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FACULDADE DE DIREITO
FORTALEZA
2021
JOÃO VICTOR BARROS DANTAS
FORTALEZA
2021
(ficha catalográfica)
JOÃO VICTOR BARROS DANTAS
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
________________________________________
________________________________________
(José Régio)
RESUMO
Figura 3 - Correio Paulistano noticia, em 1950, episódio que levou país a ter primeira lei
contra o racismo……………………………………………………………………………… 24
CP Código Penal
HC Habeas Corpus
MP Ministério Público
1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………....12
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………. 63
REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………….. 64
1 INTRODUÇÃO
“Ela falou pra mim que, assim que terminasse o serviço, ficasse no quartinho. Não
era pra eu conversar com ninguém. Que lugar de negro é lá no quartinho. E que ela não queria
eu conversando pelos corredores com ninguém”.1 “Não é coisa de pele, fere a alma”.2 “Uma
dor no coração que eu não queria mais existir depois que eu ouvi aquilo. Não queria mais
existir pra escutar essas coisas de ninguém, entendeu?”.
É fato notório que a discrimanação racial constitui uma das mazelas que mais
assolam a população negra em todo o mundo. No Brasil, o mito da democracia racial,
defendida por Gilberto Freyre, na obra Casa Grande & Senzala, em 1933, fomentou no
imaginário popular a ideia de que brancos e negros viviam em perfeita harmonia no país,
tendo como base processo miscigenatório por que passou a sociedade brasileira no período
colonial.
Em verdade, ser negro ou negra no Brasil significa ter uma expectativa de vida
reduzida, piores salários, menor escolaridade, dificuldade de acesso a serviços públicos de
saúde, além de maiores chances de ser preso, morto ou sofrer qualquer tipo de abuso ou
violência.
1
EPTV2 E G1 SÃO CARLOS E ARARAQUARA. Ministério Público denuncia servidora da Prefeitura de São
Carlos por injúria racial. 2020. São Paulo. Disponível em:
<https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2019/10/16/ministerio-publico-denuncia-servidora-da-prefeit
ura-de-sao-carlos-por-injuria-racial.ghtml> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
2
ACIDADEON. "Não é coisa de pele, fere a alma", diz funcionária que sofreu injúria racial de servidora
comissionada. São Paulo. 2020. Disponível em:
<https://www.acidadeon.com/saocarlos/economia/NOT,0,0,1555947,nao-e-coisa-de-pele-fere-a-alma-diz-funcio
naria-que-sofreu-racismo-de-servidora-comissionada.aspx> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
no Código de Processo Penal (CPP), que disciplinou, pela primeira vez em lei ordinária, o
ANPP, antes regulamentado apenas em resolução do Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP).
Ocorre que, nos termo da lei, ao menos em tese, esse instrumento negocial pode
ser formalizado também nas infrações penais resultantes do preconceito de raça e de cor de
que trata a Lei 7.716/89 e no crime de injúria qualificada pelo preconceito, ou injúria racial,
introduzida ao Código Penal Brasileiro através da Lei n. 9.459/97, alterada pela Lei n.
10.741/03, por serem crimes praticados sem violência ou grave ameaça, cujo preceito
secundário impõe penas que variam entre 1(um) a 5 (cinco) anos de reclusão.
A “Lei Anticrime” nada dispôs sobre a formalização do ANPP nos crimes raciais,
mas tratou de excluir, expressamente, do plano de incidência do acordo, os crimes praticados
no âmbito de violência doméstica ou familiar e os cometidos contra a mulher por razões da
condição de sexo feminino. Também o Enunciado n. 22 do Conselho Nacional de
Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo
Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM) veda a celebração do
ANPP no caso dos crimes hediondos e equiparados, sob o fundamento de que, nesses casos, a
medida é insuficiente para punir e desestimular o cometimento dos crimes.
Registre-se, entretanto, que, por questões metodológicas, para mais bem delimitar
o objeto de pesquisa, este trabalho foca a situação específica da população negra e o
preconceito de raça ou de cor no Brasil. Nada obstante, por óbvio que as disposições e
conclusões deste estudo são também extensíveis, no que couber, a todos os demais grupos
vulneráveis a que a lei busca tutelar.
Por fim, esclareça-se que este trabalho monográfico não pretende esgotar a
discussão acerca da questão do preconceito e da discriminação racial no Brasil, que é deveras
complexa. Mas, de alguma forma, ainda que no plano teórico, contribuir para a melhoria da
condição social dos sujeitos que compõem determinados grupos sociais minoritários e que,
em algum momento, em razão do preconceito, já se sentiram excluídos, perdidos, e/ou
deslocados.
2 OS CRIMES DE RACISMO E INJÚRIA RACIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
[...] seu significado sempre esteve de alguma forma ligado ao ato de estabelecer
classificações, primeiro, entre plantas e animais e, mais tarde, entre seres humanos
[...] Seu sentido está inevitavelmente atrelado às circunstâncias históricas em que é
utilizado. Por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal
sorte que se trata de um conceito relacional e histórico.3
Nos dias atuais, entretanto, a definição de raça não mais se restringe a um critério
puramente biológico. Afinal, tanto a antropologia, quanto a própria biologia já demonstraram
que não existem características fisiológicas e/ou culturais capazes de justificar uma
estratificação de seres humanos em castas ou linhagens.
3
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 18.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo
meramente político-social.
(Habeas Corpus n. 82424/RS - SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno,
julgado em 17/09/2003, DJe 19/03/2004).4 (Grifou-se)
4
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 82424/RS. Relator Min. Maurício Corrêa. Disponível
em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur96610/false> Acesso em: 31 de julho de 2021.
5
Ibidem, p. 2.
6
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p.7.
7
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Ibidem. Op. Cit. p. 22.
8
BRASIL. Decreto Legislativo n. 01/2021, de 19 de Fevereiro de 2021. Aprova o texto da Convenção
Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na
Guatemala, por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos,
em 5 de junho de 2013. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-legislativo-304416057>
Acesso em 09 de agosto de 2021.
Depreende-se, portanto, que o racismo tem por principal finalidade instituir e
manter uma espécie de regime de hierarquia racial, no qual uma determinada raça,
pretensamente superior, se sobrepõe a outra, sujeitando-a a um tratamento discriminatório e
inferiorizante que só aprofunda desigualdades.
O racismo estrutural ou sistêmico, por sua vez, na lição de Silvio Almeida, advém
da própria estrutura social, da maneira com que normalmente são conduzidas as relações
políticas, econômicas ou jurídicas na sociedade. 11 Por essa razão, ou seja, por estar o racismo
tão imbricado nas relações sociais, que, em muitos casos, ele não chega a ser sequer
considerado uma anomalia ou um problema social. Para André de Carvalho Ramos, o racismo
estrutural ou sistêmico:
Dessa forma, quando se diz que o racismo é estrutural, o que se está afirmando é
que o racismo é um processo naturalizado tanto pelo corpo social, quanto pelas instituições.
Nesse sentido, a discriminação racial não se manifesta apenas através de atitudes humanas
isoladas, mas também por ações institucionais.
9
Ibidem. p. 21.
10
FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980. p. 36.
11
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Ibidem. Op. Cit. p. 33.
12
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 437.
Figura 01 - Exemplar da tirinha “Armandinho”, personagem criado pelo ilustrador Alexandre Beck
Fonte: https://www.facebook.com/tirasarmandinho
[...] detêm o poder os grupos que exercem o domínio sobre a organização política e
econômica da sociedade. Entretanto, a manutenção desse poder adquirido depende
da capacidade do grupo dominante de institucionalizar seus interesses, impondo a
toda sociedade regras, padrões de condutas e modos de racionalidade que tornem
“normal” e “natural” o seu domínio. No caso do racismo institucional, o domínio
se dá com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça,
que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com
que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado
grupo tornem-se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade. Assim, o
domínio de homens brancos em instituições públicas – o legislativo, o judiciário, o
ministério público, reitorias de universidades etc. – e instituições privadas – por
13
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Ibidem. Op. Cit. p. 31.
14
CARMICHAEL, S.; HAMILTON, C. Black power: the politics of liberation in America. New York:
Vintage, 1967. Livro digital.
