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Artigo: Em busca de uma nova ciência: releitura...

Crítica epistemológica em Para além do princípio de realidade de Lacan via Hegel

A proposta é oferecer uma interpretação para obra lacaniana pré-Seminários, tendo


como foco o texto Para além do princípio de realidade, lendo-o a partir de
aproximações encontradas na filosofia de Hegel. Destaca-se a função do conceito de
experiência e da interação entre sujeito e objeto como polos para uma crítica
antirrealista dos “psicologismos”. Mostraremos que, através de uma assimilação de
aspectos crítico-epistemológicos da filosofia hegeliana, Lacan propõe uma concepção
crítica de ciência capaz de superar vícios metafísicos e sustentar uma leitura renovada
da psicanálise freudiana.

Queira que sim ou quisesse que não, é inegável que Lacan foi um grande
responsável na propagação de ideias de cunho hegeliano, tanto em debates da época
quanto ainda nos dias de hoje. Mesmo que veementemente negasse esse papel1, Hegel
sempre foi uma referência de grande importância no quadro de autores frequentados por
Lacan, perdendo apenas para Freud no número de citações nos Escritos.2
Ainda que os números não sejam por si mesmos alguma espécie de revelação
autoevidente ou índice determinante de influência, neste artigo pretendemos mostrar
que há elementos nos textos pré-Seminários que possuem uma importante ressonância
hegeliana. A despeito de citações, o objetivo é mostrar que é possível ler em Lacan uma
apropriação crítico-epistemológica de aspectos da filosofia hegeliana. Lacan parece
encontrar em Hegel, ou ao menos em aspirações de sua obra, um aliado no projeto de
crítica das ciências psicológicas e de reconstituição do conceito de ciência.
Um conceito renovado de ciência somente será possível a partir da crítica de
seus elementos constitutivos. Em outras palavras, faz-se necessário uma crítica
imanente do objeto da psicologia para que ela possa tomar consciência de seus limites e,
afinal, ser reposicionada como uma ciência propriamente dita. Para Lacan, nesse
momento, isso quer dizer fundar um saber positivo capaz de reconhecer validade aos
fenômenos psíquicos manifestos pelos pacientes.

1
Nota onde Lacan nega Hegel.
2
Nota sobre os números de citação de Hegel na obra de Lacan.
Essa nova ciência somente pode surgir por meio da superação crítico-
epistemológica de desafios legados pela modernidade. Portanto, o objetivo desse texto
será mostrar, via noção dialética de experiência e de saber e verdade contidos na
Fenomenologia do espírito de Hegel, como Lacan articula tais elementos para uma
crítica das psicologias de cunho associacionista, que terminam por se revelar arraigadas
em concepções metafísicas e impróprias para se constituir enquanto ciência. Assim,
espera-se lançar luz a aspectos nem sempre tão explorados da obra lacaniana e mostrar
sua conexão com uma crítica do conhecimento e da metafísica, reposicionando o texto
Para além do princípio de realidade no quadro formativo lacaniano.

Do saber à verdade: a experiência

Contudo, é entre o final dos anos trinta e o início dos anos sessenta que o
movimento de apropriação de conceitos hegelianos é mais forte e é declaradamente
empreendido por Lacan. Esse movimento será responsável pela constituição de uma
parte fundamental do corpo teórico e da experiência intelectual lacaniana no período
que se costumou chamar de “retorno a Freud”.
Nesta parte do capítulo, transitaremos pela filosofia hegeliana com o intuito de
mostrar como Hegel articula as noções e os momentos teóricos que posteriormente são
apropriados por Lacan. Procuraremos apresentar o pensamento hegeliano precisando a
lógica interna dos conceitos em seu contexto de aparição sem perder de vista a
particularidade da abordagem kojèviana. Como dissemos na seção anterior, esse
hegelianismo insurgente deslocou o foco dado a textos mais sistemáticos como a
Ciência da lógica e a Enciclopédia para lançar luz aos textos de juventude, menos
explorados. Ao contrário do que presenciamos nos estudos hegelianos atuais, até então a
Fenomenologia do espírito era tida como uma obra menor na bibliografia hegeliana,
apenas uma etapa ultrapassada do que se tornaria o verdadeiro sistema. Com o curso
sobre a Fenomenologia do espírito, Alexandre Kojève marcou o pensamento francês e
deu ao texto de Hegel uma importância totalmente nova, atual, quase vanguardista, e é
desse modo que Lacan chega a Hegel pela primeira vez.
Grande parte da insólita leitura kojèviana deriva de uma interpretação
heideggero-marxista de Hegel, ou, como nos diz Pierre Macherey: “Kojève teve sucesso
em vender sobre o nome de Hegel o filho que Marx poderia ter tido com Heidegger”
(MACHEREY, 1991, p. 319).3 Talvez possamos dizer que Kojève tenha sido um dentre
os primeiros responsáveis por introduzir a filosofia heideggeriana em território francês,
de modo indireto, através de uma singular concepção de ser humano que mesclaria ser-
para-a-morte heideggeriano e desejo como negatividade encontrada na Fenomenologia
de Hegel. Em duas notas de página, Kojève esclarece:
Atualmente, Heidegger é o primeiro que propõe uma filosofia ateia completa.
Mas não parece tê-la levado além da antropologia fenomenológica exposta no
primeiro volume de Sein und Zeit. Essa antropologia (sem dúvida notável e
autenticamente filosófica) não acrescenta nada de novo à antropologia da
Fenomenologia (que, aliás, talvez nunca tivesse sido compreendida se
Heidegger não tivesse publicado seu livro) (KOJÈVE, 2002, p. 493, n.43).
Heidegger retomou os temas hegelianos da morte; mas ele não considera os
temas complementares da luta e do trabalho; assim, sua filosofia não
consegue explicar a história (KOJÈVE, 2002, p. 536, n.10).

Essa curiosa simbiose se efetiva quando entendemos a fenomenologia como


uma antropologia, isto é, quando o parentesco entre consciência de si hegeliana e
Dasein heideggeriano é confirmado como existência própria do ser humano. 4 Se, para
Kojève, por um lado, Heidegger é a condição de inteligibilidade da fenomenologia
hegeliana, por outro lado, o pensamento heideggeriano estaria antecipado e limitado à
Hegel, e, talvez, somente retornando a Hegel o pensamento heideggeriano poderia ter
continuidade.5
A ênfase dada por Kojève à dialética do senhor e do escravo expõe uma teoria
intersubjetiva da formação da consciência baseada na tensão entre luta e morte que se
opõe diametralmente ao solipsismo. A negatividade do sujeito se manifesta no desejo,
no trabalho, e também na linguagem (os três modo de exteriorização da consciência),
constituindo o ser humano como ação, como sujeito histórico em busca de
reconhecimento, tentativa de reconciliação com a diferença. Desse modo, o sujeito não
pode ser pensado como sendo determinado por atributos substanciais e tampouco o
caminho da consciência poderia ser um processo em busca de uma verdade substancial.

3
Na presente dissertação, apenas apontaremos essa influência fundamental para o modo kojèviano de ler
Hegel sem podermos nos aprofundar em seus meandros e sentidos mais específicos com os diálogos
subterrâneos que ele possui.
4
Segundo Borch-Jacobsen: “Realidade humana foi o termo proposto por Henry Corbin para traduzir o
Dasein de Heidegger para o Francês. Kojève foi influenciado por essa tradução [...]? Ou devemos
acreditar que, ao contrário, essa tradução teria sido um efeito do ensino de Kojève, desde que ele
começou a utilizá-la em 1933? (Denis Hollier afirma em sua coleção do Collège de sociologie que Corbin
originalmente traduziu Dasein por “existência”, e foi somente em 1938 que ele optou por “realidade
humana”, carregando Sartre com ele)” (BORCH-JACOBSEN, 1991, p. 15). Voltaremos ao sentido do
termo realidade humana mais adiante.
5
Ironicamente ou não, com Lacan, a filosofia heideggeriana muitas vezes atua sob o nome de Hegel, o
que não impede de encontrarmos questões propriamente hegelianas fundamentais no interior do projeto
lacaniano.
Antes, o próprio caminho seria a apresentação de si mesmo como sujeito por meio da
exteriorização de um descompasso fundamental e formador. Vejamos como isso
começa a ser articulado por Hegel na Fenomenologia.
Em meio a períodos conturbados, no ano 1806, sob a invasão napoleônica na
Prússia, Hegel escrevia a “primeira parte do sistema”, um sistema que buscava a
realização de si mesmo enquanto Ciência. Entretanto, para Hegel, falar de Ciência
envolve precisamente resignificar o sentido de ciência, pois, para ele, o conhecimento
que verdadeiramente merece o nome de ciência deveria ser uma ciência do absoluto,
ciência que não exclui nenhum saber como algo desprovido de sentido, sem ser ou sem
efetividade. Hegel pensa uma ciência que não separa um verdadeiro ordinário e um
verdadeiro absoluto e que, portanto, não transforma o medo de errar no próprio medo da
verdade (Cf. HEGEL, 1807/2011, p. 72).
Segundo Hegel, há uma efetividade no erro, e ele participa ativamente do ato
do conhecimento. Aqueles que procedem no conhecer através de um meio ou de um
instrumento em busca de melhor conferir verdade ao objeto, evitando o erro, (como
seria o caso de grande parte da ciência moderna, desde Descartes a Kant) introduziriam
uma linha divisória entre o conhecer e o absoluto. Seria como se buscassem conhecer os
modos do conhecimento verdadeiro sem nada conhecer previamente, isto é, conhecer
sem reconhecer que seu saber sobre o objeto determina a própria aparição do objeto.
Isso significa que não há uma distinção prévia que estruture nossa relação conceitual
com o mundo, ou, em outras palavras, “que em Hegel nada é de nascença” (ARANTES,
2003, p. 56). Por isso, a Ciência deve ser primeiramente uma ciência da experiência da
consciência, e, enquanto primeiro momento da Ciência, “deve ser levada adiante a
exposição do saber que aparece [ou saber fenomenal]” (HEGEL, 1807/2011, p. 74). E,
assim, é possível: “tomá-la, desse ponto de vista, como o caminho da consciência
natural” (HEGEL, 1807/2011, p. 74).
Hegel parte das “representações naturais” da consciência para mostrar como
ela tenta apreender o objeto tal como ele aparece e, nessa tentativa, na verdade, ela se vê
incapaz de apreendê-lo em-si: o objeto aparece somente para ela. Por mais que não
encontre o que ensejava, sua investida não representa um erro desprovido de
efetividade, inadequação do pensar ao ser. Antes, ela revela a consciência em seu agir,
como movimento de negação que é ela mesma. Na Fenomenologia, trata-se
precisamente de mostrar como cada configuração/figura (Gestalt) da razão, cada
momento da consciência não foi capaz de realizar seu próprio conceito, fracassou ao
tentar realizar seu conceito. Isso ocorre devido ao descompasso da representação natural
do saber da consciência com o objeto da experiência que se apresenta a cada momento.
Esse fracasso, essa inadequação do saber ao objeto não deve ter uma significação
isolada, pois, antes, ele é inerente à própria consciência, na medida em que ela é a
própria realização de seu conceito:
Enquanto se toma imediatamente por saber real, esse caminho tem, para ela,
significação negativa: o que é a realização do conceito vale para ela antes
como perda de si mesma, já que nesse caminho perde sua verdade. Por isso
esse caminho pode ser considerado o caminho da dúvida ou, com mais
propriedade, caminho do desespero [Verzweilflung] (HEGEL, 1807/2011, p.
74).

