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Queira que sim ou quisesse que não, é inegável que Lacan foi um grande
responsável na propagação de ideias de cunho hegeliano, tanto em debates da época
quanto ainda nos dias de hoje. Mesmo que veementemente negasse esse papel1, Hegel
sempre foi uma referência de grande importância no quadro de autores frequentados por
Lacan, perdendo apenas para Freud no número de citações nos Escritos.2
Ainda que os números não sejam por si mesmos alguma espécie de revelação
autoevidente ou índice determinante de influência, neste artigo pretendemos mostrar
que há elementos nos textos pré-Seminários que possuem uma importante ressonância
hegeliana. A despeito de citações, o objetivo é mostrar que é possível ler em Lacan uma
apropriação crítico-epistemológica de aspectos da filosofia hegeliana. Lacan parece
encontrar em Hegel, ou ao menos em aspirações de sua obra, um aliado no projeto de
crítica das ciências psicológicas e de reconstituição do conceito de ciência.
Um conceito renovado de ciência somente será possível a partir da crítica de
seus elementos constitutivos. Em outras palavras, faz-se necessário uma crítica
imanente do objeto da psicologia para que ela possa tomar consciência de seus limites e,
afinal, ser reposicionada como uma ciência propriamente dita. Para Lacan, nesse
momento, isso quer dizer fundar um saber positivo capaz de reconhecer validade aos
fenômenos psíquicos manifestos pelos pacientes.
1
Nota onde Lacan nega Hegel.
2
Nota sobre os números de citação de Hegel na obra de Lacan.
Essa nova ciência somente pode surgir por meio da superação crítico-
epistemológica de desafios legados pela modernidade. Portanto, o objetivo desse texto
será mostrar, via noção dialética de experiência e de saber e verdade contidos na
Fenomenologia do espírito de Hegel, como Lacan articula tais elementos para uma
crítica das psicologias de cunho associacionista, que terminam por se revelar arraigadas
em concepções metafísicas e impróprias para se constituir enquanto ciência. Assim,
espera-se lançar luz a aspectos nem sempre tão explorados da obra lacaniana e mostrar
sua conexão com uma crítica do conhecimento e da metafísica, reposicionando o texto
Para além do princípio de realidade no quadro formativo lacaniano.
Contudo, é entre o final dos anos trinta e o início dos anos sessenta que o
movimento de apropriação de conceitos hegelianos é mais forte e é declaradamente
empreendido por Lacan. Esse movimento será responsável pela constituição de uma
parte fundamental do corpo teórico e da experiência intelectual lacaniana no período
que se costumou chamar de “retorno a Freud”.
Nesta parte do capítulo, transitaremos pela filosofia hegeliana com o intuito de
mostrar como Hegel articula as noções e os momentos teóricos que posteriormente são
apropriados por Lacan. Procuraremos apresentar o pensamento hegeliano precisando a
lógica interna dos conceitos em seu contexto de aparição sem perder de vista a
particularidade da abordagem kojèviana. Como dissemos na seção anterior, esse
hegelianismo insurgente deslocou o foco dado a textos mais sistemáticos como a
Ciência da lógica e a Enciclopédia para lançar luz aos textos de juventude, menos
explorados. Ao contrário do que presenciamos nos estudos hegelianos atuais, até então a
Fenomenologia do espírito era tida como uma obra menor na bibliografia hegeliana,
apenas uma etapa ultrapassada do que se tornaria o verdadeiro sistema. Com o curso
sobre a Fenomenologia do espírito, Alexandre Kojève marcou o pensamento francês e
deu ao texto de Hegel uma importância totalmente nova, atual, quase vanguardista, e é
desse modo que Lacan chega a Hegel pela primeira vez.
Grande parte da insólita leitura kojèviana deriva de uma interpretação
heideggero-marxista de Hegel, ou, como nos diz Pierre Macherey: “Kojève teve sucesso
em vender sobre o nome de Hegel o filho que Marx poderia ter tido com Heidegger”
(MACHEREY, 1991, p. 319).3 Talvez possamos dizer que Kojève tenha sido um dentre
os primeiros responsáveis por introduzir a filosofia heideggeriana em território francês,
de modo indireto, através de uma singular concepção de ser humano que mesclaria ser-
para-a-morte heideggeriano e desejo como negatividade encontrada na Fenomenologia
de Hegel. Em duas notas de página, Kojève esclarece:
Atualmente, Heidegger é o primeiro que propõe uma filosofia ateia completa.
Mas não parece tê-la levado além da antropologia fenomenológica exposta no
primeiro volume de Sein und Zeit. Essa antropologia (sem dúvida notável e
autenticamente filosófica) não acrescenta nada de novo à antropologia da
Fenomenologia (que, aliás, talvez nunca tivesse sido compreendida se
Heidegger não tivesse publicado seu livro) (KOJÈVE, 2002, p. 493, n.43).
Heidegger retomou os temas hegelianos da morte; mas ele não considera os
temas complementares da luta e do trabalho; assim, sua filosofia não
consegue explicar a história (KOJÈVE, 2002, p. 536, n.10).
3
Na presente dissertação, apenas apontaremos essa influência fundamental para o modo kojèviano de ler
Hegel sem podermos nos aprofundar em seus meandros e sentidos mais específicos com os diálogos
subterrâneos que ele possui.
4
Segundo Borch-Jacobsen: “Realidade humana foi o termo proposto por Henry Corbin para traduzir o
Dasein de Heidegger para o Francês. Kojève foi influenciado por essa tradução [...]? Ou devemos
acreditar que, ao contrário, essa tradução teria sido um efeito do ensino de Kojève, desde que ele
começou a utilizá-la em 1933? (Denis Hollier afirma em sua coleção do Collège de sociologie que Corbin
originalmente traduziu Dasein por “existência”, e foi somente em 1938 que ele optou por “realidade
humana”, carregando Sartre com ele)” (BORCH-JACOBSEN, 1991, p. 15). Voltaremos ao sentido do
termo realidade humana mais adiante.
5
Ironicamente ou não, com Lacan, a filosofia heideggeriana muitas vezes atua sob o nome de Hegel, o
que não impede de encontrarmos questões propriamente hegelianas fundamentais no interior do projeto
lacaniano.
Antes, o próprio caminho seria a apresentação de si mesmo como sujeito por meio da
exteriorização de um descompasso fundamental e formador. Vejamos como isso
começa a ser articulado por Hegel na Fenomenologia.
Em meio a períodos conturbados, no ano 1806, sob a invasão napoleônica na
Prússia, Hegel escrevia a “primeira parte do sistema”, um sistema que buscava a
realização de si mesmo enquanto Ciência. Entretanto, para Hegel, falar de Ciência
envolve precisamente resignificar o sentido de ciência, pois, para ele, o conhecimento
que verdadeiramente merece o nome de ciência deveria ser uma ciência do absoluto,
ciência que não exclui nenhum saber como algo desprovido de sentido, sem ser ou sem
efetividade. Hegel pensa uma ciência que não separa um verdadeiro ordinário e um
verdadeiro absoluto e que, portanto, não transforma o medo de errar no próprio medo da
verdade (Cf. HEGEL, 1807/2011, p. 72).
