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Como

Morar na China sem Engolir


Sapo nem Comer Cachorro
Diário de uma Família Brasileira em Shenzhen

Volume I


Chris Dumont




2016 – Direitos Reservados
Como Morar na China
sem Engolir Sapo nem Comer Cachorro
Diário de uma Família Brasileira em Shenzhen
de Chris Dumont Revisão e Projeto Gráfico
Casa do Escritor
casadoescritor.com.br ________________________________

Dumont, Chris,
Como Morar na China sem Engolir Sapo nem Comer Cachorro - Diário de uma
Família Brasileira em Shenzhen. – Volume I– 1 ª Edição ISBN: 978-
1541070707
Chris Dumont – São Paulo, Casa do Escritor: 2016
1. Viagens 2. Ásia 3. China I - Título Reservados todos os direitos. Nenhuma
parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia, microfilme, processo
fotomecânico ou eletrônico sem permissão expressa do autor.





O primeiro livro que li antes de começar esta aventura além-mares foi Laowai,
da Sônia Bridi, de onde copio o mesmíssimo texto de abertura: “Viagens são
fatais ao preconceito, à discriminação, à visão estreita, e, muitos do nosso povo
precisam terrivelmente de viagens por causa disso. Uma visão ampla, integral e
caridosa das pessoas e das coisas não pode ser adquirida vegetando em um
cantinho do planeta durante a vida inteira.”

Mark Twain




Agradecimentos À minha “equipe técnica” que
me incentivou a escrever este livro e foi
responsável pelo copidesque, revisão
ortográfica, suporte tecnológico, divulgação, por
segurar minha onda todas as vezes que eu quis
desistir, por evitar que eu jogasse meu
computador contra a parede quando eu me
esquecia de salvar o texto recém-escrito, que
passou antivírus, consertou mouse e,
principalmente, que sempre permaneceu ao meu
lado me dando injeções de autoconfiança e
muito amor. Um agradecimento muito especial
ao meu marido Luiz.


Na China, há muitas famílias de brasileiros vivendo as dificuldades e as alegrias
das descobertas de um país tão diferente do nosso. Este livro, no entanto, vai
muito além. Não é um simples diário de uma jovem mãe de uma grande família.
Christiane Dumont, ao lado do seu esposo Luis e quatro filhos, crianças e
adolescentes, já completam seis anos de China. E ela continua a procurar
tenazmente conhecer e conviver, na diversidade e na harmonia com esta cultura
tão diferente da brasileira.
Além de naturalmente curiosa, Christiane tem uma formação de comunicadora,
que a leva a observar os pequenos detalhes do dia a dia dos chineses. Ela nos faz
rir e chorar. Mais do que isso, Christiane aprendeu o mandarim e continua
estudando e viajando por esse país continental, diversificado e com uma cultura
ancestral milenar que encanta. A sua personalidade curiosa tornou-se mais
libertadora, compreensiva, generosa a ponto de não ser apenas acolhida pelos
chineses, mas também acolhê-los, aprendendo com eles e respeitando o
diferente.

Arcelina Helena Publio Dias
Sumário
Prefácio
Como tudo começou
Tchau, Chico... Tchau, Brasil!
Família “mala-sem-alça”
Me sentindo em casa
Afinal de contas, onde fica Shenzhen?
Moro num país tropical, abençoado por Deus
Fazendo compras em Shenzhen - 1
Fazendo compras em Shenzhen - 2
Chamem os comerciais
Casamento na China
Apresentando minha empregada: Liu
O menino do pão de queijo
Momento escatológico
Existe Natal na China?
Pequim, aqui vamos nós!
Como se diz feijoada em mandarim?
Flores da Guerra
Sujo ou limpo?
Chinese New Year
Nove meses mais tarde
DVD pirata? Corta!
Aborto, contra, a favor ou muito pelo contrário?
Os filhos da China
Conectando os pontos
Primeira aventura hospitalar
Conhecendo Macau
Quem mandou querer trabalhar?
Torta na cara
Chinglês
Dia de Tufão
Ménage à trois
Aventuras de uma família brasileira em Changchun - 1
Aventuras de uma família brasileira em Changchun - 2
Me arruma um ocidental aí!
Crianças da terceira cultura
Professora, essa conta não bate
De volta à “patriamada”, Brasil
O resgate
Shenzhen, definitivamente nosso novo lar
A China não é para amadores
Perdido na China
Onde há um desejo, há um caminho
Cutucando onça com vara curta
Eu e Liu, Liu e eu
Baixaria
Da Baixaria para a Altaria
No meio do caminho havia muitas pedras
Café da manhã
Não tem lógica!
Feliz Aniversário, Luiz!
Favela da Maré
Como viver na China sem engolir sapo nem comer cachorro
Sobre a Autora

Prefácio

Em 2011, eu e minha família viemos morar na cidade de Shenzhen na China.
Assim que coloquei os pés aqui, decidi registrar nossas experiências em um blog
que foi hospedado durante cinco anos no jornal Gazeta do Povo.
Este e-book é o primeiro volume da coletânea dos posts que relatam nossas
aventuras no lado oriental do mundo, no período de junho de 2011 a dezembro
de 2012. Não esperem por análises político-econômicas nem antropológicas
sobre o surpreendente crescimento mercadológico da China. Este livro é uma
espécie de diário de bordo de uma família brasileira tentando sobreviver em um
país completamente diferente do Brasil. Importante ressaltar que algumas das
opiniões que expressei em 2011 foram mudando ao longo do tempo e hoje já não
refletem mais o que penso. Naquele tempo, um real valia quatro yuans. No
entanto, o interessante deste livro é justamente poder acompanhar de perto tanto
o nosso aculturamento como o desenvolvimento da cidade de Shenzhen que
possui apenas 35 anos.
Hoje, em 2016, ainda vivemos na China e nossos corações já pertencem um
pouco a este misterioso país que nos acolheu de olhos puxados e braços bem
abertos. Preparem-se, leitores, para viajar conosco nesta grande aventura cujos
vídeos (super mega amadores, por sinal) e as fotos você poderá acompanhar nos
links inseridos ao longo do texto e no site
https://comomorarnachina.wordpress.com/



Como tudo começou
Março 2011

Luiz, meu marido, foi para a China ano passado, onde passou 20 dias
trabalhando, e voltou completamente apaixonado. Para provar, fez uma tatuagem
no braço usando ideogramas em mandarim que querem dizer amor e família.
Como não sei nada de mandarim, não tenho certeza de que foi isso mesmo que
ele tatuou e, pelas mudanças que a China vem efetuando em sua personalidade,
tenho medo de descobrir outros significados menos nobres.
Bom, não bastasse estar apaixonado pela China, Luiz pediu emprego na filial
chinesa da sua empresa e conseguiu! A partir de 17 de julho de 2011,
passaremos a ser os mais novos moradores de Shenzhen (no sul da China, em
frente a Hong Kong). Além de mim e do Luiz, nossa família é composta por
Fernando, meu enteado de 21 anos, Mariana, Marcos e Eduardo, nossos filhos de
15, 12 e 8 anos, respectivamente. Em um país onde os casais só podem ter um
filho, começaremos de forma “super adequada”!

Da esquerda para direita, Dudu, Marcos, Mariana, Luiz, Chris e Fernando nas Muralhas da China em
2011


Assim que soube da mudança para a China, ainda no Brasil, passei por várias
fases.
Primeira – Negação: China, “Nin fe lando”! Não poderemos levar nosso gatinho
sob o risco de virar Shop Suei ou Gato Xadrez! E nossos pais? Longe de nós e
dos netos? “Su gilu ficá”.
Segunda – Aceitação: Lá é tudo super barato... É perto da Austrália, da Índia,
Tailândia, Japão. Num mundo globalizado, a China é logo ali.
Terceira – Euforia: Vamos ganhar dinheiro! Não sei se importo lâmpada de led,
peça de jet ski, cobertor de seda ou pashmina. As crianças, sabendo que iriam
para uma escola americana, já se viam cantando as músicas do “High School
Musical” felizes pelos corredores.
Quarta – Medo: Onde vamos morar? O que vamos comer? Como vamos nos
comunicar? O que fazer com os móveis daqui? O que a gente leva e o que a
gente deixa? E se a gente ficar doente? E se, e se, e se…?
Quinta – Praticidade: Resolvi parar de reclamar e me preparar para esta nova
fase da vida. Antes de sair do Brasil, li os excelentes livros Laowai, da Sônia
Bridi, e Um Brasileiro na China, do Gilberto Scofield, além de fazer cursos de
importação/exportação e, lógico, de mandarim.
Ah, o mandarim... “que simplicidade”: 50 mil ideogramas! Mas dá para se
comunicar com apenas 2.000! Os verbos não flexionam. Não tem presente,
passado ou futuro. Não tem masculino ou feminino. Não tem artigo definido ou
indefinido. Existem 5 tipos de entonação e, para saber qual delas usar, você
aprende uma segunda língua: o pinyin. Ou seja, promoção de aniversário:
compre uma língua e leve duas! O Luiz baixou um aplicativo no iPhone que
traduz chinês para português e vice-versa. Você fala a frase em uma língua e ele
transcreve para a outra. Fui testar. Falei a única frase do meu curso que consegui
decorar: ”Wo shi baxi ren” (Eu sou brasileiro). O iPhone traduziu: “Oitenta e
sete mil marionetes”! Não se desespere, Chris. O iPhone deve estar com defeito.
Socorro!
Tchau, Chico...
Tchau, Brasil!
Maio 2011

Luiz já foi para a China e estou aqui na maior contagem regressiva com as
crianças. Ontem à tardinha, aconteceu uma coisa muito chata: atropelaram e
mataram o Chico, nosso gatinho. Foi tudo muito rápido. Ligaram da casa vizinha
avisando do acidente. Corri com a Mariana na esperança de encontrá-lo vivo,
mas foi em vão. Só nos restou cobri-lo com uma toalha, colocar em um saco e
pedir ao pedreiro da obra ao lado para enterrá-lo no bosque. Logo em seguida, os
meninos chegaram da escola e tive que contar-lhes a má notícia, sem saber que
tipo de reação eles teriam. Jantamos calados, choramos na propaganda de Cat
Show, que está no ar agora, e fomos dormir às 21h30 com um imenso sentimento
de perda.
A manhã seguinte foi mais complicada. Esta era uma das poucas horas em que o
Chico estava em casa conosco (o resto do tempo ele vagava pelo condomínio
com seus “amigatos”) e obedecia sempre ao mesmo ritual: ficava na porta do
quarto esperando a gente abrir, pulava na pia do banheiro para beber água e
depois começava a miar esperando pela comida. Depois de seu cereal matinal,
subia na pia da cozinha procurando sobras de mamão (é, mamão!), comia e ia se
deitar no seu cobertor. Vidão! Enfim, tivemos que tomar o café da manhã
sozinhos, em silêncio, e empurrando o pão para dentro da garganta presa.
Aí fiquei pensando no que minha analista falou sobre animais domésticos
taparem buracos emocionais e comecei a tentar entender o que essa perda
significou para todos nós. Minha conclusão é que o Chico e a China estão
intimamente relacionados. Nós sabíamos que o Chico não iria conosco e que
daqui a algumas semanas nós teríamos que doá-lo para algum vizinho. Mas o
tempo que ainda nos restava com o Chico “era nosso” e nós o estávamos
administrando com todo cuidado.
E não só o tempo com o Chico, mas todos os momentos que começamos a viver
desde a ida do Luiz. Cada fim de semana, com suas sextas-feiras de pizza
e DVD, almoços com meus pais, encontro com amigos no shopping, churrasco
com os primos, cinema e japonês no domingo. Cada um destes momentos estava
sendo saboreado vagarosamente, como se come um pedaço delicioso de pudim,
indo pelas beiradas, vigiando as colheradas que vão restando.
A morte do Chico foi uma quebra nessa nossa administração do tempo.
Roubaram de nós os dias que ainda nos restavam para curtir sua presença peluda
e quentinha em nossa casa. E esta ruptura nos deixou face a face com a realidade
que está por vir: tudo isso vai acabar e recomeçar de uma forma completamente
diferente e totalmente imprevisível.
De agora em diante, vamos continuar saboreando nossos últimos momentos no
Brasil junto aos amigos e à família. Mas vai ficar faltando um pedacinho: o
pedacinho do Chico.
Família “mala-sem-alça”
13 de julho de 2011

Como o Luiz já estava morando na China, eu tive que viajar sozinha com a
cambada de filhos, fazendo um pit stop em Paris, para a criançada começar a
entender que o mundo não se resumia apenas a Rio, Curitiba e Disney.
Fizemos cinco malas enormes com todas as roupas que conseguimos levar para
podermos viver pelo menos dois meses na China, antes da mudança chegar.
Além disso, carregamos mais 4 mochilas (uma para cada filho), mais a minha
mochila, recheada de remédios, cremes e livros (que pesava quase 10 quilos),
minha bolsa de mão e a da Mariana. Faltavam apenas o frango, a farofa e o
cachorro (Ops! Cachorro na China? Melhor não).
A mochila do Dudu vale um comentário: ele selecionou os itens essenciais para
sua sobrevivência, conforme recomendei, entre eles, sua arminha de água,
trezentos reais em notas fotocopiadas que os avós deram como vale-presente e a
tesourinha da escola. Conclusão: parecia um protótipo de terrorista! Na primeira
revista no Brasil, confiscaram a tesoura. Na segunda, na França, confiscaram a
arminha. Só sobraram os reais falsos. Pobre Dudu!
Chegando a Paris, resgatamos as malas e começamos o nosso tour pelo
Aeroporto Charles de Gaulle. Parênteses: Gente, sinceramente, dá até vergonha
de pensar em como são os nossos aeroportos comparados à grandiosidade e
qualidade da infraestrutura dos grandes aeroportos do mundo. E olha que o
Charles de Gaulle nem é referência de um bom aeroporto! Fecha parênteses. Foi
aí, que nos demos conta de onde veio a expressão “O cara é um mala”.
Estávamos com uma bagagem que mal cabia em dois carrinhos que, aliás, não
serviram para muita coisa, pois como são proibidos de entrar nos trens (sim,
existe metrô para os passageiros se locomoverem entre os três terminais do
aeroporto), tivemos que puxar as malas de vagão para vagão, de escada para
escada até chegar ao locker e largar parte da malaria. Coitado do Dudu: com
apenas 8 anos, além de carregar uma noite mal dormida nos ombros, ainda
puxava a mala “mais leve” de 19 quilos, carregava sua mochila nas costas e a
minha bolsa de mão pendurada no pescoço!
A verdade é, que depois de cinco dias de Paris, ficamos finalmente cara a cara
com a realidade: a fila do check-in da Air China! Dezenas (ou seria centenas?
Eles sempre parecem mais!) de chineses e seus carrinhos lotados de malas,
falando alto, furando a frente um do outro, rindo e olhando curiosos para nós, os
únicos ocidentais da fila.
Marquinhos achou um golfinho de plástico azul e guardou como amuleto.
O atendimento no check-in era em francês e foi tranquilo, mas, dentro do avião,
tivemos nossa segunda aula de adaptação: a tripulação não falava inglês! Eu pedi
“some water” para nossa aeromoça e ela coçou a cabeça (todo chinês coça a
cabeça quando não entende alguma coisa). Tentei em chinês: “Wo yao he shui”.
Ela abanou a cabeça como se tivesse entendido, eu me orgulhei da minha
habilidade em aprender novas línguas, e fiquei esperando pela água.
Onze horas mais tarde, ainda sem água, depois de termos visto o dia amanhecer,
e não anoitecer, como esperado, chegamos a Pequim. Uma névoa espessa cobria
o aeroporto a ponto de não enxergarmos os fingers. Aí, me lembrei dos livros
que li sobre a China: esta névoa não é névoa, é poluição. Sim, poluição que,
aliás, veríamos também em Shenzhen.
Desembarcamos com a chinesada toda e Marquinhos achou outro golfinho azul!
Seria uma mensagem dos céus dizendo que nossa vida transcorreria em águas
mansas e claras? Não, não era bem isso. Eram na realidade penduricalhos de um
chinelo de dedo usado por uma chinesa que estava em nosso voo. Havia dezenas
deles pendurados em cada chinelo, nos apresentando, em primeira mão, o
surpreendente China Fashion Style. Olhei para o meu tradicional tênis branco e
segui em frente me perguntando se um dia, dos meus pés, também cairiam
mamíferos aquáticos coloridos. Melhor nem pensar!
Me sentindo em casa
17 de julho de 2011

Em Pequim, novamente em um aeroporto fantástico, fomos comer alguma coisa
de almoço ou jantar ou café da manhã (havíamos perdido definitivamente a
referência de tempo). Escolhemos um restaurante, o único cujo nome
conseguimos ler, sentamos à mesa e ficamos esperando alguém nos servir.
Parecíamos invisíveis diante de várias atendentes que tentavam não cruzar seus
olhares com os nossos.
Quando, finalmente, fisgamos um olhar e chamamos a mocinha, ela logo
empurrou uma outra, que puxou mais uma, que chamou uma quarta, que
finalmente veio até a nossa mesa (com cara de quem estava indo para a forca), e
que “falava” inglês. Depois de muito aponta dali, aponta daqui, acabamos
comendo a foto do cardápio que nos pareceu menos arriscada (se os cardápios
não tivessem fotos, morreríamos de fome): sorvete com Coca-Cola e um
inofensivo caldo de carne com macarrãozinho. Detalhe: eu e Mari queríamos
Coca-Cola Diet, Marcos e Nando queriam Coca normal e Dudu queria Fanta! A
gente foi falando: Zero, Diet, Light, Fanta, Sprite para ver se conseguia agradar
todo mundo. Resultado: na hora de pagar a conta (antes de trazer a comida,
como é o hábito daqui), a atendente tinha registrado 10 refrigerantes, dois para
cada um!
Chegada a hora de experimentar a sopinha, depois de várias tentativas de
equilibrar a carne no hashi de plástico, lembrei-me de todos os cachorros, gatos e
escorpiões que povoaram meus pesadelos nos últimos meses, fiz cara de
satisfeita para as crianças não perceberem, e me atraquei com o sorvete.
Sete horas mais tarde (quatro de aeroporto e três de voo), chegamos a Shenzhen.
Luiz alugou uma van para levar a família e sua “pequena” bagagem para casa.
Do lado de fora do aeroporto, fazia uns 30 graus às 10 da noite como no Rio de
Janeiro (lembrem-se de que estávamos vindo de Curitiba e Paris, dois lugares
“civilizados” em termos de clima), e a van não chegava. Um cesto de acrílico
cheio de isqueiros chamou minha atenção. Como era proibido entrar com
isqueiros no aeroporto, as pessoas largavam os seus ali e, na saída, pegavam
outro de volta. Uma chinesa tentou vender para os gringos, no caso nós, um
isqueiro que ela “pegou” do cesto. Hummm, estou me sentindo estranhamente
em casa...
A van não apareceu. Luiz ligou para o tradutor que ligou para o motorista que
ligou de volta para o tradutor que ligou para o Luiz e soube que a van tinha,
subitamente, parado de funcionar. Hummm, a sensação de estar no Brasil
aumentou… Pegamos um táxi, ou melhor, dois e nos dividimos: Luiz na frente e
o nosso motorista seguindo o do Luiz, o único de nós que sabia dizer o endereço
de casa em um chinês duvidoso, mas compreensível. Nosso motorista tentou
ultrapassar o do Luiz (como assim, se ele o estava seguindo?), foi fechado por
outro táxi e parou para discutir. Perdemos contato com o carro do Luiz e com o
mundo! O taxista falava com a gente como se estivéssemos entendendo alguma
coisa. A gente mostrava o endereço da casa no celular escrito em caracteres
romanos e o motorista balançava as mãos e a cabeça freneticamente dizendo
“bú, bú, bú” (não, em chinês). Realmente patética a nossa inexperiência,
achando que o sujeito ia conseguir ler inglês, ainda mais, na tela de um celular.
Paramos para pedir ajuda. Tentamos falar com uma chinesinha de óculos (como
se óculos fossem sinônimo de inteligência), mas obviamente, ela não entendeu
nada. Ficaram taxista e chinesinha rindo, e nós, extremamente mal-humorados,
sem achar a menor graça. Conhecem a sensação de uma criança que se perde na
praia lotada do verão? Aquela sensação de que seus pais nunca mais irão te
encontrar e você vai ficar sozinho no mundo para sempre? Pois é, depois de mais
de 24 horas tentando chegar à China, foi mais ou menos assim que nos sentimos.
Lembrei então que talvez conseguíssemos ligar do meu celular do Brasil para o
celular do Brasil do Luiz e, finalmente, reestabelecemos contato com o planeta
Terra. Luiz foi guiando: “Depois do posto, antes da passarela, vira à direita, vira
à esquerda”... e a gente cutucando o motorista, apontando de um lado para o
outro e gemendo: “Lá! Hã, hã hã, não! Não! Here, here! Hã, hã, istópi, istópi”!
Chegando finalmente em nosso condomínio, o motorista não conseguia achar a
nossa casa e ficava nos perguntando por aonde ir. Fernando perdeu a paciência
de vez e mandou o cara, em português é claro, para lugares pouco dignos de
estar neste livro. O taxista, sem entender nada, sorria simpaticamente para a
gente, provavelmente imaginando o quão gratos estávamos por ele ter nos
trazido para casa. Neste momento, descobrimos o ainda não experimentado
prazer de xingar alguém bem no meio da cara e não ser entendido. Uma covardia
sem fim admito, mas altamente desestressante!
Dezessete mil quilômetros depois, e com a família finalmente reunida,
conseguimos nos sentir em casa… Acho que se tivéssemos chegado a uma
casinha de sapê no interior do Nordeste, a sensação seria a mesma. Ah, mentira,
nossa casa é linda!


Afinal de contas,
onde fica Shenzhen?
20 de julho de 2011

Quando Luiz falou pela primeira vez em morar na China, pensei logo em
Pequim, Xangai, Hong Kong e todos os seus pontos turísticos como a Muralha,
os Guerreiros de Terracota, a Cidade Proibida etc. Estas são as primeiras coisas
que vêm à cabeça do brasileiro médio, que nunca se aprofundou muito sobre este
país, fora, é claro, todos os bagulhos “made in China” que a gente compra por aí.
De curiosidade, resolvi perguntar para o Dudu como ele imaginava a China. Para
minha surpresa, ele fantasiava um grande portão de ferro que, ao se abrir,
descortinava dragões dançando sob luzes vermelhas, além de diversas lojinhas
vendendo brinquedos a R$ 1,99. Este estereótipo permanecia em sua cabecinha
de criança mesmo depois de ter visto Karate Kid milhares de vezes, filme com o
filho do Will Smith que se passa em Pequim e mostra a China atual.
Shenzhen fica ao sul da China, na Zona do Cantão, e possui apenas 30 anos. Seu
desenvolvimento foi programado pelo governo chinês como um dos passos para
abertura do país para o mundo e para fazer concorrência a Hong Kong que fica
bem à nossa frente. Em 1978, isso aqui era apenas uma vila de pescadores com
30 mil habitantes e talvez até tivesse um portão de ferro e dragões dançarinos.
Hoje, é uma cidade de mais de 13 milhões de pessoas, vivendo uma realidade
extremamente capitalista. McDonald’s, KFC, Pizza Hut, Starbucks, Seven
Eleven e Donkin Donnuts, estão todos aqui tentando se adaptar ao gosto chinês:
mais pimenta e menos açúcar.
E de onde vieram os moradores de Shenzhen? De todas as partes do país,
buscando oportunidade de trabalho, principalmente na área da construção civil.
Isso significa que muita gente vem de classes mais humildes, com baixo nível de
educação e com línguas diversas. Mesmo que você fale mandarim, é bem
provável que sua empregada não entenda nada do que você diz. No entanto, a
cidade também abriga grandes empresas e muitos, mas muitos expatriados.
Grande parte trabalha na indústria de petróleo e, pasmem, dezenas de famílias de
pilotos brasileiros que foram obrigados a sair do Brasil por conta da crise da
aviação. Hoje, esses pilotos são funcionários de companhias chinesas como a
“Shenzhen Air Lines” e estão muito felizes. Isso agora porque, quando chegaram
por aqui há 5 anos, o bairro onde moramos não tinha asfalto (era na base da
galocha quando chovia), não havia comida ocidental para comprar, nem escova
de dente, nem pasta, nem sabonete… e para brasileiro, vocês sabem, não tomar
banho direito é a morte!
Hoje, as obras continuam a todo vapor e estou acompanhando a construção de
dezenas de prédios, praças, estações de metrô, tudo aqui pertinho de casa. Eles
trabalham 7 dias por semana, 24 horas por dia. Você passa de noite por um
buraco no meio da pista e, de manhã: “Tchanã! O buraco está fechado, a rua está
asfaltada e as faixas brancas e amarelas pintadas”! Nisso, nós brasileiros somos
bem diferentes deles. Se a coisa apertar, vou sugerir a contratação de alguns
chineses para terminarem as obras da Copa a tempo.
Moro num país tropical,
abençoado por Deus
5 de novembro de 2011