15
Em tradução livre: "estrutura de poder branca".
16
Em tradução livre: “As decisões que afetam a vida dos negros sempre foram tomadas por brancos”.
exemplo, diretoria de empresas – depende, em primeiro lugar, da existência de
regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou
mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a
desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado
por homens brancos.17 (Grifou-se)
Constata-se, portanto, que o racismo pode ser praticado não só por indivíduos ou
grupos de indivíduos, mas também por organizações e instituições, que, no desempenho de
suas atividades, podem, ainda que de forma involuntária, discriminar, segregar ou mesmo
criar entraves ao pleno exercício de direitos por determinados grupos raciais.
17
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Ibidem. Op. Cit. p. 27.
18
LAURIA, Mariano Paganini. Capítulo 10 - Preconceito de Raça ou de Cor - Lei 7347/1985. In: Rogério
Sanches Cunha; Ronaldo Batista Pinto e Renee do Ó Souza. (Org.). Leis Penais Especiais Comentadas Artigo
por Artigo. 01 ed. Salvador: Juspodium, 2020, p. 534.
II. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida
pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro
tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes
a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo l.l, ou as coloca
em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo
ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos
Humanos.
[...] tal teoria consiste na ideia de que toda e qualquer prática empresarial, política
governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda
que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser
condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em
consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência
especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas.19
Frise-se, contudo, que nem toda discriminação possui um viés negativo. Afinal, as
ações afirmativas, por exemplo, são uma espécie de discriminação denominada positiva, na
medida em que visam à correção das desigualdades raciais e à promoção da igualdade de
oportunidades, através de programas e medidas especiais adotadas pelo Estado e pela
iniciativa privada, de acordo com a Lei n. 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial).20
19
BARBOSA, Joaquim. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade – O Direito como
instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 24.
20
BRASIL. Lei n. 12.288, de 20 de Julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos
7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de
novembro de 2003. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm> Acesso em 21 de agosto de 2021.
21
LAURIA, Mariano Paganini. Ibidem. Op. Cit. p. 507.
compartilham aspectos históricos, geográficos, linguísticos, religiosos e culturais; tais como
judeus, indígenas e árabes.
A seguir, serão analisados os tipos penais definidos na Lei 7.716/89, bem como do
crime de injúria qualificada pelo preconceito ou injúria racial, de que trata o art. 140, § 3º, do
Código Penal Brasileiro.
O Brasil foi o país que mais recebeu africanos vítimas do tráfico negreiro no
mundo. Estima-se que, entre os anos de 1501 e 1866, algo em torno de 5 (cinco) milhões de
negros foram transportados de navio, em condições subumanas, para serem escravizados no
país.22 O Estado brasileiro foi também o último do continente americano a abolir a escravidão.
22
SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015, p. 81.
23
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Manda observar a Constituição Politica do Imperio,
offerecida e jurada por Sua Magestade o Imperador. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm> Acesso em 20 de agosto de 2021.
24
BRASIL. Lei de 16 de Dezembro de 1830. Manda executar o Codigo Criminal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm> Acesso em 20 de agosto de 2021.
processado criminalmente por assassinar uma de suas escravas, Thereza, com um chute na
cabeça. Na época, o acusado, após absolvição pelo Tribunal do Júri, escreveu um livro no
qual narrou os fatos e as razões que o levaram a cometer o crime:
Mais adiante, em 1850, sob forte pressão do Reino Unido pela extinção da
escravatura, o Estado brasileiro aprovou a Lei n. 581, intitulada “Lei Eusébio de Queiroz”26,
que passou a proibir o tráfico de escravos no país. Posteriormente, em 1871, editou a Lei n.
2.040, chamada “Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco”27, que tornou livres os filhos de
escravos que viessem a nascer após a sua entrada em vigor. Na mesma direção, aprovada em
1885, a Lei n. 3.270, denominada “Lei dos Sexagenários” ou “Lei Saraiva-Cotegipe”28, previu
que o escravo ou “elemento servil” (expressão empregada pela lei) seria libertado tão logo
completasse 60 anos de idade.
25
SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e de discriminação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
livro digital.
26
BRASIL. Lei n. 581, de 4 de Setembro de 1850. Estabelece medidas para a repressão do trafico de africanos
neste Imperio. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim581.htm> Acesso em 20 de
agosto de 2021.
27
BRASIL. Lei n. 2.040, de 28 de Setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que
nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e
tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm> Acesso em 20 de agosto de 2021.
28
BRASIL. Lei n. 3.270, de 28 de Setembro de 1885. Regula a extincção gradual do elemento servil. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3270.htm> Acesso em 20 de agosto de 2021.
29
BRASIL. Lei n. 3.353, de 13 de Maio de 1888. Declara extinta a escravidão no Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim3353.htm> Acesso em 20 de agosto de 2021.
Figura 02 - Versão digitalizada do decreto que aboliu a escravatura no Brasil
Esse período histórico, entretanto, não é tão festejado por setores do movimento
negro. Afinal, à época, não havia qualquer política pública que pudesse de algum modo
amparar as vítimas recém libertas do regime escravocrata. A própria lei que os alforriou
nenhuma garantia adicional instituiu. Em verdade, muitos, para sobreviver, permaneceram
submetidos a condições de trabalho degradantes, sem quaisquer chances de ascender
socialmente ou mesmo de exercer plenamente a própria autonomia.
Assim como a “Lei Áurea”, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil30,
promulgado em 11 de outubro de 1890, nada dispôs sobre a criminalização de condutas
relacionadas ao preconceito e à discriminação racial. Pelo contrário, referido diploma
30
BRASIL. Decreto n. 847, de 11 de Outubro de 1890. Promulga o Codigo Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm> Acesso em 20 de agosto de 2021.
normativo tornou contravenção penal a prática da capoeira (Art. 402)31, uma das principais
expressões da cultura afro-brasileira.
31
Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela
denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão
corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum
mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante
pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
32
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em: 04 de julho de 2021.
33
BRASIL. Lei n. 1.390, de 3 de Julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a prática de atos
resultantes de preconceitos de raça ou de côr. Disponível em :
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm> Acesso em: 20 de agosto de 2021.
34
WESTIN, RICARDO. Brasil criou 1º lei antirracismo após hotel em SP negar hospedagem a dançarina
negra americana. Agência Senado, Arquivo S. Edição n. 69. 2020. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/brasil-criou-1a-lei-antirracismo-apos-hotel-em-sp-neg
ar-hospedagem-a-dancarina-negra-americana> Acesso em: 20 de agosto de 2021.
Figura 03 - Correio Paulistano noticia, em 1950, episódio que levou país a ter primeira lei contra o racismo
Fonte: Reportagem de Ricardo Westin, para o Arquivo S, parceria entre a Agência Senado e o Arquivo Senado,
publicada em 6/7/2020
A Lei 1.390/51 definiu certos atos como contravenções penais quando praticados
em razão de preconceito de raça ou de cor. Posteriormente, em 1985, a Lei n. 7.43735 conferiu
a ela nova redação, para incluir em seu rol de contravenções também a prática de atos
resultantes de preconceito de sexo ou estado civil.
Dentre as condutas punidas pela “Lei Afonso Arinos”, estavam negar hospedagem
em hotéis, pensionatos ou em estabelecimento congênere; recusar a venda de mercadorias ou
atendimento a clientes; impedir a entrada em locais públicos; negar inscrição de aluno em
estabelecimento de ensino; obstar o acesso a cargo público ou ao serviço das forças armadas;
e recusar emprego ou trabalho.36
35
BRASIL. Lei n. 7.437, de 20 de Dezembro de 1985. Inclui, entre as contravenções penais a prática de atos
resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil, dando nova redação à Lei n. 1.390, de 3 de
julho de 1951 - Lei Afonso Arinos. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7437.htm>
Acesso em: 20 de agosto de 2021.
36
Nos termos dos arts. 2º a 7º da Lei 1.390/51.
estado civil. Se a prática de qualquer destes atos decorrer de motivação idônea diversa, não
haverá se falar na ocorrência de crime, tampouco na incidência da lei sub examine.
