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SAÚDE DO TRABALHADOR

Saúde do Trabalhador

O campo da Saúde do Trabalhador (ST) no Brasil é resultante de um patrimônio acumulado no âm-


bito da Saúde Coletiva, com raízes no movimento da Medicina Social latino-americana e influenciado
significativamente pela experiência operária italiana.

O avanço científico da Medicina Preventiva, da Medicina Social e da Saúde Pública, durante os


anos60/70, ampliou o quadro interpretativo do processo saúde-doença, inclusive em sua articulação
com o trabalho. Essa nova forma de apreender a relação trabalho-saúde e de intervir no mundo do
trabalho introduz, na Saúde Pública, práticas de atenção à saúde dos trabalhadores, no bojo das pro-
postas da Reforma Sanitária Brasileira.

Configura-se um novo paradigma que, com a incorporação de alguns referenciais das Ciências Soci-
ais - particularmente do pensamento marxista - amplia a visão da Medicina do Trabalho e da Saúde
Ocupacional. Algumas publicações referem essa trajetória, sistematizam determinadas práticas ou
expõem diferenças conceituais e metodológicas da Saúde do Trabalhador com a Medicina do Traba-
lho e a Saúde Ocupacional.

A referência central para o estudo dos condicionantes saúde-doença é o processo de trabalho, con-
ceito recuperado, nos anos70, das ideias expostas por Marx, particularmente no Capítulo VI Inédito
de O Capital.

A apropriação do conceito “processo de trabalho” como instrumento de análise possibilita reformular


concepções ainda hegemônicas que ao estabelecerem articulações simplificadas entre causa e
efeito, numa perspectiva uni ou multicausal, desconsideram a dimensão social e histórica do trabalho
e do binômio saúde/doença. Desse modo, indivíduo e ambiente são apreendidos na sua exteriori-
dade, ignorando-se sua historicidade e o contexto que circunstancia as relações de produção materi-
alizadas em condições específicas de trabalhar, geradoras ou não de agravos à saúde.

A saúde do trabalhador configura-se como um campo de práticas e de conhecimentos estratégicos


interdisciplinares - técnicos, sociais, políticos, humanos -, multiprofissionais e interinstitucionais, volta-
dos para analisar e intervir nas relações de trabalho que provocam doenças e agravos8. Seus marcos
referenciais são os da Saúde Coletiva, ou seja, a promoção, a prevenção e a vigilância.

O tratamento interdisciplinar implica a tentativa de estabelecer e articular dois planos de análise: o


que contempla o contorno social, econômico, político e cultural - definidor das relações particulares
travadas nos espaços de trabalho e do perfil de reprodução social dos diferentes grupos humanos - e
o referente a determinadas características dos processos de trabalho com potencial de repercussão
na saúde9. Entre os conceitos e noções extraídos dessas características, encontram-se os classifica-
tórios de risco - fundamentalmente associados às propriedades materiais e mensuráveis quantitativa-
mente dos objetos, meios e ambientes de trabalho - e os de exigências ou requerimentos, que dizem
respeito a componentes mais qualitativos derivados da organização do trabalho.

Contemporâneo ao Movimento da Reforma Sanitária, o pensamento novo sobre a ST obteve maior


repercussão com a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, em86. Em dezembro desse
mesmo ano, na I Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador foram divulgadas as experiências
de implantação da Rede de Serviços de ST, então em andamento. Essa rede, anterior à promulgação
do SUS, já incorporava princípios e diretrizes que depois seriam consagrados pela Constituição de88,
tais como a universalidade, a integralidade e o controle social.

A interlocução com os próprios trabalhadores - depositários de um saber emanado da experiência e


sujeitos essenciais quando se visa a uma ação transformadora - é uma premissa metodológica. Já,
em finais dos anos70, essa premissa foi incorporada no “Modelo Operário Italiano”10, tendo como
alvo a mudança e o controle das condições de trabalho nas unidades produtivas.

Neste artigo aborda-se inicialmente o processo que precedeu à inserção da ST no SUS. Mostram-se
alguns dos fatores que influíram nesse processo, entre eles, a mobilização pela assistência à saúde
no trabalho por parte de determinados setores sindicais e o apoio de organizações internacionais. É
analisada, a continuação, a trajetória seguida na institucionalização de ST no SUS, apontando-se os
avanços conseguidos e as várias dificuldades encontradas. Destaca-se particularmente a compreen-
são da Vigilância em Saúde do Trabalhador por meio de casos exemplares que dizem respeito à sua
prática. Finalmente, realiza-se uma breve análise da situação do controle social nesse particular.

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Antecedentes da Saúde do Trabalhador no Brasil

No caso brasileiro, nos anos de70, concomitantemente ao acelerado crescimento do número de tra-
balhadores industriais, houve um forte incremento na organização dos trabalhadores em torno da re-
gulamentação da jornada de trabalho e em busca de melhores salários. São também dessa década
os primeiros movimentos em defesa da saúde pela melhoria das condições de trabalho.

Uma iniciativa da assessoria técnica do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde


e dos Ambientes de Trabalho – DIESAT, junto ao Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Petroquí-
micos do ABCD, foi fundamental para que o sindicato propusesse à Secretaria de Estado da Saúde
(SES), no ano de 84, o Programa de Saúde do Trabalhador Químico do ABC. Uma experiência pio-
neira com efetiva participação sindical em sua gestão. Posteriormente, foram criados Programas de
Saúde do Trabalhador (PST) semelhantes na SES de São Paulo e em outros Estados, com diversos
níveis de participação dos trabalhadores, inclusive na realização de ações de vigilância em algumas
empresas.

O próprio autor salienta que os PST foram influenciados pela posição da OIT e da própria OMS,
quando, em83, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) publicou o Programa de Salud de
los Trabajadores e patrocinou um seminário, realizado, em84, em Campinas. Nesse seminário, discu-
tiu-se a necessidade de se passar do conceito de saúde ocupacional para o de saúde dos trabalhado-
res, com vistas a enfrentar a problemática saúde-trabalho como um todo, numa conjugação de fato-
res econômicos, culturais e individuais.

Nos primeiros Programas e nos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador – CRST, anteriores
ao advento do SUS, prevalecia a dimensão assistencial. O foco principal dessas estratégias era diag-
nosticar, orientar e acompanhar as patologias decorrentes do trabalho com a perspectiva de criar
condições para que a rede pública viesse a se constituir em instância efetiva para assistência à saúde
dos trabalhadores.

Uma mudança de perspectiva encontra-se no relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde
quando apontava que o trabalho em condições dignas e o conhecimento e controle dos trabalhadores
sobre processos e ambientes de trabalho são pré-requisitos para o pleno exercício do acesso à sa-
úde. E aª CNST incorpora a proposta de que o SUS deve englobar ações e órgãos de ST, na pers-
pectiva da saúde como direito.

Em termos do marco político normativo do Estado, a ST é situada na perspectiva da saúde como di-
reito universal, conforme definido pela Constituição Federal de88 e na Lei nº080/90, transcendendo o
marco do direito previdenciário-trabalhista em que a ação de Estado restringe-se à regulação da sa-
úde e segurança.

A própria Lei Orgânica da Saúde determina que as ações de ST devam ser executadas pelo SUS nos
âmbitos de assistência, vigilância, informação, pesquisas e participação dos sindicatos. A Lei estabe-
lece também ser competência da instância federal do SUS participar da definição de normas, critérios
e padrões para o controle das condições e dos ambientes de trabalho e coordenar a política de ST de
forma hierarquizada e descentralizada para estados e municípios. A mesma Lei regula também a ne-
cessidade de o Conselho de Saúde estruturar a Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador -
CIST.

