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O número de interrupções voluntárias da gestação como critério de avaliação do

médico de família em Portugal.

The number of voluntary pregnancy terminations as an evaluation criterion of the


family doctor in Portugal.

Thiago Rodrigues-Pereira1

Resumo

A presente pesquisa visa analisar se um ato administrativo poderia avaliar um médico


de família em Portugal se o número de abortos em sua área de atuação fosse maior do
que uma média percentual nacional, ainda que a interrupção da gestação tenha sido
legalizada e se tornado um direito fundamental da mulher. A hipótese é que tal ato é
inconstitucional e extrapolou seus limites. O marco teórico será o pensamento de
Nietzsche e Heidegger e a pesquisa será bibliográfica-documental, qualitativa, básica,
descritiva-explicativa, a partir das metodologias fenomenológica e genealógica.

Palavras-chave: interrupção voluntária da gestação; autonomia da vontade; valores


individuais; direitos fundamentais

Abstract

The present research aims to analyze whether an administrative act could evaluate a
family doctor in Portugal if the number of abortions in his area of practice was higher
than a national percentage average, even though the interruption of pregnancy was
legalized and became a fundamental right of women. The hypothesis is that such an act
is unconstitutional and has overstepped its bounds. The theoretical framework will be
the thought of Nietzsche and Heidegger and the research will be bibliographic-
documentary, qualitative, basic, descriptive-explanatory, from the phenomenological
and genealogical methodologies.

Key words: voluntary interruption of pregnancy; autonomy of will; individual values;


fundamental rights.

1
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ; Pós-Doutor em Direitos
Humanos pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP; Pós-doutor em Gestão do trabalho para a
qualidade do ambiente construído pela Universidade Santa Úrsula – USU; Investigador Integrado ao
Centro de Investigação e Desenvolvimento Ratio Legis da Universidade Autónoma de Lisboa - UAL;
Professor Associado na UAL. E-MAIL: prof.thiagorp@gmail.com
1 – Introdução

A presente pesquisa versa sobre um dos temas de maior complexidade


não apenas no direito, mas também em termos sociais, psicológicos, filosóficos e até
religiosos. O aborto sempre provocou e provoca muita comoção entre todos, justamente
pela nossa ainda impossibilidade de prever o momento real do nosso nascimento.

Além disso, sempre é controversa a discussão dos limites de interferência


do Estado no corpo do seu cidadão, nesse caso, no corpo das mulheres. Será que o
Estado pode determinar que uma mulher leve a sua gestação até o final mesmo quando
ela afirma peremptoriamente que não o quer?

A resposta, salvo algumas poucas exceções, até 2007, era sim. Contudo,
esse ano marcou uma reviravolta no direito, nas relações sociais e na autonomia da
vontade da mulher. A partir de então, a mulher passou a poder decidir que simplesmente
não quer levar ao final uma gestação não planejada, sem precisar explicitar qualquer
motivo pelo qual tomou essa decisão, apenas por não querer, obedecendo, por óbvio, os
trâmites legais que eram exigidos.

Só entendemos um ordenamento jurídico se entendemos sua história,


pois como bem ensinou Heidegger, o que existe é o dasein, o ser inserido no mundo e
fruto de sua historicidade. Portanto, para entender a questão da interrupção voluntária da
gestação em Portugal é imprescindível ir na origem dessa questão, para perceber os
valores de muitos portugueses formados a partir dos valores cristãos católicos. Contudo,
em 11 de maio de 1984, foi publicada a lei 6/84, que instituiu a exclusão de ilicitude em
casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física
e psíquica da mulher, em casos de malformação fetal ou quando a gravidez resultou de
uma violação. Em 2007, após um Referendo nacional, foi incluída na lei a possibilidade
de se realizarem interrupções de gravidez a pedido das mulheres. Com o advento da lei
16/2007, o ordenamento jurídico português passou a permitir a interrupção da gestão em
algumas hipóteses, com destaque na interrupção “Por opção da mulher, nas primeiras
10 semanas de gravidez”. Com isso, Portugal passou a admitir a interrupção voluntária
da gestação, a ser esse um verdadeiro direito fundamental da mulher, com base na ideia
da autonomia da vontade, que mesmo não sendo totalmente ampla, por se limitar às 10
primeiras semanas, permitiu que até esse limite a mulher possa dispor do seu corpo
como preferir, sem a interferência do Estado.
O Estado português foi aos poucos se organizando, na medida a
concretizar a promessa legal e constitucional. Contudo, mesmo com uma lei expressa,
muitos não concordaram com essa lei, e talvez até de forma involuntária, se colocavam
contrário a ela.

E assim, foi proposto um novo critério para aferição da boa prestação do


serviço público dos médicos de família: o número de interrupções da gestação. E assim,
quando um médico realiza ou é realizado um número maior de abortos em sua área de
atuação do que o percentual nacional, esse médico seria avaliado negativamente.

