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Bonecos de Luva
Paco Paricio e Pilar Amorós

Quando falamos em bonecos de luva, logo imaginamos esses bonecos simples que, bem
manipulados, são tão afetivos que rapidamente provocam grande efeito junto ao público. Federico
Garcia Lorca sentiu grande predileção por eles e os chamava de títeres de cachiporra:
“O guigñol é a expressão da fantasia do povo e o ambiente de sua graça e sua inocência...
... os palavrões adquirem ingenuidade e leveza ditas por bonecos que mimam o encanto dessa farsa
rural...
... saudemos hoje no “La tarumba” a Don Cristóbal o andaluz, primo do Bululú galego e cunhado de Tia
Norica, de Cádiz1; irmão do monsieur guigñol, de Paris e tio de Don Arlequin de Bergamo, como um
dos personagens onde se perpetua a velha essência do teatro2.”
Tem outros nomes: curritos en Castilla, ou Barriga Verde em Galicia. Na Catalunha os putxinel-
lis também gozaram de muita admiração 3. A editora Millá publicou em catalão várias obras, a capa de
uma delas reproduzimos. A primeira edição de Teatro de Titelles, dessas pecinhas em catalão, foram
feitas antes da guerra civil de 1936; foram reeditadas no pós-guerra, mas já sem data para burlar a
censura da ditadura.
Um operário da seda da cidade de Lyon, chamado Laurent Mourguet, ficou sem trabalho em 1795
e decidiu ser mascate e dentista ambulante, valendo-se de boneco para atrair a clientela; assim nasceu o
guigñol no final do Séc. XVIII. Em 1804 abriu uma casa de espetáculo (teatro) dirigido
majoritariamente para o público adulto4. Este personagem tornou-se tão popular que é, provavelmente, o
boneco mais conhecido da nossa cultura, tanto que seu nome se incorporou ao espanhol para designar o
boneco de luva.
Os bonecos mais primitivos foram talhados em madeira, como este boneco tradicional russo; depois se
construiu também em cartão-pedra e ultimamente, em poliester, em espuma, látex, e outros materiais.
O vestido do boneco é de tecido; e é habitual entre os bonequeiros profissionais, usar dois: um
vestido mais ajustado que não se vê e que serve para introduzir a mão; nossos dedos se ajustam nos
espaços correspondentes; e um segundo vestido, sobreposto, que é o que o público vê e que se desenhou

1
La Tia Norica é uma companhia de teatro de bonecos com sede na cidade de Cádiz, atuante há quase 250 anos de
modo quase ininterrupto. É considerada a Cia. teatral de marionetes mais antiga da Europa e trabalha predominantemente
com a linguagem de fios e varas. (Nota do tradutor)
2
LORCA, Federico Garcia. Teatro Selecto, Retablillo de Don Cristóbal. Madrid: Escélicer, 1969.
3
O teatro de bonecos popular do Brasil é mais conhecido como Mamulengo na região do Estado do Pernambuco. Já
no Rio Grande do Norte é chamado Calunga, no Ceará é conhecido como Babau ou Mané gostoso. No Maranhão é Casemiro
Côco e na Paraíba é João Redondo. Existem denominações diversas para essa expressão dramática popular que mantém
características similares.
Em muitos países ainda existe um teatro de bonecos popular, conhecido pelo nome da sua personagem central:
VASILACHE, herói popular do teatro de bonecos Romeno; PUNCH e JUDY, casal, personagens centrais do teatro de
bonecos inglês que aparece em Londres pela primeira vez em 1662, com o nome de Pulcinella. TCHANTCHES, herói
popular do teatro de marionetes da região de Liége, Bélgica. KASPEREK, herói popular do teatro de marionetes da
República Tcheca. PULCINELLA, pai da maioria dos heróis populares, remanescente da commédia dell’arte. Napolitano de
origem, sabe-se que provém das farsas atelanas. KASPERLE, herói popular do teatro de bonecos alemão, parente próximo do
Pulcinella italiano e do Punch inglês, muito popular no início do século XIX. JAN KLASSEN, herói popular do teatro de
marionetes holandês, conhecido já a partir da segunda metade do século XVII. (Extraído de textos de Marek Wazkliel
publicados nas revistas da UNIMA Espanha, TITEREANDO, números 50 a 63). Nota do tradutor.
4
JACQUEMIN, L.. A la rencontre de guignol. Bourg-en-Bresse: Taillanderie, 1992.
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especialmente para o personagem, adequando-o a sua personalidade. Inclusive, alguns bonequeiros