Segundo Hegel, há uma efetividade no erro, e ele participa ativamente do ato
do conhecimento. Aqueles que procedem no conhecer através de um meio ou de um
instrumento em busca de melhor conferir verdade ao objeto, evitando o erro, (como
seria o caso de grande parte da ciência moderna, desde Descartes a Kant) introduziriam
uma linha divisória entre o conhecer e o absoluto. Seria como se buscassem conhecer os
modos do conhecimento verdadeiro sem nada conhecer previamente, isto é, conhecer
sem reconhecer que seu saber sobre o objeto determina a própria aparição do objeto.
Isso significa que não há uma distinção prévia que estruture nossa relação conceitual
com o mundo, ou, em outras palavras, “que em Hegel nada é de nascença” (ARANTES,
2003, p. 56). Por isso, a Ciência deve ser primeiramente uma ciência da experiência da
consciência, e, enquanto primeiro momento da Ciência, “deve ser levada adiante a
exposição do saber que aparece [ou saber fenomenal]” (HEGEL, 1807/2011, p. 74). E,
assim, é possível: “tomá-la, desse ponto de vista, como o caminho da consciência
natural” (HEGEL, 1807/2011, p. 74).
Hegel parte das “representações naturais” da consciência para mostrar como
ela tenta apreender o objeto tal como ele aparece e, nessa tentativa, na verdade, ela se vê
incapaz de apreendê-lo em-si: o objeto aparece somente para ela. Por mais que não
encontre o que ensejava, sua investida não representa um erro desprovido de
efetividade, inadequação do pensar ao ser. Antes, ela revela a consciência em seu agir,
como movimento de negação que é ela mesma. Na Fenomenologia, trata-se
precisamente de mostrar como cada configuração/figura (Gestalt) da razão, cada
momento da consciência não foi capaz de realizar seu próprio conceito, fracassou ao
tentar realizar seu conceito. Isso ocorre devido ao descompasso da representação natural
do saber da consciência com o objeto da experiência que se apresenta a cada momento.
Esse fracasso, essa inadequação do saber ao objeto não deve ter uma significação
isolada, pois, antes, ele é inerente à própria consciência, na medida em que ela é a
própria realização de seu conceito:
Enquanto se toma imediatamente por saber real, esse caminho tem, para ela,
significação negativa: o que é a realização do conceito vale para ela antes
como perda de si mesma, já que nesse caminho perde sua verdade. Por isso
esse caminho pode ser considerado o caminho da dúvida ou, com mais
propriedade, caminho do desespero [Verzweilflung] (HEGEL, 1807/2011, p.
74).
6
“A desigualdade que se estabelece na consciência entre o Eu e a substância – que é seu objeto – é a
diferença entre eles, o negativo em geral. Pode considerar-se como falha dos dois, mas é sua alma, ou
seja, é o que os move. [...] Ora, se esse negativo aparece primeiro como desigualdade do Eu em relação ao
objeto, é do mesmo modo desigualdade da substância consigo mesma. O que parece ocorrer fora dela –
ser uma atividade dirigida contra ela – é seu próprio agir; e ela se mostra assim ser essencialmente
sujeito” (HEGEL, 1807/2011, p. 46-47).
7
“O que está restrito a uma vida natural não pode por si mesmo ir além de seu ser-ai imediato, mas é
expulso-para-fora dali por um Outro: esse ser-arrancado-para-fora é sua morte. Mas a consciência é para
si mesma seu conceito; por isso é imediatamente o ir-além do limitado – e já que este limite lhe pertence
– é o ir além de si mesma” (HEGEL, 1807/2011, p. 76). Safatle interpreta essa morte como “manifestação
fenomenológica própria à indeterminação fenomenal do que nunca é apenas um simples ente. Ou seja, a
morte indica uma experiência do que não se submete aos contornos autoidênticos do pensar
representativo, a morte como aquilo que não se submete à determinação do eu” (SAFATLE, 2007, p.184).
Segundo Hegel, a negatividade é “o diferenciar e o pôr do ser-aí; e é, nesse
retornar a si, o vir-a-ser da simplicidade determinada” (HEGEL, 1807/2011, p. 57).
Compreender esse caráter determinado do negativo é perceber o limite da apreensão
unilateral do saber do objeto, isto é, o limite do modo de apreensão do saber como não
relacional. O percurso da Ciência pensada por Hegel pode ser entendido como a
constituição de outra “gramática filosófica” na qual a negação determinada seria o
modo de relação que estabelece a passagem de um termo a outro: tal como em uma
operação de Aufhebung onde a imediatidade do em-si é negada, porém conservada no
novo objeto que surge, na negação determinada o que é negado deve ficar pressuposto
no interior da relação. Isso impõe o desafio de pensar a ideia de objeto para além de um
polo fixo de identidade, assim como de conceber a verdade para além da relação de
correspondência do sujeito com o predicado (com o saber, com o objeto, etc). A
negação determinada é o movimento interno de passagem de uma configuração do saber
fenomenal para outra e, desse modo, ela se mostra como a construção dos processos de
relação da experiência da consciência. Por isso, Hegel dirá:
Experiência é justamente o nome desse movimento em que o imediato, o não
experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do Simples
apenas o pensado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso
– como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em
sua efetividade e verdade (HEGEL, 1807/2011, p. 46).
Por outro lado, ainda que o movimento dialético seja admitido como a
exposição do impasse entre o saber e a verdade, reconhecimento do ponto de
enunciação nos proferimentos, Hegel abre espaço para pensarmos que um certo
movimento de desalienação possa operar uma reconciliação total da consciência com
seu outro (total correspondência entre enunciação e enunciado). Seguir essa hipótese
seria entender que, ao final, ironicamente, todo o movimento especulativo de
suprassunção da gramática filosófica moderna asseguraria aquilo que ele tentou superar:
afirmaria a correspondência não relacional do saber da consciência com a verdade do
conceito e consumaria a filosofia como a adequação da verdade com a realidade, do ser
com o pensar, do conceito com o objeto. Essa filosofia terminaria por excluir todo
espaço de manifestação da negatividade do sujeito.
Aceitando essa hipótese, não estaríamos longe de uma espécie de positivismo
cúmplice das categorias metafísicas de sujeito, objeto, ciência e verdade cuja crítica
imanente é um dos motivos moventes da filosofia hegeliana. O modo como Kojève
concebe a realização última do conceito com a verdade será precisamente este:
Considerados isoladamente, o sujeito e o objeto são abstrações que não têm
realidade-objetiva (Wirklichkeit), nem existência-empírica (Dasein). [...] De
modo geral, a verdade (= realidade revelada) é a coincidência do pensamento
ou do conhecimento descritivo com o real concreto. Ora, para a ciência
vulgar, esse real deve ser independente do pensamento que o descreve. [...] O
mesmo acontece com o objeto da psicologia, da gnosiologia e da filosofia
vulgares [filosofia pré hegeliana], que é o sujeito artificialmente isolado do
objeto, isto é, ainda uma abstração. É bem diferente o que ocorre com a
experiência hegeliana: ela revela a realidade concreta, e a revela sem
modificá-la ou perturbá-la. [...] O real concreto é ao mesmo tempo real-
revelado-por-um-discurso e discurso-revelado-por-um-real (KOJÈVE, 2002,
p. 425-428).