Não se está a defender ou questionar quaisquer valores referentes a


questão da interrupção em si, mas sim se o Estado, por um ato administrativo, pode
avaliar de forma negativa médicos de família que cumprem o disposto legal, instruindo
a gestante sobre esse seu direito de interromper a gestação, se assim desejar. Sendo
assim, a situação problema que se irá discutir será: Pode o Estado, por um ato
administrativo, avaliar de forma negativa médicos que cumprem o disposto legal e
garantem esse direito às mulheres? As primeiras conclusões indicam que o Estado não
pode colocar como um requisito para uma boa avaliação do médico de família o número
de interrupções voluntárias da gestação, tendo em vista ser esse um direito fundamental
da mulher, previsto na lei 16/2007 combinada com o artigo 16 da atual constituição
portuguesa (1. Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem
quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional) e
uma excludente de ilicitude do médico que acompanha e/ou realiza a intervenção, pois
isso seria um verdadeiro retrocesso social desse direito fundamental da mulher, além de
ferir o direito transnacional que, além de proteger a autonomia da vontade da mulher, se
insurge contra a insegurança jurídica oriunda de retrocessos sociais como a proposta ora
objeto de reflexão. Utilizar-se-á como marco teórico o pensamento de Nietzsche, com
a questão da genealogia da moral e da construção de um projeto individual de felicidade
e também o fenomenológico heideggeriano A pesquisa será bibliográfica-documental,
qualitativa, básica, descritiva-explicativa, a partir das metodologias fenomenológica e
genealógica.
2 – Evolução histórica das interrupções voluntárias da gestação em Portugal

Após a queda do Império Romano, o direito canónico passou a ser


praticamente o único direito escrito novo a ser produzido na Europa. E assim, com
exceção de uma pobre produção localizada, o direito escrito vigente por praticamente
mil anos foi o direito romano e os comentários a ele e o direito canónico elaborado pela
Igreja Católica Apostólica Romana, que se tornou a única grande instituição europeia
existente durante o medievo, até a formação dos chamados Estados Nacionais.

A posição da Igreja ainda vigente em relação a natureza do embrião


humano é de que ali já existe um ser, e, por conseguinte, por ter sido criado a imagem e
semelhança de Deus, possui dignidade, razão, e merece toda a proteção do Estado.

Merece ser mencionado que, mesmo com a criação dos Estados


Nacionais, o direito canónico continuou com enorme importância dentro dos
ordenamentos jurídicos nacionais. Em Portugal, será apenas a partir da Lei da Separação
do Estado das Igrejas de 20 de abril de 1911 que haverá uma separação oficial entre
Estado e Igreja.

Menos de um ano antes, em outubro de 1910, foi instaurado o regime


republicano em Portugal, mediante a chamada Revolução de 5 de outubro de 1910,
comandada pelo então Partido Republicano. E assim, o governo provisório, então
presidido por Teófilo Braga e com Afonso Costa como Ministro da Justiça e de cultos,
procurou reduzir a influência da religião católica na sociedade portuguesa, na busca pela
concretização do princípio fundamental da ideologia republicana, que é justamente a
laicização do Estado. E assim, através de produção legislativa que retomava diplomas
normativos relativos a temas contrários a religião católica como a da expulsão dos
jesuítas, a extinção das ordens religiosas, foram aprovados diversos decretos de cariz
anticlerical, com destaque para os que determinavam respeito obrigatório e impedindo
alteração dos feriados religiosos, a abolição do juramento religioso, a eliminação do
ensino da doutrina cristã nas escolas, ao divórcio e ao registo civil, paulatinamente
Portugal ia reduzindo a influência religiosa cristã em seu direito e, por conseguinte, em
sua sociedade. (ASSEMBLÉIA DA RAPÚBLICA, sem data)

Contudo, conforme mencionado, apenas em 20 de abril de 1911 que


haverá uma separação oficial entre Estado e Igreja com a chamada Lei da Separação do
Estado das Igrejas, que, em seu artigo 4º, explicitava essa nova era ao determinar que
“A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto; e por isso (…) serão
suprimidas nos orçamentos do Estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer
estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos”.
(ASSEMBLÉIA DA RAPÚBLICA, sem data)

Entretanto, uma influência de mais de um milênio e meio não se desfaz


apenas com a edição de leis, até porque, os valores cristãos católicos ainda são bastante
fortes em Portugal até os dias de hoje. E a Igreja Católica adota, ainda hoje, a teoria
concepcionista, que, “segundo essa vertente de pensamento, o nascituro adquiriria
personalidade jurídica desde a concepção, sendo, assim, considerado pessoa.”
(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 112). Para a Igreja “Toda a vida humana,
desde o momento da concepção até à morte, é sagrada, porque a pessoa humana foi
querida por si mesma e criada à imagem e semelhança do Deus vivo e santo.”
(VATICANO, 1992). E ainda sobre o direito à vida desde a concepção, vai afirmar que,
“Desde que foi concebida, a criança tem direito à vida. O aborto directo, isto é, querido
como fim ou como meio, é uma «prática infame, gravemente contrária à lei moral. A
Igreja pune com a pena canónica da excomunhão este delito contra a vida humana.”
(Idem)