No âmbito da citada lei, as penas cominadas são de prisão simples, variando entre
15 (quinze) dias a 1 (um) ano, e multa, aplicada de forma cumulativa ou alternativa, conforme
o caso. Há também previsão de perda de cargo público37 e, em caso de reincidência em
estabelecimentos privados, suspensão do seu funcionamento por prazo não superior a 3 (três)
meses.38
37
Nos termos do art. 5º, par. único, e arts. 6º e 7º da Lei 1.390/51.
38
Nos termos do art. 8º da Lei 1.390/51.
39
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm#adct>. Acesso em: 04 de julho de 2021.
40
BRASIL. Lei n. 7.716, de 5 de Janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm> Acesso em: 20 de agosto de 2021.
41
Nos termos do art. 1º da Lei 7.716/89.
42
A “Lei Afonso Arinos” foi revogada apenas parcialmente, vigorando ainda no que diz respeito à discriminação
por sexo ou estado civil.
Todos os tipos penais previstos na Lei n. 7.716/89 são de ação penal pública
incondicionada e detêm como bens jurídicos tutelados a dignidade da pessoa humana e o
direito à igualdade, assegurados, respectivamente, pelos arts. 1º, III, e 5º, caput, da CF. Por
serem classificados como delitos comuns, qualquer pessoa pode cometê-los, incluindo
integrantes do próprio grupo vulnerável a que a lei pretende amparar.
São também considerados crimes formais, pois não exigem resultado naturalístico
para a sua consumação. O elemento subjetivo é o dolo. Isto é, a vontade livre e consciente de
praticar o ato descrito na norma penal incriminadora, inexistindo forma culposa. Admitem a
tentativa (em tese) e o concurso de agentes (coautoria e participação).
À semelhança do que ocorre com a “Lei Afonso Arinos”, para que o fato se
adeque ao tipo penal previsto na “Lei Antidiscriminação”, a conduta do agente deve,
necessariamente, derivar de um dos elementos referidos no art. 1º desta lei (discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional). Por exemplo, o ato de
“recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino
público ou privado de qualquer grau” não configura o crime previsto no art. 6º da lei, se o
fundamento da recusa for qualquer outro que não o preconceito ou a discriminação.
O verbo “praticar”, por ter forma livre, remete a qualquer atitude apta a ensejar a
discriminação prevista no tipo penal47, incluindo-se os gestos, expressões, sinais ou escritos.48
O núcleo “induzir”, por sua vez, refere-se à ação de suscitar, inspirar ou introduzir uma ideia
nova na consciência de alguém; ao passo que “incitar” diz respeito ao ato de estimular,
instigar, aguçar um pensamento que já existia na mente alheia.
Registre-se que, na espécie, não se distingue o agente que induz ou incita daquele
que pratica diretamente a conduta incriminada no tipo penal, de modo que todos são
considerados autores do delito.
Por fim, os artigos 16 e 20, § 4º, definem efeitos específicos da condenação pela
prática das infrações penais descritas na Lei n. 7.716/89. De acordo com o art. 16, constitui
45
Nos termos dos arts. 3º, 4º e 13 da Lei 7.716/89.
46
Nos termos dos arts. 6º e 14 da Lei 7.716/89.
47
OSÓRIO, Fábio Medina; SCHAFER, Jairo Gilberto. Dos crimes de discriminação e preconceito, n. 714:
Revista dos Tribunais, 1995, p. 330.
48
SANTOS, Christiano Jorge. Ibidem. Op. Cit. Livro digital.
efeito da condenação a perda do cargo ou função pública, caso o autor do delito seja agente
público. Em se tratando de particular, entretanto, poderá o funcionamento do estabelecimento
ser suspenso por até 3 (três) meses. Tais efeitos não são automáticos e demandam decisão
fundamentada da autoridade judiciária competente.49
Já o art. 20, § 4º, determina que nos casos em que a discriminação é cometida em
meios de comunicação ou por meio de publicação, na forma do § 2º do mesmo artigo,
impõe-se a destruição do material apreendido após o trânsito em julgado da decisão como
efeito imediato da condenação.
Trata-se de uma forma qualificada do crime de injúria (art. 140, caput, do CP),
incluindo-se no rol de crimes contra a honra, e consiste no uso de elementos relacionados a
raça, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência para ofender a
dignidade ou o decoro da vítima:
Injuriar quer dizer ofender, ultrajar ou insultar uma pessoa. Tem-se o crime em
comento quando o ataque é praticado com o objetivo específico de macular a honra subjetiva
do sujeito, bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora.
Via de regra, é crime comissivo, isto é, que decorre de uma ação do agente, de um
fazer, mas também pode ser cometido por omissão, conforme defende Magalhães Noronha:
49
Nos termos do art. 18 da Lei 7.716/89.
50
BRASIL. Lei n. 9.459, de 13 de Maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989,
que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do
Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em :
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm> Acesso em: 22 de agosto de 2021.
51
BRASIL. Lei n. 10.741, de 1º de Outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm> Acesso em: 22 de agosto de
2021.
“se uma pessoa chega a uma casa, onde várias outras se acham reunidas e cumprimenta-as,
recusando, entretanto, a mão a uma que lhe estende a destra, injuria-a”.52
Cuida-se de delito comum, pelo que pode ser cometido por qualquer pessoa, não
lhe sendo exigida nenhuma qualificação especial. Por outro lado, somente pessoa natural pode
figurar como sujeito passivo do crime, tendo em vista que pessoa jurídica não possui
autoestima ou amor próprio e, portanto, não pode ser injuriada.54
A pena é idêntica àquela estipulada para o tipo penal genérico de racismo previsto
no art. 20 da Lei 7.716/89. Por essa razão, o crime de injúria qualificada pelo preconceito já
52
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1973. v. 2. Livro digital.
53
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 16. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 942.
54
NUCCI, Guilherme de Souza. Ibidem. Op. Cit. p. 941.
55
BITENCOURT, Cezar Roberto. Coleção Tratado de direito penal, volume 2. 20. ed. São Paulo : Saraiva
Educação, 2020, livro digital.
teve a sua constitucionalidade questionada perante o STF, no HC n. 109.676/RJ, de relatoria
do Ministro Luiz Fux.
Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa,
salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.
Dessa forma, atualmente, o crime de injúria qualificada por motivos de raça, cor,
etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência é de ação penal pública
condicionada à representação da vítima e não mais de ação penal privada. Difere-se, neste
ponto, dos crimes de racismo, previstos na Lei n. 7.716/89, cuja ação penal é pública
incondicionada.
Quanto ao bem jurídico protegido em cada uma delas, tem-se que, na injúria
racial, tutela-se a imagem e a honra subjetiva de determinada pessoa. Já no racismo, busca-se
resguardar a dignidade humana e assegurar a igualdade a uma dada coletividade de membros.
56
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 109.676/RJ. Relator Min. Luiz Fux. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4318619> Acesso em: 22 de agosto de
2021.
57
BRASIL. Lei n. 12.033, de 29 de setembro de 2009. Altera a redação do parágrafo único do art. 145 do
Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, tornando pública condicionada a ação penal em
razão da injúria que especifica. Disponível em :
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12033.htm> Acesso em: 22 de agosto de 2021.
Ambos os crimes são cometidos através de manifestações de preconceito, por essa
razão, na prática, nem sempre é tão simples individualizar as condutas para realizar o devido
enquadramento típico. Neste quesito, Santos aponta o alcance da manifestação preconceituosa
como critério marcador da distinção:
[...] entende-se que o critério a ser adotado para a diferenciação entre as condutas
deva ser o alcance das expressões, gestos ou qualquer modo de exteriorização do
pensamento preconceituoso. Quando a ofensa limita-se estritamente a uma
pessoa, como a referência a um negro que se envolve num acidente banal de
trânsito, como “preto safado”, por exemplo, estaremos diante de injúria
qualificada do art. 140, § 3°, do Código Penal, em princípio, por somente
estarmos a verificar a ofensa à honra subjetiva da vítima. Se, contudo, no
mesmo contexto fático diz-se: “Só podia ser coisa de preto, mesmo!”, estaria
caracterizada a figura típica do art. 20, caput, da Lei n. 7.716/89, porque,
embora a frase seja dirigida a uma única pessoa, mesmo que seja num
momentâneo desentendimento, está revelando inequivocamente um preconceito
em relação à raça negra, ou aos que possuam a “cor preta”, pois a expressão
utilizada contém o raciocínio de que todo negro ou preto faz coisas erradas [...]58
(Grifou-se)
58
SANTOS, Christiano Jorge. Ibidem. Op. Cit. Livro digital.
3. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL: UM INSTRUMENTO DE POLÍTICA
CRIMINAL
Para tanto, adota-se uma abordagem genérica do instituto, versando sobre a sua
origem, conceito e natureza jurídica, requisitos, vedações e condições legais, bem como o seu
procedimento e as consequências decorrentes do seu descumprimento.
59
BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução n. 181, de 07 de Agosto de 2017. Dispõe sobre
instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. Disponível em:
<https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf> Acesso em: 02 de junho de 2021.
60
BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução n. 183, de 24 de Janeiro de 2018. Altera os
artigos 1º, 3º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 13, 15, 16, 18, 19 e 21 da Resolução 181, de 7 de agosto de 2017, que dispõe
sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público..
Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-183.pdf> Acesso em 02 de junho
de 2021.
61
BRASIL. Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm> Acesso em 12 de
junho de 2021.
62
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5790. Relator Min. Ricardo
Lewandowski. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=5283027>. Acesso em: 19 de junho de 2021.
63
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5793. Relator Min. Ricardo
Lewandowski. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=5288159>. Acesso em: 19 de junho de 2021.
legislativa da União para legislar sobre direito processual prevista no art. 22, I, CF.,
excedendo do poder regulamentar conferido ao órgão pelo texto constitucional.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o ANPP nada mais é que um negócio
jurídico extrajudicial, firmado entre o MP e o investigado, assistido por seu defensor, para que
não haja, no caso concreto, persecução penal.65 Nas palavras de Renato Brasileiro de Lima:
64
MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120): v. 1. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: MÉTODO, 2020, p. 474.
65
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
Livro digital.
66
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020, p. 274.
Trata-se, portanto, de mais um instrumento despenalizador, de ampliação do
espaço negocial no processo penal brasileiro67, tal como o são a transação penal, a suspensão
condicional do processo, o acordo de leniência e a delação premiada.
O art. 28-A, caput, do CPP, inserido pela Lei n. 13.964/2019, disciplina ao menos
cinco requisitos básicos que devem ser observados cumulativamente para a formalização do
ANPP, nos seguintes termos:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal
e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e
com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor
acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e
prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e
alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
[...] Destaco que as condições descritas em lei são requisitos necessários para o
oferecimento do acordo de não persecução penal. A ausência do preenchimento
é impeditivo legal para o oferecimento de acordo por parte do Ministério
67
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. Livro digital.
68
LIMA, Renato Brasileiro de. Ibidem. Op. Cit. p. 278.
69
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.304/DF.
Relator Min. Luiz Fux. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=5843708> Acesso em: 19 de junho de 2021.
Público. Na hipótese, consoante se extrai dos autos, o Ministério Público
entendeu que o acordo de não persecução penal não se mostra necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime, além de não preencher o
requisito da confissão formal, razão pela qual não ofereceu a proposta ao
agravante. Nesse contexto, facultado o exame e rejeitada a oferta de acordo pelo
Ministério Público, deve prosseguir o feito não há falar em violação do art. 5º, XL,
da Lei Maior. As razões do agravo interno não se mostram aptas a infirmar os
fundamentos que lastrearam a decisão agravada. Agravo interno conhecido e não
provido. É como voto. (AG.REG. NOS EMB.DECL. NO AG.REG. NO AG.REG.
NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.273.501/PR, Rel. Min.
ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 01/03/2021, DJe 10/03/2021).70
(Grifou-se)
Ademais, para que seja válido o ato negocial, faz-se necessário que a confissão
tenha sido proferida de forma livre, consciente e voluntária pelo indivíduo. De sorte que, se o
investigado confessa a autoria do crime apenas para obter o benefício da solução consensual,
sabendo-se inocente, o magistrado poderá recusar a homologação do acordo, conforme
precedente do STJ:
70
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 1.273.501/PR. Relator
Min. ROSA WEBER. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755279662> Acesso em: 27 de junho de
2021.
71
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 636279/SP. Relator Min. Joel Ilan Paciornik.
Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202003467770&dt_publicacao=23/03/2
021> Acesso em: 27 de junho de 2021.
ameaça aqui referidas são aquelas praticadas dolosamente pelo agente, presentes na conduta
(ação ou omissão) e não no resultado.72
Isso porque há uma exceção no caso particular dos crimes culposos de resultado
violento, nos quais se admite a formalização do ANPP (apesar da violência), porque o agente
não desejou o resultado ou não assumiu o risco de produzi-lo.
É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado
violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de
um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo
resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pelo agente, apesar de
previsível.73
Registre-se, ademais, que o ANPP só tem cabimento nas infrações penais cuja
pena mínima cominada é inferior a 4 (quatro) anos. Consideradas, no cálculo, as causas de
aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto, consoante o disposto no §1º, do art. 28-A,
do CPP e o estabelecido nas súmulas 243 do STJ74 e 723 do STF75, por interpretação
analógica.
72
LIMA, Renato Brasileiro de. Ibidem. Op. Cit. p. 278.
73
Enunciado n. 23 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
74
Súmula 243-STJ: O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais
cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada,
seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.
75
Súmula 723-STF: Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena
mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.
julgamento do HC n. 612.449/SP, impetrado sob o fundamento de que o não oferecimento do
acordo pelo órgão ministerial geraria nulidade do processo:
76
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 612.449/SP. Relator Min. REYNALDO SOARES
DA FONSECA. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202002359158&dt_publicacao=28/09/2
020> Acesso em: 27 de junho de 2021.
77
BRASIL .Lei n. 9.099, de 26 de Setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá
outras providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm> Acesso em: Acesso
em: 27 de junho de 2021.
Não caberá o acordo de não persecução penal se o investigado for reincidente ou se
houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou
profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, entendidas estas
como delitos de menor potencial ofensivo.78
Por fim, excluem-se do extenso rol de infrações penais que admitem o acordo, os
delitos praticados no âmbito da violência doméstica ou familiar de que cuida a Lei n.
11.340/2006, a “Lei Maria da Penha”80, bem como os crimes praticados contra a mulher por
razões da condição do sexo feminino.
78
Enunciado n. 21 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
79
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Habeas Corpus n. 622.527/SP. Relator Min.
Reynaldo Soares da Fonseca. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202002867214&dt_publicacao=01/03/2
021> Acesso em: 27 de junho de 2021.
80
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm> Acesso em
12 de junho de 2021.
3.4 Condições impostas ao investigado no acordo e as consequências decorrentes do seu
descumprimento
81
Enunciado n. 26 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
82
Enunciado n. 28 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
Ressalte-se, contudo, que, conforme o §12 do art. 28-A, do CPP, a formalização
do ANPP, bem como o seu devido cumprimento pelo infrator, não ensejará registro de maus
antecedentes, salvo para o efeito de obstar a formalização de novo acordo, transação penal ou
suspensão condicional do processo dentro de 5 (cinco) anos do cometimento do crime.
Dessa forma, muito embora um dos requisitos para a celebração do ANPP seja a
confissão da prática da infração penal, esse reconhecimento pelo investigado, via de regra,
não surtirá efeitos jurídicos em sua culpabilidade. Sobre o tema, adverte Rogério Sanches:
Para mais, merece destaque o fato de que essas condições, postas ao investigado,
não se confundem com a pena, sobretudo porque esta é aplicada de forma coercitiva, haja
vista o seu caráter imperativo, podendo resultar, inclusive, em privação de liberdade. Já as
condições colocadas no ANPP só são impostas mediante o livre e voluntário consentimento
do investigado, tratando-se, pois, de condições não privativas de liberdade.
