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1. ASPECTOS INICIAIS
1.1 CONTEXTO
De início, é importante destacar alguns dispositivos constitucionais que vedam a prática do
preconceito/discriminação. São eles:
Art. 3°, CF - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Art. 4°, CF - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei;
Os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição Federal constituem um mandado constitucional
de criminalização. Ou seja, a própria Constituição ordena ao legislador elaborar lei específica com
a finalidade de criminalizar a conduta de racismo/preconceito.
Nesse sentido, foi elaborada a Lei 7.716/89, com a alcunha de Lei Caó, a qual criminaliza
determinadas condutas ligadas à discriminação (não há contravenções penais, apenas crimes). O
apelido “Caó” se dá em razão do autor do projeto, Carlos Alberto Caó – jornalista e ex-deputado
ativista das questões raciais.
Originalmente, a lei trazia a criminalização de condutas de preconceito de raça ou cor. Toda-
via, no ano de 1997, foram introduzidas outras formas de discriminação, a saber: etnia, religião e
procedência nacional.
ͫ Ainda mais recentemente, o STF firmou entendimento de que no conceito de discrimi-
nação em relação à raça, deve ser compreendida também a discriminação em razão da
orientação sexual/identidade de gênero/opção sexual (condutas homofóbicas/transfóbi-
cas), dando interpretação conforme a Constituição.
Existem outras leis que abordam diferentes tipos de preconceitos, são elas:
ͫ Lei 7.437/85 (Lei Afonso Arinos) – traz contravenções penais, as quais estão em vigor
em relação a discriminações de sexo e estado civil (esse é o entendimento majoritário).
* O doutrinador Guilherme de Souza Nucci entende que essa lei não foi recepcionada pela
Constituição Federal de 1988, já que esta ordena que os crimes de preconceito sejam apenados com
reclusão – o que não ocorre com as contravenções penais (contudo, essa orientação é minoritária).
ͫ Lei 13.146/16 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e Lei 7.853/89 – tratam de discrim-
inações relacionadas à deficiência física ou mental.
ͫ Lei 12.984/14 – trata de discriminação contra portadores do vírus HIV.
O objeto de estudo desse material é apenas a Lei 7.716/89, que trata da discriminação em
razão da raça (incluída a orientação sexual, segundo o STF), cor, etnia, religião, procedência nacional.
1. ASPECTOS INICIAIS
1.2 DISCRIMINAÇÃO EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL/ OPÇÃO
SEXUAL/ IDENTIDADE DE GÊNERO
A compreensão atual do STF, a respeito da discriminação em razão da orientação sexual é
ilustrada pela decisão a seguir.
1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminaliza-
ção definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfó-
bicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém,
por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade
de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de
08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configu-
rar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”); 2. A repressão penal à prática da homotransfobia não
alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional
professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou
celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livre-
mente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções
de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orien-
tação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva
liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais
manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a dis-
criminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade
de gênero; 3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos
estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de
índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à
dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que,
por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia
em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do
ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma
injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.
(Pleno-STF, ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 13/6/2019 - Info
944).
Além disso, também não há vedação à concessão de liberdade provisória sem fiança (consi-
derando que se trata de um crime inafiançável, não cabe liberdade provisória com fiança).
1.4 ESQUEMATIZAÇÃO
A Lei 7.716/89 possui 22 artigos, sendo 18 em vigor. Ela pode ser subdividida em:
ͫ Aspectos iniciais;
ͫ Características gerais dos crimes;
ͫ Crimes em espécie – arts. 3º a 14 e art. 20.
» A maioria dos crimes são comissivos. Apesar disso, existe um delito notadamente
omissivo, qual seja o art. 4º, §1º, inciso I.
» Os crimes da lei em estudo são crimes formais, portanto dispensam a produção
de um resultado naturalístico.
» Admite-se a forma tentada, quando a conduta for plurissubsistentes (aquelas que
podem ser fracionados em mais de um ato).
ͫ Na doutrina de Guilherme de Souza Nucci, a injúria racial não é apenas um crime contra
à honra, mas também uma modalidade de prática de racismo. Por essa razão, o autor
entende que é crime imprescritível, inafiançável e punido com reclusão.
1. Nos termos da orientação jurisprudencial desta Corte, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denomi-
nada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à
pena de reclusão (...).
(6ª Turma-STJ, AgRg no REsp 1849696/SP, Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 16/06/2020)
(...) 2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies
de racismo (...). 3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do
Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol pre-
visto na legislação extravagante não é exaustivo. 4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é
imprescritível.
(Plenário-STF, HC 154248/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 28/10/2021 – inf. 1036)
A respeito da inafiançabilidade, o STJ entende que é aplicável ao crime de injúria racial, con-
forme se vê na primeira jurisprudência acima. Por sua vez, o STF, como se nota na segunda juris-
prudência exposta acima, nada menciona sobre a fiança.
3. CRIMES EM ESPÉCIE
3.1 CRIME ART. 3º
Art. 3° - Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo
da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos.
Pena: reclusão de dois a cinco anos.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional.
O ato de impedir é o impedimento total, enquanto o ato de obstar significa dificultar, criar
obstáculos para o acesso a cargo da administração pública direta ou indireta e, também, as con-
cessionárias de serviços públicos, por aquele que é devidamente habilitado para tanto.
No parágrafo único, temos a conduta daquele que obsta a promoção funcional.