Uma coisa que me surpreendeu muito foi a temperatura. Chegamos em pleno
verão e me senti na Amazônia, sem nunca ao menos ter estado lá. Parece que
você está sempre saindo de um baile de carnaval com a fantasia molhada, o
cheiro do desodorante potencializado e louco por um banho gelado. Quando
chove (e a gente fica conversando sob a chuva, que nem gorila na floresta, como
se nada estivesse acontecendo), dá para ver o vapor subindo pelas pernas e, para
virar sauna, só falta o eucalipto. E os mosquitos? Invisíveis e mudos, mas fazem
um estrago absurdo! As minhas pernas estão cheia de bolinhas vermelhas
inflamadas, parecendo perna de criança carente de cidade do interior.
Além da temperatura, outra surpresa foi o trânsito. Amigos, o trânsito de
Shenzhen é simplesmente in-des-cri-tí-vel. E olha que nós moramos boa parte da
vida no Rio de Janeiro, ou seja, temos MBA em trânsito barra pesada. Pelo que
ouvi por aí, existem três fatores que tornam dirigir e atravessar a rua em
Shenzhen verdadeiros atos de coragem. O primeiro é que o povo ainda não
aprendeu a dirigir (lembrem-se de que esta é uma cidade de migrantes) e, pelo
que ouvi falar, compram a carteira (ah, como somos parecidos!). Para eles, carro
e bicicleta são exatamente a mesma coisa. Não precisa dar seta, não precisa parar
no sinal, pode entrar na contramão, pode parar onde, quando e como quiser (no
meio da rua, no ponto de ônibus, em cima da zebra...) e pode até andar pela
ciclovia se o sinal estiver fechado e você não estiver muito a fim de esperar.
Brasileiro acaba se virando bem por aqui, mas vocês podem imaginar um
escocês (e nós somos amigos de um) tentando atravessar a rua na zebra, com o
bonequinho verde para pedestre, e a chinesada passando batido? Dava um
belíssimo esquete do Mr. Bean.
O segundo é que aqui vale a lei do mais forte e não as leis de trânsito. Vira
primeiro no cruzamento quem tiver mais coragem, independente se você vem da
esquerda ou da direita. Se fizer contato visual com o motorista que disputa a vez
com você, esqueça. Ele já sentiu sua fraqueza e vai virar na sua frente. Já vi
coisas de arrepiar os cabelos.
E em terceiro lugar, as motocas! Milhares delas de todas as cores, tamanhos,
parecidas com scooters, com pedal igual ao das mobylettes de antigamente, com
cestinhas para as mulheres, com baú para os executivos, com sombrinha
acoplada para proteger do sol, à gasolina e à bateria, esta última tão silenciosa
que você não ouve quando está se aproximando. Com exceção das bicicletas
elétricas, todas as outras versões são proibidas, embora a gente as encontre à
venda em cada esquina. De vez em quando, rola uma blitz e eles apreendem uma
porção delas. O fato é que todo mundo vende, todo mundo compra e todo mundo
tem! E, se ainda não tem, um dia vai ter.
Eles carregam absolutamente tudo nas motinhos: de grandes caixas de isopor
empilhadas umas sobre as outras, passando por canos de PVC quatro vezes
maior do que elas, até famílias inteiras: papai, mamãe, dois filhinhos e um bebê
(visto com meus próprios olhos que a terra há de comer).
Agora, parem para pensar um pouquinho: se carro não precisa respeitar lei de
trânsito, imaginem as motocas! Ou seja, na hora de atravessar a rua, tem que
olhar para todos os lados, (eu olho até para o céu) para ver se não vem vindo
uma dessas motos silenciosas a 40km/h, o suficiente para fazer um belo estrago
nas suas pernas já comidas pelos mosquitos. O mais absurdo de tudo é que elas
andam pelas calçadas livremente disputando espaço com os pedestres. O Dudu
acabou de ganhar uns óculos de espião que tem dois espelhos embutidos nas
laterais. Já estou pensando em pegar emprestado para andar na calçada e não ser
atropelada por uma motinho vindo por trás.
Falando em brinquedo, você já deu um brinquedinho desses que faz barulho para
uma criança de dois anos? O que ela faz? Aperta o botãozinho e fica fazendo o
tal barulhinho até você arrancar o brinquedinho novo da mão dela e se
arrepender, pelo resto da vida, por ter dado o brinquedo e, depois, por ter tirado
dela. Tudo isso para dizer que uma buzina na mão de um chinês e um
brinquedinho na mão de uma criança de dois anos são exatamente a mesma
coisa. Eles buzinam o temmmmmmmpo tooooooodo! Moto, carro, ônibus, não
importa. Mas, justiça seja feita, eles não buzinam para xingar uns aos outros
como nós fazemos; eles buzinam só para avisar que estão passando ou que vão
fazer uma barbeiragem sem tamanho para cima de você. E, parafraseando o
ditado, “barbeiragem combinada, não sai caro”.
Enfim, diante desse trânsito barra pesada e da imprudência dos chineses ao
volante, começo a achar que Deus é, na verdade, chinês.
Fazendo compras
em Shenzhen - 1
11 de novembro de 2011

Qual a primeira coisa que se oferece a uma “mãe de família” quando ela vai
morar em outra cidade? Levá-la para conhecer os supermercados, é claro. Fazer
compras para mim sempre foi uma obrigação, mas na China, confesso, é uma
aventura diferente a cada nova saída. Com pouco mais de um mês em Shenzhen
e sem muita coisa para fazer, já conheço uma gama de supermercados que vão
desde os multinacionais como Carrefour e Walmart até às marcas locais como o
Ren Ren Le e A.Best.
Meu debut aconteceu no Walmart. Eu trouxe do Brasil um dicionário fantástico,
dividido em seções como Escola, Casa, Escritório, Restaurante etc, com a foto
do objeto e seu nome escrito em caracteres chineses, em pinyin em português e
em inglês. Ou seja, bastava apontar o dedinho para a foto do shampoo ou do
detergente que os chineses se empenhavam ao máximo para achar o que a gente
queria. Portanto, enquanto estávamos no primeiro andar comprando produtos de
higiene, usando e abusando do meu livrinho, tudo estava sob controle.
O problema aconteceu quando descemos ao subsolo onde ficam as comidas. Já
na esteira rolante, tivemos uma amostra do que nos esperava. Nas laterais da
esteira, eles aproveitam para colocar produtos de compra por impulso como, por
exemplo, pés de galinha empacotados. O nome disso deveria ser, na verdade,
compra por repulsa! Os chineses consomem pés de galinha como snacks e
chupam bem as unhinhas antes de cuspir fora ou de usar como palito de dente.
Quando ainda estávamos no meio da esteira entre os dois andares, começamos a
sentir um cheiro horroroso de carne estragada. Graças a Deus, o Luiz já tinha me
alertado sobre o cheiro de uma fruta chinesa chamada “liu lian” (em inglês,
durian) que parece ser da família das jacas, por parte de mãe, e porco-espinho
por parte de pai. Se não fosse por isso, teria subido a esteira pelo sentido
contrário e ido embora, tomando cuidado, é claro, para não olhar para os pés de
galinha e cair em tentação.
A esteira desembocava direto na peixaria e, se eu soubesse que estava indo para
um pesque e pague, teria levado minha vara e algumas minhocas. Os peixes,
camarões, enguias, tartarugas e afins ficam dentro de tonéis para você mesmo
enfiar a mão, pegar e garantir que está levando um produto fresco. Põe fresco
nisso! Desafiei o Dudu a pegar com a mão um bicho metade camarão, metade
centopeia, que ficava mexendo as perninhas que nem boneco de camelô, e
ofereci 10 RMB (fala-se remembí) de recompensa. Ele ameaçou enfiar a
mãozinha no tonel, mirando no rabinho de um deles, mas desistiu quando uma
chinesinha parou ao seu lado e pegou uma mão cheinha deles desmoralizando-o
por completo! O desafio continua de pé: toda vez que vamos ao supermercado,
as crianças vão direto para a seção de peixes brincar de quase enfiar a mão nos
tonéis. Obviamente, ninguém faturou os 10 RMB ainda.
Justiça seja feita: no Walmart, eles colocam à sua disposição uma cestinha
furadinha para você pegar os bichos sem precisar colocar a mão neles. Fui testar
o “device” e, assim que coloquei a cestinha dentro d’água, os camarõezinhos
pernudos nadaram lá para dentro e deitaram (isso mesmo, deitaram!) no fundo
da cesta. De duas, uma: ou eles adestram os camarões em uma surpreendente
estratégia de marketing ou os camarões se fazem de mortos para você procurar
outros mais fresquinhos!
Bom, depois de optar por comprar um pacote inofensivo de filé de peixe
congelado, fui olhar os peitinhos de frango. Outro susto: aqui, se quiser levar o
peitinho, tem que levar a cabeça junto, com crista e tudo! A gente nem consegue
pegar a bandejinha da geladeira, diante de uma galinha dobrada em três, que nos
olha com cara de “aqui jaz uma pobre galinha que nunca fez mal a ninguém, mas
que você vai comer esta noite”. Desisti de comprar o peitinho e decidi assar
umas coxinhas. Mas, novamente, se levar a coxinha, tem que levar o pezinho
junto. Com unha e tudo.
Enfim, peitinhos, cabeças, coxinhas e pezinhos branquinhos ainda não nos são
familiares. E quando a galinha é preta? Não estou falando das penas, estou
falando da pele. Jamais vi, nem em macumba quando morava no Rio, algo tão
sinistro! Perguntei uma vez para um chinês por que a galinha era preta. Ele só
soube explicar que ela era muito boa para mulheres da minha idade (quantos
anos ele achou que eu tinha?) e para crianças pequenas, porque fortalecia os
ossos. Até que uma galinha dessas seria bem-vinda aqui em casa, mas confesso
que prefiro fraturar o fêmur pela osteoporose a cozinhar a neguinha.
Ao lado do cemitério de galinhas, havia uns combos já preparados em
bandejinhas para mulheres modernas e muito ocupadas como eu sou, ou melhor,
como eu era. Um deles tinha uma galinha preta, uma tartaruga e algumas
cenouras. Como disse uma amiga minha, “para ficar completo só faltava um
mamífero!”.
Falando em mulheres executivas, quando você é funcionário de uma empresa e
faz um bom trabalho, seu gestor o parabeniza, envia e-mail copiando os pares,
enfim, joga sua bola lá para cima para manter o funcionário motivado. Quando
você é dona de casa, enfrenta um museu de bichos estranhos, faz um jantarzinho
gostoso e recebe o seguinte comentário; “a comida está até gostosa, mas está
com cheiro de cecê”, dá vontade de pegar a bolsa e voltar para o Brasil. Mentira,
não vejo a hora de fazer mais compras!


Fazendo compras
em Shenzhen - 2
15 de novembro de 2011

Continuando minha aventura pelo Walmart, outra coisa interessante que
encontrei por lá foram as ações de merchandising. Em todas as seções, há
promotoras de venda falando sem parar, oferecendo provinhas de iogurte, frango
frito, salsicha... Aos sábados, o Walmart parece uma feira livre onde os
promotores, com ajuda de seus microfones, disputam o cliente aos gritos. O que
será que eles falam? “Moça bonita não paga, mas também não leva?”. O Dudu,
guloso como sempre, resolveu aceitar a provinha de uma salsicha e eu só o vi
passar correndo em direção à lata de lixo para cuspir. Será que era salsicha
mesmo?
Outro dia o Luiz chegou em casa com uma super oferta de “vassoura + balde”
porque, segundo ele, não resistiu ao forte argumento de venda da promotora.
Vender vassoura e balde para homem já é uma proeza; vender vassoura e balde
para um homem que não entende uma palavra de mandarim, aí é o cúmulo da
eficiência!
Essa coisa de promover produto a qualquer preço, aqui na China, pode chegar às
raias do nonsense. No mercado local chamado A.Best, que eu costumava
frequentar até que um rato passou correndo na minha frente, eu vivi uma dessas
experiências. Estava fazendo calmamente as compras da semana, quando
comecei a ficar irritada com a poluição sonora local. Além da música ambiente e
do anúncio constante de promoções (pelo menos eu imagino que fossem), havia
uma voz metálica que vinha da seção de hortifrúti. Parecia alguém ao microfone
repetindo a mesma frase bem curtinha do tipo: ”Xie xian zhai u fan; xie xian
zhai u fan; xie xian zhai u fan” (Essas palavras não existem, mas se você
conseguir repeti-las bem rapidinho três vezes, vai ficar parecendo que domina o
mandarim). Voltando ao ponto, aquilo foi me irritando de uma forma tal que, em
um impulso, parti para a seção de hortifrúti determinada a fazer cara feia para o
promotor de vendas. Depois de muito procurar pelo chinês ao microfone,
finalmente encontrei de onde vinha aquela tentativa de lavagem cerebral: de um
megafone fincado no meio de uma pilha de tangerinas. Como assim, megafone?
E o que a frase dizia? “Compre tangerina a preço de banana?”. Bem, só me
restou fazer cara feia para o megafone e aproveitar para comprar algumas
tangerinas para a sobremesa.
Falando em tangerina, tenho passado vexame nas seções de hortifrúti. Na China,
todo mundo vai ao mercado comprar comida todos os dias, resquício da época
em que muito poucos tinham energia elétrica e, portanto, não havia geladeira.
Eu, como representante da mulher brasileira que trabalha (trabalhava, né?), vou
ao supermercado uma vez por semana e compro frutas e legumes para a semana
inteira. Conclusão: sempre acabam se formando filas enormes atrás da laowai
(gringa) maluca que entupiu o carrinho de comida.
Em tempo, aqui eles pesam a alface, a salsinha, a couve (o preço refere-se
sempre a 500 gramas) e vendem limão por unidade (mais ou menos R$1,00
cada).
Cansada de ir aos supermercados, pedi para minha “empregada-tradutora-
intérprete”, Liu, me levar ao mercado local, onde normalmente os alimentos são
mais bonitos e baratos. Enquanto estávamos na seção dos inanimados, tudo
corria super bem. Mas quando chegamos aos animais, começou a carnificina.
Primeiro, fomos comprar o peixinho para o almoço, o que acabou sendo muito
mais difícil do que eu imaginava por conta da variedade de escolha que se
apresentava. Diante da imprevisível indecisão da Liu, me vi obrigada a escolher
o peixe. Olhei para um com cara de linguado, apontei e a feirante imediatamente
pescou. Pescou, pesou, matou e retirou as vísceras e outras coisas que eu nem
imaginava que existiam lá dentro.
Descobri que a Liu, minha empregada, nunca havia cozinhado antes, nem
mesmo na casa dela onde o maridão pilota o fogão. Perguntei como preparava o
linguado e ela disse que não sabia. Fui para o Google ver como descamava
peixe, mas não consegui. Apelei para minha vizinha brasileira que saca tudo de
frutos do mar. Ela veio aqui em casa e disse a famosa frase, “isso não é linguado
nem aqui nem na China”. Resumindo, comprei um peixe que era puro osso e que
os chineses usam para fazer sopa. Mico!
Depois dos peixes, fomos para o balcão das carnes. Sinceramente, não consigo
entender porque eles se preocupam tanto se o peixe está realmente fresco a ponto
de venderem vivo, e largam as carnes em cima de papelões, sem nenhuma
refrigeração, lembrando que a temperatura no verão beira os 40 graus. Mas antes
de chegar ao local onde se vende as carnes digamos, mais convencionais, tive
que pagar a penitência de ver bacias de coisas gosmentas de todas as cores, às
vezes enroladas, às vezes compridas, boiando em sangue, assim como pessoas
jogando o dinheiro em cima das carnes espantando as moscas que começavam a
aparecer por ali.
Para culminar, enquanto a Liu negociava o preço de um bife, fiquei olhando para
uma pilha de restos jogada no chão e, de repente, reconheci um rabo inteiro, com
pelo e tudo! Conclusão: agora, toda segunda-feira de manhã, a Liu vai sozinha
ao mercado.


Chamem os comerciais
26 de novembro de 2011

Vocês já devem ter ouvido falar que a propaganda trabalha com o aspiracional
do ser humano, ou seja, com aquilo que ele deseja ser ou ter. Por isso, uma das
formas de entender uma sociedade é observando como as marcas se comunicam
com seus consumidores.
Em geral, a propaganda chinesa ainda trabalha de forma muito ingênua com a
fórmula “produto + consumidor feliz”. Além disso, dá para perceber uma certa
falta de habilidade nas execuções com Photoshops grosseiros. Tudo isso é
perfeitamente compreensível considerando que a China é um país em pleno
processo de abertura para o mundo capitalista. Aliás, vale dizer que, em algumas
regiões, a propaganda comercial não existe, apenas a do governo.
Como fui publicitária por mais de 26 anos, não consigo deixar de reparar nas
propagandas, por isso, acabei catalogando o que vi até agora em categorias
distintas.
Categoria “Olha como meu produto faz você feliz”
A grande maioria das propagandas chinesas ainda trabalha com este conceito
ingênuo que, no Brasil, ninguém engole mais. Aqui na China, a “Família
Doriana” ainda é bem presente, mas com um pequeno detalhe: para ser feliz de
verdade, tem que haver o pai, a mãe e um filho, de preferência homem, por conta
da política do filho único. Além deste núcleo central, o avô e avó paternos
também têm que estar presentes porque, ao se casar, o filho homem passa a
sustentar os pais e a morar com eles. Família ao redor da mesa do jantar, vestida
de vermelho, segurando o produto na mão e sorrindo alegremente para a câmera
não tem erro: vai direto ao coração dos chineses.
Categoria “Executivo bem sucedido tem sempre a mesma pose”
No escritório, com a xícara de café em uma das mãos, olhando atentamente para
o celular; ou no aeroporto segurando o terno jogado elegantemente no ombro,
olhando atentamente para o celular, este é o estereótipo do executivo na China
ou em qualquer outro lugar do mundo. Aqui, no entanto, executivo que se preze
estará sentado em uma cadeira de madeira de espaldar alto talhado à mão, ao
melhor estilo “tradição e seriedade”.
Categoria “Abusando do Photshop”
Eu venho de agências de propaganda muito bem conceituadas que jamais, em
hipótese alguma, deixariam uma foto sair sem retoque e isso na época em que
nem havia computador! Os chineses, porém, são oito ou oitenta: ou eles
simplesmente não limpam a espinha da cara da modelo ou o dente empilhado do
jovem sorridente que vende pasta de dentes, ou inserem objetos nas mãos das
pessoas sem se importar se o objeto caberia efetivamente na mão dela ou pior, se
a mão está aberta. Já vi ovo frito do tamanho de um disco voador perto de um
saleiro ridiculamente pequeno; já vi uma criança que brinca de caminha de gato
com um barbante e consegue a proeza de fazer um coração com o barbante, e já
vi dente com olho e boca para vender prótese. Acho que minhas gatas têm mais
habilidade com o Photoshop do que os chineses.
Categoria “Plantão médico”
As chinesas querem cada vez mais se parecer com as ocidentais: olhos grandes e
peitos idem. Há uma série de cartazes de ônibus com enfermeiras e pacientes
peitudas, lábios ligeiramente entreabertos e pinta de profissional de prostíbulo,
que você acha que é propaganda de sexy shop, mas na realidade é de hospital
especializado em cirurgia plástica.
Categoria “Isso não daria certo no mundo ocidental”
Peixe, frango, pato e porco, ensopados, em lindos pratos de porcelana, mas com
suas cabeças pendendo para fora, os olhares tristes e resignados. Dá para comer?
Não, não dá. Mas na China, tem que ter cabeça senão o prato não está completo.
Categoria “Mídia alternativa”
A grande maioria dos táxis de Shenzhen tem um computador instalado nas
costas do encosto do banco da frente no qual você recebe informações, joga
games, responde pesquisas e, obviamente, assiste comerciais. Acho essa ideia
sensacional, além de útil. Para a gente e para o motorista, que pode errar o
caminho à vontade porque o passageiro vai demorar muito tempo para perceber.
Categoria “Público jovem”
Jovem chinês de anúncio de roupa e acessórios é praticamente inidentificável.
Você não sabe se é homem ou mulher, ocidental ou oriental. E não há Photoshop
nenhum, pura e simples miscigenação. As lojas da Apple Store de Shenzhen e de
Hong Kong parecem uma pegadinha do Faustão: impossível saber se o seu
atendente é homem ou mulher. Todos usam calça e camisa polo, possuem
cabelos curtinhos, sem peito, mas com jeito de mulher, voz nem grave nem
aguda e nomes totalmente unissex como Adrian, Sunny ou Chris. E como “thank
you” não tem gênero, você vai morrer na dúvida.
Categoria “Obsessão coletiva”
As chinesas são obcecadas por pele branca. Elas só saem de sombrinha, usam
luvas de mão e braço em pleno verão, vão à praia à noite, tudo para ter uma pele
alva beirando cara de doente. Isso porque ainda se guarda a crença de que quem
é bronzeado possui trabalhos menos nobres que o forçam a ficar exposto ao sol.
Peguei uma Marie Claire uma vez e percebi que as 10 primeiras páginas da
revista vendiam produtos branqueadores que prometiam peles brancas, de pérola
ou de neve. E nós brasileiras, querendo exibir a marquinha do biquíni! Vai
entender...
Casamento na China
3 de dezembro de 2011

Luiz foi convidado para o casamento de um colega da IBM. Quando soube,
pensei logo no presente e na minha roupa. O presente saiu de uma vaquinha no
trabalho exatamente como fazemos no Brasil. Minha roupa foi uma mistura do
melhor vestidinho que eu tinha trazido na mala (nada da mudança até então) e de
alguns acessórios emprestados da minha vizinha. A única recomendação era
“não ficar mais bonita do que a noiva”. Luiz se recusou a colocar terno e acabei
indo para o casório, irritada com ele e com a sensação de que íamos pagar mico
como o casal ocidental mais mal arrumado da festa. A noiva, certamente, não
tinha com o que se preocupar.
Depois de quase 1 hora no metrô com nossa amiga chinesa, Clair, chegamos ao
hotel e seguimos as indicações de um cartaz onde havia o sobrenome dos noivos,
o ideograma de ‘felicidade’ escrito duas vezes (só para garantir), o ideograma
para “casamento” e, claro, o número do salão da festa. O casamento mesmo já
havia acontecido ao longo do dia. Os noivos foram de manhã na casa dos pais da
noiva, tomaram chá; o noivo pediu a mão da noiva e prometeu cuidar dos sogros
na velhice. Depois, rumaram para a casa dos pais da noiva onde o mesmo ritual
aconteceu. Lá pelas cinco horas, o casal foi se arrumar para a festa.
Logo na entrada, os noivos esperavam os convidados para a foto, assim como os
padrinhos e madrinhas. Estranhei os quilinhos a mais da noiva, raríssimos aqui
na China, mas que lhe davam um ar super saudável. Ao lado dos noivos, havia a
mesa do “Lucky Money” na qual os convidados entregavam o seu presente em
dinheiro, como bem diz o nome. Ou seja, o conceito de dar objetos como
presente não existe por aqui. Até mesmo os pais dos noivos fazem doação em
dinheiro ou em joias. A doação em dinheiro deve ser feita sempre com o número
9 (tipo, 9.999 RMB) porque o som dos caracteres “9” e “longo” são similares.
Acabado o ritual das fotos e do presente, entramos no salão. A decoração, em
rosa e vermelho (cores da sorte na China) que usava e abusava das bexigas de
gás, me lembrou das festas infantis para meninas no Brasil. Havia também um
telão mostrando foto dos noivos... já casados! Será que chegamos atrasados?
Como fomos uns dos primeiros, fiquei assistindo à entrada dos outros
convidados me escondendo atrás da mesa para não dar vexame com minha
roupinha simplesinha. Para minha surpresa, parecia que todo mundo tinha vindo
direto do trabalho para o casamento: calça jeans, t-shirts, vestidinhos de algodão
e até chinelo de dedo não combinavam, no nosso modo ocidental de ver, com a
importância da ocasião. Ou seja, continuei me escondendo atrás da mesa, mas
agora pelo motivo oposto: para não parecer a ocidental extravagante que veio
tentar ser mais bonita que a noiva. E o pior é que ainda tive que aturar o Luiz
dizendo a noite inteira, “Viu, como não era para eu vir de terno?”.
Em cima da mesa, havia alguns itens para entreter os convidados enquanto o
casório não começava: cigarros, amendoins, semente de abóbora e balinhas.
Depois chegaram as bebidas: chá, é claro, leite de coco (leite mesmo, não água),
Coca-Cola e Seven-up (cujo nome lembra a fonética do ideograma para
“felicidade”). Cervejinha? nem pensar.
Como a cerimônia começou a demorar demais, o pessoal da mesa de atrás não se
intimidou: afastou os acepipes e partiu para o carteado! E aí, finalmente, as luzes
se apagaram e os noivos entraram de mãos dadas desfilando, triunfantes, pelo
meio dos padrinhos que jogavam papéis coloridos com aquelas pistolinhas de ar.
A trilha sonora era, como no ocidente, a Marcha Nupcial: Tanananannnn,
tanananannnn, tanananannn...
Os noivos, então, subiram ao palco e o show começou! Uma apresentadora de
terninho e microfone em punho, de dar inveja ao Gugu Liberato, conduziu a
apresentação. Ela perguntava: “A noiva é bonita ou não é?” e a plateia
respondia: “ÉÉÉÉÉÉ”! Só faltava mesmo a claque. Em seguida, ela foi dando as
ordens e todo o ritual de casamento, como nós conhecemos, foi acontecendo em
sequência, em cima do palco, e não levou mais do que 15 minutos. Os noivos
encheram a pirâmide de taças com champanhe, fizeram o brinde com os braços
entrelaçados, trocaram alianças, cortaram o bolo e jogaram o buque para
mulheres e homens (sim, homens!) ansiosos para serem os próximos a se casar.
Só então amigos, a festa realmente começou, ou seja, o jantar foi servido. Lendo
sobre a tradição chinesa, descobri que cada prato tinha um significado especial.
Pela tradição, deveriam ter sido 9, mas foram muito mais!
Vamos lá:
Porco assado = Virgindade
O porquinho chegou em uma bandeja carregada em uma liteira, desfilou pelo
salão e veio parar em nossas mesas com luzinhas piscantes vermelhas nos olhos.
Não acreditam? https://www.youtube.com/watch?v=-A1DKAW_a40
Lagosta = Felicidade, por conta da cor avermelhada. Aliás, estava uma delícia!
Sopa de barbatana de peixe -=Riqueza, porque o ingrediente é muito caro. Tem
gosto de alga amanhecida sob o sol.
Pepino do mar = Generosidade, porque o ideograma lembra o de “bom coração”,
o que, aliás, precisei de muito para ter coragem de provar.
Peixe = Plenitude porque, de novo, os sons são parecidos.
Pés de galinha (escondidos embaixo de um prato de cogumelos) = Lembra a
“fenghuang”, um pássaro mitológico chinês também conhecido como a Fênix
chinesa. Isso significava que, após o banquete, teríamos que “renascer das
cinzas”?
Macarrão = Longevidade, além de ser, finalmente, algo inofensivo para comer!
Feijão doce = Vida doce durante muito tempo. Quando vi o potinho, dei logo
uma colherada para matar as saudades da sopinha de feijão da minha avó. Sabe
quando o cérebro pensa uma coisa e a língua sente outra?
Pombo = Paz, por causa da carne tenra. Aliás, acabei de descobrir que comi
pombo achando que era galinha.
A essa altura do campeonato, eu já não sabia mais onde colocar a comida. Meu
potinho já estava cheio do resto de tudo que peguei só para provar por educação
e, até dentro do copinho de chá, eu já tinha escondido algum pedaço de pepino
do mar. Mas a comida não parava mais de chegar e a garçonete ia colocando um
prato em cima do outro. O que para nós é sinal de mesa bagunçada, aqui
simboliza fartura e bons tratos com os convidados.
Lá pelas tantas, colocaram um envelopinho na nossa frente com 10 RMB
ofertados pelos noivos como agradecimento por termos participado da festa.
Simpático, né? Mas teria sido mais prático abater do presente na entrada: 9.989
RMB e não se fala mais nisso!
Em seguida, os noivos, vestindo outra roupa, passaram pelas mesas para brindar
e o casório acabou. Nada de música ou dança, só comida! Saímos por um arco
de corações feitos de balões de gás que, segundo a Clair, trazia sorte para o
casal, e fomos tirar nova foto com os noivos que já estavam na terceira roupa.
Parecia até a comissão de frente da Unidos da Tijuca! Enquanto os noivos foram
para a noite de núpcias junto aos amigos, em uma espécie de despedida de
solteiro a dois, nós fomos tomar uma cervejinha bem gelada para fechar, à
brasileira, nosso primeiro casamento chinês.
Apresentando minha empregada: Liu
10 de dezembro de 2011