O acordo de não persecução penal não impõe penas, mas somente estabelece direitos
e obrigações de natureza negocial e as medidas acordadas voluntariamente pelas
partes não produzirão quaisquer efeitos daí decorrentes, incluindo a reincidência.85
À vista disso, portanto, é que se pode afirmar que o ANPP não resulta em
condenação e aplicação de pena, mas, sim, na imposição de deveres de ordem patrimonial
e/ou prestações relacionadas a direitos disponíveis.
83
CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime - Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e
LEP. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 139.
84
LIMA, Renato Brasileiro de. Ibidem. Op. Cit. p. 281.
85
Enunciado n. 25 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
3.5 O procedimento para a formalização do acordo de não persecução penal
Para existir validamente, o ANPP deve ser celebrado por escrito e assinado pelo
membro do MP, pelo investigado e por sua defesa86, antes do recebimento da denúncia, e
homologado pelo juiz das garantias.87 O ANPP também pode ser formalizado por ocasião da
audiência de custódia.88
Em razão disso, até que o tema seja apreciado pelo Plenário do STF, a
homologação do ANPP caberá ao juiz competente para acompanhar os inquéritos, que fará as
vezes de juiz das garantias.93
86
Nos termos do art. 28-A, § 3º, do Código de Processo Penal.
87
Nos termos do art. 3º-B, XVII, do Código de Processo Penal.
88
LOPES JÚNIOR, Aury. Ibidem. Op. Cit. Livro digital.
89
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 357 de 26 de novembro de 2020. Dispõe sobre a
realização de audiências de custódia por videoconferência quando não for possível a realização, em 24 horas, de
forma presencial. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3595> Acesso em: 27 de junho de 2021.
90
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 329 de 30 de julho de 2020. Regulamenta e estabelece
critérios para a realização de audiências e outros atos processuais por videoconferência, em processos penais e de
execução penal, durante o estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Federal n. 06/2020, em razão
da pandemia mundial por Covid-19. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3400> Acesso em: 27
de junho de 2021.
91
BRASIL. Decreto Legislativo n. 06/2020, de 20 de Março de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei
Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da
solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem n. 93, de 18 de março de 2020.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm> Acesso em: 27 de junho de
2021.
92
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 6298/DF,
6299/DF, 6300/DF e 6305/DF. Relator Min. Luiz Fux. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6298.pdf> Acesso em: 18 de junho de 2021.
93
NUCCI, Guilherme de Souza. Ibidem. Op Cit. p. 385.
defesa (não há previsão legal do comparecimento do MP nesta audiência), aferirá a
voluntariedade e a legalidade do negócio jurídico entabulado pelas partes.94
Aliás, melhor seria que o juiz que confirmou o acordo também fiscalizasse o seu
cumprimento. Do modo como está posto, o legislador acabou por estabelecer um trâmite
adicional, de natureza puramente burocrática, que impõe o regresso dos autos ao MP, para que
este requeira a execução do ANPP ao juízo das execuções penais.
94
Nos termos do art. 28-A, § 4º, do Código de Processo Penal.
95
Enunciado n. 24 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
96
Nos termos do art. 28-A, § 6º, do Código de Processo Penal.
97
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. Livro digital.
Na hipótese de reputar o juiz inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições
pactuadas no acordo, remeterá os autos de volta ao MP, com o consentimento do investigado e
de seu defensor, para que reformule a proposta.98
Se, porventura, o parquet não proceder às retificações ou, se as fizer, e o juiz ainda
assim as considerar ilegais, poderá recusar a homologação do acordo.99 Neste caso, o
magistrado devolverá os autos ao membro do MP, a fim de que seja averiguada a necessidade
de complementação das investigações ou mesmo do oferecimento da denúncia.100
98
Nos termos do art. 28-A, § 5º, do Código de Processo Penal.
99
Nos termos do art. 28-A, § 7º, do Código de Processo Penal.
100
Nos termos do art. 28-A, § 8º, do Código de Processo Penal.
4 A INCONSTITUCIONALIDADE DA CELEBRAÇÃO DO ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL NOS CRIMES DE RACISMO E INJÚRIA RACIAL NO BRASIL
Pelo exposto no capítulo anterior, pode-se inferir que, em tese, não haveria
impedimento à formalização do ANPP nos crimes de racismo e injúria racial. Afinal, não há,
no CPP, vedação expressa à celebração do acordo nos delitos desta natureza, uma vez que são
praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa e possuem pena mínima inferior a 4
(quatro) anos, podendo o membro do MP propor o ajuste na hipótese de considerá-lo
suficiente para reprovação e prevenção do crime.
101
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 347/DF. Relator Min. Marco Aurélio. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665> Acesso em: 03 de julho de
2021.
102
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 126272/MG. Relator Min. Rogério
Schietti Cruz. Disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2065041&num
_registro=202000997385&data=20210615&peticao_numero=-1&formato=PDF> Acesso em: 03 de julho de
2021.
De fato, causa espécie que um tribunal superior no Brasil, em detrimento do
enorme volume de processos que aguardam julgamento, precise se debruçar sobre feitos desta
natureza, cuja resolução sequer deveria ter excedido as instâncias ordinárias.
O resultado, então, não poderia ser outro senão um verdadeiro colapso do sistema
penitenciário nacional. Traduzido em um sem-número de indivíduos custodiados pelo Estado.
Em sua maioria presos preventivamente, não raro em situação degradante, atentatória à
dignidade humana e a outros tantos direitos e garantias fundamentais.
É nesse contexto que surge o ANPP, como via consensual alternativa ao processo
penal, capaz de mitigar os efeitos da política criminal de encarceramento indiscriminado que
se estabeleceu no Brasil. Sobre o advento dessa ferramenta, aduz Eugênio Pacelli:
Dessa forma, é certo que o ANPP veio para tornar mais célere a solução de
ocorrências banais na esfera criminal. Liberando, assim, toda a estrutura do Poder Judiciário e
do MP para focalizar seus esforços na resolução dos casos mais graves, para os quais o acordo
não seria medida suficiente.
103
PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 190-191.
104
CUNHA, Rogério Sanches. Ibidem. Op. Cit. p. 128.
Se fizermos um estudo dos tipos penais previstos no sistema brasileiro e o impacto
desses instrumentos negociais, não seria surpresa alguma se o índice superasse a
casa dos 70% de tipos penais passíveis de negociação, de acordo. Portanto, estão
presentes todas as condições para um verdadeiro “desentulhamento” da justiça
criminal brasileira.105
Destaca-se, ainda, que o ANPP não se aplica somente a crimes, mas também a
contravenções penais, tendo em conta o uso da expressão infração penal (gênero do qual são
espécies crime e contravenção) no caput do art. 28-A, do CPP.106 Fato que só estende o já
vasto campo de incidência desse recurso.
Decerto que qualquer medida despenalizadora deve ser bem recebida, sobretudo
porque os estabelecimentos prisionais brasileiros se tornaram espécies de centros de violação
sistemática de direitos humanos. Entretanto, há de se ter a necessária cautela quando da
utilização do ANPP, de modo a evitar a sua aplicação de maneira indiscriminada e/ou
desproporcional. Não se pode olvidar que, dentre os pressupostos para a celebração do
acordo, está a suficiência da medida para punir e desestimular o cometimento de crimes.
105
LOPES JÚNIOR, Aury. Ibidem. Op. Cit. Livro digital.
106
LIMA, Renato Brasileiro de. Ibidem. Op. Cit. p. 278.
107
BRASIL. Lei n. 12.850, de 2 de Agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação
criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o
Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995; e
dá outras providências. Disponível em: <planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm> Acesso
em 04 de julho de 2021.
108
BRASIL. Lei n. 9.613, de 3 de Março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens,
direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o
Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm> Acesso em 04 de julho de 2021.
109
Tais como: contratação direta ilegal; frustração do caráter competitivo de licitação; e fraude em licitação ou
contrato, para as quais cominou o legislador pena mínima de 4 (quatro) anos.