mudam o vestuário de seus bonecos.
Os chineses, ainda que tenham se tornado conhecidos entre nós pelo teatro de sombras, praticam
esta técnica, aperfeiçoando-a ao extremo de poder atirá-lo para cima, durante a apresentação e voltar
pegá-lo introduzindo a mão na luva na posição correta, enquanto cai para continuar com suas lutas e
cabriolas.

As pernas
Alguns bonecos de luva, especialmente quando são personagens protagonistas, têm pernas
costuradas na roupa. São utilizadas para sentá-lo sobre a base do palquinho, quando fala diretamente
com o público. Ainda que estas pernas não sirvam para andar, porque quando o boneco caminha, elas
ficam parcialmente ocultas pelo palquinho, acrescentam um novo elemento que enriquece o espetáculo.
Alguns bonequeiros utilizam os dedos, indicador e anular da mão livre para introduzi-los nas
pernas que são ocas, para movê-las quando o boneco está sentado sobre a base do palquinho à vista do
público, criando assim um bom efeito cômico.
Existem diferentes maneiras de colocar os dedos na cabeça e mãos dos bonecos5. O peso da cabeça
pode obrigar-nos a colocar mais de um dedo nela; ao colocar os dedos, podemos realizar pequenos giros
de cabeça com o boneco6.
A forma mais habitual e a que recomendamos aos que iniciam é a que aparece na ilustração.

Mãos nuas
Com uma bola no indicador, e a mão nua ou metida numa luva, podemos praticar uma infinidade
de movimentos e jogos. É uma excelente simplificação que realça a gestualidade da mão.
A vantagem desta técnica elementar, além da simplicidade de construção, é que o público
observador vê em todo momento a colocação da mão e pode analisar e estudar as peculiaridades do
movimento.
Numa oficina com principiantes, esta técnica nos permite iniciarmos rapidamente na manipulação,
sem ter que passar pela etapa de confecção, que quase sempre é mais demorada e prolongada do que o
desejável.
É habitual dedicar muito tempo a confecção e menos a manipulação dos bonecos. Por isso a
“técnica da mão nua” nos permite iniciar quase que diretamente com o movimento, o jogo dramático, o
desenvolvimento e composição das cenas, a manipulação de objetos, etc..

Dissociação
Há um grande número de bonequeiros solistas que utilizam esta técnica para desdobrar-se em
múltiplos personagens, porque podem, além de manipular um boneco em cada mão, mudar de
personagem mediante pequenos truques e mentiras, sem perder o fio narrativo. Javier Villafañe 7
utilizou-a durante toda a sua vida como titeriteiro solista. Também escreveu belas peças que hoje são
encenados por diversos grupos de teatro de bonecos espanhóis e latino-americanos.

5
VALLVÉ, J. A.. El Titella de guant. Lleida, Virgili & pagès, 1987.
6
A bonequeira mexicana Virginia Ruano desenvolveu outra técnica mediante a qual gira o pescoço do boneco,
fazendo-o rodar com o auxílio "dedo coração" que fica no exterior do cilindro que forma o pescoço, oculto pela roupa do
boneco. RUANO, V. Manipulación de muñecos de funda o guante. México: Ed. Virfinia Ruano, 1983.
7
Javier Villafañe (1909-1996) nasceu na Argentina e é considerado um dos mais importantes titeriteiros da América
Latina. Escreveu inúmeras peças publicados em diversos países latinos inclusive Espanha. E com seu La Andariega percorreu
quase todos os países do continente se apresentando em teatros e nos mais longínquos povoados.
3

