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SEGURANÇA NO TRATAMENTO
DE ÁGUA PARA HEMODIÁLISE

Carlos Eduardo Poli-de-Figueiredo

INTRODUÇÃO
A água é um elemento essencial para o cuidado do paciente em hemodiálise.
O tratamento de água de uma unidade de diálise é um procedimento com-
plexo, com inúmeras etapas e um elemento de segurança para o paciente e
equipe assistencial.
Atualmente, o tratamento de água em uma unidade de hemodiálise é re-
gulamentado e parâmetros de segurança estão bem definidos em legislação
específica. A água é o solvente utilizado para preparar o dialisato juntamente
com eletrólitos. Durante uma típica sessão de hemodiálise, o sangue do pa-
ciente é exposto a um volume aproximado de 120 a 192 litros durante 4 ho-
ras, separado apenas por uma membrana semipermeável. Esse volume é de
três a cinco vezes maior do que o volume corporal total e muitas vezes maior
do que o volume plasmático. Qualquer contaminação na água pode resultar
em sérias consequências para o paciente.
Muitas complicações já foram descritas relacionadas a problemas com a
água. O Brasil vivenciou tragédia de repercussão mundial relacionada à con-
taminação por microcistina que resultou em mortes na cidade de Caruaru,
em 19961, e levou à revisão da regulamentação no País.

ETAPAS DO TRATAMENTO DE ÁGUA PARA HEMODIÁLISE


Água potável passa por diversas etapas para alcançar o padrão necessário
para uso nas sessões de hemodiálise. A água percorre uma sequência típica,
iniciando com as bombas que a impulsionam para uma sequência de fil-
tros: filtro multimeios, filtro abrandador acoplado a tanque de salmora e filtro
de carvão (tipicamente dois filtros). Purificação ocorre a seguir por osmose

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reversa.­A água, posteriormente, vai pelas alças de distribuição para as má-


quinas, passando ou não por tanque de armazenamento. As bombas man-
têm o sistema pressurizado, garantindo o fluxo de água adequado. O filtro
multimeios remove partículas da água evitando entupimento dos segmentos
à jusante. O abrandador contém resinas que retiram cálcio e magnésio “ama-
ciando” a água; precisa estar conectado a um compartimento com salmoura
supersaturada em cloreto de sódio que é utilizada para regenerar diariamen-
te a resina. As colunas de carvão são eficientes para remover cloro e clora-
mina adicionados no tratamento municipal para assegurar a potabilidade da
água. Esse é o passo com maior risco de contaminação, pois existe a possi-
bilidade de proliferação bacteriana. É necessário um filtro após o carvão para
a retenção de partículas de carvão que eventualmente sejam carregadas.
Terminado o chamado pré-tratamento, ocorrerá a purificação através das
membranas de osmose reversa. A água é forçada com alta pressão através
de membranas desenhadas para reter a maioria dos elementos inorgânicos
e material orgânico como íons, endotoxinas e bactérias. Finalmente, ocorre a
distribuição da água por meio de alças de distribuição, passando ou não por
um reservatório com recirculação contínua. Um exemplo de sistema de água
está ilustrado na figura 9.1.

LEGISLAÇÃO
No Brasil, a resolução do Ministério da Saúde/Agência Nacional de Vigilância
Sanitária número 11, de 13 de março de 2014, estabelece os requisitos de
Boas Práticas para o funcionamento dos serviços de diálise. A seção VIII é
referente à qualidade da água2. As unidades são fiscalizadas pela Vigilância
Sanitária e é importante que documentos comprobatórios de todos os pro-
cedimentos e exames estejam disponíveis para conferência. A Vigilância Sa-
nitária tem sido parceira na segurança do paciente, demandando que a qua-
lidade da água seja adequada. É também uma instituição fundamental para
auxiliar na resolução de crises e contingências previsíveis e não previsíveis.
A resolução determina que a potabilidade da água recebida da rede
pública seja verificada diariamente e que o cloro residual livre mínimo seja
conferido. Mesmo que não seja regulamentado, é importante acompanhar
o cloro total, pois se tivermos a presença de cloramina na água, essa não
será detectada pelo ensaio de cloro livre. A água da rede pública (Ponto A
na Fig. 9.1) pode conter níveis de cloro/cloramina de até 5mg/l, quando o
mínimo solicitado é de 0,2mg/l (no caso de fonte de água alternativa como,
por exemplo, poço artesiano ou carro pipa, o nível deverá ser de 0,5mg/l).
Água
potável
Filtro




