Você está na página 1de 5

Uso protegido e responsável de tecnologias

I. Privacidade como direito


O uso protegido das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na infância
pressupõe considerar a criança desde a primeira infância como sujeito de direitos,
compreendendo esse ser na sua completude, que tem sentimentos, emoções, vontades,
desejos e direitos.

A privacidade é um direito fundamental assegurado por lei pela Constituição Federal


de 1988 e reforçado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), artigos 17 e
18, que se referem à preservação da imagem, identidade e autonomia da criança.
Preconiza o respeito com relação à imagem e à privacidade, colocando-as a salvo de
qualquer situação ou tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor1.

Nesse sentido somos convidados a (re)pensar nossas práticas referentes ao uso das
tecnologias envolvendo crianças. Será que estamos considerando o direito das crianças
na primeira infância? O direito à privacidade, por exemplo, está sendo respeitado?

Numa sociedade em que, cada vez mais, estamos conectados e não separamos o online
do off-line; em que as nossas rotinas são compartilhadas em diversas redes sociais, e
as relações sociais e interpessoais passam também a ser estabelecidas e mediadas por
interações com as tecnologias, precisamos estar atentos à superexposição das nossas
vidas e, principalmente, das crianças.

Estamos falando sobre os riscos da exposição de crianças na internet. O “sharenting”,


palavra de origem inglesa que significa a junção de “share” (compartilhar) + parenting
(paternidade), se refere a “prática parental frequente de divulgar as fotos, notícias,
vídeos, informações de seus filhos online, nas redes sociais, com, inclusive, informações
extremamente pessoais sobre as crianças”2. Isso ocorre sem a consciência de que estão
promovendo a superexposição dos seus filhos e sem o conhecimento de que isso pode
torná-los mais vulneráveis a situações de violações de direitos na internet. A internet é
considerada uma espécie de praça pública, onde inúmeras pessoas transitam e podem
ter acesso às imagens de crianças e fazer mau uso delas, podendo ser acessadas
inclusive por criminosos e redes de pornografia infantil.

1. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990.


2. De acordo com SILVA, I. I. B de S. O fenômeno do Sharenting e a superexposição infantil: entre a autoridade
parental e o melhor interesse da criança nas redes sociais. 2020. 77 f. TCC (graduação em Direito) -
Faculdade de Direito do Recife - CCJ - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Recife, 2020.

1
Uso protegido e responsável de tecnologias

O que parece ser inofensivo pode trazer prejuízos, quando há uma superexposição
na internet, e muitas vezes a perda da privacidade das crianças, o que configura
uma violação de direitos. E, dependendo do que for publicado, pode vir a trazer
consequências de diversas ordens, seja psicológica seja quanto ao futuro delas.

Na série “Que corpo é esse? Prevenção Online”, apresentada anteriormente, produzimos


alguns vídeos que tratam dessa problemática. Silva3, em seus estudos, aponta dois
problemas primordiais em relação a essa questão: um é que “essa exposição fica
permanentemente na internet, não há como remover, o máximo que se pode fazer, caso
lese ou prejudique de alguma forma a criança, é que seja desindexado. O outro é quando
essas crianças não querem que seu conteúdo seja compartilhado online, afirmando que
isso é uma invasão de privacidade.”

Essas reflexões evidenciam que a privacidade da criança é relativizada quando quem


deveria zelar pela proteção e privacidade dos dados pessoais dela, sem ter essa
consciência e intenção, acaba expondo-os nas redes. Por essa razão é fundamental um
trabalho preventivo, voltado para as famílias, educadores e cuidadores, para informar
e sensibilizar sobre a temática.

Por outro lado, faz-se necessário promover o uso consciente e a autonomia online
também por parte das crianças, quando elas são orientadas a usar as TICs de forma
protegida e com a mediação de adultos (pais, famílias, educadores e cuidadores). O
episódio 2 da série Que Corpo é Esse? - Prevenção Online nos ajuda a entender melhor
esse assunto.

Alguns cuidados são primordiais quanto ao Compartilhamento de Aparelhos. É muito


comum o compartilhamento de aparelhos entre pais e filhos, sendo necessário a criação
de senhas de segurança e instalação de filtros de proteção para limitar e proteger as
crianças no acesso a conteúdo inapropriado. Evitando os riscos de acesso a conteúdo
pornográfico, cenas de violências diversas e de contato com pessoas desconhecidas,
sobretudo redes de pedofilia. O episódio 3 da série Que Corpo é Esse? - Prevenção
Online traz algumas dicas de como compartilhar aparelhos de forma segura e protegida.

