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A Construção do Campo da Saúde do Trabalhador

A área de Saúde do Trabalhador é bastante complexa e diversificada,


sendo difícil delimitar com precisão o seu campo de conhecimento/atuação. Cada
vez mais, têm surgido temas, estudos, abordagens que, embora afetos à relação
trabalho-saúde, apenas correspondem parcialmente ao que se entende por Saúde
do Trabalhador. É uma área passível de abrigar diferentes aproximações e de
incluir uma variedade de estudos e práticas de indiscutível valor, mesmo na
ausência de uma adequada precisão conceitual sobre o caráter da associação
entre o trabalho e o processo saúde-doença.
Pode-se dizer que existe uma "zona de empatia", para a qual confluem
diversos estudos disciplinares. Essas contribuições esclarecem determinadas
questões de interesse, como alguns riscos ocupacionais em locais de trabalho ou
em setores de uma categoria profissional, sem pretender dar resposta ao campo
como tal. Trata-se de uma ampla produção que evitamos particularizar, mas se
estende pelos Departamentos de Medicina Preventiva/Social, por Instituições de
Saúde Pública/Saúde Coletiva e outras Faculdades de diversas áreas de
conhecimento.
Torna-se desejável, entretanto, delimitar o arcabouço específico, um núcleo
epistemológico que, sem rigidez, defina os conceitos fundamentais da área, tanto
do ponto de vista teórico, como nas suas implicações para o desenvolvimento de
estudos/pesquisas e o direcionamento da prática, à luz do processo econômico,
social e político do País. Demarcar diferenças não significa desconhecer ou
desmerecer a importância dos investimentos realizados para enfrentar situações
ou analisar questões específicas da relação trabalho-saúde. Clarificar, porém, a
dimensão processual da construção do campo pode "interfertilizar" toda essa
"zona de empatia".
Tem-se a intenção de refletir sobre os fundamentos teóricos e práticos que
influenciam e conformam o campo da Saúde do Trabalhador no Brasil, no interior
da Saúde Coletiva. Ao analisar as diversas formas de conceber a relação trabalho-
saúde, enfatiza-se a pertinência de interpretar essa relação, dada sua natureza
complexa e conflitiva, tendo como referência central o processo de trabalho, em
consonância com os pressupostos da Medicina Social latino-americana. Com base
nesse enfoque, ressalta-se a necessidade de abordagens interdisciplinares que
contemplem e extrapolem a articulação de áreas de conhecimento habitualmente
adscritas ao âmbito da saúde.

O trabalho e a saúde

A relação entre o trabalho e a saúde/doença - constatada desde a


Antigüidade e exacerbada a partir da Revolução Industrial - nem sempre se
constituiu em foco de atenção. Afinal, no trabalho escravo ou no regime servil, não
existia a preocupação em preservar a saúde dos que eram submetidos ao
trabalho, interpretado como castigo ou estigma. O trabalhador, o escravo, o servo
eram assemelhados a animais e ferramentas, sem história, sem progresso, sem
perspectivas, habitantes de um corpo que existia para ser consumido/deteriorado.
Com o advento da Revolução Industrial, o trabalhador "livre" para vender
sua força de trabalho tornou-se presa da máquina, de seus ritmos, dos ditames da
produção que atendiam à necessidade de acumulação rápida de capital e de
máximo aproveitamento dos equipamentos. As jornadas extenuantes, em
ambientes extremamente desfavoráveis à saúde, às quais se submetiam também
mulheres e crianças, eram freqüentemente incompatíveis com a vida. A
aglomeração humana em espaços inadequados propiciava a acelerada
proliferação de doenças infecto-contagiosas, ao mesmo tempo em que a
periculosidade das máquinas era responsável por mutilações e mortes.
As propostas controvertidas de intervir nas empresas, àquela época,
expressaram-se numa sucessão de normatizações e legislações, que tem no
Factory Act, de 1833, seu ponto mais relevante, passando a tomar corpo, na
Inglaterra, a medicina de fábrica.
A presença de um médico no interior das unidades fabris representava, ao
mesmo tempo, um esforço em detectar os processos danosos à saúde e uma
espécie de braço do empresário para recuperação do trabalhador, visando ao seu
retorno à linha de produção, num momento em que a força de trabalho era
fundamental à industrialização emergente. Instaurava-se assim o que seria uma
das características da Medicina do Trabalho, uma visão eminentemente biológica
e individual, no espaço restrito da fábrica, numa relação unívoca e unicausal,
buscam-se as causas das doenças e acidentes.
Assim, a Medicina do Trabalho orientou-se pela teoria da unicausalidade,
ou seja, para cada doença, um agente etiológico. Transplantada para o âmbito do
trabalho, vai refletir-se na propensão a isolar riscos específicos e, dessa forma,
atuar sobre suas conseqüências.
Como freqüentemente as doenças originadas no trabalho são percebidas
em estágios avançados, até porque muitas delas, em suas fases iniciais,
apresentam sintomas comuns a outras patologias, torna-se difícil, sob essa ótica,
identificar os processos que as geraram, bem mais amplos que a mera exposição
a um agente exclusivo. A rotatividade da mão-de-obra, sobretudo quando se
intensifica a terceirização, representa um obstáculo a mais nesse sentido.
A Saúde Ocupacional avança numa proposta interdisciplinar, com base na
Higiene Industrial, relacionando ambiente de trabalho-corpo do trabalhador.
Incorpora a teoria da multicausalidade, na qual um conjunto de fatores de risco é
considerado na produção da doença, avaliada através da clínica médica e de
indicadores ambientais e biológicos de exposição e efeito. Os fundamentos
teóricos de Leavell & Clark (1976), a partir do modelo da História Natural da
Doença, entendem-na, em indivíduos ou grupos, como derivada da interação
constante entre o agente, o hospedeiro e o ambiente, significando um
aprimoramento da multicausalidade simples.
Mesmo assim, se os riscos são considerados como inerentes ao trabalho
passam a ser desconsideradas as razões que se situam em sua origem, repetem-
se, na prática, as limitações da Medicina do Trabalho. As medidas que deveriam
assegurar a saúde do trabalhador, em seu sentido mais amplo, acabam por
restringir-se a intervenções pontuais sobre os riscos mais evidentes. Enfatiza-se a
utilização de equipamentos de proteção individual, em detrimento dos que
poderiam significar a proteção coletiva; normatizam-se formas de trabalhar
consideradas seguras, o que, em determinadas circunstâncias, conforma apenas
um quadro de prevenção simbólica. Considera-se que sob essa ótica, em algumas
situações, podem ser imputados aos trabalhadores os ônus por acidentes e
doenças, concebidos como decorrentes da ignorância e da negligência,
caracterizando uma dupla penalização (Machado & Minayo-Gomez, 1995).
Em síntese, apesar dos avanços significativos no campo conceitual que
apontam um novo enfoque e novas práticas para lidar com a relação trabalho-
saúde, consubstanciados sob a denominação de Saúde do Trabalhador, depara-
se, no cotidiano, com a hegemonia da Medicina do Trabalho e da Saúde
Ocupacional. Tal fato coloca em questão a já identificada distância entre a
produção do conhecimento e sua aplicação, sobretudo num campo
potencialmente ameaçador, onde a busca de soluções quase sempre se confronta
com interesses econômicos arraigados, que não contemplam os investimentos
indispensáveis à garantia da saúde no trabalho.
No Brasil, esta situação se agrava pela incapacidade do setor saúde do
Estado em reabsorver seu papel de intervir no espaço do trabalho. Esta tarefa,
prevista na Reforma Carlos Chagas, de 1920 - interrompida com a criação, em
1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que passou a assumi-la -
foi resgatada na Carta Constitucional de 1988 e regulamentada pela Lei
8080/SUS. No entanto, as marcas de um passado recente não são facilmente
removíveis.
As Delegacias Regionais do Trabalho advogam, em vários estados, a
exclusividade de sua competência para inspecionar os centros produtivos. Essa
posição, de um modo geral, encontra eco nos segmentos mais conservadores do
patronato, na medida em que tais inspeções, orientadas por um modelo
tradicional, pontuais e técnico-burocratas, incapazes de alimentar um sistema de
vigilância em saúde do trabalhador, servem aos seus propósitos ao não
promoverem mudanças significativas.

