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10/1/2022 Folha de S.

Paulo - Fidelidade infiel - 12/10/2002

São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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Uma interpretação marxista e existencialista de Hegel

Fidelidade infiel
Introdução à Leitura de Hegel
Alexandre Kojève
Tradução: Estela dos Santos Abreu
Contraponto/Eduerj
(Tel. 0/xx/21/ 2587-7788)
560 págs., R$ 48,00

MARCO AURÉLIO WERLE

Para avaliar a amplitude desse livro, do russo Alexandre


Kojève, convém tomá-lo não somente como introdução ao
pensamento de Hegel, e sim como uma das obras decisivas
para a filosofia francesa da primeira metade do século 20. A
filosofia de Hegel foi assimilada na França por meio de seus
cursos, ocorridos em Paris entre 1933-39 e frequentados,
entre outros, por George Bataille, Jacques Lacan, Jean-Paul
Sartre e Jean Hyppolite.
Diante de outros ensaios introdutórios sobre Hegel, como os
de Jean Hyppolite, Jacques d" Hondt e François Châtelet, o
livro de Kojève se caracteriza por seu desapego à literalidade
do texto hegeliano. Quanto à delimitação temática, pode-se
dizer que sua interpretação é unilateral, a começar por se
concentrar na "Fenomenologia do Espírito" e supervalorizar
a dialética do senhor e do escravo, o que também ocorre
nessa época com "Razão e Revolução" (1941), de Herbert
Marcuse. Essa dialética, que implica a conquista da
consciência-de-si, determina para Kojève, mas não para
Hegel, tanto as figuras anteriores da consciência sensível, da
percepção e do entendimento quanto está na base do
processo de desenvolvimento subsequente da consciência.
As filosofias estóica e cética do mundo antigo são tidas
como "ideologias" do escravo-trabalhador, que não quer sair
de sua sujeição ao senhor-guerreiro, assim como o Estado
pagão grego é determinado pelos senhores, ao passo que o
cristianismo é a religião dos escravos. Desse modo, além de
extrapolar o texto hegeliano, passa-se por cima de sua
consideração de que a verdade é o processo inteiro de
formação da consciência, desde a consciência sensível até o
saber absoluto, em que cada estágio é somente mais um de
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todo o percurso.
O método interpretativo de Kojève, tomado de anacronismos
(por exemplo, na aproximação da fenomenologia de Hegel
ao procedimento de ideação de Husserl e ao existencialismo
de Heidegger), consiste em fazer da filosofia de Hegel uma
ontologia, na qual as dimensões concretas do Ser (em
maiúscula no livro) se colocam acima do que Kojève
considera ser o "mero" pensamento. Para cada figura da
consciência, privilegia-se o exemplo concreto em prejuízo da
análise conceitual especulativa, como se as figuras da
consciência remetessem exclusivamente a tipos históricos
dados, semelhantes a personagens de um romance de
formação.
Nesse romance, a certa altura o próprio Hegel, em princípio
aquele que descreve toda a trama da história mundial, se
torna protagonista, um homem que não apenas pensa, mas é
de carne e osso, e em 1806 contracena com Napoleão, de
quem acaba sendo a consciência-de-si. Aliás, as páginas
dedicadas à relação entre Napoleão, o homem da ação, e
Hegel, pensador do saber absoluto, são irônicas e cheias de
humor. Nessa mesma direção, uma obsessão que perpassa
todo o livro se define pelo questionamento da natureza do
filósofo, do sábio e do intelectual; tanto que, segundo
Kojève, Hegel escreve a "Fenomenologia do Espírito" para
saber "o que ele é", nos moldes de um ensaio autobiográfico.

