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Thiago Rodrigues-Pereira1
Resumo
Abstract
The present research aims to analyze whether an administrative act could evaluate a
family doctor in Portugal if the number of abortions in his area of practice was higher
than a national percentage average, even though the interruption of pregnancy was
legalized and became a fundamental right of women. The hypothesis is that such an act
is unconstitutional and has overstepped its bounds. The theoretical framework will be
the thought of Nietzsche and Heidegger and the research will be bibliographic-
documentary, qualitative, basic, descriptive-explanatory, from the phenomenological
and genealogical methodologies.
1
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ; Pós-Doutor em Direitos
Humanos pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP; Pós-doutor em Gestão do trabalho para a
qualidade do ambiente construído pela Universidade Santa Úrsula – USU; Investigador Integrado ao
Centro de Investigação e Desenvolvimento Ratio Legis da Universidade Autónoma de Lisboa - UAL;
Professor Associado na UAL. E-MAIL: prof.thiagorp@gmail.com
1 – Introdução
A resposta, salvo algumas poucas exceções, até 2007, era sim. Contudo,
esse ano marcou uma reviravolta no direito, nas relações sociais e na autonomia da
vontade da mulher. A partir de então, a mulher passou a poder decidir que simplesmente
não quer levar ao final uma gestação não planejada, sem precisar explicitar qualquer
motivo pelo qual tomou essa decisão, apenas por não querer, obedecendo, por óbvio, os
trâmites legais que eram exigidos.
2
Artigo 6º do Código Civil de Portugal de 1867: “A capacidade jurídica adquire-se pelo nascimento;
mas o indivíduo, logo que é procreado, fica debaixo da proteção da lei, e tem-se por nascido pelos efeitos
declarados no presente código”. (PORTUGAL, 1867, p.35)
um rio, diz que se não poderia penetrar duas vezes no mesmo rio”. (PLATÃO apud
KIRK, GeoffreY.et all, 1994, p. 202). E essa ideia, é resumida pela frase atribuída ao próprio
Heréclito, a famosa panta rei, ou seja, tudo está em fluxo.
3
Merece ser mencionado que o legislador optou por incluir o número 4 que assim versa: “4 - O
consentimento é prestado:(...) b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela
mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da
intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização
da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a
formação da sua decisão livre, consciente e responsável”. Portanto, a gestante terá apenas que refletir por
3 dias “a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o
acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável”. Essa
será a única exigência legal para a realização do procedimento, além das até 10 semanas de gestação. Não
há qualquer previsão de juízo moral, religioso, etc.
semana, por mera faculdade da gestante, sem que ela precise explicar os motivos de sua
decisão, apenas em razão de sua autonomia da vontade4.
Realmente não há a palavra punição, contudo, por que o fato de ter mais
interrupções de gestações deveria ser utilizado como uma forma de avaliar
negativamente um médico se esse agora seria um direito fundamental da gestante? Será
isso que será objeto de reflexão a seguir.
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Apesar de utilizar aqui a expressão autonomia da vontade, mister se faz um cuidado com tal expressão.
E esse cuidado se justifica justamente por ser uma expressão de grande relevância dentro do pensamento
kantiano. Contudo, a interrupção da gestação era, a princípio, algo criticado por Kant, por entender ser
impossível universalizar tal prática. E sendo assim, essa seria uma decisão equivocada, onde a gestante
usaria de forma equivocada a sua racionalidade. Sobre o tema KANT, Immanuel. A Metafísica dos
Costumes. Bauru, SP: EDIPRO, 2003.
5
COSTA, Rita; CARMO, Cátia. Médicos de família com utentes que fizeram aborto "não são
penalizados". Objetivo é premiar "boas práticas". Disponível em
https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/medicos-de-familia-com-utentes-que-fizeram-aborto-nao-sao-
penalizados-objetivo-e-premiar-boas-praticas-14844103.html . Acesso em 17.05.2022.
falta de consenso, cada ordenamento jurídico é obrigado a fazer uma escolha, conforme
mencionado que o ordenamento jurídico português fez anteriormente.
6
Sobre o tema ver STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. São Paulo: 2011
hermenêutico a ser seguido por seus ordenamentos jurídicos, e disso nenhum intérprete
poderá se furtar a seguir.
Assim, com o advento então da lei 16/2007, o aborto foi então não
apenas aceito, mas se consubstanciou em um verdadeiro direito fundamental da mulher.
E assim, o Estado se tornou o responsável por dar concretude a esse direito
fundamental. E isso ocorre por força constitucional, pois o Estado é o garantidor do
acesso ao sistema de saúde, independente de sua condição econômica. E sendo assim,
após o início da vigência da lei 16/2007, o Estado português teve que se adequar a essa
nova realidade, e com isso, prepara os hospitais públicos para que tivessem condições
para a realização das interrupções das gestações.
E assim, como um agente público não pode se furtar a obedecer uma lei,
com exceção da objeção de consciência, ou seja, por questões de foro íntimo, médicos e
demais profissionais da saúde podem se negar a realizar o aborto, e com isso outros
profissionais serão alocados para realizar, ao que parece, o coordenador para reformas
nos cuidados de saúde primários em Portugal, o Dr. João Rodrigues, fez a proposta de
incluir o critério de número de abortos realizados em uma região para avaliar os
médicos de família sob forte influência de sua pré-compreensão, ao que parece.
Toda a presente pesquisa procurou refletir sobre essa decisão, que foi
revogada após inúmeras críticas, de incluir esse critério do número de abortos para
avaliar os médicos de família. Será que a inclusão, independente da sua revogação, seria
constitucional e legal?
MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil. 4ª ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2005.
PORTUGAL. Código civil, 1867 annot. José Dias Ferreira. Lisboa: Impr. Nacional
1870-1876, v1. Disponível em https://purl.pt/12145/4/sc-2282-v/sc-2282-v_item4/sc-
2282-v_PDF/sc-2282-v_PDF_24-C-R0150/sc-2282-v_0000_capa-capa_t24-C-
R0150.pdf ; Acesso em 22.08.2022.