Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EMENTA
APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO
DE VULNERÁVEL (ARTIGO 217-A
DO CÓDIGO PENAL) – RECURSO
INTERPOSTO PELA DEFESA –
PLEITO DE ABSOLVIÇÃO –
PERTINÊNCIA – CONQUANTO
TENHA SIDO CONSTATADO
OBJETIVAMENTE O
COMPORTAMENTO CAPITULADO NO
ARTIGO 217-A DO CP CONSISTENTE
NA PRÁTICA DE ATO SEXUAL COM
MENOR DE 14 (CATORZE) ANOS,
NÃO SE VISLUMBROU TIPICIDADE
MATERIAL NESTE CASO CONCRETO,
DIANTE DAS SUAS
PARTICULARIDADES –
IRRELEVÂNCIA SOCIAL DO FATO
QUE AFASTA NECESSIDADE DE
SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA -
EXCEÇÃO “ROMEU E JULIETA” –
RÉU, ORA RECORRENTE, QUE
MANTEVE RELACIONAMENTO
(CONVIVERAM) COM A VÍTIMA
INICIADO QUANDO A MESMA
POSSUIA 13 (TREZE) ANOS DE
IDADE, TENDO A REFERIDA
SITUAÇÃO PERDURADO ATÉ OS
DIAS ATUAIS, TENDO O CASAL
CONVIVIDO NA CASA COM
GENITORES DO RÉU E COM O
CONSENTIMENTO DA MÃE DA
VÍTIMA – AUSÊNCIA DE
OFENSIVIDADE – PRECEDENTES
JURISPRUDENCIAIS EM
SITUAÇÕES ANÁLOGAS À
DESTES AUTOS – RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO –
DECISÃO UNÂNIME.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, acordam os integrantes da Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Estado de Sergipe, por unanimidade, conhecer do recurso, para lhe dar provimento, em
conformidade com o relatório e o voto constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do
presente julgado.
https://www.tjse.jus.br/tjnet/jurisprudencia/relatorio.wsp?tmp.numprocesso=202200303591&tmp.numacordao=202223371 1/7
04/08/2022 08:53 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE
RELATÓRIO
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SERGIPE ofereceu Denúncia em desfavor de C.A., filho de
Maria Lúcia da Conceição, qualificado nos autos, imputando-lhe a prática dos delitos tipificados nos art.
148, §1º, inciso IV, e art. 217-A, c/c art. 71, e 304 do CPB, todos c/c o art. 69.
Consta da peça exordial acusatória “que, no dia 07 de outubro de 2020, no Loteamento Japuí II,
na Vila de Márcia do Ouro, S/N, Povoado Pedra Branca, o denunciado CLEITON ALVES foi
flagrado ao manter em cárcere privado a vulnerável e adolescente G. da C.S. S., além de forma
contínua, ter praticado conjunções carnais contra a mesmal, sem o seu consentimento por
expressivo lapso temporal, tendo, ainda, feito uso de documento de identidade falso no decorrer da
abordagem policial.”
Inconformada com o decisum, a defesa interpôs a presente Apelação Criminal (fls.436) e, em suas
razões recursais, manifestou pela reforma da sentença, argumentando que o denunciado incorreu em
erro de proibição inevitável, pois tendo etnia cigana, crescido nessa cultura e ainda analfabeto, não tinha
entendimento da ilicitude de sua ato. Aduz que vendo de família cigana é normalizado o casamento com
meninas a partir dos 12 anos. Diz que ignorar a cultura de pessoas que vivem como nômades e sem
acesso a informação mostra um elitismo da justiça que ignora realidades diversas. Subsidiariamente,
requer a aplicação na dosimetria de pena do art. 21 do CP, acaso entenda que é um erro evitável com
consequente alteração do regime de pena.
Contrarrazões do Ministério Público pelo parcial provimento do apelo com aplicação do art. 21, parágrafo
único do CP.
É o Relatório.