No campo da Saúde, na esteira das proposições internacionais


racionalizadoras que se baseiam na chamada Atenção Primária em Saúde,
durante a Conferência Mundial de Saúde de Alma Ata em 1978, surgem propostas
específicas dentro da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a atenção à
saúde de grupos populacionais de trabalhadores, particularmente os rurais,
mineiros e migrantes.
Ainda em 1983 o organismo da OMS para as Américas, a Organização
PanAmericana da Saúde (OPAS), lança o Documento "Programa de Acción en la
Salud de los Trabajadores" (OPAS, 1983) com diretrizes para a implantação de
programações em saúde na rede pública de serviços sanitários e voltadas para
aqueles que trabalham. Na mesma linha coloca-se a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) ao adotar em sua 71a Conferência Internacional do Trabalho, em
05/06/1985, a Convenção no 161 e a Recomendação no 171 denominadas
"Convenção e Recomendação sobre os Serviços de Saúde no Trabalho", cujas
principais características são o princípio da ampla participação dos trabalhadores,
a atuação em equipes multiprofissionais e a sua implementação principalmente a
partir de políticas públicas (OIT, 1985), ao contrário do que propunha a
Recomendação OIT no 112 de 1959, relativa aos Serviços de Medicina do
Trabalho de caráter privado e que "inspiraram" 15 anos depois, em 1975, a
criação dos Serviços Especializados de Segurança e Medicina do Trabalho
(SESMETs) no Brasil.
Os Serviços Especializados em Segurança e Medicina do Trabalho -
SESMT – vão se instalando nas empresas brasileiras já na contra-mão das
discussões sobre a atuação na área de saúde e trabalho. Com algumas exceções,
estes órgãos desviam-se da função de reconhecer, avaliar e controlar as causas
de acidentes e doenças. De modo geral, seus profissionais - assalariados pela
empresa e sem respaldo legal para contrariarem-lhe os interesses - restringem-se
à adoção de medidas paliativas diante dos riscos mais patentes.
A deficiência na formação de recursos humanos na área, conseqüência da
marginalidade ainda atribuída à questão trabalho-saúde, aliada à generalizada
insatisfação profissional, reproduz na rede pública a prática ineficaz da maioria
dos SESMT, presente também em serviços conveniados com as empresas e com
o próprio sistema público de saúde.
A principal Resolução da Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador,
realizada em março de 1994 (Ministério da Saúde - MS, 1994), que determina a
unificação no SUS de todas as ações de saúde do trabalhador (tratamento das
doenças e controle dos ambientes de trabalho, mediante metodologia
epidemiológica, aplicada às atividades de vigilância à saúde), continua sem
perspectivas de ser efetivada, seja pela falta de vontade política do MS – ainda
priorizando a assistência médico-hospitalar -, seja pela resistência do setor
Trabalho (modificação das normas regulamentadoras, com introdução da
obrigatoriedade do PCMSO e PPRA, que determina a necessidade de formação
de um maior número de profissionais especializados, dentre outras).
Essa desintegração, expressa em ações fragmentadas, desarticuladas e
superpostas de instituições com responsabilidade direta ou indireta na área -
agravada por conflitos de concepções e práticas, bem como de interpretação
sobre competências jurídico-institucionais -, revela a trajetória caótica do Estado
em sua função de promover a saúde do cidadão que trabalha. Apenas o esforço
isolado de profissionais que se articulam em diferentes níveis, universidades,
programas de saúde do trabalhador, centros de referência e atividades de
vigilância realmente efetivas abre um rastro de luz nesse universo sombrio.
Mesmo assim, não restam dúvidas de que as inserções diferenciadas dos
indivíduos nos processos produtivos, quer no meio urbano, quer no rural, definem
padrões também diversificados de morbi-mortalidade, para os quais contribuem
outros fatores decorrentes das condições de vida a que estão submetidos.