Liu é minha empregada. Na China, chama-se “ayi” e significa tia por parte de
mãe. Na China, esta é uma forma carinhosa de chamar as mulheres mais velhas,
assim como fazemos no Brasil ao nos referirmos às professoras das crianças
pequenas. Como a gente acha muito impessoal chamar a Liu apenas de ayi, nós a
chamamos de Liu mesmo. No entanto, toda vez que estamos conversando uns
com os outros, tipo “aí, ele me perguntou... aí, eu respondi”, a Liu fica
perguntando: O que? Me chamou? Posso ajudar?
A Liu é muito, mas muito mais do que uma empregada para mim. Ela é minha
tradutora, intérprete, professora de chinês e de cultura chinesa, além de
confidente e conselheira para assuntos cotidianos. Já me tirou de grandes
roubadas como, por exemplo, passar por telefone o endereço da nossa casa para
o motorista de táxi que não consegue nos entender (aliás, ela faz isso quase todos
os dias); explicar para a caixa do supermercado que eu já paguei pelo produto
antes de eu acabar presa; me ajudar a fazer compras e negociar o valor das coisas
e por aí vai. Quando eu telefono, ela já sabe que é uma missão de salvamento.
Liu chegou aqui em casa por engano. A administradora do condomínio marcou
de me apresentar a uma empregada às nove da manhã. Oito e meia, Liu e mais
duas amigas, falando um inglês ininteligível a 150 decibéis, chegaram aqui em
casa e me socaram nas mãos uma carta de recomendação de uma canadense. A
canadense falava tão bem da Liu que eu a contratei na mesma hora. Às nove,
chegaram a administradora e a “verdadeira” empregada, mas era tarde demais,
Liu já tinha entrado em nossas vidas.
Liu é uma mulher de 47 anos, casada há 17. Ela saiu de sua província em busca
de emprego e de um salário descente. O pai que mora na área rural e, pelo que
ela descreve, tem Alzheimer, vive sumindo de casa e dá muito trabalho para sua
mãe, além de preocupação para toda a família. Os asilos não querem aceitá-lo e
pagar um hospital privado seria impossível. Tudo isso lembra muito a vida de
nossas empregadas no Brasil, certo? Certo, mas há coisas to-tal-men-te
diferentes.
Liu dança todos os dias de manhã, pelo menos uma hora e meia. Hoje fui à
pracinha vê-la pessoalmente e tive a maior surpresa: Liu é o maior pé de valsa!
Ela aprendeu a falar inglês sozinha (o que, para um chinês, é um feito e tanto),
além do mandarim, pois, em sua província de origem se fala outro dialeto. Ela
me conta que passava os dias inteiros ouvindo filmes em inglês que os antigos
patrões lhe deram para poder se comunicar direito com eles.
https://www.youtube.com/watch?v=nzBOvYICh-8
Aliás, foi com o “old boss”, como ela diz, que também aprendeu a jogar as capas
dos DVDs no lixo. Um dia, depois de procurar a capa do “Harry Potter” pela
casa inteira, perguntei se ela tinha visto. Ela abriu a lata de lixo e me mostrou
várias capas amassadas lá dentro! Quando viu minha cara de espanto, ficou
repetindo: “Sorry, sorry, sorry”, estridentemente, sem entender o motivo da
minha surpresa.
A Liu só fala gritando e repete a mesma frase pelo menos duas vezes. Uma vez
meu celular tocou e ela atendeu correndo: “Hello, hello!”. Quando ela me passou
para o Luiz, ele perguntou se eu conhecia algum otorrino porque acabara de ficar
surdo. O inglês da Liu é fundamental para nossa convivência, mas confesso que,
de tanto conversar com ela, estou começando a falar umas coisas estranhas do
tipo: “She very like me”, ou “I cook very clean” ou “We are very best friend”.
Tem chinelinho da Liu espalhado pela casa inteira. Um para andar do lado de
fora, um para andar no primeiro andar da casa, outro no segundo, além dos
sapatos que ela usa para vir trabalhar. Ela tentou me explicar o motivo de tantos
chinelinhos, mas eu não consegui entender. Porém, com certeza, isso é um sinal
de carinho com as coisas da família.
Um dia, a Liu trouxe uma pilha de roupas passadas e começou a separar: “essa é
do pequeno garoto, essa é do outro pequeno garoto, essa é do grande garoto”.
Foi assim que eu descobri que a Liu, apesar de já estar há quase um mês
conosco, não tinha a menor ideia dos nossos nomes. A única solução foi fazer
um desenho de bonequinhos com os nomes ao lado que ela guardou até aprender
todos de cor.
Aliás, o Google tradutor é uma dádiva para quem está na nossa situação. Graças
a ele, eu consegui resolver o problema diário de dizer o que a Liu deveria
cozinhar. Era um tal de abrir a geladeira, tirar tudo de dentro, fazer mímica... Aí,
eu tive a ideia de imprimir umas cartelinhas com o nome dos pratos em inglês e
chinês. Agora, eu deixo a cartelinha do dia na porta da geladeira e vou à luta!
Liu diz que não sabe cozinhar e que é o marido quem prepara o jantar. Ele acha
que a comida dela não tem fritura suficiente (graças a Deus!). Ainda assim,
enquanto eu ainda precisava ensiná-la a cozinhar “à brasileira”, ela me deu
algumas dicas como: só colocar sal depois da comida pronta (nunca antes),
adicionar um ovo às carnes cruas para deixá-las mais macias, cozinhar legumes
em um dedo de água para não perder o gosto e temperar com molho de ostra. Ela
não se conforma que a gente não coma osso de galinha e fica tentando empurrar
osso para todo mundo, porque é “muito saudável”.
A Liu só cozinha com pauzinhos (que na China se chamam kuàizi) e com um
cutelo daqueles de filme de terror que ela trouxe de casa. Aliás, o cutelo, o ferro,
a tábua de passar, uma régua de luz, uma panela de banho-maria e vários outros
utensílios domésticos que eu vou descobrindo aos poucos. Meus garfões,
escumadeiras, colheres gigantes e outros apetrechos culinários ficam guardados
na gaveta.
Aliás, eu desisti de ensiná-la a deixar a mesa posta para o jantar. Em dia de sopa,
ela colocava prato raso e pauzinhos. Em dia de feijão com arroz, ela colocava
prato de sopa e colher. Garfo e faca nunca apareceram à mesa. Os jogos
americanos eram alinhados pelo centro e não pela extremidade da mesa, ou seja,
uma zona federal, ou melhor, oriental.
Falando em comida, a Liu é menor do que eu, mas come como gente grande. Ela
enche um pote de arroz até a borda e depois vai colocando por cima tudo que há
na geladeira: a sopa do dia anterior, os vegetais do dia, o feijão que eu cozinhei e
por aí vai. E para mostrar que está tudo super gostoso, ela faz o maior barulhão
com a boca. Quanto mais gostoso está, mais barulho a Liu faz para eu ficar feliz.
E eu fico! Logo no início, quando ainda não havia muita intimidade entre a
gente, a Liu fazia o pote dela e sentava na escada para almoçar (os chineses
adoram se acocorar em qualquer cantinho para comer). Agora, que já somos
amigas, ela senta comigo no balcão da cozinha e fica empurrando a comida para
dentro da boca com os kuàizi e gemendo “Very yummy, very yummy”.
A gente fica imaginando que as pessoas de olhinhos puxados, do outro lado do
mundo, são muito diferentes de nós só porque comem cachorro. A realidade é
que a Liu é uma mulher como tantas outras que existem no Brasil, batalhadoras,
generosas, preocupadas com os pais, dedicada e orgulhosa da filha. Mulheres
que estão passando pela crise dos 40, que sentem calores e têm insônia. A Liu é
um grande aprendizado para toda a família. Ela nos adotou. E sem o seu bom
humor, as comidinhas novas que ela traz toda semana do mercado e seu “zhao
shang hao” (bom dia) matinal, nossas vidas não seriam tão descomplicadas.
Mais do que isso, ela faz com que nos sintamos seguros na China. E nos
sentirmos amparados é o que mais precisamos por aqui! E sabem qual o sonho
da Liu? Se aposentar aos 50 anos e viajar por toooooooda a China! É querida
Liu, só faltam 3 anos! E, se sobrar um tempinho, quem sabe você não dá uma
passadinha pelo Brasil?
https://www.youtube.com/watch?v=t9qxubaYscw
https://www.youtube.com/watch?v=DdNwK42UZpU
O menino do pão de queijo
14 de dezembro de 2011

Fazia tempo que as crianças diziam que estavam loucas para comer pão de
queijo. Ontem resolvi correr atrás do principal ingrediente: polvilho. Entrei no
Google e descobri que polvilho é feito de mandioca (desculpem pela ignorância,
mas eu não sabia disso). Depois, entrei no Google Tradutor e procurei mandioca
em inglês: “cassava” (nunca tinha ouvido falar). Mostrei “cassava” para Liu que
também fez cara de parede. Traduzi “cassava” para chinês e a Liu gritou:
“Mùshǔ fen, Mùshǔ fen!”. Para tirar a prova final, mostrei a foto de uma
mandioca e ela confirmou mais alto ainda: “Mùshǔ fen, Mùshǔ fen!”.
Fui ao Walmart com “Mùshǔ fen” escrito em ideograma, mas nem precisei
mostrar para ninguém. Dei de cara com um pacote de “cassava starch” e
comprei! Fui a outro supermercado comprar queijo ralado que só se encontra nos
mercadinhos de importados, voltei para casa, fiz o mais delicioso pão de queijo
dos últimos anos e esperei as crianças chegarem da escola para comê-los bem
quentinhos.
Quando o Dudu acabou de comer, me olhou com uma carinha meio triste, meio
alegre e disse: Lá no Brasil, as mães iam buscar os filhos na escola para comer
pão de queijo. Quem ia me buscar era a Nana, nossa empregada, que me levava
direto para casa para comer maçã, enquanto você ficava trabalhando até tarde da
noite. Hoje eu sou a criança do pão de queijo!
Eu precisei vir para a China para virar uma mãe de verdade. Chorei.


Momento escatológico
17 de dezembro de 2011

A gente fica tentando entender o comportamento dos chineses baseado em nosso
próprio comportamento ocidental. É quase impossível esvaziar sua mente, como
a de uma criança, se libertar de preconceitos e encarar o modo como eles
administram a vida em comunidade como algo natural. Como este não é o nosso
país e somos apenas convidados por aqui, seria no mínimo falta de educação
criticar os hábitos chineses sem ao menos tentar entender os motivos que os
levam a agir de determinada forma.
Apesar deste meu discurso altamente desprendido e politicamente correto,
confesso que alguns comportamentos ainda me chocam e incomodam muuuuito!
Vamos a eles: Escarrada Escarrar, arrotar, tossir, espirrar, falar de cocô, vomitar
e expelir gases, não importa por qual orifício, são, para os chineses, exatamente
a mesma coisa. Nenhum mal-estar, nenhuma cara feia, nenhum comentário do
tipo “quem está com a mão amarela?”. Eu vi (sim, eu vi, ninguém me contou) o
sujeito escarrar no chão de um shopping center mega sofisticado aqui em
Shenzhen. Como sempre acontece, eu estava andando tranquilamente e ouvi
aquele som que começa no baixo abdômen e vai subindo, subindo, subindo até a
garganta. Falei comigo mesma, “não vou olhar, não vou olhar, não vou olhar”,
mas, olhei: o cara arrematou com uma raspada final e puff, escarrou ali mesmo,
no mármore reluzente do shopping! A explicação para esta nojeira toda está na
medicina tradicional chinesa: não guardar dentro do seu corpo o que está lhe
fazendo mal. Tem sentido? Tem, mas a gente não precisava ficar sabendo o que
está fazendo mal para o sujeito que está bem do nosso lado.
Certa vez, o Luiz foi fazer uma apresentação para sua equipe da IBM e, entre um
gráfico e outro, um dos garotos deu o maior arroto no meio da sala. Luiz parou
de falar, controlou o susto, depois controlou o riso, respirou fundo, manteve o
rosto voltado para o power point e continuou a apresentação como se nada
tivesse acontecido. Só mesmo o jeitinho brasileiro para combater o jeitinho
chinês.
Xixi no chão
As criancinhas entre um e dois anos, que estão na fase de aprender a segurar o
número 1 e o número 2, não usam fralda de espécie alguma. As calças possuem
um rasgo que vai da frente até o fim da bundinha para que eles, quando sintam
necessidade, apenas se agachem e... pronto, tudo resolvido.
Uma vez, estávamos no metrô e um casal, com um menininho foférrimo de mais
ou menos 1 ano, sentou com seu pimpolho no colo bem à frente do Luiz que
estava de pé. O “jiji” apontava direto para a barriga do Luiz. Ficamos ali,
naquele suspense, nos lembrando de quando trocávamos a fralda dos nossos
menininhos, aquele ventinho gelado batendo no “jiji”, aguardando o momento
em que eles finalmente desembarcaram. Alívio no lado ocidental do vagão! A
Liu me disse que são três os motivos para as crianças levarem o “bicho solto”:
primeiro, porque as fraldas são caras; segundo, porque mantém as crianças
limpinhas, sem contato com o xixi e o cocô; e terceiro, porque elas aprendem
mais rápido a usar as privadas. É, faz sentido. Principalmente se pensarmos
quantas milhões de fraldas descartáveis deixam de ser jogadas no meio ambiente
por causa deste “saudável” comportamento chinês.
Banheiros
Falando em fazer xixi, os banheiros públicos da China possuem apenas um
buraco no chão, o que exige muita técnica. No caso das meninas, se a calça for
do tipo pantalona, tem que arregaçar antes. Depois tem que se agachar com as
duas pernas totalmente dobradas, se manter equilibrada na posição, segurar bem
os fundilhos da calça esgrouvinhados na sua mão e não errar a mira para não
acertar o próprio pé. Ridículo! Mas, depois que se pega a prática, tudo melhora!
No caso dos meninos é mais simples (como sempre). Mas um dos meus filhos,
cujo nome não estou autorizada a publicar, foi fazer xixi em um desses
banheiros, fez os arranjos preliminares, mas esqueceu de apontar o “jiji”
bemmmm para baixo, ou seja, molhou toda a porta. Porta?! Sim, ele estava ao
contrário no banheiro! Agora, de novo, pensem bem. Neste tipo de banheiro,
você não encosta nenhuma parte do seu corpo em nenhuma parte do banheiro;
não precisa levantar a tábua e ainda dá descarga com o pé! Não parece realmente
mais higiênico? Nos shoppings, por exemplo, existem os dois tipos de banheiro
e, pelo que vejo, as chinesas sempre preferem o buraco no chão. Eu e Mariana
ainda preferimos nossa boa e velha privada.


Existe Natal na China?
19 de dezembro de 2011

Para entender um pouco mais sobre o Natal na China (afinal de contas, as ruas
estão todas decoradas), conversei com as minhas duas grandes fontes de
informação: a Liu, que vocês já conhecem e a minha professora de chinês. No
caso da Liu, cuja família mora no interior, o Natal simplesmente não existe. Sua
filha, que tem 16 anos, provavelmente vai sair com algumas amigas e só. Para
Tina, que mora em Shenzhen, uma cidade repleta de estrangeiros, o Natal é uma
data do calendário ocidental que está sendo, aos poucos, incorporada ao
calendário chinês. Desde que ela estava no primário, ou seja, há quase 30 anos,
que o Natal faz parte da sua vida. Seus pais nunca montaram uma árvore, mas
acabam sempre fazendo um jantarzinho especial.
O nome em mandarim para Natal é ”shèng dàn jié” que significa ”Festival do
Nascimento Sagrado”. Perguntei, só para testar, “Nascimento de quem?”, mas
ela não tinha a menor ideia até eu explicar que era de Jesus. “Yesu” ela sabia
quem era: o tal cara pendurado na cruz. Por mais que a gente saiba que o
Cristianismo é muito pouco difundido por aqui (segundo a Wikipédia, apenas
8,6% da população da China), ainda assim, é muito estranho imaginar que
alguém possa não saber quem é Jesus.
O fato é que o Natal é uma mistura de Halloween com Dia das
Mães/Pais/Crianças: as casas, lojas e ruas são decoradas, como no Halloween, e
compram-se presente para algumas pessoas mais próximas como no dia dos
namorados. Enfim, uma grande oportunidade para o comércio alavancar suas
vendas, tirando proveito da imensa capacidade de incorporação dos hábitos
ocidentais pelos chineses.
Segundo um amigo brasileiro que já vive aqui há alguns anos, o Pizza Hut fica
com filas enormes no dia 25 de dezembro. No entanto, todas as vezes que o dia
caiu no meio da semana, ele foi obrigado a trabalhar normalmente. Este ano,
participei da festa de Natal do jardim de infância onde ele trabalha. Para quem já
teve filho em creche, tudo parece muito igual ao Brasil.
Nossa família, eu diria, é bastante ecumênica. A família do Luiz é judia e a
minha é uma mistura de católica com espírita. Tudo isso para dizer que, no nosso
caso, o Natal simboliza o momento de união da família, não importando quem
acredita no que. E, estando tão longe dos nossos pais, irmãos, primos, sobrinhos
e amigos, nosso Natal está meio “solado”, sem amigo oculto, presentes debaixo
da árvore ou planos para a ceia da meia noite.
Ainda assim, não podemos deixar de celebrar a união do nosso pequeno
(pequeno?) núcleo familiar. Estamos todos passando por grandes desafios na
China e, exatamente por isso, nunca estivemos tão juntos. Nós brigamos sim,
mas sabemos que todos estão segurando bem firme uns nas mãos dos outros. E,
entre tapas e beijos, vamos passar o Natal em Beijing, curtindo temperaturas
abaixo de zero, nas Muralhas, na Praça da Paz Celestial e na Cidade Proibida. E,
com certeza, em vez de peru e tender, teremos os famosos espetinhos de
escorpião e barata em nossa ceia do Natal.
Feliz Festival do Nascimento Sagrado para todos!
Pequim, aqui vamos nós!
27 de dezembro de 2011

Beijing (ou Pequim em português). Finalmente, chegamos à China! Shenzhen é
apenas uma amostra da parte mais moderna e mais rica do país. Beijing está
muito mais próximo daquela China tradicional de que tanto ouvimos falar antes
de vir para cá, incluindo o hábito nada agradável de escarrar. Quando se anda a
pé pela cidade, o que foi o nosso caso, não dá para tirar os olhos do chão para
não correr o risco de pisar em alguma pocinha. Até no aeroporto, na sala de
embarque, tinha gente escarrando. Segundo a Liu, que tentou justificar a nojeira,
os “beijinenses” produzem muita secreção por causa do tempo extremamente
seco. Só perdoei o comentário porque foi da minha querida “ayi”. Confesso, no
entanto que, vez por outra, me deu uma vontade enorme de limpar os pulmões.
Também pudera, o índice de umidade era de trinta por cento e a temperatura
variava entre zero e cinco graus positivos. Isso, porque demos sorte, pois no dia
seguinte ao que fomos embora, a temperatura caiu para menos nove! Tamanha
secura fazia com que tomássemos choque em todos os objetos do hotel, do botão
do elevador à maçaneta da porta. A família brasileira vestia meias, ceroulas,
blusas térmicas, calças, blusas, casacos, casacões, gorros, luvas e cachecóis.
Considerando uma média de 10 peças de roupa por pessoa, a família inteira
estava vestindo por volta de 60 peças!
Agora, imaginem a sensação térmica nas Muralhas da China! Se não fosse pelo
sobe e desce dos degraus e das encostas ultra íngremes, não teríamos aguentado
ficar tanto tempo lá em cima. Ainda mais porque o banheiro era “ar-re-pi-an-te”.
Acho que foi construído pelos soldados, há mais de 2.200 anos, como uma
estratégia secreta de aniquilamento do inimigo pelo cheiro.
Brincadeiras à parte, as Muralhas são simplesmente magníficas! Imaginar que
devemos ter andado no máximo um quilômetro dos sete mil que elas possuem;
imaginar que ao longo de dois mil anos elas foram sendo construídas usando,
basicamente, barro e pasta de farinha de arroz e cal e imaginar que se estima que
cerca de dois terços do monumento estejam em ruínas...
Durante nosso passeio às Muralhas, o Dudu teve que tirar diversas fotos com os
chineses que simplesmente são apaixonados por crianças ocidentais. E é óbvio
que, depois da terceira foto, ele já estava fazendo as contas de quanto ganharia se
cobrasse 10 RMB por cada.
Voltando à Beijing, além do tempo extremamente frio, a cidade também possui
alguns problemas comuns a toda cidade grande: trânsito engarrafado, metrôs
lotados e taxistas querendo passar os gringos para trás. Mas isso só quando
paravam para a gente. E como toda cidade grande, em dia de comemoração, a
galera vai toda para a rua festejar. Neste caso, estamos falando do Natal. Sim,
amigos, há Natal na China. E a diferença não está apenas no fato dele chegar 12
horas mais cedo, mas sim na total desconexão com o sentido cristão do Natal. Na
famosa Rua Wangfujing, as pessoas andavam enfeitadas de arcos de chifrinho de
rena, chifrinhos de diabo piscantes, lacinhos de Mini, máscaras de carnaval…
valia de tudo para mostrar que se estava no clima Natalino, seja lá o que isso
fosse! O centro “business” da cidade estava totalmente decorado. Os chineses
são feras quando se trata de iluminação! No shopping, onde paramos para fazer a
“ceia”, houve contagem regressiva para a chegada do Natal e, à meia noite, todos
gritaram: “Êêêêê!”. Vale ressaltar que o mais próximo que chegamos de um peru
de Natal foi um sushi de arroz com uma linguiça gigante em cima! Mas que
mundo globalizado: erámos um bando de brasileiros, passando o Natal na China
e ceando em um restaurante japonês.
Ainda sobre o Natal, havia uma igreja perto da Rua Wangfujing e, em frente a
ela, uma porção de chineses tirando fotos e aguardando alguma coisa
surpreendente acontecer. Talvez o nascimento de Jesus! Mas o surpreendente
mesmo foi o que eles fizeram na noite seguinte à do Natal: Eles se reuniram na
pracinha da igreja para dançar. O líder, do alto dos degraus da igreja, criava as
coreografias e todo mundo ia copiando. Cada vez mais chineses se
aproximavam, olhavam e se juntavam ao grupo. Velhinhos, adolescentes,
dondocas com a bolsa Louis Vuitton pendurada no antebraço, enfim, um
espetáculo lindo de união através da música e pela dança! E, porque não, de
democracia.
https://www.youtube.com/watch?v=ubHx1_QUCcY

Continuando nosso tour turístico, assim como as Muralhas, a Cidade Proibida
também é um espetáculo. É uma cidade dentro de outra. São 720.000 metros
quadrados, 980 edifícios com 8.707 salas. Durante 500 anos, a contar de 1400,
apenas o Imperador, sua família e seus empregados, podiam frequentar a cidade.
Quem tentasse se aproximar sem autorização era sumariamente executado
(provavelmente trancado no banheiro das Muralhas). Por isso, o nome de
proibida. Vou rever os filmes “O Último Imperador” e “Mulan” que, a partir de
agora, ganharam um novo sentido para mim.
Visitamos outros locais turísticos de Beijing como Houhai, “O Templo do Céu”,
a Praça Tian’anmen, o “Ninho do Pássaro” e por aí vai. Mas, a lembrança que
levaremos para sempre em nossa memória é a da rua dos espetinhos. Amigos,
chinês realmente come de tudo: escorpião, cobra, cachorro, besouro, cavalo
marinho, estrela do mar, lacraia, aranha, lagartixa, polvo e sapo foram apenas
alguns dos animais e insetos que conseguimos ver ou reconhecer. Eles compram
vários espetinhos, vão passeando pela rua, comendo e jogando os pauzinhos no
chão.
Um desses espetinhos jogados no chão grudou em minha bota e, ao andar, por
acidente, espetei-o na canela do Marquinhos que estava logo à minha frente. Foi
só aí que percebi o quão impressionado estávamos com tudo aquilo. O
Marquinhos começou a pular e gritar como se os escorpiões tivessem descido do
espeto para atacá-lo, o que não era de todo improvável, já que os bichinhos são
mantidos vivos até serem jogados ao óleo fervente.
Os dois únicos bichos que comemos foram cobra e escorpião e, contra todas as
expectativas, dá até para dizer que gostamos. O sapo, parafraseando o título
deste livro, a gente não teve coragem de engolir. Mas, o que não deu mesmo
para engolir foi o que presenciamos ao fim do nosso passeio: enquanto o chinês
da barraquinha do escorpião esperava o espetinho fritar batendo papo conosco
(parte em chinês, parte em inglês, parte em mimiquês), ele aproveitou para
limpar o excesso de secreção devido à secura do ar e escarrou ali mesmo, no
chão da cozinha.
https://www.youtube.com/watch?v=Z3QR6fwXB44

Como se diz feijoada
em mandarim?
3 de janeiro de 2012

Já que nossa rotina não é mais a mesma, decidimos fazer um Réveillon um
pouco diferente. Em vez de passar o dia nos preparando para a virada da meia
noite, decidimos convidar nossos amigos chineses e alguns brasileiros mais
próximos para um almoço de fim de ano: uma bela forma de agradecê-los por
toda a ajuda que nos deram ao longo desses 6 meses e de nos divertir no último
dia do ano. Do nosso ano, porque o Ano Novo chinês será comemorado a partir
de 23 de janeiro de 2012 segundo o calendário lunar.
O interessante dessa história toda é entender os códigos culturais que cercam um
evento como este. Para começar a história, um grande amigo e colega de
trabalho chinês do Luiz foi ao Brasil recentemente e nos trouxe de presente
cinco quilos de feijão preto. Não dava para deixar de oferecer uma típica
feijoada brasileira em retribuição, certo? Ainda mais que os chineses não têm
frescura com comida, ou seja, aquela “porcariada” toda não iria assustá-los.
Código Cultural 1
Para os chineses, o valor do presente representa o valor do seu afeto. Quanto
mais caro for, mais a pessoa gosta de você. Presentear com dinheiro é muito
comum por aqui. Enfim, nosso amigo ia nos trazer dez quilos de feijão para que
tivéssemos certeza de que ele realmente gostava muito de nós, mas foi impedido
pelos brasileiros que viram um certo exagero no presente. Além do que, ele
certamente iria pagar excesso de bagagem e talvez fosse até barrado na
imigração. Minha professora de chinês, pelo mesmo motivo, chegou para o
almoço trazendo uma cesta monstruosa com as mais caras frutas do mercado.
Tudo lindamente embalado em plástico de florzinha e com camadas e camadas
de papéis coloridos, bem ao gosto dos chineses.
Código Cultural 2
No convite do almoço, em vez de colocar apenas a hora e o local, tentei explicar
como o evento se desenrolaria, o que seria servido e que tipo de roupa usar:
“Informal” - Para as pessoas não se sentirem obrigadas a se vestir elegantemente
para o evento. Ainda assim, tivemos de tudo: vestidos clássicos com meias de
seda, camisetas do Brasil e calça jeans.
“Salty black beans” - Na China, feijão preto se come doce. E, para evitar que
eles passassem pelo que passei no casamento chinês, achei melhor informar,
antes, que o feijão era salgado.
“Before the lunch…”- Os chineses gostam de almoçar meio-dia e jantar lá pelas
18h. O pessoal que está trabalhando neste horário, simplesmente para o que está
fazendo, arruma um cantinho, abre a marmita e manda ver. Nenhum
constrangimento. É sagrado. Então, melhor avisar que o almoço mesmo só vai
sair depois da caipirinha. E, por fim, a foto da feijoada para eles já irem se
acostumando com a carinha nada amigável desta sopa preta cheia de carnes.
Chegado o grande dia, tudo pronto, o que realmente aconteceu?
Um dos convidados achou que a feijoada seria no domingo e não no sábado e só
chegou às 13h40. E eu que, para não estragar o apetite das pessoas, servi como
aperitivo apenas amendoins, castanhas e passas, já não sabia mais o que fazer
com aquelas caras de fome e suas mãos cheias de sal na minha frente. A
salvação foram as frutas da caipirinha. Como eles me explicaram que o aperitivo
na China normalmente é chá com frutas, apelei para os morangos e tangerinas a
seco mesmo; nada de cachaça para ninguém ficar bêbado.
Assim que nosso último convidado chegou, coloquei as comidas em cima do
balcão da cozinha com umas plaquinhas descrevendo o que era cada uma para
evitar que a aparência nada simpática das carnes, do feijão e da farofa gerasse
preconceito na galera. Fiz o primeiro prato, para que eles entendessem como
funcionava o esquema e fiquei espiando como em um BBB.
Minha professora olhou tudo aquilo, me chamou e perguntou: “Quantos pratos
além destes você preparou?” Como assim?
Código Cultural 3
Na China, assim como o presente que precisa ser grande e caro para representar
o quão você gosta de alguém, as refeições oferecidas em sua casa devem ter um
número considerável de pratos: peixe, frango, carne, vegetais, macarrão, arroz e
por aí vai. Se forem 15 convidados como no nosso caso, o almoço teria que ter
uns 15 pratos diferentes. Este é o motivo pelo qual os chineses preferem comer
fora a abrir a casa para os amigos. Ou seja, minha professora não estava sendo
deseducada, mas apenas esperando pelo ritual chinês.
Com a maior boa vontade, todo mundo fez o dever de casa direitinho e colocou
no prato um pouco de arroz, o feijão por cima, as carnes, a couve, a laranja e um
molho de feijão com pimenta que resolvi fazer de última hora. Os chineses
amam pimenta! Uma das primeiras coisas que tivemos que aprender quando
chegamos aqui foi pedir “bù la dá” : “sem pimenta”. O repeteco ficou restrito à
couve, à laranja e, logicamente, ao molho de pimenta.
Quanto à arrumação das mesas, tive que dividir os convidados em duas para que
todos pudessem comer sentados. Não coloquei kuàizi (pauzinhos) de propósito,
apenas garfo, faca e colher. Eles só usaram a colher.
Aliás, preciso reconhecer que eles abriram mão não só de comer de kuàizi como
de sentar todos juntos e dividir a comida. O conceito de cada um com seu grande
prato não existe por aqui. Todos dividem tudo que é servido à mesa e colocam
pequenas porções do que é servido em potinhos minúsculos.
As sobremesas fizeram o maior sucesso: brigadeiro e torta de limão. O desejo do
ser humano por açúcar realmente transcende qualquer região ou código cultural,
embora os chineses prefiram doces menos açucarados que os nossos.
Depois do almoço, uma galera foi embora, outra ficou batendo papo com direito
a cafezinho (em xícara grande e com leite – não dá para acertar todas) e lá pelas
18 horas tudo tinha se acabado. Em resumo, entre uma gafe aqui e outra ali,
todos se empenharam para que o almoço fosse um grande sucesso, apesar das
grandes diferenças que nos separavam. Isso é que é globalização!
Flores da Guerra
11 de janeiro de 2012