A Saúde do Trabalhador no SUS – Avanços e desafios

O percurso de institucionalização da ST no SUS não se constituiu em trajetória linear de implementa-


ção constante e incremental. Com a promulgação da Constituição Federal, em88, à medida que se
avançava na inclusão mais orgânica da área de ST no SUS, os desafios para a sua consolidação efe-
tiva surgiam, muitas vezes, como verdadeiros obstáculos para sua viabilização.

No início dos anos90, criavam-se novos PST em vários estados e municípios, em todo o país, mas
nem todos se consolidavam, tendo alguns uma vida efêmera. Nesses primeiros anos, os avanços
para a consolidação da área dependiam da superação de vários desafios. Eram muitos os fatores
combinados, a serem suplantados.

Alguns deles até hoje permanecem desafiadores, a despeito dos avanços observados. Destacam-se:
a ausência de uma cultura da ST, no âmbito da saúde pública; a dificuldade de utilização de recursos,

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mesmo com rubrica própria; um corpo técnico insuficiente com formação específica de atuação; con-
flitos de competência com outras áreas do aparelho de Estado; resistência das vigilâncias tradicionais
(epidemiológica e, principalmente, sanitária) a incorporar o binômio saúde/trabalho em suas práticas;
a percepção da população trabalhadora com viés assistencial e autoexcludente como protagonista de
suas práticas; a ausência de metodologias de abordagem condizentes com a concepção da área de
ST; a inconsistência e heterogeneidade de entendimento, da questão da ST, quando não a ausência,
nos dispositivos normativos nas três esferas de governo.

Pouco a pouco, ainda nos anos90, avançava-se e novos desafios surgiam. Na primeira metade da
década, a realização da II Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador - II CNST, em94, ratificou a
determinação constitucional de municipalização das ações. Essa proposta coincidia com a ruptura
com o modelo securitário, ocorrido no ano anterior, com a IX Conferência Nacional de Saúde, que es-
tabelecia um novo modelo de gestão do SUS (festejado pelos que defendiam a Reforma Sanitária).
Para a ST a perspectiva era alvissareira, na medida em que as ações de ST deveriam ser acolhidas e
executadas nos municípios.

O desafio não foi plenamente exitoso. Ainda hoje, a dificuldade de se municipalizar as ações de ST é
um entrave para a sua consolidação no SUS. Muitas das propostas da II CNST prenunciavam alguns
dos avanços que viriam, mas também, os desafios que, por certo, trariam. Uma delas, a de participa-
ção paritária das entidades sindicais e organizações populares... na gestão da ST, revelava um
avanço coerente não só com o seu marco conceitual, como também com o princípio constitucional de
democracia participativa do SUS. A rigor, essa proposta jamais foi implementada, salvo em situações
de excepcionalidade em que pouquíssimos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador – Ce-
rest exercem sua gestão em articulação com conselhos gestores com alguma participação sindical e
popular.

Naquela primeira metade da década de90, ocorria também a instituição da CIST, vinculada ao CNS.
Seu surgimento obedecia aos artigos2 e3 da Lei Orgânica de Saúde. Durante a 2ª metade da década,
a CIST nacional se consolidou e participou de forma proativa no delineamento de uma política de ST.
De fato, avanços ocorreram, todavia, encetando mais desafios para sua efetiva consolidação.

Alguns exemplos de participação decisiva da CIST nesse período são citados, a seguir. Um deles foi
a Instrução Normativa da Vigilância em Saúde do Trabalhador - Visat no SUS, notável avanço para a
área, embora fosse assinada somente três anos depois de formulada (1988). Acresça-lhe o enorme
desafio até hoje, anos depois de sua promulgação, não ser um instrumento normativo-metodológico
de ação cotidiana das práticas dos Cerest. Também de98, é a Norma Operacional de Saúde do Tra-
balhador - NOST/SUS, instrumento orientador significativo da gestão, mas precocemente revogado.

A publicação da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho,em99, foi um avanço bem-sucedido. Por


força de um dispositivo da Lei Orgânica de Saúde, em seu artigo 6º (parágrafo 3º, inciso VII), foi re-
vista a listagem obsoleta e reduzida que colocava o Brasil até então num ranking inferior de reconhe-
cimento oficial de doenças relacionadas ao trabalho, frente à maioria dos países do mundo ocidental.

Fortemente ampliada, a listagem foi exaustivamente detalhada em manual publicado em 2001, tor-
nando-se referência para médicos peritos e profissionais de saúde em geral até hoje. Resta efetuar
nova revisão, pois já se passaram7 anos e o dispositivo legal determina que a revisão deve ser perió-
dica. Inclusive, as novas tecnologias e a reestruturação produtiva em permanente marcha produzem
novas modalidades de agravos não contemplados na listagem vigente.

Várias outras propostas foram consignadas, ainda na década de90, com participação da CIST, tais
como o preenchimento de Autorizações de Internação Hospitalar nos casos compatíveis com aci-
dente de trabalho e a Política de Saúde Ocupacional para o Trabalhador do SUS, inserida na
NOB/RH-SUS - Princípios e Diretrizes para a Gestão do Trabalho no SUS, em 2005.

O ingresso na década de 2000 inicia com a área técnica de ST do Ministério da Saúde, formulando
uma proposta de criação de uma rede de ST que, dois anos depois, seria oficialmente normalizada
como Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador - Renast.

Em sua atual formatação institucional, prevista na Portaria nº 2.728, de1 de novembro de 2009, a Re-
nast deve integrar a rede de serviços do SUS por meio de Centros de Referência em Saúde do Tra-
balhador (Cerest).

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Na medida da implantação gradual da Renast, com a emissão de três Portarias de 2002 a 2009 ofici-
alizando-a, foi inegável o avanço da área, com a criação de uma identidade comum. O balanço dos
primeiros 20 anos da ST no SUS já denotavam o que se tinha e o que se poderia esperar15,16.

O desafio que se impôs, e que efetivamente não foi ainda superado, era o padrão identitário calcado
na rubrica orçamentária comum aos Cerest de todo o Brasil, independentemente de suas localiza-
ções e das demandas impostas pelo perfil sócio-econômico-produtivo. Prevaleceu o viés orçamentá-
rio de caráter mais pragmático, cujo percurso ao longo dos5 anos, desde sua implantação, acabou
por facilitar o surgimento de soluções de continuidade que, hoje, desafiam os profissionais dos Cerest
a utilizarem os recursos rubricados de ST.

Com a Renast, a área avançou especialmente no aspecto formativo de quadros. A renovação perma-
nente de profissionais, embora ocasione perdas de técnicos bem formados, mantém um preponde-
rante ingresso de novos profissionais, o que demonstra a vitalidade da área. Caracterizam-se pela
procura constante de cursos de pós-graduação e também pelos cursos básicos de formação para a
Visat, junto aos Cerest das mais distintas regiões do Brasil.

Um desafio que acompanha esse inegável avanço é a aferição da qualidade de algumas modalidades
de formação, especialmente não presenciais, quanto à dissociação da teoria da prática participativa
plural de intervenção sobre o mundo do trabalho. Esses diferentes cursos precisariam ser avaliados
dentro de uma proposta de implementação da PNSTT, indagando-se em que medida seus conteúdos
e suas abordagens pedagógicas estão em sintonia com as necessidades operacionais das diretrizes
dessa política. Os processos formativos devem visar resultados objetivos, de modo a transformar a
realidade mais perene e eficazmente.

A estrutura continental do Brasil, sua diversidade cultural, a ocupação econômica dos territórios e a
imensa variabilidade de seus equipamentos de saúde agregam desafios na esfera do que já é efetiva-
mente considerado como avanço para a área de ST. Cabe destacar os êxitos emblemáticos conse-
guidos nos últimos anos em determinados territórios por Cerest que atuam em estreita articulação in-
terinstitucional.