O campo da Saúde do Trabalhador

Em síntese, por Saúde do Trabalhador compreende-se um corpo de


práticas teóricas interdisciplinares - técnicas, sociais, humanas - e
interinstitucionais, desenvolvidas por diversos atores situados em lugares sociais
distintos e informados por uma perspectiva comum. Essa perspectiva é resultante
de todo um patrimônio acumulado no âmbito da Saúde Coletiva, com raízes no
movimento da Medicina Social latino-americana e influenciado significativamente
pela experiência italiana.
O avanço científico da Medicina Preventiva, da Medicina Social e da Saúde
Pública, durante os anos 60 e o início da década de 70, ao suscitar o
questionamento das abordagens funcionalistas, ampliou o quadro interpretativo do
processo saúde-doença, inclusive em sua articulação com o trabalho. Reformula-
se o entendimento "das relações entre o social e as manifestações patológicas, a
categoria trabalho aparecendo como momento de condensação, em nível
conceitual e histórico, dos espaços individual (corporal) e social" (Donnangelo,
1983: 32).
Instaurar o novo paradigma implica, por conseguinte, enfrentar e extrapolar
as concepções tecnicistas hegemônicas nessa área especializada da medicina e
da engenharia. Concepções consolidadas que fornecem soluções modelares,
reproduzidas na formação de profissionais e sustentadas por volumosos recursos
econômicos e técnicos. O conflito adquire dimensões extremas no momento de
intervir nos centros de trabalho. É ilustrativa, nesse sentido, a possibilidade de
acionar o Ministério Público como forma de externar a insatisfação dos
trabalhadores para com os métodos tradicionais, aceitos/colocados pelo órgão de
inspeção oficial e empresa, sem permitir que se formulem outros parâmetros de
vigilância em saúde do trabalhador.
Como campo de práxis, de produção de conhecimentos orientados para
uma ação/intervenção transformadora, a Saúde do Trabalhador defronta-se
continuamente com questões emergentes, que levam à definição de novos objetos
de estudo, contemplando demandas explícitas ou implícitas dos trabalhadores. É,
portanto, uma área em permanente construção, configurada numa trama de
relações que reflete consciências e vontades individuais e coletivas.
Constitui-se, conseqüentemente, em arena de conflitos e entendimentos
formalizados ou pactuados entre empresas, trabalhadores e instituições públicas
frente a situações-problema, colocando em jogo, além da identificação de sua real
origem, a capacidade de negociação para enfrentá-las. A garantia de um desfecho
favorável condiciona-se à junção do conhecimento técnico com o
saber/experiência dos trabalhadores na procura e adoção de medidas
impreteríveis, que evoluam para atingir soluções decisivas quanto aos agravos à
saúde constatados.
Configura-se, assim, um complexo tabuleiro de peças que se ajustam ou se
repelem, demandando estratégias diferenciadas, em função das conjunturas
locais, regionais ou nacionais. Obter restritas, porém significativas, conquistas
requer, habitualmente, enfrentar um caminho controverso em sua essência, ao
longo do qual a contribuição das instituições acadêmicas é, sem dúvida, um
imperativo. A incorporação de conhecimentos da Medicina do Trabalho e da
Saúde Ocupacional, a aplicação das normas da Higiene e Segurança do Trabalho
fazem parte desse trajeto, numa perspectiva permanente de definição de marcos
conceituais e práticas que exprimam uma visão totalizante do ser humano em sua
relação com o trabalho.
Enquanto campo de investigação, a Saúde do Trabalhador adota
determinados métodos de análise, conceitualizações ou "approaches". Aplica seu
instrumental analítico, segundo procedimentos que representam etapas
sucessivas de aproximação a um problema ou conjunto de problemas.
As estratégias de pesquisa dependem das características das instituições
onde se desenvolvem e do grau de consolidação dos grupos de investigação.
Guardam certa aproximação das concepções de Bulmer (1978) sobre pesquisa
básica, de inteligência, estratégica e operacional. O grau de envolvimento entre
trabalhadores e técnicos/instituições pode conduzir a formas aproximativas de
pesquisa participante ou pesquisa-ação.
A referência central para o estudo dos condicionantes da saúde-doença é o
processo de trabalho. O controle exercido sobre o processo de produção no
interior das unidades produtivas, por meio de velhos ou novos padrões de gestão
da força de trabalho, respectivamente, taylorismo, fordismo e neotaylorismo, pós-
fordismo, toyotismo, redunda na constituição de coletivos diferenciados de
trabalhadores e de uma multiplicidade de agravos potenciais à saúde. Desvendar
a dinâmica dessas situações implica um empenho permanente de aproximação-
teorização, capaz de ampliar a interpretação de um quadro aparentemente dado e
imutável, que condiciona ou determina a formulação de alternativas
tecnológicas/organizacionais, cujas repercussões não se restringem aos centros
de trabalho.