Hegel deixa claro que esse caminho do desespero implica um trabalho do


negativo muito mais profundo do que a simples dúvida, um vacilar de uma pretensa
verdade a outra que nada rompe com o modo representacional da consciência. A
consciência natural sofre a realização de si mesma como sua própria destruição, como
sua morte. Entretanto, a morte não lhe vem do exterior. É de si mesma que a
consciência sofre sua negação, pois: “A consciência fornece, em si mesma, sua própria
medida” (HEGEL, 1807/2011, p. 78, grifos meus). Isso significa que há nela um outro,
uma alteridade essencial a si mesma através da qual ela estabelece as relações de
determinação do saber. Esse outro (o objeto) é em-si, aquilo que está fora da relação do
saber, porém, ao longo do processo de apreensão do objeto, o que a consciência avalia
como o em-si do objeto é na verdade um para-si.6 Aquilo que se apresenta como saber
efetivo do objeto para a consciência se revelará como um outro, alteridade estranha e
não internalizada. A reflexão sobre esse outro fornece a medida da distância entre o
saber e a verdade. E a consciência experimenta essa inadequação como uma
contradição interna que fenomenologicamente se manifesta como experiência de morte7,
uma violência estranha que vem dela mesma: pura negatividade.

6
“A desigualdade que se estabelece na consciência entre o Eu e a substância – que é seu objeto – é a
diferença entre eles, o negativo em geral. Pode considerar-se como falha dos dois, mas é sua alma, ou
seja, é o que os move. [...] Ora, se esse negativo aparece primeiro como desigualdade do Eu em relação ao
objeto, é do mesmo modo desigualdade da substância consigo mesma. O que parece ocorrer fora dela –
ser uma atividade dirigida contra ela – é seu próprio agir; e ela se mostra assim ser essencialmente
sujeito” (HEGEL, 1807/2011, p. 46-47).
7
“O que está restrito a uma vida natural não pode por si mesmo ir além de seu ser-ai imediato, mas é
expulso-para-fora dali por um Outro: esse ser-arrancado-para-fora é sua morte. Mas a consciência é para
si mesma seu conceito; por isso é imediatamente o ir-além do limitado – e já que este limite lhe pertence
– é o ir além de si mesma” (HEGEL, 1807/2011, p. 76). Safatle interpreta essa morte como “manifestação
fenomenológica própria à indeterminação fenomenal do que nunca é apenas um simples ente. Ou seja, a
morte indica uma experiência do que não se submete aos contornos autoidênticos do pensar
representativo, a morte como aquilo que não se submete à determinação do eu” (SAFATLE, 2007, p.184).
Segundo Hegel, a negatividade é “o diferenciar e o pôr do ser-aí; e é, nesse
retornar a si, o vir-a-ser da simplicidade determinada” (HEGEL, 1807/2011, p. 57).
Compreender esse caráter determinado do negativo é perceber o limite da apreensão
unilateral do saber do objeto, isto é, o limite do modo de apreensão do saber como não
relacional. O percurso da Ciência pensada por Hegel pode ser entendido como a
constituição de outra “gramática filosófica” na qual a negação determinada seria o
modo de relação que estabelece a passagem de um termo a outro: tal como em uma
operação de Aufhebung onde a imediatidade do em-si é negada, porém conservada no
novo objeto que surge, na negação determinada o que é negado deve ficar pressuposto
no interior da relação. Isso impõe o desafio de pensar a ideia de objeto para além de um
polo fixo de identidade, assim como de conceber a verdade para além da relação de
correspondência do sujeito com o predicado (com o saber, com o objeto, etc). A
negação determinada é o movimento interno de passagem de uma configuração do saber
fenomenal para outra e, desse modo, ela se mostra como a construção dos processos de
relação da experiência da consciência. Por isso, Hegel dirá:
Experiência é justamente o nome desse movimento em que o imediato, o não
experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do Simples
apenas o pensado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso
– como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em
sua efetividade e verdade (HEGEL, 1807/2011, p. 46).

Seria como dizer que esse movimento da experiência, que é o próprio


“movimento dialético” (HEGEL, 1807/2011, p. 80), é tanto um desaparecer do ser
quanto é ao mesmo tempo a manifestação do nada em sua determinidade. Portanto, a
característica própria do objeto é ser uma negação que pode se apresentar como
efetividade. Por fim, o que está em jogo é compreender a exposição desse movimento
como a apresentação da verdade no seu vir-a-ser, isto é, compreender a verdade como
processo.8 Isso significa que a verdade já se encontra subentendida no caminho da
consciência, não simplesmente como uma antecipação da meta final ou de uma
progressiva realização de sua totalidade, mas como a própria condição de manifestação
das determinações do saber do sujeito e do processo enquanto tal. Nesse sentido, Zizek
acertadamente afirma:
A coincidência hegeliana entre o caminho para a verdade e a verdade
implica, ao contrário, que já se tocou desde sempre na verdade: com a
mudança de saber, é a própria verdade que tem de mudar, o que equivale a
dizer que, quando o saber não corresponde à verdade, não se deve apenas
ajustá-lo à verdade, mas transformar os dois polos – a insuficiência do saber,
8
“É por essa necessidade que o caminho para a ciência já é ciência ele mesmo, e portanto, segundo seu
conteúdo, é ciência da experiência da consciência” (HEGEL, 1807/2011, p. 81).
sua falta em relação à verdade, indica sempre uma falta, uma não-realização
no seio da própria verdade (ZIZEK, 1991, p. 113).

É porque existe um gap entre o saber e a verdade que está em constante


reformulação que Hegel pode afirmar: “Quando descobre, portanto, a consciência em
seu objeto que o seu saber não lhe corresponde, tampouco o objeto se mantém firme.
Quer dizer, a medida do exame se modifica quando o objeto fica reprovado no exame.
O exame não só é exame do saber, mas também de seu padrão de medida” (HEGEL,
1807/2011, p. 79-80). Compreendido de um modo análogo, em outras palavras,
podemos afirmar com Pierre Naveau que Hegel inclui no enunciado do saber o lugar de
enunciação da verdade:
Basta que a questão seja posta, indica Hegel, para que a luz que clareia o ser
em si mesmo mude. Assim, o ser em si mesmo de que se trata é o ser em si
mesmo para aquele que põe a questão. Se o enunciado da questão porta o ser
em si mesmo de qualquer coisa, Hegel igualmente não esquece o ponto de
onde vem a questão, isto é, o ponto de enunciação (NAVEAU, 1989, p. 137).

Por outro lado, ainda que o movimento dialético seja admitido como a
exposição do impasse entre o saber e a verdade, reconhecimento do ponto de
enunciação nos proferimentos, Hegel abre espaço para pensarmos que um certo
movimento de desalienação possa operar uma reconciliação total da consciência com
seu outro (total correspondência entre enunciação e enunciado). Seguir essa hipótese
seria entender que, ao final, ironicamente, todo o movimento especulativo de
suprassunção da gramática filosófica moderna asseguraria aquilo que ele tentou superar:
afirmaria a correspondência não relacional do saber da consciência com a verdade do
conceito e consumaria a filosofia como a adequação da verdade com a realidade, do ser
com o pensar, do conceito com o objeto. Essa filosofia terminaria por excluir todo
espaço de manifestação da negatividade do sujeito.
Aceitando essa hipótese, não estaríamos longe de uma espécie de positivismo
cúmplice das categorias metafísicas de sujeito, objeto, ciência e verdade cuja crítica
imanente é um dos motivos moventes da filosofia hegeliana. O modo como Kojève
concebe a realização última do conceito com a verdade será precisamente este:
Considerados isoladamente, o sujeito e o objeto são abstrações que não têm
realidade-objetiva (Wirklichkeit), nem existência-empírica (Dasein). [...] De
modo geral, a verdade (= realidade revelada) é a coincidência do pensamento
ou do conhecimento descritivo com o real concreto. Ora, para a ciência
vulgar, esse real deve ser independente do pensamento que o descreve. [...] O
mesmo acontece com o objeto da psicologia, da gnosiologia e da filosofia
vulgares [filosofia pré hegeliana], que é o sujeito artificialmente isolado do
objeto, isto é, ainda uma abstração. É bem diferente o que ocorre com a
experiência hegeliana: ela revela a realidade concreta, e a revela sem
modificá-la ou perturbá-la. [...] O real concreto é ao mesmo tempo real-
revelado-por-um-discurso e discurso-revelado-por-um-real (KOJÈVE, 2002,
p. 425-428).

Nessas passagens encontramos as linhas gerais da compreensão kojèviana


acerca do método dialético como exposição da verdade. Duas consequências principais
podem ser retiradas daí: primeiro Kojève concebe um modo de relação do sujeito com o
objeto que rivaliza com as verdades científicas (pois elas encontrariam a validade de seu
objeto somente no exterior, de modo abstrato e pré-crítico), porém, ao mesmo tempo,
ele sustenta a validade universal do discurso que passivamente enuncia a realidade. Por
conceber uma identificação da noção de concreto com a de realidade (que aqui se
confunde com a ideia de existência-empírica), o filósofo russo termina por aderir à ideia
de que, no estágio absoluto (“fim da história”), a verdade se tornaria a tão sonhada
adequação do pensamento ao real, união entre o pensar e o ser que o discurso coerente
sobre realidade revelaria. É o próprio real que se reflete no discurso, e o filósofo (o
Sábio) simplesmente expõe esse real (realidade empírica) numa fala descritiva e
objetiva, sem falhas, plenamente verdadeira. Eis que Kojève conclui: “o método
hegeliano é puramente empírico ou positivista: Hegel olha o real e descreve o que vê,
tudo o que vê e nada além do que vê” (KOJÈVE, 2002, p. 426).9
Introdução geral à parte II

Sabe-se que Lacan começou a frequentar os seminários de Alexandre Kojève na


École Pratique des Hautes Études a partir de 1933-1934. Como vimos na parte anterior,
esse momento marca o “renascimento” dos estudos hegelianos na França. Hegel começa
a ser lido como um inovador à frente de seu tempo, autor contemporâneo digno dos
vanguardistas da época. Lacan se inscreverá nessa história, primeiro como ouvinte
assíduo dos cursos de Kojève, até o seu final em 1936, para, em seguida, oferecer
assimilações da filosofia hegeliana cujo contato com questões psicanalíticas e tópicos da
história das ciências, antes de representarem obstáculos, serviam de combustível para
suas apropriações e debates. Ainda que, posteriormente, Lacan negue ter contribuído