Não podemos perder de vista que as tecnologias têm muitos aspectos positivos, que
possibilitam novos aprendizados e conhecimentos de mundo, desde que se construam
rotinas digitais mais seguras que promovam a cidadania, o bem-estar e uso protegido
das diversas ferramentas digitais, que contribuem para o desenvolvimento infantil.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) alerta para a urgência de tratarmos sobre


esse tema, buscando promover a saúde e o bem-estar de crianças em contato
cotidiano com as tecnologias digitais. Pensando nisso, em 2020 lançou o Manual de
Orientação#MenosTelas#MaisSaúde4, que complementa e atualiza as recomendações
sobre o tema lançadas pela instituição e elaborada pelo Grupo de Trabalho sobre Saúde
na Era Digital da SBP.

3. SILVA, I. I. B. de S. O fenômeno do sharenting e a superexposição infantil: entre a autoridade parental e o


melhor interesse da criança nas redes sociais. 2020. 77 f. TCC (graduação em Direito) - Faculdade de Direito
do Recife - CCJ - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Recife, 2020.
4. Manual de Orientação #MenosTelas #MaisSaúde disponível em https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_
upload/_22246c-ManOrient_-__MenosTelas__MaisSaude.pdf

2
Uso protegido e responsável de tecnologias

Estudos e pesquisas atuais têm contribuído com um acúmulo de referências positivas


com relação ao uso das TICs na infância, mas também as influências delas em situações
de risco, condutas de insegurança e ameaças à privacidade. Vale ressaltar alguns
problemas médicos e alertas de saúde de crianças na era digital, que são apontados
pela SBP, tais como transtorno do sono; problemas visuais, miopia, transtornos de
alimentação; riscos à sexualidade; violações de direitos; nudez; violência sexual/abuso
sexual/pornografia infantil, entre outros.

O excesso de exposição de crianças nas redes sociais, no compartilhamento de imagens


seja online ou off-line coloca em risco a integridade física, emocional e sexual da criança
e amplia os riscos às violações de direitos, abusos online e outras violências.

II. Os desafios da proteção


A presença da internet e das novas tecnologias em nossas vidas e, principalmente, na
vida das crianças tem ocupado um lugar e tempo consideráveis no cotidiano das famílias
brasileiras. Mesmo reconhecendo as desigualdades de acesso a essas tecnologias, não
podemos negar que, de alguma maneira, as TICs estão presentes na infância.

Seja por equipamentos de uso pessoal ou compartilhado por mais de uma pessoa
da família, irmãos, pais e/ou responsáveis, as crianças estão acessando diferentes
conteúdos e telas. Isso requer uma série de cuidados para garantir a proteção das
crianças e atuar na prevenção de possíveis violações de direitos e/ou violências online.

Temos aí um grande desafio, considerando que muitas famílias nem sempre dispõem
de tempo para uma mediação do uso das tecnologias ou mesmo tem conhecimento dos
riscos que seus filhos podem correr ao utilizar diferentes dispositivos tecnológicos sem
uma orientação sobre o uso protegido das tecnologias.

A rotina de trabalho e os afazeres domésticos se modificaram significativamente se


levarmos em consideração o período de pandemia5. Diversos contextos contribuem
para isso, que vão desde o trabalho home office dos pais/responsáveis, em que a carga
de trabalho para muitos aumentou e as suas rotinas foram completamente modificadas,
impactando muitas vezes nesse tempo de convívio com os filhos. As rotinas das
crianças, aulas e atividades escolares também foram impactadas e passaram a
acontecer em grande parte online, por diversas redes e plataformas virtuais. Além
disso, ainda temos que considerar o desconhecimento e a falta de informações sobre os
modos de proteger crianças online, por parte não apenas das famílias, mas também por
educadores e cuidadores.

O tempo e os modos de acesso às telas são outros desafios que estão postos. Mas como
estabelecer limites e rotinas de acesso às diferentes telas promovendo a proteção das
crianças nas várias dimensões de sua vida e contribuindo para o seu desenvolvimento
integral? O que podemos fazer para proteger e garantir os diretos das crianças no
ambiente online?

5. Pandemia de Covid-19 declarada pela Organização Mundial da Saúde – OMS em 11 de março de 2020, que
permanece até os dias atuais.

