1) O documento discute a construção do campo da saúde do trabalhador no Brasil, incluindo suas origens na medicina industrial e ocupacional e a necessidade de uma abordagem interdisciplinar.
2) É destacada a importância de interpretar a relação entre trabalho e saúde tendo como referência central o processo de trabalho.
3) Apesar dos avanços conceituais, ainda há a hegemonia da medicina do trabalho e ocupacional no cotidiano, colocando em questão a distância entre produção de conhecimento e aplicação prática.
1) O documento discute a construção do campo da saúde do trabalhador no Brasil, incluindo suas origens na medicina industrial e ocupacional e a necessidade de uma abordagem interdisciplinar.
2) É destacada a importância de interpretar a relação entre trabalho e saúde tendo como referência central o processo de trabalho.
3) Apesar dos avanços conceituais, ainda há a hegemonia da medicina do trabalho e ocupacional no cotidiano, colocando em questão a distância entre produção de conhecimento e aplicação prática.
1) O documento discute a construção do campo da saúde do trabalhador no Brasil, incluindo suas origens na medicina industrial e ocupacional e a necessidade de uma abordagem interdisciplinar.
2) É destacada a importância de interpretar a relação entre trabalho e saúde tendo como referência central o processo de trabalho.
3) Apesar dos avanços conceituais, ainda há a hegemonia da medicina do trabalho e ocupacional no cotidiano, colocando em questão a distância entre produção de conhecimento e aplicação prática.
A área de Saúde do Trabalhador é bastante complexa e diversificada,
sendo difícil delimitar com precisão o seu campo de conhecimento/atuação. Cada vez mais, têm surgido temas, estudos, abordagens que, embora afetos à relação trabalho-saúde, apenas correspondem parcialmente ao que se entende por Saúde do Trabalhador. É uma área passível de abrigar diferentes aproximações e de incluir uma variedade de estudos e práticas de indiscutível valor, mesmo na ausência de uma adequada precisão conceitual sobre o caráter da associação entre o trabalho e o processo saúde-doença. Pode-se dizer que existe uma "zona de empatia", para a qual confluem diversos estudos disciplinares. Essas contribuições esclarecem determinadas questões de interesse, como alguns riscos ocupacionais em locais de trabalho ou em setores de uma categoria profissional, sem pretender dar resposta ao campo como tal. Trata-se de uma ampla produção que evitamos particularizar, mas se estende pelos Departamentos de Medicina Preventiva/Social, por Instituições de Saúde Pública/Saúde Coletiva e outras Faculdades de diversas áreas de conhecimento. Torna-se desejável, entretanto, delimitar o arcabouço específico, um núcleo epistemológico que, sem rigidez, defina os conceitos fundamentais da área, tanto do ponto de vista teórico, como nas suas implicações para o desenvolvimento de estudos/pesquisas e o direcionamento da prática, à luz do processo econômico, social e político do País. Demarcar diferenças não significa desconhecer ou desmerecer a importância dos investimentos realizados para enfrentar situações ou analisar questões específicas da relação trabalho-saúde. Clarificar, porém, a dimensão processual da construção do campo pode "interfertilizar" toda essa "zona de empatia". Tem-se a intenção de refletir sobre os fundamentos teóricos e práticos que influenciam e conformam o campo da Saúde do Trabalhador no Brasil, no interior da Saúde Coletiva. Ao analisar as diversas formas de conceber a relação trabalho- saúde, enfatiza-se a pertinência de interpretar essa relação, dada sua natureza complexa e conflitiva, tendo como referência central o processo de trabalho, em consonância com os pressupostos da Medicina Social latino-americana. Com base nesse enfoque, ressalta-se a necessidade de abordagens interdisciplinares que contemplem e extrapolem a articulação de áreas de conhecimento habitualmente adscritas ao âmbito da saúde.
O trabalho e a saúde
A relação entre o trabalho e a saúde/doença - constatada desde a
Antigüidade e exacerbada a partir da Revolução Industrial - nem sempre se constituiu em foco de atenção. Afinal, no trabalho escravo ou no regime servil, não existia a preocupação em preservar a saúde dos que eram submetidos ao trabalho, interpretado como castigo ou estigma. O trabalhador, o escravo, o servo eram assemelhados a animais e ferramentas, sem história, sem progresso, sem perspectivas, habitantes de um corpo que existia para ser consumido/deteriorado. Com o advento da Revolução Industrial, o trabalhador "livre" para vender sua força de trabalho tornou-se presa da máquina, de seus ritmos, dos ditames da produção que atendiam à necessidade de acumulação rápida de capital e de máximo aproveitamento dos equipamentos. As jornadas extenuantes, em ambientes extremamente desfavoráveis à saúde, às quais se submetiam também mulheres e crianças, eram freqüentemente incompatíveis com a vida. A aglomeração humana em espaços inadequados propiciava a acelerada proliferação de doenças infecto-contagiosas, ao mesmo tempo em que a periculosidade das máquinas era responsável por mutilações e mortes. As propostas controvertidas de intervir nas empresas, àquela época, expressaram-se numa sucessão de normatizações e legislações, que tem no Factory Act, de 1833, seu ponto mais relevante, passando a tomar corpo, na Inglaterra, a medicina de fábrica. A presença de um médico no interior das unidades fabris representava, ao mesmo tempo, um esforço em detectar os processos danosos à saúde e uma espécie de braço do empresário para recuperação do trabalhador, visando ao seu retorno à linha de produção, num momento em que a força de trabalho era fundamental à industrialização emergente. Instaurava-se assim o que seria uma das características da Medicina do Trabalho, uma visão eminentemente biológica e individual, no espaço restrito da fábrica, numa relação unívoca e unicausal, buscam-se as causas das doenças e acidentes. Assim, a Medicina do Trabalho orientou-se pela teoria da unicausalidade, ou seja, para cada doença, um agente etiológico. Transplantada para o âmbito do trabalho, vai refletir-se na propensão a isolar riscos específicos e, dessa forma, atuar sobre suas conseqüências. Como freqüentemente as doenças originadas no trabalho são percebidas em estágios avançados, até porque muitas delas, em suas fases iniciais, apresentam sintomas comuns a outras patologias, torna-se difícil, sob essa ótica, identificar os processos que as geraram, bem mais amplos que a mera exposição a um agente exclusivo. A rotatividade da mão-de-obra, sobretudo quando se intensifica a terceirização, representa um obstáculo a mais nesse sentido. A Saúde Ocupacional avança numa proposta interdisciplinar, com base na Higiene Industrial, relacionando ambiente de trabalho-corpo do trabalhador. Incorpora a teoria da multicausalidade, na qual