Filosofias da consciência
Com isso, a fenomenologia de Hegel passa a ser uma
antropologia filosófica e o movimento dialético torna-se real,
como se ocorresse na existência, ao contrário do que pensa o
filósofo na introdução à "Fenomenologia", para quem
somente a consciência sofre uma conversão, e não seu
conteúdo. Ou seja, por mais que Kojève queira considerar a
lógica dialética como uma lógica do Ser, é inegável que, pelo
menos na "Fenomenologia", Hegel permanece herdeiro das
filosofias da consciência, embora esteja anulada a separação
entre a consciência e o mundo.
O efetivamente real, mencionado nesta obra, põe-se a si
mesmo e produz os seus momentos não na substância, mas
no sujeito.
Na dialética do senhor e do escravo, a leitura de Kojève
apresenta traços existencialistas e uma orientação marxista.
Em detrimento de uma análise interna do texto hegeliano,
são ressaltados ou mesmo introduzidos temas como a morte,
o desejo, o projeto e a realidade humana, a angústia e o nada.
Hegel, porém, jamais pensou nos termos de um "impasse
existencial do senhor" ou na "nadificação do nada do Ser (no
escravo)". Por outro lado, Kojève assume claramente a
defesa do escravo, que, por meio de seu trabalho, estaria
destinado a ser o agente que promove o processo histórico, a
liberdade e a revolução.
Ora, para Hegel, nessa dialética se trava uma luta por um
reconhecimento recíproco, devido à dependência mútua das
consciências: eu me vejo no outro e o outro em mim.
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A servidão define tanto o senhor quanto o escravo e se


soluciona por meio da organização social. Mas, para o
marxista Kojève, a verdade está apenas do lado do escravo,
de tal forma que chega ao exagero de dizer que "o
entendimento, o pensamento abstrato, a ciência, a técnica, as
artes -tudo isso tem origem no trabalho forçado do escravo" .
Nessa combinação entre existencialismo e marxismo é o
último que sai vitorioso; aliás, o existencialismo é visto
como seu momento necessário, uma etapa para a libertação.
Isso transparece nos comentários da noção de angústia, que o
escravo sente na sujeição ao senhor, e da noção de trabalho,
como meio de sua libertação da dominação exercida pelo
senhor. O escravo deve sentir a angústia da morte, o nada de
seu ser, sair do tédio da inação, porém sua existência apenas
alcançará a liberdade se ele ultrapassar esse sentimento
subjetivo por meio do elemento objetivo transformador do
trabalho técnico, que fará dele um dia o senhor absoluto.
Entretanto, por mais "errado" que seja esse Hegel, a
criatividade e a imaginação de Kojève em suas transgressões
nos apresentam um Hegel vivo, conforme considerou Paulo
Arantes. Assim, Lacan se serviu particularmente do relevo
dado por Kojève ao desejo, em afirmações como "a
sociedade só é humana como conjunto de desejos desejando-
se mutuamente como desejos", para aprofundar o problema
da constituição do sujeito que, na verdade, sempre anda às
voltas com um contínuo estranhamento e um
desconhecimento de si mesmo.
Igualmente, a ênfase na dialética entre ser e não ser, entre o
nada e a angústia, possibilitou a síntese de Hegel, Husserl e
Heidegger na ontologia fenomenológica de Sartre, em "O
Ser e o Nada". Sartre se refere à intuição genial de Hegel de
fazer-me dependente do outro em meu ser, embora lamente o
otimismo ontológico hegeliano de suprimir o problema do
outro pelo postulado do idealismo absoluto, de identificar o
conhecimento com o ser.
Lacan e Sartre puderam dar livre curso a suas teorias
psicológicas e análises intersubjetivas, graças aos desacertos
de Kojève, que destacou o domínio do imaginário na relação
entre o senhor e o escravo, em detrimento do tema do
reconhecimento e da lógica social. Enfim, com Kojève
começa a se moldar o Hegel de toda uma geração que, no
dizer de Merleau-Ponty, em "Signos", não é aquele do século
19 que falava de todas as coisas, e sim aquele que não quis
escolher entre a lógica e a antropologia e que fazia a
dialética emergir da própria experiência humana.
Nesse sentido, a interpretação de Kojève tem o mérito da
"fidelidade infiel" que determinou a melhor herança e
recepção da filosofia de Hegel desde o século 19. Hegel é
um desses pensadores que revela sua força justamente
quando não fica confinado aos intérpretes especializados e
aos historiadores da filosofia. Afinal, não foi ele quem nos
mostrou que a história da filosofia não é uma simples galeria
de opiniões que pertencem apenas ao passado?

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Nota
1. "Um Hegel Errado, mas Vivo" (revista "Ide", nº 21, 1991).

Marco Aurélio Werle é professor do departamento de filosofia da USP.

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