventes é levá-los a sério. Por isso não é aceitável que a gente ache que
pode ir à vila para rir. A vila não provoca riso.
Francisca
Não concordo.
Macarena
Desculpe. Você me viu rir, Alejandra?
Carla
Pode ser.
Macarena
Ah, não.
Francisca
Desculpem. Mas eu não concordo tanto.
Macarena
Calma.
Francisca
Me deixa, (Para Macarena) Alejandra. (Para Carla) É o que você disse. Todo mundo reage de uma forma
diferente. A isto. Então a gente não pode usar a vila para impor uma visão. É melhor deixar assim, vazia,
que não proponha nada. E se alguém quiser rir, que ria. Ou se quer chorar, que chore. Mas tem gente que
não gosta de ficar traumatizada para sempre. Por exemplo, eu fui violentada. Uma vez. E claro. Às vezes
dou risada. Às vezes não. Mas se eu conto para o meu namorado, se houvesse um namorado, ele fica todo
sensível, sensível e eu é que acabo consolando-o.
Macarena
Sério?
Francisca
Sim.
Carla
Sim?
Francisca
Yes. Então este namorado está programado mentalmente para ficar triste. Mas eu preferiria que ele me
dissesse, que terrível. E me perguntasse: você foi violentada? Está traumatizada? Às vezes sim, as vezes
não. Hoje em dia sim. Facadas. Ah. Ah. Facadas. Ah. Mas amanhã não. Há, há. Há, há. Então, com todo
respeito, a vila deveria ser como eu. Flexível. Por isso, o que eu penso agora, eu tiraria tudo. Que fique
vazia.
Macarena
Que a vila fique vazia?
Carla
É.

Macarena
Vazia?
Carla
43
Sim.
Macarena
E tirar todas as construções?
Francisca
Não sei. Falei isso?
Carla
Tirar as árvores?
Macarena
Sim.
Francisca
Pode ser.
Macarena
E deixar o lugar pelado?
Francisca
Talvez.
Macarena
Pode ficar muito seco.
Francisca
Poderíamos plantar grama.
Carla
Só grama?
Macarena
23
Sim, como um campo de grama.
Carla
Ah.
Francisca
Sim. E mais nada.
Carla
Então a gente entra e pensa. Tira os chinelos e imagina. Ah. Imagino um Quartel Terranova. Aqui
eletrificaram os presos.
Macarena
Pode ser.

Francisca
A gente imagina.
Macarena
Que bonito.
Carla
Sim. Mas isso não é a mesma coisa que não propor nada?

Francisca
Não. Absolutamente.
Macarena

23
NT: O termo cancha aqui tem o significado de campo de jogo (como em campo de futebol).
44
Sim. É como dizer, decidir que o que aconteceu na vila é tão impossível, que é melhor que cada um imagine
por sua conta.
Francisca
(Para Macarena) Que fique tudo aqui. No coração.

Francisca toca sua cabeça.

Macarena
Mas isso é o cérebro.
Francisca
Pois é.
Macarena
Ah.
Carla
Mas haveria que colocar um cartaz dizendo proibido jogar futebol.

Macarena
Claro.
Carla
E dizer cuidado com as abelhas.
Macarena
Claro, porque onde tem grama tem abelhas.
Francisca
E nesse campo gramado... poderíamos comer ovos cozidos com Fanta?

Carla
Sim.
Macarena
E eu vou mais além. Poderíamos sentar em círculo e tocar violão apaixonados.

Carla
E eu vou mais além. Poderíamos fazer recitais de rock.

Francisca
Sim. E eu vou mais além. Poderíamos tomar ácido lisérgico.

Macarena
Sim. E eu vou mais além. Poderíamos deitar olhando o céu.

Carla
Sim. E eu vou mais além. Poderíamos dar cambalhotas.

Francisca
Sim. E eu vou mais além. Poderíamos correr sem roupa com os braços abertos gritando
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah.
Macarena
45
Sim. É uma página em branco, uma vila, um campo vazio.

Carla
Sim. Mas no fundo é uma ideia tímida.
Francisca
Nem um pouco. Não acho.
Macarena
Por que?
Francisca
Cada um sente o que quer.
Carla
Porque um campo gramado também é...nada.
Francisca
Não.
Carla.
É como se render.
Francisca
Não acho.
Carla
Além disso, como que convida à farra.
Macarena
Talvez.
Francisca
Não.
Carla
Eu voto que não.

Pausa.