um conjunto de fatores de risco é considerado na produção da doença, avaliada através da clínica médica e de indicadores ambientais e biológicos de exposição e efeito. Os fundamentos teóricos de Leavell & Clark (1976), a partir do modelo da História Natural da Doença, entendem-na, em indivíduos ou grupos, como derivada da interação constante entre o agente, o hospedeiro e o ambiente, significando um aprimoramento da multicausalidade simples. Mesmo assim, se os riscos são considerados como inerentes ao trabalho passam a ser desconsideradas as razões que se situam em sua origem, repetem- se, na prática, as limitações da Medicina do Trabalho. As medidas que deveriam assegurar a saúde do trabalhador, em seu sentido mais amplo, acabam por restringir-se a intervenções pontuais sobre os riscos mais evidentes. Enfatiza-se a utilização de equipamentos de proteção individual, em detrimento dos que poderiam significar a proteção coletiva; normatizam-se formas de trabalhar consideradas seguras, o que, em determinadas circunstâncias, conforma apenas um quadro de prevenção simbólica. Considera-se que sob essa ótica, em algumas situações, podem ser imputados aos trabalhadores os ônus por acidentes e doenças, concebidos como decorrentes da ignorância e da negligência, caracterizando uma dupla penalização (Machado & Minayo-Gomez, 1995). Em síntese, apesar dos avanços significativos no campo conceitual que apontam um novo enfoque e novas práticas para lidar com a relação trabalho- saúde, consubstanciados sob a denominação de Saúde do Trabalhador, depara- se, no cotidiano, com a hegemonia da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. Tal fato coloca em questão a já identificada distância entre a produção do conhecimento e sua aplicação, sobretudo num campo potencialmente ameaçador, onde a busca de soluções quase sempre se confronta com interesses econômicos arraigados, que não contemplam os investimentos indispensáveis à garantia da saúde no trabalho. No Brasil, esta situação se agrava pela incapacidade do setor saúde do Estado em reabsorver seu papel de intervir no espaço do trabalho. Esta tarefa, prevista na Reforma Carlos Chagas, de 1920 - interrompida com a criação, em 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que passou a assumi-la - foi resgatada na Carta Constitucional de 1988 e regulamentada pela Lei 8080/SUS. No entanto, as marcas de um passado recente não são facilmente removíveis. As Delegacias Regionais do Trabalho advogam, em vários estados, a exclusividade de sua competência para inspecionar os centros produtivos. Essa posição, de um modo geral, encontra eco nos segmentos mais conservadores do patronato, na medida em que tais inspeções, orientadas por um modelo tradicional, pontuais e técnico-burocratas, incapazes de alimentar um sistema de vigilância em saúde do trabalhador, servem aos seus propósitos ao não promoverem mudanças significativas.
No campo da Saúde, na esteira das proposições internacionais
racionalizadoras que se baseiam na chamada Atenção Primária em Saúde, durante a Conferência Mundial de Saúde de Alma Ata em 1978, surgem propostas específicas dentro da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a atenção à saúde de grupos populacionais de trabalhadores, particularmente os rurais, mineiros e migrantes. Ainda em 1983 o organismo da OMS para as Américas, a Organização PanAmericana da Saúde (OPAS), lança o Documento "Programa de Acción en la Salud de los Trabajadores" (OPAS, 1983) com diretrizes para a implantação de programações em saúde na rede pública de serviços sanitários e voltadas para aqueles que trabalham. Na mesma linha coloca-se a Organização Internacional do Trabalho (OIT) ao adotar em sua 71a Conferência Internacional do Trabalho, em 05/06/1985, a Convenção no 161 e a Recomendação no 171 denominadas "Convenção e Recomendação sobre os Serviços de Saúde no Trabalho", cujas principais características são o princípio da ampla participação dos trabalhadores, a atuação em equipes multiprofissionais e a sua implementação principalmente a partir de políticas públicas (OIT, 1985), ao contrário do que propunha a Recomendação OIT no 112 de 1959, relativa aos Serviços de Medicina do Trabalho de caráter privado e que "inspiraram" 15 anos depois, em 1975, a criação dos Serviços Especializados de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMETs) no Brasil. Os Serviços Especializados em Segurança e Medicina do Trabalho - SESMT – vão se instalando nas empresas brasileiras já na contra-mão das discussões sobre a atuação na área de saúde e trabalho. Com algumas exceções, estes órgãos desviam-se da função de reconhecer, avaliar e controlar as causas de acidentes e doenças. De modo geral, seus profissionais - assalariados pela empresa e sem respaldo legal para contrariarem-lhe os interesses - restringem-se à adoção de medidas paliativas diante dos riscos mais patentes. A deficiência na formação de recursos humanos na área, conseqüência da marginalidade ainda atribuída à questão trabalho-saúde, aliada à generalizada insatisfação profissional, reproduz na rede pública a prática ineficaz da maioria dos SESMT, presente também em serviços conveniados com as empresas e com o próprio sistema público de saúde. A principal Resolução da Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, realizada em março de 1994 (Ministério da Saúde - MS, 1994), que determina a unificação no SUS de todas as ações de saúde do trabalhador (tratamento das doenças e controle dos ambientes de trabalho, mediante metodologia epidemiológica, aplicada às atividades de vigilância à saúde), continua sem perspectivas de ser efetivada, seja pela falta de vontade política do MS – ainda priorizando a assistência médico-hospitalar -, seja pela resistência do setor Trabalho (modificação das normas regulamentadoras, com introdução da obrigatoriedade do PCMSO e PPRA, que determina a necessidade de formação de um maior número de profissionais especializados, dentre outras). Essa desintegração, expressa em ações fragmentadas, desarticuladas e superpostas de instituições com responsabilidade direta ou indireta na área - agravada por conflitos de concepções e práticas, bem como de interpretação sobre competências jurídico-institucionais -, revela a trajetória caótica do Estado em sua função de promover a saúde do cidadão que trabalha. Apenas o esforço isolado de profissionais que se articulam em diferentes níveis, universidades, programas de saúde do trabalhador, centros de referência e atividades de vigilância realmente efetivas abre um rastro de luz nesse universo sombrio. Mesmo assim, não restam dúvidas de que as inserções diferenciadas dos indivíduos nos processos produtivos, quer no meio urbano, quer no rural, definem padrões também diversificados de morbi-mortalidade, para os quais contribuem outros fatores decorrentes das condições de vida a que estão submetidos.