3
Uso protegido e responsável de tecnologias

Retomando o que a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda, duas das atualizações


do Manual de Orientação valem ser destacadas aqui:

• Evitar a exposição de crianças menores de 2 anos às telas, sem necessidade, nem


passivamente.

• Crianças com idades entre 2 e 5 anos, limitar o tempo de telas ao máximo de 1


hora por dia e sempre com a supervisão de pais, cuidadores e/ou responsáveis.

Não temos uma receita pronta a seguir, mas podemos construir rotinas saudáveis para
o uso seguro das tecnologias e para promoção de uma cultura de proteção no ambiente
digital.

Algumas dicas6:

• Construa com a criança regras para o uso dos aparelhos tecnológicos e da


internet;

• Defina um tempo adequado para utilização desses dispositivos;

• Converse sobre o que é legal e o que não é legal na internet;

• Explique que não devemos conversar com estranhos na internet, assim como na
vida essa regra se aplica ao ambiente digital;

• Mantenha os equipamentos eletrônicos em área comum da casa em que todos


tenham acesso;

• Acompanhe o uso dessas ferramentas tecnológicas por crianças;

• Fique atento ao conteúdo que a criança acessa;

• Oriente sobre os conteúdos adequados à faixa etária e quais conteúdos não


devem acessar;

• Procure se informar sobre ferramentas de segurança na internet, crie senhas e


filtros apropriados;

• Estabeleça uma relação de confiança com a criança para que ela saiba que pode
contar com você;

• Participe com a criança de momentos de interação no ambiente digital, assistam


a vídeos juntos, brinquem juntos, joguem juntos. Estar próximo à criança nesses
momentos é fundamental para fortalecer vínculos e construir uma relação de
confiança e um maior acompanhamento do uso desses equipamentos eletrônicos
e tempo online;

• Garanta na rotina familiar um tempo para brincadeiras, promova momentos de


convivência familiar em que possam desconectar-se das múltiplas telas, saindo
do ambiente digital para o presencial, promovendo diálogo com afeto.

6. Com base nas dicas de como enfrentar e prevenir a violência sexual de crianças e adolescentes durante
o período de quarentena. Publicado em https://www.childhood.org.br/a-protecao-de-criancas-e-
adolescentes-durante-o-isolamento-social

4
Uso protegido e responsável de tecnologias

Outro aspecto relevante destacado por especialistas na temática e pela SBP para um
uso seguro, responsável e positivo das tecnologias digitais, pensando na proteção
da criança, é “estimular a mediação parental das famílias e a alfabetização digital nas
escolas com regras éticas de convivência e respeito em todas as idades e situações
culturais, para o uso seguro e saudável das tecnologias.”7

Já sabemos, mas não custa reforçar que é dever de todos proteger crianças e
adolescentes e promover com absoluta prioridade8 a garantia dos seus direitos. Cada
vez mais é necessário promover ações educativas ou uma alfabetização midiática com
a mediação de um adulto responsável, envolvendo pais, família e escola, buscando um
aprofundamento sobre a intencionalidade do acesso às TICs e uso mais positivo, seguro,
ético e cidadão, contribuindo assim para o desenvolvimento integral da criança.

7. Manual de Orientação #MenosTelas #MaisSaúde, produzido pelo Grupo de Trabalho disponível em https://
www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/_22246c-ManOrient_-__MenosTelas__MaisSaude.pdf
8. Conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990).

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF, 1990.

BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a
primeira infância. Brasília, 2016. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm

PEREIRA, P.; CORRÊA, M. (Org.). Que corpo é esse? (livro eletrônico – Kit crescer sem
violência), Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2021.

SILVA, I. I. B de S; SILVA, L. J. A. da (Orient). O fenômeno do sharenting e a superexposição


infantil: entre a autoridade parental e o melhor interesse da criança nas redes
sociais. 2020. 77 f. TCC (graduação em Direito) - Faculdade de Direito do Recife - CCJ -
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Recife, 2020.

Sociedade Brasileira de Pediatria [Internet]. Rio de Janeiro: SBP; Manual de orientação:


saúde de crianças e adolescentes na era digital. Disponível em https://www.sbp.com.br/
fileadmin/user_upload/_22246c-ManOrient_-__MenosTelas__MaisSaude.pdf.

VIDIGAL, F. M. C. S, et al. Percepções e práticas da sociedade em relação à primeira


infância. Estudo: Etapa 2 – Ibope Bus – População. 2012. [Base: amostra total (2.002
entrevistas).

Você também pode gostar