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Legislação Penal Especial

Professor: Bruno Effori. Delegado de


Polícia Civil do Estado de Santa Catarina.

LEI Nº 7.716/89 (CRIMES DE RACISMO):

1. PREVISÃO CONSTITUCIONAL

A CF/88 pautou seus valores fundamentais para estimular uma sociedade


harmônica e sem preconceitos e, neste sentido, estabeleceu como fundamento a
dignidade da pessoa humana, em seu art. 1º, III:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;

É de extrema importância este fundamento, uma vez que os bens jurídicos


tutelados pela Lei n. 7.716/89 são a “dignidade da pessoa humana” e o “direito à
igualdade”.
Em seguida, em seu art. 3º, IV, o constituinte estabeleceu como objetivo
fundamental da República:
Art. 3º (...)
IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Cuidado para não confundir. Embora a CF tenha utilizado os termos “sexo”, “cor” e
“outras formas de discriminação”, estas formas não foram contempladas pela Lei n.
7.716/89.

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Ainda, no âmbito das relações internacionais, a República Federativa do Brasil
rege-se pelo princípio do “repúdio ao racismo”, nos seguintes termos:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações


internacionais pelos seguintes princípios:
(...)
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

Por fim, existe um mandamento constitucional de criminalização do racismo


previsto no art. 5º, XLII:

Art. 5º (...)

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,


sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Neste ponto, algumas observações importantes:

a) O termo “racismo” utilizado no inciso XLII não se limita aos casos de


discriminação decorrente de cor, raça ou etnia, abrangendo também religião ou
procedência nacional (art. 1º da Lei n. 7.716/89) – precedentes do STF e STJ;

b) O crime de racismo é inafiançável – não é possível conceder liberdade


provisória com fiança, mas se admite a liberdade provisória sem fiança;

c) O crime de racismo é imprescritível – não há prazo máximo para que o


suspeito possa ser punido, independentemente de quando ocorreu o crime;

Importante! O STF (HC n. 154.248) decidiu que o crime de injúria racial (CP, art.
140, § 3º) equipara-se ao de racismo e por este motivo deve ser considerado
imprescritível.

d) Os crimes de racismo devem ser punidos com pena privativa de liberdade de


reclusão.

e) A CF não cria o crime de racismo, apenas determina que a criminalização


ocorra “através de lei”, seguindo os ditames do Princípio da Legalidade. Caso
não houvesse a edição da Lei n. 7.716/89, estaríamos diante de uma hipótese
de inconstitucionalidade por omissão, porque o legislativo tem o dever de
criminalizar;

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2. ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DA LEI

Embora parte da doutrina critique que a Lei n. 7.716/89 foi insuficiente no seu
propósito, diminuindo o seu âmbito de incidência, devemos analisar o art. 1º que
determina a abrangência da lei.

Art. 1º: Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de


discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião pu procedência
nacional.

Preconceito – é a opinião formada acerca de algo ou alguém, sem a análise


detalhada dos fatores que envolvem aquele julgamento.

Discriminação – é a concretização do preconceito em condutas separatistas,


segregacionistas, visando separar pessoas em virtude de suas características. Enquanto
o preconceito é estático, a discriminação é uma atitude dinâmica. Nem toda discriminação
é vedada por lei e por este motivo, devemos distinguir as duas formas de discriminação:

a) Discriminação negativa: é a materialização do preconceito com o objetivo de


segregar e anular o reconhecimento de alguém. Esta é a modalidade proibida
por esta lei.

b) Discriminação positiva: são ações afirmativas adotadas pelo Estado e pela


iniciativa privada para promover a igualdade de oportunidades e corrigir as
desigualdades. Esta modalidade não é objeto da Lei n. 7.716/89. Exemplo:
vagas reservadas para negros em concurso público (Lei n. 12.990/14).

O preconceito e a discriminação devem estar relacionados com:

● Raça – é um conceito ultrapassado e que se relaciona às características físicas


e biológicas (tamanho do crânio, cabelo, pele etc.) dos indivíduos como produto
da hereditariedade. Porém, o STF (HC 82.424, 17/09/2003) entendeu que o ser
humano não pode ser dividido em raças e a expressão passou a ser
considerada como sinônimo de etnia.