9
Talvez seja justamente por ver em Hegel, via Kojève, a extrema impossibilidade de pensar a verdade
fora do princípio de adequação e da redução da linguagem à sua estrutura proposicional e predicativa que
Lacan teve a necessidade de recorrer a Heidegger em busca de uma noção de verdade como alétheia. No
capítulo 1 de Estilo e verdade em Jacques Lacan, de certo modo Iannini (2013) reconhece uma primazia
da influência hegeliana em Lacan por considerar ser possível encontrar em Hegel um “outro cenário”
(IANNINI, 2013, p. 73) da verdade, isto é, refratária à verdade representativa: verdade que reconhece o
erro e a falha como seus modos de expressão, verdade como processo: “A cada gênese de um novo
objeto, uma nova figura da consciência. Se a verdade não se confunde com a exatidão, nem é ela uma
propriedade de enunciados pretensamente objetivos é, antes de tudo, porque ela é, em Hegel como em
Lacan, processo” (IANNINI, 2013, p. 71).
para a difusão do hegelianismo no público francês ou negue ter-se deixado levar pelo
hegelianismo e feito da psicanálise uma experiência estritamente dialética e
excessivamente intelectualista, convém ponderarmos essas considerações e pensarmos
as especificidades que traçam sua relação com Hegel.
Parece que Lacan não foi o único a ser instigado pela possibilidade de
aproximação da dialética hegeliana com a psicanálise de Freud na época. Se ele foi
influenciado pelos seminários de Kojève, a quem se referia como seu “mestre”, não é
menos verdade que alguma espécie de contratransferência se estabeleceu aí. Segundo
Roudinesco, no ano de 1936, término do seminário de Kojève, ele e Lacan planejavam
escrever juntos um estudo que se chamaria Hegel e Freud: ensaio de uma confrontação
interpretativa. Esse texto seria publicado na importante revista de filosofia da época, a
Recherches Philosophiques, sob a autoridade de Koyré (Cf. ROUDINESCO, 2008, p.
148-150). Ao considerarmos esse relato, podemos imaginar a intensidade do contato
entre esses dois homens. Kojève de fato chegou a escrever algumas páginas sobre o
tema e formulou um índice para o estudo, que possuiria três partes: 1) “Gênese da
consciência de si”; 2) “A origem da loucura” 3) “A essência da família”. Como se pode
ver, Kojève parecia inteirado dos estudos e interesses de Lacan desde a publicação de
sua Tese de doutorado em 1932. Entretanto, ainda que Lacan não tenha seguido ao lado
de Kojève com um texto a quatro mãos, longe da tutela do “mestre”, ele dará
continuidade à história desse encontro.
De um modo ou de outro, veremos que é possível encontrar traços e
ressonâncias suficientes para afirmarmos que, queira Lacan ou não, ele participa
ativamente da história da recepção de Hegel na França. Ao menos no que diz respeito ao
“retorno a Freud”, período que vai até o final dos anos 50, Lacan constrói seu projeto de
reformulação da psicanálise tendo Hegel como uma referência teórica central. Para
abordarmos os momentos iniciais dessa relação com mais cuidado e êxito, optamos por
concentrar nossos esforços principalmente no período entre a Tese (1932) até o
Seminário II (1954-55). Sem dúvida, toda a obra lacaniana é acompanhada de
mudanças, transformações e reelaborações que marcam o estilo do ensino desse
psicanalista. Entretanto, acreditamos que os textos desse período apresentam nuances e
relevos que, por mais diferentes que sejam um do outro, compartilham uma intensa
problemática e apresentam um eixo temático coeso.
Grande parte dos textos lacanianos das décadas de 30, 40 e início da de 50
começam com críticas às então chamadas “ciências psicológicas” e buscam diferenciar
o lugar ocupado pela psicanálise frente às outras disciplinas: será o caso de textos como
Para além do princípio de realidade (1936), Formulações sobre a causalidade psíquica
(1946), Agressividade em psicanálise (1948), O mito individual do neurótico (1952) e
do Discurso de Roma (1953), bem como de outros posteriores. Em Função e campo da
fala e da linguagem em psicanálise, texto seminal que antecede em apenas três meses o
início do primeiro Seminário, Lacan diz: “Se a psicanálise pode tornar-se uma ciência –
pois ainda não o é –, e se não deve degenerar sua técnica – o que talvez já seja um fato
–, devemos resgatar o sentido de sua experiência” (LACAN, 1953/1998, p. 268). É
precisamente isso que está em jogo: resgatar o sentido da experiência psicanalítica,
fornecendo-lhe recursos teóricos apropriados sem perder de vista a originalidade e a
inovação inaugurados por sua prática.
Seria como se cada um desses textos realizasse um caminho para dar conta da
mesma experiência. Agora, será o caso de mostrar que, de modo mais ou menos
enfático, esses textos também apresentam uma estratégia geral que consiste em fazer do
terreno metapsicológico freudiano um solo firme para a reconstrução de uma teoria
científica capaz de fazer jus à experiência psicanalítica. Isso será feito por meio de uma
crítica epistemológica aos princípios basilares das ciências psicológicas e de uma
reabilitação das noções de libido e de inconsciente. Portanto, o objetivo geral dessa
parte é compreender como os “conceitos dialéticos – fala, sujeito e linguagem [e
também desejo] – nos quais esse ensino encontra suas coordenadas, suas linhas e seu
centro de referência” (LACAN, 1953/2003, p. 153) participam da estratégia crítica de
reformulação da psicanálise ao passo que caminham junto à filosofia hegeliana. 10
Introdução
10
Lacan acrescenta que esses conceitos não devem ser tomados como definições estritamente formais,
pois assim incorreriam justamente no risco de entificação e substancialização que seu uso procura evitar.