Apesar disso, desde o advento do primeiro Código Civil de Portugal, a


chamada teoria natalista foi adotada, em detrimento da concepcionista. Cabral de
Moncada vai explicar essa questão ao afirmar que

“É evidente que, para um homem poder ser uma pessoa, um ser


susceptível de direitos, é necessário que existe já, no sentido de
ter uma existência independente e distinta da dos outros
indivíduos. Não lhe basta existir em embrião, in spe, muito
embora a existência do embrião seja já, fisiologicamente, uma
forma de vida. É-lhe necessário ter nascido. O homem só existe
para o direito, depois de ter nascido e chame-se, naturalmente,
nascer a facto de ele se separar do ventre materno, pois é só a
partir desse momento que o novo ser pode ser objeto de uma
proteção distinta daquela que tem por objeto a mãe. Nascer é,
portanto, separar-se, destacar-se inteiramente um organismo do
outro, exigindo-se que tal separação seja completa, por forma e
poder dizer-se que há duas vidas tornadas organicamente
independentes uma da outra. Ora, é isto o que, em harmonia
com a tradição romanista, se acha precisamente consignado na
doutrina do art. 6º do Código Civil2, onde expressamente se diz
que a capacidade jurídica se adquire pelo nascimento.”
(CABRAL DE MONCADA, 1932, p. 255-256)

E sobre o atual entendimento do Código Civil de Portugal de 1967, Mota


Pinto (2005, p.203) vai afirmar que

“Estabelece. no entanto, o artigo 66 n° 2, que os direitos reconhecidos


por lei aos nascituros dependem do seu nascimento. Quer dizer: apesar
de não terem ainda personalidade jurídica e, portanto. não serem
sujeitos de direito (art. 66, n° 1), reconhece a nossa lei aos nascituros
«direitos», embora dependentes do seu nascimento completo e com
vida (art. 66°, n° 2). isto é, dispensa tutela jurídica à situação. Até ao
nascimento estamos em face da problemática dos direitos sem sujeito
(2°0). Seja qual for a posição que se adopte quanto à respectiva
construção jurídica — direitos sem sujeito, estados de vinculação ou
retroacção da personalidade (adquirida no momento do nascimento)
ao momento da atribuição do direito —, é de admitir a tutela jurídica
do nascituro concebido, no que toca às lesões nele provocadas. Assim,
a título de exemplo, um filho poderá pedir indemnização pelas
deformações físicas ou psíquicas que sofreu ainda no ventre da mãe,
causadas por um medicamento ou qualquer acidente. O surgimento
deste direito de indemnização não impõe forçosamente a atribuição de
personalidade jurídica aos nascituros, estejam ou não concebidos. O
direito surge só no momento do nascimento, momento em que o dano
verdadeiramente se consuma, apesar de a acção, que o começa a
desencadear, ser anterior. Se o feto. »agredido» no ventre materno,
não chega a nascer com vida, ele não terá direito a qualquer
indemnização.”

E com o passar dos anos, os costumes e a própria tradição vão mudando,


pois como Heráclito falou, mencionado por Platão, “Heráclito diz algures que tudo está
em mudança e nada permanece imóvel, e, ao comparar o que existe com a corrente de

2
Artigo 6º do Código Civil de Portugal de 1867: “A capacidade jurídica adquire-se pelo nascimento;
mas o indivíduo, logo que é procreado, fica debaixo da proteção da lei, e tem-se por nascido pelos efeitos
declarados no presente código”. (PORTUGAL, 1867, p.35)
um rio, diz que se não poderia penetrar duas vezes no mesmo rio”. (PLATÃO apud
KIRK, GeoffreY.et all, 1994, p. 202). E essa ideia, é resumida pela frase atribuída ao próprio
Heréclito, a famosa panta rei, ou seja, tudo está em fluxo.

E assim, depois de mais de 40 anos, os portugueses optaram, via


referendo realizado em 2007, pela ampliação da interrupção voluntária da gestação.
Com o advento Lei n.º 16/2007, de 17 de abril de 2007, que alterou o Código Penal
português, a mulher passou a dispor do seu corpo de acordo com a sua autonomia da
vontade, sem precisar dizer o motivo pelo qual quer interromper sua gestação. Com
isso, o artigo 142 do CP passou a ter a seguinte redação:
Artigo 142.º(...) 1 - Não é punível a interrupção da gravidez
efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e
com o consentimento da mulher grávida, quando:
(...)
e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas
de gravidez. (PORTUGAL, 2007)

Entretanto, talvez a modificação mais interessante esteja no número 3, do


artigo 142 do CP português que ganhou a seguinte redação: “3 - Na situação prevista na
alínea e) do n.º 1, a certificação referida no número anterior circunscreve-se à
comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas.” (Idem). Isso quer dizer que
a mulher não precisa justificar nada ao médico pela sua escolha em realizar a
interrupção, mas simplesmente mostrar esse desejo, e o médico tem apenas o dever,
além de explicar o procedimento em si, verificar se a gravidez está dentro do prazo legal
de 10 semanas3.

