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O ANPP DEPENDE DE SER “SUFICIENTE E ADEQUADO” PARA REPROVAÇÃO?

Destaca-se o art. 28-A, caput, do CPP, elenca como um dos requisitos


indispensáveis à celebração do ANPP, que a medida seja necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime. No caso dos delitos resultantes de preconceito de raça ou de
cor, entretanto, as sanções em lei não parecem capazes de reprimir, tampouco prevenir esses
crimes, dada a gravidade de conduta e a importância do bem jurídico tutelado.

Para ilustra, podemos analisar um caso antigo, de um estudante de direito da


Universidade de Santos, em São Paulo que compartilhou postagens de cunho racista em suas
redes sociais. Para incitar a discriminação e o preconceito de raça e de cor, ele chega a fazer
referência ao simbólico caso “George Floyd”, homem negro assassinado em maio de 2020, nos
EUA, durante abordagem policial violenta, e que ocasionou uma onda de protesto naquele país
sob o mote “Black Lives Mtter”.

Na época as imagens publicadas pelo estudante geraram a revolta de colegas


e professores. O caso foi levado à Policial Civil do Estado de São Paulo. Não obstante, após
conclusão do inquérito policial, o órgão do MP, ao invés de oferecer denúncia, propôs ANPP
por considerar que o acordo, no caso seria bastante para repreender e prevenir o crime.

A excepcional gravidade do crime de racismo não admite ou ao menos não


deveria admitir a formalização de instrumento despenalizadores, tais como o ANPP ou a
suspensão condicional do processo. Tampouco é aplicável à espécie da insignificância, haja
vista o rigor com que o tema é tratado na CF.

Ao mesmo tempo que o Estado não pode extrapolar os limites da


proporcionalidade, sobretudo na esfera penal (princípio da proibição do excesso), não deve
operar de forma deficitária, furtando-se ao dever de proteger direitos e garantias fundamentais
de maneira satisfatória (princípio da proibição insuficiente) sob pena de incidir em violação à
CF, às leis e aos tratados internacionais a que se submete.

O STF advertiu um julgamento do HC nº 104/410/RS, direitos fundamentais


não podem ser considerados apenas como proibição de intervenção, expressando também um
postulado de proteção. Do voto do Ministro Relator, Gilmar Mendes, extrai -se o seguinte:

(...)
Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como
proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um
postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos
fundamentais expressa, não apenas uma proibição do excesso
(Ubermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de
proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os
mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador,
para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da
proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção
insuficiente.
(...)

É notório que os crimes de racismo tipificados na Lei 7. 716/89 decorrem do


mandamento constitucional de criminalização no art. 5º da CF, o qual visa a, sobretudo,
assegurar o direito à igualde ou à não discriminação, enquanto um direito fundamental da mais
alta importância a demandar proteção estatal e aqueda. Integrando também, o art. 3º, inc. IV da
CF que dispõe:

3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV


- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.

Conclui-se que, os instrumentos consensuais despenalizadores do ANPP,


não se apresentam como alternativas suficientemente aptas à reprovação e prevenção das figuras
típicas relacionadas a Lei 7.716/89 e no art. 140, § 3º, do CP, que trata-se de uma forma
qualificada do crime de injúria, incluindo-se no rol de crimes contra a honra, e consiste no uso
de elementos relacionados a raça, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com
deficiência para ofender a dignidade ou o decoro da vítima.

VOCÊ ENTENDE QUE EM QUALQUER POSSÍVEL CRIME DE INJÚRIA RACIAL NÃO


SERIA POSSÍVEL O ANPP?

A injuria preconceituosa é considera crime formal, pois se consuma no


momento em que a ofensa chega ao conhecimento da vítima, sendo desnecessária a ocorrência
de qualquer resultado naturalístico. O elemento subjetivo do crime é também o dolo, consistente
na vontade livre e consciente de insultar alguém, valendo-se de caracteres raciais, étnicos, ou
qualquer outra referido pela norma.
A pena é idêntica àquela estipulada para o tipo penal genérico de racismo
previsto no art. 20 da Lei 7.716/89. Por essa razão, o crime de injuria qualificada pelo
preconceito já teve sua constitucionalidade questionada perante p STF, no HC nº 109.676/RJ, de
relatoria no Ministro Luiz Fux, transcreve-se:

ABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. DIREITO


CONSTITUCIONAL. CRIME DE INJÚRIA QUALIFICADA.
ALEGAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE DA PENA PREVISTA NO TIPO, POR
OFENSA
AO PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE, E PRETENSÃO DE
VER
ESTABELECIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOVO
PARÂMETRO PARA A SANÇÃO. CRIAÇÃO DE TERCEIRA LEI.
IMPOSSIBILIDADE. SUPOSTA ATIPICIDADE DA CONDUTA E
PLEITO DE
DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO PARA INJÚRIA SIMPLES.
REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA NA VIA
DO WRIT.
IMPOSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS DENEGADO.
1. A Lei n. 9.459/97 acrescentou o § 3º ao artigo 140 do Código Penal,
dispondo
sobre o tipo qualificado de injúria, que tem como escopo a proteção do
indivíduo contra a exposição a ofensas ou humilhações, pois não seria
possível
acolher a liberdade que fira direito alheio, mormente a honra
subjetiva.
2. O legislador ordinário atentou para a necessidade de assegurar a
prevalência
dos princípios da igualdade, da inviolabilidade da honra e da imagem
das
pessoas para, considerados os limites da liberdade de expressão, coibir
qualquer manifestação preconceituosa e discriminatória que atinja
valores da
sociedade brasileira, como o da harmonia inter-racial, com repúdio ao
discurso
de ódio.
3. O writ veicula a arguição de inconstitucionalidade do § 3º do artigo 140
do
Código Penal, que disciplina o crime de injúria qualificada, sob o
argumento de que
a sanção penal nele prevista – pena de um a três anos de reclusão – afronta
o
princípio da proporcionalidade, assentando-se a sugestão de ser
estabelecida para o
tipo sanção penal não superior a um ano de reclusão, considerando-se a
distinção
entre injúria qualificada e a prática de racismo a que se refere o artigo 5º,
inciso
XLII, da Constituição Federal. 3.1 – O impetrante alega inconstitucional a
criminalização da conduta, porém sem demonstrar a inadequação ou a
excessiva
proibição do direito de liberdade de expressão e manifestação de
pensamento em
face da garantia de proteção à honra e de repulsa à prática de atos
discriminatórios.
4. A pretensão de ser alterada por meio de provimento desta Corte a
sanção penal
prevista em lei para o tipo de injúria qualificada implicaria a formação de
uma
terceira lei, o que, via de regra, é vedado ao Judiciário. Precedentes: RE n.
196.590/AL, relator Ministro Moreira Alves, DJ de 14.11.96; ADI
1822/DF, relator
Ministro Moreira Alves, DJ de 10.12.99; AI (Agr) 360.461/MG, relator
Ministro
Celso de Mello, DJe de 06.12.2005; RE (Agr) 493.234/RS, relator Ricardo
Lewandowski, julgado em 27 de novembro de 2007.
5. O pleito de reconhecimento da atipicidade ou de desclassificação da
conduta, do
tipo de injúria qualificada para o de injúria simples, igualmente não pode
ser
acolhido, por implicar revolvimento de matéria fático-probatória, não
admissível na
via do writ.
6. In casu, o paciente foi condenado à pena de um ano e quatro meses de
reclusão,
substituída por uma pena restritiva de direito consistente em prestação de
serviço à
comunidade, e à prestação pecuniária de 16 (dezesseis) cestas básicas, de
valor não
inferior a R$ 100,00 (cem reais), em virtude de infração do disposto no
artigo 140, §
3º, do Código Penal, a saber, injúria qualificada pelo preconceito.
7. Ordem de habeas corpus denegada.
(HC 109676, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em
11/06/2013,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-158 DIVULG 13-08-2013 PUBLIC
14-08-2013).56 (Grifou-se) 1

É inegável que também na injuria racial há elementos preconceituosos


próprios também no ato de ofender ou insultar a honra subjetiva de alguém pelo simples fato de
fazer parte de um grupo racial ou étnico específico. Não sem motivo o STJ já decidiu, em 2015,
por ocasião do julgamento do AgRg em REsp 1.849.696/SP, que a injúria qualificada pelo

1
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 109.676/RJ. Relator Min. Luiz Fux. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4318619> Acesso em: 22 de agosto de 2021.
BRASIL. Lei n. 12.033, de 29 de setembro de 2009. Altera a redação do parágrafo único do art. 145 do
Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, tornando pública condicionada a ação penal em
razão da injúria que especifica. Disponível em :
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12033.htm> Acesso em: 22 de agosto de 2021
preconceito corresponde a uma face do crime de racismo e como tal deve reputada inafiançável
e imprescritível. Tema que será explorado quando iniciado o trabalho.

Acontece que, o MP/SP contraria essa perguntar, pois, ao oferecer a


denúncia o Promotor de Justiça escolheu por não oferecer o acordo de não persecução penal à
denunciada, uma vez que ela negou a prática dos fatos, e o benefício exige a confissão formal e
circunstanciada do agente, vale o destaque do julgado abaixo:

O Douto Promotor de Justiça, então, deixou de oferecer ambos os benefícios


pretendidos pela Defesa, como forma de prevalência dos princípios dos direitos
humanos e a fim de se evitar proteção insuficiente dos direitos fundamentais
resguardados pela Constituição Federal, garantindo-se, para tanto, punição adequada
de qualquer forma de discriminação ou incitação à discriminação de raça, em todas
as suas formas e manifestações, além de se garantir e de assegurar a compreensão e
o respeito à dignidade da pessoa humana.

Assim, fundamentou sua negativa, com intuito não somente de obedecer e de


concretizar os fundamentos, objetivos e os princípios estabelecidos na Constituição
Federal, mas também nos documentos internacionais de direitos humanos,
mormente na Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial, concluindo que, no caso concreto, são incabíveis propostas
de acordo de não persecução penal pleiteada ou de suspensão condicional do
processo à acusada, consoante Orientação Conjunta n. 01/2020 - PGJ/SP e
CGMP/SP, publicada no Diário Oficial de 16/06/2020 (Aviso de 10/06/2020, nº
206/2020 – PGJ).2

Pelo exposto, é mister reconhecer que determinados tipos penais, ainda que
atendam aos requisitos objetivos para a admissão do ANPP, por sua própria gravidade e
reprovabilidade, não deveriam constituir objeto de negociação.

2
CAO – CRIM
Boletim Criminal Comentado nº 108,9/2020 (semana nº 2) MP/SP

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