O campo da Saúde do Trabalhador
Em síntese, por Saúde do Trabalhador compreende-se um corpo de
práticas teóricas interdisciplinares - técnicas, sociais, humanas - e interinstitucionais, desenvolvidas por diversos atores situados em lugares sociais distintos e informados por uma perspectiva comum. Essa perspectiva é resultante de todo um patrimônio acumulado no âmbito da Saúde Coletiva, com raízes no movimento da Medicina Social latino-americana e influenciado significativamente pela experiência italiana. O avanço científico da Medicina Preventiva, da Medicina Social e da Saúde Pública, durante os anos 60 e o início da década de 70, ao suscitar o questionamento das abordagens funcionalistas, ampliou o quadro interpretativo do processo saúde-doença, inclusive em sua articulação com o trabalho. Reformula- se o entendimento "das relações entre o social e as manifestações patológicas, a categoria trabalho aparecendo como momento de condensação, em nível conceitual e histórico, dos espaços individual (corporal) e social" (Donnangelo, 1983: 32). Instaurar o novo paradigma implica, por conseguinte, enfrentar e extrapolar as concepções tecnicistas hegemônicas nessa área especializada da medicina e da engenharia. Concepções consolidadas que fornecem soluções modelares, reproduzidas na formação de profissionais e sustentadas por volumosos recursos econômicos e técnicos. O conflito adquire dimensões extremas no momento de intervir nos centros de trabalho. É ilustrativa, nesse sentido, a possibilidade de acionar o Ministério Público como forma de externar a insatisfação dos trabalhadores para com os métodos tradicionais, aceitos/colocados pelo órgão de inspeção oficial e empresa, sem permitir que se formulem outros parâmetros de vigilância em saúde do trabalhador. Como campo de práxis, de produção de conhecimentos orientados para uma ação/intervenção transformadora, a Saúde do Trabalhador defronta-se continuamente com questões emergentes, que levam à definição de novos objetos de estudo, contemplando demandas explícitas ou implícitas dos trabalhadores. É, portanto, uma área em permanente construção, configurada numa trama de relações que reflete consciências e vontades individuais e coletivas. Constitui-se, conseqüentemente, em arena de conflitos e entendimentos formalizados ou pactuados entre empresas, trabalhadores e instituições públicas frente a situações-problema, colocando em jogo, além da identificação de sua real origem, a capacidade de negociação para enfrentá-las. A garantia de um desfecho favorável condiciona-se à junção do conhecimento técnico com o saber/experiência dos trabalhadores na procura e adoção de medidas impreteríveis, que evoluam para atingir soluções decisivas quanto aos agravos à saúde constatados. Configura-se, assim, um complexo tabuleiro de peças que se ajustam ou se repelem, demandando estratégias diferenciadas, em função das conjunturas locais, regionais ou nacionais. Obter restritas, porém significativas, conquistas requer, habitualmente, enfrentar um caminho controverso em sua essência, ao longo do qual a contribuição das instituições acadêmicas é, sem dúvida, um imperativo. A incorporação de conhecimentos da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, a aplicação das normas da Higiene e Segurança do Trabalho fazem parte desse trajeto, numa perspectiva permanente de definição de marcos conceituais e práticas que exprimam uma visão totalizante do ser humano em sua relação com o trabalho. Enquanto campo de investigação, a Saúde do Trabalhador adota determinados métodos de análise, conceitualizações ou "approaches". Aplica seu instrumental analítico, segundo procedimentos que representam etapas sucessivas de aproximação a um problema ou conjunto de problemas. As estratégias de pesquisa dependem das características das instituições onde se desenvolvem e do grau de consolidação dos grupos de investigação. Guardam certa aproximação das concepções de Bulmer (1978) sobre pesquisa básica, de inteligência, estratégica e operacional. O grau de envolvimento entre trabalhadores e técnicos/instituições pode conduzir a formas aproximativas de pesquisa participante ou pesquisa-ação. A referência central para o estudo dos condicionantes da saúde-doença é o processo de trabalho. O controle exercido sobre o processo de produção no interior das unidades produtivas, por meio de velhos ou novos padrões de gestão da força de trabalho, respectivamente, taylorismo, fordismo e neotaylorismo, pós- fordismo, toyotismo, redunda na constituição de coletivos diferenciados de trabalhadores e de uma multiplicidade de agravos potenciais à saúde. Desvendar a dinâmica dessas situações implica um empenho permanente de aproximação- teorização, capaz de ampliar a interpretação de um quadro aparentemente dado e imutável, que condiciona ou determina a formulação de alternativas tecnológicas/organizacionais, cujas repercussões não se restringem aos centros de trabalho.