Antes de vir para China, já tinha ouvido falar que os chineses odiavam os
japoneses, mas nunca tinha dado muita atenção ao fato. Nós também não
“odiamos” os argentinos?
Senti pela primeira vez a real desarmonia entre os dois países quando convidei
minha professora de chinês para comer um sushi e ela me disse que preferia não
frequentar restaurantes japoneses. Ainda assim, eu, como boa brasileira e do alto
da minha ignorância histórica, mandei aquele papo de “deixa disso”, “todo
mundo é igual perante Deus” e outras frases feitas que, versadas para o inglês,
ficaram ainda pior. Não adiantou.
Foi aí que, por sugestão de um amigo, fui assistir ao filme chinês “Flowers of
War”, protagonizado por Christian Bale e dirigido por Zhang Yimou, o mesmo
de “Adagas Voadoras” e “Lanternas Vermelhas”. O roteiro do filme foi
baseado no romance “The 13 Women of Nanjing” e reconta a história do
massacre de Nanquing, quando, em 1937, tropas militares japonesas, invadiram
a cidade chinesa, estupraram e mataram milhares de mulheres. A batalha ficou
conhecida como o “Massacre de Nanquim” ou, ainda, o “Estupro de Nanquim”.
Eu e Luiz não estávamos levando a menor fé em um filme falado em chinês, de
duas horas e meia de duração, sobre um assunto que pouco tinha a ver conosco.
No entanto, ao fim da sessão, ambos saímos do cinema calados e envergonhados
pela nossa ignorância sobre a história dos dois países. Havia caído uma ficha
importante e nós passamos a entender a razão de tanto ódio, de tanto rancor. Eu
me arriscaria a dizer até mais. Acho que, depois daquele filme, percebemos que
um pedacinho pequenino de nós estava virando chinês, por conta de todo o
carinho que temos recebido por aqui. E este pedacinho pequenino,
empaticamente, também se entristeceu com o que viu. É só fazer as contas para
entender que muitas dessas mulheres, que foram prostituídas e/ou estupradas
durante a segunda guerra, ainda estão vivas. E, se já morreram, seus filhos e
netos, que provavelmente estão vivos, ainda carregam esta tristeza em suas
costas.
Isso explica, mas não justifica, algo muito estranho que vi semana passada. Mais
uma vez, meu amigo, que me abre todos os dias novas portas na China, me
convidou para assistir à festinha de fim de ano do maternal chinês. Estava tudo
uma gracinha, e super bem organizado, com crianças vestidas de bichinhos, de
flores e de outros personagens que fazem parte das tradições chinesas, até que, lá
pelas tantas, um dos professores sobe ao palco e fala da guerra entre a China e o
Japão e das estratégias usadas pelos chineses para se protegerem do inimigo.
Uma delas era a formação de uma fila indiana que corria em direção ao tanque
japonês em uma ação suicida para que o último da fila, já muito perto do tanque,
depois que todos os outros que estavam à sua frente já tivessem morrido,
pudesse jogar uma bomba bem em cima dele, antes de também cair baleado.
Como se não bastasse o discurso, as crianças tiveram que encenar a guerra entre
os dois países com direito a chinesinhos fantasiados de soldados japoneses.
Depois de assistir ao filme e à apresentação das criancinhas, fiquei pensando: é
melhor lembrar para não repetir o erro ou esquecer para não estimular o ódio?
Fica aí a pergunta para vocês também pensarem.
Sujo ou limpo?
16 de janeiro de 2012

A empresa do Luiz promove passeios de integração dos funcionários para os
quais somos sempre convidados e, logicamente, sempre aceitamos. É uma
oportunidade imperdível de viver com e como os chineses. Quase ninguém fala
inglês, mas há sempre dois ou três anjos da guarda que não se intimidam com
nossos olhos redondos e ficam ao nosso lado nos repassando as instruções.
Num desses passeios, depois de duas horas e meia de viagem, o ônibus parou
para almoçarmos em um restaurante do tipo beira-de-estrada. Como já comentei
anteriormente, os chineses sempre dividem a comida e se sentam em grandes
mesas redondas. Fomos os últimos a entrar no restaurante e rolou um certo mal-
estar para ver quem iria dividir a mesa com os seis gringos. Empurra daqui,
acochambra dali, acabamos nos acomodando com mais quatro chineses,
surpresos pelo tamanho da família ocidental. O líder da mesa pegou o cardápio e
escolheu uns dez pratos diferentes, entre carne, peixe, vegetais e o sempre
presente arroz branco. Quando os pratos chegaram, no único com o qual a
Mariana simpatizou além do arroz, havia uma mosca boiando. Quando vi a
pobre mosca afogada em um caldo de carne engordurado, peguei logo o celular
para fotografá-la, mas fui interceptada pelo Luiz que agarrou o meu braço e me
ameaçou de morte caso eu fizesse uma “Selfie” com a bichinha.
Um dos chineses sentado à mesa, percebendo o que tinha acontecido, chamou a
garçonete, mostrou a mosca e ela, um minuto depois, voltou com o mesmíssimo
pote para a mesa, mas desta vez sem a mosca, é claro. Brasileiro já teria feito
logo um escândalo e ido embora sem pagar a conta; o dono do restaurante iria
dar uma bronca na cozinheira e o barraco estaria armado. Aqui, no entanto, o
episódio foi tratado como uma coisa rotineira, sem muitos melindres. E, como
diz no ditado, “Na China, faça como os chineses”, fizemos cara de quem está
acostumado a comer sopa de mosca todos os dias e continuamos a beliscar os
outros pratos, enquanto sacaneávamos a Mariana que tinha comido um pote
cheio de arroz com caldinho de mosca.
Agora, parem para pensar um pouquinho. Vocês se lembram dos espetinhos em
Beijing? Mosca realmente não é nenhum bicho de sete cabeças para chineses que
comem todo o tipo de inseto. Vai ver até que tinha gente a fim de dar uma
provadinha...
Em outro desses passeios, ainda no verão do ano passado, fomos fazer um
churrasco na praia. Churrasco de chinês é um pouco diferente. Parece mais um
acampamento em volta da fogueira onde cada um grelha seu próprio espetinho
de pé de galinha, berinjela, milho, abobrinha entre outras coisas. Muito legal!
Dois fatos me chamaram a atenção neste passeio e, confesso, me incomodaram
um pouco. A primeira está relacionada ao hábito chinês de não retirar os pratos
da mesa até o fim da refeição. No Brasil, toda hora passa um garçom recolhendo
um guardanapo sujo, uma tampinha de refrigerante, um pratinho com ossos e
coisa e tal. Aqui, tudo vai se acumulando à sua volta e se misturando com a
comida. O mesmo acontece nos fast foods ou nas mesinhas onde os chineses se
acomodam para comer no meio da rua. Já me disseram que recolher as bandejas
sujas no McDonald’s é papel do funcionário e que, quando você mesmo recolhe,
eles ficam chateados porque alguém está fazendo o trabalho deles. Bom, a gente
ainda prefere recolher o lixo e encarar a cara feia do funcionário do que deixar
tudo sujo para o próximo cliente.
Voltando ao churrasco, assim como nos restaurantes, as espigas de milho, copos
sujos, espetinhos, latas de refrigerante foram sendo jogados no chão em volta da
churrasqueira criando um ambiente muito pouco, digamos, aconchegante. Mas
as nossas sobras eram até light diante das outras churrasqueiras que estavam
cercadas de cabeça de peixe, ossos de galinha e outras coisas inidentificáveis.
A segunda surpresa foi a sujeira na areia da praia que acabou por me lembrar de
Copacabana no dia 1º de janeiro, às 6 da manhã, com copos de Mate Leão,
garrafas de champanhe e flores para Iemanjá espalhadas pela areia branca. Uma
pena, pois a praia era lindíssima.
Depois disso tudo, vocês podem dizer: “Nossa, os chineses são sujos!”. E eu vou
responder: “Não necessariamente”. Por exemplo, ninguém entra em casa com os
sapatos da rua; os sapatos ficam do lado de fora e a gente usa chinelinho ou
pantufa para andar dentro de casa. Rapidamente, toda a família incorporou o
hábito e hoje ninguém mais entra calçado em casa. Outra coisa são as máscaras
que podem ser usadas tanto para proteger os outros do seu resfriado como você,
do resfriado dos outros. Aqui, não é mico sair de máscara, muito pelo contrário,
acaba sendo um sinal de respeito com os outros ou consigo mesmo.
Ou seja, não dá para colocar os chineses dentro de caixinhas com rótulos e dizer:
“Eles são sujos ou eles são limpos; eles são espertos ou eles são inocentes”. A
China é realmente um país de muitas contradições. Ou não.


Chinese New Year
26 de janeiro de 2012

Nosso primeiro Ano Novo na China foi bem morninho, com cara de quem
passou o Carnaval na fazenda dos avós. A cidade estava vazia porque todos
foram passar o Réveillon com suas famílias em suas home-towns (Shenzhen é
uma cidade de migrantes, lembram?). As lojas estavam fechadas e as obras
paradas (OBRAS PARADAS! Nunca vimos isso antes por aqui). A cidade
estava toda decorada de lanternas vermelhas, árvores floridas, dragões
estilizados e pés de tangerina.
Explicação 1
O Ano Novo chinês também é conhecido como “Festival da Primavera”, pois, de
acordo com o calendário lunar, estamos no fim do inverno, apesar de estar
fazendo seis graus! Este é o motivo das lojas, shoppings e portarias de prédio
estarem decorados com árvores artificiais cheias de flores. A explicação para os
pés de tangerina é outra: além de ter a cor dourada e alegre do sol, a pronúncia
também lembra a da palavra ouro: tangerina = JU ZI / ouro = JIN ZI.
Seguindo a tradição do Ano Novo, liguei a televisão no CCTV1 (canal 1 da
Chinese Central Television) para assistir ao clássico programa de gala que
começa às 20 horas e termina depois da virada do ano. Uma espécie de “Roberto
Carlos” ou “Show da Virada” que todos os chineses param para assistir e soltam
até fogos de artifício quando o programa começa.
Para minha surpresa (surpresa mesmo!), quem apareceu na tela da TV assim que
a liguei foi a Dilma Roussef desejando aos chineses um feliz Ano Novo em
mandarim: “Xin nian kuai le”. Por um segundo, eu já não saiba mais em que país
eu estava.
Explicação 2: “Xin nian kuai le” é o que desejamos a todos durante esta semana
do Festival da Primavera. Como não é muito difícil de pronunciar, a gente vai
soltando “Xin nian kuai le” para todo mundo: atendentes das lojas, taxistas e
porteiros em uma falsa e gostosa sensação de que finalmente dominamos o
mandarim e estamos conseguindo nos comunicar. E é tão bom quando eles
respondem de volta: “Xin nian kuai le” (xin =novo; nian =ano; kuai le = feliz)
Além do significado atual, há muitos anos atrás, contava-se uma história na qual
“nian” era o nome de um monstro malvado que tinha muito medo da cor
vermelha e de fogos de artifício. Por isso, até hoje, os chineses se vestem de
vermelho no Ano Novo e soltam bombinhas e fogos durante toda a semana do
feriado para espantar o “nian”. E como soltam! Em alguns locais, é impossível
dormir à noite. Ainda bem que moramos longe o suficiente para ouvir muito
pouco do barulho, mas perto o suficiente para assistir à queima de fogos que vai
acontecendo ao longo da noite. Detalhe: quem nasceu no ano do dragão precisa
se proteger mais do que as outras pessoas, por isso, as calcinhas e cuecas
também devem ser da cor vermelha.
A “Véspera do Ano Novo” também tem um nome, mas é totalmente diferente de
“Xin nian”. Eles chamam de “Chù xi” (chù = se livrar de algo; xi = novamente).
Contava-se que um monstro muito malvado, chamado “Xi”, precisava ser
expulso de casa para que o ano começasse bem. Se fosse no Brasil, o Nian e o Xi
já estariam convidados para estourar uma champanhe no Réveillon e problema
resolvido.
Voltando ao programa de gala, assistimos apenas à primeira parte para entender
do que se tratava e, confesso, valeu muito a pena! Quando o assunto é
espetáculo, os chineses são in-su-pe-rá-veis! O palco era formado de diversos
degraus cobertos de telas de led, que subiam e desciam, e projetavam imagens
diversas, tomando formas diferentes de acordo com o tema da música. Os
anfitriões são sempre meio cafonas, do ponto de vista ocidental, com suas roupas
extremamente coloridas, cheias de adereços, brilhos e pedrarias, sem falar dos
cabelos da ala masculina penteados para cima, fixados com laquê e pintados de
preto graúna. As músicas falam todas do mesmo assunto “wo yao hui já” ou “eu
quero voltar para casa”, que é o que os chineses fazem nesta época do ano
(inclusive os trabalhadores das obras – Ai, não me conformo com as obras
paradas!) ou “wo ai ni zhongguo”, “eu te amo China”.
Enfim, lá pelas 21h30, fomos jantar em um dos pouquíssimos restaurantes
abertos e depois aguardar a queima de fogos que não aconteceu. Nian e Xi já
deviam ter ido embora. Não há outra explicação.
Vocês devem estar se perguntando sobre os presentes. Não é nesta época do ano
em que os chineses trocam presentes como nós fazemos no Natal? Sim e não.
Sim, eles trocam, mas não presentes, e sim dinheiro!
Explicação 3: Os “hong bao” (envelopes vermelhos), onde o dinheiro é
colocado, são uma tradição. Eu sabia que precisava dar um hong bao com
dinheiro para a Liu, mas não sabia quanto. Uma amiga chinesa me instruiu a dar
1000 RBM separados em 2 envelopes: um com 800RMB, por causa do número
8, e outro com 200 RMB. Fiz exatamente isso: comprei os envelopinhos,
arrumei o dinheiro certinho e dei para a Liu com um grande abraço fraternal que
ela não retribuiu: braços encostados no corpo, visivelmente sem jeito. Mas, para
minha surpresa, ela abriu o envelope e tirou 300 RMB: 100 para cada uma das
crianças. Eu disse para ela não fazer isso, para gastar o dinheiro consigo mesma,
mas ela disse que PRECISAVA. Afinal de contas, ela já era casada e não tinha
mais criança em casa. Senti que a coisa era mais séria do que parecia e a deixei
dar o dinheiro. Não preciso nem descrever a felicidade da Mari, do Marcos e do
Eduardo.
Na quinta-feira, foi a vez da minha professora de chinês que chegou aqui em
casa com quatro envelopes com 100 RMB para cada criança incluindo o
Fernando que já tem 22 anos. Ela disse que não era casada e não precisava dar
dinheiro nenhum para ninguém, mas como gostava muito de mim, decidiu
presentear meus filhos. O que eu fiz? Sai correndo, peguei minha carteira, raspei
os 300 RMB que havia lá dentro, “roubei” os envelopes das crianças com o
dinheiro que a própria professora tinha dado e meti tudo dentro de um outro
hong bao totalizando 500 RMB. Ela riu, agradeceu e, mais tarde, disse que eu fiz
certo em dar mais do que ela tinha me dado.
Já pararam para fazer a conta? Eu recebi 400, devolvi 500, e no final da história,
fui eu que morri em 100 RMB. Não teria sido mais fácil se eu tivesse dado logo
100 RMB para Tina?
Essa relação do chinês com dinheiro é muito curiosa. Vejam outros exemplos.
Vocês se lembram do casamento que fomos? Os noivos recebem dinheiro como
presente e, ao fim da festa, distribuem “hong baos” com 10 RMB para todos os
convidados como agradecimento. O Fernando, mais de uma vez, já teve algum
colega chinês de balada se oferecendo para pagar a conta dele dizendo “eu quero
ser seu amigo”. Um amigo brasileiro, que mora aqui há um tempão, foi no fim
do ano a um culto religioso no qual o monge falou mais ou menos o seguinte:
“2011 acabou, queiram ou não queiram; gostem ou não gostem; tristes ou
felizes. Neste novo ano desejo a todos muito dinheiro, que alcancem as
promoções desejadas dentro do governo, que cheguem ao topo de suas carreiras
e que também tenham saúde.” Uma amiga brasileira deu 300 RMB para sua
empregada de Chinese New Year e teve que ouvir: “Se a senhora gostasse
mesmo de mim, teria me dado mais”. Uma amiga chinesa não foi visitar a mãe
em uma cidade distante, mas depositou não sei quanto na conta dela, o que
deixou mãe e filha muito felizes e orgulhosas de si mesmas.
No Brasil, país capitalista, dar um presente significa que você pensou na pessoa,
saiu para comprar, achou algo que a pessoa gostaria e comprou. A gente valoriza
o ato em si e não o valor do presente. Dar dinheiro remete a uma certa preguiça,
desconsideração. Aqui é o contrário. Se você gosta de mim de verdade, me dê
muito dinheiro para que eu acredite.
Gente, como assim? Este não é um país comunista? Como é que o dinheiro pode
ter um papel tão importante em suas vidas a ponto de servir como medida para
as relações afetivas?
Uma coisa me parece clara. Nós somos capitalistas, nos forçam a comprar
presentes no Natal, no Dia das Mães, Pais, Crianças, periquito, papagaio, mas
somos muito religiosos! E a nossa religião diz que “é mais fácil um camelo
passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”.
Dinheiro demais nunca é bom sinal.
Aqui, onde os cristãos são minoria, querer, ter e dar dinheiro não é vergonha.
Muito pelo contrário. Hong baos, tangerinas douradas, desejos de “muito
dinheiro” no lugar de “muita paz, amor e saúde” são muito bem-vindos.
Por via das dúvidas, eu fico com o velho ditado: “Dinheiro não traz felicidade,
mas que ajuda, ajuda”!
Nove meses mais tarde
1º de fevereiro de 2012

Outro dia meu sogro me instigou a fazer um relato do que havia mudado nas
crianças depois de termos vindo para cá (fora a voz do Marquinhos que, aos 13
anos, está irreconhecível). Aí lembrei que este mês faríamos nove meses de
China. Uma gestação completa. Fiquei pensando no que cada um de nós pariu
depois deste tempo todo. Concluí que cada um de nós pariu um outro “eu”. Parto
normal, na hora certa, sem indução. E acho que, felizmente, este outro “eu” é
uma versão melhorada de nós mesmos.
Como assim? Imaginem que, em um belo dia, um disco voador o abduzisse e
depois o soltasse em um local totalmente estranho. Bum! Você cai da
espaçonave, levanta e olha em volta. E o que você vê? Pessoas estranhas, que se
vestem de forma estranha, escarram no chão, arrotam à mesa, colocam os filhos
para fazer xixi e cocô na rua, se acocoram para descansar as pernas, usam
buracos em vez de privadas, comem cachorro, cobra, escorpião, lagarta; gritam,
se empurram, furam fila, e você ali, olhando tudo aquilo, levando um esbarrão
de vez em quando e se perguntando: “De quem foi mesmo a ideia de embarcar
neste disco voador?”. Não sei se por causa do nosso instinto de sobrevivência,
mas acabamos nos acostumando a tudo isso. Nove meses depois, amigos, nosso
outro “eu” nasceu com um nível muito mais avançado de tolerância e de respeito
às diferenças.
Agora imaginem que, neste novo local, você não tem carro (não dirijo há quase
um ano), não tem emprego e perdeu a capacidade de se comunicar: não fala, não
lê e muito menos escreve a língua dos habitantes. O que você faria em uma hora
destas? Sim, enfiaria o orgulho no saco e pediria ajuda. Pediria ajuda a pessoas
que você mal conhece, mas que estão há mais tempo neste novo mundo. Aos
seus filhos, que falam inglês ou chinês melhor que você. À sua empregada, que a
acompanha ao médico, ao supermercado, ao cabelereiro, que conhece o número
da tinta do seu cabelo e até suas doenças crônicas mais íntimas. Sim, amigos,
nosso novo “eu”, além de mais tolerante, nasceu muito mais humilde.
E se você fosse uma criança e seus pais, antes fortes, seguros e protetores, não
conseguissem dizer o endereço de casa para o motorista de táxi? Ou pedissem
comida no restaurante apontando com o dedinho a foto dos pratos e, além disso,
fizessem carinha de nojo quanto o prato chegasse? Imaginem que seus pais não
conseguissem explicar claramente para seus professores o seu problema e que
você morresse de vergonha do sotaque deles? Então, sem muita escolha, nove
meses depois, nossos filhos tiveram que ser tornar muito mais independentes.
E, finalmente, imaginem que, nove meses depois, você já se sente quase parte
deste novo mundo (embora continue analfabeto e sem carro) e um novo disco
voador reaparecesse e jogasse novas pessoas neste local? Na mesma hora, você
as juntaria do chão, sacudiria a poeira, pegaria pela mão e apresentaria o
supermercado, a farmácia, a yoga, o Starbucks. Nove meses depois, nascemos
também muito mais solidários.
Humildade, tolerância, independência e solidariedade. Estamos ou não
melhores?
Infelizmente, o que venho observando em outras pessoas é que essas qualidades
florescem apenas nos primeiros meses e que, depois de alguns anos, vão
definhando. A tolerância vira intolerância; a humildade se transforma em
arrogância e a solidariedade passa a ser seletiva. A verdade é que ninguém pode
julgar ninguém. Fomos todos colocados em um mundo estranho onde não
sabemos ao certo se é melhor nos adaptarmos ou mantermos distância. Por
enquanto, como todo recém-nascido, estamos felizes, curiosos e aprendendo
coisas novas todos os dias.
DVD pirata? Corta!
6 de março 2012

Quando eu morava no Brasil, eu me considerava uma espécie de cidadã
exemplar. Respeitava todas as leis e ficava absurdamente irritada com todos que
as “flexibilizavam” em benefício próprio. Eu reclamava com os pais que faziam
fila dupla na porta da escola, com o motorista do ônibus que parava em cima da
faixa de pedestre e com o banhista cujo cachorro fazia xixi na areia da praia,
acreditando que meu discurso poderia modificar o comportamento alheio.
Na China, no entanto, as coisas mudaram. É claro que eu continuo respeitando
sinal de trânsito, não jogando lixo no chão, cedendo o lugar para pessoas idosas
no ônibus, pois em minha opinião, mais do que leis, isso são valores. E valores
não têm nacionalidade. O que aconteceu é que, por eu ser uma estrangeira na
China, não tenho mais o “dever de lutar pelo desenvolvimento do meu país”.
Aliás, pretensão minha já que nunca ninguém me pediu para fazer isso.
Enfim, todo esse discurso bonitinho aí de cima é apenas para tentar amenizar
uma confissão que tenho a fazer: amigos, eu compro DVD pirata toda semana!
Eu e todos os expatriados do nosso bairro. Até a Sônia Bridi confessou ter
comprado quando morou em Pequim, como ela mesma escreveu no livro
Laowai. O negócio é o seguinte, aqui é muito difícil passar filme estrangeiro.
Para se ter uma ideia, esta semana estreou nos cinemas o filme que ganhou o
Oscar de melhor ator do ano passado: “O Discurso do Rei”. Além disso, cinema
é um programa caro. Mais do que caro, cinema é um programa que exige muita
paciência. Chinês não só não desliga o celular, como atende, conversa e dane-se
o resto do mundo.
Em compensação, os DVDs dos filmes que concorreram ao Oscar 2012, de ótima
qualidade, custam 8 RMB ou R$ 2,00. Eles são vendidos em diversas
barraquinhas espalhadas pelo bairro ou em quartinhos escondidos nos fundos de
algumas lojas. A embalagem dos DVDs é super caprichada: os discos vêm
dentro de um folder impresso em papel couché coberto por uma capa plástica
externa e outra capa interna. A meu ver, o valor que eles cobram não paga nem a
impressão desse material todo.
A Liu, quando soube que gostávamos de assistir a filmes, nos deu de presente
todos os 200 DVDs que o ex-patrão havia lhe dado. Sem as capas para não
ocupar muito espaço. Agora entendo por que ela jogou a capa do “Harry Potter”
fora.
Mas nem tudo é um mar de rosas! Como nosso inglês (desculpe, meu inglês,
porque as crianças já são praticamente fluentes) ainda não é suficiente para
entender um filme inteiro, temos que apelar para as legendas em inglês.
Ah, amigos! As legendas são um capítulo à parte.
Primeiro caso e mais comum: a legenda não casa com a locução em hipótese
alguma. O ator diz : “Meu amigo, venha aqui” e a legenda é: “Vamos acabar
logo com isso”. Não sei se eles não entendem o inglês e colocam qualquer coisa
ou se apelam para o os tradutores capengas da Internet, só sei que é um nonsense
completo que tira totalmente a concentração de quem está assistindo.
Segundo caso: a legenda é de outro filme. Começamos a assistir “A casa do
Lago” com a Sandra Bullock cuja legenda dizia: “Pai, este é meu namorado
Greg Focker”. Foi fácil reconhecer! A legenda era do “Entrando em uma fria”
com o Ben Stiller, que fazia o papel de genro do Robert De Niro e se chamava
Greg.
Difícil mesmo foi entender o que se passava quando a legenda do filme “A
Fantástica Fábrica de Chocolate” apareceu como: “Yes, yes, don’t stop, now,
now!” . Ops! Editaram a legenda de um pornô na “Fábrica de Chocolate”?! Foi
um tal de desliga isso, de turn it off! Imagino como não deve ter ficado o outro
filme... O casal fazendo “bagulhos nojentos” (como diz o Dudu) e a legenda:
“Seu pai não gostará de saber disso! Depois não diga que não avisei...”.
Corta!
Aborto, contra, a favor
ou muito pelo contrário?
11 de março de 2012