À Revisão.
VOTO
Trata-se de Apelação Criminal interposta por C.A. contra sentença penal condenatória que lhe atribuiu a
prática de conduta tipificada no art. 217–A, cumulado com art. 65, inciso III, alínea d, e art. 61, inciso I,
todos do CP, arbitrando como reprimenda definitiva a sanção de 08 (oito) anos de reclusão.
https://www.tjse.jus.br/tjnet/jurisprudencia/relatorio.wsp?tmp.numprocesso=202200303591&tmp.numacordao=202223371 2/7
04/08/2022 08:53 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE
Alega a defesaque o denunciado incorreu em erro de proibição inevitável, pois tendo etnia cigana,
crescido nessa cultura e ainda analfabeto, não tinha entendimento da ilicitude de seu ato.
Da análise das provas vê-se que o acusado, tinha vasto conhecimento da idade da vítima e a simples
alegação de que não sabia ser tal conduta ilícita, não afasta o dolo do agente que, mesmo sabendo ser a
vítima menor de 14 anos, manteve com esta relações sexuais e conviviam juntos.
Vejamos os depoimentos das testemunhas e afirmação do réu, extraídos da sentença e disponíveis junto
ao SCPV, que corroboram tal fato:
Gilvando Ferreira da Silva - “(...)Que a relação da vítima era de casal com o réu. Que a vítima
comentou conviver com o réu desde os 13 anos de idade. Que perguntaram a vítima quanto
tempo ela estava lá e esta informou estar morando há alguns meses. Que ela informou ter
passado a morar com 13 anos, bem como se relacionar(...)”.
Maria Lúcia da Conceição (mãe do réu) – “(...)Que o réu realmente conviveu com a vítima
durante esse tempo, junto a ela. (...)Que a vítima tinha 13 anos. Que a vítima conviveu a partir
dos 13 anos. Que a mãe permitiu que o réu e a vítima morassem juntos(...)Que a vítima
passou a morar com o réu com uns 13 anos, 13 anos e meio, por aí, já estando próximo
dos 14 anos(...)”.
Martha Maria Santos (mãe da vítima) – “(...)Que quando eles passaram a conviver, viviam
bem. Que na época a filha estava com 13 anos. Que a vítima foi morar com o marido. Que
permitiu que a filha morasse com o réu tão nova. Que permitiu porque a vítima quis. Que
aceitou que a vítima morasse com o réu, pois estava tudo certinho. Que convivem há dois
anos(...)”.
Aliás, o próprio réu confirmou que convive com a Gabriela há 02 anos e 04 meses, e que
tiveram relações sexuais mesmo quando ela tinha menos de 14 anos de idade.
O fato da vítima ter consentido com a relação, não torna formalmente atípica a conduta do réu que
mantinha relação afetiva com a menor.
Í É
https://www.tjse.jus.br/tjnet/jurisprudencia/relatorio.wsp?tmp.numprocesso=202200303591&tmp.numacordao=202223371 Í 3/7
04/08/2022 08:53 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE
Este Tribunal de Justiça, na mesma esteira, também já admitiu exceção ao entendimento outrora firmado
na Súmula 593 do STJ:
cumprimento de uma pena de 13 anos de reclusão, revela uma completa subversão do direito
penal, em afronta aos princípios fundamentais mais basilares, em rota de colisão direta com o
princípio da dignidade humana. A manutenção da pena privativa de liberdade do
recorrente, em processo no qual a pretensão do órgão acusador se revela contrária
aos anseios da própria vítima, acabaria por deixar a jovem e o filho de ambos
desamparados não apenas materialmente, mas também emocionalmente,
desestruturando a entidade familiar constitucionalmente protegida. (REsp 1524494/RN
e AREsp 1555030/GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/5/2021, DJe 21/5/2021). - A
“Exceção de Romeu e Julieta” tem o escopo de ir ao encontro da chamada tipicidade material,
evolução doutrinária que exige não apenas a fria subsunção do fato à norma (tipicidade formal),
mas, mais que isso, exige que a lesão ao bem jurídico tutelado seja considerável, devendo ser
levado em consideração para tanto a vontade do legislador. No caso dos autos, por certo, a
vontade legal não é o esfacelamento da entidade familiar e o desamparo da vítima e do filho
menor do casal.” (TJ/SE – Revisão Criminal Nº 202100123013 Nº único: 0009635-
03.2021.8.25.0000 - TRIBUNAL PLENO – Rel. Desembargador Ricardo Múcio Santana de A.