A apropriação do conceito "processo de trabalho" como instrumento de


análise possibilita reformular as concepções ainda hegemônicas das perspectivas
uni ou multicausal que desconsideram a dimensão social e histórica do trabalho e
da saúde/doença. Tais concepções, mesmo quando incluem variáveis sócio-
econômicas, na tentativa de aprimorar a compreensão das razões do
adoecimento, revestem-se de um caráter reducionista, na medida em que o social
é um elemento a mais, dentre os fatores de risco.
Dessa forma, indivíduo e ambiente são apreendidos na sua exterioridade,
ignorando-se sua historicidade e o contexto que circunstancia as relações de
produção materializadas em condições específicas de trabalhar, geradoras ou não
de agravos à saúde.
A Saúde do Trabalhador é, por natureza, um campo interdisciplinar e
multiprofissional. As análises dos processos de trabalho, pela sua complexidade,
tornam a interdisciplinaridade uma exigência intrínseca que necessita "ao mesmo
tempo, preservar a autonomia e a profundidade da pesquisa em cada área
envolvida e de articular os fragmentos de conhecimento, ultrapassando e
ampliando a compreensão pluridimensional dos objetos" (Minayo, 1991:71).
Nenhuma disciplina isolada consegue contemplar a abrangência da relação
processo trabalho-saúde em suas múltiplas e imbricadas dimensões: desde as
razões sócio-históricas que lhe dão origem à forma como se concretizam nos
espaços de trabalho. Impõe-se, portanto, a convergência de pesquisadores que -
imbuídos de uma ética que dá significado à tarefa de pensar para transformar -
sejam capazes de estabelecer conexões e correspondências entre as parcelas de
conhecimento que suas disciplinas aportam, na construção de uma proposta
comum. É o próprio confronto com o real que, ao evidenciar possibilidades e
limites/incertezas de cada disciplina, impele ao entendimento entre os saberes.
Esse entendimento tem por premissa a substituição do "princípio da
hierarquia" entre as ciências/saberes pelo "princípio da cooperação". Trata-se,
portanto, de construir uma cultura que, sob o imperativo do diálogo, da interação,
do questionamento recíproco, permita, numa aproximação à filosofia do agir
comunicativo (Habermas, 1988), a fluidez entre as diferentes linguagens.
Fixa-se como horizonte criar condições favoráveis para que os
conhecimentos da Clínica, da Engenharia, da Toxicologia, da Ergonomia, da
Epidemiologia e das Ciências Sociais e Humanas, frente à necessidade de
responder a demandas concretas, sejam capazes, concomitantemente, de
fortificarem-se em seu campo particular e flexibilizarem suas fronteiras,
estabelecendo interfaces entre seus diversos corpos conceituais/metodológicos e
engendrando novas práticas que ensejem formas mais abrangentes e
totalizadoras de aproximar-se da realidade.
Incorporar o referencial de outras disciplinas torna mais profícuo o olhar de
cada uma delas sobre o mesmo objeto e a resultante ultrapassa a soma de
enfoques isolados. Nessa perspectiva, o quantitativo não se opõe ao qualitativo, o
mensurável não nega o imensurável, os determinantes imediatos não são
descontextualizados dos gerais, o saber teórico dos técnicos se abre à
contribuição do conhecimento tecido no cotidiano dos trabalhadores.
Na prática, porém, esse esforço de entender para intervir no processo de
trabalho em relação com a saúde e a doença encontra barreiras arraigadas de
compatibilização dos conceitos. Obriga a superar todo um passado de
fragmentação da realidade, reproduzido na formação dos profissionais desde a
graduação, que se reflete na tendência à manutenção de ilhas de saber/poder e
no receio diante da possibilidade de construir pontes entre as diversas áreas de
conhecimento.
Os avanços nessa direção começam a evidenciar-se. Por um lado, os
cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, de caráter multiprofissinal,
instituídos no âmbito da Saúde Coletiva vêm construindo um terreno propício à
crítica e à produção de conhecimento na área. Por outro, mesmo as pesquisas
multidisciplinares num campo constituído predominantemente por profissionais de
formação médico-epidemiológica representam passos significativos no caminho da
interdisciplinaridade.
O surgimento de algumas propostas institucionais que estimulam a
construção e amadurecimento de equipes de pesquisadores de formações
diversas tem demonstrado a potencialidade dessa nova perspectiva de
investigação/ação. Mas tal potencialidade pode ficar comprometida diante de
alguns equívocos, tais como: a incorporação, sem o devido rigor, dos conceitos de
outras disciplinas; a polissemia de noções comuns que, por sua falsa aparência de
transitividade, escondem as profundas diferenças que as separam; a substituição
pura e simples de análises fragmentadas por sínteses simplificadoras.
O tratamento interdisciplinar implica a tentativa de estabelecer e articular
dois planos de análise: o que contempla o contorno social, econômico, político e
cultural - definidor das relações particulares travadas nos espaços de trabalho e
do perfil de reprodução social dos diferentes grupos humanos - e o referente a
determinadas características dos processos de trabalho com potencial de
repercussão na saúde.
Entre os conceitos e noções extraídos dessas características, encontram-se
os classificatórios de risco - fundamentalmente associados às propriedades
materiais e mensuráveis quantitativamente dos objetos, meios e ambientes de
trabalho - e os de exigências ou requerimentos, que dizem respeito a
componentes mais qualitativos derivados da organização do trabalho. Embora
esses conceitos sejam complementares e inseparáveis, numa visão ampla de
ambiente de trabalho, as concepções legais e as práticas hegemônicas acabam
por focalizar predominantemente no ambiente físico as situações capazes de
defini-lo como insalubre ou perigoso.
Laurell & Noriega (1989), no intuito de distanciarem-se do conceito de risco,
por considerarem-no insuficiente para apreender a lógica global do processo de
trabalho, utilizam-se do que denominam categoria carga de trabalho - abarcando
tanto as físicas, químicas e mecânicas quanto as fisiológicas e psíquicas - que
interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador. Assinalam, no
entanto, que estas últimas "não têm materialidade visível externa ao corpo
humano", apontando, sem sistematizar, os componentes do processo de trabalho
capazes de gerá-las. Posteriormente, Noriega (1993) passa a atribuir às
exigências - enquanto requerimentos decorrentes da organização do trabalho e da
atividade do trabalhador - um papel relevante na conformação dos perfis de
saúde-doença dos coletivos de trabalhadores, ao distingui-las dos riscos,
relacionados aos objetos e meios de trabalho.
Para melhor compreender como riscos ou cargas e exigências se
manifestam concretamente nos processos de trabalho, é pertinente o instrumental
desenvolvido pela corrente francesa da Ergonomia Situada (Vidal, 1995), com
base na distinção entre tarefa prescrita e atividade real. Essa distinção, previsível,
diante da variabilidade de condições de trabalho, ocorre sobretudo em face de
situações que exigem a interferência constante dos trabalhadores para manter a
continuidade da produção ou prevenir eventos acidentários. Um processo de
investigação que objetive formular propostas de transformação requer um
minucioso trabalho empírico que capte e potencialize o saber e os processos
psíquicos mobilizados na atividade. Embora não voltado diretamente para o
campo da saúde, esse enfoque vai trazer-lhe uma contribuição singular, ao
permitir uma aproximação efetiva para ir desvendando o enigma do trabalho.
A conotação dada a esses conceitos ou noções mediadores do processo de
trabalho conduz a interpretações diferenciadas, complementares ou não, de suas
repercussões individuais e/ou coletivas para a saúde. Se predominam os
referentes às condições materiais, terão ênfase determinados agentes capazes de
ocasionar patologias diagnosticadas por critérios clínicos e toxicológicos. Se o
foco de atenção volta-se prioritariamente para os aspectos ligados à organização
do trabalho, aparecem com maior significância os efeitos de caráter psicossocial.
Os postulados da Psicopatologia do Trabalho ou, mais recentemente, da
Psicodinâmica do Trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994) abrem novas
perspectivas superadoras da visão monolítica e restritiva da nocividade do
trabalho que induz a caminhar pelo terreno das afecções mentais. Em
contrapartida, buscam desvelar na organização real do trabalho as estratégias
adaptativas intersubjetivas, de defesa/oposição, latentes na tensão entre a procura
de prazer/reconhecimento dos sujeitos e os constrangimentos externos impostos,
independentemente de suas vontades, pelas situações de trabalho. As
manifestações patológicas de sofrimento são a expressão do fracasso dessa
mobilização subjetiva. Sob esse prisma, caberia entender a dimensão psicossocial
da noção de desgaste - enquanto "perda da capacidade potencial e/ou efetiva
corporal e psíquica" (Laurell & Noriega, 1989:110) -, embora esses autores
afirmem, ao referir-se às cargas psíquicas, que estas dizem respeito sobretudo às
manifestações somáticas e não tanto às psicodinâmicas.
A aplicação desse conjunto de conceitos e noções mediadoras possibilita
diversas formas de tratamento para identificar situações de exposição de
grupos/categorias/setores e seus efeitos potenciais ou reais sobre a saúde,
configurando perfis epidemiológicos diferenciados. A conformação desses
agrupamentos, em suas homogeneidades e diferenciações internas, vem
condicionada à adoção de estratégias que combinem abordagens quantitativas e
qualitativas.
Finalmente, uma premissa metodológica é a interlocução com os próprios
trabalhadores, depositários de um saber emanado da experiência e sujeitos
essenciais quando se visa a uma ação transformadora. O reconhecimento desse
saber foi o sustentáculo do "Modelo Operário Italiano" (Oddone, 1986), que
emergiu no bojo do dinamismo dos movimentos sociais, em finais dos anos 70,
tendo como foco particular a mudança e o controle das condições de trabalho nas
unidades produtivas. Paradigmático à época em que foi concebido, mesmo
confrontadas as potencialidades e limitações de um enfoque centrado
eminentemente na experiência-subjetividade operária, serve de contraponto a
formas hegemônicas de construção de conhecimento e intervenção nos locais de
trabalho. Se tentar estendê-lo, na sua íntegra, a outros contextos históricos é
inviável, inspirar-se em sua essência é um caminho fértil, desde que estabelecidos
elos de complementaridade entre o saber procedente da prática cotidiana e a
produção teórica gerada em outros espaços onde se reflete sobre o mundo do
trabalho.