Brincar com as mãos


Vejamos este exercício criado pelos marionetistas ucranianos do Teatro de Bonecos de Harkov:
uma das mãos encarna um personagem charlatão e arruaceiro, falador ao extremo, que se movimenta
com gestos amplos e exagerados sem medida nem descanso. A outra mão do bonequeiro assume um
personagem oposto: prudente, lento, calmo e calado. Se encontram; e o charlatão fala sem parar, sem
dizer nada na verdade, emite uma turbulência de sons que parecem palavras, sem ser. Isso faz com que
concentremos nossa atenção no gesto e no tom dos sons. O personagem tranqüilo vai se impacientando
com vãs tentativas de interromper o charlatão; todas as tentativas são ignoradas pelo seu insuportável
interlocutor. Deixamos o final, sem definir, para que seja criado na improvisação deste exercício.

Pegar objetos
É muito difícil para a marionete (boneco de fios), e os bonecos de haste pegar objetos e levá-los de
um lado a outro. Os bonecos de luva ou os de vara, diferentemente, são mais apropriados para isso.
O bonequeiro americano George Latshaw nos ensinou que é muito útil construir as mãos do
boneco de tecido, confeccionadas de forma que a base de nossos dedos esteja em contato com o tecido.
O algodão, ou outro enchimento que avoluma os dedos e a palma da mão do boneco deve ficar atrás do
dedo do bonequeiro. Desta forma o tato que o bonequeiro tem para manipular os objetos é melhor. O
contrário ocorre quando as mãos são de madeira e temos que pegar e segurar escovas, bolsas e cestos.
Um conselho: o tamanho dos objetos que os bonecos movimentam deve ser desproporcionalmente
grande. Imaginemos um pente proporcional ao tamanho do boneco; quase não se verá. O costume é,
portanto, fazer estes objetos muito maiores para que o público os perceba com clareza. Esta
desproporção torna grotesco e divertido.

Improvisação com objetos


Um objeto pode ser um belo ponto de partida para uma improvisação ou para a criação de uma
cena com bonecos; estes jogos têm a vantagem de que nos obrigam a buscar o gesto próprio da
linguagem do boneco.
Os bonequeiros canadenses do Grupo Lampoon criaram várias cenas com dois simpáticos
palhaços, bonecos de luva, manipulando objetos. Propomos outro exercício para praticar, baseado no
espetáculo criado pelos canadenses:
Dois personagens tratam de empilhar caixas, um de cada lado extremo do palquinho. Cada um rouba a
caixa do outro até que mutuamente se descobrem, se enganam, perseguem, assustam, etc. Por fim,
decidem unir seus esforços para construir uma única pilha. Os bonecos poderão, inclusive, subir se as
caixas forem suficientemente grandes permitindo ocultar o braço do bonequeiro.
Improvisações similares podem acontecer com objetos como: uma bola, um guarda-chuva, um
pedaço de tecido, uma corneta, uma escova, uma bolsa.

O truque do objeto duplo


Quando se trabalha com um objeto e se começa a criar com ele uma cena é freqüente enfrentarmos
obstáculos; mas o eixo/vara que serve para fazê-lo voar dificulta para colocá-lo na cesta. Antes de
complicarmos a vida com varas e mecanismos intercambiáveis, é mais prático preparar dois ou mais
objetos idênticos, mas com diferentes sistemas de manipulação.

Teatro popular
O boneco de luva é por tradição transgressor e desbocado, sua peculiar história o situa no espaço
da rua ou dos botecos. A ausência de textos escritos e o ambiente onde se situa, tem lhe permitido, com
4

freqüência, burlar a censura. Serve de exemplo esse boneco japonês que, ainda que os japoneses sejam
conhecidos entre nós por técnicas mais sofisticadas, eles também possuem um teatro de bonecos
popular, direto e sem vergonha.

*AMORÓS, Pilar e PARICIO, Paco. Títeres de Guante. In: Títeres y Titiriteros - El lenguage de los
títeres. Binéfar: Pirineum, 2005. Páginas 97 a 105.
Tradução: Valmor Níni Beltrame. Barra da Lagoa, Ilha de Santa Catarina - dezembro de 2005.

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