Sujeito ativo: trata-se de crime próprio, pois só pode ser praticado por pessoa capaz de dar
acesso/posse a cargo da administração pública ou de viabilizar a progressão funcional.
ͫ Exemplo: examinador de prova oral que reprova candidato, apto intelectualmente, por
motivo de discriminação racial.
Sujeito passivo: a pessoa discriminada.
A consumação do delito se dá com a prática dos verbos, caracterizando um crime formal –
não exige produção de resultado naturalístico para a consumação.
É possível a figura da tentativa, desde que a conduta seja plurissubsistente (praticada em
mais de um ato).
A figura equiparada do §2º consiste em exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia
para emprego cujas atividades não justifiquem tais exigências.
ͫ Não apresenta pena privativa de liberdade, mas apenas pena de multa e prestação de
serviços à comunidade (que inclui atividades de promoção da igualdade racial).
ͫ Exemplo: hotel que, para a contratação de camareiro, exige que a pessoa seja branca.
Não existe qualquer justificativa para essa exigência e fica caracterizado o crime.
ͫ * Se houver justificativa plausível para a exigência em relação às atividades desempen-
hadas, não há o crime.
Quanto ao §1º, inciso I, trata-se de um crime omissivo, vez que a conduta é deixar de conceder
equipamentos necessários ao empregado.
Sujeito ativo: trata-se de crime próprio, pois só pode ser praticado pelo responsável pelas
contratações, fornecimentos de equipamentos e demais atividades mencionadas.
Sujeito passivo: a pessoa discriminada.
A consumação do delito se dá com a prática dos verbos, sendo um crime formal.
É possível a tentativa, desde que a conduta seja plurissubsistente.
ͫ Não é cabível a tentativa somente na hipótese do art. 4º, §1º, inciso I, por se tratar de
crime omissivo próprio.
3. CRIMES EM ESPÉCIE
3.4 CRIME ART. 6º
Art. 6° - Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de
ensino público ou privado de qualquer grau.
Pena: reclusão de três a cinco anos.
Parágrafo único. Se o crime for praticado contra menor de dezoito anos a pena é agravada
de 1/3 (um terço).
Destaca-se que a conduta criminosa consiste na recusa, negação ou impedimento de inscrição
ou ingresso em estabelecimentos de ensino público ou privado, de qualquer grau (pré-escolar,
ensino fundamental, médio, ensino superior, etc).
O parágrafo único apresenta uma causa de aumento de pena (majorante), qual seja a conduta
praticada contra menor de 18 anos.
Sujeito ativo: trata-se de crime próprio, pois é exigida qualidade especial do autor (respon-
sável pela inscrição ou ingresso de aluno).
Sujeito passivo: a pessoa discriminada.
A consumação do delito se dá com a prática de algum dos verbos, tratando-se de um crime
formal.
É possível a tentativa, desde que a conduta seja plurissubsistente.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de
comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou
a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:
I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da
publicação por qualquer meio;
III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de
computadores.
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da
decisão, a destruição do material apreendido.
O caput e §1º trazem crimes autônomos, enquanto o §2º traz uma qualificadora ao delito
previsto no caput. Por sua vez, o §3º apresenta medidas cautelares e o §4º traz um efeito da con-
denação – ambos aplicáveis na situação da qualificadora prevista no §2°.
Quanto à conduta descrita no caput, existem duras críticas da doutrina no tocante à sua reda-
ção. Segundo Guilherme de Souza Nucci, é um tipo penal muito aberto/genérico e fere o princípio
da taxatividade. Apesar disso, o artigo ainda está em vigor e é aplicável.
Pode-se entender o art. 20, caput como um crime subsidiário. Haverá o delito do art. 20 quando
houver conduta discriminatória em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional não
se enquadre em nenhum dos delitos anteriormente apresentados na lei.
Por sua vez, a qualificadora do §2º diz respeito à prática discriminatória feita através de meios
de comunicação social (TV, Rádio, redes sociais) ou publicação (jornais, revistas). O tratamento
penal é mais duro nessas circunstâncias, tendo em vista o maior grau de abrangência, divulgação
da discriminação veiculada por esses meios.
O §3º apresenta medidas cautelares que podem ser aplicadas na hipótese da qualificadora
anterior (§2º). Falando-se em medidas cautelares, fala-se em medidas que podem ser aplicadas
durante toda a persecução penal, até mesmo antes da instauração do inquérito policial.
O §4º constitui um efeito da condenação, no contexto da qualificadora do §2º. Sendo assim,
havendo condenação transitada em julgado, os materiais de divulgação apreendidos deverão ser
destruídos.
* A doutrina de Mariano Paganini Lauria defende que tal efeito da condenação é automático.
A conduta do §1º envolve a fabricação, comercialização, distribuição ou veiculação de sím-
bolos, emblemas, ornamentos distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada,
para fins de divulgação do nazismo.
Nesse ponto, a doutrina destaca que existe finalidade específica (dolo específico) nesse crime,
consistente na expressão “para fins de divulgação do nazismo”. Portanto, para que se configure o
delito, a conduta deve ser praticada com essa finalidade.
Sujeito ativo: trata-se de um crime comum (tanto o caput quanto o §1°), pois pode ser pra-
ticado por qualquer pessoa.
Sujeito passivo: em relação ao caput é a pessoa que foi discriminada. Por outro lado, em
relação ao §1º, a doutrina entende que o sujeito passivo é a coletividade.