Abrandador Ultravioleta
Multimeios
Filtro de Filtro de
carvão  carvão
A B C D ativado ativado

Looping de F
máquinas Reservatório 
Osmose


de Ultravioleta
reversa
água tratada
       

Pontos de utilização I  H G
J
de máquinas

Figura 9.1  Exemplo de sistema de tratamento de água. Figura de autoria de Leonardo Marchionni (reprodução autorizada
pelo autor). As letras são possíveis locais de coleta para avaliação da qualidade da água. Os pontos H (ponto da sala de pro-
cedimento) e J (retorno da alça de distribuição) são obrigatórios na rotina. A água de cada máquina antes do filtro deve ser
testada pelo menos uma vez ao ano.
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Por definição o sistema de tratamento e distribuição de água para hemo-


diálise (STDAH) tem o objetivo de tratar a água potável, tornando-a apta para
o uso em procedimento hemodialítico, conforme definido no quadro 9.1.

Quadro 9.1  Qualidade da água para hemodiálise.


Componentes Valor máximo permitido Frequência de análise
Coliforme total Ausência em 100ml Mensal

100 UFC/ml
Contagem de bactérias
Obs: se > 50 UFC/ml, ações Mensal
heterotróficas
devem ser tomadas

Endotoxinas 0,25 EU/ml Mensal

Alumínio 0,01mg/l Semestral

Antimônio 0,006mg/l Semestral

Arsênico 0,005mg/l Semestral

Bário 0,1mg/l Semestral

Berílio 0,0004mg/l Semestral

Cádmio 0,001mg/l Semestral

Cálcio 2mg/l Semestral

Chumbo 0,005mg/l Semestral

Cloro total 0,1mg/l Semestral

Cobre 0,1mg/l Semestral

Cromo 0,014mg/l Semestral

Fluoreto 0,2mg/l Semestral

Magnésio 4mg/l Semestral

Mercúrio 0,0002mg/l Semestral

Nitrato (N) 2mg/l Semestral

Potássio 8mg/l Semestral

Prata 0,005mg/l Semestral

Selênio 0,09mg/l Semestral

Sódio 70mg/l Semestral

Sulfato 100mg/l Semestral

Tálio 0,002mg/l Semestral

Zinco 0,1mg/l Semestral


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Podemos notar dois componentes obrigatórios para a avaliação: o compo-


nente microbiológico e o componente químico. O componente microbiológi-
co deve ser checado mensalmente e o componente químico semestralmente.
A limpeza do reservatório de água potável deve ser feita semestralmente, en-
quanto a limpeza e desinfecção do reservatório e da rede de distribuição da
água para hemodiálise e o seu controle bacteriológico devem ser feitos men-
salmente. As análises devem obrigatoriamente ser feitas em laboratórios cre-
denciados da Rede Brasileira de Laboratórios Analíticos em Saúde – REBLAS.
A Resolução 11 deve ser consultada e está disponível no site assinalado
nas referências2.
A fonte de água e suas características devem ser conhecidas, e o res-
ponsável técnico deve ter acesso e contato com o seu provedor de água.
No caso de unidades hospitalares, os procedimentos relacionados à água
devem ser públicos e mecanismos de comunicação eficiente entre a unidade
de diálise e os responsáveis pela manutenção do hospital são necessários3.
Caso ocorra a detecção de bactérias ou endotoxinas nos limites espe-
cificados, a desinfecção do sistema de tratamento de água deve ser provi-
denciada. A condutividade da água deve ser constantemente monitorada e
elevações ou modificações indicam a necessidade de testar possíveis con-
taminantes químicos e de revisar o sistema e membranas4. Devemos lembrar
que a fonte de contaminação da água que chega ao paciente também pode
ocorrer a partir do concentrado de diálise, do equipamento de diálise e seus
tubos e do reúso de dialisadores.
Devemos lembrar também que as ocorrências de uma unidade podem
ser semelhantes às de outras unidades, portanto a troca de informação en-
tre os gestores das unidades pode ser extremamente útil. Em especial, a
interação entre as equipes de unidades que recebem água de uma mesma
fonte de distribuição pode facilitar a identificação e busca de soluções para
intercorrências.