Francisca
Outra vez o controle mental.
Macarena
Calma.
Francisca
Outra vez o controle mental. Intrigueira. Interesseira. Alejandra. Alejandrita. Alejandricita. Planejadora.
Amargurada. Água tônica. Intocável. Estrelinha. Eu vou votar a favor do campo. Porque faz anos, anos que
sonho com grama. E você não vai me votar que não. Não. Vai me votar que sim.

Macarena
Cala a boca, Alejandra. Cale-se. Eu sou a chefe.

Francisca
Mas (Para Macarena) Alejandra, se a Alejandra te disse que eu tinha medo de você, que suspeitava de você.
Esse é o controle mental. Meter-se na cabeça das pessoas. Para que? Para que fazer uma mansão sinistra?
Que original. Essa coisa de andar assustado não serve. Não serve, Alejandra. Vamos votar.

46
Macarena
Por que?
Francisca
Vamos votar pelo campo.
Macarena
Mas eu não vou votar pelo campo gramado.
Francisca
Você não gosta?
Macarena
Gosto muito.
Francisca
Então por que, Alejandra?
Macarena
(Para Francisca) Porque você disse que sonhava com grama. Está fazendo controle mental, Alejandra?

Carla
Sim.
Francisca
Não.
Carla
Sim.
Macarena
Cala a boca, você. Claro. A (Carla) Alejandra é uma intrigueira, mas você. Estou cansada. Olha minhas
orelhas. Já não suporto continuar falando disso. As vezes quero esquecer. Todo mundo esquece. E nem por
isso andamos nos matando. Eu me sinto a desagradável que diz: lembrem-se. Quando é humano, o
humano é esquecer. Você votou marichiweu, Alejandra.

Pausa.
Macarena
Você votou Marichiweu?
Francisca
Sim.
Carla
Caramba.
Macarena
Quantas vezes?
Francisca
Duas vezes.
Carla
Puxa!
Macarena
Cale a boca. E por que, Alejandra?
Francisca

47
Porque é assim que se avança. Assim se vence. Eu tinha um plano. E assim eu convenci vocês de que a ideia
do campo gramado foi de vocês, mas foi minha. Minha. (Para Carla) Minha, cianureto 24. Minha, bebezinha.
Minha, papagaia. Minha. Minha. E você não teve nenhuma ideia. Nada. E é a melhor ideia. Mas isso não
importa (Para Macarena). Porque agora as duas vamos votar pelo campo gramado e vamos ganhar. Por
favor.
Macarena
Alejandra...
Francisca
Por favor.
Macarena
Não.
Francisca
Puxa.

Pausa.
Macarena
E você foi mesmo violentada?
Francisca
Não.
Macarena
Não? Espera. Você disse isso só para dar pena?
Francisca
Sim.
Macarena
(Para Carla) Cala a boca.
Carla
Eu não disse nada.
Macarena
Então você não foi violentada?
Francisca
Sim.
Macarena
Sim?
Francisca
Sim. Fui violentada. Mas indiretamente.
Macarena
Como?
Francisca
Não posso contar para você.
Macarena
Sei. E você sabia o que é marichiweu.?
Francisca
Qualquer pessoa de esquerda sabe o que é marichiweu.

24
NT: Veneno de sabor amargo.
48
Macarena
Sim.
Carla
Sim.
Francisca
E o certo é dizer mapu-dungún. Mapudungún. Não mapuche dungún. (Para Carla) Espertinha.

Carla
Bom. Mas você não foi violentada.
Francisca
Falei que sim. Mas indiretamente.
Macarena
Ai.
Francisca
Não me importa que não acreditem em mim. Não me importa.

Macarena
Não. Isso não tinha que ter acontecido.
Francisca
Eu?
Macarena
Tudo.
Carla
A vila.
Macarena
Sim. A vila. A vila.
Francisca
Mas já foi. A vila já foi.
Carla
Sim.
Francisca
Sim.
Macarena
Sim. Já foi. Já foi. Já foi. E não há nada que se possa fazer. Porque já foi. E se eu me confundo com o que
vocês dizem é porque para mim tanto faz. Dá na mesma. Não me importa o que fizerem com a vila. O que
eu gostaria é que nunca tivesse existido a vila. Nunca. E o que eu realmente faria seria reconstruir a vila
como ela era antes de ser a vila. Reconstruiria o antigo casarão. Para olhar para ela e ter a ilusão de que
aqui não aconteceu nada. E seria uma casa feliz. E encheria a casa de meninas. Seria a máquina do tempo.
Aqui não aconteceu nada. Como se estivéssemos todas vivas. E teria cheiro de cozido. E teria galinhas. E
vacas. Encheria o bairro de moscas. Teria lagartixas. E todo tipo de animaizinhos. Poderíamos ter um cão
pastor. Teria porquinhos. Teria manteiga. Poderíamos plantar um ombu 25. Poderíamos plantar damascos. E
no verão daria marmelada de presente aos amigos. E não se sentirá uma energia tenebrosa. Vai ser como
estar preso numa infância feliz. Mas seria infeliz porque todos sabemos o que aconteceu. E por isso seria
perfeita. Porque seria uma vila agridoce. Quer dizer, perfeita. E as pessoas vão passar por fora e vão dizer:

25
NT: Planta herbácea de grande porte típica da região sul do continente sulamenricano.
49
que casa mais bucólica. Olha. Esta deve ser uma casa feliz. Porque aqui estava a vila maldita, mas esta não
é. Não. Deve ser mais para cima. Ou mais para baixo. Mas estou certa de que não é esta. Está é uma casa
de família feliz. E por isso eu deixaria uma pegada. Para você não me esquecer. Sim. Na porta que dá para a
rua colocaria uma placa de bronze que diga VILLA. Vila. Sim. E embaixo de VILLA vai estar escrito: o que
aconteceu aqui não deveria ter acontecido nunca. Mas aconteceu. E embaixo disso poderíamos colocar
www ponto villa ponto quartel ponto nunca mais. Para mandá-los para outro lugar. Para um museu. Para
um arquivo. O que for. Para que saibam o que aconteceu. O que nunca deveria ter acontecido. Porque se
nunca tivesse acontecido eu estaria com ele. Um voto.

Carla
Sim, sim. Perfeito. Eu gosto. Eu gosto porque essa casa feliz, é feliz. E eu não quero fazer mal com a vila. Eu
sei que fui áspera antes, mas por dentro sou suave. E mudo de opinião. E agora acho que fazer uma casinha
feliz é o melhor. Porque se você faz uma vila tóxica... se você faz uma vila tóxica, que seja muito violenta,
muito política, muito sinistra... se você faz isso, se anda chorando, gritando, as pessoas vão te odiar. Vão
dizer, não chore tão alto. Não seja a vítima. Não me estrague a vida. Então, você se expõe a um segundo
castigo nacional. Podem chamar você de furiosa, acabada, grisalha, prepotente, rebelde, sofrida. E vão te
insultar. Vão te ridicularizar. Vão dizer que você já não importa. Que é animalesca. E vão te dar um segundo
castigo. E talvez seja por isso que todas as vilas acabam sendo bonitas. Porque consciente ou
inconscientemente, a gente quer dizer: não quero mais guerra, esta é minha bandeirinha branca. Olhem
para mim. Antes era rosa vermelha, agora sou cravo. Por isso. E além disso quero que isto passe. Que nossa
dor passe. Para ser paz. Para dormir tranquila. Em algum momento a gente tem que aceitar que é derrota.
Não conseguimos nada. Não serviu para nada. E essa verdade é a verdade da verdade da verdade. E a gente
quer crescer. E quer sair. E vai embora mesmo. Vai à praia com os amigos. E fica com uma tristeza celeste.
Mas tenho direito a crescer. E eles lá do ultratúmulo também têm direito de dizer. Não me esqueça. Mas
liberte-se. Não há justiça. Não há consolo. Resigne-se. Cresça. Por isso não faz mal que a vila fique mais ou
menos, quatro vírgula cinco. Não importa. Porque isso é a vida. Quatro vírgula cinco. Não é para tanto.
Quando estiver nadando em meu leite de morta. Estarei pensando. Há problemas que não têm solução.
Que não têm. E a vila não tem solução. Por isso melhor sair cantando. Por isso gosto da casa feliz. Dois
votos.
Francisca
Bom. Eu voto marichiweu. E não me importo que eles me castiguem pela segunda vez, vão fazer isso de
qualquer forma. Já estão fazendo. Porque está em sua natureza serem anticristos. Mas eu não quero andar
pela vila e me sentir boazinha. Quero espantar. Quero denunciá-los todos. Quero estar furiosa. E isso é
como uma homenagem para os que não viveram. Para os que quando estavam presos pensaram, poxa,
agora eu gostaria de ter um fuzil. Um fuzilzinho. Um AK47. Um CM1. Ou por último um M16. Mesmo que
trave. Por último. Por último uma caixa de explosivos. Isso. Porque eu sou dos anos noventa. Eu nasci
entediada. Eu nasci vendida. Eu nasci apertada. Tenho direito de ser a bruxa do bosque. Tenho direito de
ser homenagem. Tem gente que me diz para mudar. Mas eu quero ficar suspensa no ar. Quero ser uma
foto. Quero morrer sem mudar. Vão me chamar de vaca, dolorida, turva, três letras. Não importa. Prefiro
ficar olhando para a cordilheira esperando que Luciano desça de burro. Não suporto o amanhecer. Não
suporto o final feliz. Eu sou o caminho não trilhado. Sou osso. Sou rocha. Sou cumbia. Sou charango 26.
Indecisa. Doce. Estrelinha. Sou povo. Sou marcha. Sou vitória. Sou panfleto panfletário. Sou assim. Falo
assim. É a língua da minha família. É meu cajado. E não me importam que me digam: você está
desperdiçando sua vida. Bom, alguém tinha que morrer por dentro. Alguém tinha que continuar chorando.