9
Talvez seja justamente por ver em Hegel, via Kojève, a extrema impossibilidade de pensar a verdade
fora do princípio de adequação e da redução da linguagem à sua estrutura proposicional e predicativa que
Lacan teve a necessidade de recorrer a Heidegger em busca de uma noção de verdade como alétheia. No
capítulo 1 de Estilo e verdade em Jacques Lacan, de certo modo Iannini (2013) reconhece uma primazia
da influência hegeliana em Lacan por considerar ser possível encontrar em Hegel um “outro cenário”
(IANNINI, 2013, p. 73) da verdade, isto é, refratária à verdade representativa: verdade que reconhece o
erro e a falha como seus modos de expressão, verdade como processo: “A cada gênese de um novo
objeto, uma nova figura da consciência. Se a verdade não se confunde com a exatidão, nem é ela uma
propriedade de enunciados pretensamente objetivos é, antes de tudo, porque ela é, em Hegel como em
Lacan, processo” (IANNINI, 2013, p. 71).
para a difusão do hegelianismo no público francês ou negue ter-se deixado levar pelo
hegelianismo e feito da psicanálise uma experiência estritamente dialética e
excessivamente intelectualista, convém ponderarmos essas considerações e pensarmos
as especificidades que traçam sua relação com Hegel.
Parece que Lacan não foi o único a ser instigado pela possibilidade de
aproximação da dialética hegeliana com a psicanálise de Freud na época. Se ele foi
influenciado pelos seminários de Kojève, a quem se referia como seu “mestre”, não é
menos verdade que alguma espécie de contratransferência se estabeleceu aí. Segundo
Roudinesco, no ano de 1936, término do seminário de Kojève, ele e Lacan planejavam
escrever juntos um estudo que se chamaria Hegel e Freud: ensaio de uma confrontação
interpretativa. Esse texto seria publicado na importante revista de filosofia da época, a
Recherches Philosophiques, sob a autoridade de Koyré (Cf. ROUDINESCO, 2008, p.
148-150). Ao considerarmos esse relato, podemos imaginar a intensidade do contato
entre esses dois homens. Kojève de fato chegou a escrever algumas páginas sobre o
tema e formulou um índice para o estudo, que possuiria três partes: 1) “Gênese da
consciência de si”; 2) “A origem da loucura” 3) “A essência da família”. Como se pode
ver, Kojève parecia inteirado dos estudos e interesses de Lacan desde a publicação de
sua Tese de doutorado em 1932. Entretanto, ainda que Lacan não tenha seguido ao lado
de Kojève com um texto a quatro mãos, longe da tutela do “mestre”, ele dará
continuidade à história desse encontro.
De um modo ou de outro, veremos que é possível encontrar traços e
ressonâncias suficientes para afirmarmos que, queira Lacan ou não, ele participa
ativamente da história da recepção de Hegel na França. Ao menos no que diz respeito ao
“retorno a Freud”, período que vai até o final dos anos 50, Lacan constrói seu projeto de
reformulação da psicanálise tendo Hegel como uma referência teórica central. Para
abordarmos os momentos iniciais dessa relação com mais cuidado e êxito, optamos por
concentrar nossos esforços principalmente no período entre a Tese (1932) até o
Seminário II (1954-55). Sem dúvida, toda a obra lacaniana é acompanhada de
mudanças, transformações e reelaborações que marcam o estilo do ensino desse
psicanalista. Entretanto, acreditamos que os textos desse período apresentam nuances e
relevos que, por mais diferentes que sejam um do outro, compartilham uma intensa
problemática e apresentam um eixo temático coeso.
Grande parte dos textos lacanianos das décadas de 30, 40 e início da de 50
começam com críticas às então chamadas “ciências psicológicas” e buscam diferenciar
o lugar ocupado pela psicanálise frente às outras disciplinas: será o caso de textos como
Para além do princípio de realidade (1936), Formulações sobre a causalidade psíquica
(1946), Agressividade em psicanálise (1948), O mito individual do neurótico (1952) e
do Discurso de Roma (1953), bem como de outros posteriores. Em Função e campo da
fala e da linguagem em psicanálise, texto seminal que antecede em apenas três meses o
início do primeiro Seminário, Lacan diz: “Se a psicanálise pode tornar-se uma ciência –
pois ainda não o é –, e se não deve degenerar sua técnica – o que talvez já seja um fato
–, devemos resgatar o sentido de sua experiência” (LACAN, 1953/1998, p. 268). É
precisamente isso que está em jogo: resgatar o sentido da experiência psicanalítica,
fornecendo-lhe recursos teóricos apropriados sem perder de vista a originalidade e a
inovação inaugurados por sua prática.
Seria como se cada um desses textos realizasse um caminho para dar conta da
mesma experiência. Agora, será o caso de mostrar que, de modo mais ou menos
enfático, esses textos também apresentam uma estratégia geral que consiste em fazer do
terreno metapsicológico freudiano um solo firme para a reconstrução de uma teoria
científica capaz de fazer jus à experiência psicanalítica. Isso será feito por meio de uma
crítica epistemológica aos princípios basilares das ciências psicológicas e de uma
reabilitação das noções de libido e de inconsciente. Portanto, o objetivo geral dessa
parte é compreender como os “conceitos dialéticos – fala, sujeito e linguagem [e
também desejo] – nos quais esse ensino encontra suas coordenadas, suas linhas e seu
centro de referência” (LACAN, 1953/2003, p. 153) participam da estratégia crítica de
reformulação da psicanálise ao passo que caminham junto à filosofia hegeliana. 10

Por uma crítica “científica” da psicologia

Introdução

Já em 1932, em sua Tese de doutorado, Lacan buscava construir uma teoria da


personalidade que fosse capaz de lidar com o fenômeno da loucura (especificamente
manifestada em um caso clínico de delírio paranoico) sem submetê-lo imediatamente a

10
Lacan acrescenta que esses conceitos não devem ser tomados como definições estritamente formais,
pois assim incorreriam justamente no risco de entificação e substancialização que seu uso procura evitar.
Antes de tratar desses conceitos será preciso colocá-los ao “alcance no universo de linguagem em que
eles se inscrevem a partir do momento em que eles pretendem reger o movimento desse universo”
(LACAN, 1953/2003, p. 153). Ou seja, será preciso pensá-los dentro do movimento e da dinâmica
psicanalítica.
um quadro comportamental fixo e pré-existente à história singular do indivíduo. Ali já é
possível identificar uma grande suspeita de Lacan quanto à pretensão científica das
“ciências psicológicas/psiquiátricas clássicas”. Ele encontrará nas “funções
intencionais” e nas “tensões sociais” (LACAN, 1932/2011, p. 329) do indivíduo a
possibilidade de valorizar a experiência do sujeito ao mesmo tempo em que concebe um
novo critério “objetivo” para o estudo dos fenômenos paranoicos da personalidade, em
detrimento de tendências substancialistas das doutrinas psicológicas e da padronização
rígida dos fenômenos observados.11
Desde então, parece que Lacan se defronta com uma tensão que pode ser
formulada da seguinte forma: como fazer jus à singularidade da experiência do sujeito
sem perder de vista a possibilidade de uma objetividade do saber e de sua
determinação? Lidar com essa tensão será um aspecto importante no modo como Lacan
busca “resgatar o sentido da experiência analítica”. Afinal, o que faria da psicanálise
uma disciplina distinta de outras? Qual o estatuto dos múltiplos fenômenos psíquicos
(dentre eles os delírios e as alucinações) na doutrina psicanalítica? Qual a especificidade
do objeto da psicanálise?12 Responder a essas questões é também responder à questões
sobre o estatuto científico da psicanálise, e podemos dizer que o desafio de fundamentar
cientificamente a psicanálise tem como um de seus primeiros passos o problema da
fundamentação de uma psicologia para além do princípio de realidade, ou melhor, para
além da oposição estrita entre realidade e ilusão.

11
Faremos o uso da palavra Tese com « T » maiúsculo quando nos referirmos à tese de doutorado de
Lacan. Nela, através de inspirações provocadas pela leitura de Crítica dos fundamentos da psicologia
(1928/2004) de Georg Politzer, Lacan irá criticar algumas tendências da psicológica clássica da época, em
especial o organicismo e o automatismo mental. A partir de tendências da psiquiatria fenomenológica
alemã, ele procura pensar uma teoria compreensiva da personalidade que encontra na psicanálise um
importante debate sobre o narcisismo e o desenvolvimento do Eu. Segundo Lacan, o “socorro” que ele
parece tirar da psicanálise se deve principalmente ao fato dela abrir a possibilidade de conceber uma
relação entre a estrutura comportamental e a gênese do indivíduo sem perder de vista os critérios
objetivos de “equivalência” necessários para a ciência, abrindo assim para um novo entendimento das
“entidades mórbidas (patologias) e para uma teoria desenvolvimentista da personalidade (Cf. LACAN,
1932/2011, p. 319-329). A abordagem lacaniana ainda se volta para uma leitura crítica do narcisismo e de
sua relação ao princípio de realidade. O intuito é fundamentalmente epistemológico, porém isso não
afasta as questões de cunho prático e social, pelo contrário, elas participam ativamente aí. Nesse trabalho,
buscaremos destacar o lugar da Tese no movimento de formação da obra lacaniana e perceber como os
textos do período que vão ao menos de 1936 até 1949 parecem dar prosseguimento às intuições iniciais de
Lacan, partilhando, assim, de um projeto de renovação da obra de Freud que marca o percurso lacaniano.
Faremos isso no próximo capítulo. Sobre a influência de Politzer em Lacan e os primeiros aparecimentos
de Freud na obra lacaniana, foi realizado um estudo mais cuidadoso em “Lacan leitor de Politzer:
elementos filosóficos em torno da fundamentação de uma psicologia concreta” (CHERULLI, 2013).
12
“Por conseguinte, convém indagar o que significam essas carências no desenvolvimento de uma
disciplina que se coloca como objetiva. [...] Será, a própria objetividade impossível de ser atingida em
psicologia?” (LACAN, 1936/1998, p. 80).
Após sua defesa de doutorado e quatro anos sem nenhuma publicação de
destaque, agora como frequentador dos seminários de Kojève e em análise didática com
Leowenstein, Lacan redigia Para-além do ‘Princípio de realidade’. A tópica
introdutória desse texto reza o seguinte: “Em torno desse princípio fundamental da
doutrina de Freud, a segunda geração de sua escola pode definir sua dívida e seu dever”
(LACAN, 1936/1998, p. 73). A frase deixa claro o tom crítico que Lacan propõe à
recepção do legado freudiano, o que resultará numa proposta de leitura renovada para a
obra do antecessor. De fato, a perspectiva crítica de Lacan vem acompanhada de uma
tomada apropriativa da teoria freudiana que a coloca em face de vários espectros do
pensamento ocidental, desde a linguística até matemática e a filosofia, dentre outros.
Em meio a esse movimento, a crítica ao princípio de realidade será um aspecto
importante na busca por caminhos que possibilitem repensar a objetividade psicanalítica
a partir da própria especificidade de sua experiência.
De modo geral, podemos dizer que essa crítica gira em torno da cisão metafísica
entre o verdadeiro e o falso, sob uma faceta epistemológica moderna. Está em jogo um
debate característico da filosofia moderna acerca da possibilidade de aferição de um
conhecimento verdadeiro e de um conhecimento falso, isto é, da delimitação de uma
“realidade verdadeira” aposta à “realidade ilusória”. A questão é importante, pois cabe
questionar o estatuto científico dos fenômenos psíquicos vivenciados pelo sujeito e
observados pelo terapeuta.