Semana passada, um amigão chinês do Luiz aproveitou a hora do cafezinho para
dar a notícia de que a mulher estava grávida. Luiz já havia começado com aquela
coisa de brasileiro “cara, que delícia, parabéns” e coisa e tal, quando o amigo
complementou: “É, mas tem uma coisa”. Pela cara do amigo, Luiz achou que o
filho fosse do japonês da lavanderia. Mas não era bem isso. Seu colega, como se
estivesse falando de um celular quebrado, apenas disse: “Ela fez um aborto
ontem”.
Ops! Choque cultural de novo!
Todo mundo sabe que a China tem mais de 1 bilhão de habitantes e que, se a
taxa de natalidade continuasse alta como nas décadas anteriores, o mundo inteiro
acabaria tendo que trabalhar para alimentar, abrigar e vestir os chineses.
Segundo a Wikipédia, “As políticas demográficas implementadas na China desde
1979 ajudaram a evitar 400 milhões de nascimentos extras”, ou seja, dois Brasis
em 30 anos. No entanto, quando ficamos cara a cara com a “política do filho
único”, como no caso do amigo do Luiz que já tem um menino de 3 anos, a coisa
muda de “aula de história” para “vida real”.
Como assim? Abortou? E o cara conta para todo mundo com a maior cara
lavada? E ele não está nem triste? E nem a mulher? Que mundo é este, meu
Deus? Que mundo é este?
Respondo: Este mundo, ou melhor, este país não é católico apostólico romano.
Este país aprendeu a colocar a razão acima da emoção por uma simples questão
de sobrevivência. Chamei o amigo do Luiz para um café e conversamos um
pouco sobre o assunto. Ele nos explicou que há 20 anos, era terminantemente
vedado às famílias terem mais de um filho. Hoje em dia, você pode, desde que
pague ao governo a quantia de 250.000 RMB.
Então rico pode ter filho e pobre não? Desde quando dinheiro é aval de cuidado,
carinho, amor?
Deixem-me explicar melhor esta lógica filial-financeira. Se você quiser ter um
segundo filho e esconder do governo, dá para fazer. Há casais que dizem que o
caçula é filho do primo, do irmão ou de algum parente e que eles estão, apenas,
tomando conta. O problema começa quando a criança precisa ir à escola ou de
cuidados médicos. Se você não pagou os 250.000 RMB adiantados, vai ter que
começar a desembolsar parceladamente, pois ao contrário dos cidadãos
“obedientes”, você vai ter que pagar pelo estudo e pela saúde da criança. Para
não dizer que ela será sempre ilegal (black child) e terá dificuldades para se
registrar em qualquer lugar.
O governo diz que os pais gastam por volta de 2 milhões de RMB entre
educação e saúde dos filhos e que, portanto, 250.000 RMB seria uma pechincha.
Que absurdo! Pagar para ter filho!
É um absurdo mesmo. Mas vamos tentar pensar de outra forma, como meu
amigo me explicou.
Na China, você pode ter o primeiro filho independente da sua condição
financeira. No entanto, para ter o segundo você precisa provar que tem
condições de sustentá-lo. O depósito adiantando de 250.000 RMB significa que
você não vai transformar seu filho em um menor abandonado que precisará pedir
esmola na rua. Faz sentido? Ah, faz!
Então, se por acidente você engravidar e não tiver como sustentar seu filho, é só
ir a um hospital e fazer um aborto. Para as mulheres casadas, o procedimento sai
de graça, e para as solteiras, custa 2.000 RMB independentemente de ser o
primeiro ou segundo filho.
Além de desestimular o nascimento do segundo filho, o governo ainda concede
benefícios adicionais aos que se mantém apenas no primeiro. Outro dia mesmo,
a Liu pediu para sair mais cedo porque tinha que provar que só tinha tido um
filho. Estranhei um pouco, porque ela já está com 47 anos, mas agora entendo.
Um filho é igual a mais benefícios.
Quando começa a vida? Na concepção? No nascimento? Depois do cérebro estar
formado? Os chineses aconselham que o aborto seja feito antes de 3 meses
quando a criança não vai sofrer nada. Nosso amigo, que já tinha o dinheiro para
pagar pelo segundo filho, achou que esta não seria a melhor hora para tê-lo e
abortou. Antes dos 3 meses, pronto. Nada demais, fim de história.
Aí eu me pergunto: será que ele vai para o inferno, purgatório ou qualquer outro
lugar onde deverá pagar por seu pecado? Mas se ele não acha que é pecado,
muito pelo contrário, é estimulado a fazer isso, então, ainda assim ele é um
pecador?
Uma semana depois, encontrei com a esposa dele e perguntei se ela estava triste
de ter feito o aborto sabendo que eles tinham dinheiro para bancar mais uma
criança. Fiquei surpresa quando ela me olhou indignada e disse: “Mas claro que
sim!”. Ué? Mas qual o motivo da tristeza, se havia escolha? Instinto materno
falando mais alto?
Essa discussão é muito, muito, muito delicada. Li recentemente um livro
chamado “Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida” da Xinran e chorei,
literalmente, do início ao fim. O livro apresenta dez histórias de meninas que
nunca conheceram suas mães biológicas e mulheres que deram a filha em adoção
a casais de camponeses que vivem sem endereço fixo, viajando pelos quatro
cantos da China para burlar a fiscalização da lei do filho único.
Apesar de ser contra o aborto, a conclusão de tudo isso para mim é que ninguém
pode atirar a primeira pedra e que todos temos telhado de vidro. A violência no
Brasil está aí como prova.

Os filhos da China
16 de março de 2012

Logo em seguida ao papo do aborto, saí com outra amiga do trabalho do Luiz
que estava triste com o fim do namoro. Fui preparada para fazer o tradicional
discurso “perder o namorado não é o fim do mundo, blá, blá, blá”, mas acabei
saindo do encontro, completamente tomada de emoção e com os olhos cheios de
lágrimas. Eu acabara de saber que aquela menina à minha frente era o segundo
filho ilegal, aquele que não foi abortado.

Clair, apesar de parecer uma adolescente, já está com 25 anos, o que vem
preocupando muito os seus pais, pois ela ainda não se casou e nem tem
namorado firme. Na China, se a mulher chega aos 30 anos sem ter casado é sinal
de que tem algum “problema”. Sua irmã, um ano mais velha, também está
“encalhada”, como dizemos preconceituosamente no Brasil. Um fato tão simples
quanto ter uma irmã mais velha passaria despercebido em qualquer história de
vida. Mas não na China. Quando a Clair nasceu, a política do filho único já
existia. Seu pai, que trabalhava para o governo e que deveria ser exemplo de
cidadania, foi ameaçado de ser dedurado ao partidão e, por consequência, perder
o emprego e a honra.

Assustada com a eminência de um desastre familiar, a mãe da Clair, contra a


vontade do pai, entregou-a a uma tia com a qual viveu seus primeiros nove
meses de vida. Em seguida, era para a Clair ter sido dada a um casal sem filhos,
mas a suposta “adoção” acabou não acontecendo. Outra saída apareceu logo
depois: trocar Clair por um menino de outra família (o filho homem sustenta os
pais na velhice). Porém, mais uma vez a “negociação” acabou melando. Por fim,
nossa chinesinha (aposto que vocês já estão cheios de carinho por ela) foi
confiada aos melhores amigos de seus pais que já possuíam outros sete filhos.

Clair lembra que, todos os dias, sentava nas escadas da casa dos pais adotivos e
ficava lá, chorando. Quando completou três anos de idade, sua mãe não
conseguiu mais segurar a barra e levou-a de volta para casa. Embora ainda muito
pequena, Clair instintivamente sabia como se comportar para não ser notada:
quando alguém vinha visitar a família, se escondia e ficava bem quietinha até
que a pessoa fosse embora. Apenas uma coisa ela se recusou a fazer: chamar a
mãe de tia. Isso seria demais para uma menininha clandestina, assustada com a
possibilidade de ter que abandonar novamente o próprio lar.

Segundo ela, as melhores lembranças de sua infância estão relacionadas aos


momentos em que estava doente e sua mãe se sentia livre para exercer o papel
ilegal de “mãe da Clair”. Por tudo isso, até a adolescência, Clair odiou a mãe.
Em seu diário de menina, ela anotava periodicamente o “Nível de Ódio à
Mamãe”. Até que, aos 13 anos, ela teve que mudar de cidade para cursar o
Ensino Médio e descobriu, para sua surpresa, que grande parte de seus
coleguinhas tinha sido criada pelos avós por conta da política do filho único! Ou
seja, Clair poderia se considerar privilegiada por ter sido, apesar de tudo, criada
pelos próprios pais.

Bom, vocês devem estar se perguntando: “Que mãe é essa, meu Deus? Dando a
própria filha?!” Leitores, a mãe da Clair, mais uma filha deste país tão
complicado, não merece ser julgada. Hoje, com 48 anos, tem uma vida
relativamente estável trabalhando para um banco do governo. Mas não foi
sempre assim.

Ela, de uma família de seis irmãos, começou a trabalhar aos 16 anos em uma
fábrica no lugar do seu pai. Naquele tempo, os pais podiam “transferir” o
emprego para um dos filhos. O que ninguém sabe explicar até hoje é porque seu
pai, em vez de transferir o emprego para o filho homem mais velho, escolheu
justamente a mãe da Clair.

Atualmente, ela se sente responsável pelo irmão mais novo, que não possui
tantos recursos, e sustenta toda a família dele como uma forma de homenagear,
honrar e agradecer ao pai e à mãe já falecidos.
E o pai da Clair? Onde fica nisso tudo?

Por ser o mais velho de quatro irmãos, diante da morte do próprio pai, precisou
trabalhar muito cedo para sustentar toda a família. Ele teve um casamento
arranjado com a mãe da Clair pelos pais de ambos, o que poderia explicar, mas
não justificar, os casos extraconjugais que teve ao longo da vida.

Mas o pai da Clair enfiou mesmo os pés pelas mãos, foi quando decidiu, vinte
anos atrás, largar o “excelente” emprego no governo para tentar enriquecer em
uma nova cidade que surgia ao sul da China: Shenzhen. No entanto, em vez de
trabalhar e prosperar como tantos fizeram, ele se afundou entre mulheres e
bebidas e levou a empresa à bancarrota. A mãe da Clair segurou a onda toda,
desde a vinda do marido para Shenzhen, passando pelos seis anos em que ficou
em casa sem trabalhar, tudo para não destruir a família e o futuro das filhas. Dá
para imaginar o que seria a vida de uma mulher divorciada na China 20 anos
atrás?

Hoje o pai da Clair possui um emprego estável, mas ainda permanece sendo o
tipo causador de problemas da família. A mãe abriu mão da vaidade e economiza
cada centavo para as filhas. A avó paterna da Clair morou com eles, como
manda a tradição, durante muitos anos. Sogra (vó da Clair) e nora simplesmente
não se suportavam. O clima dentro de casa era tão pesado, tão pesado que Clair
desenvolveu uma queda crônica de cabelo o que pelo menos serviu para forçar
uma decisão familiar: ano passado a avó foi morar com a filha, já que nenhuma
outra nora quis aceitá-la em casa.

E esta avó tão rabugenta? Quem merece? Esta avó, leitores, jamais conheceu os
pais que, para que o bebê não morresse de fome, tiveram que dá-la em adoção
para os pais do próprio marido, ou seja, ela praticamente se casou com o irmão.
Desde os oito anos de idade, esta menina, que nunca foi à escola, trabalhou
como fazendeira em uma China que acreditava que apenas o trabalho na lavoura
faria do país uma grande potência, enquanto matava de fome e mantinha na
ignorância milhões de pessoas. Embora não houvesse amor romântico entre os
avós, eles tiveram cinco filhos (um deles o pai da Clair), até que o marido
morreu de câncer aos 40 anos. Hoje, esta avó é uma mulher sem educação e
intolerante, como tantas outras que ainda vemos circulando pelas ruas de
Shenzhen, mas, segundo Clair, ainda é capaz de alguns poucos momentos de
gentileza.

Quem foi e continua sendo o grande suporte da Clair durante todos esses anos?
Da Clair não, da família inteira? Sua irmã Cristine que, por ser a mais velha,
precisa ter uma postura mais responsável. Num episódio em que o pai causou um
acidente por dirigir embriagado e, por isso, ficou detido durante 15 dias, a irmã
assumiu seu lugar atendendo telefonemas de clientes para que ninguém
percebesse sua ausência. Hoje, graduada em Economia, acabou de conseguir um
novo emprego onde ganhará o dobro do anterior.

Vocês acabaram de conhecer muito superficialmente três gerações de chineses


batalhadores, que sofreram e ainda sofrem as consequências de viver em um país
que, durante anos, se fechou em si mesmo e seguiu cegamente um líder
equivocado e cruel. (Recomendo a leitura do livro ”Cisnes Selvagens“ a quem
quiser conhecer um pouco mais sobre os últimos 100 anos da China). Hoje,
morando em uma China totalmente diferente, quase não consigo acreditar que
tudo isso aconteceu há tão pouco tempo. E como não sentir um profundo
respeito e admiração por um povo que ainda escarra na rua, mas que está
definitivamente dando a volta por cima?!

Clair, você e sua irmã fazem parte da nova geração de mulheres da China. Uma
geração que tem as pontinhas dos pés em um passado triste, mas a cabeça em um
futuro promissor. Uma geração de mulheres que trabalham fora, se sustentam e
não precisam casar antes dos 30 só porque manda a tradição. Mas, quando você
finalmente se casar, quero estar por perto para poder conhecer a carinha dos
novos filhos desta China tão surpreendente.

https://www.youtube.com/watch?v=3a2CwaJm6sg


Conectando os pontos
21 de março de 2012

Faz tempo que venho fazendo umas reflexões meio malucas sobre o
comportamento dos chineses e o crescimento acelerado da China. Não sei se elas
fazem sentido, mas hoje resolvi listar alguns pontos para ver se eles realmente se
conectam.
Ponto 1 - Trabalho
Nos fins de semana, as lojas de rua abrem, os salões de cabelereiro abrem, as
academias de ginástica, as obras... Bem, já falei sobre isso diversas vezes. Mas o
que quero dizer é que chinês, literalmente, não sabe o que significa fim de
semana. Para exemplificar melhor, outro dia meu professor de pilates deu uma
aula super pesada. Na saída, perguntei brincando: “Você deu essa aula puxada
porque hoje é sexta-feira, véspera do fim de semana?” Ele me respondeu: “Não
sei o que isso quer dizer. Aliás, por que vocês, estrangeiros, sempre
comemoram, ‘Thanks God it’s Friday’”?
Outro dia, estava falando para Liu que uma grande amiga tinha sido dispensada
do trabalho. Ela me disse: na China não tem problema. Você é demitido em um
dia e arruma emprego no outro.
Ponto 2 - Estudo
As crianças chinesas estudam muito! A filha de 16 anos da Liu, por exemplo,
fica internada na escola de segunda à sexta-feira. Sua rotina diária é a seguinte:
aula de oito ao meio dia; pausa para o almoço; aula de duas às cinco da tarde;
pausa para descanso e jantar; aula até às oito e meia da noite para fazer os
deveres de casa. Sábados ela ainda tem aula particular de inglês em casa.
Falando em inglês, meu amigo brasileiro dá aula de inglês para crianças chinesas
em um curso que começa às 17h20 (ou seja, depois da escola regular) e vai até
às 21h. Eu fui lá e vi titiquinhas de 4 anos até garotões de 13, ainda com o
uniforme da escola, aprendendo a falar inglês depois de um dia inteiro no
colégio. Não sei se fico com pena das crianças chinesas ou das nossas que, às 8
da noite, provavelmente estarão em casa vendo TV.
Ponto 3 - Dinheiro
Chinês não tem vergonha de dinheiro. Eles tratam melhor quem é rico, trocam
dinheiro no Ano Novo, jogam os preços no teto para poder negociar depois,
pedem dinheiro para seus deuses, cobram para ter o segundo filho. Outro dia,
uma amiga chinesa disse que foi convidada para jantar na casa de uns ocidentais.
Ela fez as contas: “O táxi de ida e volta e mais o presente que eu vou ter que
levar vão sair mais caro do que se eu fosse a um restaurante, sem falar que eles
provavelmente vão servir um prato só e no restaurante eu posso comer vários
diferentes.” Sentiram o pragmatismo financeiro?
Ponto 4 - Amor à Pátria
Os chineses gostam da China. Eles ouvem música chinesa, assistem a novelas
chinesas, a filmes chineses. Já fui várias vezes ao karaokê com uma galera super
jovem e eles preferem cantar os rocks chineses aos sucessos internacionais. Quer
ver minha professora virar um guerreiro mongol? É só criticar a China na frente
dela. Muito pretendente já se ferrou por conta disso. Sem falar que raros foram
os chineses que conheci que questionaram o governo. A maioria deles acredita
que o governo sabe o que eles devem ou não devem ler.
Ponto 5 - Lei do Mais forte
O maior ícone deste comportamento é a fila. Na hora de entrar no elevador,
comprar o ticket do cinema ou pesar as frutas no supermercado, ganha quem tem
a maior cara de pau ou a maior massa corporal para se colocar na frente dos
outros. E o chinês que é ultrapassado não reage, só nós ocidentais.
Ponto 6 - Sonsice
Ainda não sei ao certo se chinês é inocente ou sonso. Eu tendo fortemente a
achar que todos são educados, amáveis e sociáveis, mas que este comportamento
tem sempre um preço, mesmo que não consigamos enxergar o valor exato ou a
moeda de troca.
Enfim, vamos conectar os pontos? Um povo que ama o próprio país, que
estimula a competição e a lei do mais forte; que trabalha de domingo a domingo
e ainda agradece por isso; que não possui vergonha de gostar de dinheiro; que se
relaciona pensando no proveito material que isso pode trazer e cuja educação
exige dedicação total dos jovens. Onde vocês acham que este povo vai chegar?
Daqui a 30 anos, a gente volta a se falar.
Primeira aventura hospitalar
29 de março de 2012

Um dos meus maiores medos ao vir morar na China era o que fazer quando
ficássemos doentes. Para nossa felicidade, existe uma clínica perto de casa
estruturada para atender estrangeiros (a maioria dos expatriados prefere ir para
Hong Kong). Isso significa que a recepcionista e alguns médicos falam inglês e
praticam a medicina ocidental, mas eles não são um hospital e, por isso, possuem
diversas restrições.
Tirando o check up anual que eu e Luiz tivemos que fazer, meu debut em um
hospital chinês se deu com a Mariana que me apareceu com um pequeno
probleminha. Ela fez mais um furo na orelha e, durante a cicatrização, a tarraxa
do brinco entrou na pele e o furo fechou com a tarraxa dentro.
E agora? Agora, tem que pedir a ajuda de um médico para retirar. Fomos à tal
clínica que atende estrangeiros e eles disseram para irmos a um hospital.
“Liu, socorro!”. “Sem problemas”, disse ela, “Vamos no Shenzhen Shekou
People’s Hospital”, o mesmo onde eu e Luiz fizemos nosso check up e passamos
por algumas situações bastante constrangedoras. “De novo, Senhor?” Mas, como
diria um amigo meu, “Melhor um bêbado conhecido do que um alcoólatra
anônimo!”. Meti a Liu e a Mari em um táxi e lá fomos nós.
Chegamos à recepção, preenchemos um papel com o nome e a idade da Mari,
pagamos 7 RMB e explicamos o problema para a atendente. Ela nos mandou
para o terceiro andar onde ficava o otorrinolaringologista. Ops! Ela não enfiou a
tarraxa no tímpano! A tarraxa está dentro da pele! Pele... dermatologista... Ai,
Jesus, Buda, sei lá!
O tal otorrino usava jaleco branco e a máscara de proteção caída no queixo,
deixando de fora uma boca cheia de dentes amontoados. Mariana começou a
entrar em pânico: ”Eu vou embora, tô indo embora!” O médico mandou ela se
sentar em uma poltrona que parecia ter sido arrancada de um ônibus velho.
Tinha até um rasgo no encosto. Perto da poltrona, estava uma pilha de tesouras,
alicates e bisturis jogados dentro de uma grande caixa de metal.
O médico analisou, grunhiu alguma coisa (tradução do grunhido: “Se estiver
muito fundo, vamos ter que cortar”) e nos mandou para a sala ao lado desinfetar
o local. Na sala imediatamente ao lado, algumas crianças faziam nebulização e
um chinesinho, de mais ou menos 10 anos, segurava dois palitos enfiados no
nariz. Na ponta dos palitos, por baixo da pele, dava para ver duas luzes
vermelhas que piscavam. Na sala seguinte, aonde a orelha da Mariana seria
desinfetada, um bebê de dias estava deitadinho na maca, levando pontos na
cabecinha e chorando como um bebê de dias.
Diante desse episódio da “Família Adams” (médico cheio de dentes, menino de
nariz vermelho e neném suturado), Mariana desestabilizou de vez! Começou a
me empurrar dizendo: “Como se fala anestesia em chinês? Eu não vou cortar
nada sem anestesia! Liga pro meu pai! Liga pro meu pai!”.
A Liu saiu para pagar o procedimento enquanto eu fazia o telefonema. Expliquei
o lance da anestesia para o Luiz que falou com uma colega de trabalho chinesa
que falou com a enfermeira que passou o telefone para o médico que falou com a
Liu que já tinha voltado, mas ninguém dizia nada sobre anestesia.
No meio deste telefone sem fio, Mariana foi empurrada literalmente para dentro
da sala e deitada na maca com as lágrimas escorrendo. Enquanto a Liu passava a
mão pelo braço dela tentando acalmá-la, o médico fazia o procedimento e eu
narrava os acontecimentos: ”Agora ele pegou uma pinça, agora outra pinça
menor, agora ele está pegando uma gaze porque sangrou um pouquinho...
Vamos tomar um delicioso Frappuccino no Starbucks depois disso tudo?”.
A verdade é que: os instrumentos estavam em sacos esterilizados, o médico de
mil dentes era um doce (perguntava o tempo todo se estava doendo) e, acima de
tudo, retirou a tarraxa que estava encravada na orelha da Mari com uma
delicadeza e competência infinitas.
Todo o procedimento custou 160 RMB incluindo o remédio e levou apenas 20
minutos, desde a chegada até a saída do hospital.
E aí? Onde a gente enfia a nossa cara depois de tudo que pensamos sobre eles?
Depois de todo um julgamento preconceituoso e elitista? Ou não é nada disso e
nós demos sorte de ter dado tudo certo?
O sistema de saúde na China é assim. O cidadão paga uma parte, que é
descontada do seu salário, e a empresa paga a outra. Ele tem um cartão que dá
direito a usufruir gratuitamente do serviço médico. Se não tiver emprego, não
tem cartão. Se não tiver cartão, tem que pagar. Se não puder pagar, morre.
Pobre e rico frequentam os mesmos hospitais, com exceção daqueles
especializados em frescuras como cirurgia plástica, dentista... Isso explica os
dentes mal cuidados da maioria dos chineses.
Ou seja, por um lado, o sistema é bem socialista: ricos e pobres frequentam os
mesmos hospitais. Por outro, é de um capitalismo extremo: não tem como pagar,
sinto muito.
Se isso é justo, eu não sei. Só sei que, depois disso tudo, fomos direto para o
Starbucks, um ambiente 100% ocidental, tomar nosso Frappuccino para nos
sentirmos “seguras” novamente.