Lima - Julgado em 17/11//2021 – Publicado no DJE/SE em 25/11/2021) (sem grifo no
original)
Nesse contexto, considero pertinente o exame das particularidades do presente caso concreto.
Saliento que no depoimento da vítima e da mãe desta foi ressaltado que, em que pese a idade da vítima,
foi permitido o relacionamento com o réu, não visualizando elas nenhum problema com relação a tal
conduta.
A mãe da vítima afirmou que permitiu o relacionamento, que eles viviam bem e que a filha a visitava
constantemente, não vendo qualquer problema com o relacionamento da filha com o acusado.
“Que tem 15 anos. Que está em juízo para falar sobre o caso do seu marido. Que teve relação
com um outro rapaz, ai o rapaz deixou ela jogada na rua me Laranjeiras. Que o
marido ficou atrás dela, porque ficou preocupado porque ela fugiu. Que ele e a sogra
ficaram procurando por ela, ai eles a acharam e ala pensou que ele ia fazer alguma
coisa com ela, mas ele não fez, apenas levou ela para casa. Que ela tava toda suja e
com os cabelos assanhados e quando ele chegou em casa não fez nada com ela. Que
mandou ela tomar banho e vestir a roupa, e beber um litro de agua. Que foi a
delegacia porque pensou que ele ia fazer alguma coisa com ela, mas graças a Deus ele
não fez. Que só foi na delegacia porque ficou com medo, mas até esse exato momento
ele não fez nada com ela. Que ele foi preso, porque ela com a cabeça cheia falou. Que ela
disse a mãe que ele não batia nela e nem mantinha em cárcere privado. Que ele ia na casa
da mãe sempre que queria e ele não impedia. Que moravam de barraco e a mãe dele,
o pai e as irmãs tratavam ela bem. Que ele nunca tocou a mão nela e se disser que
tocou vai tá mentindo. O que disse na delegacia foi porque tava com a mente cheia,
pensando que ele ia fazer alguma coisa e ai falou uma coisa em cima da outra. Que na
delegacia disse que ele não deixava ela sair de casa, mas foi porque tava com a cabeça cheia.
Que do medo ela gerou muitas coisa, mas graças a Deus ele não fez nada. Que tinha medo
porque naquele exato momento que fugiu com o cara, ai eu passei cinco dias na rua e
quando ele me achou eu pensei que ele ia fazer alguma coisa comigo. (Ruído do som
na gravação - inaudível). Que ela tinha traído ele, ai ficou com medo. Que convive
com ele a dois anos, porque a mãe liberou. Que antes dele já tinha casado com duas
pessoas antes. Que a mãe liberou para morar com ele e ele foi pedi na porta
direitinho. Que eles namoraram e depois ele chamou para morar com ele e minha mãe
deixou. Que ele e a mãe foram me procurar quando estava em Laranjeiras. Que ela tinha
fugido com o rapaz de Laranjeiras, por isso tava lá. Que ele levou ela de volta para casa e
tratou ela bem. Que no outro dia eles foram para casa da mãe dela e quando voltaram
aconteceu esse negócio. Que ela foi na delegacia porque estava com medo dele fazer alguma
coisa, mas ele não fez nada com ela. Que se disser que ele fez alguma coisa esta
https://www.tjse.jus.br/tjnet/jurisprudencia/relatorio.wsp?tmp.numprocesso=202200303591&tmp.numacordao=202223371 5/7
04/08/2022 08:53 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE
mentindo. Que o que falou na delegacia foi mentira, coisa da mente dela com medo.