E com isso, a partir da lei 16/2007 e do referendo popular, Portugal


passou assim a prever em seu ordenamento jurídico a interrupção da gestação, até a 10ª

3
Merece ser mencionado que o legislador optou por incluir o número 4 que assim versa: “4 - O
consentimento é prestado:(...) b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela
mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da
intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização
da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a
formação da sua decisão livre, consciente e responsável”. Portanto, a gestante terá apenas que refletir por
3 dias “a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o
acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável”. Essa
será a única exigência legal para a realização do procedimento, além das até 10 semanas de gestação. Não
há qualquer previsão de juízo moral, religioso, etc.
semana, por mera faculdade da gestante, sem que ela precise explicar os motivos de sua
decisão, apenas em razão de sua autonomia da vontade4.

Entretanto, as controvérsias não se findaram, e na primeira quinzena do


mês de maio de 2022, foi noticiado pela imprensa e mídia digital portuguesa que o
coordenador para reformas nos cuidados de saúde primários em Portugal, o Dr. João
Rodrigues, entregou uma proposta com novos critérios para avaliação dos profissionais
médicos de família. Esses novos critérios, propostos pela Administração Geral do
Sistema de Saúde (ACSS), validados pela Direção-Geral de Saúde (DGS) e pelo Grupo
de Apoio às Políticas de Saúde na área dos cuidados primários receberam enormes
críticas, tendo como principal novidade, avaliação dos médicos de família em razão do
número de interrupções voluntárias realizados pelo profissional. Em sua defesa, João
Rodrigues afirmou: “Se houver uma unidade que tem uma taxa de interrupções
voluntárias da gravidez acima da média tem de se questionar o que os profissionais
andam a fazer. Não são penalizados, (...), são premiados pelas boas práticas5”.

Realmente não há a palavra punição, contudo, por que o fato de ter mais
interrupções de gestações deveria ser utilizado como uma forma de avaliar
negativamente um médico se esse agora seria um direito fundamental da gestante? Será
isso que será objeto de reflexão a seguir.

3 – Aborto, hermenêutica e a impossibilidade da neutralidade

O aborto, ou interrupção da gestação, conforme mencionado, foi e


continua sendo uma questão ainda muito delicado, justamente por esbarrar em um dos
temas mais caros para a maioria das religiões, em especial a Católica Apostólica
Romana, que é a predominante em Portugal, que entendem que a vida começa no
momento da concepção. E sobre isso, a ciência também não tem um consenso, pois
alguns cientistas defendem tal teoria concepcionsta, outros a natalista, outros que a vida
começa com os batimentos cardíacos ou atividades mínimas cerebrais. E em razão dessa

44
Apesar de utilizar aqui a expressão autonomia da vontade, mister se faz um cuidado com tal expressão.
E esse cuidado se justifica justamente por ser uma expressão de grande relevância dentro do pensamento
kantiano. Contudo, a interrupção da gestação era, a princípio, algo criticado por Kant, por entender ser
impossível universalizar tal prática. E sendo assim, essa seria uma decisão equivocada, onde a gestante
usaria de forma equivocada a sua racionalidade. Sobre o tema KANT, Immanuel. A Metafísica dos
Costumes. Bauru, SP: EDIPRO, 2003.
5
COSTA, Rita; CARMO, Cátia. Médicos de família com utentes que fizeram aborto "não são
penalizados". Objetivo é premiar "boas práticas". Disponível em
https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/medicos-de-familia-com-utentes-que-fizeram-aborto-nao-sao-
penalizados-objetivo-e-premiar-boas-praticas-14844103.html . Acesso em 17.05.2022.
falta de consenso, cada ordenamento jurídico é obrigado a fazer uma escolha, conforme
mencionado que o ordenamento jurídico português fez anteriormente.

Entretanto, o fato de um ordenamento jurídico fazer uma escolha, não


quer dizer que todos concordarão com tal escolha. E isso reflete muitas vezes no dia a
dia de todos, justamente pelo fato de sermos influenciados e de influenciarmos uns aos
outros.

Kant, em sua Crítica da Razão Pura, procura encontrar os limites do


conhecimento humano, e para isso, faz sua “revolução copernicana”, objetivando
encontrar a razão pura, livre de qualquer influência empírica. E será essa ideia da
possibilidade da separação entre teoria e prática, razão e empiria, que existe na
modernidade desde Descartes, tem sua continuidade com Kant. Na ciência do Direito,
Hans Kelsen, seguindo essa tradição, procura pensar uma ciência jurídica pura. E assim,
há na sociedade até hoje uma crença na possibilidade de pureza, e consequentemente de
neutralidade.