Conhecendo Macau
3 de abril de 2012

Quando nos mudamos para a China, já fui logo avisando ao maridão: presente,
agora, só viagem! Além de todas as cidades chinesas que ainda temos para
conhecer, existem vários outros países aqui em volta esperando por nós. Então,
qual o sentido de ganhar roupinhas novas com um mundo totalmente diferente à
nossa volta? Por conta disso, meu presente de aniversário este ano foi uma
viagem a Macau.
Macau! Que legal! Todo mundo vai para Macau, não é mesmo? Mas tem que
levar passaporte? Precisa de visto? Macau é um país? Que língua se fala por lá?
Português ou chinês? Onde fica mesmo?
Macau ou Aomen, como se fala em Mandarim, é uma Região Administrativa
Especial da República Popular da China. As Regiões Administrativas funcionam
no esquema de “um país, dois sistemas”, ou seja, possuem governos
independentes do da China (moeda, leis, política, etc), mas encontram-se sob sua
legislação no que diz respeito à política externa e defesa nacional. Macau e Hong
Kong são as duas RAEs da China e, sim, precisa de passaporte para poder entrar,
mas não de visto. Já ouvimos falar de muita gente que veio visitar a China com
visto de “única entrada”, resolveu dar um pulinho em Hong Kong ou Macau e
não conseguiu mais voltar. Já imaginaram?!
Gente, Macau é uma loucura! Ou, para ser menos superficial, eu diria que Macau
inaugurou o termo “globalização” há 500 anos. Toda a sinalização da cidade está
escrita em mandarim e português. Agora, sabem quantas pessoas falam
português em Macau? Três mil de uma população de 560 mil. Sabem qual o
sistema de trânsito que rola por lá? O inglês: mão invertida. Sabem qual a
carinha das pessoas andando pelas ruas? Aquelas de olhinhos puxados. Cara, que
maluquice é essa? Por que está tudo escrito em português se quase ninguém fala
essa língua? Imaginem se no Brasil as fachadas das lojas, as placas de trânsito,
os avisos nos banheiros fossem todos escritos em português e chinês?
Para entender isso tudo, tem que conhecer um pouquinho da história deste país,
ou melhor, desta Região Administrativa Especial da China. Pescadores e
fazendeiros da província de Guangdong foram os primeiros habitantes de
Macau, também conhecida como “A Ma Gao”, lugar de A Ma, deusa dos
homens do mar. Em 1550, os portugueses chegaram a A Ma Gao e adotaram este
nome que, gradualmente, foi mudando para Macau. Com a autorização dos
mandarins, os portugueses foram desenvolvendo a cidade que, em pouco tempo,
se transformou no maior entreposto comercial entre China, Japão, Índia e
Europa. A Igreja Católica Romana, na sua missão de catequizar o mundo,
mandou missionários para Macau e construiu colégios, igrejas e fortalezas que
dão a cara europeia desta cidade asiática.
Quando os ingleses e holandeses dominaram o comércio Leste-Oeste, os
chineses preferiram continuar a fazer negócios com os portugueses (isto explica
por que nós somos tão parecidos em algumas coisas). No entanto, depois da
Guerra do Ópio em 1841, Hong Kong foi oficializada pelos ingleses e a maioria
dos mercadores abandonou Macau. O país virou, então, um local pitoresco e
parada obrigatória para escritores e artistas internacionais que vinham aproveitar
os lazeres multiculturais que, hoje em dia, se traduzem em cassinos de tirar o
fôlego! Um deles, o “The Venitian”, construiu uma Veneza no segundo andar do
hotel com direito aos canais, gondoleiro cantando, céu ensolarado de dia e
estrelado de noite. Inacreditável o que o dinheiro pode fazer
https://www.youtube.com/watch?v=3a2CwaJm6sg
Em 20 de dezembro de 1999, Macau deixou de ser administrada por Portugal e
passou a ser a tal Região Administrativa Especial Chinesa. Nesta data, todas as
placas de rua foram refeitas para que os dizeres em chinês viessem antes dos em
português. Os chineses tomaram cuidado para que os tradicionais azulejos
portugueses fossem perfeitamente copiados. Até 2049, quando a administração
de Macau passar definitivamente para a China, tudo precisa estar escrito em
português e todas as repartições públicas necessitam de pelo menos uma pessoa
que fale esta língua. Por isso, a grande maioria dos portugueses que ainda vive
em Macau é de advogados que ajudam a interpretar as leis escritas em português.
É ou não é uma maluquice completa?
A comida também é globalizada e por isso pudemos matar as saudades de casa.
Comemos bacalhau ao Braz, bacalhau na nata, bolinho de bacalhau, dobradinha,
pastéis de Santa Clara, serradura... tudo isso sem nenhum filho para pedir: “Dá
para tirar o bacalhau do meu bolinho que eu não gostei?”
Mas se quiséssemos permanecer na comida asiática, sem problemas! Em todas
as lojas de comida havia doces portugueses, doces macauenses (crepe de massa
doce com alga e farofa de amendoim), e também as famosas carnes secas
temperadas. Confesso que não provamos nem um pedacinho da carne, nem
mesmo as amostras grátis que eles tradicionalmente distribuem pelas ruas.
Além de ser uma cidade globalizada por natureza (muito antes da Internet
existir), Macau é absolutamente civilizada, principalmente se comparada à
China. Em todas as esquinas, há placas lembrando que a multa por infrações
como escarrar no chão (recadinho explícito para a chinesada) custa 600 patacas.
Em resumo, adoramos Macau! Mas, ficou faltando explicar o porquê das ruas e
dos carros terem direção inglesa. Mortos de curiosidade, buscando explicação
histórica para o fato, perguntamos ao português que gerenciava nosso hotel e ele
nos respondeu com seu sotaque característico: “Muito simples. Porque Macau
importa seus carros de Hong Kong!”.
Ah, tá!
Quem mandou
querer trabalhar?
10 de abril de 2012

Por incrível que pareça, a maior mudança em minha vida ao vir para China não
foi vir para a China, mas sim, parar de trabalhar. Consegui meu primeiro estágio
em 1986 e, a partir daí, nunca mais parei! Em resumo, sou uma mulher que há
mais de 20 anos acorda de manhã, se fantasia de executiva, sai para o trabalho e
só volta à noite.
Infelizmente ou felizmente, ao vir para a China, fui obrigada a largar esta vida e
assumir, pelo menos por uns tempos, o papel de “mulher do Luiz” ou “mãe da
Mariana, do Marcos e do Eduardo” ou “do lar”, ou como preferirem. Só que, ao
longo desses dez meses, passei a ter crises de abstinência, complexos de culpa,
ansiedade, desorientação... até que meu amigo brasileiro me conseguiu um
trabalho: professora de inglês para chinesinhos de 3 a 10 anos.
“Yes! Que experiência maravilhosa!”, pensei, “Trabalhar na China e ainda mais
com crianças!”, ignorando solenemente que o meu visto não me dava o direito
de trabalhar. Enfim, erros de marinheiro de primeira viagem sedento para
colocar os pés em terra firme.
Preparei-me para a aula de demonstração de 15 minutos para criancinhas de 4
anos. Comprei uns bichinhos de madeira, adesivos, balinhas; procurei ideias no
Youtube, conversei com uma amiga que também é professora, e fui à luta. A aula
foi um sucesso! Durantes os 15 minutos, os chinesinhos brincaram e se
divertiram com os bichinhos e eu fui contratada para dar aulas para 3 turmas:
criancinhas de 3/4 anos, crianças de 7/8 e pré-adolescentes de 9/10.
Enquanto estava lendo no contrato as cláusulas que falavam sobre a metodologia
de ensino, apresentação prévia do conteúdo das aulas, etc., a professora
responsável pela contratação me disse em um inglês macarrônico: “Nada disso é
importante. O que importa é que você não chegue atrasada nem falte a nenhuma
aula.”. No contrato havia multas para cinco minutos de atraso, para ausência sem
aviso, para pedido de demissão e várias outras penalidades que incidiriam
diretamente sob o meu salário, além de um incentivo financeiro para o professor
que apresentasse outro professor.
Comecei a achar aquilo meio promocional demais para uma escola.
Assinei o contrato, fechei o valor da aula e fui para casa sabendo que começaria
na terça seguinte, mas ainda sem saber o conteúdo das aulas. Fiquei cobrando
por e-mail os conteúdos ao longo do sábado, domingo e segunda (sim, o curso
funciona todos os dias), e nada de eu saber o que eu iria ter que ensinar.
A ficha começou a cair devagarinho...
Finalmente, na segunda à noite, duas das três professoras me responderam e
pude preparar alguns joguinhos. As aulas funcionam em 2 partes. Os primeiros
40 minutos são dados pelo professor estrangeiro e os outros 40 minutos pela
professora chinesa. Os nomes das crianças, em sua versão ocidental tais como
Kevin, Jasmine, David e por aí vai, ficam escritos no canto esquerdo do quadro e
o professor vai desenhando estrelas por bom comportamento e performance. Ao
fim das aulas, a professora conta as estrelas e passa para a cartelinha da criança.
Meritocracia? Adestramento? Sei lá, só sei que as crianças estavam se lixando
solenemente para as estrelinhas.
Terça-feira, saí de casa super cedo munida de bolas, balas, estrelas de papel,
fantoches e qualquer coisa que pudesse me ajudar a dar aulas divertidas e
interessantes. Em minha primeira aula, para criancinhas de 3 a 4 anos, de 17h20
às 18h, descobri que esses grandes bebês estão programados para repetir e gritar.
Eu dizia “Hi Cody!”. Eles tinham que responder: “Hello, Cody”, mas não
funcionava. Se eu dizia “Hi” eles gritavam “Hi”, se eu dizia “Hello”, eles
gritavam “Hello”. Além disso, percebi que ia ser muito, mas muito difícil
mesmo decorar o nome daquelas coisas fofas, todas parecidinhas, com
nomezinhos que não tinham nada a ver com seus olhinhos puxados. Onde já se
viu uma chinesinha de cara redonda e boquinha de coração se chamar Stephanie?
Para complicar ainda mais, havia gêmeas na sala (Emily e Ema) que a
professora-assistente, para me ajudar, colocava um adesivo de cores diferentes
em suas pequenas testas. Gêmeas chinesas é sacanagem, não é?
Em resumo, meus joguinhos acabaram 10 minutos antes do tempo previsto e tive
que inventar uma brincadeira de última hora para as crianças gritarem mais um
pouquinho.
Na segunda aula, para crianças de 7 anos, de 18h10 às 18h50, (aula cujo
conteúdo a professora não me passou) aprendi que esses chinesinhos são muito,
mas muito mal-educados. O perfil básico é o seguinte: maioria de meninos
(havia 8 meninos e 2 meninas na turma), todos filhos únicos de pais ricos, que
podem pagar escolinhas particulares, e todos criados pelos avós que moram com
a família quando o filho casa. Ou seja, crianças altamente mimadas.
Assim que cheguei, um menino chamado Hank parou à minha frente, fez uma
careta e começou a rebolar desdenhando da nova professora. Se fosse o Dudu, já
tinha levado logo um safanão! Pensei como os outros professores faziam em
uma situação destas e percebi que, exceto eu e o meu amigo brasileiro, todos os
outros professores eram africanos, negões e fortões (pelo amor de Deus, sem
qualquer preconceito). Neste momento, a ficha que vinha caindo devagarinho,
deu uma grande deslizada. Eu era mulher e baixinha como todas as professoras
chinesas. Esses pestinhas não vão me respeitar nunca!
A aula foi uma zona! Eu não tinha tido acesso ao conteúdo e tive que improvisar
joguinhos os quais as crianças faziam questão de melar! Tem que jogar a bolinha
e acertar a “doll”! O primeiro jogava, errava, a bola caía no chão, o Hank corria
e pegava. Um outro vinha e pegava a bola da mão dele, um terceiro entrava na
disputava e eu ficava tentado apartar a briga e ameaçando apagar as estrelinhas
dos nomes deles. Lá pelas tantas, peguei um pelo colarinho da blusa e coloquei
sentado na carteira. Caraca, esses pestinhas conseguiram me tirar do sério! Vou
ser deportada por agressão física!
Finalmente, chegou a hora da última aula para crianças de 9 anos, de 19h às
19h40. Eram 3 meninos e 2 meninas unidíssimos que não olhavam para a minha
cara. Ficavam desenhando e conversando em chinês entre eles. Havia um aluno
novo, o Kevin, que ficou na dele e não quis jogar os joguinhos que eu havia
preparado. Com esta turminha, aprendi que é impossível para uma criança que
passou o dia inteiro na escola (de 8h às 17h) ter fôlego para encarar mais uma
aula de inglês. Lembrando que depois que eu terminasse minha parte, eles ainda
ficariam com a outra professora até às 20h30. Como conquistar, seduzir e
empolgar crianças tão cansadas? Fora a parte em que eles rasgaram e jogaram no
chão os envelopinhos coloridos que fiz para eles, a aula foi chata!
Quando cheguei em casa, depois do que me pareceu 10 horas de escritório,
imensamente desapontada, duvidando do meu carisma e competência, Marcos e
Dudu ameaçaram começar uma discussão. Já fui logo avisando: “Meu estoque
de paciência está deficitário; o primeiro que abrir a boca vai...”. Enfim, logo no
primeiro dia, minha vida profissional já começava a interferir em minha vida
particular.
Depois dessa terça, dei aulas no sábado seguinte, com a presença dos pais (eu
mal tinha começado e já estava encarando um “open class”!) que acabaram
sendo um pouco melhores do que as primeiras e nas quais não precisei pegar
ninguém pelo colarinho do uniforme. O Kevin, da turminha de 9 anos, não veio.
Na terça seguinte, sabendo apenas o conteúdo de uma das aulas (qual a “porra”
da dificuldade de me dizer com antecedência o que eu tenho que ensinar?) fui à
labuta, depois de ter esperado o ônibus durante meia hora, o que me fez sair
correndo com um computador nas costas e minha bolsa cheia de bolinhas,
fantoches e estrelinhas para não chegar atrasada e ser descontada.
Chris, Chris, você já foi diretora de agência, já fez apresentação para presidente
da Coca-Cola, que “cazzo” faz você correndo que nem uma louca pelas ruas de
Shenzhen para não chegar atrasada no serviço? Ficha caindo mais uma vez.
Neste dia, na última aula para as crianças de 9 anos, o Kevin reapareceu. Sentou
bem longe de todo mundo e se recusou a participar do jogo inicial. Na hora de
mostrar uns filminhos no meu computador (vocês estão de prova que eu estava
me empenhando para conquistar a criançada), o Kevin sentou longe de todo
mundo e de costas para a tela. Lá pelas tantas, a avó do Kevin entra na sala, vê
aquela cena (o netinho alijado, excluído, segregado do grupo) e começa a me
pagar o maior esporro! Não bastasse, ficou me empurrando para me forçar a
olhar para ela. A professora chinesa tentou interferir, mas ela não parava de
gritar. Quando minha paciência acabou, levantei da cadeirinha em que estava
sentada, encarei a vovó e mandei-a parar de gritar comigo. A professora quase
enfartou! Pediu pelo amor de Deus para eu não fazer nada, ignorá-la e continuar
a dar a aula. O Kevin queria morrer! Eu continuei a mostrar o vídeo para as
crianças por mais 20 minutos, durante os quais a velhinha permaneceu gritando
no fundo da sala.
Foi nesta hora que a ficha finalmente caiu: “Alô, Chris? Aproveita a deixa da
vovó e pede demissão!”.
Minha única reação quando a aula acabou foi chamar o Kevin em um canto para
dizer que a culpa não era dele e lhe dar uma barra de chocolate a qual ele teve
muita dificuldade em aceitar.
No dia seguinte, por e-mail mesmo, disse que não era possível continuar. Meu
amigo pegou meu salário no fim do mês por mim (sobre o qual eles não me
aplicaram nenhuma das multas previstas no contrato) e ponto final. Minha crise
de abstinência passou e agora só penso em estudar, viajar, ser esposa do Luiz e
mãe das crianças! Quem mandou querer trabalhar?
Torta na cara
16 de abril de 2012

Dudu chegou em casa em uma sexta-feira, depois da escola, feliz da vida: –
Realizei um desejo!
– Nossa Dudu, que bom! O que você fez?
– Joguei uma torta na cara da Ms. Towers!
– Como assim, jogou uma torta? De verdade? Na cara da professora?
– É! Eu fui uma das crianças que mais leu livros nas últimas semanas e ganhei
como prêmio o direito de jogar uma torta na cara dela! Ela ficou toda suja!
E aí, meus amigos? Eu fico aqui, do alto do meu suposto “mais civilizado
comportamento ocidental”, falando das maluquices dos chineses e o Dudu me
chega com uma novidade dessas?
As crianças estudam em uma escola internacional que segue o currículo
americano e que só contrata professores nativos na língua inglesa. Os alunos não
chamam os professores de tio ou tia, aliás, grande parte do corpo docente é de
homens, mesmo na pré-escola. Os alunos se referem aos professores como
mister, ou seja, senhor fulano, senhora beltrano. Quando o professor entra em
sala de aula, ninguém mais entra e todos calam a boca. Nessa escola, cheia de
regras, os alunos também têm o direito de jogar uma tortinha na cara dos
professores de vez em quando, sem que isso abale o respeito da relação
professor-aluno. No Brasil, acredito que isso seria inadmissível.
Vejam agora outra diferença cultural entre ocidentais do mesmo continente,
afinal nós e os ianques somos todos americanos. A Mariana, que já está no
Ensino Médio foi convidada a participar de um projeto de conscientização sobre
a fome no mundo que consistia em passar 30 horas sem comer nada! Trinta! E
para que? Para sentir o que as pessoas que estão morrendo de fome sentem! Sabe
o que significa dizer para uma mãe brasileira que seu filho vai ficar 30 horas sem
comer? Literalmente, a morte! Óbvio que não deixei a Mariana participar. Até
por que seria mais útil levar as crianças para visitar orfanatos ou dar comida para
os pedintes de rua do que passarem a noite na escola comendo snacks
escondidas.
Em contrapartida, semana passada rolou uma experiência na turma do Dudu para
introdução de conceitos básicos de “Engineering”. Eles tinham que “salvar”
ovos de uma queda de 10 metros, mais precisamente do terceiro andar da escola
até o piso térreo. Obviamente, que a maioria dos ovos se estatelou lá embaixo.
No Brasil (e acredito que também na China), países que ainda lidam com o
problema da fome, jogar comida fora nos parece, no mínimo, politicamente
incorreto. No entanto, para os americanos que dirigem a escola, isto é
absolutamente divertido e envolvente. E não tem nada a ver com o projeto de
conscientização da fome. Um contrassenso, né?
Enfim, essa mania que os ocidentais possuem de ficar criticando os hábitos
chineses é puro preconceito. Todos nós temos nossos telhados de vidro. E quem
achar que não tem, que atire a primeira pedra! Ou a primeira torta! Ou o
primeiro ovo!
Chinglês
21 de abril de 2012

Faz mais de seis meses que estou aprendendo mandarim. Quer dizer, aprendendo
a falar mandarim, porque ler e escrever, por enquanto, não há a menor chance! O
que fazemos é usar o pinyin, que é o som do ideograma em alfabeto romano,
para aprender a pronunciá-lo. Exemplo: “xié xié” é a fonética deste desenhinho
aqui: “ 谢谢 ”.
O único problema é que a fonética dos ideogramas não está escrita nas placas de
rua, nos supermercados ou embalagens de produto. Ou seja, os estrangeiros, que
até conseguem se comunicar em mandarim são em sua maioria analfabetos!
Aliás, não sei se vocês sabiam que a China possui vários dialetos totalmente
diferentes uns dos outros, mas apenas uma escrita. Desta forma, qualquer chinês,
não importa de que parte do país for, consegue se comunicar com outro chinês
através dos ideogramas. Eu acho isso o máximo!
Os ideogramas são muito parecidos e qualquer perninha ou tracinho puxado no
lugar errado muda totalmente o significado da palavra. Por exemplo, 买 quer
dizer comprar e 卖 quer dizer vender. Uma sutil diferença de perninhas, mas
uma enorme diferença de significado. E para complicar mais ainda, o primeiro se
fala “mai” e o segundo também, mas com entonação diferente.
Assim como é difícil para os ocidentais aprenderem a escrever em chinês, o
mesmo acontece com os chineses que precisam aprender a escrever em inglês. Já
me alertaram para nunca escrever palavras em inglês usando apenas caixa alta
porque isso confunde os chineses. Faz sentido: BEAUTIFUL parece mais difícil
de ler do que beautiful. Ou não?
Enfim, todo este blá blá blá foi apenas uma introdução para mostrar que, assim
como nós ao tentar desenhar os caracteres, os chineses também misturam,
trocam e repetem letras quando estão escrevendo em inglês. O que eu vi escrito
na seção de congelados de um supermercado aqui de Shenzhen, foi
inacreditável! Em tempo, estava tudo em caixa alta! Vejam só.
FISHFIUET
Imagino que eles tenham querido dizer fish filet. Mas que diferença fazem duas
letras “ele” de uma letra “u”? Ambos não são dois pauzinhos para cima?
ICE CBEAM
Os chineses adoram sorvete de feijão. Inclusive, já compramos por engano o
verde, achando que era de limão, o rosa achando que era de morango e o marrom
achando que era de chocolate. Não preciso dizer que os brasileirinhos aqui de
casa detestaram! ICE CBEAM dever ser uma mistura de ice cream com ice
bean. Detalhe: beam com “m” significa “viga”. Então, preparem os dentes!
DESSET
Com certeza é dessert ou sobremesa, mas na dúvida, melhor não aceitar e manter
o regime!
FRIEDDUMPLINGWANTUN
Se colocarmos os devidos espaços entre as três palavrinhas fica mais fácil de
entender: fried dumplig wantun. O problema é que cazzo seria wantun.
FROZENSTEAMEDSFCFFEDBUN
Frozen steamed ... ganha um wantun para quem adivinhar o que é sfcffedbun.
FROZENSHEMEDROU
“Frozen .... sim, medrei diante de tamanho desafio.
INPOTEDBUTIER
Essa é fácil: manteiga importada ou imported butter.
STEAMED BROAD STEAMED CAMBREOD
Essa, eu passo. Alguém quer tentar?
Mas, se você ficar confuso com tanto nome esquisito, não tem problema. O
supermercado disponibiliza a seus clientes a moderníssima ”Star Farm
Traceability Search Machine”, traduzindo, Máquina Rastreadora das Estrelas da
Fazenda. Seja lá o que isso quer dizer, tenho certeza de que foi inventada pelo
Sr. Cleison das Organizações Tabajara. Alguém se arrisca?
Dia de Tufão
3 de maio de 2012

O sul da China é a terra dos tufões. Na primeira reunião com o diretor da escola
das crianças, um dos assuntos que ele mais enfatizou foi o plano de emergência
em caso de tufão. Nesses 9 meses, não vimos nenhum tufão de verdade, apenas
chuvas e ventos fortes. Porém, nesses 9 meses, já passei por diversos tufões
emocionais. Hoje foi um desses dias. Todas as minhas ideias do que fazer na
China que pareciam tão sólidas - estudar, trabalhar, abrir um negócio em
parceira com um chinês-hoje não são mais do que folhinhas secas voando de um
lado para o outro.
Nesses dias, melhor seguir o plano de emergência do diretor: buscar um lugar
seguro e esperar a tempestade passar. E quando o sol abrir novamente, procurar
as folhinhas secas; ver quais se perderam na tempestade e quais resistiram a ela.
Mas por que publicar isso em um livro sobre a China? Sei lá. Porque talvez
outras pessoas estejam debaixo de uma tempestade emocional e possam se sentir
mais abrigadas ao ler este texto.
Na China ou no Brasil, gente é tudo igual.
Ménage à trois
9 de maio de 2012

Foi em uma tarde quente de verão. Marido no trabalho, crianças na escola... dia
perfeito para dar uma escapada e viver novas aventuras. Venci a timidez, tomei
coragem e fui falar com ele. Nossa empatia foi imediata! Ele foi logo me
pegando pelo braço e me aconchegando em uma grande poltrona macia. Minha
vontade era tanta, que pensei em começar a tirar a roupa ali mesmo, mas senti
que ainda não era hora e me controlei. Ele pegou gentilmente meus pés e
mergulhou-os em água quente. Sentou atrás de mim, encostando suas pernas em
minhas costas, e começou a me acariciar com roupa e tudo. Em seguida, passou
a esfregar seu antebraço em meus ombros, pegou meus braços, cruzou-os em
frente ao corpo e me puxou de encontro ao seu peito. E, como se não bastasse,
começou a me bater em ritmo acelerado e compassado, com suas mãos firmes e,
ao mesmo tempo, delicadas. Sem cerimônia, me fez deitar em seu colo, encaixou
seus joelhos em minhas costas e começou a fazer movimentos com as pernas que
me faziam subir e descer, subir e descer... Pronto, me apaixonei!
Amigos, o nome disse não é sacanagem nem traição. O nome disso é ”Foot
Massage”!
Aqui na China, a gente encontra casas de massagem a cada esquina. Perto de
onde moramos há pelo menos três. Apesar do nome ser “massagem no pé”, o
ritual é sempre o mesmo. Você vê aquele poltronão delicioso e, quando vai se
refestelar nele, o massagista o coloca sentado no banquinho de apoio com os pés
enfiados em água quente (temperada com leite, ou gengibre ou outro
aromatizante qualquer) e é ele quem, em um primeiro momento, senta no
poltronão.
Ninguém precisa tirar a roupa. A massagem é feita por cima da calça jeans, da
blusa e a gente nem lembra que está vestido. É claro que eles também oferecem
a “Body Massage” na qual você deita de roupão e recebe uma massagem
tradicional. Eu, particularmente, curto esta liberdade de poder estar no meio da
rua e, subitamente, decidir fazer uma massagenzinha de roupa e tudo. Alguns
Foot Massage oferecem salas reservadas com 4 ou 5 poltronas para você fazer
massagem com os amigos. Outros colocam todo mundo em um ambiente único
A duração média é de 80 minutos e o preço fica por menos de 100 RMB. E para
completar, eles ficam abertos até às 4 da matina para quem quiser uma
massagem nos pés depois da balada.
Massagear as pessoas parece ser um talento inato dos chineses. Qualquer um que
pega nas suas costas, o faz com muita competência. E em qualquer lugar. No
cabelereiro, o momento de lavar as madeixas é inesquecível. Você não senta
naquelas cadeiras que colocam seu pescoço em um ângulo de 260 graus com o
gogó pulando para fora. Aqui, você deita, confortavelmente, em uma cama que
possui uma pia acoplada e recebe uma massagem na cabeça. Na cabeça, nos
ombros, braços e pernas e ainda uma máscara de gengibre e limpeza do ouvido.
Uma delícia!
É claro que algumas casas de massagem também oferecem lazeres menos
nobres, mas aí, eu não sei contar como funciona exatamente. Só sei que meu
primeiro contato com a massagem chinesa deixou marcas profundas em meu
coração e que semana que vem vou levar o Luiz para fazermos um “ménage a
trois”!
https://www.youtube.com/watch?v=H8q5mw2taAc

Aventuras de uma família
brasileira em Changchun - 1
18 de maio de 2012

Quando decidimos vir morar na China por nossa livre e espontânea vontade,
ouvi (e ainda ouço) muitos cumprimentos pela minha coragem. Confesso que
tomar uma decisão tão radical realmente demandou muito desprendimento de
toda a família, incluindo meus pais e sogros. No entanto, a cada dia que passa,
conheço diferentes pessoas com diferentes histórias que fazem da minha
aventura um conto de fadas.

Apesar de só estar há 10 meses na China, resolvi ir sozinha visitar uma amiga


que fiz através da Internet e que mora no norte do país, em uma cidade chamada
Changchun (pronuncia-se “tchan-tchu-an” - os mais velhos devem ter se
lembrado da propaganda da Gilette: “A primeira faz tchan, a segunda faz tchun).
A família de 4 pessoas (pai, mãe e um casal de filhos) possuía um negócio
próprio no Brasil. Por motivos que nem eles mesmos sabem ao certo (sempre
conhecemos nossas razões, mas nem sempre conhecemos e dominamos nossas
emoções), decidiram arriscar a vida fora do Brasil. Espalharam seus currículos
pelo mundo e foram chamados pelos chineses para serem professores de inglês
em uma escolinha parecida com a que tentei ”trabalhar“ tempos atrás.

Só que, chegando em Changchun há quase cinco anos, as coisas não


aconteceram exatamente como previsto. Nem tudo o que foi prometido foi
cumprido e a família viveu uma barra pesada. Para começar, em Changchun o
inverno dura sete meses e a temperatura cai a -30º C. Em Changchun, ninguém
fala inglês. Em Changchun, os chineses são muito mais chineses do que na
ocidentalizada Shenzhen (eu já desconfiava que Shenzhen não fosse padrão
chinês, mas agora tive a confirmação). Eles arrotam, empurram, fumam em
qualquer lugar, escarram, escarram, escarram, não cheiram bem. Os taxistas
dirigem como loucos e, na busca por maiores ganhos (a bandeirada lá é 5RMB,
menos da metade de Shenzhen) fazem lotação: você está lá, sentada
encolhidinha no seu táxi, quando o motorista para e entram mais duas pessoas.
Fora encarar uma cidade assim, minha amiga precisou matricular os filhos em
escola chinesa. As crianças choraram muito até se adaptar ao mundo chinês, não
sem antes quase desaprenderem a comer com garfo e faca. Ela diz que eles
pareciam uns porquinhos empurrando comida pela boca com os pauzinhos,
sujando a mesa e a roupa. Certa vez, o filho mais novo voltou para casa com
uma ponta de lápis enfiada na testa. Quem é mãe, sabe o que é isso. Ainda mais
quando a escola diz: “Se não está satisfeita, pode ir embora!”.

Fora a cidade, a escola, o preconceito contra os estrangeiros em geral, o emprego


como professora em um jardim de infância onde as professoras batiam nos
chinesinhos que não faziam o dever de casa ou amarram suas mãos atrás das
costas pelas mangas da camisa, outras coisas estranhas, e às vezes engraçadas,
aconteciam na vida da minha amiga. Por exemplo, a proprietária do antigo
apartamento, que por “lei” mantinha uma cópia da chave com ela, amanhecia na
sala, lendo jornal, para checar se estava tudo bem com o apê. Isso aconteceu com
tanta frequência (ela chegava até a lavar a louça do jantar para eles), que a
família decidiu mudar de apartamento antes que a proprietária flagrasse o casal
em algum momento mais íntimo e, quem sabe, quisesse participar também.

Hoje, 5 anos depois, esta outra família brasileira na China está muito bem. O pai
foi trabalhar em uma escola americana, o que proporcionou a possibilidade das
crianças estudarem lá. Está fazendo mestrado e crescendo profissionalmente. E,
mais do que tudo, tem um brilho invejável nos olhos quando fala de seus alunos.
As crianças são os intérpretes da família. Adivinhem quem fez a reserva do meu
hotel? Falam, leem e escrevem em chinês, fora o inglês e o português. A menina
toca, entre outros instrumentos, o inimaginável Erhu. O menino aprendeu a fazer
sushi e vem mostrando dotes para fotografia. Ambos são doces, meigos e
carinhosos. Assim o são, porque estão amparados por pais corajosos que se
ajudam e seguram juntos as barras mais pesadas.