Nesse rumo é o Enunciado n. 22 do CNPG e do GNCCRIM, que proíbe a
celebração de ANPP nos crimes praticados no contexto de violência doméstica ou familiar,
nos cometidos contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, e também nos
considerados hediondos ou equiparados:
Dito isto, é mister reconhecer que determinados tipos penais, ainda que atendam
aos requisitos objetivos para a admissão do ANPP, por sua própria gravidade e
reprovabilidade, não deveriam constituir objeto de negociação. É o caso, por exemplo, dos
crimes de preconceito e discriminação racial, previstos na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989 e
no Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal Brasileiro). Tema que será
mais debatido nos próximos tópicos deste estudo.
110
Enunciado n. 22 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
111
COELHO, Luís Fernando. Direito Constitucional e Filosofia da Constituição. Curitiba: Juruá, 2011. p. 25.
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial112, por exemplo, impõe ao Estado o dever de condenar a discriminação
racial e a adotar uma política de eliminação dessa prática em todas as suas formas.
Ato contínuo, o art. 4º, incisos II e VIII, determina que o Brasil, nas suas relações
internacionais, deve reger-se pelos princípios da prevalência dos direitos humanos e do
repúdio ao racismo. Por sua vez, o art. 5º, caput, inaugurando o Título II da Constituição, que
trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, assegura o direito fundamental à igualdade ou
à não discriminação, ao afirmar que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza”.
112
BRASIL. Decreto n. 65.810, de 8 de Dezembro de 1969. Promulga a Convenção Internacional sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. . Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D65810.html> Acesso em 09 de agosto de 2021.
113
BRASIL. Decreto Legislativo n. 01/2021, de 19 de Fevereiro de 2021. Aprova o texto da Convenção
Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na
Guatemala, por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos,
em 5 de junho de 2013. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-legislativo-304416057>
Acesso em 09 de agosto de 2021.
114
BRASIL. Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm> Acesso em 09 de agosto de 2021.
É também o art. 5º que define, expressamente, pela primeira vez no ordenamento
jurídico brasileiro, a prática do racismo como crime e não mais como mera contravenção
penal, conforme era tratado no âmbito da “Lei Afonso Arinos”. Aliás, como crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.115
É como se, cometida uma infração penal, o sistema jurídico virasse em desfavor do
Estado uma ampulheta, variando o seu tamanho proporcionalmente à gravidade do
ilícito penal. O poder-dever de aplicar a sanção penal precisa ser efetivado antes de
escoar toda a areia que representa o tempo que se passa, pois, se não o fizer dentro
dos limites legalmente previstos, o Estado perderá, para sempre, o direito de punir.118
115
Nos termos do art. 5º, XLII, da Constituição Federal.
116
Nos termos do art. 323, I, do Código de Processo Penal.
117
Ibidem. Livro digital.
118
Ibidem. p. 797.
119
MASSON, Cleber. Ibidem. Op. Cit. p. 800.
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático
configuram exceções expressamente previstas no texto constitucional.120
Nada obstante, com a edição da Lei 7.716/89, que regulamentou o inciso XLII do
art. 5º da CF, o racismo passou a ser a única infração penal imprescritível atualmente vigente
no País, uma vez que a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático ainda não foi tipificada pelo legislador ordinário.
[...] A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza,
pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade,
para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção
da sociedade nacional à sua prática. [...] A exemplo do Brasil as legislações de
países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático
igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e
propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana,
da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos
Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que
transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que
simbolizem a prática de racismo. [...] 15. "Existe um nexo estreito entre a
imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a
memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o
esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente
respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos.
Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos
repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por
motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes
de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã,
para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a
consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (HC 82424,
Relator(a): MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: MAURÍCIO CORRÊA,
Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00024 EMENT
VOL-02144-03 PP-00524).121 (grifou-se)
Nota-se que foram inúmeros os sinais deixados pela constituinte de 1988 acerca
da gravidade dos crimes raciais e do rigor com o que o Estado deve atuar para combatê-los.
Nesse contexto, a aplicação de soluções consensuais nos casos penais que envolvam a prática
de racismo, a exemplo do ANPP, viola frontalmente a CF. Primeiro, porque é medida
materialmente incompatível com o disciplina antirracista prevista no texto constitucional e,
segundo, porque não representa uma resposta estatal suficientemente apta a reprimir e
prevenir tais delitos.
122
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental em Habeas Corpus n. 460.673/SP. Relator Min.
Rogerio Schietti Cruz. Disponível em:
<https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=1842605&tipo=0&nreg=201801832892&SeqCgr
maSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20190701&formato=PDF&salvar=false> Acesso em: 31 de julho de 2021.
123
Nos termos do art. 33, caput, e § 1º, “a”, do Código Penal.
124
HEEMANN, Thimotie Aragon. A inconstitucionalidade de acordos de não persecução penal em casos de
racismo. JOTA, 2021. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-inconstitucionalidade-de-acordos-de-nao-persecucao-penal-em-
casos-de-racismo-09012021. Acesso em: 22 de junho de 2021.
gravidade do crime de injúria racial, alegando-se que ela não configura prática de racismo ou,
ainda, que não objetiva alcançar a igualdade pretendida na CF pela simples razão de não estar
prevista na Lei 7.716/89.
128
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental em Recurso Especial n. 1849696/SP. Relator Min.
Sebastião Reis Júnior. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201903483924&dt_publicacao=23/06/2
020> Acesso em: 31 de julho de 2021.
129
TRIPPO, Maria Regina. Imprescritibilidade penal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. Livro digital.
130
SANTOS, Christiano Jorge. Ibidem. Op. Cit. Livro digital.
131
ATLAS POLÍTICO. O racismo no Brasil. 2020. Disponível em:
https://atlasintel.org/poll/racism-in-brazil-2020-11-22. Acesso em: 12 de agosto de 2021.
132
PODER360. 82% afirmam que há racismo no Brasil, e 38% admitem que são racistas. Brasília. 2021.
Disponível em:
<https://www.poder360.com.br/poderdata/82-afirmam-que-ha-racismo-no-brasil-e-38-admitem-que-sao-racista>
Acesso em: 12 de agosto de 2021.
Em julho de 2021, no estado do Rio de Janeiro, uma criança de apenas três anos
de idade sofreu diversos ataques racistas na internet, após ter sua foto publicada pelos pais em
uma rede social. "Foi como se tivessem cravado uma estaca no meu peito. Uma dor realmente
na alma”, disse a mãe do menino.133 No Distrito Federal, um homem e seu filho foram
impedidos de entrar no veículo de um motorista de aplicativo, que teria dito: "preto não vai
entrar no meu carro a essa hora da manhã", quando os viu, negando-se a realizar a corrida.134
Em agosto do mesmo ano, no estado de São Paulo, um homem negro afirmou ter
sido coagido por seguranças de uma grande rede de supermercados a se despir, publicamente,
para provar que não havia furtado qualquer produto do estabelecimento.135 Na cidade de
Salvador, Bahia, um entregador por aplicativo foi chamado de “macaco” e agredido
fisicamente, enquanto aguardava uma encomenda na fila do caixa de um shopping, por um
homem que supostamente teria se incomodado com sua presença no local.136
133
REGUEIRA, CHICO. Menino de 3 anos é alvo de ataques racistas na internet: 'Uma estaca no meu peito', diz
mãe. Rio de Janeiro. 2021. Disponível em:
<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/07/26/menino-de-3-anos-e-alvo-de-ataques-racistas-na-inter
net-uma-estaca-no-meu-peito-diz-mae.ghtml> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
134
MOREIRA, CIBELE. Motorista por aplicativo nega corrida a morador do DF por racismo. Distrito Federal.