● Cor – tonalidade da pele. Exemplos: negros, brancos ou amarelos (asiáticos).

● Etnia – grupo com dados culturais e linguísticos homogêneos. Ex: comunidade


indígena.

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● Religião – crença em uma existência sobrenatural mediante um conjunto de
práticas, rituais e preceitos religiosos. Parte da doutrina afirma que o ateísmo
não está abrangido pela lei. Exemplos: religião católica, candomblé.

● Procedência Nacional – abrange a origem ou região dentro do Brasil


(Nordeste, carioca, São Paulo, região Norte, goianos, “Cidade de Deus”,
“Favela da Rocinha” etc.) ou em razão da nacionalidade (brasileiros, argentinos,
americanos etc.).

Existem tantas outras formas de discriminação não abrangidas pela Lei n.


7.716/89, que se fazem necessárias algumas observações.

A discriminação em razão de orientação sexual é abrangida pela lei? SIM.


Embora a Lei n. 7.716/89 não traga esta hipótese, o STF (ADO 26, 13/06/2019) entendeu
que se aplica aos casos de homotransfobia, nos seguintes termos:

Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a


implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e
XLII do art. 5º da CF/88, as condutas homofóbicas e transfóbicas (...)
ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos
preceitos primários de incriminação definidos na Lei n. 7.716/89.

A discriminação em razão de sexo/gênero (homem e mulher) ou estado civil


(casado, solteiro, divorciado etc.) é abrangida pela lei? NÃO, devendo ser utilizada a Lei
n. 7.437/85 no que for cabível (pune como contravenção penal).

A discriminação em razão de deficiência física ou mental é abrangida pela lei?


NÃO, devendo ser enquadrado no art. 8º da Lei n. 7.853/89 ou art. 88 da Lei n. 13.146/15,
a depender do caso concreto.

A discriminação em razão da idade é abrangida pela lei? NÃO. Em relação ao


idoso (idade maior ou igual a 60 anos) há previsão no art. 96 do Estatuto do Idoso (Lei n.
10.741/03).

3. MODALIDADES ESPECÍFICAS DE RACISMO (Arts. 3º a 14)

Todos os delitos são dolosos, não havendo forma culposa.

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Os delitos previstos nos art. 3º a 14 implicam em segregação (impedir, obstar,
recusar e negar) ou discriminação e devem ser interpretados em conjunto com o art. 1º,
ou seja, as condutas somente serão típicas se houver como fundamento o preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Quando o impedimento tiver algum fundamento legítimo, não haverá crime.


Exemplos: restaurante nega atendimento à pessoa por falta de mesa disponível.

3.1 DISCRIMINAÇÃO DE ACESSO AO SERVIÇO PÚBLICO

Art. 3º Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a


qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das
concessionárias de serviços públicos.

Pena: reclusão de dois a cinco anos.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de


discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a
promoção funcional.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem, por motivo de


discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar
a promoção funcional.

Neste delito, alguém (pessoa determinada) é impedido de acessar o cargo público


ou de se promover na função pública. Exemplo: policial militar é impedido de participar
de processo promocional em virtude da religião por ele praticada.

No caso do § único (obstar promoção pessoal), o crime é próprio, pois somente o


superior hierárquico da vítima é que pode configurar como sujeito ativo.

Pressupõe que a pessoa esteja “devidamente habilitada”, uma vez que não
haverá crime se a pessoa não preencher os requisitos previstos para o exercício do
cargo.

Caso o motivo do impedimento seja em virtude da idade (igual ou maior de 60


anos), prevalecerá o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03) que possui um tipo penal
específico (Princípio da Especialidade):

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Art. 100. Constitui crime punível com reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um)
ano e multa:

I – obstar o acesso de alguém a qualquer cargo público por motivo de


idade;

O mesmo critério da especialidade é aplicado à discriminação em razão da


deficiência (art. 8º da Lei n. 7.853/89).

Art. 13. Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer


ramo das Forças Armadas.

Pena: reclusão de dois a quatro anos.

Tipo penal específico para as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica),


abrangendo o “serviço militar obrigatório”. Exemplo: homem negro é impedido de se
alistar no Exército em virtude da cor da sua pele.

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