Minha amiga, depois de 5 anos de resignação, está voltando a se enxergar. Parou


de trabalhar e está pensando em aprender chinês, se dedicar mais ao corpo e
voltar a pintar. Enfim, a reencontrar a paz de espírito que ficou meio perdida
frente a tantos desafios.

Como vocês podem ver, quem sou eu para falar de coragem vivendo em
Shenzhen, sustentada por um marido com emprego estável e com dinheiro para
encarar os imprevistos? Galerinha de Changchun, vocês são demais!


Aventuras de uma família
brasileira em Changchun - 2
24 de maio de 2102

Changchun, de apenas 200 anos, é a capital da província de Jiling e a segunda
maior cidade do nordeste da China. Os expatriados que moram por lá trabalham,
em sua maioria, na indústria automobilística. Assim como Shenzhen e todas as
outras (poucas) cidades chinesas que já conheci, Changchun é um canteiro de
obras. A paisagem é totalmente permeada pelos tradicionais guindastes
gigantescos que vemos a cada esquina. Ainda em nível de comparação,
Shenzhen está cheia de edifícios enormes e de chineses pequenos. Changchun,
por sua vez, não tem nenhum prédio muito suntuoso (a não ser a torre de TV),
mas em compensação, possui os maiores chineses que eu já vi: altos, fortes e
gordos. É, minha gente, mais do que gordos, obesos mesmo! Três fatos, em
minha opinião, explicam tais características: a proximidade da Mongólia
(lembram do Gengis Khan?), os sete meses trancafiados em casa por conta do
inverno e, como não poderia deixar de ser, a profusão de McDonald’s e KFC’s
pela cidade (aliás, bendito KFC e seu café bem quentinho).
Fora os lindos parques que no inverno devem ser maravilhosos, cheios de neve,
o que mais me impressionou em Changchun foi o “Museu Japonês”. Quando o
Japão invadiu a China em 1931, a cidade foi escolhida como base para o
imperador. Visitamos o palácio onde ele se aboletou com o apoio dos traidores
chineses e vimos imagens de arrepiar, eu diria que piores do que as que
assistimos no filme “Flores da Guerra”. Com certeza, este foi “o holocausto
chinês” que deixou sequelas profundas nos moradores da cidade. Na entrada do
museu, há um painel gigante escrito: “Não se esqueça, por favor!”, em todas as
línguas e um texto que diz: “Atualmente, a maioria dos adolescentes japoneses
desconhecem as crueldades que o Japão cometeu na China …. Por causa disto,
nós preparamos uma grande quantidade de materiais visuais baseados em fotos
históricas, relíquias e testemunhos… Desejamos que nossa história não seja
apagada… Estamos determinados a fazer qualquer coisa para prevenir que essa
tragédia se repita”. Arrepiante! Quando aconteceu a Tsunami no Japão em 2011,
os “changchuenses” comemoraram dizendo: “Eles tiveram o que mereciam”.
Outra coisa impressionante que vi em Changchun foi o meu quarto de hotel.
Minha amiga se esmerou para encontrar um hotel que coubesse na categoria
“bom, bonito, barato e bem perto da casa dela”. O hotel mais pertinho de sua
casa declarou não ter licença para receber estrangeiros. Hein? Como assim?
Arrisquei: dever ser porque ninguém fala inglês. Ela riu e esclareceu que
ninguém fala inglês em Changchun, nem neste hotel e nem em nenhum outro.
O hotel em que fiquei, que aceitava estrangeiros, era bem simpático e até me
deram um quarto todo decoradinho. Porém, decoradinho “à la chinesa”! O
grafiteiro, ou pintor, ou designer que concebeu a decoração encheu-o de flores
marrons usando aquela técnica da esponja. Só que ele exagerou na dose e o
quarto ficou todo preto parecendo o do filme ”Água Negra” do Walter Salles.
No filme, a vizinha do andar de cima tinha matado a filha afogada na caixa
d’água do prédio e, de noite, a fantasminha fazia vazar água para o apartamento
debaixo, deixando-o cheio daquelas marcas nojentas de infiltração. Passei duas
noites com medo de uma chinesinha assassinada aparecer deitada ao meu lado na
cama.
Como se não bastasse, no dia seguinte levantei às 4h30 da matina para viajar
com minha amiga e, ao passar pela recepção, em plena madrugada, flagrei o
dono do hotel dormindo sobre uma mesa, de barriga para cima, mãos cruzadas
no peito, coberto até o pescoço, igualzinho a um velório. Na noite seguinte,
depois que começou a sair água do ralo do meu banheiro, me mudei para a casa
da minha amiga.
Meu último jantar em Changchun foi em um restaurante temático. Só que o tema
era um tanto quanto inusitado: o partido comunista. O restaurante reproduz uma
cidadezinha rural e seus ícones comunistas e serve uma comida deliciosa. O
engraçado foi que, lá pelas tantas, a “maître do partido” começou uma reunião
com os “camaradas garçons” e desceu o verbo à la capitalista: nosso concorrente
está melhor do que nós, blá, blá blá.
Esta aventura solitária por aeroportos, estações de trem e hotéis deu uma
levantada na minha autoestima e, ao contrário do “Dia de Tufão”, já me sinto
melhor preparada para enfrentar mais um ano de China.
Me arruma um ocidental aí!
10 de junho de 2012

Este mês, nós estamos nos mudando da nossa casa para um apartamento. Como
o apê não é mobiliado, tenho saído praticamente todos os dias para comprar
móveis. Nesta minha peregrinação por diversas lojas, eu, como boa publicitária,
não pude deixar de reparar nas propagandas de móveis. Pelo menos quatro lojas
diferentes trabalham em cima do mesmo tema: homem ocidental entre seus 40 e
50 anos, com cara de intelectual, mão no queixo ou braços cruzados, logomarca
ao fundo como se quisesse dizer: “Nossos móveis são modernos-sofisticados-
inteligentes como nosso garoto propaganda estrangeiro”.
Parece que tudo começou com um senhor de cachimbo que, segundo uma amiga
decoradora, seria Natuzzi, famoso arquiteto italiano. A concorrência não poderia
ficar para trás e decidiu encontrar seus próprios garotos propaganda. Perguntei
para a minha amiga chinesa, que está me ajudando a negociar a compra dos
móveis, se os chineses conheciam estes senhores respeitosos das fotos e ela
respondeu: “Não, mas eles são ocidentais e os chineses confiam nos ocidentais”.
Reparem: ela não mencionou o país. Na China, basta ser ocidental para ser visto
como superior. Pensando bem, assim como os chineses não conseguem
distinguir um alemão de um espanhol, nós também não sabemos diferenciar um
japonês, de um chinês ou de um coreano. E, ao vermos um garoto propaganda de
olhinhos puxados, tenho certeza de que a maioria de nós pensa logo nas lojas de
R$ 1,99, pastelaria ou lavanderia. Sem falar das pessoas que, ao saber que eu
moro na China, me perguntam se eu como muito sushi.
As escolas de línguas aqui de Shenzhen estão cheias de russos, iranianos,
holandeses, dando aula de inglês carregado de sotaque e, por vezes mal falado,
simplesmente porque são ocidentais. Por outro lado, uma amiga americana,
nascida em Nova York e filha de chineses não consegue ser contratada em
nenhum desses cursos simplesmente porque tem traços orientais.
Somos todos uns ignorantes sobre a cultura alheia, não é mesmo?
Por coincidência, enquanto comprávamos os móveis, minha amiga recebeu uma
ligação de uma colega perguntando se ela tinha um ocidental para acompanhar
crianças a uma viagem de 7 dias pelo interior da China. Ela olhou para mim e
perguntou se eu queria. Meu instinto suicida respondeu antes que meu cérebro
pudesse raciocinar: sim, sim, sim! Dois minutos depois, resolvi me certificar:
– As crianças falam inglês, né?
– Não, lógico que não.
– Mas eu não falo chinês!
– Fala sim! O que você sabe é o suficiente.
– Como assim? Não posso passar 7 dias com crianças chinesas repetindo as
mesmas únicas frases que conheço: “Bom dia, não faça isso, fique junto”. Já dei
aula para chinesinhos e sei que não vai dar certo. Mas porque sua colega não
contrata uma chinesa?
– Porque os chineses se sentem mais seguros quando há um ocidental por perto.
Depois disso tudo, estou pensando seriamente em começar a agenciar o Luiz:
mão no queixo, cara de intelectual e estamos conversados.
Crianças da terceira cultura
17 de junho de 2012

Shekou, o bairro de Shenzhen onde moramos, está no maior clima de fim de
festa. No final do ano letivo (que aqui acontece em julho), as famílias de
estrangeiros ou vão passar as férias de verão em seus países, ou voltam de vez
para casa. Todos os dias as crianças trazem uma novidade triste: fulano vai
embora, está é a última semana de sicrano na China. Esta sexta-feira as crianças
receberam o “Year Book”. Sabe aquele livro que a gente vê nos filmes
americanos, com as fotinhos de todos os alunos da escola? Esse mesmo, só que
com uma grande diferença: as fotos são de alunos de todos os lugares do planeta.
Crianças cujos pais viajam mundo a fora por conta de seus empregos. Crianças
que, como aprendi recentemente em uma palestra sensacional da Dra. Josephine
Kim, são chamadas de “Third Culture Kids” (Crianças da Terceira Cultura).
A Dra. Josephine foi uma dessas crianças. Uma coreana que, com 9 anos de
idade, foi morar nos Estados Unidos. Como na América ninguém sabia onde
ficava a Coreia, ela foi chamada de japonesa, de chinesa, sem saber que isso já
seria o início de sua perda de identidade. Depois de passar um ano tirando notas
baixas em todas as matérias, ela resolveu acabar com a palhaçada e decidiu que
seria uma americana de verdade. E conseguiu, a ponto de um dia se olhar no
espelho do banheiro junto com as amiguinhas e levar um susto: ”Quem é essa aí
de olhinhos puxados, cabelo preto e liso? Eu deveria ser loira de olhos azuis”.
Quatro anos mais tarde, o pai precisou voltar para a Coreia e lá foi a futura Dra.
Josephine de volta para o seu país. Ou melhor, de volta para um país onde ela
não conhecia mais os códigos culturais. Na Coreia, mascar chicletes, colocar as
mãos no bolso e olhar um adulto nos olhos são faltas gravíssimas. E ela, como
boa americana, cometeu todas. Dra. Josephine, aos 13 anos, já havia se
transformado em uma criança da “terceira cultura”.
Olhem que curioso: os emoticons utilizados pelos asiáticos são diferentes dos
utilizados pelos ocidentais. Como nós expressamos nossas emoções e falamos
tudo que sentimos, o que basicamente muda nos nossos bonequinhos é a posição
da boca. Os coreanos, culturalmente, não possuem liberdade de falar o que
pensam, por isso, seus emoticons usam os olhos para expressar sentimentos e
não a boca que quase sempre permanece na mesma posição. Conclusão: nossos
emoticons têm bocas enormes e os deles têm olhos gigantes.
Mas o que são crianças da “terceira cultura”? São aquelas que passaram a maior
parte dos anos do desenvolvimento de sua personalidade longe do país dos pais.
Ou aquelas, como meus filhos, que vivem 3 culturas simultaneamente: a da casa
brasileira, a da escola americana e a do país chinês. Essas crianças desenvolvem,
ao longo do tempo, a capacidade de trocar de códigos culturais dependendo de
com quem estão se relacionando. São crianças globalizadas e, segundo ela, os
futuros líderes mundiais.
Aqui na China, nós estamos tendo a maravilhosa oportunidade de conviver com
essas crianças. E desconfio, sinceramente, que nossos filhos já estão começando
a se transformar em uma delas. Vejam só, os melhores amigos do Dudu são o
Owen, o Ido, o Takato e o Jack. O Owen nasceu nos Estados Unidos, saiu de lá
com 3 meses e foi morar na Tailândia. De lá, veio para a China onde está até
hoje. O Ido é israelense e vive em Shenzhen há anos. O Takato é japonês e está
aqui há pouco tempo como nós. O Jack é coreano, mas morou praticamente a
vida toda na China. Aliás, Dudu acabou de voltar da festinha de aniversário do
Nicholas (pai canadense e mãe chinesa) cujo brinde foi um pacotinho de alga
seca.
Marcos, para cumprir sua carga horária de serviços comunitários da escola,
hospedou (hospedei, né?) dois meninos que moram em Guangzhou que vieram
participar de um torneio de vôlei em Shenzhen: um indiano e outro coreano.
Como eles fizeram para se entender? Games! Sem dúvida, a linguagem universal
da garotada. E o que dar de café para meninos que comem arroz apimentado pela
manhã? Na dúvida, fiz um delicioso chocolate quente com torrada e manteiga e
os meninos mandaram ver.
Os coreanos, aliás, são uma espécie à parte. O menino que hospedamos levanta
todos os dias às 6h da manhã, come seu arroz e pega o ônibus para escola. Fica
lá até às 16h, volta para casa e vai para outra escola. Às 18h volta de novo para
casa, janta e faz dever até meia noite. Todos os dias. Se ele é triste e estressado?
Não mesmo! É conversador, ativo e até um pouco atacado demais para o meu
gosto.
A Dra. Josephine termina a palestra dizendo que só conseguiu se casar com um
coreano que, assim como ela, passou a infância nos Estados Unidos. O mais
irônico de tudo foi que, ao abrir para perguntas, um senhor coreano levantou o
dedo e disse: ”Minha filha está começando a querer namorar. Como eu faço para
evitar que ela namore meninos não coreanos”? “Caraca”, filhos da terceira
cultura e pais sem noção.


Professora, essa conta não bate
23 de junho de 2012

Vai fazer quase um ano que estou aprendendo a falar mandarim. Nos primeiros
meses, tudo era novidade. Para cada palavra nova, eu abria a fórceps um espaço
no cérebro e a colava com litros de Bonder. Dois dias depois, se eu ainda
soubesse o significado da palavra, me sentia a rainha da cocada preta.
Com o passar do tempo, fui percebendo que a mesma palavra podia ter diversos
significados, o que me obrigou a ir construindo umas prateleiras mentais para ir
acomodando as palavrinhas. Por exemplo, ”tang” (e seus diferentes tons) pode
significar sopa, açúcar, mentira ou fervendo.
Para piorar um pouco as coisas, as pronúncias também me pareciam muito
similares. Certa vez, a Liu estava enumerando os temperinhos de uma receita
deliciosa que ela havia cozinhado no dia anterior (“Yi dian dian jian, yi dian
dian mian, yi dian dian tian”) quando o Nando concluiu: “Chris, coloca um só
que vai dar na mesma. É tudo igual!”
A cada aula, a cada palavra nova, eu dizia para minha
professora: “Todas as palavras que você me ensina são
iguais a todas as outras que já aprendi”. Ela, natural da
Mongólia interior (a que faz parte da China), respondeu
como um soldado de Gengis Khan: “Em inglês também é
a mesma coisa. Get in, get out, get off têm pronúncias
similares, mas querem dizer coisas diferentes”.
Ok, ela tinha razão, mas eu ainda não estava totalmente convencida até que, em
uma das aulas ela foi finalmente obrigada a abrir o jogo! Eu perguntei: “Como se
fala quarto de dormir em chinês? E ela respondeu: Wo shi.”.
Opa! Para tudo! “Wo shi” todo mundo sabe que é ”Eu sou”. Esta é a primeira
frase que aprendemos em qualquer curso de mandarim. Wo = eu (pronome); Shi
= ser (verbo). Como é que “wo shi” pode ser quarto?
Foi aí que ela me revelou: – O mandarim carece de sons. Nós temos mais de
50.000 ideogramas e apenas 400 sons. Ou melhor, 400 sons que podem ser
pronunciados em 5 tons diferentes, o que totaliza 2000 sons.
“Caraca”! Como eu não estou aprendendo ideograma, mas apenas o som das
palavras, eu me sinto naquele filme “O Dia da Marmota“ onde o Bill Murray
acorda todas as manhãs no mesmo dia, encontra as mesmas pessoas, lê o mesmo
jornal, come a mesma comida, fala as mesmas coisas... Socorro!
Ok, calma, relaxa.
– Mas, como vocês fazem para se entender com sons tão similares?
– Ah, só dá para saber realmente o que a pessoa está querendo dizer quando ela
termina a frase. E acrescentou, cheia de orgulho, “Isso faz de nós excelentes
ouvintes”.
É, professora, e isso faz de nós gringos a beira de um ataque de nervos!
De volta à “patriamada”, Brasil
8 de julho de 2012

Este é o primeiro ano em que estamos passando as férias de julho no Brasil que,
no hemisfério norte, equivalem às do fim do ano escolar. Nossa chegada ao Rio
aconteceu no mesmo dia em que a cidade recebeu o título de “Patrimônio
Mundial como Paisagem Cultural Urbana” da UNESCO. Seja lá o que isso quer
dizer, eu havia me esquecido do quanto esta cidade é linda!
Como em Shenzhen moramos de frente para o oceano, mas a praia mais
próxima, Dameisha, fica a uma hora de carro, eu me sinto eternamente como o
Djavan: “Morrendo de sede em frente ao mar”. Por isso, a primeira coisa que fiz
no dia seguinte à nossa chegada foi ir à praia. Gente, o que é o Arpoador? Que
céu azul é este que não vemos em Shenzhen por conta da poluição? E que
pinguins são estes que vieram da Patagônia para nadar junto conosco? E o que
são os cariocas já tratando os pinguinzinhos como da família: “Ele está cansado;
nadou muito...”.
E o que falar dos biquínis brasileiros. Na China, elas usam shortinho com
camisetinha de lycra, escondendo o corpo branquinho e a bundinha estilo
Aspirina: achatada e branquinha. Cada vez que fico de biquíni na frente de
algum chinês, rola sempre um certo constrangimento. Aqui, por outro lado, meu
biquíni me pareceu até meio grandinho frente ao tradicionalíssimo fio dental. E,
embora o mundo ovacione a mulher brasileira, a grande maioria de nós nem é
tão bonita assim. Mas somos muito sensuais. Ou melhor, sexuais. Os homens
nos olham com desejo e não com curiosidade, como na China. As bancas de
jornal estão repletas de revista pornô para quem quiser ver, o que eu acho um
absurdo. Quando ainda morava aqui, me lembro do dia em que achei que o Dudu
estava escolhendo um adesivo do Flamengo, quando na realidade estava
contemplando “as belezas” da mulher brasileira. Os casais de namorados andam
abraçados e se beijam em público. Na China, é mais fácil ver amigos homens
agarradinhos na garupa das motos do que namorados de mãos dadas.
No Brasil, de manhã cedo, as pessoas vão para o trabalho com os cabelos
molhados e cheiram a alfazema, deixando uma sensação gostosa de “começar de
novo” no ar. Nunca vi uma chinesa de cabelo molhado na rua. Nunca!
O povo, este sim, confirma sua fama mundial: como somos simpáticos! Todos
falam “oi, tudo bem, boa praia, bom dia, bom apetite, divirta-se”, onde quer que
se vá. Os porteiros batem papo com os moradores, os taxistas puxam conversa
com os passageiros, o atendente da padaria comenta sobre o jogo do dia anterior
com os clientes e por aí vai. Esta integração entre classes sociais, se existe, é
totalmente invisível para mim na China.
Mas sabem o que mais nos faz falta aqui no Brasil? Nossa “capa da
invisibilidade”. Na China, a gente comenta sobre tudo e todos, na frente da
pessoa comentada, com a tranquilidade de não estarmos sendo entendidos por
ninguém. Não passa nem uma pessoa esquisita por nós que não vire logo piada
da família, e olha que o que não falta em Shenzhen é gente esquisita. De volta ao
Brasil, precisamos nos controlar o tempo todo para não falar “esse taxista está
nos passando para trás” em alto e bom som, sentados no banco de trás do táxi.
Isso sem falar dos palavrões horrorosos que saem de nossas bocas, mas que, para
nós, não possuem mais seus significados originais.
Falando um pouco sobre infraestrutura (o que é uma covardia, porque Shenzhen
não é uma cidade, é um canteiro de obras) estou andando de metrô todos os dias
e a comparação é inevitável. O do Brasil não se parece muito com o de Shenzhen
que, além de mais claro, limpo e arejado por só ter 5 anos, possui um vidro que
separa o trem da plataforma e protege as pessoas de quedas involuntárias (ou
voluntárias, em se tratando de China). Fico realmente aflita ao ver aquele povo
todo no metrô do Rio se aglomerando tão perto do vão do trilho, com os
pezinhos ultrapassando a faixa amarela... Outro ponto a ser levantado é que, no
Brasil, as pessoas leem revistas, livros e jornais enquanto viajam. Na China
também, só que em seus iPads e iPhones, sem medo de serem assaltados. No
entanto, na categoria educação, China e Brasil estão páreo a páreo. Nas escadas
rolantes, as pessoas não deixam o lado esquerdo liberado para os que estão com
pressa e, quando o trem abre as portas, é o maior empurra-empurra entre quem
sai e quem entra do vagão. Falamos tão mal dos chineses e fazemos igualzinho.
Outra semelhança entre China e Brasil que me surpreendeu bastante foi o
trânsito. Acostumei-me a dizer que os chineses são barbeiros, mas confesso que
venho pensando em tomar Valeriana toda vez que entro em um táxi carioca.
Todo mundo corta todo mundo, buzina, freia em cima do carro da frente e, aqui,
como lá, falar ao celular é tão normal quanto trocar de marcha. A diferença é
que, aqui, entendemos o que o motorista fala e na China não. Outro dia pela
manhã, quase pedi desculpas para o taxista pela minha inoportuna presença em
seu carro: “Alô, não posso falar agora, tô tripulado, depois te ligo porque quero
te falar uma coisa, não é nada sério, não, não se preocupa, não vou falar agora,
espera eu destripular, não inventa, não vou falar agora! Para com isso! Cê tá me
irritando! Para!”. Na China, os taxistas ficam batendo papo com outros pelo
celular, felizmente usando earphones, mas a gente nunca sabe se eles estão nos
perguntado alguma coisa ou se estão falando mal dos gringos do banco de trás
para o colega.
Mas existem algumas coisas que só o Rio de Janeiro possui e que fazem parte do
nosso DNA: tomar uma média de café com leite com pão na chapa banhado em
manteiga, encostado no balcão da padaria da esquina mais próxima. Na China,
nem pensar.
O resgate
14 de agosto de 2012

Um dia antes de ir para o Brasil, nos mudamos de um condomínio de casas para


um apartamento no 28º andar de um prédio em frente ao mar. Um desencontro
de informações nos obrigou a deixar nossas gatinhas no condomínio durante
quarenta dias sendo alimentadas pelos vizinhos e amigos. O peso na consciência,
no entanto, aumentava a cada dia de Brasil.
A primeira coisa que fiz quando cheguei de volta à China foi resgatar as
gatinhas. Qual não foi a nossa surpresa ao encontrá-las nos esperando nos
arredores da nossa ex-casa!
E o que isso tem a ver com a China?
Muito! Quando cheguei aqui há um ano, estava cheia de ideias. Vou trabalhar,
entrar na universidade, aprender mandarim, viajar... e, o que aconteceu? A China
me roubou o foco. Perdi-me assustada diante de tantos desafios, tantas
informações não decodificadas, tantos avisos terroristas de que “isso não vai dar
certo”, enfim, tanta autossabotagem. Resultado: fui ficando cada vez mais
distante dos meus objetivos.
Meus quarenta dias de Brasil, a convivência com a família, a segurança que isso
traz e o encontro com os amigos funcionaram como um par de óculos. Voltei a
enxergar o que eu vim mesmo fazer na China. Meus quarenta dias de Brasil
foram, assim como as gatinhas, um resgate da Chris.
Shenzhen, definitivamente nosso novo lar
17 de agosto de 2012

Amanhã fará uma semana que voltamos à Shenzhen, mas às vezes, tenho a
sensação de que nunca saí daqui. Ainda assim, às vezes me pego indignada com
algumas coisas que eu já deveria estar mais do que acostumada como, por
exemplo, este calor amazônico! A gente está sempre suando no bigodinho, o sol
frita o cérebro e você não consegue mais raciocinar. De repente, chove. Ou
melhor, chega um tufão e você sai recolhendo as cadeiras, plantas e roupas que
estão na varanda. Ah, e também as gatas, para elas não saírem voando por aí.
Outra indignação é com a grandiosidade da cidade e seus hábitos, por outro lado,
tão suburbanos. Na grande avenida que corta nosso bairro, com suas pistas
largas, prédios altos e painéis luminosos, os carrões das marcas mais famosas do
mundo dividem espaço com as motocas velhas. Ah, as motos! Com quatro ou
mais pessoas em cima, buzinando em nossos ouvidos, nas ruas ou nas calçadas.
Calçadas que, além de dividir com as motos, precisamos dividir também com os
carros. Fui levar o Dudu de bicicleta até a casa do amiguinho e tive vontade de
fazer aquela coisa bem subdesenvolvida de ir arranhando as portas dos
automóveis com a chave da bike. Sem falar das gambiarras que eles fazem por
conta das obras (“caraca”, dá para parar de fazer obra?), enchendo as ruas de
tapumes e deixando uma faixa de 1 metro para ser dividida entre pedestres,
bicicletas, motos e afins. Quando chove, ou seja, todos os dias, vira um lindo
córrego tropical. Sinto muito, mas essa parte da China é realmente muito
irritante.
Em compensação, minha academia de yoga permanece um oásis em plena
Floresta Amazônica. Chinesinhas simpáticas na recepção nos cumprimentando
em chinglês, ar condicionado, lounge, chazinho e aulas acompanhadas por
trilhas sonoras, digamos assim, inusitadas. Hoje, por exemplo, fiz aula de pilates
ao som de ”Perfídia” (Mujer, se puedes tu com dios hablar...) e ”The Impossible
Dream” (Sonhar, mais um sonho impossível...). Impossível mesmo é fazer 100
abdominais ao ritmo de bolero.
Neste um ano de China, eu já aprendi o truque: manter o bom humor sempre!
Caracóis tamanho família que devem ser o sonho de consumo dos expatriados
franceses; a mulherada usando manga comprida e meia calça em pleno verão
para não ficar bronzeada; pessoas acocoradas no chão como se fosse a posição
mais confortável do mundo; banquinhas de rua vendendo comidas
inidentificáveis; o povo escarrando no chão... enfim, a China. Uma China meio
avacalhada, irreverente, criativa e improvisada, mas que é, definitivamente,
nosso novo lar. E onde, tenho que me confessar, já começo a me sentir
estranhamente (põe estranhamente nisso!) em casa.
A China não é para amadores
31 de agosto de 2012