A apropriação do conceito "processo de trabalho" como instrumento de
análise possibilita reformular as concepções ainda hegemônicas das perspectivas uni ou multicausal que desconsideram a dimensão social e histórica do trabalho e da saúde/doença. Tais concepções, mesmo quando incluem variáveis sócio- econômicas, na tentativa de aprimorar a compreensão das razões do adoecimento, revestem-se de um caráter reducionista, na medida em que o social é um elemento a mais, dentre os fatores de risco. Dessa forma, indivíduo e ambiente são apreendidos na sua exterioridade, ignorando-se sua historicidade e o contexto que circunstancia as relações de produção materializadas em condições específicas de trabalhar, geradoras ou não de agravos à saúde. A Saúde do Trabalhador é, por natureza, um campo interdisciplinar e multiprofissional. As análises dos processos de trabalho, pela sua complexidade, tornam a interdisciplinaridade uma exigência intrínseca que necessita "ao mesmo tempo, preservar a autonomia e a profundidade da pesquisa em cada área envolvida e de articular os fragmentos de conhecimento, ultrapassando e ampliando a compreensão pluridimensional dos objetos" (Minayo, 1991:71). Nenhuma disciplina isolada consegue contemplar a abrangência da relação processo trabalho-saúde em suas múltiplas e imbricadas dimensões: desde as razões sócio-históricas que lhe dão origem à forma como se concretizam nos espaços de trabalho. Impõe-se, portanto, a convergência de pesquisadores que - imbuídos de uma ética que dá significado à tarefa de pensar para transformar - sejam capazes de estabelecer conexões e correspondências entre as parcelas de conhecimento que suas disciplinas aportam, na construção de uma proposta comum. É o próprio confronto com o real que, ao evidenciar possibilidades e limites/incertezas de cada disciplina, impele ao entendimento entre os saberes. Esse entendimento tem por premissa a substituição do "princípio da hierarquia" entre as ciências/saberes pelo "princípio da cooperação". Trata-se, portanto, de construir uma cultura que, sob o imperativo do diálogo, da interação, do questionamento recíproco, permita, numa aproximação à filosofia do agir comunicativo (Habermas, 1988), a fluidez entre as diferentes linguagens. Fixa-se como horizonte criar condições favoráveis para que os conhecimentos da Clínica, da Engenharia, da Toxicologia, da Ergonomia, da Epidemiologia e das Ciências Sociais e Humanas, frente à necessidade de responder a demandas concretas, sejam capazes, concomitantemente, de fortificarem-se em seu campo particular e flexibilizarem suas fronteiras, estabelecendo interfaces entre seus diversos corpos conceituais/metodológicos e engendrando novas práticas que ensejem formas mais abrangentes e totalizadoras de aproximar-se da realidade. Incorporar o referencial de outras disciplinas torna mais profícuo o olhar de cada uma delas sobre o mesmo objeto e a resultante ultrapassa a soma de enfoques isolados. Nessa perspectiva, o quantitativo não se opõe ao qualitativo, o mensurável não nega o imensurável, os determinantes imediatos não são descontextualizados dos gerais, o saber teórico dos técnicos se abre à contribuição do conhecimento tecido no cotidiano dos trabalhadores. Na prática, porém, esse esforço de entender para intervir no processo de trabalho em relação com a saúde e a doença encontra barreiras arraigadas de compatibilização dos conceitos. Obriga a superar todo um passado de fragmentação da realidade, reproduzido na formação dos profissionais desde a graduação, que se reflete na tendência à manutenção de ilhas de saber/poder e no receio diante da possibilidade de construir pontes entre as diversas áreas de conhecimento. Os avanços nessa direção começam a evidenciar-se. Por um lado, os cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, de caráter multiprofissinal, instituídos no âmbito da Saúde Coletiva vêm construindo um terreno propício à crítica e à produção de conhecimento na área. Por outro, mesmo as pesquisas multidisciplinares num campo constituído predominantemente por profissionais de formação médico-epidemiológica representam passos significativos no caminho da interdisciplinaridade. O surgimento de algumas propostas institucionais que estimulam a construção e amadurecimento de equipes de pesquisadores de formações diversas tem demonstrado a potencialidade dessa nova perspectiva de investigação/ação. Mas tal potencialidade pode ficar comprometida diante de alguns equívocos, tais como: a incorporação, sem o devido rigor, dos conceitos de outras disciplinas; a polissemia de noções comuns que, por sua falsa aparência de transitividade, escondem as profundas diferenças que as separam; a substituição pura e simples de análises fragmentadas por sínteses simplificadoras. O tratamento interdisciplinar implica a tentativa de estabelecer e articular dois planos de análise: o que contempla o contorno social, econômico, político e cultural - definidor das relações particulares travadas nos espaços de trabalho e do perfil de reprodução social dos diferentes grupos humanos - e o referente a determinadas características dos processos de trabalho com potencial de repercussão na saúde. Entre os conceitos e noções extraídos dessas características, encontram-se os classificatórios de risco - fundamentalmente associados às propriedades materiais e mensuráveis quantitativamente dos objetos, meios e ambientes de trabalho - e os de exigências ou requerimentos, que dizem respeito a componentes mais qualitativos derivados da organização do trabalho. Embora esses conceitos sejam complementares e inseparáveis, numa visão ampla de ambiente de trabalho, as concepções legais e as práticas hegemônicas acabam por focalizar predominantemente no ambiente físico as situações capazes de defini-lo como insalubre ou perigoso. Laurell & Noriega (1989), no intuito de distanciarem-se do conceito de risco, por considerarem-no insuficiente para apreender a lógica global do processo de trabalho, utilizam-se do que denominam categoria carga de trabalho - abarcando tanto as físicas, químicas e mecânicas quanto as fisiológicas e psíquicas - que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador. Assinalam, no entanto, que estas últimas "não têm materialidade visível externa ao corpo humano", apontando, sem sistematizar, os componentes do processo de trabalho capazes de gerá-las. Posteriormente, Noriega (1993) passa a atribuir às exigências - enquanto requerimentos decorrentes da organização do trabalho e da atividade do trabalhador - um papel relevante na conformação dos perfis de saúde-doença dos coletivos de trabalhadores, ao distingui-las dos riscos, relacionados aos objetos e meios de trabalho. Para melhor compreender como riscos ou cargas e exigências se manifestam concretamente nos processos de trabalho, é pertinente o instrumental desenvolvido pela corrente francesa da Ergonomia Situada (Vidal, 1995), com base na distinção entre tarefa prescrita e atividade real. Essa distinção, previsível, diante da variabilidade de condições de trabalho, ocorre sobretudo em face de situações que exigem a interferência constante dos trabalhadores para manter a continuidade da produção ou prevenir eventos acidentários. Um processo de investigação que objetive formular propostas de transformação requer um minucioso trabalho empírico que capte e potencialize o saber e os processos psíquicos mobilizados na atividade. Embora não voltado diretamente para o campo da saúde, esse enfoque vai trazer-lhe uma contribuição singular, ao permitir uma aproximação efetiva para ir desvendando o enigma do trabalho. A conotação dada a esses conceitos ou noções mediadores do processo de trabalho conduz a interpretações diferenciadas, complementares ou não, de suas repercussões individuais e/ou coletivas para a saúde. Se predominam os referentes às condições materiais, terão ênfase determinados agentes capazes de ocasionar patologias diagnosticadas por critérios clínicos e toxicológicos. Se o foco de atenção volta-se prioritariamente para os aspectos ligados à organização do trabalho, aparecem com maior significância os efeitos de caráter psicossocial. Os postulados da Psicopatologia do Trabalho ou, mais recentemente, da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994) abrem novas perspectivas superadoras da visão monolítica e restritiva da nocividade do trabalho que induz a caminhar pelo terreno das afecções mentais. Em contrapartida, buscam desvelar na organização real do trabalho as estratégias adaptativas intersubjetivas, de defesa/oposição, latentes na tensão entre a procura de prazer/reconhecimento dos sujeitos e os constrangimentos externos impostos, independentemente de suas vontades, pelas situações de trabalho. As manifestações patológicas de sofrimento são a expressão do fracasso dessa mobilização subjetiva. Sob esse prisma, caberia entender a dimensão psicossocial da noção de desgaste - enquanto "perda da capacidade potencial e/ou efetiva corporal e psíquica" (Laurell & Noriega, 1989:110) -, embora esses autores afirmem, ao referir-se às cargas psíquicas, que estas dizem respeito sobretudo às manifestações somáticas e não tanto às psicodinâmicas. A aplicação desse conjunto de conceitos e noções mediadoras possibilita diversas formas de tratamento para identificar situações de exposição de grupos/categorias/setores e seus efeitos potenciais ou reais sobre a saúde, configurando perfis epidemiológicos diferenciados. A conformação desses agrupamentos, em suas homogeneidades e diferenciações internas, vem condicionada à adoção de estratégias que combinem abordagens quantitativas e qualitativas. Finalmente, uma premissa metodológica é a interlocução com os próprios trabalhadores, depositários de um saber emanado da experiência e sujeitos essenciais quando se visa a uma ação transformadora. O reconhecimento desse saber foi o sustentáculo do "Modelo Operário Italiano" (Oddone, 1986), que emergiu no bojo do dinamismo dos movimentos sociais, em finais dos anos 70, tendo como foco particular a mudança e o controle das condições de trabalho nas unidades produtivas. Paradigmático à época em que foi concebido, mesmo confrontadas as potencialidades e limitações de um enfoque centrado eminentemente na experiência-subjetividade operária, serve de contraponto a formas hegemônicas de construção de conhecimento e intervenção nos locais de trabalho. Se tentar estendê-lo, na sua íntegra, a outros contextos históricos é inviável, inspirar-se em sua essência é um caminho fértil, desde que estabelecidos elos de complementaridade entre o saber procedente da prática cotidiana e a produção teórica gerada em outros espaços onde se reflete sobre o mundo do trabalho.