A problemática atual

Inicialmente, cabe ressaltar que a concepção de Saúde do Trabalhador e a


própria prática a ela inerente orientaram-se, de forma predominante, para o
trabalho industrial, tendo como referência um modelo que, em virtude das
profundas transformações recentes, também precisa ser repensado. Depara-se,
no momento atual, com um quadro em que convivem situações mais evidentes da
violência do trabalho, não resolvidas ou parcialmente enfrentadas - como
pneumoconioses, doenças provenientes de riscos físicos, intoxicações crônicas e
agudas, associadas à utilização de tecnologias obsoletas e de substâncias
banidas do mundo desenvolvido, bem como a formas de organização do trabalho
que desconsideram a necessidade de contemplar e expandir as potencialidades
humanas -, com as decorrentes de uma nova lógica produtiva, marcada pela
globalização da economia.
As imposições do mercado internacional quanto à qualidade de produtos e
processos produtivos, numa economia extremamente competitiva, induzem a uma
reestruturação industrial flexível, que alia automação e outros avanços
tecnológicos a novas modalidades organizacionais e de gestão/controle da força
de trabalho. Essas mudanças significativas na cultura de produzir apontam para
melhorias no ambiente e nas relações de trabalho, para um grau maior de
participação e envolvimento, mas demandam um trabalhador
qualificado/polivalente, condizente com um repertório de habilidades e
comportamentos. Interpretar as repercussões desses compromissos e exigências,
cujos potenciais impactos são mais sutis, particularmente do ponto de vista
psicossomático, é uma tarefa ainda a ser realizada.
O direito ao trabalho é a demanda mais crucial e complexa do momento
presente. Garanti-lo reverteria significativamente os constatados reflexos do
desempregro sobre a saúde da população trabalhadora e de suas famílias.
Discute-se a significância do trabalho, não apenas como condição de
sobrevivência, mas por situar-se na própria gênese da sociabilidade humana.
No contexto atual, extremamente desfavorável ao pólo trabalho e, em
virtude da fragilidade na aglutinação efetiva desses segmentos, as propostas
destinadas ao crescimento do nível de emprego voltam-se para alternativas como:
incentivos à contratação, manutenção e capacitação da mão-de-obra; acordos
mais flexíveis de tempo de trabalho, limitações de horas extras, redução da
jornada de trabalho e até a reformulação do seguro-desemprego. A luta pela
manutenção do emprego torna-se, portanto, prioritária e obriga a relegar as
questões de saúde, que começavam a tomar corpo, a um plano secundário nas
agendas sindicais.
Formular uma política de saúde do trabalhador significa, portanto,
contemplar essa ampla gama de condicionantes da saúde e da doença.
Especificamente para o setor público de saúde, do âmbito municipal ao
federal, é premente a necessidade de consolidar ações de saúde do trabalhador
que abranjam da vigilância à assistência em seu sentido amplo. Porém, a limitada
intervenção da Saúde Pública num campo que nunca foi objeto central de
preocupação, agudizada pelos percalços da gestão financeira e de recursos
humanos na implementação do Sistema Único de Saúde, tem se refletido na
tendência de tratar como questão menor a atenção integrada, mas diferenciada,
aos trabalhadores. Essa ausência de respostas efetivas vem servindo de
justificativa para que o setor privado se incumba gradativamente de determinadas
tarefas que, em princípio, seriam um compromisso fundamental do Estado.
Paradoxalmente, chegou-se a uma maior visibilidade social dos problemas
que afetam a qualidade de vida da classe trabalhadora. Avança-se na
compreensão dos agravos à saúde em diferentes processos de trabalho industrial,
bem como nas atividades rurais, sobretudo quanto à utilização indiscriminada de
agrotóxicos; iniciam-se estudos relativos ao setor serviço, incluídas as pesquisas
sobre os profissionais de saúde; percebe-se com mais clareza a especificidade do
trabalho feminino, valendo-se de várias investigações. Mas só pontualmente
obtêm-se respostas proporcionais à relevância das questões levantadas. No
entanto, um universo de indagações, do qual se atinge apenas o contorno, emerge
como desafio ainda a enfrentar: desde velhas situações praticamente intocadas,
como o trabalho escravo e o trabalho infantil, às decorrentes de um modelo de
produção seletivo e excludente que vem ampliando a dimensão da rua como
espaço de trabalho, com todas as incertezas, vulnerabilidades e riscos que esse
espaço significa, em relação tanto a acidentes e violências, como à produção da
própria sobrevivência.
A ampliação dos objetos de estudo e a reformulação de alguns referenciais
conceituais e metodológicos tornam-se assim premissas fundamentais, sob o
ponto de vista investigativo.