Antes de tratar desses conceitos será preciso colocá-los ao “alcance no universo de linguagem em que
eles se inscrevem a partir do momento em que eles pretendem reger o movimento desse universo”
(LACAN, 1953/2003, p. 153). Ou seja, será preciso pensá-los dentro do movimento e da dinâmica
psicanalítica.
um quadro comportamental fixo e pré-existente à história singular do indivíduo. Ali já é
possível identificar uma grande suspeita de Lacan quanto à pretensão científica das
“ciências psicológicas/psiquiátricas clássicas”. Ele encontrará nas “funções
intencionais” e nas “tensões sociais” (LACAN, 1932/2011, p. 329) do indivíduo a
possibilidade de valorizar a experiência do sujeito ao mesmo tempo em que concebe um
novo critério “objetivo” para o estudo dos fenômenos paranoicos da personalidade, em
detrimento de tendências substancialistas das doutrinas psicológicas e da padronização
rígida dos fenômenos observados.11
Desde então, parece que Lacan se defronta com uma tensão que pode ser
formulada da seguinte forma: como fazer jus à singularidade da experiência do sujeito
sem perder de vista a possibilidade de uma objetividade do saber e de sua
determinação? Lidar com essa tensão será um aspecto importante no modo como Lacan
busca “resgatar o sentido da experiência analítica”. Afinal, o que faria da psicanálise
uma disciplina distinta de outras? Qual o estatuto dos múltiplos fenômenos psíquicos
(dentre eles os delírios e as alucinações) na doutrina psicanalítica? Qual a especificidade
do objeto da psicanálise?12 Responder a essas questões é também responder à questões
sobre o estatuto científico da psicanálise, e podemos dizer que o desafio de fundamentar
cientificamente a psicanálise tem como um de seus primeiros passos o problema da
fundamentação de uma psicologia para além do princípio de realidade, ou melhor, para
além da oposição estrita entre realidade e ilusão.
11
Faremos o uso da palavra Tese com « T » maiúsculo quando nos referirmos à tese de doutorado de
Lacan. Nela, através de inspirações provocadas pela leitura de Crítica dos fundamentos da psicologia
(1928/2004) de Georg Politzer, Lacan irá criticar algumas tendências da psicológica clássica da época, em
especial o organicismo e o automatismo mental. A partir de tendências da psiquiatria fenomenológica
alemã, ele procura pensar uma teoria compreensiva da personalidade que encontra na psicanálise um
importante debate sobre o narcisismo e o desenvolvimento do Eu. Segundo Lacan, o “socorro” que ele
parece tirar da psicanálise se deve principalmente ao fato dela abrir a possibilidade de conceber uma
relação entre a estrutura comportamental e a gênese do indivíduo sem perder de vista os critérios
objetivos de “equivalência” necessários para a ciência, abrindo assim para um novo entendimento das
“entidades mórbidas (patologias) e para uma teoria desenvolvimentista da personalidade (Cf. LACAN,
1932/2011, p. 319-329). A abordagem lacaniana ainda se volta para uma leitura crítica do narcisismo e de
sua relação ao princípio de realidade. O intuito é fundamentalmente epistemológico, porém isso não
afasta as questões de cunho prático e social, pelo contrário, elas participam ativamente aí. Nesse trabalho,
buscaremos destacar o lugar da Tese no movimento de formação da obra lacaniana e perceber como os
textos do período que vão ao menos de 1936 até 1949 parecem dar prosseguimento às intuições iniciais de
Lacan, partilhando, assim, de um projeto de renovação da obra de Freud que marca o percurso lacaniano.
Faremos isso no próximo capítulo. Sobre a influência de Politzer em Lacan e os primeiros aparecimentos
de Freud na obra lacaniana, foi realizado um estudo mais cuidadoso em “Lacan leitor de Politzer:
elementos filosóficos em torno da fundamentação de uma psicologia concreta” (CHERULLI, 2013).
12
“Por conseguinte, convém indagar o que significam essas carências no desenvolvimento de uma
disciplina que se coloca como objetiva. [...] Será, a própria objetividade impossível de ser atingida em
psicologia?” (LACAN, 1936/1998, p. 80).
Após sua defesa de doutorado e quatro anos sem nenhuma publicação de
destaque, agora como frequentador dos seminários de Kojève e em análise didática com
Leowenstein, Lacan redigia Para-além do ‘Princípio de realidade’. A tópica
introdutória desse texto reza o seguinte: “Em torno desse princípio fundamental da
doutrina de Freud, a segunda geração de sua escola pode definir sua dívida e seu dever”
(LACAN, 1936/1998, p. 73). A frase deixa claro o tom crítico que Lacan propõe à
recepção do legado freudiano, o que resultará numa proposta de leitura renovada para a
obra do antecessor. De fato, a perspectiva crítica de Lacan vem acompanhada de uma
tomada apropriativa da teoria freudiana que a coloca em face de vários espectros do
pensamento ocidental, desde a linguística até matemática e a filosofia, dentre outros.
Em meio a esse movimento, a crítica ao princípio de realidade será um aspecto
importante na busca por caminhos que possibilitem repensar a objetividade psicanalítica
a partir da própria especificidade de sua experiência.
De modo geral, podemos dizer que essa crítica gira em torno da cisão metafísica
entre o verdadeiro e o falso, sob uma faceta epistemológica moderna. Está em jogo um
debate característico da filosofia moderna acerca da possibilidade de aferição de um
conhecimento verdadeiro e de um conhecimento falso, isto é, da delimitação de uma
“realidade verdadeira” aposta à “realidade ilusória”. A questão é importante, pois cabe
questionar o estatuto científico dos fenômenos psíquicos vivenciados pelo sujeito e
observados pelo terapeuta.
É notável que o objetivo de Lacan não seja rivalizar com qualquer aspiração
científica. Para ele, ao contrário do que se poderia esperar, a psicologia moderna,
herdeira de uma tradição baseada na ânsia por conhecimento e sustentada na
necessidade de garantias de verdade, peca não pelo seu excesso de objetividade e
precisão, mas justamente por não ser suficientemente objetiva, isto é, “positiva”. A
questão em jogo, obviamente, é compreender o que Lacan entende como objetividade
no caso de um saber como o da psicanálise.
Compreender o que Lacan visa como critério positivo para a psicologia marca o
primeiro momento de sua aproximação com a filosofia hegeliana. 14 Não parece
exagerado apontarmos aqui para uma relação com Hegel se lembrarmos que Lacan
acabara de concluir um curso intensivo de quatro anos com Kojève. Não é a toa que
Lacan dirá: “Denuncia-se o vício teórico do associacionismo ao se reconhecer em sua
estrutura a formulação do problema do conhecimento do ponto de vista filosófico”
(LACAN, 1936/2016, p. 80). Essa passagem merece ser levada em consideração.
Vimos no início da Introdução da Fenomenologia do espírito que Hegel
desenvolve uma crítica à noção moderna de conhecimento. 15 De modo geral, essa crítica
campo analítico, no qual todos os princípios do associacionismo continuam reinando” (LACAN, 1958-
1959/2016, p. 58). Eis que a crítica de seus princípios básicos continua sendo necessária para a
delimitação do campo psicanalítico e da validade de sua experiência.
14
Toda a tese de doutorado de Léa Tavora (1994), intitulada “Raízes hegelianas no pensamento de
Freud”, parece girar em torno da ideia de defender a hipótese de que em Hegel já encontramos elementos
fundamentais de um novo paradigma epistêmico que rompe com a tradição filosófica moderna e que torna
legíveis os passos representados pela psicanálise. No caso, ela pensa essa relação entre a filosofia
hegeliana, o paradigma epistêmico e a psicanálise já a partir do texto freudiano (Cf. TAVORA, 1994).