A problemática atual
Inicialmente, cabe ressaltar que a concepção de Saúde do Trabalhador e a
própria prática a ela inerente orientaram-se, de forma predominante, para o trabalho industrial, tendo como referência um modelo que, em virtude das profundas transformações recentes, também precisa ser repensado. Depara-se, no momento atual, com um quadro em que convivem situações mais evidentes da violência do trabalho, não resolvidas ou parcialmente enfrentadas - como pneumoconioses, doenças provenientes de riscos físicos, intoxicações crônicas e agudas, associadas à utilização de tecnologias obsoletas e de substâncias banidas do mundo desenvolvido, bem como a formas de organização do trabalho que desconsideram a necessidade de contemplar e expandir as potencialidades humanas -, com as decorrentes de uma nova lógica produtiva, marcada pela globalização da economia. As imposições do mercado internacional quanto à qualidade de produtos e processos produtivos, numa economia extremamente competitiva, induzem a uma reestruturação industrial flexível, que alia automação e outros avanços tecnológicos a novas modalidades organizacionais e de gestão/controle da força de trabalho. Essas mudanças significativas na cultura de produzir apontam para melhorias no ambiente e nas relações de trabalho, para um grau maior de participação e envolvimento, mas demandam um trabalhador qualificado/polivalente, condizente com um repertório de habilidades e comportamentos. Interpretar as repercussões desses compromissos e exigências, cujos potenciais impactos são mais sutis, particularmente do ponto de vista psicossomático, é uma tarefa ainda a ser realizada. O direito ao trabalho é a demanda mais crucial e complexa do momento presente. Garanti-lo reverteria significativamente os constatados reflexos do desempregro sobre a saúde da população trabalhadora e de suas famílias. Discute-se a significância do trabalho, não apenas como condição de sobrevivência, mas por situar-se na própria gênese da sociabilidade humana. No contexto atual, extremamente desfavorável ao pólo trabalho e, em virtude da fragilidade na aglutinação efetiva desses segmentos, as propostas destinadas ao crescimento do nível de emprego voltam-se para alternativas como: incentivos à contratação, manutenção e capacitação da mão-de-obra; acordos mais flexíveis de tempo de trabalho, limitações de horas extras, redução da jornada de trabalho e até a reformulação do seguro-desemprego. A luta pela manutenção do emprego torna-se, portanto, prioritária e obriga a relegar as questões de saúde, que começavam a tomar corpo, a um plano secundário nas agendas sindicais. Formular uma política de saúde do trabalhador significa, portanto, contemplar essa ampla gama de condicionantes da saúde e da doença. Especificamente para o setor público de saúde, do âmbito municipal ao federal, é premente a necessidade de consolidar ações de saúde do trabalhador que abranjam da vigilância à assistência em seu sentido amplo. Porém, a limitada intervenção da Saúde Pública num campo que nunca foi objeto central de preocupação, agudizada pelos percalços da gestão financeira e de recursos humanos na implementação do Sistema Único de Saúde, tem se refletido na tendência de tratar como questão menor a atenção integrada, mas diferenciada, aos trabalhadores. Essa ausência de respostas efetivas vem servindo de justificativa para que o setor privado se incumba gradativamente de determinadas tarefas que, em princípio, seriam um compromisso fundamental do Estado. Paradoxalmente, chegou-se a uma maior visibilidade social dos problemas que afetam a qualidade de vida da classe trabalhadora. Avança-se na compreensão dos agravos à saúde em diferentes processos de trabalho industrial, bem como nas atividades rurais, sobretudo quanto à utilização indiscriminada de agrotóxicos; iniciam-se estudos relativos ao setor serviço, incluídas as pesquisas sobre os profissionais de saúde; percebe-se com mais clareza a especificidade do trabalho feminino, valendo-se de várias investigações. Mas só pontualmente obtêm-se respostas proporcionais à relevância das questões levantadas. No entanto, um universo de indagações, do qual se atinge apenas o contorno, emerge como desafio ainda a enfrentar: desde velhas situações praticamente intocadas, como o trabalho escravo e o trabalho infantil, às decorrentes de um modelo de produção seletivo e excludente que vem ampliando a dimensão da rua como espaço de trabalho, com todas as incertezas, vulnerabilidades e riscos que esse espaço significa, em relação tanto a acidentes e violências, como à produção da própria sobrevivência. A ampliação dos objetos de estudo e a reformulação de alguns referenciais conceituais e metodológicos tornam-se assim premissas fundamentais, sob o ponto de vista investigativo.