As implicações do conhecimento prático para a vigilância em saúde

Discute-se a importância de se considerar o conhecimento prático do


trabalhador sobre sua realidade, ao se propor a ampliação e aprimoramento dos
objetos de estudo, dos referenciais conceituais e metodológicos para a abordagem
do processo de trabalho e saúde/vigilância em saúde do trabalhador.
A abordagem aqui priorizada sobre esse tema adotará um recorte
específico - o de uma ação em saúde motivada pelo conhecimento dos
trabalhadores. Entende-se que esse recorte, embora bastante específico, possa
instrumentalizar leituras mais gerais sobre a vigilância em saúde do trabalhador,
nos âmbitos conceitual e operacional.
Para assim proceder, é requerida a adoção de dois pontos como apoio ao
desenvolvimento da discussão. O primeiro diz respeito à concepção de vigilância à
saúde e o segundo concerne à discussão sobre o que é o conhecimento dos
trabalhadores.
Apresenta-se a noção de vigilância proposta por Mendes et al. (1993), para
os quais trata-se de uma prática interdisciplinar informada pelo modelo
epidemiológico, "...que articula, sob a forma de operações, um conjunto de
processos de trabalho relativos a situações de saúde a preservar, riscos, danos e
seqüelas, incidentes sobre indivíduos, famílias, ambientes coletivos..." (Mendes et
al., 1993:179). Como referem Teixeira & Pinto (1993:6), o termo Vigilância à
Saúde assim concebido é um "imenso guarda-chuva" que objetiva justamente
articular práticas dispersas e heterogêneas em saúde coletiva, desde as voltadas
para a assistência até as dirigidas para a prevenção. Ainda segundo Mendes et al.
(1993:177), vigilância à saúde não é "... uma mera ação de produção de
informação, mas, fundamentalmente, é a intervenção sobre determinantes e
condicionantes de problemas de enfrentamento contínuo que incorpora, ainda,
ações de caráter individual. Esses problemas são escolhidos pelo alto impacto que
têm nas condições de existência de grupos populacionais em microáreas
específicas e pela possibilidade de intervir sobre eles".
Nessa perspectiva, a vigilância à saúde remete a um conjunto de ações
visando a intervir em problemas de saúde, um dos conceitos-chave da noção de
vigilância à saúde. Segundo Matus (s.d.) apud Mendes et al. (1993:169), um
problema é a "formulação para um ator social de uma discrepância entre a
realidade constatada ou simulada e uma norma aceita ou criada como referência",
ou seja, entre "o que é" e "o que deveria ou poderia ser", situando-se esse ator no
cenário social. Isto leva a uma decorrência importante no que se refere ao
processo mesmo de formulação dos problemas de saúde, tendo em vista que nela
deve estar contemplada a participação desses atores.
Ao expressar-se o problema como uma questão não resolvida para alguém,
emerge como decorrência a rediscussão do objeto das ações em saúde, pois,
dentre os problemas, podem estar contemplados não apenas as doenças,
acidentes e mortes, assim consideradas enquanto categorias médicas, mas outros
fenômenos formulados por categorias atinentes à lógica empregada pelo
conhecimento dos atores sociais leigos. Isto tenderia a ampliar a orientação
tradicionalmente adotada nessas ações, ao restringir sua atuação sobre as causas
das doenças, acidentes e mortes. Um problema, por vezes, apresenta-se não
como coisa objetivamente detectável aos olhos de terceiros, mas como vivência
subjetiva, algo cuja caracterização é relativa, pois o problema é definido na
relação das pessoas com as situações vividas, sejam estas relações dinamizadas
no âmbito do local de trabalho, na escola, na moradia. Por isso, essa noção alarga
o foco de ação da vigilância.
Ao se transportar essa discussão para o campo da saúde do trabalhador,
principalmente através do conceito de problema, possibilita-se que o
conhecimento dos trabalhadores sobre a relação saúde-trabalho seja
legitimamente contemplado como propulsor das ações de vigilância e não seja
apenas visto como uma requisição carregada de valores político-ideológicos, pois,
na definição de problema, na definição de prioridades e de estratégias para atuar
sobre seus determinantes e condicionantes, todos os atores sociais devem
participar.
Em saúde do trabalhador, diagnosticar as condições de trabalho e saúde
para eleger prioridades no sentido de eliminar os determinantes e condicionantes
dos problemas de saúde a partir do conhecimento dos trabalhadores não é uma
prática nova, mas merece ser refletida.
Assim é que Laurell & Noriega (1989:88) refletem sobre o significado da
'subjetividade-experiência operária'. Em seus dizeres: "a concepção que se perfila
mais claramente nos textos [sobre o Modelo Operário] é a subjetividade-
experiência operária, como conhecimento latente acumulado, resultado do viver e
atuar numa determinada realidade, cujo portador é o grupo homogêneo, ou seja, a
coletividade que compartilha dessa realidade". Essas considerações corroboram
as críticas de Laurell & Noriega (1989) à etapa posterior do Mapa de Risco,
quando os dados coletados a partir da 'subjetividade-experiência operária' são
categorizados nos 'grupos de risco', os quais são criados a partir do conhecimento
da Medicina, Engenharia, Ergonomia, dentre outras áreas. É justamente esse
procedimento taxonômico que merece críticas dos autores acima, que apontam
uma contradição no Modelo Operário, "... pois ao mesmo tempo que se enfatiza a
potencialidade da subjetividade-experiência operária de revelar a realidade de um
modo diferente da ciência formal, ordena a experiência no mesmo molde
desta"(Laurell & Noriega, 1989:87).
Neste sentido, podemos dizer que o Modelo Operário adota como ponto de
partida a 'subjetividade-experiência operária', mas tem como ponto de chegada as
categorias do conhecimento científico. A mistura de lógicas diferentes -
conhecimento científico e conhecimento do trabalhador - deve-se à insuficiente
reflexão sobre as suas especificidades. Quanto ao conhecimento do trabalhador,
refletir sobre sua natureza é uma "tarefa necessária, pois, se parece apenas
questão de bom senso aceitar que todos os homens têm um conhecimento
adquirido na sua vivência diária, isso é insuficiente quando se trata de elaborar
metodologia original sustentada no conhecimento prático que conduza a um
conhecimento legítimo e não um 'desconhecimento' porque não segue os moldes
do conhecimento cientificamente construído"(Sato, 1995).
Partilha-se das críticas de Laurell & Noriega (1989) e observações de
Grimberg (1988) e entende-se ser necessário um maior aprofundamento sobre a
epistemologia do conhecimento prático que possa nortear a ação em vigilância à
saúde a partir da identificação dos problemas pelos trabalhadores. Isso
possibilitará, inclusive, pensar nas limitações que se encontram ao atuar apenas a
partir dele, pois, como se verá, a visibilidade do conhecimento dos trabalhadores é
diferente daquela alcançada pelo conhecimento científico.
Segundo Castellanos (s.d.), a formulação do problema é socialmente
representada, com base nas necessidades de saúde, as quais, por sua vez, são
determinadas pelas condições de vida. Assim, nem toda necessidade de saúde é
percebida e formulada como problema. Embora o autor não defina a partir de qual
perspectiva compreende as representações sociais, toma-se aqui como uma
compreensão possível a abordagem da psicologia social, para a qual múltiplas
dimensões concorrem para a formulação do problema. Segundo Moscovici (1978),
Jodelet (1984) e Jodelet (1985), as representações sociais são uma forma de
conhecimento prático, socialmente construído para dar sentido à realidade da vida
cotidiana. Como construção, elas não são uma mera cópia da realidade objetiva
nem tampouco produto exclusivo da imaginação. Este conhecimento criativo é
construído na interface objetivo-subjetivo, individual-coletivo. Estando sua
construção situada nestas interfaces, a produção do conhecimento prático é
socialmente condicionada, sendo ao mesmo tempo estruturante das visões de
mundo. Como qualquer conhecimento, ele tem uma funcionalidade que reside,
como refere Spink (1989:2), em "estabelecer uma ordem que permita aos
indivíduos orientarem-se em seu mundo material e social e dominá-lo; e
possibilitar a comunicação entre os membros de um determinado grupo".
A construção do conhecimento do trabalhador está vinculada à vivência
imediata nas situações de trabalho, às relações interpessoais dinamizadas pelo
grupo e ao contexto social. Existe, portanto, uma dimensão que é subjetivo-
existencial, cuja participação confere peculiaridade a esse conhecimento. Embora
o conhecimento científico também conte com uma dimensão subjetivo-existencial,
procura-se lidar com ela de modo diferenciado, almejando tê-la sob controle,
utilizando-se, para este fim, diversos instrumentos teóricos e técnicos, o que não
implica necessariamente esse asseguramento.