Nesses termos, é importante ressaltar o aporte que o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem dado
ao longo dos últimos anos. Frequentemente, o MPT é promotor de articulações intersetoriais, tendo
os Cerest como foco essencial para a formulação de demandas e a adoção de medidas necessárias
para enfrentar problemas em diversos setores produtivos. São muitos os avanços obtidos, a partir de
audiências públicas e de Termos de Ajuste de Conduta (TAC) firmados com empresas. Questiona-se,
no entanto, o risco de judicialização de conflitos sociais, embora seja indiscutível a função que de-
sempenha, sobretudo frente às atuais limitações e deficiências de órgãos públicos de fiscalização e
vigilância de ST.

Ainda, na linha intersetorial, o papel das instituições acadêmicas, especialmente das universidades
públicas, incluídas a Fiocruz e a Fundacentro, tem sido relevante na formação de quadros. É neces-
sária, no entanto, uma articulação mais perene, orgânica e institucionalizada que não se limite à con-
tribuição de profissionais compromissados na melhoria das condições de trabalho e saúde dos traba-
lhadores.

Quanto à Renast, embora exista uma rotatividade de profissionais dos Cerest, e que provoca descon-
tinuidade de ações em alguns casos, vale lembrar os programas estratégicos de formação-ação reali-
zados em alguns estados, em consonância com as diretrizes de vigilância para categorias de traba-
lhadores consideradas prioritárias. Nessa linha merecem destaque os cursos de formação de Multipli-
cadores de Visat, com apoio do Ministério da Saúde e da Fiocruz, os cursos de pós-gradua-
ção lato e stricto sensu, de caráter multiprofissional, e iniciativas distintas e efetivas de formação con-
tinuada.

Possibilitam uma formação crítica às visões tecnicistas e reducionistas ainda prevalentes na área.
Também o surgimento de algumas propostas institucionais que estimulam a construção e amadureci-
mento de equipes de pesquisadores de formações diversas tem demonstrado a potencialidade dessa
nova perspectiva de investigação/ação.

A homologação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, em 2012, consti-


tuiu um passo importante para orientar as ações e a produção científica na área. Enquanto principal
referência normativa de princípios e diretrizes da área de ST, a Política efetivamente pode contribuir,

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entre muitos outros aspectos, para superar o distanciamento entre a produção de conhecimentos de
setores da academia e as necessidades de fundamentação na prática dos serviços.

Um desafio é a aferição do processo de formação que se baseie em resultados objetivos, cujo desfe-
cho do percurso formativo seja a investigação/ação concretizada no mundo real e ombreada com os
trabalhadores.

Avanços e desafios da Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat)

É na Visat que reside a capacidade de transformar a realidade do mundo do trabalho. Com ela se co-
nhece a realidade da população trabalhadora e os fatores determinantes de agravos à sua saúde, de
modo a intervir sobre eles. O impacto das medidas adotadas subsidia a tomada de decisões dos ór-
gãos competentes dos governos e, ainda, aprimora os sistemas de informação existentes em ST. A
Visat, além disso, enquanto prática interdisciplinar, multiprofissional, interinstitucional e intersetorial,
ao ultrapassar os limites do setor saúde, embora subordinada a seus princípios, amplia o raio de ação
do SUS, fazendo valer sua concepção original de sistema.

A Visat tem a tarefa de trazer para o contexto dos serviços de saúde a análise da relação da saúde
com o processo de trabalho. Faz parte da natureza complexa e conflituosa da sua ação: explicitar,
observar e intervir nas situações de risco, nas relações de trabalho, e nas formas de resistência e
desgaste da saúde dos trabalhadores.

Dos cerca de 210 Cerest, atualmente habilitados, segundo o último Inventário da Renast 2015/2016,
publicado no Renast Online de 2017, alguns já têm uma experiência acumulada de atuação em con-
sonância com as premissas da Visat. Além disso, observa-se o aumento no registro de agravos rela-
cionados ao trabalho, com milhão de casos registrados e 98% dos municípios mostrando capacidade
de realizar esse registro.

São exemplares os casos que dizem respeito à vigilância da exposição ao benzeno em postos de
combustíveis; as ações de vigilância à saúde do trabalhador canavieiro; as ações articuladas para o
banimento do amianto (hoje exitosa); ações interinstitucionais e negociações para vigilância e preven-
ção de acidentes de trabalho. Iniciativas sobre determinadas situações como o trabalho escravo, o
trabalho infantil, trabalho em condição de precariedade extrema no lixo, no carvão e em territórios de
vulnerabilidade, ainda que focais, devem ser considerados também como avanços da área, posto que
consolidam metodologias de intervenção, apontando para aprimoramentos futuros.

Merecem destaque as pneumoconioses, o câncer relacionado ao trabalho, as intoxicações por agro-


tóxicos e a saúde mental por reforçarem linhas temáticas nacionais de implantação da vigilância arti-
culada entre os Cerest e a Atenção Básica, dentre outras instâncias. No caso da vigilância da saúde
mental, sua transversalidade em todos os sistemas de trabalho aponta ao desafio de se transpor a
visão exclusiva sobre os riscos clássicos nos ambientes de trabalho para passar a focalizar também a
organização do trabalho. Esses temas recorrentes acenam com a possibilidade de construção de pro-
tocolos e ações programáticas de formação para a Visat.

Todas essas iniciativas guardam a premissa da intersetorialidade, interdisciplinaridade e da participa-


ção dos trabalhadores em seu desenvolvimento. A vigilância da saúde das populações do campo, flo-
resta e águas, um dos atuais focos de ação de Visat em diversas regiões, traz uma peculiaridade
bem-vinda para a consolidação da ST. O fato de se articular a vigilância ambiental com a Visat, mui-
tas vezes em territórios de conflito e vulnerabilidade, possibilita o aprimoramento da pesquisa-ação,
marca da Visat. É crescente o movimento de formação no âmbito da pesquisa-ação, com apoio de
grupos acadêmicos envolvidos e comprometidos com os movimentos dos povos tradicionais, comuni-
dades ribeirinhas e costeiras, pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras, mulheres artesãs,
trabalhadores em assentamentos, entre tantos, configurando uma vigilância de base territorial inte-
grada e participativa.

A medida do avanço da ST se delimita pelo tamanho do desafio. No caso da Visat, é essencial resol-
ver ou, ao menos, atenuar o “conflito de competências” da vigilância da saúde no mundo do trabalho,
seja no interior do sistema de saúde, com a vigilância sanitária, seja para fora, com a fiscalização do
trabalho. A insensibilidade de agentes públicos para com a missão do SUS de proteger, promover a
saúde e prevenir os danos à saúde do trabalhador é um fato incompreensível sob a determinação
constitucional do exercício do SUS na Visat.

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Avanços e Desafios do Controle Social

Ao avanço representado pela instituição das CIST, como exigência para a habilitação dos Cerest, da
mesma forma que em outras instâncias de participação dos usuários no setor saúde, a representação
dos trabalhadores nessas comissões constitui-se em desafio permanente para transformar represen-
tação em representatividade. O baixo nível de mobilização das organizações da classe trabalhadora
repercute na pouca efetividade das estruturas de controle social para garantir a priorização de ações
de atenção em ST nos planos estaduais e municipais de saúde.

Há uma tendência de se transferir a responsabilidade da participação para as próprias organizações


(sindicatos, associações, movimentos). É um desafio mudar esse equívoco de compreensão. Lidando
com um Estado, cujos sucessivos governos lhes cassam direitos e não lhes dão as respostas ade-
quadas às suas necessidades, pouco lhes resta além da reticência e desconfiança. O desafio se situa
na mudança de estratégia de aproximação, acolhimento e reconquista da confiança.