No caso ora investigado, percebe-se nitidamente essa impossibilidade, de


neutralidade, onde alguns envolvidos, ao propor que fosses avaliados os médicos de
família em razão do número de interrupções de gestações que fizessem mostraram que
seus valores falaram mais alto do que uma prescrição legal. E isso ocorre porque
normalmente se ignora o que se convencionou chamar, na hermenêutica gadameriana de
pré-compreensão.

Contudo, Heidegger apresentou primeiro sua ideia de que o tão estudado


ser metafísico, pensado especialmente desde a filosofia socrático-platônica não existiria,
pois o que existiria realmente seria o dasein. A palavra Dasein é comumente traduzida
por existência. Em Ser e Tempo, traduz-se em geral, para as línguas neolatinas pela
expressão ‘ser aí’. Portanto, o dasein será o ser inserido no mundo, não um mundo
idealizado, mas o mundo real, o mundo vivido, pois será apenas esse o mundo existente.
Essa ideia de Heidegger, que foi uma espécie de aprofundamento da teoria de Husserl
chamada de fenomenologia, pode ser percebida como

“uma ‘volta às coisas mesmas’, isto e. aos fenômenos, aquilo que


aparece á consciência. que se dá como seu objeto intencional. O
conceito de intencionalidade ocupa um lugar central na
fenomenologia, definindo a própria consciência como intencional.
como voltada para o mundo: "toda consciência e consciência de
alguma coisa" (Husserl). Dessa forma. a fenomenologia pretende ao
mesmo tempo combater o empirismo e o psicologismo e superar a
oposição tradicional entre realismo e idealismo. fenomenologia pode
ser considerada unha das principais correntes filosóficas deste século”.
(JAPIASSU; MARCONDES, 2001, p.79)

Da mesma fenomenologia, porém, acrescida pela hermenêutica,


Heidegger – e mais tarde Gadamer – propõe chegar ao verdadeiramente filosófico pelo
exame dos elementos antecipatórios dos enunciados. Com isso, não se anulou o esforço
de Husserl, mas se acrescentou um aspecto sem o qual estavam omitidas as
possibilidades prévias de qualquer teoria do conhecimento. Era, portanto, necessário
apontar para uma pré-compreensão que já acompanha e antecipa nosso esforço de
conhecimento. Ela não se descobriria na consciência e na representação da tradição
moderna, mas na explicitação de nosso modo de compreender o que somos no mundo
de modo prático, compreendendo-nos em nosso modo-de-ser-aí e como somos,
compreendendo o ser sem o qual não temos acesso a nada, a ente algum. (STRECK,
2011, p. 23)

Um dos aspectos mais relevantes do pensamento de Gadamer foi


descortinar a existência de uma pré-compreensão, responsável, na maioria das vezes,
pelas decisões ou escolhas que tomamos ou fazemos em nossas vidas. Com isso,
Gadamer apresenta a necessária consciência de tal importância da pré-compreensão
para, conhecendo-a, perceber que ela, apesar de inerente a nossa existência, não pode
ser a responsável pela decisão que tomamos. Portanto, a pré-compreensão é um
existencial, ela é um fato, e não algo ruim em si e muito menos que possamos blindar a
interpretação de sua influência. Isso seria negar o próprio dasein, o ser inserido na
mundanidade.

A pré-compreensão será, portanto, essencial para ideia de círculo


hermenêutico, que tem sua ideia inicial em Heidegger e sendo depois mais desenvolvida
com Gadamer. Segundo Japiassú e Marcondes (2001, p.37), o círculo hermenêutico “é a
própria dificuldade do método hermenêutico ou interpretativo segundo a qual ‘toda
compreensão do mundo implica a compreensão da existência, e reciprocamente’
(Heidegger)” (Idem). Isso significa que apenas procuramos o que já encontramos, pois é
uma impossibilidade procurarmos algo que não procuramos ou conhecemos. O círculo
hermenêutico constitui a única garantia de rigor científico-metodológico que convém
aos fatos antropológicos. Essa antecipação, pode, e deve ser encarada como a verdadeira
mola do método hermenêutico. A circularidade não constitui um defeito do método,
mas um caráter do objeto, pois escancara a realidade e não tenta camufla-la. E com isso,
Heidegger vai entender “a estrutura de antecipação’ própria à ‘explicação’ constitui ‘a
expressão’ da ‘estrutura existencial de antecipação do próprio ser-aí’” (Idem). Essa
antecipação, ou seja, essa pré-compreensão, é inerente a vida, ao nosso existencial.
Portanto, “essa antecipação nada mais é do que a pré-compreensão a partir da qual
poderá desenvolver-se uma explicitação (e não uma explicação) verdadeiramente
compreensiva” (Idem).