Exemplificando a diferença entre a lógica do conhecimento prático e


científico, citamos o estudo de Sato (1993) sobre a penosidade do trabalho.
Visando caracterizar o conceito de trabalho penoso na perspectiva das
representações sociais, Sato (1993) estabelece as diferenças entre o que a
literatura sobre o assunto identifica como sendo o trabalho penoso e como assim o
caracteriza o conhecimento dos trabalhadores. Para a literatura, a penosidade
reside em condições de trabalho que causam sofrimento, incômodo e demandam
esforço. Já para o conhecimento dos trabalhadores, a penosidade refere-se a
contextos de trabalho que demandam esforço, geram incômodo e sofrimento
demasiados, sobre os quais o trabalhador não tem controle. Pode-se observar
que, embora ambos focalizem os mesmos tipos de problemas de saúde -
incômodo, sofrimento e esforço -, no caso do conhecimento do trabalhador, o que
nucleia o conceito, ou seja, o cerne do problema, é o controle, que remete
justamente à relação dos trabalhadores com os contextos de trabalho, não se
reduzindo a penosidade apenas à presença desses problemas e sim à condição
de sujeito na relação de trabalho, onde o incômodo, o sofrimento e o esforço estão
presentes. Em outras palavras, neste caso, para o trabalhador, o problema não é
o que se denomina de 'risco', mas a relação mantida com o trabalho e suas
condições, possibilitada pelo contexto organizacional.
Tomando-se este exemplo, a identificação de diferentes estratégias de
"intervenção sobre determinantes e condicionantes de problemas" (Mendes et al.,
1993:177) é conduzida pela lógica adotada quando se formula o problema. Ou
seja, aproveitando-se ainda o exemplo acima, caso se adote a eleição dos
problemas arrolados por muitos estudos empíricos, a atuação preventiva
provavelmente será dirigida para a busca da eliminação e controle dos riscos
físicos, químicos, biológicos, mecânicos e ergonômicos; por outro lado, ao se
adotar a leitura de problema oferecida pelos trabalhadores, segundo a lógica do
seu conhecimento, essa atuação provavelmente será direcionada à modificação
da relação do trabalhador com o contexto de trabalho, não apenas em termos
macro, mas como estratégia de intervenção local. Por serem linhas de atuação
qualitativamente diferentes, essa discussão teórica sobre um único aspecto do
que está envolvido no processo de trabalho em vigilância à saúde é importante
para a sua prática.
Há ainda um outro aspecto que merece discussão, o qual diz respeito à
prontidão do conhecimento do trabalhador para um terceiro. Nem sempre esse
conhecimento encontra-se lá, pronto e acabado à espera de um observador
externo. Ele, muitas vezes, conforma-se como algo objetivável quando instigado a
organizar-se, a tomar forma, para então mostrar-se. Quando se mostra,
surpreende e traz algo novo não só para o observador externo, mas para o próprio
trabalhador que desconhecia o corpo que seu conhecimento poderia adotar. Esse
conhecimento muitas vezes é forjado na relação com o outro; ou seja, ele pode
tomar forma no momento mesmo em que se exercita a reflexão e se nomeiam
vivências, cujo germe ou fragmentos aparentemente desconectados e indizíveis
conformam-se nesse conhecimento coletivamente construído. Não são raras as
vezes que os trabalhadores, numa relação de conversa ou entrevista, exclamam
nunca terem parado para pensar nas coisas expressas. A relação pesquisador-
pesquisado é um dos níveis do contexto de produção dos discursos (Spink,
1993a).
Em função da natureza e formas através das quais o conhecimento dos
trabalhadores se dá a conhecer é que se elegem as técnicas de coleta de dados.
Tal conhecimento se expressa pela linguagem verbal e escrita, pelo jeito próprio
de cada grupo social, pelos fazeres no dia-a-dia e no trabalho. Spink (1993b)
sistematiza baseando-se nos estudos empíricos que trabalham com a noção de
representações sociais, as técnicas habitualmente empregadas. Dentre estas,
estão as técnicas verbais (como questionários e entrevistas abertas), observação
e técnicas não verbais (a dramatização). Quanto à análise de dados, os
procedimentos podem ser variados, importando aí não a técnica em si, mas o
quanto ela permite respeitar a lógica do conhecimento prático.
Trabalhar com o conhecimento prático nessa perspectiva, nas ações de
vigilância à saúde, requer ainda uma elasticidade maior de tempo, dadas as
características do dado no que se refere à sua prontidão, das próprias técnicas
empregadas para coleta e análise dos achados. Além disso, caso se trate de
apreender a organização do trabalho, há que se acessar o trabalho realmente
executado que, para tanto, requer uma observação prolongada.
Com a discussão aqui realizada, não se defende que devam as ações de
vigilância à saúde ser norteadas apenas pelo conhecimento prático, pois,
conforme referido acima, a sua visibilidade é diferente daquela propiciada pelo
conhecimento científico. Existem situações nas quais o conhecimento dos
trabalhadores não tem acesso ou o tem apenas em estados mais adiantados do
problema de saúde. Isto ocorre, por exemplo, com as mudanças bioquímicas
provocadas pelas contaminações e intoxicações, acessíveis através de exames.
Um outro aspecto a ser também relevado é a relação entre o conhecimento
do trabalhador e as explicações e valores correntes na sociedade, relação esta
que deve estar o tempo todo na memória ativa dos que trabalham com essa
noção. Como todos estão inseridos numa sociedade, ninguém ou nenhum dos
conhecimentos está hermético a (ou protegido contra) tais explicações e valores.
O conceito de habitus, conforme Bourdieu (1983), instrumentaliza a
contextualização das representações, as práticas em sua relação com a posição
de classe, já que ele funciona como um sistema de disposições duráveis,
estruturadas socialmente, sendo ao mesmo tempo estruturantes de visões de
mundo. Nessa perspectiva, lidar com o conhecimento do trabalhador requer que
se esteja alerta ao contexto no qual ele se constrói e a qual realidade pretende
atribuir significado. É também no nível das condições de produção dos discursos
que talvez possa ser entendido por que determinadas necessidades estão
referidas na formulação dos problemas e outras não, segundo Castellanos (s.d.),
onde diferentes níveis e dimensões da vida social e do grupo e da história e
expectativa de cada pessoa se fazem presentes. A condição de produção das
representações é identificada por Harrison (1988) ao estudar as representações
de risco entre operários, quando ficou evidenciado que elas dependem tanto do
contexto social no qual se dão, como da natureza do risco.
Além disso, a formulação dos problemas de saúde está relacionada à
noção de cidadania, construída em cada realidade social e vivenciada no cotidiano
pelos atores sociais. Essa noção serve como espécie de matriz sobre a qual está
referenciada a delimitação dos direitos que sentem ter. São as condições de
produção do conhecimento prático, dentre os quais o contexto social e noção de
cidadania, que talvez possam explicar por que determinadas necessidades de
saúde não são eleitas como substrato para a formulação de problemas de saúde.
Embora existam diferentes lógicas e o emprego de estratégias distintas
para a construção do conhecimento prático e para o conhecimento científico,
considera-se importante utilizar, no processo de vigilância à saúde, as teorias e os
instrumentos colocados à disposição por ambas as formas de conhecimento,
cuidando-se para que suas lógicas sejam respeitadas, o que implica querer obter
de cada um simplesmente aquilo a que cada um deles se propõe. Ao se propor
trabalhar com ambos, apresenta-se uma questão operacional referente à inter-
relação entre esses conhecimentos. Como possibilidade, existe o mecanismo de
comunicação e negociação, processo através do qual pode-se encontrar um
'denominador comum', ou, como refere Spink (1991), a 'intertextualidade' entre os
achados epidemiológicos, outros indicadores sanitários e os achados do senso
comum, que podem eventualmente até coincidir.
Considera-se importante essa reflexão no contexto da vigilância em saúde
do trabalhador, pois o aporte teórico desenha a trilha dos caminhos que as ações
deverão conduzir - desde a definição do que é problema de saúde, passando pelo
procedimento de identificação dos mesmos e chegando às estratégias de
intervenção.