BACTERIEMIA/REAÇÕES PIROGÊNICAS
O paciente com bacteriemia ou pirogenias costuma apresentar calafrios, se-
guidos de febre e sintomas sistêmicos conforme a gravidade do quadro.
Hipotensão e mal-estar são frequentes.
O mais importante é a prevenção. O quadro 9.2 lista medidas que são im-
portantes para prevenir a ocorrência de bacteriemias e pirogenias na unidade.
Por outro lado, na ocorrência dos eventos, ações são necessárias. O qua-
dro 9.3 lista alguma das ações em caso de bacteriemia ou pirogenia.
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Quadro 9.2  Ações para a prevenção de contaminação.


• Monitorização rotineira conforme a legislação
• Monitorização rotineira adicional caso haja necessidades específicas da unidade
(exemplos: dificuldades com a água fornecida pelo provedor, procedimentos no
tratamento da água na instituição como a limpeza das caixas)
• Desinfecção e troca de membranas conforme exigido
• Desinfecção do sistema regulamente e no caso de detecção de contagem de bac-
térias em níveis que exigem ação
• Registro de todos os procedimentos
• Plotar as informações em croqui da unidade (exemplo: Figura 9.1) e sistema de
tratamento d’água, buscando identificar possíveis pontos de contaminação
• Interação com o provedor de água e atenção às modificações de rotina do tra-
tamento da água fornecida (exemplos: problemas no manancial, uso de cloro ou
cloramina etc.)
• Grupo de trabalho constituído com os responsáveis técnicos da unidade, técnico
responsável pela água, farmacêutico e outros envolvidos no cuidado e na monito-
rização da água
• Encaminhamento da água para testes de laboratório REBLAS.

Quadro 9.3  Ações em caso de bacteriemia/pirogenia.


• Avaliação clínica
• Diferenciar bacteriemia de pirogenia
• Buscar identificar foco (paciente, cateter ou sistema de diálise)
• Coleta de hemoculturas, cultura da água do sistema e da máquina de diálise
• Coleta de exames de segurança do paciente caso seja necessário interromper a
diálise (exemplo: potássio)
• Testar endotoxinas
• Considerar interrupção da diálise
• Registrar e analisar os registros, buscando identificar os padrões e as tendências
de manifestações do paciente e da unidade

Se algum paciente apresentar sinais ou sintomas de bacteriemia ou rea-


ções pirogênicas durante a hemodiálise, amostras de sangue para hemocul-
turas, assim como amostras de água na chegada à máquina e do dialisato
devem ser coletadas para cultura e pesquisa de endotoxinas. A bacterie-
mia pode ocorrer em diferentes momentos da hemodiálise e ser secundária
a diversos mecanismos. Quando ocorre no início da hemodiálise, deve-se
considerar a possibilidade de infecção do acesso vascular, de contamina-
ção por quebra da técnica de manipulação ou do material (linhas, dialisador
ou soluções). Durante a sessão, devemos considerar a possibilidade de in-
fecção sistêmica do paciente. Manifestações relacionadas à contaminação
pela água podem ocorrer em qualquer momento, mas principalmente após
a primeira hora.
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É importante diferenciar a situação em que o paciente está com um qua-