Um desafio adicional é a organização de CIST, geralmente vinculada ao Cerest Regional do municí-


pio-sede. Os demais municípios da região, que podem variar de unidades a dezenas, não possuem
representação do controle social. No último Inventário da Renast havia26 CIST, no Brasil, sendo 27
estaduais e 99 municipais. No levantamento de 2014, dos 209 Cerest habilitados, apenas 34 informa-
ram que houve participação dos trabalhadores nas ações de Visat. Quanto à participação dos traba-
lhadores na elaboração da Programação Anual de Saúde, somente4 a confirmaram.

Redimensionar estruturas de representação impõe-se como tarefa a ser enfrentada no planejamento


futuro da Renast. Algumas iniciativas recentes adquirem importância, como a criação de observató-
rios das centrais sindicais e os avanços observados nas reivindicações de atenção à saúde dos tra-
balhadores, especialmente em sindicatos rurais. Outros espaços de articulação como os Fóruns Inter-
sindicais de articulação entre sindicatos, Cerest e instâncias formadoras (acadêmicas) são avanços
recentes que reforçam o papel das CIST, não só por ampliar seu território de abrangência, como pela
possibilidade de formação qualificada para dirigentes sindicais e trabalhadores em geral.

É evidente que o maior avanço da saúde do trabalhador no Brasil foi seu reconhecimento constitucio-
nal como área contida no âmbito da saúde pública. Mas, a despeito das críticas à sua institucionaliza-
ção e ao desenvolvimento de suas ações, ainda insuficientes para dar conta do cenário dramático do
mundo do trabalho em matéria de saúde, no Brasil, são incontáveis seus avanços nesses 30 anos de
SUS.

Todavia, as ações nos cotidianos institucionais, às vezes marcadas por disputas e preconceitos técni-
cos institucionais, ocasionam confrontos no campo do fazer, operar. Resta superar esses desafios,
explicitando possibilidades de análise e reflexão sobre os avanços frequentemente interrompidos por
instabilidades e fragilidades do Estado, redutoras do grau de direito à saúde dos trabalhadores e tra-
balhadoras brasileiros.

O campo de saúde do trabalhador anda para frente, embora por caminhos tortuosos marcados pela
reestruturação produtiva e em confronto com a hegemonia do mercado que tritura relações sociais,
como diria Karl Polanyi em seu ‘moinho satânico’.

Embora as práticas sejam implementadas de forma lenta e com muitas limitações de ordem institucio-
nal e de conflitos de concepções, nesses 30 anos de saúde do trabalhador no SUS a constatação dos
avanços possibilita visualizar melhor os desafios.

Desafios, contudo, que ditam rumos, encetam estratégias, infundem desejos criativos, encenam no-
vas parcerias, induzem a reposicionamentos éticos e fomentam a necessidade de procurar outros co-
nhecimentos ou outras saídas. 30 anos não é pouca coisa, mas também não é muita, quando se pre-
tende investir na dignidade no trabalho, pela via da saúde do trabalhador. É só o começo.

"O discurso da saúde do trabalhador emerge, do ponto de vista acadêmico, político e institucional na
saúde coletiva, em contraposição à base conceitual e prática das concepções hegemônicas sobre a
relação trabalho-saúde da medicina do trabalho (MT) e da saúde ocupacional (SO). Como parte inte-
grante do campo da saúde oletiva, propõe-se a ultrapassar as articulações simplificadas e reducionis-
tas entre causa e efeito de ambas as concepções que são sustentadas por uma visão monocausal,
entre doença e um agente específico; ou multicausal, entre a doença e um grupo de fatores de riscos
(físicos, químicos, biológicos, mecânicos), presentes no ambiente de trabalho.

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"Em princípio, a identidade do campo de saúde do trabalhador tem como referência a abordagem sa-
úde ocupacional, ao mesmo tempo que busca superá-la [...]. A saúde do trabalhador agrega, além
dessas [medicina e engenharia de segurança] um amplo espectro de disciplinas. Como campo de sa-
ber próprio da saúde coletiva, está composta pelo tripé epidemiologia, administração e planejamento
em saúde e ciências sociais em saúde, ao que se somam disciplinas auxiliares [...]

"No âmbido da 'produção de conhecimentos', o campo da saúde do trabalhador tem, como marco de-
finidor, a compreensão dos vários níveis de complexidade entre o trabalho e a saúde e, como con-
ceito nucleador, o processo de trabalho [...], extraído da economia política - entendido como o cenário
primário da exploração e da confrontação de classe -, quando adotado em toda a sua extenção teó-
rica tem um elevado poder explicativo ada gênese dos agravos à saúde em coletivos diferenciados de
trabalhadores.

"As potencialidades da análise dos processos de trabalho, no entanto vêm condicionadas à adoção
do tratamento interdisciplinar requerido para estabelecer e articular dois planos. O primeiro contempla
o contorno social, econômico, político e cultural, definidor das relações travadas nos espaços econô-
mico, político e cultural, definidor das relações travadas nos espaços de trabalho e das condições de
reprodução dos trabalhadores; e o segundo se refere a determinadas características dos processos
de trabalho com potencial repercussão na saúde, inclusive a subjetividade dos trabalhadores. " (Mi-
nayo, 2011. Campo da saúde do trabalhador: trajetória, configuração e transformação. In Minayo et
al, Saúde do trabalhador na sociedade contemporânea)

"Em síntese, por Saúde do Trabalhador compreende-se um corpo de práticas teóricas interdisciplina-
res - técnicas, sociais, humanas - e interinstitucionais, desenvolvidas por diversos atores situados em
lugares sociais distintos e informados por uma perspectiva comum. Essa perspectiva é resultante de
todo um patrimônio acumulado no âmbito da Saúde Coletiva, com raízes no movimento da Medicina
Social latino-americana e influenciado significativamente pela experiência italiana. O avanço científico
da Medicina Preventiva, da Medicina Social e da Saúde Pública, durante os anos 60 e o início da dé-
cada de0, ao suscitar o questionamento das abordagens funcionalistas, ampliou o quadro interpreta-
tivo do processo saúde-doença, inclusive em sua articulação com o trabalho.

Reformula-se o entendimento "das relações entre o social e as manifestações patológicas, a catego-


ria trabalho aparecendo como momento de condensação, em nível conceitual e histórico, dos espa-
ços individual (corporal) e social" (Donnangelo,83: 32). Na crítica ao modelo médico tradicional,
atinge-se a compreensão de que "a medicina não apenas cria e recria condições materiais necessá-
rias à produção econômica, mas participa ainda da determinação do valor histórico da força de traba-
lho e situa-se, portanto, para além dos seus objetivos tecnicamente definidos" (Donnangelo,79: 34)."
(Minayo-Gomez e Thedim-Costa,97)

Bases Teórico-Metodológicas Do Campo Saúde Do Trabalhador

A abordagem das relações trabalho-saúde tem experimentado retrocesso que pode ser observado
quanto à sua apreensão, em termos disciplinares, adotada nas pesquisas; à involução que caracte-
riza a proposta programática 3 a qual privilegia o assistencialismo nas ações da rede de saúde do
Sistema Único de Saúde (SUS); ao que se soma a fragilidade do movimento sindical.

As resoluções da 3ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, realizada em novembro de


2005 6, expressam essa situação, o que ensejou este artigo, na busca do resgate das formulações do
campo Saúde do Trabalhador, elaboradas e amadurecidas nos anos70-1980. Nesses anos consubs-
tanciam-se, a partir desse campo, conhecimentos e práticas que, cotejadas com a abordagem da Sa-
úde Ocupacional, mostram seu reducionismo e simplismo. Frise-se que aquele campo incorporava
abordagens desenvolvidas pelas ciências sociais; considerando contribuição da Medicina Social La-
tino-Americana e da Saúde Coletiva.