15
A título de uma aproximação despretensiosa, lembremos que assim como Lacan quer pensar uma noção
de ciência que dê conta da especificidade da experiência psicanalítica, o intuito maior de Hegel na
tem em comum o fato de tratar a verdade e o saber como polos não relacionais. Lá,
Hegel rechaça todo pensamento que faz do conhecer um meio ou um instrumento para
se atingir a verdade, isto é, que concebe o conhecimento do objeto separado da verdade,
separada do fenômeno. Todo pensamento que faz do conhecimento um meio ou um
instrumento para garantir a verdade restringiria a verdade a um mero conhecimento
verdadeiro, como se de um lado houvesse o objeto (a verdade) e do outro a verdade que
se tem daquele objeto (conhecimento verdadeiro). Em outras palavras, seria como
afirmar que haveria algo como uma verdade verdadeira e uma verdade ordinária.
Esse procedimento moderno em torno do conhecimento seria característico de
teorias psicológicas de tendência associacionista. Encontramos uma crítica análoga a de
Hegel em Lacan, quando ele se refere às dificuldades que noções correntes tais como
“realidade verdadeira” e “ realidade falsa”, bem como “percepção verdadeira” e
“percepção falsa” despertam na compreensão dos fenômenos psíquicos: “a partir do
momento em que os fenômenos se definem em função de sua verdade, eles ficam
submetidos, em sua própria concepção, a uma classificação de valor” (LACAN,
1936/1998, p. 81). Classificação essa geradora de uma hierarquização prejudicial à
compreensão objetiva dos fenômenos do conhecimento que, por sua vez, subordina o
dado psíquico à sua lógica valorativa e, assim, “falseia a análise e lhe empobrece o
sentido” (LACAN, 1936/1998, p. 81).
No Seminário VI, Lacan afirma que o problema com o associacionismo é que
ele “parte em busca dos casos em que a apreensão do mundo se apresenta como mais
primitiva” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 58). Buscar uma apreensão “mais primitiva”
do mundo seria pressupor um acesso privilegiado aos dados da experiência, como se
fosse possível apreender a realidade através de uma “mítica sensação pura” (LACAN,
1936/1998, p. 80). Para utilizar uma imagem, diríamos que a ideia de uma sensação
pura nos remete ao intelecto humano como se ele fosse uma “lente bem polida”: como
se, através dela, pudéssemos capturar a realidade e enxergar a verdade dos objetos sem a
interferência de preconceitos e enganos, saberes adquiridos ao longo da vida que
ofuscam a transparência e a pureza do saber verdadeiro.
Dizer que o associacionismo constitui-se através da “mítica sensação pura”, ou
que pressupõe um acesso privilegiado (primitivo, imediato) aos sentidos, é afirmar que a
objetividade do saber é garantida por certa capacidade cognitiva (sensação pura) do ser
Fenomenologia do Espírito era construir um conceito renovado de ciência que abarcasse a experiência da
consciência.
humano de organizar a multiplicidade do sensível, apreendendo-a e organizando-a
conforme a realidade (“verdadeira”). Desse modo, no momento em que a teoria
associacionista acredita dar conta do objeto da experiência, ela encontra somente aquilo
que já havia sido pressuposto, isto é, reencontra-se com um elemento não-positivo no
interior de sua pretensão de positividade. Para Lacan: “Assim se introduz no conceito
explicativo o próprio dado do fenômeno que se pretende explicar. Trata-se de
verdadeiros passes de mágica conceituais” (LACAN, 1936/1998, p. 79).
Não parece uma extrapolação dizer que a palavra experiência, tão
frequentemente utilizada por Lacan ao longo de todo o seu ensino para se referir à
prática psicanalítica, ao ressaltar a dimensão prática/clínica no processo de constituição
do conhecimento, tem uma conotação hegeliana. 16 Essa experiência não separa
estritamente conhecimento teórico e conhecimento prático, mas antes reconhece o
intrincado movimento entre práticas e saberes, isto é, que o saber é essencialmente
prático, do mesmo modo que a prática pressupõe um saber. Ora, pressupor um saber não
é mais do que reconhecer que a prática já é em si mesma um saber atuante.
Hegel já antecipara o problema da unilateralidade do saber ao discutir sobre a
superação da noção clássica de conhecimento através do conceito reflexivo de
experiência, tal como identificamos na introdução da Fenomenologia do espírito. Lá,
vimos como Hegel procura conceber um modo de pensamento capaz de lidar com a
cisão entre saber e verdade de modo reflexivo, tendo como pano de fundo uma verdade
para além da correspondência unilateral entre sujeito e predicado, que constitui a
compreensão metafísica do conhecimento na filosofia. Portanto, uma meditação
metodológica que não considera o caráter reflexivo da experiência e do conceito na
formação do objeto termina relegando-o a “vicissitudes” e “desgastes” metafísicos.
Como observa Lacan: “Assim, considerado em conjunto, o que é facilitado pelo
recuo do tempo, o associacionismo nos revela suas implicações metafísicas com
brilhante clareza: [...] digamos que a teoria associacionista é dominada pela função do
verdadeiro” (LACAN, 1936/1998, p. 79).17 Em certo sentido, o associacionismo lidaria
16
Quanto a esse ponto, estamos totalmente de acordo com a indicação de Simanke: “Se Lacan emprega
‘experiência’ num sentido emprestado à fenomenologia hegeliana, é para conotar um processo construtivo
atrelado às peculiaridades da existência humana. Daí que sujeito e objeto apresentem esta
interdependência mútua, que não deriva mais, contudo, de premissas estritamente idealistas, mas sim de
sua origem comum, numa gênese que se pretende concreta” (SIMANKE, 2002, p. 230). Conhecimento
teórico e conhecimento prático não são independentes nem em Lacan e nem em Hegel.
17
A concepção de verdade no ensino lacaniano irá progressivamente se distanciar de um paradigma
metafísico de adequação entre nome e coisa que, aqui, é encontrado em sua versão moderna como
representação correta do mundo pelo sujeito. Para-além do princípio de realidade é um texto importante
na formação lacaniana, pois, nele, antes de outros textos e de modo mais explícito, Lacan parte de uma
com a verdade do fenômeno psíquico do mesmo modo como a consciência natural lida
com o saber na Fenomenologia: nenhuma delas reconhece a experiência que lhes
“transcorre por trás das costas” (HEGEL, 1807/2011, p. 81) no momento em que julgam
algo como verdadeiro ou como falso. Ambas lidam com o objeto de modo unilateral,
pois não percebem suas predeterminações na constituição do objeto, isto é, não
reconhecem o limite de seu saber atuando na formação do objeto. Assim, elas
desconsideram o processo de vir-a-ser do objeto e ofuscam o processo de autorrevelação
da verdade.
Lacan reconhece a importância de uma ideia de movimento e de processo como
a dinâmica própria da experiência analítica: “Aliás, o valor objetivo de uma pesquisa é
demonstrado como a realidade do movimento: pela eficácia de seu progresso”
(LACAN, 1936/1998, p. 91). Portanto, com Lacan, e a partir de Hegel, poderíamos
dizer que quanto maior é o zelo pela verdade, maior é o desconhecimento da verdade.