As implicações do conhecimento prático para a vigilância em saúde
Discute-se a importância de se considerar o conhecimento prático do
trabalhador sobre sua realidade, ao se propor a ampliação e aprimoramento dos objetos de estudo, dos referenciais conceituais e metodológicos para a abordagem do processo de trabalho e saúde/vigilância em saúde do trabalhador. A abordagem aqui priorizada sobre esse tema adotará um recorte específico - o de uma ação em saúde motivada pelo conhecimento dos trabalhadores. Entende-se que esse recorte, embora bastante específico, possa instrumentalizar leituras mais gerais sobre a vigilância em saúde do trabalhador, nos âmbitos conceitual e operacional. Para assim proceder, é requerida a adoção de dois pontos como apoio ao desenvolvimento da discussão. O primeiro diz respeito à concepção de vigilância à saúde e o segundo concerne à discussão sobre o que é o conhecimento dos trabalhadores. Apresenta-se a noção de vigilância proposta por Mendes et al. (1993), para os quais trata-se de uma prática interdisciplinar informada pelo modelo epidemiológico, "...que articula, sob a forma de operações, um conjunto de processos de trabalho relativos a situações de saúde a preservar, riscos, danos e seqüelas, incidentes sobre indivíduos, famílias, ambientes coletivos..." (Mendes et al., 1993:179). Como referem Teixeira & Pinto (1993:6), o termo Vigilância à Saúde assim concebido é um "imenso guarda-chuva" que objetiva justamente articular práticas dispersas e heterogêneas em saúde coletiva, desde as voltadas para a assistência até as dirigidas para a prevenção. Ainda segundo Mendes et al. (1993:177), vigilância à saúde não é "... uma mera ação de produção de informação, mas, fundamentalmente, é a intervenção sobre determinantes e condicionantes de problemas de enfrentamento contínuo que incorpora, ainda, ações de caráter individual. Esses problemas são escolhidos pelo alto impacto que têm nas condições de existência de grupos populacionais em microáreas específicas e pela possibilidade de intervir sobre eles". Nessa perspectiva, a vigilância à saúde remete a um conjunto de ações visando a intervir em problemas de saúde, um dos conceitos-chave da noção de vigilância à saúde. Segundo Matus (s.d.) apud Mendes et al. (1993:169), um problema é a "formulação para um ator social de uma discrepância entre a realidade constatada ou simulada e uma norma aceita ou criada como referência", ou seja, entre "o que é" e "o que deveria ou poderia ser", situando-se esse ator no cenário social. Isto leva a uma decorrência importante no que se refere ao processo mesmo de formulação dos problemas de saúde, tendo em vista que nela deve estar contemplada a participação desses atores. Ao expressar-se o problema como uma questão não resolvida para alguém, emerge como decorrência a rediscussão do objeto das ações em saúde, pois, dentre os problemas, podem estar contemplados não apenas as doenças, acidentes e mortes, assim consideradas enquanto categorias médicas, mas outros fenômenos formulados por categorias atinentes à lógica empregada pelo conhecimento dos atores sociais leigos. Isto tenderia a ampliar a orientação tradicionalmente adotada nessas ações, ao restringir sua atuação sobre as causas das doenças, acidentes e mortes. Um problema, por vezes, apresenta-se não como coisa objetivamente detectável aos olhos de terceiros, mas como vivência subjetiva, algo cuja caracterização é relativa, pois o problema é definido na relação das pessoas com as situações vividas, sejam estas relações dinamizadas no âmbito do local de trabalho, na escola, na moradia. Por isso, essa noção alarga o foco de ação da vigilância. Ao se transportar essa discussão para o campo da saúde do trabalhador, principalmente através do conceito de problema, possibilita-se que o conhecimento dos trabalhadores sobre a relação saúde-trabalho seja legitimamente contemplado como propulsor das ações de vigilância e não seja apenas visto como uma requisição carregada de valores político-ideológicos, pois, na definição de problema, na definição de prioridades e de estratégias para atuar sobre seus determinantes e condicionantes, todos os atores sociais devem participar. Em saúde do trabalhador, diagnosticar as condições de trabalho e saúde para eleger prioridades no sentido de eliminar os determinantes e condicionantes dos problemas de saúde a partir do conhecimento dos trabalhadores não é uma prática nova, mas merece ser refletida. Assim é que Laurell & Noriega (1989:88) refletem sobre o significado da 'subjetividade-experiência operária'. Em seus dizeres: "a concepção que se perfila mais claramente nos textos [sobre o Modelo Operário] é a subjetividade- experiência operária, como conhecimento latente acumulado, resultado do viver e atuar numa determinada realidade, cujo portador é o grupo homogêneo, ou seja, a coletividade que compartilha dessa realidade". Essas considerações corroboram as críticas de Laurell & Noriega (1989) à etapa posterior do Mapa de Risco, quando os dados coletados a partir da 'subjetividade-experiência operária' são categorizados nos 'grupos de risco', os quais são criados a partir do conhecimento da Medicina, Engenharia, Ergonomia, dentre outras áreas. É justamente esse procedimento taxonômico que merece críticas dos autores acima, que apontam uma contradição no Modelo Operário, "... pois ao mesmo tempo que se enfatiza a potencialidade da subjetividade-experiência operária de revelar a realidade de um modo diferente da ciência formal, ordena a experiência no mesmo molde desta"(Laurell & Noriega, 1989:87). Neste sentido, podemos dizer que o Modelo Operário adota como ponto de partida a 'subjetividade-experiência operária', mas tem como ponto de chegada as categorias do conhecimento científico. A mistura de lógicas diferentes - conhecimento científico e conhecimento do trabalhador - deve-se à insuficiente reflexão sobre as suas especificidades. Quanto ao conhecimento do trabalhador, refletir sobre sua natureza é uma "tarefa necessária, pois, se parece apenas questão de bom senso aceitar que todos os homens têm um conhecimento adquirido na sua vivência diária, isso é insuficiente quando se trata de elaborar metodologia original sustentada no conhecimento prático que conduza a um conhecimento legítimo e não um 'desconhecimento' porque não segue os moldes do conhecimento cientificamente construído"(Sato, 1995). Partilha-se das críticas de Laurell & Noriega (1989) e observações de Grimberg (1988) e entende-se ser necessário um maior aprofundamento sobre a epistemologia do conhecimento prático que possa nortear a ação em vigilância à saúde a partir da identificação dos problemas pelos trabalhadores. Isso possibilitará, inclusive, pensar nas limitações que se encontram ao atuar apenas a partir dele, pois, como se verá, a visibilidade do conhecimento dos trabalhadores é diferente daquela alcançada pelo conhecimento científico. Segundo Castellanos (s.d.), a formulação do problema é socialmente representada, com base nas necessidades de saúde, as quais, por sua vez, são determinadas pelas condições de vida. Assim, nem toda necessidade de saúde é percebida e formulada como problema. Embora o autor não defina a partir de qual perspectiva compreende as representações sociais, toma-se aqui como uma compreensão possível a abordagem da psicologia social, para a qual múltiplas dimensões concorrem para a formulação do problema. Segundo Moscovici (1978), Jodelet (1984) e Jodelet (1985), as representações sociais são uma forma de conhecimento prático, socialmente construído para dar sentido à realidade da vida cotidiana. Como construção, elas não são uma mera cópia da realidade objetiva nem tampouco produto exclusivo da imaginação. Este conhecimento criativo é construído na interface objetivo-subjetivo, individual-coletivo. Estando sua construção situada nestas interfaces, a produção do conhecimento prático é socialmente condicionada, sendo ao mesmo tempo estruturante das visões de mundo. Como qualquer conhecimento, ele tem uma funcionalidade que reside, como refere Spink (1989:2), em "estabelecer uma ordem que permita aos indivíduos orientarem-se em seu mundo material e social e dominá-lo; e possibilitar a comunicação entre os membros de um determinado grupo". A construção do conhecimento do trabalhador está vinculada à vivência imediata nas situações de trabalho, às relações interpessoais dinamizadas pelo grupo e ao contexto social. Existe, portanto, uma dimensão que é subjetivo- existencial, cuja participação confere peculiaridade a esse conhecimento. Embora o conhecimento científico também conte com uma dimensão subjetivo-existencial, procura-se lidar com ela de modo diferenciado, almejando tê-la sob controle, utilizando-se, para este fim, diversos instrumentos teóricos e técnicos, o que não implica necessariamente esse asseguramento.