A "Análise Ergonômica do Trabalho" (AET) e a atuação em Saúde do


Trabalhador

Ao considerar os aspectos conceituais e metodológicos colocados pela


AET, que preconiza a importância de se conhecer o trabalho como ele realmente
acontece, seus problemas e possibilidades de reformulação sob o ponto de vista
dos trabalhadores e a confrontação de representações/negociações entre os
diferente grupos de atores sociais que interagem numa situação de trabalho,
parece-nos possível abordar questões importantes de saúde e trabalho nesta
perspectiva. A AET estabelece metodologia adequada para proporcionar a
compreensão abrangente da situação de trabalho, considerando o conhecimento
prático e o científico, podendo embasar ações efetivas para a melhoria do
mesmo, sob o aspecto da produtividade e da saúde.
Alguns profissionais da área da saúde defendem que não é possível discutir
a questão saúde relacionando-a à produtividade. Certamente as formulações
acerca da saúde vão ser mais limitadas do que se discutidas isoladamente, por
outro lado, não vão estar tão distantes da realidade, conformando-se de maneira
factível.
Ao considerar e confrontar o conhecimento prático e o tradicionalmente
científico, a abordagem em AET cria condições para a reformulação de
representações acerca do trabalho entre os diversos grupos de atores sociais que
interagem no contexto da atividade/produção. Por um outro lado, a ergonomia
deixa de desenvolver suas ações de maneira isolada e/ou pouco participativa,
contribuindo para atingir a mobilização dos atores sociais envolvidos na situação
de trabalho estudada, sejam planejadores/administradores e principalmente
trabalhadores; a ação deixa de ser pontual, restringindo-se em quantidade e
qualidade.
Seja no contexto da AET ou da Saúde do Trabalhador, a compreensão
abrangente da situação de trabalho adoecedora é fundamental. Partindo desta
compreensão é possível praticar a vigilância em saúde do trabalhador, propondo
ações que visem o controle do adoecimento e mais, promovam melhores
condições de trabalho e saúde, entendendo o trabalho como um potente mediador
na construção da saúde.
Entende-se também sob ambos os enfoques (AET e Saúde do
Trabalhador), que a participação dos trabalhadores, através de suas
representações/pontos de vista/vivências acerca do trabalho, é fundamental para
a construção desta compreensão. Desta maneira consideramos a “fala” do
trabalhador como um instrumento de formação de conhecimento sobre o trabalho.
Ao avançarmos neste sentido, propomos também que a elucidação das
representações dos demais atores sociais envolvidos na situação de trabalho –
planejadores, níveis hierárquicos intermediários e chefias diretas, colabora de
maneira importante na composição desta compreensão abrangente da situação de
trabalho.
Em um outro momento, quando a preocupação não é mais o diagnóstico da
situação de trabalho, mas a intervenção sobre a mesma, a confrontação destas
representações além de direcionar a formulação de proposições mais pertinentes,
pode possibilitar a reestruturação destes ‘pontos de vista’ em cada grupo de
atores sociais envolvidos no processo. Para tanto, a confrontação aconteceria
dentro de cada grupo e através deles.
Esta possibilidade de confrontação de representações e consequente
reestruturação permitiria o desenvolvimento de uma outra etapa, de negociação
entre os atores sociais envolvidos numa situação de trabalho. Talvez até de
participação e vigilância constantes sobre as questões relacionadas ao trabalho e
saúde.
Neste sentido, outros segmentos poderiam participar deste processo, como
Sindicatos, setor Saúde, Trabalho e Previdência.

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