2021. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/08/4941264-motorista-por-aplicativo-nega-corrida-a-m
orador-do-df-por-racismo.html> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
135
CORREIO BRAZILIENSE. Homem negro é obrigado a ficar de cueca para provar que não roubou em
mercado. Distrito Federal. 2021. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/08/4942552-homem-negro-e-obrigado-a-ficar-de-cueca-para
-provar-que-nao-roubou-em-supermercado.html> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
136
TV BAHIA. Entregador por aplicativo é vítima de racismo dentro de estabelecimento na Bahia: ‘Me chamou
de macaco’. Bahia. 2021. Disponível em:
<https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/08/03/entregador-por-aplicativo-e-vitima-de-racismo-dentro-de-esta
belecimento-na-bahia-me-chamou-de-macaco.ghtml> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
137
EXAME. 7 em cada 10 negros sofreram preconceito em loja, restaurante ou mercado. 2021. Disponível em:
<https://exame.com/bussola/7-em-cada-10-negros-sofreram-preconceito-em-loja-restaurante-ou-mercado/>
Acesso em: 12 de agosto de 2021.
vítima de discriminação racial, desabafa: "o racismo é como um prego, e o nosso corpo é uma
madeira. Quando você retira esse prego, o buraco ainda permanece.138
138
LIMA, ISABELLA. Entregador por aplicativo é vítima de racismo dentro de estabelecimento na Bahia: ‘Me
chamou de macaco’. São Paulo. 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2020/11/01/negros-relatam-como-o-racismo-os-afetou-ao-longo-d
a-vida-doia-na-alma.ghtml> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
139
MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Feminismos Plurais / coordenação Djamila Ribeiro,
2019, p.173.
140
CERQUETAN, SAMANTHA. Vidas negras importam? Racismo institucional afeta saúde e diminui
expectativa de vida dos negros ao dificultar acesso a tratamentos. 2021. Disponível em:
<https://www.uol.com.br/vivabem/reportagens-especiais/saude-da-populacao-negra/> Acesso em: 12 de agosto
de 2021.
141
IPEA. Atlas da violência no Brasil. IPEA, 2020. Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/200826_ri_atlas_da_violencia.pdf>.
Acesso em 20 de junho de 2021.
Figura 04 - Taxa de homicídio de negros a cada 100 mil habitantes - Brasil (2008-2018).
Fonte: IPEA (2020, p. 48). Obs.: O número de negros foi obtido somando-se pardos e pretos, enquanto o de não
negros se deu pela soma dos brancos, amarelos e indígenas; ignorados não entraram nas contas.
Nesse cenário, vê-se o quão grave e violadora de direitos humanos e sociais pode
ser a prática do racismo. É evidente que o drama da desigualdade racial no Brasil é muito
mais profundo e complexo do que se imagina. Em todo caso, permitir o poder público que tais
condutas possam ser resolvidas consensualmente, mediante a utilização de instrumentos
descriminalizantes, como o ANPP, pode contribuir para que se perpetuem (ou se agravem) os
já perturbadores padrões verificados na atualidade.
É de se destacar, também, que o art. 28-A, caput, do CPP, elenca como um dos
requisitos indispensáveis à celebração do ANPP que a medida seja suficiente para reprovação
142
BRASIL.Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 111.017/RS. Relator Min. Ayres Britto. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2218342> Acesso em: 10 de agosto de
2021.
e prevenção do crime. No caso dos delitos resultantes de preconceito de raça ou de cor,
entretanto, as sanções previstas em lei não parecem capazes de reprimir, tampouco prevenir
esses crimes, dada a gravidade da conduta e a importância do bem jurídico tutelado.
143
LIMA, ISABELLA. Estudante que fez posts racistas consegue acordo com o MP para não responder a
processo nem ser preso. São Paulo. 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2020/11/20/estudante-que-fez-posts-racistas-consegue-acordo-co
m-o-mp-para-nao-responder-a-processo-nem-ser-preso.ghtml> Acesso em: 12 de agosto de 2021.
144
Em tradução livre: “Vidas negras importam”.
Figura 05 - Imagens compartilhadas por estudante de Direito em suas redes sociais
[...] a Lei Suprema teve o cuidado de deixar inequívoca a sua intenção de punir, com
maior gravidade, os responsáveis por delitos desta estirpe, circunstância indicativa
da relevância penal destes fatos, e automaticamente impeditiva do princípio da
insignificância.145
O preceito em questão, de acordo com Ramos, tem ainda o duplo efeito de,
primeiro, tornar constitucionais leis penais criminalizadoras de condutas ofensivas a direitos
fundamentais e, segundo, de reputar inconstitucionais leis ou interpretação de lei que venha a
descriminalizar ou inibir a persecução penal nesses casos.146
145
MASSON, Cleber. Ibidem. Op. Cit. p. 31.
146
RAMOS, André de Carvalho. Ibidem. Op. Cit. p. 551.
147
BRASIL.Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 104.410/RS. Relator Min. Gilmar Mendes. Disponível
em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1851040> Acesso em: 10 de agosto
de 2021.
É cediço que os crimes de racismo tipificados na Lei 7.716/89 decorrem do
mandamento constitucional de criminalização previsto no art. 5º da CF, o qual visa a,
sobretudo, assegurar o direito à igualdade ou à não discriminação, enquanto um direito
fundamental da mais alta importância a demandar proteção estatal proporcional e adequada.
148
Nos termos do art. 127, § 1º, da Constituição Federal.
149
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 30.
ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 31.
valoradas juridicamente como relevantes. Este é a faculdade de titularizar uma
determinada relação jurídica (facultas agendi), sendo inerente à pessoa, que pode
exercitá-lo a qualquer tempo, a depender de sua vontade. É o poder de direito, que
pode ser exemplificado com as prerrogativas do réu, no Direito Penal, em obter
concessão de sursis (suspensão da pena aplicada por sentença), não lhe podendo ser
negado, se preenchidos os requisitos exigidos na lei penal, ou com a proteção do
direito à imagem, no campo do Direito Civil. Em suma-síntese: o direito objetivo
refere-se ao ordenamento jurídico vigente, enquanto o direito subjetivo diz respeito
ao poder que o titular tem de fazer valer os seus direitos individuais. 150
Sendo assim, a grosso modo, pode-se dizer que o direito subjetivo confere ao
indivíduo uma espécie de autoridade para reivindicar, perante o Estado, o bem da vida
encerrado em determinada norma jurídica.
Dentre os defensores dessa tese, destaca-se Aury Lopes Jr., que assevera:
150
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed.
rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p. 30.
151
LOPES JÚNIOR, Aury. Ibidem. Op. Cit. Livro digital.
152
MARCÃO, Renato. Ibidem. Op. Cit. Livro digital.
Renato Brasileiro de Lima, um de seus partidários, explica:
[...] Partindo da premissa de que o acordo de não persecução penal deve resultar da
convergência de vontades, com necessidade de participação ativa das partes, não nos
parece correta a assertiva de que se trata de direito subjetivo do acusado, sob pena de
se admitir a possibilidade de o juiz determinar sua realização de ofício, o que, aliás,
lhe retiraria sua característica mais essencial, qual seja, o consenso. De mais a mais,
a privatividade da ação penal pública pelo Ministério Público impede sua
substituição pelo magistrado, mesmo que o investigado preencha os requisitos
estabelecidos pelo art. 28-A do CPP. É dizer, a negativa de celebração do acordo
não permite que o juiz das garantias o conceda substitutivamente à atuação
ministerial, pena de afronta à estrutura acusatória do processo penal (CPP, art. 3º-A,
caput).153
153
LIMA, Renato Brasileiro de. Ibidem. Op. Cit. p. 275-276.
154
AVENA, Norberto. Processo penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020, p. 613.
155
Nos termos do art. 28-A, §14, do Código de Processo Penal.
156
Súmula n. 696 do Superior Tribunal de Justiça: Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão
condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a
questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.
O acordo de não persecução penal é faculdade do Ministério Público, que avaliará,
inclusive em última análise (§14), se o instrumento é necessário e suficiente para a
reprovação e prevenção do crime no caso concreto. 157
Como dito anteriormente, assim como não compete ao Poder Judiciário exercer o
controle de mérito do ANPP, também não lhe cabe impor a sua celebração ao órgão acusador.
Esse entendimento é o professado pelo STF, que já declarou expressamente a impossibilidade
de o magistrado determinar ao MP a adoção de solução consensual na seara penal.158
Nessa toada, também já decidiu a Corte Suprema que o Poder Judiciário não tem
atribuição para participar de negociações de caráter investigatório, tampouco para obrigar o
MP a celebrar acordo de colaboração premiada - instituto semelhante ao ANPP - notadamente
quando o titular da ação penal apresenta motivação idônea para recusar a formalização do
negócio jurídico processual.159
157
Enunciado n. 19 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da
União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível
em: <https://www.cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/GNCCRIM_Enunciados.pdf>
Acesso em 12 de junho de 2021.