Exemplificando a diferença entre a lógica do conhecimento prático e
científico, citamos o estudo de Sato (1993) sobre a penosidade do trabalho. Visando caracterizar o conceito de trabalho penoso na perspectiva das representações sociais, Sato (1993) estabelece as diferenças entre o que a literatura sobre o assunto identifica como sendo o trabalho penoso e como assim o caracteriza o conhecimento dos trabalhadores. Para a literatura, a penosidade reside em condições de trabalho que causam sofrimento, incômodo e demandam esforço. Já para o conhecimento dos trabalhadores, a penosidade refere-se a contextos de trabalho que demandam esforço, geram incômodo e sofrimento demasiados, sobre os quais o trabalhador não tem controle. Pode-se observar que, embora ambos focalizem os mesmos tipos de problemas de saúde - incômodo, sofrimento e esforço -, no caso do conhecimento do trabalhador, o que nucleia o conceito, ou seja, o cerne do problema, é o controle, que remete justamente à relação dos trabalhadores com os contextos de trabalho, não se reduzindo a penosidade apenas à presença desses problemas e sim à condição de sujeito na relação de trabalho, onde o incômodo, o sofrimento e o esforço estão presentes. Em outras palavras, neste caso, para o trabalhador, o problema não é o que se denomina de 'risco', mas a relação mantida com o trabalho e suas condições, possibilitada pelo contexto organizacional. Tomando-se este exemplo, a identificação de diferentes estratégias de "intervenção sobre determinantes e condicionantes de problemas" (Mendes et al., 1993:177) é conduzida pela lógica adotada quando se formula o problema. Ou seja, aproveitando-se ainda o exemplo acima, caso se adote a eleição dos problemas arrolados por muitos estudos empíricos, a atuação preventiva provavelmente será dirigida para a busca da eliminação e controle dos riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos e ergonômicos; por outro lado, ao se adotar a leitura de problema oferecida pelos trabalhadores, segundo a lógica do seu conhecimento, essa atuação provavelmente será direcionada à modificação da relação do trabalhador com o contexto de trabalho, não apenas em termos macro, mas como estratégia de intervenção local. Por serem linhas de atuação qualitativamente diferentes, essa discussão teórica sobre um único aspecto do que está envolvido no processo de trabalho em vigilância à saúde é importante para a sua prática. Há ainda um outro aspecto que merece discussão, o qual diz respeito à prontidão do conhecimento do trabalhador para um terceiro. Nem sempre esse conhecimento encontra-se lá, pronto e acabado à espera de um observador externo. Ele, muitas vezes, conforma-se como algo objetivável quando instigado a organizar-se, a tomar forma, para então mostrar-se. Quando se mostra, surpreende e traz algo novo não só para o observador externo, mas para o próprio trabalhador que desconhecia o corpo que seu conhecimento poderia adotar. Esse conhecimento muitas vezes é forjado na relação com o outro; ou seja, ele pode tomar forma no momento mesmo em que se exercita a reflexão e se nomeiam vivências, cujo germe ou fragmentos aparentemente desconectados e indizíveis conformam-se nesse conhecimento coletivamente construído. Não são raras as vezes que os trabalhadores, numa relação de conversa ou entrevista, exclamam nunca terem parado para pensar nas coisas expressas. A relação pesquisador- pesquisado é um dos níveis do contexto de produção dos discursos (Spink, 1993a). Em função da natureza e formas através das quais o conhecimento dos trabalhadores se dá a conhecer é que se elegem as técnicas de coleta de dados. Tal conhecimento se expressa pela linguagem verbal e escrita, pelo jeito próprio de cada grupo social, pelos fazeres no dia-a-dia e no trabalho. Spink (1993b) sistematiza baseando-se nos estudos empíricos que trabalham com a noção de representações sociais, as técnicas habitualmente empregadas. Dentre estas, estão as técnicas verbais (como questionários e entrevistas abertas), observação e técnicas não verbais (a dramatização). Quanto à análise de dados, os procedimentos podem ser variados, importando aí não a técnica em si, mas o quanto ela permite respeitar a lógica do conhecimento prático. Trabalhar com o conhecimento prático nessa perspectiva, nas ações de vigilância à saúde, requer ainda uma elasticidade maior de tempo, dadas as características do dado no que se refere à sua prontidão, das próprias técnicas empregadas para coleta e análise dos achados. Além disso, caso se trate de apreender a organização do trabalho, há que se acessar o trabalho realmente executado que, para tanto, requer uma observação prolongada. Com a discussão aqui realizada, não se defende que devam as ações de vigilância à saúde ser norteadas apenas pelo conhecimento prático, pois, conforme referido acima, a sua visibilidade é diferente daquela propiciada pelo conhecimento científico. Existem situações nas quais o conhecimento dos trabalhadores não tem acesso ou o tem apenas em estados mais adiantados do problema de saúde. Isto ocorre, por exemplo, com as mudanças bioquímicas provocadas pelas contaminações e intoxicações, acessíveis através de exames. Um outro aspecto a ser também relevado é a relação entre o conhecimento do trabalhador e as explicações e valores correntes na sociedade, relação esta que deve estar o tempo todo na memória ativa dos que trabalham com essa noção. Como todos estão inseridos numa sociedade, ninguém ou nenhum dos conhecimentos está hermético a (ou protegido contra) tais explicações e valores. O conceito de habitus, conforme Bourdieu (1983), instrumentaliza a contextualização das representações, as práticas em sua relação com a posição de classe, já que ele funciona como um sistema de disposições duráveis, estruturadas socialmente, sendo ao mesmo tempo estruturantes de visões de mundo. Nessa perspectiva, lidar com o conhecimento do trabalhador requer que se esteja alerta ao contexto no qual ele se constrói e a qual