E para não restar qualquer dúvida, a pré-compreensão não é o próprio


círculo hermenêutico, mas sim um dos seus componentes. Opta-se em não falar em
etapas justamente por não haver uma ordem estática nas coisas, como normalmente
estamos acostumados a pensar o mundo. E assim, junto da pré-compreensão teremos a
compreensão e a interpretação, que apesar de normalmente serem explicadas
separadamente ocorrem simultaneamente em nossa mente, justamente por não existir a
possibilidade de tais separações dentro de nossa mente. E o grande erro daqueles que
querem interpretar, pois interpretar é atribuir sentido, e atribuir sentido é viver estando
inserido no mundo, é acreditar que consegue viver sem estar permanentemente
influenciado por tudo que vive e já viveu.

E no caso em tela, percebe-se claramente que a ideia daqueles que


defenderam o uso do número de interrupções de gestações como um critério (negativo)
para aferir a qualidade no atendimento dos médicos de família está eivada de pré-
compreensões e, nesse caso, pré-conceitos que muito provavelmente aqueles que deram
tal ideia nem se aperceberam. E quando isso ocorre, a possibilidade de se fazer uma
escolha, uma atribuição de sentido, seja equivocada. Por isso mesmo que a
hermenêutica não é uma escolha simplesmente, mas uma necessidade imperiosa para se
conseguir não ser neutro, mas minimamente imparcial em análises, especialmente
científicas, onde uma postura viciada do cientista pode macular toda a pesquisa.

4 – A interrupção da gestação com um direito fundamental das mulheres a uma


resposta constitucionalmente correta
Em capítulos anteriores procurou-se apresentar um breve histórico da
interrupção da gestação, do aborto, em solo português, e, posteriormente, como a
hermenêutica e o conhecimento da pré-compreensão é essencial para vivermos,
interpretarmos e fazermos nossas escolhas conscientes.

No presente capítulo, procurar-se-á responder à pergunta objeto da


presente pesquisa, ou seja: o número de interrupções voluntárias de gestações pode ser
um critério de uma má avaliação do médico de família em Portugal? E claro que, para
se responder a presente pergunta, é imprescindível aferir se após o advento da lei
16/2007, a interrupção de gestação por escolha, independente de explicitação dos
motivos, se tornou realmente um direito fundamental da mulher.

A tarefa primordial de todo cientista é buscar a resposta correta para a


situação problema de sua pesquisa. E justamente em razão disso, é absolutamente
necessário um mínimo de imparcialidade, para que a pré-compreensão não macule essa
busca pela resposta certa. Contudo, deve-se frisar que a resposta certa aqui pesquisada
não é a resposta universalmente correta como idealizou Kant, e muito menos como
pensou Platão em sua teoria das formas e Aristóteles em seus universais, ou seja, algo
que foi, é e sempre será, algo com uma constância, com uma ordem permanente e
subjacente ao fluxo da empiria, da experiência.

E assim, quando estamos a falar de uma discussão no âmbito da ciência


do Direito dentro de um Estado de Direito, ou, como é preferível mencionar, dentro de
um Estado Constitucional, a busca pela resposta certa será a busca pela resposta
constitucionalmente mais adequada6. Portanto, como Portugal é um Estado
Constitucional, independente do gosto ou preferência de qualquer pesquisador, a busca
deverá ser sempre pela resposta constitucionalmente mais adequada para responder à
situação problema objeto da presente pesquisa.

E sendo assim, o artigo primeiro da carta constitucional portuguesa e


1976 vai afirmar que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da
pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade
livre, justa e solidária” (PORTUGAL, 1976). Portanto, Portugal, assim como
praticamente todas as constituições que vieram após a 2ª Guerra Mundial optaram por
elencar expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana como o grande norte

6
Sobre o tema ver STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. São Paulo: 2011
hermenêutico a ser seguido por seus ordenamentos jurídicos, e disso nenhum intérprete
poderá se furtar a seguir.

No artigo nono da constituição de Portugal, o Constituinte Originário


optou por elencar uma série de tarefas denominadas de fundamentais para o Estado
português. Dentre elas, destaca-se a prevista na alínea b), que é a de “Garantir os
direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito
democrático;” e também o previsto na alínea d), ou seja, de “promover o bem-estar e a
qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses (...)” (PORTUGAL,
1976).