Associacionismo e crítica da verdade

Para Lacan, a psicologia científica do século XIX “baseia-se numa chamada


concepção associacionista do psiquismo” (LACAN, 1936/1998, p. 78).
Associacionismo é o nome dado a uma tradição psicológica que colhe suas bases
teóricas em vertentes da filosofia empirista de origem inglesa. No caso, esse termo é
utilizado por Lacan como uma concepção “guarda-chuva” para abarcar as características
e preceitos da psicologia clássica que devem ser criticados para o surgimento de uma
nova ciência. Essa crítica será importante, haja visto que por diversas vezes ela será
retomada.13 Por isso: “uma crítica acerba ao associacionismo que, ao ser revestido com
13
Logo no terceiro encontro do Seminário VI, por exemplo, após a recapitulação do grafo do desejo,
Lacan dedica uma parte de sua fala para criticar o associacionismo, base da “psicologia moderna”
(LACAN, 1958-1959/2016, p. 57). Ele é taxativo ao afirmar que os aparentes passos dados pela
psicologia para além do associacionismo não seriam senão falsos avanços: “O associacionismo não foi
absolutamente reduzido, só o escopo da psicologia é que foi deslocado. A prova disso é justamente o
a súmula dos vícios das psicologias presentes e pretéritas, serve para fornecer a imagem
em negativo da ciência que está por vir” (SIMANKE, 2002, p. 191).
O assim chamado associacionismo possui um modo de classificação dos
fenômenos psíquicos que originalmente poderia ser remetido a contextos da “psicologia
escolástica” que, por sua vez, extraía seus conceitos da filosofia. Segundo Lacan, esses
contextos
longe de terem sido forjados por uma concepção objetiva da realidade
psíquica, são apenas produto de um desgaste conceitual, onde se veem traços
das vicissitudes de um esforço científico que impele o homem a buscar, para
seu próprio conhecimento, uma garantia de verdade: garantia essa que, como
se percebe, é transcendental por sua posição e continua a sê-lo, portanto, em
sua forma, mesmo quando o filósofo vem a negar sua existência. Qual é o
mesmo aspecto de transcendência que os conceitos, resíduos dessa busca,
conservam? Isso equivaleria a definir o que o associacionismo introduz de
não-positivo na constituição mesma do objeto da psicologia (LACAN,
1936/1998, p. 78).

É notável que o objetivo de Lacan não seja rivalizar com qualquer aspiração
científica. Para ele, ao contrário do que se poderia esperar, a psicologia moderna,
herdeira de uma tradição baseada na ânsia por conhecimento e sustentada na
necessidade de garantias de verdade, peca não pelo seu excesso de objetividade e
precisão, mas justamente por não ser suficientemente objetiva, isto é, “positiva”. A
questão em jogo, obviamente, é compreender o que Lacan entende como objetividade
no caso de um saber como o da psicanálise.
Compreender o que Lacan visa como critério positivo para a psicologia marca o
primeiro momento de sua aproximação com a filosofia hegeliana. 14 Não parece
exagerado apontarmos aqui para uma relação com Hegel se lembrarmos que Lacan
acabara de concluir um curso intensivo de quatro anos com Kojève. Não é a toa que
Lacan dirá: “Denuncia-se o vício teórico do associacionismo ao se reconhecer em sua
estrutura a formulação do problema do conhecimento do ponto de vista filosófico”
(LACAN, 1936/2016, p. 80). Essa passagem merece ser levada em consideração.
Vimos no início da Introdução da Fenomenologia do espírito que Hegel
desenvolve uma crítica à noção moderna de conhecimento. 15 De modo geral, essa crítica
campo analítico, no qual todos os princípios do associacionismo continuam reinando” (LACAN, 1958-
1959/2016, p. 58). Eis que a crítica de seus princípios básicos continua sendo necessária para a
delimitação do campo psicanalítico e da validade de sua experiência.
14
Toda a tese de doutorado de Léa Tavora (1994), intitulada “Raízes hegelianas no pensamento de
Freud”, parece girar em torno da ideia de defender a hipótese de que em Hegel já encontramos elementos
fundamentais de um novo paradigma epistêmico que rompe com a tradição filosófica moderna e que torna
legíveis os passos representados pela psicanálise. No caso, ela pensa essa relação entre a filosofia
hegeliana, o paradigma epistêmico e a psicanálise já a partir do texto freudiano (Cf. TAVORA, 1994).
15
A título de uma aproximação despretensiosa, lembremos que assim como Lacan quer pensar uma noção
de ciência que dê conta da especificidade da experiência psicanalítica, o intuito maior de Hegel na
tem em comum o fato de tratar a verdade e o saber como polos não relacionais. Lá,
Hegel rechaça todo pensamento que faz do conhecer um meio ou um instrumento para
se atingir a verdade, isto é, que concebe o conhecimento do objeto separado da verdade,
separada do fenômeno. Todo pensamento que faz do conhecimento um meio ou um
instrumento para garantir a verdade restringiria a verdade a um mero conhecimento
verdadeiro, como se de um lado houvesse o objeto (a verdade) e do outro a verdade que
se tem daquele objeto (conhecimento verdadeiro). Em outras palavras, seria como
afirmar que haveria algo como uma verdade verdadeira e uma verdade ordinária.
Esse procedimento moderno em torno do conhecimento seria característico de
teorias psicológicas de tendência associacionista. Encontramos uma crítica análoga a de
Hegel em Lacan, quando ele se refere às dificuldades que noções correntes tais como
“realidade verdadeira” e “ realidade falsa”, bem como “percepção verdadeira” e
“percepção falsa” despertam na compreensão dos fenômenos psíquicos: “a partir do
momento em que os fenômenos se definem em função de sua verdade, eles ficam
submetidos, em sua própria concepção, a uma classificação de valor” (LACAN,
1936/1998, p. 81). Classificação essa geradora de uma hierarquização prejudicial à
compreensão objetiva dos fenômenos do conhecimento que, por sua vez, subordina o
dado psíquico à sua lógica valorativa e, assim, “falseia a análise e lhe empobrece o
sentido” (LACAN, 1936/1998, p. 81).
No Seminário VI, Lacan afirma que o problema com o associacionismo é que
ele “parte em busca dos casos em que a apreensão do mundo se apresenta como mais
primitiva” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 58). Buscar uma apreensão “mais primitiva”
do mundo seria pressupor um acesso privilegiado aos dados da experiência, como se
fosse possível apreender a realidade através de uma “mítica sensação pura” (LACAN,
1936/1998, p. 80). Para utilizar uma imagem, diríamos que a ideia de uma sensação
pura nos remete ao intelecto humano como se ele fosse uma “lente bem polida”: como
se, através dela, pudéssemos capturar a realidade e enxergar a verdade dos objetos sem a
interferência de preconceitos e enganos, saberes adquiridos ao longo da vida que
ofuscam a transparência e a pureza do saber verdadeiro.
Dizer que o associacionismo constitui-se através da “mítica sensação pura”, ou
que pressupõe um acesso privilegiado (primitivo, imediato) aos sentidos, é afirmar que a
objetividade do saber é garantida por certa capacidade cognitiva (sensação pura) do ser

Fenomenologia do Espírito era construir um conceito renovado de ciência que abarcasse a experiência da
consciência.
humano de organizar a multiplicidade do sensível, apreendendo-a e organizando-a
conforme a realidade (“verdadeira”). Desse modo, no momento em que a teoria
associacionista acredita dar conta do objeto da experiência, ela encontra somente aquilo
que já havia sido pressuposto, isto é, reencontra-se com um elemento não-positivo no
interior de sua pretensão de positividade. Para Lacan: “Assim se introduz no conceito
explicativo o próprio dado do fenômeno que se pretende explicar. Trata-se de
verdadeiros passes de mágica conceituais” (LACAN, 1936/1998, p. 79).
Não parece uma extrapolação dizer que a palavra experiência, tão
frequentemente utilizada por Lacan ao longo de todo o seu ensino para se referir à
prática psicanalítica, ao ressaltar a dimensão prática/clínica no processo de constituição
do conhecimento, tem uma conotação hegeliana. 16 Essa experiência não separa
estritamente conhecimento teórico e conhecimento prático, mas antes reconhece o
intrincado movimento entre práticas e saberes, isto é, que o saber é essencialmente
prático, do mesmo modo que a prática pressupõe um saber. Ora, pressupor um saber não
é mais do que reconhecer que a prática já é em si mesma um saber atuante.
Hegel já antecipara o problema da unilateralidade do saber ao discutir sobre a
superação da noção clássica de conhecimento através do conceito reflexivo de
experiência, tal como identificamos na introdução da Fenomenologia do espírito. Lá,
vimos como Hegel procura conceber um modo de pensamento capaz de lidar com a
cisão entre saber e verdade de modo reflexivo, tendo como pano de fundo uma verdade
para além da correspondência unilateral entre sujeito e predicado, que constitui a
compreensão metafísica do conhecimento na filosofia. Portanto, uma meditação
metodológica que não considera o caráter reflexivo da experiência e do conceito na
formação do objeto termina relegando-o a “vicissitudes” e “desgastes” metafísicos.
Como observa Lacan: “Assim, considerado em conjunto, o que é facilitado pelo
recuo do tempo, o associacionismo nos revela suas implicações metafísicas com
brilhante clareza: [...] digamos que a teoria associacionista é dominada pela função do
verdadeiro” (LACAN, 1936/1998, p. 79).17 Em certo sentido, o associacionismo lidaria
16
Quanto a esse ponto, estamos totalmente de acordo com a indicação de Simanke: “Se Lacan emprega
‘experiência’ num sentido emprestado à fenomenologia hegeliana, é para conotar um processo construtivo
atrelado às peculiaridades da existência humana. Daí que sujeito e objeto apresentem esta
interdependência mútua, que não deriva mais, contudo, de premissas estritamente idealistas, mas sim de
sua origem comum, numa gênese que se pretende concreta” (SIMANKE, 2002, p. 230). Conhecimento
teórico e conhecimento prático não são independentes nem em Lacan e nem em Hegel.
17
A concepção de verdade no ensino lacaniano irá progressivamente se distanciar de um paradigma
metafísico de adequação entre nome e coisa que, aqui, é encontrado em sua versão moderna como
representação correta do mundo pelo sujeito. Para-além do princípio de realidade é um texto importante
na formação lacaniana, pois, nele, antes de outros textos e de modo mais explícito, Lacan parte de uma
com a verdade do fenômeno psíquico do mesmo modo como a consciência natural lida
com o saber na Fenomenologia: nenhuma delas reconhece a experiência que lhes
“transcorre por trás das costas” (HEGEL, 1807/2011, p. 81) no momento em que julgam
algo como verdadeiro ou como falso. Ambas lidam com o objeto de modo unilateral,
pois não percebem suas predeterminações na constituição do objeto, isto é, não
reconhecem o limite de seu saber atuando na formação do objeto. Assim, elas
desconsideram o processo de vir-a-ser do objeto e ofuscam o processo de autorrevelação
da verdade.
Lacan reconhece a importância de uma ideia de movimento e de processo como
a dinâmica própria da experiência analítica: “Aliás, o valor objetivo de uma pesquisa é
demonstrado como a realidade do movimento: pela eficácia de seu progresso”
(LACAN, 1936/1998, p. 91). Portanto, com Lacan, e a partir de Hegel, poderíamos
dizer que quanto maior é o zelo pela verdade, maior é o desconhecimento da verdade.
No caminho de busca por garantias da verdade, o desejo de conhecimento da ciência se
depara com seu próprio limite e termina por encontrar apenas seu próprio saber onde
deveria encontrar a verdade, isto é, onde acreditava estar o objeto investigado encontra
somente suas próprias categorias através das quais apreende o objeto. Eis que a busca
por garantias de verdade nada mais revela do que “o assim chamado medo do erro”, isto
é, “medo da verdade” (HEGEL, 1807/2011, p. 72).
Lacan irá explorar profundamente a temática do erro, ao ponto de encontrar no
próprio fenômeno do erro (seja em atos falhos, lapsos, trocadilhos) uma forma de
manifestação da verdade “inconsciente”, precisamente por ela ser uma verdade que só
se manifesta em experiências não submetidas ao medo e à necessidade de garantia de
verdade, isto é, de uma resposta vinda do Outro que circunscreva e defina o Eu do
sujeito.18