realidade pretende atribuir significado. É também no nível das condições de produção dos discursos que talvez possa ser entendido por que determinadas necessidades estão referidas na formulação dos problemas e outras não, segundo Castellanos (s.d.), onde diferentes níveis e dimensões da vida social e do grupo e da história e expectativa de cada pessoa se fazem presentes. A condição de produção das representações é identificada por Harrison (1988) ao estudar as representações de risco entre operários, quando ficou evidenciado que elas dependem tanto do contexto social no qual se dão, como da natureza do risco. Além disso, a formulação dos problemas de saúde está relacionada à noção de cidadania, construída em cada realidade social e vivenciada no cotidiano pelos atores sociais. Essa noção serve como espécie de matriz sobre a qual está referenciada a delimitação dos direitos que sentem ter. São as condições de produção do conhecimento prático, dentre os quais o contexto social e noção de cidadania, que talvez possam explicar por que determinadas necessidades de saúde não são eleitas como substrato para a formulação de problemas de saúde. Embora existam diferentes lógicas e o emprego de estratégias distintas para a construção do conhecimento prático e para o conhecimento científico, considera-se importante utilizar, no processo de vigilância à saúde, as teorias e os instrumentos colocados à disposição por ambas as formas de conhecimento, cuidando-se para que suas lógicas sejam respeitadas, o que implica querer obter de cada um simplesmente aquilo a que cada um deles se propõe. Ao se propor trabalhar com ambos, apresenta-se uma questão operacional referente à inter- relação entre esses conhecimentos. Como possibilidade, existe o mecanismo de comunicação e negociação, processo através do qual pode-se encontrar um 'denominador comum', ou, como refere Spink (1991), a 'intertextualidade' entre os achados epidemiológicos, outros indicadores sanitários e os achados do senso comum, que podem eventualmente até coincidir. Considera-se importante essa reflexão no contexto da vigilância em saúde do trabalhador, pois o aporte teórico desenha a trilha dos caminhos que as ações deverão conduzir - desde a definição do que é problema de saúde, passando pelo procedimento de identificação dos mesmos e chegando às estratégias de intervenção.
A "Análise Ergonômica do Trabalho" (AET) e a atuação em Saúde do
Trabalhador
Ao considerar os aspectos conceituais e metodológicos colocados pela
AET, que preconiza a importância de se conhecer o trabalho como ele realmente acontece, seus problemas e possibilidades de reformulação sob o ponto de vista dos trabalhadores e a confrontação de representações/negociações entre os diferente grupos de atores sociais que interagem numa situação de trabalho, parece-nos possível abordar questões importantes de saúde e trabalho nesta perspectiva. A AET estabelece metodologia adequada para proporcionar a compreensão abrangente da situação de trabalho, considerando o conhecimento prático e o científico, podendo embasar ações efetivas para a melhoria do mesmo, sob o aspecto da produtividade e da saúde. Alguns profissionais da área da saúde defendem que não é possível discutir a questão saúde relacionando-a à produtividade. Certamente as formulações acerca da saúde vão ser mais limitadas do que se discutidas isoladamente, por outro lado, não vão estar tão distantes da realidade, conformando-se de maneira factível. Ao considerar e confrontar o conhecimento prático e o tradicionalmente científico, a abordagem em AET cria condições para a reformulação de representações acerca do trabalho entre os diversos grupos de atores sociais que interagem no contexto da atividade/produção. Por um outro lado, a ergonomia deixa de desenvolver suas ações de maneira isolada e/ou pouco participativa, contribuindo para atingir a mobilização dos atores sociais envolvidos na situação de trabalho estudada, sejam planejadores/administradores e principalmente trabalhadores; a ação deixa de ser pontual, restringindo-se em quantidade e qualidade. Seja no contexto da AET ou da Saúde do Trabalhador, a compreensão abrangente da situação de trabalho adoecedora é fundamental. Partindo desta compreensão é possível praticar a vigilância em saúde do trabalhador, propondo ações que visem o controle do adoecimento e mais, promovam melhores condições de trabalho e saúde, entendendo o trabalho como um potente mediador na construção da saúde. Entende-se também sob ambos os enfoques (AET e Saúde do Trabalhador), que a participação dos trabalhadores, através de suas representações/pontos de vista/vivências acerca do trabalho, é fundamental para a construção desta compreensão. Desta maneira consideramos a “fala” do trabalhador como um instrumento de formação de conhecimento sobre o trabalho. Ao avançarmos neste sentido, propomos também que a elucidação das representações dos demais atores sociais envolvidos na situação de trabalho – planejadores, níveis hierárquicos intermediários e chefias diretas, colabora de maneira importante na composição desta compreensão abrangente da situação de trabalho. Em um outro momento, quando a preocupação não é mais o diagnóstico da situação de trabalho, mas a intervenção sobre a mesma, a confrontação destas representações além de direcionar a formulação de proposições mais pertinentes, pode possibilitar a reestruturação destes ‘pontos de vista’ em cada grupo de atores sociais envolvidos no processo. Para tanto, a confrontação aconteceria dentro de cada grupo e através deles. Esta possibilidade de confrontação de representações e consequente reestruturação permitiria o desenvolvimento de uma outra etapa, de negociação entre os atores sociais envolvidos numa situação de trabalho. Talvez até de participação e vigilância constantes sobre as questões relacionadas ao trabalho e saúde. Neste sentido, outros segmentos poderiam participar deste processo, como Sindicatos, setor Saúde, Trabalho e Previdência.