Assim, aqui se assume que Saúde do Trabalhador é campo de práticas e conhecimentos cujo enfo-
que teórico-metodológico, no Brasil, emerge da Saúde Coletiva, buscando conhecer (e intervir) (n)as
relações trabalho e saúde-doença, tendo como referência central o surgimento de um novo ator so-
cial: a classe operária industrial, numa sociedade que vive profundas mudanças políticas, econômi-
cas, sociais. Ao contrapor-se aos conhecimentos e práticas da Saúde Ocupacional, objetiva superá-
los, identificando-se a partir de conceitos originários de um feixe de discursos dispersos formulados
pela Medicina Social Latino-Americana, relativos à determinação social do processo saúde-doença;

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SAÚDE DO TRABALHADOR

pela Saúde Pública em sua vertente programática e pela Saúde Coletiva ao abordar o sofrer, adoe-
cer, morrer das classes e grupos sociais inseridos em processos produtivos.

Metodologicamente, é na Arqueologia de Foucault que se busca elementos para compreender o


campo, dèmarche que envolve enunciados, normas, conceitos, conformando saberes (e práticas) que
postulam estatuto de cientificidade. Segundo Foucault (p.2): "Cada sociedade tem seu regime de ver-
dade, sua 'política geral' de verdade: (...) os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valoriza-
dos para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro".

Tomando também como referência Foucault, pode-se apreender o campo de relações para além da
Arqueologia, o que exige revolver o terreno dos sistemas de conhecimento engendrados e acoplados
a modalidades de poder, através da Genealogia, quando: "... desloca-se a problemática do saber
para o poder. (...) a problemática do saber não é abandonada, todavia o foco se dirige para o regime
político de produção da verdade.

Sob a perspectiva do método genealógico Foucault aponta (...) uma nova analítica do poder que enfa-
tiza suas táticas e estratégias e cuja pertinência não diz respeito à matriz ordem/obediência política,
porém aos processos de assujeitamento, ou seja, à constituição de sujeitos assujeitados" (p. viii, grifo
nosso).

Trata-se, ainda, de constatar a eficácia política de um discurso contra-hegemônico que, ao produzir


conhecimentos e práticas compartilhados com os dominados, visa a elevar sua consciência sanitária,
rompendo com uma rede de relações de poder, que não se situa apenas nos aparelhos de Estado,
mas que perpassa os interesses dos sujeitos nas práticas discursivas e que "... não pode ser mais
compreendida como totalidade articulada e abstrata, produto da progressiva racionalização das práti-
cas e das representações sociais.

A sociedade somente pode ser visualizada em seu operar concreto, na imensa e complexa
rede (...) que imbrica instituições aparentemente tão díspares como a (...) o hospital, (...) a fábrica, a
escola, a prisão e institui laços entre o educador, o médico, o jurista, o carcereiro ..." (p. ix).

E, relações de poder conformam a Saúde Ocupacional o que, de formas diferenciadas contribui para
a alienação e desinformação do trabalhador, conferindo maior capacidade de controle do capital so-
bre o trabalho, alienação esta derivada da informação restrita e da atuação autoritária dos profissio-
nais de saúde no trabalho ou fora dele. Para superar tal realidade, busca-se que enunciados, pressu-
postos, normas, regras, instituições e sujeitos constroem e compõem o campo contra-hegemônico
Saúde do Trabalhador.

A configuração do campo Saúde do Trabalhador constitui-se por três vetores: a produção acadêmica;
a programação em saúde na rede pública e; o movimento dos trabalhadores, particularmente a partir
dos80, quando seu discurso assume caráter mais propositivo junto ao Estado, ao "... vislumbrar a
possibilidade das classes trabalhadoras influírem mais decididamente na esfera política, deixando de
dizer apenas não, para também indicarem soluções para os problemas sociais, políticos e econômi-
cos" (p.20).

Consubstancia-se, assim, um campo em construção, que se identifica por referência à Saúde Ocupa-
cional, abordagem esta que incorpora práticas e conhecimentos da clínica, medicina preventiva e epi-
demiologia clássica, mediante a história natural da doença para a análise das doenças e acidentes do
trabalho mediante a tríade "agente-hospedeiro-ambiente", conforme proposto em50 pelo Comitê
Misto de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT)/Organização Mundial da Saúde
(OMS).

Considera-se, então, que ao cotejar o discurso da Saúde Ocupacional e da Saúde do Trabalhador,


que se propõe interdisciplinar, multiprofissional, aberto à participação inclusive do ponto de vista me-
todológico, poder-se-á identificar suas "verdades" e as condições de possibilidade de sua emergên-
cia, verificando como sua formação e prática discursivas consolidam-se, relacionado-as com as práti-
cas extradiscursivas.

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SAÚDE DO TRABALHADOR

Assim, amplia-se o enfoque, na busca de instrumental que privilegie medidas de prevenção e que, ao
incorporar o conhecimento dos trabalhadores, potencialize lutas pela melhoria das condições de tra-
balho e defesa da saúde.

Nessa empreitada aparecem conflitos e contradições claras de interesse, o que exige que se estabe-
laçam hierarquias e determinações. O aprofundamento dessa questão acopla-se a análises histórico-
sociais que permitam captar seu dinamismo dialético, pois as relações trabalho-saúde situam-se no
entrecruzamento dos desígnios do capital com as possibilidades de transformação social, através da
luta política assumida pelo pólo trabalho em sociedades concretas.

Enunciados, Conceitos, Normas e Regras Da Saúde Ocupacional E Do Campo Saúde Do Tra-


balhador

Para Mendes, é da Medicina Preventiva que emergem bases para enunciação da Saúde Ocupacional
pela OIT/OMS, ao usar termos como prevenção, proteção, riscos, adaptação, visando a intervir na
saúde dos trabalhadores. E, o paradigma da causalidade dos agravos à saúde dá-se pela precedên-
cia das condições de trabalho, numa visão a-histórica e descontextualizada das relações econômicas,
polítco-ideológicas e sociais que influem nos nexos entre trabalho e saúde-doença.

Conforme Arouca, a universalidade dos conceitos estabelece-se quando, ao serem elaborados por
grupo de experts institucionais aqui vinculados à OIT/OMS produzem um discurso impermeável às
várias possibilidades de se pensar, no caso, as relações trabalho e saúde-doença, o qual assume du-
plo caráter: é estruturado e estruturante. Estruturado porque é um determinado grupo que o formula,
definindo um leque de respostas possíveis. Estruturante porque limita a eventualidade de se discutir,
por exemplo, a eficácia e os limites da Saúde Ocupacional.

E, tais limites conceituais constrangem a capacidade interpretativa da realidade. A abordagem das


relações trabalho e saúde-doença parte da idéia cartesiana do corpo como máquina, o qual expõe-se
a agentes/fatores de risco. Assim, as consequências do trabalho para a saúde são resultado da inte-
ração do corpo (hospedeiro) com agentes/fatores (físicos, químicos, biológicos, mecânicos), existen-
tes no meio (ambiente) de trabalho, que mantêm uma relação de externalidade aos trabalhadores. O
trabalho é apreendido pelas características empiricamente detectáveis mediante instrumentos das ci-
ências físicas e biológicas.

Aqui os "limites de tolerância" e "limites biológicos de exposição", emprestados da higiene industrial e


toxicologia, balizam a intervenção na realidade laboral, buscando "adaptar" ambiente e condições de
trabalho a parâmetros preconizados para a média dos trabalhadores normais quanto à suscetibilidade
individual aos agentes/fatores.

Em consequência dessa compreensão, o controle da saúde preconizado pela Saúde Ocupacional re-
sume-se à estratégia de adequar o ambiente de trabalho ao homem e cada homem ao seu trabalho.
Daí deriva a importância dos exames admissionais e periódicos, realizados pelos Serviços Especiali-
zados de Medicina do Trabalho (SEMT) das empresas, na busca para selecionar os mais hígidos, ex-
cluindo aqueles que apresentem algum "desvio" da normalidade.