26
NT: Instrumento de corda semelhante a um bandolim usado na região da cordilheira dos Andes.
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E essa sou eu. Uma vaca. Uma porca. Uma intocável. Mas tudo isso que estou dizendo não vou fazer.
Porque apesar de tudo tenho a lucidez para dizer, melhor fico calada. Melhor choro em silêncio. Isto que
sinto, não vou impor a você. Não vou converter a vila em meu leite derramado. Porque todas reagimos de
formas diferentes. Por isso acho que deveríamos converter a vila em campo gramado. Para que cada uma
sinta o que sentir o que sentir. Mas o único que peço é que no centro do campo plantemos uma árvore.
Uma canela. E por que uma canela? Porque é a árvore sagrada dos mapuche. Não vamos esquecer de que
não há deus. E a única coisa na qual acredito é a fotossíntese.

Carla
(Para Macarena) Então ganhamos a casa feliz?
Macarena
Não sei.
Carla
Eu acho que ganhamos.
Macarena
(Para Francisca) E você porque está sempre falando dos mapuche?

Francisca
Ah. Porque minha mãe é mapuche.
Carla
Sério?
Macarena
Não.
Francisca
Sim. Mas nunca ninguém acredita em mim.
Macarena
É que você não parece mapuche.
Francisca
Sim. É que quando minha mãe esteve presa na vila foi violentada por um oficial de origem alemão. Ou loiro.
Não sei.
Carla
Ah, sua mãe é sobrevivente da vila.
Francisca
Sim. Por isso fui violentada. Indiretamente.
Carla
Claro.
Macarena
Sim. E você nasceu na vila?
Francisca
Não tenho clareza. Não se fala disso. Mas é possível.
Carla
Eu nasci na vila.
Macarena
Sério?
Francisca
51
Sua mãe também foi violentada?
Carla
Sim.
Macarena
Eu também nasci na vila.
Francisca
Também de estupro?
Macarena
Sim.
Francisca
Ah.
Carla
Ah. Por isso somos da comissão especial.
Macarena
Sim. E por isso eu sou da diretoria da vila.
Francisca
Sim. Agora dá para entender.
Carla
Sim.
Macarena
Eu não queria dizer.
Carla
Eu também não.
Francisca
É que não é algo para ir contando.
Macarena
Não.
Francisca
Não.
Macarena
(Para Francisca) Eu pensei que você tinha alguma coisa a ver com o dinheiro.

Francisca
Por que sou loira?
Macarena
Sim.
Francisca
Não.
Carla
(Para Francisca) E você se dá bem com a sua mãe?
Francisca
Sim.
Macarena
Eu não vejo muito a minha mãe.
Francisca
Por que?
52
Macarena
Porque eu faço ela se lembrar do cara da DINA que a violentava. Sou parecida com ele. E às vezes ela não
quer nem olhar para mim.
Carla
Também acontece comigo. Eu vou dar um beijo nela. Me aproximo. Olhe (Para Francisca) Vire o rosto. Oi,
mãe.

Francisca vira o rosto.

Carla
Viu?
Francisca
Sim.
Macarena
Sim. Eu também.
Carla
Até pensei uma vez em fazer uma cirurgia plástica.
Macarena
Sério?
Carla
Sim.
Francisca
Eu beijo a minha mãe o dia inteiro.
Macarena
É que todos reagimos de maneiras diferentes.
Francisca
Sim. Por isso deveríamos fazer o campo gramado.
Carla
Sim.
Macarena
Talvez.
Francisca
Porque todas as torturadas reagem de maneiras diferentes.

Macarena
Sim. Há mulheres que não se recuperam.
Carla
Sim. Há mulheres que se organizam e constroem museus.

Francisca
Sim. E há mulheres que se tornam presidenta da república.

FIM

53
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