No caminho de busca por garantias da verdade, o desejo de conhecimento da ciência se
depara com seu próprio limite e termina por encontrar apenas seu próprio saber onde
deveria encontrar a verdade, isto é, onde acreditava estar o objeto investigado encontra
somente suas próprias categorias através das quais apreende o objeto. Eis que a busca
por garantias de verdade nada mais revela do que “o assim chamado medo do erro”, isto
é, “medo da verdade” (HEGEL, 1807/2011, p. 72).
Lacan irá explorar profundamente a temática do erro, ao ponto de encontrar no
próprio fenômeno do erro (seja em atos falhos, lapsos, trocadilhos) uma forma de
manifestação da verdade “inconsciente”, precisamente por ela ser uma verdade que só
se manifesta em experiências não submetidas ao medo e à necessidade de garantia de
verdade, isto é, de uma resposta vinda do Outro que circunscreva e defina o Eu do
sujeito.18
compreensão de história da metafísica para criticá-la como a história da busca por verdade, busca por
garantias de verdade. Em suas facetas científicas, dentre elas o associacionismo, essa vontade de verdade
propriamente humana se revela como função do verdadeiro e como princípio de hierarquização
epistêmica (e inclusive moral) da experiência do sujeito e dos fenômenos em geral. Como que
distinguindo a verdade da “função do verdadeiro” e rivalizando com o aporte verificacional do
conhecimento científico próprio da psicologia, Lacan afirma: “a verdade é um valor que corresponde à
incerteza com que a experiência vivida do homem é fenomenologicamente marcada, e que a busca da
verdade anima historicamente, sob a rubrica do espiritual, os arroubos do místico e as regras do moralista,
as sendas do asceta e as descobertas do mistagogo. Essa busca, impondo a toda uma cultura a primazia da
verdade no testemunho, criou uma atitude moral que foi e continua a ser, para a ciência, uma condição de
existência. Mas a verdade, em seu valor específico, é alheia à ordem da ciência” (LACAN, 1936/1998, p.
83).
18
Sobre a importância da reabilitação do erro na experiência subjetiva e na constituição de um novo
registro epistemológico e ético do saber psicanalítico, ver: IANNINI, 2013, especialmente p. 135-139.
Segundo Hegel, a consciência que não leva adiante a “angústia ante a verdade”
e, desse modo, permanece submetida ao medo do erro disfarçado de “zelo ardente pela
verdade”, encontra como resposta somente a afirmação vazia da “vaidade” ou do
“sentimentalismo” de um eu abstrato, unilateral e egoico incapaz de satisfazer suas
pretensões e demandas:
Vaidade essa capaz de tornar vã toda a verdade, para retornar a si mesma e
deliciar-se em seu próprio entendimento; dissolve sempre todo o pensamento,
e só sabe achar seu Eu árido em lugar de todo o conteúdo. Esta é a satisfação
que deve ser abandona a si mesma, pois foge o universal e somente procura o
Ser-para-si (HEGEL, 1807,/2011, p. 77).
Parece que tanto Hegel quanto Lacan irão criticar a noção de Eu – bem como o
discurso científico moderno que o associacionismo ressoa – na medida em que
descobrem-no baseado numa instância auto-identitária normativa não crítica e não
reflexiva de sustentação do saber e de manifestação da verdade. Resguardadas as
devidas diferenças e proporções que questionaremos nas próximas seções, ao atribuírem
um papel imprescindível à alienação na constituição do sujeito, esses autores admitem
uma ruptura interna no ego: reconhecem na “vaidade” e na imagem narcísica do Eu uma
função de defesa ante a ameaça disruptiva da verdade.
Assim, podemos compreender melhor por que Lacan afirma que a verdade não
pode ser reduzida a uma função transcendental cujo fim seria a garantia da possibilidade
do conhecimento verdadeiro (Cf. LACAN, 1936/1998, p. 78), isto é, reduzida à função
metafísica do verdadeiro. A verdade “científica” que Lacan tem em vista não é exterior
ao seu objeto, tampouco pode ser entendida como um predicado do saber ou uma
constatação de evidências. Nisso, mantendo a especificidade das pretensões de seus
objetivos, Hegel e Lacan estão juntos:
o conhecimento científico requer o abandono à vida do objeto; ou, o que é o
mesmo, exige que se tenha presente e se exprima a necessidade interior do
objeto. Desse modo, indo a fundo em seu objeto, esquece aquela vista geral
que é apenas a reflexão do saber sobre si mesmo a partir do conteúdo
(HEGEL, 1807/2011, p. 58).
Aqui tocamos num ponto determinante para Lacan, pois envolve o problema das
imagens. Definir uma realidade verdadeira e legítima é o que a psicologia fez até então,
correndo o risco de pensar uma noção, de certo modo até paradoxal, de realidade falsa,
ilusória e enganadora. Lacan é sensível a essa problemática pelo fato de que ele
pretende justamente conceber uma noção de realidade e de imagem que comportem o
19
Como uma hipótese interpretativa, talvez pudéssemos dizer que fundar uma noção de real para além da
função do verdadeiro é o grande desafio que vai levar Lacan a operar uma cisão fundamental e
instransponível entre real e realidade, e contra toda forma de realismo científico.
erro, a ilusão e a mentira como determinações positivas do saber, afinal: “Aquele que
contesta ao louco que o que ele diz não é verdade, não divaga menos que o próprio
louco” (LACAN, 1946/1998, p. 178).
Os delírios, alucinações, crenças, juízos, lapsos de memória, chistes, devem ser
reconhecidos dentro de sua verdade própria, como experiências vividas do sujeito que
são relatas ao analista. O maior erro que distancia a psicologia de qualquer critério
científico de verdade seria justamente cindir a experiência a partir de um dualismo
metafísico, cuja consequência seria a hierarquização epistemológico-moral da distinção
entre uma realidade verdadeira e uma realidade falsa que leva ao desprezo pela fala do
paciente. Por isso, Lacan diz: “Se quisermos reconhecer uma realidade característica das
reações psíquicas, não convém começarmos por escolher entre elas: é preciso começar
por não escolher”, ou seja, atribuir “uma presunção de significação a qualquer rebotalho
da vida mental” (LACAN, 1936/1998, p. 85).20
Conforme afirma Simanke: “A psicologia associacionista assimila os fenômenos
alucinatórios à ordem sensorial” (SIMANKE, 2002, p. 196). Ora, o desafio é retomar a
psicanálise fora do pathos associacionista e de tudo o que ele carrega de realismo e de
organicismo, o que, no momento, significa conceber a alucinação fora do binarismo da
função do verdadeiro. Apesar de a psicanálise ainda conservar resíduos associacionistas
em sua doutrina, se ela representa uma importante mudança no quadro das ciências
psicológicas será pelo fato de a experiência freudiana introduzir o desafio de pensar a
radicalidade das reações psíquicas. É o que ficará claro mais à frente.