Os limites epistemológicos dessa abordagem fazem com que à Saúde Ocupacional escape possibili-
dade de considerar e apreender outras relações, como aquelas configuradas pela organização-divi-
são do trabalho: o ritmo; a duração da jornada; o trabalho em turnos; a hierarquia; a fragmenta-
ção/conteúdo das tarefas; o controle da produtividade, cujas consequências para a saúde expressam-
se como doenças crônico-degenerativas e distúrbios mentais dos coletivos de trabalhadores.

Nesse contexto, a Saúde Ocupacional pouco tem para contribuir, já que atua sobre indivíduos, privile-
giando o diagnóstico e o tratamento dos problemas de natureza orgânica, a partir da visão empirista e
positivista trazida da clínica. Aqui caberá pouco espaço para a subjetividade do trabalhador, tomado
como paciente e objeto da técnica, estreitando a possibilidade de apreensão das formas de adoeci-
mento no trabalho na contemporaneidade, cuja causalidade cada vez mais complexa, envolve a orga-
nização do trabalho e sua relação com a subjetividade dos coletivos de trabalhadores.

Tal limite epistemológico impede que a Saúde Ocupacional considere e opere sobre nexos mais com-
plexos, pouco contribuindo na compreensão da causalidade das doenças relacionadas ao trabalho,
especialmente as cárdio-vasculares, psicossomáticas e mentais, características do adoecimento pelo
trabalho hoje.

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SAÚDE DO TRABALHADOR

Maneira diversa de compreender as relações trabalho e saúde-doença é introduzida pela análise da


determinação social do processo saúde-doença, privilegiando o trabalho. A Medicina Social Latino-
Americana apreende-o através do processo de trabalho, categoria explicativa que se inscreve nas re-
lações sociais de produção estabelecidas entre capital e trabalho.

E, conforme a acepção marxista, aqui o trabalho é, ontologicamente, a ação do homem sobre a natu-
reza para modificá-la e transformá-la e a si mesmo não sendo, portanto, externa ao homem. Tal ação
vai ocorrer sobre o objeto de trabalho, mediante os instrumentos de trabalho, configurando o pró-
prio trabalho e suas diferentes formas de organização, divisão, valorização, características de cada
formação social e modo de produção, o que imprime um caráter histórico ao estudo das relações tra-
balho-saúde e, consequentemente, do adoecimento pelo trabalho.

Importa, então, desvendar a nocividade do processo de trabalho sob o capitalismo e suas implica-
ções: alienação; sobrecarga e/ou subcarga; pela interação dinâmica de "cargas" sobre os corpos que
trabalham, conformando um nexo biopsíquico que expressa o desgaste impeditivo da fluição das po-
tencialidades e da criatividade. A abordagem em Saúde do Trabalhador busca resgatar o lado hu-
mano do trabalho e sua capacidade protetora de agravos à saúde dos trabalhadores, tais como mal-
estares, incômodos, desgastes, para além dos acidentes e doenças.

Na medida em que as classes trabalhadoras constituem-se em novo sujeito político e social, con-
forme sugere o campo Saúde do Trabalhador, este incorpora idéia de trabalhador que difere frontal-
mente da anterior: passiva, como hospedeiro ou paciente; apreendendo-o como agente de mudan-
ças, com saberes e vivências sobre seu trabalho, compartilhadas coletivamente e, como ator histó-
rico, ele pode intervir e transformar a realidade de trabalho, participando do controle da nocividade;
da definição consensual de prioridades de intervenção e da elaboração de estratégias transformado-
ras.

Tambellini et al. trazem elementos para pensar a epistemologia do campo quando discutem as rela-
ções trabalho-saúde em abstrato, pela elaboração de grupo multiprofissional de investigadores (da
saúde, ciências sociais, filosofia), cujo objeto as relações capital/trabalho; trabalho/saúde; socie-
dade/classes/saúde constrói-se mediante abordagem teórico-conceitual e análise inter(trans)discipli-
nar.

Os produtos do conhecimento científico derivado dessa abordagem e suas consequências para a sa-
úde contribuem para a elaboração de políticas públicas; ao lado da formulação teórica que permite
maiores níveis de consciência política, bem como novas modalidades de organização do saber, po-
dendo subsidiar ações sociais abrangentes em saúde, mediante prática-teórica cujos agentes são
equipes de técnicos, trabalhadores e profissionais da saúde que buscam colocar a técnica a serviço
do pólo trabalho.

A investigação em Saúde do Trabalhador parte das classes, frações de classes e grupos de trabalha-
dores organizados política e economicamente, adotando como instrumentos elementos da Saúde Co-
letiva, da clínica, da epidemiologia aos quais agregam-se ferramentas do planejamento, política, eco-
nomia etc., visando à prevenção e buscando manter os determinantes da saúde sob controle dos tra-
balhadores, ao objetivar a defesa de sua saúde, mediante construção do conhecimento da realidade
mais integrado e participativo. Para aqueles autores, o estudo das relações trabalho e saúde e a
conscientização pela informação compartilhada permitem atuação democrática no sistema de saúde
dos profissionais de saúde e dos trabalhadores.

Os Discursos Sobre Trabalho e Saúde No Brasil Nos Anos70-1980 E Na Atualidade

Nos anos50-1960, o industrialismo desenvolvimentista sustenta a estratégia de organização dos ser-


viços médicos nas empresas que, ao lado de fazerem atendimento clínico-individual, assumem atri-
buição prescrita pela Saúde Ocupacional, atuando no estudo das causas de absentismo, na seleção
de pessoal e análise das doenças e acidentes ocupacionais: "... existe um papel importante, do ponto
de vista dos empresários, a ser desenvolivdo por uma seção médica no interior das empre-
sas..." 26 (p.81-2).

Quanto à ação governamental, o discurso da técnica articulado às relações de poder e ao disciplina-


mento 27 do trabalhador, embasado em teorias científicas universais institucionaliza-se nacional-
mente nos anos70, mediante política adotada pelo Regime Militar que obriga a criação dos Serviços

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SAÚDE DO TRABALHADOR

Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho, delegando às empresas a tu-


tela da saúde dos trabalhadores. Tal política visa a aumentar a produtividade e a saúde tem caráter
de razão instrumental para a produção. Essa é a base da atuação do Estado, através do setor traba-
lho.

Ainda na década de70, completam-se as transformações sócio-econômicas, políticas e culturais na


América Latina no que concerne à industrialização e à urbanização.

Nessa época são publicados importantes estudos sobre as relações trabalho-saúde. Constituem refe-
rências para entendê-las, os textos de Laurell 28 e Tambellini relativos aos contextos sócio-econômi-
cos do México e do Brasil.

Mais ainda, na América Latina, nos70, a emergência dessa formulação teórico-conceitual acompa-
nha-se de nova visão sanitária. Tratava-se de retornar ao social para apreender a determinação dos
agravos à saúde dos trabalhadores, incorporando categorias do marxismo, conforme elaboração teó-
rico-metodológica de autores "filiados" à Medicina Social Latino-Americana e à Saúde Coletiva.

Uma articulação bastante ampla dos saberes de filósofos e cientistas sociais, de políticos, planejado-
res, de profissionais de saúde, com os dos trabalhadores organizados em seus órgãos de representa-
ção, sustenta a luta pela transformação da organização dos processos de trabalho, visando a resga-
tar o real ethos do trabalho: libertário e emancipador.

O quadro de deterioração das condições de vida e degradação do trabalho consequentes da industri-


alização tardia e seus reflexos sobre a saúde expressa-se na ocorrência cada vez maior de acidentes
do trabalho.