158
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 194.677/SP. Relator Min. Gilmar Mendes. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo1017.htm#Acordo>. Acesso em: 26 de
junho de 2021.
159
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Mandado de Segurança n. 65.963. Relator Min.
Edson Fachin. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=5455189>. Acesso em: 26 de junho de 2021.
(AgR no HC 195327/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado
em 08/04/2021 DJe 13.4.2021)160 (Grifou-se)
"[...] Embora não seja propriamente uma novidade, porquanto já prevista como
política criminal na Resolução n. 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério
Público (alterada pela Resolução n. 183/2018 do CNMP), o acordo de não
persecução penal inaugura nova realidade no âmbito da persecução criminal. Em
síntese, consiste em um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e
o investigado, juntamente com seu defensor, como alternativa à propositura de ação
penal para certos tipos de crimes, principalmente no momento presente, em que se
faz necessária a otimização dos recursos públicos. Com efeito, o membro do
Ministério Público, ao se deparar com os autos de um inquérito policial, a par de
verificar a existência de indícios de autoria e materialidade, deverá ainda analisar o
preenchimento dos requisitos autorizadores da celebração do Acordo de Não
Persecução Penal (ANPP), os quais estão expressamente previstos no Código de
Processo Penal: 1) confissão formal e circunstancial; 2) infração penal sem violência
ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; e 3) que a medida
seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Noutras palavras,
caberá ao órgão ministerial justificar expressamente o não oferecimento do ANPP, o
que poderá ser, após provocação do investigado, passível de controle pela instância
superior do Ministério Público, nos termos do art. 28-A, § 14, do Código de
Processo Penal. Ora, conforme foi anteriormente mencionado, o instituto é
resultante de convergência de vontades (Ministério Público e acusado), não
podendo afirmar que se trata de um direito subjetivo do acusado, podendo ser
proposto quando o 'Parquet', titular da ação penal pública, entender
preenchidos os requisitos fixados pela Lei n. 13.964/2019 no caso concreto, o
que não ocorreu".
Nesse cenário, é possível concluir que mais acertada é a compreensão de que não
deve o Poder Judiciário intervir na política criminal definida pelo MP, impondo ao órgão
ministerial a obrigação de propor ANPP, mesmo que entenda presentes os requisitos legais
permissivos à sua celebração. Afinal, é o parquet, enquanto legitimado a promover,
privativamente, a ação penal pública165, que detém a prerrogativa institucional de avaliar a
conveniência da formação do ajuste processual no caso concreto.
[...] o acordo veicula matéria de política criminal a ser realizada pelo titular da ação
penal pública. Na qualidade de agentes políticos, os membros do Ministério Público
têm o dever funcional de realizar uma seleção de casos penais que ostentem maior
relevância dentro da política de persecução penal adotada pelo Parquet. 166
164
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Recurso de Apelação Criminal. Relator Des. FRANCISCA
ADELINEIDE VIANA. Disponível em:
<https://esaj.tjce.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=3395093&cdForo=0> Acesso em: 27 de junho de 2021.
165
Nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal.
166
LIMA, Renato Brasileiro de. Ibidem. Op. Cit. p. 277.
recaírem sobre vítimas pertencentes a grupos historicamente vulneráveis, o membro
do Ministério Público com atribuições para o feito, poderá entender que o acordo
(instrumento extrajudicial de política criminal) não é adequado e suficiente para a
prevenção e reprovação do crime, deixando, fundamentadamente, de propô-lo e, ato
contínuo, formulando a denúncia em juízo. 167
Ao atentar para o fato de que não se pode limitar o ANPP a uma simples atividade
mecânica, sem qualquer juízo crítico institucional e sem levar em consideração a própria
realidade e o sistema de justiça, o MPSP editou, em junho de 2020, a Orientação Conjunta
N.1 PGJ/SP e CGMP/SP, em que recomenda a não utilização de instrumentos
descriminalizantes nos casos relacionados à prática de racismo, nos seguintes termos:
167
LAURIA, Mariano Paganini. Ibidem. Op. Cit. p. 436.
168
BRASIL. Ministério Público do Estado de São Paulo. Enunciados de entendimento sobre a aplicação das
alterações introduzidas pela Lei n. 13.964/19 (Lei Anticrime). Disponível em:
<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Criminal_Juri_Jecrim/Enunciados_CAOCRIM/Enunciados
%20PGJ-CGMP%20-%20Lei%2013.964-19%20(1)-%20alterado.pdf> Acesso em: 06 de agosto de 2021.
169
BRASIL. Ministério Público do Estado de São Paulo. Orientação Conjunta N.1 PGJ/SP e CGMP/SP: Tema:
ANPP e o crime de racismo. Disponível em:
<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Boletim_Semanal/boletim%20CAOCrim%20JUNHO%20
2%20-.pdf> Acesso em: 06 de agosto de 2021.
Orientativa Conjunta N. 01/2020170 e na Nota Técnica n.º 10/2020171, respectivamente. De
igual modo, procederam o MP do Estado do Piauí (MPPI), na Recomendação Conjunta
PGJ/CGMP-PI n. 04/2020172, e o MP do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), por meio da
Nota Técnica n. 01/2021 – NED/NDH173, sugerindo que seus membros se abstenham de
adotar qualquer ferramenta consensual nos procedimentos judiciais criminais e investigatórios
que tratem sobre crimes de racismo e injúria racial, por se mostrarem desproporcionais e
incompatíveis com infrações penais dessa natureza, que violam valores sociais, humanitários
e igualitários.
170
BRASIL. Ministério Público do Estado do Acre. Nota Técnica Orientativa Conjunta n. 01/2020. Dispõe sobre
a orientação para atuação deste Órgão Ministerial, ante a situação de atos de racismo e discriminação ou
incitação. Disponível em: <https://www.mpac.mp.br/wp-content/uploads/NT-Racismo-1-1.pdf> Acesso em: 06
de agosto de 2021.
171
BRASIL. Ministério Público do Estado de Pernambuco. Nota Técnica n.º 10/2020, em que orienta aos
membros do parquet a não realização de Acordo de Não Persecução Penal ou de Acordos da Não Continuidade
da Ação Penal em procedimentos investigatórios e processos criminais envolvendo o racismo, que estão
tipificados na Lei Federal n.º 7.716/1989 e suas alterações, bem como art. 140 §3o, Código de Processo Penal..
Disponível em:
<https://www.mppe.mp.br/mppe/comunicacao/noticias/12937-caop-criminal-emite-nota-sobre-impossibilidade-d
e-acordo-de-nao-persecucao-penal-em-crimes-de-racismo> Acesso em: 06 de agosto de 2021.
172
BRASIL. Ministério Público do Estado do Piauí. Recomendação Conjunta PGJ/CGMP-PI n. 04/2020.
Disponível em:
<https://www.mppi.mp.br/internet/wp-content/uploads/2021/01/Recomendacao-conjunta-PGJ-e-Corregedoria-04
-2020-crimes-nao-passiveis-de-ANPP.pdf> Acesso em: 06 de agosto de 2021.
173
BRASIL. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Nota Técnica n. 01/2021 – NED/NDH. Versa
sobre a orientação acerca do não cabimento de institutos despenalizadores, tais como acordo de não persecução
penal, suspensão condicional do processo e transação penal, aos crimes previstos na Lei n. 7.716/89 e no art.
140, § 3º, do Código Penal. Disponível em:
<https://www.mpdft.mp.br/portal/images/pdf/nucleos/ned/Nota_tecnica_n%C2%BA_01_2021_NED_NDH.pdf>
Acesso em: 06 de agosto de 2021.
determinado caso concreto e, a partir daí, resolver operacionalizar (ou não) a pretensão
punitiva estatal.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito embora essa inovação legislativa deva ser exaltada, haja vista sua
capacidade de produzir profundas transformações no sistema de justiça penal, forçoso é
reconhecer que determinados tipos penais, conquanto perfaçam os requisitos objetivos
necessários para admissão do acordo, por sua gravidade e pela importância dos bens jurídicos
que tutelam, não poderiam ser, simplesmente, elucidados pela via do consenso.