compreensão de história da metafísica para criticá-la como a história da busca por verdade, busca por
garantias de verdade. Em suas facetas científicas, dentre elas o associacionismo, essa vontade de verdade
propriamente humana se revela como função do verdadeiro e como princípio de hierarquização
epistêmica (e inclusive moral) da experiência do sujeito e dos fenômenos em geral. Como que
distinguindo a verdade da “função do verdadeiro” e rivalizando com o aporte verificacional do
conhecimento científico próprio da psicologia, Lacan afirma: “a verdade é um valor que corresponde à
incerteza com que a experiência vivida do homem é fenomenologicamente marcada, e que a busca da
verdade anima historicamente, sob a rubrica do espiritual, os arroubos do místico e as regras do moralista,
as sendas do asceta e as descobertas do mistagogo. Essa busca, impondo a toda uma cultura a primazia da
verdade no testemunho, criou uma atitude moral que foi e continua a ser, para a ciência, uma condição de
existência. Mas a verdade, em seu valor específico, é alheia à ordem da ciência” (LACAN, 1936/1998, p.
83).
18
Sobre a importância da reabilitação do erro na experiência subjetiva e na constituição de um novo
registro epistemológico e ético do saber psicanalítico, ver: IANNINI, 2013, especialmente p. 135-139.
Segundo Hegel, a consciência que não leva adiante a “angústia ante a verdade”
e, desse modo, permanece submetida ao medo do erro disfarçado de “zelo ardente pela
verdade”, encontra como resposta somente a afirmação vazia da “vaidade” ou do
“sentimentalismo” de um eu abstrato, unilateral e egoico incapaz de satisfazer suas
pretensões e demandas:
Vaidade essa capaz de tornar vã toda a verdade, para retornar a si mesma e
deliciar-se em seu próprio entendimento; dissolve sempre todo o pensamento,
e só sabe achar seu Eu árido em lugar de todo o conteúdo. Esta é a satisfação
que deve ser abandona a si mesma, pois foge o universal e somente procura o
Ser-para-si (HEGEL, 1807,/2011, p. 77).

Parece que tanto Hegel quanto Lacan irão criticar a noção de Eu – bem como o
discurso científico moderno que o associacionismo ressoa – na medida em que
descobrem-no baseado numa instância auto-identitária normativa não crítica e não
reflexiva de sustentação do saber e de manifestação da verdade. Resguardadas as
devidas diferenças e proporções que questionaremos nas próximas seções, ao atribuírem
um papel imprescindível à alienação na constituição do sujeito, esses autores admitem
uma ruptura interna no ego: reconhecem na “vaidade” e na imagem narcísica do Eu uma
função de defesa ante a ameaça disruptiva da verdade.
Assim, podemos compreender melhor por que Lacan afirma que a verdade não
pode ser reduzida a uma função transcendental cujo fim seria a garantia da possibilidade
do conhecimento verdadeiro (Cf. LACAN, 1936/1998, p. 78), isto é, reduzida à função
metafísica do verdadeiro. A verdade “científica” que Lacan tem em vista não é exterior
ao seu objeto, tampouco pode ser entendida como um predicado do saber ou uma
constatação de evidências. Nisso, mantendo a especificidade das pretensões de seus
objetivos, Hegel e Lacan estão juntos:
o conhecimento científico requer o abandono à vida do objeto; ou, o que é o
mesmo, exige que se tenha presente e se exprima a necessidade interior do
objeto. Desse modo, indo a fundo em seu objeto, esquece aquela vista geral
que é apenas a reflexão do saber sobre si mesmo a partir do conteúdo
(HEGEL, 1807/2011, p. 58).

Em um sentido próximo da ideia de uma imanência entre conhecimento


verdadeiro e objeto expresso pela passagem anterior, em O mito individual do
neurótico, pensando na experiência psicanalítica, Lacan concebe uma unidade da
verdade consigo mesma que a torna refratária à objetividade científica não reflexiva.
Mas, ao mesmo tempo, relacionando-a à fala, ele radicaliza seu caráter necessariamente
apofântico:
a definição da verdade só pode se apoiar sobre si mesma, e é na medida em
que a fala progride que ela a constitui. A fala não pode apreender a si própria,
nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade
objetiva. Pode apenas exprimi-la e isso de forma mítica (LACAN,
1952/2008, p. 13).

É essa imanência da verdade em si mesma que pressupõe que ela possa se


manifestar, e seu caminho é a experiência do sujeito, seja na linguagem, no desejo ou no
trabalho. A verdade envolve um processo pelo qual ela se expressa pelo sujeito, e nisso
Lacan e Hegel também estão juntos: em Hegel, porque “tudo decorre de entender e
exprimir o verdadeiro não como substância, mas também, precisamente, como sujeito”
(HEGEL, 1807/2011, p. 34); em Lacan, porque sua expressão mítica pressupõe um
sujeito, seja ele do enunciado ou da enunciação: “o conceito da exposição é idêntico ao
progresso do sujeito, isto é, à realidade da análise” (LACAN, 1951/1998, p. 217).
Eis que a experiência da verdade está mais próxima de um processo imanente de
realização do sujeito do que de uma apreensão objetiva da realidade exterior. Nesse
sentido, a verdade deve se mostrar ativa na constituição do objeto ao reconhecer o
critério de verdade pressuposto em qualquer proferimento, enunciado ou fala, revelando
o “ponto de enunciação” (NAVEAU, 1989, p. 137) que desmascara as pré-
determinações do saber do sujeito e possibilita sua reorganização.

Padrão de medida e critério de verdade

Afinal, de que modo o associacionismo lida com seus critérios de verdade? E


como esse “ponto de enunciação” pode atuar numa transformação das pré-
determinações do sujeito? Na medida em que o associacionismo está baseado na função
do verdadeiro e limitado à análise unilateral do objeto do conhecimento, é possível
perceber uma formulação dialética do problema do associacionismo na letra hegeliana:
[A] investigação e exame da realidade do conhecer, não se pode efetuar sem
um certo pressuposto colocado na base como padrão de medida. Pois o
exame consiste em aplicar ao que é examinado um padrão, para decidir,
conforme a igualdade ou desigualdade resultante, se a coisa está correta ou
incorreta. A medida em geral, e também a ciência, se for a medida, são
tomadas como a essência ou como o em si. [...] O Em-si do saber resultante
dessa investigação seria, antes, seu ser para nós: o que afirmássemos como
sua essência não seria sua verdade, mas sim nosso saber sobre ele. A essência
ou o padrão de medida estariam em nós, e o [objeto] a ser comparado com ele
e sobre o qual seria decidido através de tal comparação não teria
necessariamente de reconhecer sua validade. [...] Há na consciência um para
um Outro, isto é, a consciência tem nela a determinidade do movimento do
saber. Ao mesmo tempo, para a consciência, esse Outro não é somente para
ela, mas é também fora dessa relação, ou seja, o momento da verdade. Assim,
no que a consciência declara dentro de si como Em-si ou o verdadeiro, temos
o padrão que ela mesma estabelece para medir o seu saber. (HEGEL,
1807/2011, p. 77-78)
Nessa passagem, Hegel promove uma descrição do movimento dialético-
fenomenológico de “reversão [ou inversão] da consciência”, movimento esse em que a
consciência realiza a experiência da inverdade de seu saber. Primeiramente, a
consciência acredita possuir alguma verdade sobre o que quer que seja. Para atingir essa
primeira verdade, ela age “naturalmente”: apreende um objeto que toma como
verdadeiro. Desse modo, ela parte de um padrão de medida desconhecido para ela
mesma através do qual julga os fenômenos observados conforme sua adequação ou
inadequação, sua veracidade ou falsidade ao padrão de medida. Assim, a consciência
percebe que aquilo que ela chamou de verdade era antes um saber do objeto, isto é, o
próprio padrão de medida. Portanto, a essência ou o em-si não estaria no objeto, mas no
padrão de medida, que nada mais é do que o critério de verdade (conjunto de saberes
cuja relação determina o modo de apreensão do objeto sob a “função do verdadeiro”)
utilizado pela consciência para proferir juízos sobre as coisas e, por consequência, para
inspecionar e medir seu próprio saber. Ou seja, a sua verdade está no padrão de medida.
Seguindo essa hipótese: i) ou a consciência concebe o padrão de medida por trás
de suas investigações como exterior à consciência e detentor de uma efetividade
independente dela, sustentando-o em algum tipo de ciência ou algum outro tipo de saber
mais ou menos organizado e sistemático, em suma, concebendo o padrão de medida
como a própria realidade em questão; ii) ou a consciência concebe que esse padrão de
medida é imposto por ela mesma, mas compõe um conjunto de pressupostos necessários
e prévios a qualquer outro saber da consciência. Em ambos os casos, encontramos um
problema similar.
No caso i), a consciência ainda não realizou a primeira inversão, pois não
promoveu a crítica da exterioridade: não reconhece sua participação na construção de
seu padrão de medida. Ela ainda está vinculada ao chamado “mito do dado” (análogo à
“mítica sensação pura”), como se houvesse uma realidade “em-si” que sustenta a
própria verdade do padrão de medida, isto é, como se o padrão de medida fosse um
outro em-si, realidade exterior à qual a consciência se refere para afiançar a valoração
dos fenômenos como corretos ou incorretos. Portanto, a verdade (ou o em-si) do padrão
de medida de i) é uma realidade exterior à consciência.
No caso ii), a consciência admite sua participação na construção do objeto do
conhecimento, pois reconhece que seu padrão de medida está em si mesma. Entretanto,
esse padrão de medida encontrado em si mesma continua sendo marcado por um outro
em-si, que aqui se revela à consciência como um para-si: leis pétreas e estruturas
prévias aos saberes adquiridos que possuiriam a função de subsumir e verificar os
fenômenos de um modo similar ao caso anterior, porém, agora, não em relação à
realidade exterior, e sim ao interior da consciência. Portanto, a verdade do padrão de
medida de ii) são leis interiores normativas que não representam a ação intencional da
consciência.
Ou seja, ambas as atitudes de conhecimento estabelecem como padrão de
medida um critério de verdade que é indiferente à ação negativa da consciência.
Procedendo assim, eles desconhecem a diferença e a alteridade que é interior à
consciência: não reconhecem no outro em-si (aquele tomado como a verdade do padrão
de medida) a determinidade do saber da consciência, pois não operam uma negação
determinada que faça do saber um momento da verdade. Desse modo, nem i) e nem ii)
são capazes de “superar” a dualidade metafísica rígida de sujeito e objeto: não percebem
o processo pelo qual o em-si do outro forma o para-si do eu, e vice-versa.
Retomando o problema do associacionismo, percebemos que ele pressupõe um
padrão de medida através do qual empreende seus exames e investigações da realidade e
do conhecer que lhe permitia julgar a veracidade e falsidade dos fenômenos psíquicos.
Entretanto, o associacionismo não percebe que esse padrão de medida não está nas
coisas, na “sensação pura”, no dado material ou na “realidade”.
Lacan quer mostrar como, além de vago, o termo realidade falha precisamente
no momento em que se pressupõe como o mais correto e mais positivo. Tal como se
passasse por uma primeira reversão da consciência, o associacionismo deve descobrir
que sua verdade positiva não é senão uma determinação não questionada da ciência. Ou
seja, aquilo que “o associacionismo introduz de não-positivo na constituição mesma do
objeto da psicologia” (LACAN, 1936/1998, p. 78) reside numa função do verdadeiro
cuja crítica dialética não foi levada adiante. É por isso que o associacionismo seria
como “a antinomia dialética de uma tese incompleta” (LACAN, 1936/1998, p. 80).
Enfim, a teoria que se pressupunha em maior grau de conformidade com a
veracidade dos dados empírico/psíquicos, tal como se captasse o reflexo puro dos
fenômenos, termina revelando-se subserviente a uma “teoria basicamente idealista dos
fenômenos do conhecimento” (LACAN, 1936/1998, p. 80). À medida que i) e ii) são
similares por não reconhecerem o outro em-si como momento de determinidade do
próprio saber, também um “materialismo ingênuo” e uma certa forma de idealismo são
equivalentes quando submetem a investigação dos fenômenos a padrões de medida
(critérios de verdade) em-si, não criticados. Tal como em Hegel o Eu abstrato que não
opera a negação de si mesmo está condenado a reencontrar sempre a mesma aridez
inócua de seu próprio pensamento, essas teorias estariam condenadas a encontrar no
objeto somente aquilo que já haviam pressuposto como verdadeiro desde o início, a
saber, as próprias noções em-si de verdade e de realidade: nem o Eu abstrato nem a
ciência moderna realizam experiência em sentido propriamente dialético.