Assim, a Saúde do Trabalhador informada pela Medicina Social Latino-Americana enquanto campo
de estudos e seu desenvolvimento, associam-se ao processo de industrialização e à forma particular
por este assumida na América Latina. Destaque-se sua rapidez, a grande heterogeneidade de pro-
cessos de trabalho concretos dentro da nova divisão internacional do trabalho; o caráter efêmero dos
milagres econômicos vividos por países como a Argentina, Brasil, Chile, México e as profundas mu-
danças na estrutura de classes, com o surgimento da jovem classe operária industrial urbana 30. Ao
emergir constitui-se num "... novo sujeito social e político, que tem como experiência vivencial direta a
concretização das contradições que caracterizam o desenvolvimento industrial tardio" (p. 256).

Por isso, assume reivindicações já conquistadas pela classe operária dos países capitalistas centrais.
O traço marcante dessa industrialização, quando visto pelo lado dos trabalhadores, envolve uma rup-
tura com formas passadas de produzir e viver, sendo hegemonizado pela grande indústria multinacio-
nal de bens de consumo duráveis e pela urbanização, associados à extrema expoliação da força de
trabalho, possível em função do exército industrial de reserva e de ações repressivas 30. Os trabalha-
dores lutam, ainda, pela regulamentação da jornada de trabalho e salário e, sincronicamente, defen-
dem sua saúde e integridade física buscando a melhoria das condições de trabalho.

Os anos80 trazem significativa mudança de rumos na política de saúde brasileira, quando, na VIII
Conferência Nacional de Saúde, em 86, consolida-se a proposta de criação do SUS com atributo de
coordenar as ações de saúde, agora alçada à condição de direito social e de cidadania, ações estas
que englobam, como tendência mundial, a saúde dos que trabalham.

Ainda no início dos anos80, em São Paulo, setores do movimento sindical, como metalúrgicos, quími-
cos, petroquímicos, bancários, exigem dos serviços de saúde pública envolvimento com as questões
de saúde relacionadas ao trabalho, fato contemporâneo à criação, por parte de dezenas de sindicatos
de trabalhadores, do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes
de Trabalho (DIESAT), que terá importante papel na discussão sobre o rompimento com o assistenci-
alismo médico existente dentro dos sindicatos, nefasta herança dos tempos do Estado Novo, numa
perspectiva de superá-lo, propondo que tal atribuição seja da rede pública de saúde.

A assessoria técnica do DIESAT junto ao Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Petroquímicos do


ABCD teve relevante papel na superação do assistencialismo, contribuindo para que o sindicato pro-
pusesse, no ano de84, à Secretaria de Estado da Saúde (SES), o Programa de Saúde do Trabalha-
dor Químico do ABC, experiência pioneira com efetiva participação sindical em sua gestão.

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SAÚDE DO TRABALHADOR

O envolvimento da rede de saúde pública amplia-se, concretizando-se nos Programas de Saúde do


Trabalhador (PST) criados na rede da SES de São Paulo (posteriormente em outros Estados) e im-
plantados em várias regiões do estado a partir de85, em resposta à demanda do movimento sindical.
Seu nome alia-se aos pressupostos que sustentam sua atuação.

Tais pressupostos previam aspectos depois incorporados pelo SUS, tais como: a participação dos tra-
balhadores, em alguns casos na própria gestão, controle e avaliação; além do acesso às informações
obtidas a partir do atendimento; possibilidade de desencadeamento de ações de vigilância nos locais
de trabalho geradores de danos à saúde, com participação sindical; percepção do trabalhador como
dono de um saber e como sujeito coletivo inserido no processo produtivo, agora visto não apenas
como mero consumidor de serviços de saúde, de condutas, de prescrições, e a compreensão de que
o processo de trabalho é danoso à saúde, ultrapassando o horizonte de visão da Saúde Ocupacional,
o que aponta outras determinações para o sofrimento, o mal-estar e a doença, relacionados às rela-
ções sociais que se estabelecem nos processos de trabalho.

Assim, a proposta de políticas públicas influenciadas pelo campo Saúde do Trabalhador (juntamente
com a Medicina Social Latino-Americana e a Saúde Coletiva) confere protagonismo aos serviços pú-
blicos de saúde no momento em que incorporam a atenção, integrando a assistência e a vigilância à
saúde da população trabalhadora. Isso ocorre de forma programática, estabelecendo-se uma com-
plexa rede de relações que incorpora a gestão participativa dos trabalhadores nos PST.

Saliente-se que os PST são uma tendência mundial, influenciada por organismos internacionais, que
preconizam a incorporação de "ações de saúde (...) na rede de serviços de saúde pública" (p. 2), con-
forme posição assumida pela OIT em85, quando propõe os Serviços de Saúde no Trabalho como po-
lítica pública, com ampla participação dos trabalhadores, posição esta também defendida pela OMS.
Eventos atestam a atuação da OMS, de forma mais clara, com o envolvimento do seu órgão regional
para as Américas, a partir de83, ocasião em que a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
publica o documento Programa de Salud de los Trabajadores.

Em 84, no seminário Actividades de Salud Ocupacional en la Red de Servicios de Saludpatrocinado


pela OPAS e realizado em Campinas, São Paulo, Brasil, documento de apoio às discussões elabo-
rado por consultores do órgão colocava a necessidade de se "... passar do conceito de saúde ocupa-
cional para o de saúde dos trabalhadores para enfrentar a problemática saúde-trabalho como um
todo, onde se conjuguem fatores econômicos, culturais e individuais para que se possa produzir um
resultado que é a saúde de uma sociedade, de um país, de um continente..." (p. 47).

Existe, pois, internacionalmente, a preconização de abordagem que supere a visão da Saúde Ocupa-
cional rumo à Saúde do Trabalhador, parte de uma tendência que coloca a saúde como direito.

Outros elementos da realidade brasileira ajudaram nas condições de emergência do discurso em Sa-
úde do Trabalhador, contribuindo para sua efetivação como política de saúde, sendo identificados por
alguns autores como espaços que permitiram a consolidação do campo Saúde do Trabalhador não
somente do ponto de vista da formulação teórico-metodológica, como da prática em Saúde Pública.
Tais elementos situam-se na academia, mais particularmente, segundo Mendes, no Departamento de
Saúde Ambiental, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, e nos departamentos de
medicina preventiva e social de algumas faculdades de medicina, sendo estes últimos os loci também
apontados por Tambellini.

Mendes refere que essa realidade reflete a discussão internacional reveladora da falência dos servi-
ços médicos de empresa como modelo hegemônico e baseado na Saúde Ocupacional. O autor enu-
mera as razões que explicam tal falência, referindo-se particularmente à sua pouca credibilidade junto
aos trabalhadores pela prática constante de não revelar resultados de exames, de manipular informa-
ções de saúde, de contribuir para a demissão dos não hígidos, de atuar no controle da força de traba-
lho. Na realidade brasileira, alia-se sua baixa cobertura porque, legalmente, são obrigatórios apenas
nas maiores empresas.

Outro ator marcante, o movimento sindical de trabalhadores, também participa das mudanças e, se-
gundo Mendes, a influência exercida sobre os sindicatos brasileiros pelo Modelo Operário Italiano
(MOI) 38, a partir de final dos anos70, estimula a luta pela melhoria das condições de trabalho e de-
fesa da saúde para superar o estágio economicista das reivindicações pelo recebimento dos adicio-
nais de insalubridade, a "monetização do risco". Intercâmbio estabelecido entre técnicos, sindicalistas

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brasileiros e italianos, iniciado com a vinda de Giovani Berlinguer ao Brasil em78, ajuda a disseminar
a proposta do MOI, método de intervenção contra a nocividade do trabalho desenvolvido pelos operá-
rios italianos, apoiados por técnicos militantes, no final dos anos60, sendo pilar importante na implan-
tação do Sistema Nacional de Saúde como parte da Reforma Sanitária Italiana e que terá influência
sobre técnicos e dirigentes sindicais brasileiros atuantes em Saúde do Trabalhador.