A alucinação não é uma sensação submetida ao julgo da adequação à realidade,
mas sim uma imagem irredutível à realidade fisiológica das sensações e das percepções,
sejam elas de origem visual, tátil, olfativa ou mesmo neurológica. Caso venhamos a
20
Difícil não perceber um paralelo hegeliano nessas considerações: “Portanto, não precisamos trazer
conosco padrões de medidas, e nem aplicar na investigação nossos achados e pensamentos, pois
deixando-os de lado é que conseguiremos considerar a Coisa como é em si e para si” (HEGEL,
1807/2011, p. 79). É a fala do sujeito que porta a verdade, a Coisa do sujeito, sendo um desvio corrosivo
da psicanálise aquelas teorias e práticas que buscam tratar o sujeito através do fortalecimento do eu,
concedendo-lhe uma total unificação consigo mesmo. Aqui, como está claro, Lacan ainda não desenvolve
explicitamente essa problemática, porém já é possível perceber as razões de seu desconforto com esse
tipo de perspectivas, o das chamadas egopsychologies. Antes de oferecerem uma solução aos conflitos
dos sujeitos, elas não fariam mais do que submetê-los a um padrão de medida pré-concebido e exterior a
eles próprios. Muitas antes de que promover um Eu saudável no enfermo, essa atitude se revela como
uma tentativa de cerceamento da singularidade e diferença do desejo do sujeito na medida em que o reduz
a alguma realidade normativa: trata-se de concepções de cunho adaptativo na qual o desejo do sujeito é
levado a se identificar ao eu do analista, a se ajustar à realidade do analista. Em 1953, no Discurso de
Roma, Lacan formula plenamente esse problema: “só o exercício dessa dialética permite não confundir a
experiência analítica com uma situação a dois [...]: buscar um aliado, dizem eles, na ‘parte sadia’ do eu do
paciente, para reformular a outra parte à medida da realidade. E o que é isso senão refazer o eu do
paciente à imagem do eu do analista?” (LACAN, 1953/2003, p. 150).
fazer jus aos fenômenos psíquicos, as sensações e percepções devem ser compreendidas
como um fenômeno de conhecimento, não como mecanismos biológicos/orgânicos
elementares que estruturariam a realidade do animal ou do humano.
Todo materialismo ou idealismo que não reconhece a atividade do sujeito na
organização da forma (no alemão, Bild), das imagens, do saber, permanece aliado a um
realismo ingênuo, versão pretensamente científica do dualismo metafísico. Nesse
sentido, caso se queira fazer valer a experiência freudiana, tanto as percepções triviais
quanto as alucinações discordantes deverão ser compreendidas como um fenômeno de
conhecimento e, enquanto tal, submetidas à função da imagem para além da
objetificação do conhecimento herdada da psicologia clássica, para além do princípio
de realidade. Segundo Lacan, os resíduos associacionistas da teoria freudiana estariam
no “surpreendente” recurso de Freud ao modelo percepção-consciência:
a nossa experiência [...] nos dissuade de conceber o eu como centrado no
sistema percepção-consciência, como organizado pelo ‘princípio de
realidade’, no qual se formula o preconceito cientificista mais contrário à
dialética do conhecimento, e nos indica que partamos da função de
desconhecimento que o caracteriza em todas as suas estruturas (LACAN,
1949/1998, p. 102-103).
21
No próximo capítulo, veremos como Lacan propõe uma solução para a “falha cientificista” da teoria
freudiana por meio de uma teoria da formação do Eu baseada numa função de desconhecimento, função
essa que, em certa medida, estará de acordo com uma “dialética do conhecimento” (paranoico).
próprio homem que soubera forçar os limites do inconsciente pelo poder de
sua dialética (LACAN, 1948/1998, p. 119).
22
O uso do termo realismo para se referir aos problemas da psicologia científica não é aleatório nem
desprovido de sentido. As vezes em que esse termo aparece na obra de Lacan estão relacionadas à
suspeita crítica politzeriana quanto à psicologia clássica e sua pretensão objetivante da verdade. De todo
modo, esse anti-realismo também pode ser notado se pensarmos a partir de Hegel. Para Iannini: “Um dos
resultados de tratar o material clínico segundo categorias como saber e verdade é a possibilidade de
desmistificar um certo realismo epistemológico que ainda insistia aqui e ali nas formulações de Freud”
(IANNINI, 2013, p. 31). Além disso, um realismo epistemológico condenaria a noção de inconsciente a
algo como uma nova instância psíquica cujo aspecto substancialista determinaria as verdades mais
primordiais do sujeito, tornando a psicanálise algo mais próximo de uma investigação das profundezas da
alma do que uma técnica que trabalha na superfície do discurso do sujeito.
libido como conceito energético significa encontrar aí a possibilidade de afirmar um
saber positivo para a psicologia através da dinâmica relativa aos fatos dos desejos:
Como conceito energético, ao contrário, a libido é apenas a notação
simbólica da equivalência entre os dinamismos que as imagens investem no
comportamento. É a própria condição da identificação simbólica e a entidade
essencial da ordem racional, sem as quais nenhuma ciência poderia
constituir-se. [...] Os elementos de uma determinação positiva foram assim
introduzidos entre as realidades psíquicas que uma definição relativista
permitira objetivar. Essa determinação é dinâmica ou relativa aos fatos do
desejo (LACAN, 1936/1998, p. 94-95)
25
Essa maneira de reconhecer no desejo uma tensão sexual não restrita à autoconservação instintiva (à
mera necessidade ou à adequação comportamental do indivíduo ao meio), mas ligada, ao contrário, a uma
função autodestruitiva (negativa, inadaptada à realidade e insuficiente organicamente) ao mesmo que o
aproxima de uma função de equivalência expõe o impulso teórico que faz Lacan compreender a noção de
desejo antes como Begierde do que como Wunsch, palavra empregada por Freud que comumente é
traduzida por desejo. Lacan costuma entender Wunsch como algo muito mais próximo das volições e
apetites do indivíduo do que da função formativa fundamental que reconhece no desejo. Em certo sentido,
esse modo com o qual Lacan tende a conceber a noção psicanalítica de desejo já pode ser prematuramente
identificado na Tese: “A inovação de Freud nos parece capital no sentido em que ela traz à psicologia
uma noção energética, que serve de medida comum a fenômenos muito diversos. Trata-se da libido, cuja
base biológica é dada pelo metabolismo do instinto sexual. [...] Ela tende muito mais a se identificar com
o desejo, o eros antigo tomado numa acepção bem vasta, a saber, como o conjunto de apetites do ser
humano que ultrapassam suas estreitas necessidades de conservação” (LACAN, 2011, p. 252-253).
Ainda que aqui o desejo não esteja relacionado à negatividade hegeliana, desde então ele carrega a marca
da inadequação, do desencontro do sujeito frente à realidade estritamente biológica. Lacan situa o desejo
na Tese como uma “definição objetiva para os fatos psíquicos, antes ainda que o contato com o novo
hegelianismo cultivado no seminário de Kojève o levasse a situá-lo no ponto de origem da constituição do
sujeito, lugar que ele nunca mais desocupará” (SIMANKE, 2002, p. 178). Estamos no meio dessa
passagem.