O problema da fundamentação da psicologia para além do princípio de realidade

Essas teorias do conhecimento elencadas por Lacan sob o registro filosófico


operariam através da submissão dos fenômenos ao campo do discurso pré-estabelecido
da ciência, submetendo-os às suas categorias, aos seus conceitos, ao seu sistema de
referências previamente tomado como válido. Em suma, o associacionismo apreende os
fenômenos psíquicos através de uma subserviência da função do verdadeiro à noção
não crítica de realidade.19 É nesse sentido que Lacan afirma que o associacionismo tem
um “mecanismo puramente metafísico” que submete as imagens a um “empobrecimento
intelectualista” (LACAN, 1936/1998, p. 82).
O associacionismo relega à compreensão das imagens, das alucinações, do
fenômeno da loucura ou de qualquer forma de manifestação do dado psíquico o estatuto
de meras “ilusões”, falsos fenômenos, “sensações enfraquecidas”, na medida em que
corresponda menos seguramente à realidade normativamente concebida como
verdadeira:
Assim, nos fenômenos psíquicos não se reconhece nenhuma realidade
própria: aqueles que não pertencem à realidade verdadeira não têm realidade
senão ilusória. Essa realidade verdadeira é constituída pelo sistema de
referências que é válido para a ciência já estabelecida [...]. O papel da
psicologia é apenas o de reduzir a esse sistema os fenômenos psíquicos e
verificá-lo, determinando através dele os próprios fenômenos que constituem
seu conhecimento. É na medida em que é função dessa verdade que tal
psicologia não constitui uma ciência (LACAN, 1936/1998, p. 82).

Aqui tocamos num ponto determinante para Lacan, pois envolve o problema das
imagens. Definir uma realidade verdadeira e legítima é o que a psicologia fez até então,
correndo o risco de pensar uma noção, de certo modo até paradoxal, de realidade falsa,
ilusória e enganadora. Lacan é sensível a essa problemática pelo fato de que ele
pretende justamente conceber uma noção de realidade e de imagem que comportem o
19
Como uma hipótese interpretativa, talvez pudéssemos dizer que fundar uma noção de real para além da
função do verdadeiro é o grande desafio que vai levar Lacan a operar uma cisão fundamental e
instransponível entre real e realidade, e contra toda forma de realismo científico.
erro, a ilusão e a mentira como determinações positivas do saber, afinal: “Aquele que
contesta ao louco que o que ele diz não é verdade, não divaga menos que o próprio
louco” (LACAN, 1946/1998, p. 178).
Os delírios, alucinações, crenças, juízos, lapsos de memória, chistes, devem ser
reconhecidos dentro de sua verdade própria, como experiências vividas do sujeito que
são relatas ao analista. O maior erro que distancia a psicologia de qualquer critério
científico de verdade seria justamente cindir a experiência a partir de um dualismo
metafísico, cuja consequência seria a hierarquização epistemológico-moral da distinção
entre uma realidade verdadeira e uma realidade falsa que leva ao desprezo pela fala do
paciente. Por isso, Lacan diz: “Se quisermos reconhecer uma realidade característica das
reações psíquicas, não convém começarmos por escolher entre elas: é preciso começar
por não escolher”, ou seja, atribuir “uma presunção de significação a qualquer rebotalho
da vida mental” (LACAN, 1936/1998, p. 85).20
Conforme afirma Simanke: “A psicologia associacionista assimila os fenômenos
alucinatórios à ordem sensorial” (SIMANKE, 2002, p. 196). Ora, o desafio é retomar a
psicanálise fora do pathos associacionista e de tudo o que ele carrega de realismo e de
organicismo, o que, no momento, significa conceber a alucinação fora do binarismo da
função do verdadeiro. Apesar de a psicanálise ainda conservar resíduos associacionistas
em sua doutrina, se ela representa uma importante mudança no quadro das ciências
psicológicas será pelo fato de a experiência freudiana introduzir o desafio de pensar a
radicalidade das reações psíquicas. É o que ficará claro mais à frente.
A alucinação não é uma sensação submetida ao julgo da adequação à realidade,
mas sim uma imagem irredutível à realidade fisiológica das sensações e das percepções,
sejam elas de origem visual, tátil, olfativa ou mesmo neurológica. Caso venhamos a
20
Difícil não perceber um paralelo hegeliano nessas considerações: “Portanto, não precisamos trazer
conosco padrões de medidas, e nem aplicar na investigação nossos achados e pensamentos, pois
deixando-os de lado é que conseguiremos considerar a Coisa como é em si e para si” (HEGEL,
1807/2011, p. 79). É a fala do sujeito que porta a verdade, a Coisa do sujeito, sendo um desvio corrosivo
da psicanálise aquelas teorias e práticas que buscam tratar o sujeito através do fortalecimento do eu,
concedendo-lhe uma total unificação consigo mesmo. Aqui, como está claro, Lacan ainda não desenvolve
explicitamente essa problemática, porém já é possível perceber as razões de seu desconforto com esse
tipo de perspectivas, o das chamadas egopsychologies. Antes de oferecerem uma solução aos conflitos
dos sujeitos, elas não fariam mais do que submetê-los a um padrão de medida pré-concebido e exterior a
eles próprios. Muitas antes de que promover um Eu saudável no enfermo, essa atitude se revela como
uma tentativa de cerceamento da singularidade e diferença do desejo do sujeito na medida em que o reduz
a alguma realidade normativa: trata-se de concepções de cunho adaptativo na qual o desejo do sujeito é
levado a se identificar ao eu do analista, a se ajustar à realidade do analista. Em 1953, no Discurso de
Roma, Lacan formula plenamente esse problema: “só o exercício dessa dialética permite não confundir a
experiência analítica com uma situação a dois [...]: buscar um aliado, dizem eles, na ‘parte sadia’ do eu do
paciente, para reformular a outra parte à medida da realidade. E o que é isso senão refazer o eu do
paciente à imagem do eu do analista?” (LACAN, 1953/2003, p. 150).
fazer jus aos fenômenos psíquicos, as sensações e percepções devem ser compreendidas
como um fenômeno de conhecimento, não como mecanismos biológicos/orgânicos
elementares que estruturariam a realidade do animal ou do humano.
Todo materialismo ou idealismo que não reconhece a atividade do sujeito na
organização da forma (no alemão, Bild), das imagens, do saber, permanece aliado a um
realismo ingênuo, versão pretensamente científica do dualismo metafísico. Nesse
sentido, caso se queira fazer valer a experiência freudiana, tanto as percepções triviais
quanto as alucinações discordantes deverão ser compreendidas como um fenômeno de
conhecimento e, enquanto tal, submetidas à função da imagem para além da
objetificação do conhecimento herdada da psicologia clássica, para além do princípio
de realidade. Segundo Lacan, os resíduos associacionistas da teoria freudiana estariam
no “surpreendente” recurso de Freud ao modelo percepção-consciência:
a nossa experiência [...] nos dissuade de conceber o eu como centrado no
sistema percepção-consciência, como organizado pelo ‘princípio de
realidade’, no qual se formula o preconceito cientificista mais contrário à
dialética do conhecimento, e nos indica que partamos da função de
desconhecimento que o caracteriza em todas as suas estruturas (LACAN,
1949/1998, p. 102-103).

Não cabe aqui aprofundarmos a articulação freudiana da teoria do Eu como


derivado do sistema percepção-consciência. Antes, cabe apenas notar que, aos olhos de
Lacan, ela representa um resquício associacionista que funciona como um princípio de
adaptação à realidade e de regulação do princípio do prazer que se chocará com a teoria
de formação do Eu a partir da função de desconhecimento21 que será proposta nos anos
seguintes a Para-além do princípio de realidade. No que nos interessa destacar aqui, o
mérito dessa nova teoria será solucionar a gênese psíquico-física do sujeito apostando
para uma noção não realista de realidade, o que significa que ela reconhecerá a
realidade eminentemente imagética dos fenômenos psíquicos. Conceber o Eu a partir do
sistema percepção-consciência seria dar voz à função do verdadeiro e ao realismo
psíquico que sustentaria a ilusão de cientificidade por traz da dialética do conhecimento
que constitui o saber humano:
as dificuldades teóricas encontradas por Freud parecem-nos prender-se, com
efeito, a esta miragem de objetificação, herdada da psicologia clássica, que se
constitui pela ideia do sistema percepção-consciência, e onde de repente
parece ignorada a realidade de tudo o que o eu negligencia, escotomiza e
desconhece [...]: desconhecimento bastante surpreendente a desencaminhar o

21
No próximo capítulo, veremos como Lacan propõe uma solução para a “falha cientificista” da teoria
freudiana por meio de uma teoria da formação do Eu baseada numa função de desconhecimento, função
essa que, em certa medida, estará de acordo com uma “dialética do conhecimento” (paranoico).
próprio homem que soubera forçar os limites do inconsciente pelo poder de
sua dialética (LACAN, 1948/1998, p. 119).