E a para dar concretude as promessas constitucionais de garantir direitos


e liberdades fundamentais e de promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, o
mesmo constituinte deixou expressa a obrigação do Estado com a saúde quando afirmou
no artigo 64º que “1. Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e
promover.” No mesmo artigo, no número 2, ainda deixou claro que “o direito à
proteção da saúde é realizado: a) Através de um serviço nacional de saúde universal e
geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos,
tendencialmente gratuito”. Por fim, no número 3, o constituinte reafirmou a
responsabilidade do Estado ao afirmar que incumbe a ele “assegurar o direito à
proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado: a) Garantir o acesso de todos
os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina
preventiva, curativa e de reabilitação; b) Garantir uma racional e eficiente cobertura
de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde; (...)” (PORTUGAL, 1976)

Se não há qualquer dúvida de que compete ao Estado português garantir


a saúde e bem-estar do seu cidadão, o liberalismo dos modernos legou um respeito
enorme as individualidades, e por conseguinte a ideia de que não pode existir apenas um
único projeto individual de felicidade. Aliás, a grande e mais importante função de
qualquer Estado é ser o garantidor dos meios pelos quais seus cidadãos possam
construir seus projetos individuais de felicidade, sem qualquer imposição cultural,
religiosa, etc., dentro obviamente dos limites constitucionais e legais pré-estabelecidos.

E assim, o constituinte português afirmou em seu artigo 67, alínea d) que


lhe cabe ser o garantidor,
“no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento
familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e aos
meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas
que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade
conscientes”. (PORTUGAL, 1976)

A interrupção de uma gestação sempre será algo ruim, traumático para a


gestante. Ninguém em sã consciência pode acreditar que qualquer gestante tome essa
decisão feliz, que seja algo que ela sempre sonhou para a sua vida. Quando a mulher
toma a decisão que não quer levar sua gestação até o final, que não tem condições de
exercer uma maternidade consciente, merece todo o respeito do Estado e da sociedade.
Obrigar uma mulher a levar sua gestação até o final contra a sua vontade, pode ser
comparada a uma verdadeira tortura, uma ingerência grande na vida privada e no corpo
da mulher. Portanto, se uma mulher afirma peremptoriamente que não quer levar sua
gestação ao final, a constituição portuguesa, em seu artigo 25, vai proibir que a mulher
sofra abalo em sua integridade física, quando no número 1 vai afirmar que “a
integridade moral e física das pessoas é inviolável” como também veda que essa
mulher sofra tortura, seja física ou psicológica, de acordo com o número 2 que
determina que “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis,
degradantes ou desumanos.”

E com o passar dos anos, a sociedade portuguesa passou a ver a


interrupção da gestação de forma diferente. E isso é absolutamente natural, pois como já
foi mencionado, a vida não é estática, muito pelo contrário, a vida é justamente como
ensinou o velho Heráclito, ou seja, panta rei, tudo está em fluxo.

E assim, em 2007, após um referendo nacional, a mulher passou a poder


realizar o aborto sem qualquer necessidade de informar o porquê não quer, apenas que
não quer, e, obedecer os trâmites legais previstos. Aliás, nada mais relevante para dar
legitimidade a uma opção tão delicada quanto o aborto como a realização de um
referendo, pois está de acordo com o espírito do artigo 9º, alínea c) da constituição que
afirma que é obrigação do Estado “defender a democracia política, assegurar e
incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas
nacionais”. (Portugal, 1976)
Logo, após o advento da lei 16/2007 em que a mulher passou a ter o
direito de realizar a interrupção da gestação por um simples ato de sua vontade, pode-se
considerar que esse seu direito se tornou um verdadeiro direito fundamental da mulher,
amparado pelo artigo 64 da constituição portuguesa.

Portanto, se a interrupção da gestação passou a ser um direito


fundamental da mulher, não cabe qualquer juízo de valor por parte dos agentes públicos.
Quando há uma proposta de avaliar negativamente os médicos da família que, por um
motivo qualquer, possuem um percentual maior de números de interrupções da gestação
é, na verdade, uma valoração moral, onde a pré-compreensão acabou por determinar
essa visão equivocada.

Parece não haver grande dúvida de que a resposta constitucionalmente


mais adequada ao presente caso é que, sendo um direito fundamental da mulher o
direito à realizar a interrupção de sua gestação, seria absolutamente inconstitucional
qualquer proposta de avaliar negativamente médicos de família que, por um motivo
qualquer, realizem um número maior de abortos. A avaliação apenas poderia ser em
relação aos requisitos legais para a realização do aborto, ou seja, se o médico de família
está a realiza-los da forma prescrita em lei ou não.

Portanto, não há qualquer outra possibilidade hermenêutica para o


presente caso que não seja o de reconhecer o aborto como um direito fundamental da
mulher e de entender por inconstitucional qualquer medida punitiva ou de valoração
negativa aos médicos que mais realizam abortos, justamente por ser esse um direito de
toda e qualquer mulher que assim desejar. E isso não é incentivar que ocorram abortos,
mas trata-lo como uma questão de saúde pública, de tratar os iguais de forma igual, pois
mulheres ricas sempre fizeram abortos em boas clínicas e mulheres pobres em clinicas
precárias. Com o advento da lei 16/2007, todas as mulheres serão tratadas da mesma
forma, ou seja, se a mulher quiser continuar com sua gestação, continuará, mas se optar
pela interrupção da gestação, o Estado garantirá esse seu direito. E essa ideia vem bem
ao encontro do pensamento nietzschiano, ou seja, de que somos heterogêneos, e assim
devemos ser tratados. Com isso, cada mulher deve ter a liberdade de dispor do seu
corpo como bem entender, sem interferência do Estado. Cada mulher deverá procurar a
construir seu projeto de felicidade, que para umas será a de levar ao final a gestação e
para outras será interrompe-la.
5 – Considerações Finais