26
Segundo Simanke : “ir além do princípio de realidade, como Lacan pretende nesse texto, significa,
portanto, ultrapassar o que resta de realismo ingênuo – e, em certo sentido, normativo – na doutrina
para si um Eu, uma imagem de si na qual se reconhece? Ou ainda, como se constituem
os objetos em vista do desejo sexual e como a realidade das imagens é responsável pela
formação do sujeito? Há que se observar o caráter duplamente reflexivo por trás dessas
questões que faz do movimento de formação da realidade e do indivíduo, do objeto e do
sujeito, das imagem e do Eu uma teoria não estritamente cientificista ou
metapsicológica.27 Seguir as referências de Lacan à filosofia hegeliana nos ajudará a
responder essas questões e a fornecer elementos para a compreensão da teoria do
imaginário nos anos 40/50.
freudiana, ressaltando a relatividade subjetiva, mas concreta, instaurada pelo conceito de realidade
psíquica na apreensão dos fatos psicológicos – realidade que, lembremos, é definida na Traumdeutung
como a realidade do desejo” (SIMANKE, 2002, p. 192). O conceito hegeliano de desejo começará a ter
um papel fundamental nesse projeto.
27
Nesse sentido, concordamos parcialmente com Borch-Jacobsen: “O jovem Lacan pegou de Freud o que
serviria a ele: a teoria do narcisismo e da identificação, em detrimento da teoria da sexualidade; a
‘psicanálise do ego’, em detrimento da ‘psicologia do inconsciente’ – devemos adicionar apenas que essa
seleção foi feita a partir de um ponto de vista inteiramente hegeliano” (BORCH-JACOBSEN, 1991, p.
28). Ainda que o ponto de vista hegeliano seja fundamental, ele está longe de ser o único a contribuir para
as referências lacanianas. Além do mais, há que se reconhecer a dimensão essencialmente sexual do
desejo que aparece na teoria do estágio do espelho, ainda que sob uma feição “social” e dialética.
A crítica lacaniana à psicologia é acompanhada de um diagnóstico de época e de
uma certa compreensão do sujeito moderno. No Discurso de Roma, mantendo o tom
duro com a psicológica científica e reafirmando a necessidade de sua crítica para o
desenvolvimento e delimitação da psicanálise, Lacan afirma:
Se é tão importante para nós afirmar que a psicologia não abarca o campo da
existência humana, é por ser ela uma particularização expressa dele,
historicamente válida, e porque a ciência que leva esse nome, em suma, é
inseparável de uma certa realidade pressuposta – a que se caracteriza como
um certo tipo de relação do homem consigo mesmo na chamada época
moderna (LACAN, 1953/2003, p. 148).
28
Nesse texto, Lacan emprega um modo de análise que progressivamente tenderá a não aparecer mais em
períodos seguintes. Ao final, ele procura pensar a experiência psicanalítica junto ao estatuto do histórico
do sujeito e ao contexto histórico/ontológico da civilização contemporânea, marcada pela guerra e pelo
signo absoluto da fissura que atinge o âmago do homem moderno “livre” e o despedaça, restando à
análise reconstituir a possibilidade de sentido de sua experiência. Aqui, sentido e história parecem andar
juntos, o que gera uma concepção de “cura” específica a esse período de seu ensino. Tal modo de lidar
com a experiência analítica, partindo de contextos ontológicos/históricos e apostando na abertura de
sentido através da experiência lembra a tentativa da hermenêutica contemporânea de reconstrução de
sentidos num mundo marcado pela cisão e pelo esfacelamento da tradição. O mundo moderno gera suas
próprias formas de vida e suas próprias formas de sofrer, no entanto, como pensar a co-imbrição entre
diagnóstico de época e experiência da cisão sem cair nas armadilhas identitárias do sentido? Eis o grande
desafio que Lacan parece abraçar nos anos que seguirão. O resultado seria a afirmação de uma falta
completa de sentido ou de uma colonização completa do sentido? Relativismo irrestrito ou determinação
total positivista? Nenhum dos dois.
Lacan parece ver em Hegel a figura do arauto do estatuto histórico e ontológico
do sujeito humano em nossa época. Concordamos com Richard Simanke quando este
afirma que parece ser “a título de uma nova antropologia que o pensamento de Kojève
participa da elaboração das teses lacanianas” (SIMANKE, 2002, p. 398). Mas devemos
completar que esta antropologia não vem desacompanhada de um certo estatuto
ontológico.29 A interpretação kojèviana da história da humanidade como processo de
formação da consciência de si baseado na dialética do senhor e do escravo de Hegel
fornecerá a Lacan a possibilidade de erigir uma teoria não psicológica da constituição
do sujeito e da mútua relação entre sujeito e objeto (realidade) a partir de um critério
intersubjetivo e ativo que compreende a negatividade como instauradora do discórdia
que é a base das relações humanas. A figura da morte retrata bem esse caráter negativo
intrínseco ao ser humano, e é através de sua experiência que o humano articula a vida.
Lacan continua:
Aqui, o indivíduo natural é tido por nada, já que o sujeito humano
efetivamente o é diante do Senhor absoluto que lhe é dado na morte. A
satisfação do desejo só é possível se mediatizada pelo desejo e pelo trabalho
do outro. Se, no conflito entre o Senhor e o Escravo, é o reconhecimento do
homem pelo homem que está em jogo, é também numa negação radical dos
valores naturais que ele é promovido, ou seja, que se exprime na tirania
estéril do senhor ou na tirania fecunda do trabalho (LACAN, 1949/1998, p.
123)
29
Lacan diz que o fenômeno da cultura, da arte, da escrita, da comunidade humana como um tudo,
apresentará “problemas sempre insolúveis para toda antropologia que não estiver liberada do realismo
ingênuo do objeto” (LACAN, 1933/2011, p. 400). É certo que, nesse citação, Lacan não está se referindo
a uma “antropologia hegeliana”, entretanto, isso não é menos significativo para o fato de que a leitura
kojèviana da Fenomenologia do Espírito se encaixará muito bem nessa exigência lacaniana, como vimos
no capítulo passado. Afirmar uma “tese social” sob a figura da dialética do senhor e do escravo é como
que fazer um diagnóstico de época do estatuto da sociedade moderna, fazendo dela uma espécie de
consequência, mas também de causa da função da agressividade na psicanálise e na gênese do sujeito.
psychologicus”, o que Lacan promove como prática e como teoria é a “terapia” 30 desse
ser. Compreender alguns traços constitutivos dessa “terapia” é o que está em jogo nesse
capítulo.
30
Aqui, o termo terapia não é utilizado para fazer referença a psicanálise como alguma espécie de
psicoterapia, o que Lacan rechaçaria completamente. O termo terapia é usado no sentido de superação de
um pathos, possibilidade de mudança do modo de autocompreensão do sujeito moderno.