De certo modo, o realismo 22 identificado na psicologia clássica comporta uma


normatividade inconfessada que excluiria do sujeito aquilo que ele não reconhece
imediatamente como si mesmo. Aquilo que ele toma aparece nas reações adversas que
são manifestadas na e pela linguagem, em sua fala, em seus hábitos mais peculiares, em
lapsos de memória, enfim, em tudo que aparentemente não possui sentido ou
significação. Em última instância, aceitar uma perspectiva realista para o saber
psicológico seria conceber o sintoma como algo exterior ao sujeito e secundário à
realidade, excluindo assim tudo que se apresenta como estranho e desviante em sua
conduta particular. Ao não reconhecer essa alteridade como uma determinação da
realidade subjetiva, e, portanto, como possuindo um sentido dentro da fala do sujeito, a
própria psicanálise, enquanto interpretação das resistências do Eu, se tornaria
impossível. Retornaremos isso no próximo capítulo.

Rumo a uma nova ciência positiva

Identificado o problema metafísico por trás das pretensões científicas da


psicologia e da sua possível ressonância na teoria freudiana do Eu, Lacan propõe uma
crítica à metapsicologia freudiana no sentido de suprir a “falha histórica” de suas
formulações. Inicialmente, a noção criticada é a de libido. Os caminhos teóricos
escolhidos por Freud para justificar sua prática incorreriam no isolamento das relações
inter-humanas numa função biológica, substrato do desejo sexual humano (Cf. LACAN,
1936/1998, p. 93).
Eis que Lacan distingue dois usos da noção de libido: como hipótese
substancialista e como conceito energético. Se, por um lado, a hipótese substancialista
tenderia a tratar a função sexual fora do campo da psicologia, por outro lado, entender a

22
O uso do termo realismo para se referir aos problemas da psicologia científica não é aleatório nem
desprovido de sentido. As vezes em que esse termo aparece na obra de Lacan estão relacionadas à
suspeita crítica politzeriana quanto à psicologia clássica e sua pretensão objetivante da verdade. De todo
modo, esse anti-realismo também pode ser notado se pensarmos a partir de Hegel. Para Iannini: “Um dos
resultados de tratar o material clínico segundo categorias como saber e verdade é a possibilidade de
desmistificar um certo realismo epistemológico que ainda insistia aqui e ali nas formulações de Freud”
(IANNINI, 2013, p. 31). Além disso, um realismo epistemológico condenaria a noção de inconsciente a
algo como uma nova instância psíquica cujo aspecto substancialista determinaria as verdades mais
primordiais do sujeito, tornando a psicanálise algo mais próximo de uma investigação das profundezas da
alma do que uma técnica que trabalha na superfície do discurso do sujeito.
libido como conceito energético significa encontrar aí a possibilidade de afirmar um
saber positivo para a psicologia através da dinâmica relativa aos fatos dos desejos:
Como conceito energético, ao contrário, a libido é apenas a notação
simbólica da equivalência entre os dinamismos que as imagens investem no
comportamento. É a própria condição da identificação simbólica e a entidade
essencial da ordem racional, sem as quais nenhuma ciência poderia
constituir-se. [...] Os elementos de uma determinação positiva foram assim
introduzidos entre as realidades psíquicas que uma definição relativista
permitira objetivar. Essa determinação é dinâmica ou relativa aos fatos do
desejo (LACAN, 1936/1998, p. 94-95)

Enquanto conceito energético, a libido resolve um problema de equivalência.


Ela se torna o termo central a partir do qual uma nova ciência pode ser erguida,
permitindo uma abordagem relativista das imagens próprias do fenômeno analítico sem
abrir mão de sua objetivação através da notação simbólica de ordem racional. 23 Ou seja,
a determinação positiva para o objeto da psicologia é definida precisamente pela
importância de sua relação com os fatos do desejo, isto é, fenômenos subjetivos
articulados como desejos humanos. Assim percebe-se que há um impasse entre o
subjetivo e o objetivo, entre a singularidade do sujeito e a determinação do saber
presente desde o início no ensino lacaniano. Do enfrentamento dessa tensão semovente
surge a necessidade constante de rearranjos de posições e de construções conceituais. É
nesse terreno que a filosofia hegeliana aparece.
Lacan pretende fazer da teoria da libido um modo de formalizar a objetividade
do fenômeno de conhecimento próprio à psicanálise. A tentativa de Lacan é peculiar,
pois ela parte da ideia de que a experiência psicanalítica deve ser compreendida
essencialmente como uma experiência fenomenológica (Cf. LACAN, 1936/1998, p. 85-
93). Nesse sentido, o interesse lacaniano não é entender a noção de libido como um
conceito metapsicológico, mas sim como a possibilidade de passar do terreno do
fenômeno subjetivo (vislumbrado aqui como realidade psíquica das imagens) para o
registro dessa experiência.
Como já foi dito, esse registro será refratário às tendências associacionistas e à
redução do eu ao sistema percepção-consciência, e o movimento inicial que possibilita
tal abordagem é a realidade relativa 24 dos fatos do desejo. Nesse sentido, a noção de
23
Em certo sentido, aqui, é possível reconhecer o impulso teórico que levará Lacan a determinar a
positividade do saber psicanalítico primeiro numa teoria do imaginário, e em seguida numa teoria da
linguagem de tendências estruturalistas baseada na noção de simbólico e numa certa compreensão da
negatividade hegeliana.
24
Sobre o uso lacaniano do termo “relativismo” para indicar um novo modelo científico para a
psicanálise, Simanke afirma : “apreensão bastante genérica da noção de relatividade que justifica a
licença de equiparar à física relativista uma psicologia que reconhece o papel do sujeito na construção de
seu objeto” (SIMANKE, 2002, p. 206).
desejo é entendida através de um duplo sentido que exploraremos no próximo capítulo:
como aquilo que possibilita uma determinação de uma ordem racional para o saber
(instituição de um sentido para o fenômeno clínico) e ao mesmo tempo como a
manifestação da subjetividade específica do indivíduo, da pluralidade e plasticidade dos
afetos, bem como de sua não adequação a princípios normativos de realidade.25
Vimos como a noção de realidade e sua relação com a noção de imagens é
determinante na construção do objeto de uma ciência psicológica. Mas vimos também
que essa realidade constituída pelo paradigma moderno de conhecimento sustenta-se
somente por meio de petições de princípio, premissas inconfessadas não criticadas no
interior de sua fundamentação. Portanto, é importante compreender a função das
imagens para além do princípio de realidade na medida em que ele introduz um critério
normativo não-positivo (pois não refletido) no conhecimento humano e, assim, nivela o
que se manifesta como delirante, idiossincrático ou repulsivo no ser humano como
anomalias e desvios da conduta do sujeito. Considerando isso, Lacan diz:
Aqui se colocam duas questões: através das imagens, objetos do interesse,
como se constitui essa realidade em que se concilia universalmente o
conhecimento do homem? Através das identificações típicas do sujeito, como
se constitui o [eu], onde é que ele se reconhece? A essas duas questões, Freud
novamente responde de passagem no terreno metapsicológico. Ele formula
um “princípio de realidade” cuja crítica, em sua doutrina, constitui o final de
nosso trabalho (LACAN, 1936/1998, p. 95).

Em outras palavras, considerando o estatuto não realista e não adequacionista


das imagens, como se constitui a realidade na qual o ser humano se reconhece como
tal?26 Qual o estatuto dessa realidade, desse Umwelt do humano? Como o sujeito forma

25
Essa maneira de reconhecer no desejo uma tensão sexual não restrita à autoconservação instintiva (à
mera necessidade ou à adequação comportamental do indivíduo ao meio), mas ligada, ao contrário, a uma
função autodestruitiva (negativa, inadaptada à realidade e insuficiente organicamente) ao mesmo que o
aproxima de uma função de equivalência expõe o impulso teórico que faz Lacan compreender a noção de
desejo antes como Begierde do que como Wunsch, palavra empregada por Freud que comumente é
traduzida por desejo. Lacan costuma entender Wunsch como algo muito mais próximo das volições e
apetites do indivíduo do que da função formativa fundamental que reconhece no desejo. Em certo sentido,
esse modo com o qual Lacan tende a conceber a noção psicanalítica de desejo já pode ser prematuramente
identificado na Tese: “A inovação de Freud nos parece capital no sentido em que ela traz à psicologia
uma noção energética, que serve de medida comum a fenômenos muito diversos. Trata-se da libido, cuja
base biológica é dada pelo metabolismo do instinto sexual. [...] Ela tende muito mais a se identificar com
o desejo, o eros antigo tomado numa acepção bem vasta, a saber, como o conjunto de apetites do ser
humano que ultrapassam suas estreitas necessidades de conservação” (LACAN, 2011, p. 252-253).
Ainda que aqui o desejo não esteja relacionado à negatividade hegeliana, desde então ele carrega a marca
da inadequação, do desencontro do sujeito frente à realidade estritamente biológica. Lacan situa o desejo
na Tese como uma “definição objetiva para os fatos psíquicos, antes ainda que o contato com o novo
hegelianismo cultivado no seminário de Kojève o levasse a situá-lo no ponto de origem da constituição do
sujeito, lugar que ele nunca mais desocupará” (SIMANKE, 2002, p. 178). Estamos no meio dessa
passagem.
26
Segundo Simanke : “ir além do princípio de realidade, como Lacan pretende nesse texto, significa,
portanto, ultrapassar o que resta de realismo ingênuo – e, em certo sentido, normativo – na doutrina
para si um Eu, uma imagem de si na qual se reconhece? Ou ainda, como se constituem
os objetos em vista do desejo sexual e como a realidade das imagens é responsável pela
formação do sujeito? Há que se observar o caráter duplamente reflexivo por trás dessas
questões que faz do movimento de formação da realidade e do indivíduo, do objeto e do
sujeito, das imagem e do Eu uma teoria não estritamente cientificista ou
metapsicológica.27 Seguir as referências de Lacan à filosofia hegeliana nos ajudará a
responder essas questões e a fornecer elementos para a compreensão da teoria do
imaginário nos anos 40/50.