dro clínico que explique as manifestações (por exemplo: infecção respirató-
ria), de uma situação que possa representar uma contaminação do sistema
de água e da rede de distribuição, podendo resultar em surto na unidade.
Bacteriemia secundária à infecção do paciente, usualmente antecede a ses-
são de diálise e não costuma ceder com a interrupção do procedimento
dialítico.
Caso exista evidência de contaminação bacteriana ou por endotoxina no
sistema de água, ações imediatas devem ser tomadas, inclusive considerar
interromper a sessão de diálise de todos os pacientes para evitar dano.
A avaliação clínica deve ser feita e exames encaminhados. Hemoculturas
do paciente devem ser providenciadas e, conforme a situação, exames para
ter segurança de que a interrupção da diálise não será deletéria (potássio,
bicarbonato etc.). Cultura da água (para coliformes fecais, bactérias hete-
rotróficas e outras) deve ser realizada no looping (Ponto J da Fig. 9.1) e na
saída da máquina de diálise. Coletas adicionais podem ser necessárias antes
e após o filtro de carvão (Pontos E e F da Fig. 9.1), após a osmose reversa
(Ponto H) e na saída do tanque de armazenamento da água (Ponto I). Se a
pesquisa de endotoxinas for positiva no looping (Ponto J) ou na máquina de
diálise, poderá ser necessária a coleta em outros pontos para identificar o
foco de contaminação.
O principal foco de contaminação no sistema de diálise é o tanque de
carvão que remove cloro e cloramina, merecendo portanto atenção especial.
As equipes médica e de enfermagem devem trabalhar em conjunto com: o
técnico responsável pela manutenção do sistema, a farmacêutica responsá-
vel, o serviço de controle de infecções e os laboratórios.
O uso de esquemas gráficos (croqui, como o da Fig.9.1) do tratamento
da água é útil para plotar os resultados em relação à anatomia do sistema
d’água e tentar encontrar a possível fonte de contaminação. Qualquer con-
taminação fora dos limites permitidos deve resultar em imediata providência
para a desinfecção do sistema de armazenamento e distribuição de água.
Em situações de contaminação facilmente detectadas e resolvidas pelos
responsáveis técnicos, os registros da ocorrência e das providências devem
ser cuidadosamente feitos para posterior fiscalização. Em situação de crise
maior, as autoridades da instituição, o gestor da saúde pública e a unidade
da Vigilância Sanitária municipal ou estadual devem ser comunicados for-
malmente. Em situações de problemas com a distribuição de água, a em-
presa pública, municipal, fornecedora da água pode auxiliar na busca do
diagnóstico e solução.
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Uma grande dificuldade é a alocação de pacientes em outras unidades,


caso necessário. Experiência prévia mostrou grande solidariedade das uni-
dades de diálise com os colegas necessitados participando ativamente na
busca da solução do problema.
A figura 9.2 propõe um fluxograma de ações no caso de surto em unidade
de diálise.

Evento
Febre/Calafrios

Avaliação clínica Coletar

Hemoculturas, cultura
Manejo conforme Considerar avaliar
da máquina pré-filtro
quadro clínico endotoxinas
e do cateter

Infecção Contaminação Infecção no


sistêmica? da água? acesso vascular

Evento isolado? Retirar cateter


Tratar
Evento em mais contaminado
REGISTRAR
de um paciente? Antimicrobiano?
REGISTRAR

Considerar:
Interromper sessões
Desinfecção do sistema
Comunicar responsáveis técnicos
e técnico encarregado
Consultar outras unidades
Comunicar autoridades sanitárias

Figura 9.2  Fluxograma de ações em caso de eventos na unidade.

CONCLUSÃO
O tratamento de água é elemento central e básico na segurança do paciente
em hemodiálise. Os cuidados com a água são vinculados à legislação espe-
cífica e fiscalizados pelas autoridades sanitárias. É responsabilidade da uni-
dade assegurar a qualidade da água utilizada nos procedimentos dialíticos e
estar atenta para possíveis intercorrências.
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Para eventos graves em unidades de diálise, já foi sugerida a formação


e implementação de um Comitê de Crise com representantes da Sociedade
de Nefrologia, da Vigilância Sanitária, das Secretarias Municipais e Estaduais
de Saúde, da Defesa Civil e de outras autoridades. Esse pode ser um dos
próximos passos para auxiliar na gestão da segurança do paciente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS e eletrônicas


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de Melo Filho DA, Lyra TM, Barreto VS, Azevedo SM, Jarvis WR. Liver failure and death after
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8. Erratum in: N Engl J Med 1998; 339(2): 139.
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giada – RDC N° 11, de 13 de março de 2014. Disponível em https://www20.anvisa.gov.br/
segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/rdc-154-de-15-de-junho-de-2004
3. Ted Kasparek T, Rodriguez OE. What medical directors need to known about dialysis facility
water management. Clin J Am Soc Nephrol 2015; 10(6): 1061-71.
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brino Pérez PE, Pereira OG, Dominguez J, de la Cueva Matute E, Ferllen R, Comisión de
Expertos de la Sociedad Espanola de Nefrología para la creación de la Segunda Edición de la
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