A presente pesquisa teve por objetivo verificar se o ato administrativo


que objetivava avaliar negativamente médicos que tivessem uma média de abortos
maior do que uma média nacional estaria ou não de acordo com o sentido correto do
texto da constituição portuguesa.

Conforme foi mencionado no capítulo 2 da presente pesquisa, Portugal


passou por uma profunda modificação nos últimos anos, onde deixou de ser um Estado
com uma sociedade bastante conservadora e centrada nos valores cristãos católicos para
uma sociedade progressista em termos de costumes.

Apesar da discussão quanto a origem da vida ainda existir, onde


natalistas e concepcionistas ainda disputam quem estaria certo, o direito português
garantiu alguns poucos direitos, pois optou que a personalidade jurídica apenas se
iniciaria com o nascimento com vida. Contudo, apenas em 2007 foi que o Assembleia
da República votou uma lei que, posteriormente, passou pelo Referendo Popular, e
passou a permitir o aborto além das antigas permissões resultante de estupro ou quando
oferecia risco à gestante. Agora, o abordo poderia ser feito sem a necessidade de nada
em especial, bastando para tal que a gestante expressasse sua vontade e, posteriormente,
obedecesse algumas exigências legais como assinar documento a expressar essa
vontade, aguardar três dias, dentre outros.

Assim, com o advento então da lei 16/2007, o aborto foi então não
apenas aceito, mas se consubstanciou em um verdadeiro direito fundamental da mulher.
E assim, o Estado se tornou o responsável por dar concretude a esse direito
fundamental. E isso ocorre por força constitucional, pois o Estado é o garantidor do
acesso ao sistema de saúde, independente de sua condição econômica. E sendo assim,
após o início da vigência da lei 16/2007, o Estado português teve que se adequar a essa
nova realidade, e com isso, prepara os hospitais públicos para que tivessem condições
para a realização das interrupções das gestações.

Contudo, valores morais arraigados não são transformados da noite para


o dia, e muito menos por apenas o advento de uma lei, justamente pelo fato de sermos
fruto da nossa historicidade. E além disso, por tratar de um assunto tão importante para
todas as religiões, muitos podem não ter concordado com o resultado do referendo
popular, e com isso, em sua pré-compreensão, a decisão de maioria foi tomada de forma
equivocada.

E assim, como um agente público não pode se furtar a obedecer uma lei,
com exceção da objeção de consciência, ou seja, por questões de foro íntimo, médicos e
demais profissionais da saúde podem se negar a realizar o aborto, e com isso outros
profissionais serão alocados para realizar, ao que parece, o coordenador para reformas
nos cuidados de saúde primários em Portugal, o Dr. João Rodrigues, fez a proposta de
incluir o critério de número de abortos realizados em uma região para avaliar os
médicos de família sob forte influência de sua pré-compreensão, ao que parece.

Toda a presente pesquisa procurou refletir sobre essa decisão, que foi
revogada após inúmeras críticas, de incluir esse critério do número de abortos para
avaliar os médicos de família. Será que a inclusão, independente da sua revogação, seria
constitucional e legal?

Conforme mencionado, se o direito ao aborto foi permitido por lei,


referendada por vontade popular, e não existindo nada na constituição que proibisse, tal
direito ao aborto passou a ser um verdadeiro direito de toda mulher, independente de
alguns concordarem ou não com a decisão popular de permitir a interrupção da gestação
por decisão da gestante.

Logo, a hipótese inicial, de que o número de interrupções voluntárias não


podem ser critério de avaliação dos médicos de família em Portugal se tornou a resposta
constitucionalmente mais adequada para a presente pesquisa.

Portanto, é sempre importante reafirmar que não se está a defender o


aborto, mas simplesmente pensar que cada um deve ter o direito de construir o seu
projeto individual de felicidade. Não existe uma receita que deva ser utilizada
universalmente para uma vida feliz. Somos absolutamente heterogêneos. E como
Nietzsche ensinou, devemos encontrar os nossos próprios valores, encontrar o que
aumenta a nossa vontade de potência, e não aceitar a vida e os valores que querem nos
impor. E assim, compete a cada mulher levar adiante ou não a sua gestação, sem uma
imposição da sociedade ou do Estado. E sendo assim, punir um médico simplesmente
pelas escolhas de suas pacientes viola impreterivelmente o disposto na lei 16/2007 bem
como a constituição portuguesa.
6 – Bibliografia

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