Psicologia e sujeito moderno

No capítulo anterior, analisamos elementos centrais da crítica lacaniana à ciência


psicológica clássica e seus pressupostos sustentados pelas noções epistemológicas da
teoria do conhecimento moderna e pelo uso metafísico da função do verdadeiro. Até o
momento, foi o caso de mostrar, em linhas gerais, como o encaminhamento “positivo”
que Lacan busca para a abordagem da psicanálise possibilita um rico paralelo com o
movimento crítico de renovação da filosofia por meio ciência da experiência da
consciência proposto por Hegel na Fenomenologia do espírito.
Agora, buscaremos as referências a Hegel no discurso lacaniano para mostrar
como certa leitura hegeliana, mediatizada por Kojève, servirá à reformulação da
psicanálise proposta por Lacan. Isso nos dará uma compreensão das primeiras
formulações sobre o estatuto do sujeito na obra lacaniana, mostrando sua vinculação ao
projeto maior de compreensão da loucura como cerne da experiência humana e do
estágio do espelho como formador da noção do Eu. Devemos ainda aprofundar um
pouco os meandros da crítica à psicologia e mostrar sua posição quanto à subjetividade
moderna.

freudiana, ressaltando a relatividade subjetiva, mas concreta, instaurada pelo conceito de realidade
psíquica na apreensão dos fatos psicológicos – realidade que, lembremos, é definida na Traumdeutung
como a realidade do desejo” (SIMANKE, 2002, p. 192). O conceito hegeliano de desejo começará a ter
um papel fundamental nesse projeto.
27
Nesse sentido, concordamos parcialmente com Borch-Jacobsen: “O jovem Lacan pegou de Freud o que
serviria a ele: a teoria do narcisismo e da identificação, em detrimento da teoria da sexualidade; a
‘psicanálise do ego’, em detrimento da ‘psicologia do inconsciente’ – devemos adicionar apenas que essa
seleção foi feita a partir de um ponto de vista inteiramente hegeliano” (BORCH-JACOBSEN, 1991, p.
28). Ainda que o ponto de vista hegeliano seja fundamental, ele está longe de ser o único a contribuir para
as referências lacanianas. Além do mais, há que se reconhecer a dimensão essencialmente sexual do
desejo que aparece na teoria do estágio do espelho, ainda que sob uma feição “social” e dialética.
A crítica lacaniana à psicologia é acompanhada de um diagnóstico de época e de
uma certa compreensão do sujeito moderno. No Discurso de Roma, mantendo o tom
duro com a psicológica científica e reafirmando a necessidade de sua crítica para o
desenvolvimento e delimitação da psicanálise, Lacan afirma:
Se é tão importante para nós afirmar que a psicologia não abarca o campo da
existência humana, é por ser ela uma particularização expressa dele,
historicamente válida, e porque a ciência que leva esse nome, em suma, é
inseparável de uma certa realidade pressuposta – a que se caracteriza como
um certo tipo de relação do homem consigo mesmo na chamada época
moderna (LACAN, 1953/2003, p. 148).

Nessa passagem, Lacan explicitamente concebe a psicologia como uma faceta


tipicamente moderna da existência humana. Afinal, o que caracteriza essa autorrelação
do homem na época moderna que determina a psicologia?
A psicologia apresenta uma série de preconceitos dados historicamente que
ofuscam seus princípios de objetividade e que a inscreve num determinado estatuto de
saber. Sua presença no quadro do saber humano é determinada pelo mesmo motivo em
função do qual ela é incapaz de dar conta da existência humana. A psicologia pressupõe
algo como sua realidade e nela crê encontrar seu fundamento, entretanto, ela não
percebe que essa realidade normativa pressuposta já é pré-formada pelos paradigmas
que regem a especificidade do ser do qual ela busca dar conta (o ser humano). Eis que
essa disciplina é uma expressão particular dos tempos modernos, pois não se percebe
vítima de um círculo compreensivo repetitivo, isto é, não percebe que sua concepção de
conhecimento está destinada a encontrar no objeto apenas as suas próprias coordenadas
e premissas. Desse modo, ela não reconhece as práticas históricas humanas e as relações
interpessoais na determinação de seu saber e termina por ser vítima desse
desconhecimento. Aqui, reencontramos mais uma vez a atitude que caracteriza a
consciência natural da Fenomenologia do Espírito.
No fundo, Lacan está dizendo que a psicologia é incapaz de realizar um
diagnóstico de época que inclua a si mesma dentro dele e que, assim, deve ser levada a
cabo uma crítica tanto epistemológica quanto social/ontológica do sujeito moderno. Ao
não empreender esse diagnóstico, ela não reconhece seu espaço dentro da determinação
dos saberes e torna-se consequência não refletida do próprio saber de si mesma. Ou seja,
a psicologia é incapaz de realizar uma crítica, ou melhor, uma autocrítica, o que é o
mesmo que dizer que ela não reconhece a interação entre sujeito e objeto na formação
do saber. A psicologia não denuncia o espaço a partir do qual ela fala, e assim é vítima
de sua própria ilusão, fadada ao repetitivo encontro consigo mesma no seu objeto,
porém sempre de modo alienado, sem possibilidade de reordenação de seu saber: em
linguajar hegeliano, falta-lhe reflexividade.
A realidade pressuposta pela psicologia é a autorrelação do homem consigo
mesmo na época moderna, porém ela não sabe disso, e é justamente desse ponto opaco
de desconhecimento no qual a reflexão psicológica não vê mais do que a própria
imagem que Lacan parte para formular uma teoria e uma prática digna da experiência
psicanalítica. Desse modo, Lacan parece estar às voltas com uma concepção de sujeito
moderno que lhe permitirá tanto criticar as concepções de mundo que surgem com ele,
onde uma das consequências é a própria psicologia, como também reconhecer o ponto
no qual se insere nesse discurso.
Eis que, em meio a essa retomada crítica da psicanálise, Hegel aparece como
aquele que melhor teria compreendido o estatuto reflexivo do sujeito moderno, mas
também como aquele que impossibilitou sua realização. Por um lado, Hegel será um
importante aliado na reformulação da dinâmica psicanalítica e no combate às
concepções tradicionais do conhecimento e do Eu psicológico. Porém, por outro lado,
ele é criticado, pois permaneceria associado a uma concepção de Eu ainda mais
autônomo e absoluto do que o anterior, ser plenamente idêntico e consciente de si,
núcleo da identidade entre saber e verdade.
Ao final do texto Agressividade em psicanálise, Lacan afirma chegar a uma
“tese social”28 que, como veremos, terá um papel importante tanto nas considerações
sobre a psicologia e sobre a experiência psicanalítica, qaunto no estatuto da realidade
humana e da imagem, bem como na compreensão da alteridade humana. Lacan diz:
Antes dele [Darwin], Hegel havia fornecido a teoria perene da função própria
da agressividade na ontologia humana, parecendo profetizar a lei férrea de
nossa época. Foi do conflito entre o Senhor e o Escravo que Hegel deduziu
todo o progresso subjetivo e objetivo de nossa história, fazendo surgir dessas
crises as sínteses que representam as formas mais elevadas do status da
pessoa Ocidental (LACAN, 1998, p. 123).

28
Nesse texto, Lacan emprega um modo de análise que progressivamente tenderá a não aparecer mais em
períodos seguintes. Ao final, ele procura pensar a experiência psicanalítica junto ao estatuto do histórico
do sujeito e ao contexto histórico/ontológico da civilização contemporânea, marcada pela guerra e pelo
signo absoluto da fissura que atinge o âmago do homem moderno “livre” e o despedaça, restando à
análise reconstituir a possibilidade de sentido de sua experiência. Aqui, sentido e história parecem andar
juntos, o que gera uma concepção de “cura” específica a esse período de seu ensino. Tal modo de lidar
com a experiência analítica, partindo de contextos ontológicos/históricos e apostando na abertura de
sentido através da experiência lembra a tentativa da hermenêutica contemporânea de reconstrução de
sentidos num mundo marcado pela cisão e pelo esfacelamento da tradição. O mundo moderno gera suas
próprias formas de vida e suas próprias formas de sofrer, no entanto, como pensar a co-imbrição entre
diagnóstico de época e experiência da cisão sem cair nas armadilhas identitárias do sentido? Eis o grande
desafio que Lacan parece abraçar nos anos que seguirão. O resultado seria a afirmação de uma falta
completa de sentido ou de uma colonização completa do sentido? Relativismo irrestrito ou determinação
total positivista? Nenhum dos dois.
Lacan parece ver em Hegel a figura do arauto do estatuto histórico e ontológico
do sujeito humano em nossa época. Concordamos com Richard Simanke quando este
afirma que parece ser “a título de uma nova antropologia que o pensamento de Kojève
participa da elaboração das teses lacanianas” (SIMANKE, 2002, p. 398). Mas devemos
completar que esta antropologia não vem desacompanhada de um certo estatuto
ontológico.29 A interpretação kojèviana da história da humanidade como processo de
formação da consciência de si baseado na dialética do senhor e do escravo de Hegel
fornecerá a Lacan a possibilidade de erigir uma teoria não psicológica da constituição
do sujeito e da mútua relação entre sujeito e objeto (realidade) a partir de um critério
intersubjetivo e ativo que compreende a negatividade como instauradora do discórdia
que é a base das relações humanas. A figura da morte retrata bem esse caráter negativo
intrínseco ao ser humano, e é através de sua experiência que o humano articula a vida.
Lacan continua:
Aqui, o indivíduo natural é tido por nada, já que o sujeito humano
efetivamente o é diante do Senhor absoluto que lhe é dado na morte. A
satisfação do desejo só é possível se mediatizada pelo desejo e pelo trabalho
do outro. Se, no conflito entre o Senhor e o Escravo, é o reconhecimento do
homem pelo homem que está em jogo, é também numa negação radical dos
valores naturais que ele é promovido, ou seja, que se exprime na tirania
estéril do senhor ou na tirania fecunda do trabalho (LACAN, 1949/1998, p.
123)

A autorrelação do homem consigo mesmo que estrutura a psicologia é o


resultado imediato do desconhecimento provocado pela dinâmica que Lacan afirma
encontrar na dialética do senhor e do escravo. Essa autorrelação é tão característica da
psicologia e do modo de autocompreensão do humano na época moderna que Lacan
chega a defini-lo como “homo psychologicus” (LACAN, 1953/2003, p. 149). A
psicologia é a expressão do desconhecimento que se esconde no sujeito moderno, e
quando a psicanálise se envereda pelos caminhos que caracterizam a psicologia, ela se
perde e se torna a repetição ensimesmada desse ser. Contra isso, Lacan espera mostrar
os limites da autoimagem desse sujeito. Ora, se o ser humano é um “homo

29
Lacan diz que o fenômeno da cultura, da arte, da escrita, da comunidade humana como um tudo,
apresentará “problemas sempre insolúveis para toda antropologia que não estiver liberada do realismo
ingênuo do objeto” (LACAN, 1933/2011, p. 400). É certo que, nesse citação, Lacan não está se referindo
a uma “antropologia hegeliana”, entretanto, isso não é menos significativo para o fato de que a leitura
kojèviana da Fenomenologia do Espírito se encaixará muito bem nessa exigência lacaniana, como vimos
no capítulo passado. Afirmar uma “tese social” sob a figura da dialética do senhor e do escravo é como
que fazer um diagnóstico de época do estatuto da sociedade moderna, fazendo dela uma espécie de
consequência, mas também de causa da função da agressividade na psicanálise e na gênese do sujeito.
psychologicus”, o que Lacan promove como prática e como teoria é a “terapia” 30 desse
ser. Compreender alguns traços constitutivos dessa “terapia” é o que está em jogo nesse
capítulo.

30
Aqui, o termo terapia não é utilizado para fazer referença a psicanálise como alguma espécie de
psicoterapia, o que Lacan rechaçaria completamente. O termo terapia é usado no sentido de superação de
um pathos, possibilidade de mudança do modo de autocompreensão do sujeito moderno.

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