O movimento pela Reforma Sanitária contribuiu para formular o projeto do SUS, conforme prescreveu
a VIII Conferência Nacional de Saúde, de86, cujo relatório final apontava que o trabalho em condi-
ções dignas, o conhecimento e controle dos trabalhadores sobre processos e ambientes de trabalho,
é um pré-requisito central para o pleno exercício do acesso à saúde. Aª Conferência Nacional de Sa-
úde do Trabalhador incorpora a proposta do SUS, que deve englobar ações e órgãos de Saúde do
Trabalhador, na perspectiva da saúde como direito, conforme tendência internacional de universaliza-
ção do direito.

Marcante na experiência histórica brasileira dentro da luta pela redemocratização, cujo ápice foi a As-
sembléia Constituinte, é a busca por direitos, quando os trabalhadores elegem o Estado como interlo-
cutor, não na perspectiva da acumulação, numa visão meramente instrumental ou estrutural-funciona-
lista do seu papel, como pensavam estudiosos nos anos60-1970, conforme Fleury. Agora o Estado é
um espaço de luta política pela incorporação dos direitos dos dominados, na perspectiva da constru-
ção de contra-hegemonia, ao planejar e executar políticas públicas que atendam às demandas soci-
ais dos trabalhadores organizados, visando a implementar propostas de Saúde Pública que permitis-
sem a gestão e seu controle social compartilhado, o que foi incorporado pelo SUS.

Os PST são resultado disso pois buscam retirar das empresas a tutela da saúde dos trabalhadores,
dando-lhes o direito de exercer controle sobre a própria saúde, a partir da sua inserção nos serviços
de saúde enquanto produtores, o que até o final dos anos70 e início dos80 não acontecia na assis-
tência dada pelas empresas e pela Previdência Social através do Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social (INAMPS).

Assim, para se entender a emergência do campo Saúde do Trabalhador, como prática teórica (gera-
ção de conhecimentos) e prática político-ideológica (superação de relações de poder e conscientiza-
ção dos trabalhadores), é necessário frisar que ele emerge concomitantemente à maturação do pro-
cesso de industrialização e à forma particular que este assume na América Latina, nos anos70, com o
surgimento de uma classe operária industrial urbana. Esse ator que se conforma como força social e
política, busca como aliados setores médios, particularmente intelectuais de fora e de dentro da uni-
versidade. As Semanas de Saúde do Trabalhador, realizadas a partir de79, espelham isso e resultam
da ação conjunta de sindicatos de trabalhadores e de técnicos militantes. Dão origem à criação do
DIESAT; à implantação de vários grupos de assessoria técnica nos sindicatos para questões relacio-
nadas à saúde no trabalho, cujo fruto é a celebração de cláusulas nas negociações patronato e traba-
lhadores, relativas à melhoria das condições de trabalho e fortalecimento da representação nos locais
de trabalho.

O protagonismo dos trabalhadores organizados, o envolvimento da rede de saúde pública nas ações
de atenção à saúde (assistência + vigilância) que apreende as relações trabalho-saúde mediante a
categoria processo de trabalho, constituem o cerne da abordagem em Saúde do Trabalhador, envol-
vendo "corações e mentes" resgatando o social para embasar saberes e práticas em saúde.

Um novo dado histórico é o fim dos milagres econômicos e a transformação do papel do Estado, com
cortes nos gastos sociais, aumento do desemprego e subemprego, como decorrência da reestrutura-
ção produtiva tecnológica e globalização da economia, com fortes influências sobre as lutas sindicais.

Se a participação de0 mil pessoas em todo país nas discussões preparatórias da 3ª Conferência Na-
cional de Saúde do Trabalhador pode representar um alento para os que militam no campo, a reali-
dade vivida deve fazer pensar nos limites hoje existentes para um maior avanço das conquistas em
Saúde do Trabalhador.

Ao se avaliar a situação dos protagonistas anteriormente assinalados, observa-se que se nos anos80,
os PST contavam com importante participação/controle social, hoje, a fragilidade dos sindicatos de
trabalhadores e a nova configuração do mundo do trabalho são fatores que dificultam esta participa-
ção, na medida em que os órgãos sindicais não mais representam o mundo do trabalho. Ademais, a
pujança observada na produção acadêmica na virada dos anos80-1990, cujo caráter interdisciplinar

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era evidente, ao lado da incorporação dos pressupostos do campo da Saúde do Trabalhador, particu-
larmente no que se refere à contribuição dos autores filiados à Medicina Social Latino-Americana,
conforme apontou Lacaz, não mais é observada. Levantamento realizado por Mendes 2 relativo à
produção de dissertações e teses sobre saúde e trabalho de50 até 2002, quando analisado sob a
ótica da construção do conhecimento e da interdisciplinaridade, revelou "... o predomínio da constru-
ção de conhecimento fragmentado, (...) unidisciplinar, quando não repetitivo e tecnicista, resultante de
pesquisas e análises pontuais desenvolvidas com abordagens próprias de cada disciplina: ou só da
epidemiologia, ou (...) das ciências sociais e humanas, ou só da toxicologia, ou (...) engenha-
ria ..." (p.02, grifo nosso).

Finalmente, no que se refere às resoluções emanadas da 3ª Conferência Nacional de Saúde do Tra-


balhador 6 que espelham o grau de formulação dos vários atores sociais envolvidos em Saúde do
Trabalhador, pode-se observar que ao lado de forma geral ratificarem "enfaticamente" resoluções que
apenas reiteram o tema central da 2ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador 45, realizada
há4 anos, em94, ou seja, o dístico Construindo uma Política [Nacional] de Saúde do Trabalhador, al-
gumas resoluções expressam o retorno de propostas que "recuperam" as formulações da Saúde
Ocupacional, desconsiderando inclusive o papel do SUS na saúde dos trabalhadores do setor público
e o acúmulo desenvolvido em ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador no SUS 46, as quais su-
peram a prática da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, agora alçada à forma de atua-
ção também do Ministério da Saúde.

Essas observações podem ser vistas nas seguintes resoluções: "Eleger como prioridade de fiscaliza-
ção, pelos Ministérios do Trabalho (...), da Saúde e do Meio Ambiente, o trabalho e as condições do
desenvolvimento do trabalho ...", "garantir o cumprimento das normas regulamentadoras de segu-
rança e saúde para os trabalhadores do serviço público, (...) priorizando o programa de prevenção
de riscos ambientais e o programa de controle médico de saúde ocupacional"; "transformar os Servi-
ços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho SESMT (Norma Regula-
mentadora NR 4 do Ministério do Trabalho e Emprego) em serviços especializados de segurança e
saúde no trabalho ..." 6 (Resolução nº. 44, grifos nossos).

E, para expressar de forma clara a visão que orientou as resoluções, veja-se aquela que se dirige aos
órgãos de fomento: "Priorizar a destinação de recursos das instituições de pesquisa para apoiar estu-
dos das condições de trabalho, identificando os fatores determinantes e condicionantes dos agravos
à saúde, visando a eliminar os riscos de acidentes (...) e doenças relacionadas ao trabalho, em deci-
são conjunta dos Ministérios da Saúde, da Previdência (...) e do Trabalho ..." 6(Resolução nº.33, gri-
fos nossos). Aqui cabe a indagação: Haveria formulação mais condizente com os pressupostos que
embasam a Saúde Ocupacional?

Percebe-se, que a fragilidade atual do movimento sindical, aliada à postura pouco engajada da aca-
demia e ao desenvolvimento de políticas públicas reducionistas, constrói um quadro de retrocesso no
campo da Saúde do Trabalhador que é preciso combater, a partir do resgate dos pressupostos do
campo e da crítica aos reducionismos perpretados pela Saúde Ocupacional, apesar de se observar,
ainda, a hegemonia do seu discurso.

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