Que ele tá preso lá inocente. Que ele não era ignorante e nunca bateu nela, nem deixou ela
trancada em casa. (ruído do som da gravação - inaudível). Que quer que tire a queixa dele,
porque ele tá preso inocente. Que mentiu lá na delegacia, e ninguém pediu para ela
mudar a história agora não e que veio falar agora porque mentiu antes, ninguém
entrou na mente dela não. Lá mentiu foi porque tava enraivada e tinha traído ele.
(ruído do som da gravação – inaudível). Que tava presente quando Cleiton foi preso, mas não
conversou com nenhum policial. Que ele tá preso inocente. Que na delegacia falou porque tava
com a mente muito cheia e agora ta dizendo que mentiu, ele não fazia na com ela e tratava ela
bem. Que tinha 13 anos quando começou a relação. Que no começo só ficava nos
amassinhos e só quando foi morar com ele foi que teve relação. Que quando foi morar
com ele faltava um mês para fazer 14 anos.”
Do interrogatório do réu vê-se que se trata de homem de pouca instrução, não demonstrando em seu
depoimento qualquer intenção de dissimular os fatos, afirmando que ele e a vítima conviviam bem.
O Promotor de Justiça atuante no 1º grau vislumbrou a existência de erro de proibição indireto, já que o
acusado sabia ser conduta típica, mas supôs presente causa permissiva, diante da etnia cigana, idade,
consentimento familiar e sua pouca instrução escolar.
A meu sentir, no caso dos autos, merece acolhida a pretensão recursal a partir da alegada atipicidade,
ora considerada como sendo “atipicidade material”, tendo em vista a valoração dos elementos deste caso
concreto como sendo indicativo de incompatibilidade entre o édito condenatório e o interesse da vítima
pretensamente protegida pelo Estado-juiz.
A vítima e sua genitora afirmam que o réu pediu esta em namoro e depois para morarem juntos, tudo
com o consentimento da genitora da vítima, que afirma que eles viviam bem e que aceitou que a filha
convivesse com ele, mesmo tendo 13 anos, porque ela queria e estava tudo certo.
Vide, por derradeiro, ementa de recente julgamento unânime realizado na Câmara Criminal desta Corte
em que restou reformada sentença condenatória proferida em situação análoga à destes autos:
- Aliado a isso, não se mostra adequado a punição do agente, réu primário, sem
antecedentes, ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade no montante de 08
(oito) anos em regime semiaberto, por afronta aos princípios fundamentais previstos
na Carta Magna, mormente da dignidade da pessoa humana;
- A Exceção de Romeu e Julieta analisa o fato não fazendo a subsunção deste à norma penal
fria e literal, mas analisando as circunstâncias do ato a fim de verificar se a conduta praticada
pelo agente é típica.
Ante o exposto, conheço do recurso, para lhe dar provimento, reformando a sentença recorrida para
absolver o réu C.A. da imputação do crime tipificado no artigo 217-A do CP, determinando-se, ainda, que
seja encaminhado expediente de comunicação ao Juízo das Execuções Penais a fim de que tome
conhecimento deste julgamento, nos termos do artigo 1º, Parágrafo único da Resolução nº 113/2010 do
CNJ, com redação conferida pela Resolução nº 237/2016 do referido Conselho.
Por conseguinte, revogo a prisão preventiva do réu, devendo ser expedido o alvará de soltura, se por
outro motivo não estiver preso.
É como voto.
DESA.
ANA LÚCIA FREIRE DE A. DOS ANJOS
RELATOR
https://www.tjse.jus.br/tjnet/jurisprudencia/relatorio.wsp?tmp.numprocesso=202200303591&tmp.numacordao=202223371 7/7