A China, definitivamente, não é para amadores. Uma simples ida ao


supermercado pode virar um grande programa de índio se a gente não tiver
muito jogo de cintura e bom humor. Olhem só que divertido.
Às 16h, saí de casa para ir ao Walmart comprar ingredientes para o jantar,
passando antes pelo Si Hai Parque onde o Dudu ficaria andando de skate. Fácil
não? Não. Embaixo do condomínio onde moro, há diversos taxistas piratas que,
ao me avistarem com meu carrinho de compras, começaram a gritar: Táxi? Táxi?
Táxi? Como a gente não sabe usar os aplicativos para chamar um Uber, não dá
para recusar a oferta, ainda mais nesse sol escaldante. Escolhi um dos taxistas
(ou ele me escolheu) e demos início à negociação. Eu disse em chinês: “Uoremá
shiú” (Walmart 15 RMB). O cara disse em inglês: “Nou, tuenti” (Não, 20 RMB).
Eu insisti, ele também. Mas, afrontada com a sensação de calor há menos de
cinco minutos fora de casa, topei e entrei no piratão de luxo de cara feia para não
perder a moral.
Finalizada a negociação financeira, tive que começar um novo interlóquio para
explicar que o Dudu desceria antes para andar de skate no parque. Parece
simples né, mas aqui na China nada é. Eu disse o nome do parque, “Si Hai
Gongyuan”, pelo menos umas trezentas vezes para, na trecentésima primeira, ele
responder: “Ooooou”. Pô, finalmente entendeu! Quando começamos a nos
aproximar do parque, o cara desandou a falar sem parar e terminou a frase com
um “ma”, o que, em chinês, equivale a um ponto de interrogação. Eu que achava
que ele estava falando do calor, do trânsito ou algo parecido, me toquei de que,
na verdade, ele estava ME perguntando alguma coisa. Meio sem graça, meio
raivosa (acho que pela minha incompetência de ainda não conseguir entender
chinês), mandei um “Ting bu dong” (Não entendo). Sabem o que ele respondeu?
“Ooooou”. Como assim? “Ooooou”, de novo? Que raio de interjeição é esta que
eles usam o tempo todo?
Enfim, o Dudu ficou no parque e eu segui para o Walmart. Chegando lá, o
taxista perguntou se eu queria que ele me esperasse. Eu entendi (acho que
telepaticamente), disse que não precisava, mas por via das dúvidas, fiquei com o
telefone do sujeito.
Entrei no Walmart que, entre cinco e seis da tarde possui o maior índice de
consumidor por metro quadrado do mundo, e tive que percorrer corredores com
cheiro de durian podre, em um misto de zoológico e necrotério, com peixes
vivos e partes não identificadas de animais mortos, até chegar nas frutinhas.
Depois de escolher os legumes que iria levar, aliás, todos maravilhosos, me
preparei para encarar a pior parte de todas: a hora da pesagem. “Caraca”! Que
dificuldade é essa que esse povo tem de fazer fila?! Todo mundo estava com os
carrinhos enfiados à frente das balanças disponíveis e, quando um saía, havia
sempre dois ou três que se enfiavam na minha frente. Isso sem falar dos “sem
carrinho” que não esperam nem você acabar de pesar as suas compras. Entre as
laranjas e maçãs que eu estava pesando, surgiu uma berinjela que um chinês
jogou na balança antes que eu pudesse colocar o outro saco. Um exercício de
paciência sobrenatural.
Mas isso não é tudo. Chegada a hora de pagar no caixa, tive que ficar novamente
ombro a ombro com o chinês da berinjela louco para furar minha frente
novamente. Olha, amigo, pega essa sua berinjela e... deixa para lá! Paguei com
meu cartão do HSBC que, embora seja um banco de Hong Kong, as caixas
sempre ameaçam não aceitar, coloquei tudo de qualquer jeito no carrinho e fui
para o ponto de táxi.
E o que encontrei lá? Um monte de gente amontoada disputando para ver quem
entrava primeiro no táxi sem precisar fazer fila. Fora os espertinhos que iam para
o fim do ponto pegar o táxi antes dele chegar até nós. Conclusão: ou entrava no
joguinho deles ou não voltava para casa naquele dia. Ou ... sim, ligava para o
motorista do táxi pirata. Que excelente ideia! Pensei: vou ligar para ele e dizer
que estou aqui..., mas como se fala “estou aqui” em mandarim? Será que o cara
vai entender? Esperar onde? E se ele responder alguma coisa terminada com
“ma”? Melhor ligar para o Luiz para pedir para um colega de trabalho ligar para
o taxista e explicar tudo.
Funcionou! Fui para o lugar combinado com meu carrinho de compras, uma
mesinha de uns três quilos que eu havia comprado para colocar o computador e a
sacola de frutas. Fiquei lá esperando até me tocar de que eu não sabia por quem
eu estava esperando. Eu não havia gravado nem o carro, nem a placa, muito
menos a cara do taxista. Meu Deus, como é que eu vou reconhecê-lo quando ele
chegar? Que calor dos infernos! Essa mesinha não era tão pesada assim quando
eu a tirei da prateleira!
Até que vi um carro com uma coroa dourada giratória colada no painel e tive um
dejá-vú. Aliás, eu realmente já tinha visto aquela coroa no carro... do meu
taxista! Que, por sua vez, também já tinha reconhecido a gringa e veio me
resgatar. Entrei no táxi geladinho, livre do carrinho, da mesinha e da sacola de
frutas que o taxista empenhadamente, gentilmente e piedosamente guardou para
mim e, quando comecei a relaxar, ele mandou logo um “ma”. Ai, não! Me deixa
descansar!
Bom, cheguei em casa às 7:30 da noite, paguei o dobro do que pagaria por um
táxi normal (ele, mais do que merecidamente, me cobrou “forti”), mas
extremamente feliz por estar de volta sã e salva e com uma deliciosa sensação de
não ser mais uma amadora na China.
Perdido na China
7 de setembro de 2012

Assim que chegamos à Shenzhen, uma brasileira veterana me deu uma dica
superimportante: “Equipe cada um dos seus filhos com um celular e o endereço
de casa escrito em caracteres porque, se eles se perderem, nunca mais vão
conseguir voltar para casa! ” Diante de tamanho terrorismo, equipei-os
rapidamente, não só com o telefone e o endereço de casa, como também com
vários outros endereços úteis, além do telefone da Liu e de frases-chave para
trocar com os taxistas.
Apesar de também carregar toda esta porcariada na minha carteira, entrar em um
táxi é sempre uma aventura. Confesso que, agora que sabemos o caminho dos
principais lugares tais como a escola, o supermercado e o shopping center, tudo
ficou mais fácil. Nossa, que vidinha de interior! Só faltava o endereço da igreja...
ou do templo budista, para ficar mais adequado. Funciona assim: a gente fala o
endereço, pergunta se o motorista entendeu e aguarda. Se ele não falar nada e
ligar o taxímetro, é porque entendeu. Se ele desandar a falar, a gente repete mais
3 vezes com entonações diferentes e fecha com a frase “ni zhi dao ma?” que
significa, “você entendeu?”. Se ele não ligar o taxímetro de jeito nenhum,
melhor sair do táxi e pegar outro antes de terminar em algum lugar longínquo
desta cidade de 14 milhões de habitantes!
Houve uma época em que o Dudu pegou uma mania chata de perguntar “ni zhi
dao ma” depois que o cara já tinha ligado o taxímetro e arrancado com o carro.
O motorista reconhecia alguma coisa parecida com mandarim, olhava para o
banco de trás e começava a perguntar confundindo tudo que já estava resolvido.
Eu e as crianças passamos a entrar no táxi, dizer o endereço e mandar o Dudu
calar a boca na sequência.
Enfim, foi com o Dudu que vivi uma nova e angustiante experiência.
Nosso novo apartamento fica longe da escola. Contratei o marido da Liu para
levar as crianças de manhã cedo, mas deixei-as livres para voltar da maneira que
achassem mais convenientes: ônibus, metrô, bicicleta, skate ou a pé. Meu grande
problema é que o Dudu, que tem apenas 10 anos incompletos, se comporta como
se fosse mais velho (fruto de anos de aprendizado com os irmãos) e, juntando
isso ao fato desta cidade ser totalmente segura no que diz respeito a assaltos,
sequestros ou balas perdidas, eu acabo dando mais reponsabilidade para o Dudu
do que deveria.
Semana passada, ele foi à casa de um amigo perto da escola e eu aproveitei para
testá-lo:
– Dudu, volta para casa de ônibus. Pega o 109 ou B687 ou o J1 e salta na estação
Xin Jie. Vai ser moleza, filho!
Meia hora mais tarde, me liga o Dudu:
– Desci na estação, estou reconhecendo as raízes das árvores no chão, mas não
sei onde estou.
– Raízes? Peraí, Dudu. O ponto de ônibus cheio de raízes no chão fica do outro
lado da rua onde pegamos o ônibus para ir. Você está voltando! Atravessou
alguma rua?
– Não tô entendendo nada desse negócio de ir e voltar!
– Onde você está?
– Não seiiii!
– Olha para cima. Dá para você ver o nosso prédio que é super alto?
– Mãe, só tô vendo árvore!
– Qual o nome da estação?
– Onde a gente lê o nome da estação?
– Naquelas placas cheias de caracteres aí no ponto. É só procurar a única coisa
escrita em letra normal.
– Eu já andei na direção de casa. Não estou mais no ponto.
– Volta para a “p****” do ponto e lê o nome.
– O nome é Dongjiaotou! Eu me lembro! Desci na Dongjiaotou.
–“Caraca”, porque você desceu na Dongjiaotou se eu falei para descer na Xinjie?
(Parênteses: Sentiram como decorar e ler todos esses nomes não é moleza?)
– Eu achei que era essa! Estou voltando para o ponto. Faço o que agora?
– Pega o ônibus de novo e salta uma estação para frente porque você desceu uma
antes. (Parênteses: agora fui eu quem errei. Ele já tinha descido uma para frente
e eu mandei-o ir mais para frente ainda!)
Eu de novo:
– Já pegou ?
– Já.
– A trocadora perguntou para onde você vai? (Em Shenzhen, a passagem varia
de acordo com a distância percorrida, por isso, antes de cobrar, a trocadora
sempre pergunta “qu na li?”).
– Ela tá falando comigo. Não tô entendendo nada. Fala aqui com ela.
– Dudu! Du… Ah, “Ni Hao. Xinjie, Xinjie”.
– Mãe, ela balançou a cabeça e olhou para trás. Agora fez uma volta com a mão.
Não sei onde eu tô. Vou descer, vou descer!
– Então desce que eu vou pegar o ônibus e te procurar!
– Ela tá dizendo para eu não descer.
– Desce!!!!
E lá fui eu, em um sol de fritar ovo no asfalto, andando até o ponto do ônibus
(que saudades do meu carro), atendendo o celular de 10 em 10 segundos para
acalmar o Dudu, pegar o J1 e dar início à missão resgate.
Finalmente, depois de pensar que o Dudu tinha realmente atravessado a rua e
pegado o ônibus do lado errado, achei-o cinco estações à frente da nossa,
desamparado e agarrado ao celular falando comigo sem nem perceber que eu já
havia chegado. Abracei o pobrezinho até ele recuperar a autoconfiança e voltei a
pé para casa, andando todas as cinco estações para ele poder ir reconhecendo e
gravando o caminho. Para completar, ainda tive que aguentar a maior ladainha
de “nunca mais eu ando de ônibus; eu te avisei que isso não ia dar certo; vou
pegar o metrô; só vou andar de táxi; é impossível viver aqui; olha para isso, é
tudo igual; tá vendo as raízes no chão”.... e, por fim, “como é que vocês viviam
sem celular quando eram crianças?”.
Boa pergunta. Sei lá. Vocês se lembram?
Enfim, depois disso tudo, o que o Dudu fez ontem voltando para casa, de táxi,
com o Marcos? Esqueceu o celular no banco traseiro... pela terceira vez! Merece
ou não ficar perdido por aí?
Onde há um desejo,
há um caminho
15 de setembro de 2012

Ouvi esta frase na cerimônia de abertura das aulas para estrangeiros da


Universidade de Shenzhen, onde comecei a estudar mandarim a sério: com
direito a ler e escrever em caractere. Acredito que seja realmente este o
sentimento das centenas de estudantes que lotaram o auditório da universidade,
segunda-feira passada. Este era, com certeza, o meu sentimento. Aprender,
aprender, aprender. E daí que seja super difícil falar mandarim? Se há vontade,
então há solução. Depois de um ano acordando todas as manhãs tendo que me
reinventar, finalmente achei o caminho de volta para mim mesma.
A universidade é enorme e linda! Chegar é fácil, mas cansativo. O ônibus fica
lotado, o calor frita o cérebro, meu prédio é longe da entrada e minha sala fica no
sexto andar de um prédio sem elevador! As aulas acontecem todos os dias das
8h30 às 11h50. Ainda assim, rejuvenesci alguns bons anos depois que passei a
respirar novos ares.
Minha sala é a verdadeira torre de Babel. Olhem só os países dos coleguinhas:
Argélia, Cazaquistão, Rússia, França, Bolívia, Israel, Moldávia, Irã, Japão,
Espanha, Finlândia, Turquia, Estados Unidos, Mongólia e Brasil representado
por mim e pelo Fernando. As aulas são muito legais. Temos duas professoras:
uma de “Ouvir e Falar” e outra de “Ler”. Uma professora se chama Zhang e a
outra Zheng que é para gente já ir se acostumando a ficar confuso até na hora de
chamar a tia.
Eu e o Nando já aprendemos muita coisa ano passado, o que torna as aulas
fáceis, pelo menos por enquanto. Mas há aluno que dá pena! O argeliano e a
mongol, segundo o Sr. Google, além de não falarem inglês, ainda possuem, em
suas respectivas línguas, alfabetos diferentes do romano. Ou seja, eles não
conseguem entender o que a professora está falando, não conseguem ler o pinyin
e menos ainda os caracteres chineses. Dá a maior aflição ver suas carinhas de
cego perdido em tiroteio. Hoje, tive que fazer um exercício com a Tsatsral
(minha colega da Mongólia cujo nome ninguém, além dela mesma, consegue
pronunciar) e tive que desenhar uma pessoa comendo uma galinha para ela poder
entender do que a professora estava falando. Na verdade, não sei o que era mais
difícil, entender o meu desenho ou os caracteres escritos no quadro.
Falando em comer galinha, difícil mesmo é encarar a hora do almoço. Eu não
preciso comer lá, mas adoro dividir a mesa com os coleguinhas internacionais. A
universidade possui oito restaurantes dos quais já conhecemos três. O primeiro
não deu para encarar. O segundo, onde comemos antes de ontem, tinha um
macarrãozinho tipo yakisoba bem gostosinho. O de ontem era gigantesco. São
20 cozinhas oferecendo diferentes tipos de comida e todas parecem
ameaçadoras. Eu e Nando acabamos comendo um pote de arroz com uma
verdura cozida por cima. Dá para acreditar que passei a tarde e a noite toda me
sentindo mal? Será que não era verdura?
Enfim, todos os dias, nos aproximamos um pouco mais de nossos colegas e de
suas culturas, nos perdemos menos no campus, descobrimos palavras novas,
aprimoramos nossa pronúncia, reconhecemos caracteres diferentes e nos
sentimos cada vez mais verdadeiros cidadãos do mundo. Sim, onde há um
desejo, há um caminho!
Cutucando onça
com vara curta
22 de setembro de 2012

Ao longo desta semana, vários amigos me enviaram mensagens perguntando se


estávamos bem. Por que não estaríamos? Ora, por conta das manifestações
contra os japoneses que estavam acontecendo em Shenzhen e outras cidades da
China.
Manifestações? Não estou vendo nada! Ligo a TV na CCTV News, único canal
chinês de notícias em língua inglesa (ainda não contratamos TV por satélite) e
fico aguardando alguma informação. Sim, estão falando de uma disputa de ilhas,
mas não mostram nenhuma imagem de manifestações.
Dudu chega da escola dizendo que ele e o Luke, seu amiguinho americano,
passaram o dia inteiro protegendo o Takato, o amiguinho japonês. Protegendo do
que, Dudu? De um amigo chinês que estava tentando bater nele. “What?”
Luiz chega em casa à noite e me conta que o pessoal do trabalho ficou recebendo
mensagens do governo no celular dizendo mais ou menos o seguinte:
“Caros cidadãos, hoje algumas pessoas começaram a demonstrar
comportamentos de bater e quebrar. A fim de garantir a segurança de vocês e
manter a sociedade perfeitamente em ordem, por favor mostrem seu patriotismo
e rejeitem qualquer comportamento criminal. Por favor, ouçam os conselhos e
orientações do pessoal de serviço e mantenham-se fora do local do acidente o
mais rápido possível. Obrigado pelo seu apoio e cooperação. Comitê Municipal
do Partido em Shenzhen e Governo Municipal.”
Em seguida, Luiz vai direto aos sites brasileiros de notícias para obter mais
informações e, ironicamente, começamos a entender o que está acontecendo na
China. “O impasse entre a China e o Japão em torno da disputa pelas ilhas
Senkaku - Ilhas Diaoyu para Pequim - no Mar da China meridional, ganhou mais
um capítulo, neste fim de semana, com o desembarque de nacionalistas
japoneses nas ilhas e com novos protestos da China. Pequim expressou seu
“enérgico protesto” na tarde deste domingo em território japonês, enquanto
manifestações contra o Japão foram realizadas em pelo menos oito cidades
chinesas, de acordo com a agência de notícias Xinhua.” “Fonte: terra.com”.

Para piorar ainda mais, houve uma coincidência de datas, porque dia 18 de
setembro de 1931 foi o dia em que os japoneses tomaram a Manchúria durante a
ocupação na China. “O clima parece que pesou de verdade - Segundo o blog de
um amigo, as manifestações estavam recheadas de atos de violência como ataque
a lojas, restaurantes, pessoas (pobre Takato) e depredação de carros japoneses.
Alguns até colocaram adesivos dizendo: “Meu carro é japonês, porém eu sou
chinês. Não destrua minha propriedade”.
Alguns chineses gritavam pelas ruas palavras contra o Japão e algumas fábricas
não funcionaram para evitar qualquer tipo de confusão. Fonte:
heranaindiaechina.blogspot.com
Tudo isso me impressionou muito. Primeiro, pela minha alienação. Culpa minha
que estou mais preocupada com os meus problemas do que com os do mundo?
Culpa por não falarmos mandarim e, por isso, não termos acesso aos sites e
jornais chineses? E isso adiantaria alguma coisa? Culpa por morarmos em um
bairro repleto de expatriados e mal sairmos do nosso gueto? Culpa dos nossos
amigos chineses que não comentam o assunto conosco?
Por fim, procurando mais informação sobre o acontecimento através da Internet,
me deparei com o site “The Atlantic” com fotos que mostram a impressionante
capacidade de mobilização do povo chinês, assim como o nível de violência dos
protestos. Em uma delas é possível ver um manifestante segurando uma imagem
de Mao que, para quem não sabe, acreditava que os ocidentais e o capitalismo
deveriam ser banidos e expulsos da China. E mais: uma bandeira americana
sendo queimada no meio desta confusão toda. Fiquei pensando: E se essa revolta
latente se virar contra nós, expatriados ocidentais? O que pode acontecer?
Sinceramente, não tenho a menor ideia se isto é apenas uma elucubração
infundada da minha cabeça desocupada ou pura realidade. Só sei que o ditado:
“Cutucando a onça com vara curta”, me vem sempre à mente. Por sermos
ocidentais em um país recém-aberto para o mundo, tenho medo de ser a vara e
nem saber.
Eu e Liu, Liu e eu
1º de outubro de 2012

Meu casamento com a Liu já completou um ano. Fiquei pensando como, diante
de tantas diferenças culturais, conseguimos nos aguentar e nos respeitar tanto.
Sem falar que ainda metemos o marido dela no meio: ele leva as crianças para
escola todos os dias de manhã. Claro que o dinheiro permeia nossa relação, mas
gosto de acreditar que, acima de tudo, nós nos aguentamos porque, como dois
seres humanos, gostamos uma da outra.
Mas, como todo bom casal, a convivência diária nos permite libertar nossas
idiossincrasias, carências e manias que precisam ser aceitas pelo parceiro para
não melar a relação. Por exemplo, a Liu vivia me dizendo que cozinhava mal,
que não sabia fazer nada, que o marido que cozinhava e coisa e tal. Hoje, embora
já seja capaz de fazer, sozinha, um delicioso arrozinho com feijão, o discurso
continua o mesmo. Ela deixa o jantar pronto e vai embora para casa. No dia
seguinte, ela corre para geladeira para ver se sobrou algum restinho de comida e,
se encontra um grão de arroz na panela, ela manda logo: “Ninguém gostou! Eu
não sei cozinhar!”.
Liu, você está mais para mãe judia do que para empregada chinesa!
No entanto, o que a Liu não tem oportunidade de ver é que nossa casa virou a
cantina da escola das crianças. Todos os dias, depois das aulas, os amiguinhos da
Mari, do Marcos e do Dudu aparecem aqui em casa para comer. A intimidade é
tanta que eles mal me cumprimentam, vão direto para a cozinha, abrem as
panelas e se servem livremente. Estou até pensando em comprar uma balança e
lançar um negócio de comida a quilo.
Ainda falando sobre comida, Liu sempre teve a mania de dizer que ”cozinhava
muito limpo”. A tradução disso é que ela ia limpando os talheres e pratos sujos
enquanto fazia o almoço, coisa que eu confesso que não faço. Naquele tempo, a
frase terminava por aí. Agora, que nossa intimidade aumentou (e muito), ela
complementa: ”Você tem que aprender a cozinhar limpo como eu!” Eu? É, pode
ser. O que eu não falo para a Liu é que ela deveria deixar a vaidade de lado e
usar óculos na cozinha. Outro dia, tinha uma larvinha no arroz que ela não
conseguiu enxergar quando estava lavando, porque chinês não acende luz para
nada. Quando fui fazer uma DR sobre a larvinha, a Liu disse que a culpa era
minha por comprar arroz no mercadinho sujo aqui de baixo. É ou não é coisa de
marido e mulher?
Aliás, ela está ficando obcecada por limpeza. Todos os dias, ela fala que as
minhas plantas artificiais soltam muito fiapo, que as plantas verdadeiras soltam
muitas folhas, que os tapetes juntam muito sujeira... Ok, Liu, mas essas coisas
deixam nossa casa mais bonita. ”Bonito é limpeza”, diz ela. É, pode ser. Para
piorar, nossa gata branca solta muuuuuito pelo. Um dia a Liu me disse que uma
amiga foi diagnosticada com câncer de pulmão. Ao abrirem seu peito para fazer
uma biopsia, encontraram uma bola de pelo de gato! Isso porque sua gatinha
dormia na cama, e ela aspirava os pelinhos todas as noites. Meu Deus, será
mesmo Liu?
A China tem tantos anos de cultura e tradição, que a gente sempre acha que pode
ser que seja verdade. Ou não. Por exemplo, a insônia da Liu persiste. O novo
médico passou algumas ervas para serem fervidas e tomadas todos os dias, como
prega a medicina tradicional chinesa. Liu me disse que ia precisar sair um
pouquinho mais cedo nas sextas-feiras para pegar as ervas no hospital. Mas, na
segunda semana, uma Liu sonada e de saco cheio me disse: “Desisti! Muito
trabalho e não está adiantando nada!”.
Algumas coisas aqui em casa deixam a Liu inconformada. Por que a temperatura
do ar condicionado tem de ficar em 19 graus? Na casa dela, quando precisa, ela
liga em 26. Liu, isso não é ar condicionado é aquecedor! Mas isso não é uma
peculiaridade da Liu, mas sim de todos os chineses. Luiz diz que o sistema de
refrigeração interno deles é diferente do nosso. Volta e meia, ele tem que usar da
prerrogativa de chefe para mandar baixarem a temperatura do ar condicionado
no trabalho. E, enquanto ele sua em bicas, deixando marca no sovaco da camisa,
os coleguinhas vestem seus casacos e tomam água quente.
A Liu acha que eu sou fraca. Outro dia, me irritei e desafiei-a a bater uma queda
de braço. Para meu azar, perdi e dei a ela a certeza que faltava para me
dizer: ”Você é fraca porque come pouco arroz!”. Arroz, para ela e para todos os
chineses é a melhor comida do mundo! Também pudera, a China planta arroz há
cerca de 12.000 anos! Quem sou eu para discutir com especialistas? O fato é
que, outro dia, ela jogou baixo comigo. Cheguei da yoga com uma camisetinha
sem manga e ela, com seu ar professoral de sempre, sacudiu a pelezinha do meu
tríceps e disse: ”Sua pele está muito mole porque você não come arroz!” É, pode
ser. Mas tenho certeza de que, se eu seguir as recomendações da Liu, além de
flácida ainda vou ficar obesa.
Para finalizar, outro dia a Liu comentou que a gente tomava muito leite aqui em
casa e que leite era muito caro (a Liu também cuida das nossas finanças). Eu
disse que no Brasil há muitas terras para pastagem, que o leite é bem mais barato
do que na China e que, por isso, todos tomamos muito leite. Ela fez “Oooooou“!
No dia seguinte, eu estava assistindo à TV que noticiou a goleada da seleção
brasileira sobre a chinesa (8 x 0) e a Liu, que ouvia a notícia junto comigo, me
olhou com o mesmo ar professoral de sempre e mandou: ”Brasileiro é muito
forte porque toma leite!”.
É, pode ser.
Baixaria
20 de outubro de 2012

Shenzhen é um dos principais centros financeiros, urbanos, culturais e


administrativos da China atual e, por conta disto, a maior parte da cidade está
repleta de prédios grandiosos e imponentes, incluindo o local onde moramos. No
entanto, Shenzhen conserva alguns lugares bem característicos que possuem
tudo aquilo que imaginamos quando pensamos em China. A duas quadras aqui
de casa, no bairro de Shekou, há duas ruazinhas que abrigam a “verdadeira
China”. Elas são chamadas pelos estrangeiros de “Old Shekou” (velha Shekou),
mas a brasileirada apelidou logo de “Baixaria”. Quando alguém diz que vai à
Baixaria, certamente está indo comprar alguma coisa barata e de baixa
qualidade.
Um passeio pela Baixaria é sempre surpreendente. As lojas, que ficam abertas 7
dias por semana, de manhã até umas 11 da noite e às vezes de madrugada, são
também os lares dos chineses que lá trabalham. Nos fundos das lojas, a gente
consegue ver um quartinho ou uma salinha e, não raro, o sofá da família ver TV
fica atrás do caixa. Às 6 da tarde, é hora de jantar e dar comida para a criançada
recém-chegada da escola. Os “baixarenses” não se apertam: comem em cima do
balcão, em um cantinho qualquer da loja ou em mesinhas improvisadas no meio
da rua. Dá até um certo mal-estar de interromper o momento sagrado da refeição
em família para perguntar o preço de uma bolsa fake.
E que tipo de loja a gente encontra na Baixaria? Todos os tipos. Artigos
esportivos, eletrônicos, souvenires, sapatos, alfaiatarias, papelarias, lojas que
vendem as famigeradas motinhos elétricas e dezenas de lojas de ferragem. Se
loja de ferragem no Brasil é uma coisa pequena, feia e suja, imaginem na
Baixaria! Existem também outros artigos menos nobres, afinal de contas, a
Baixaria também é conhecida pelos seus inferninhos. Outro dia, passeando com
o Dudu louco para gastar todo o dinheiro que ganhou pelo aniversário de dez
anos, nos deparamos com uma loja que vendia “sex toys”. – Mãe, eu posso
comprar um? Filho, veja bem...
A Baixaria também abriga diversos restaurantes. Na rua de trás, que é menor e
mais mal-ajambrada, há alguns em que não existe a menor possibilidade de um
estrangeiro se aventurar. A louça suja é retirada das mesas e colocada dentro de
engradados de cerveja do lado de fora do restaurante onde também há uma
pequena pia cheia de água. Eles vão mergulhando os pratos sujos com o resto de
comida na água... Chega, já deu para entender né? Já outros, como o dos
chineses muçulmanos, servem pratos deliciosos: macarrão feito em casa com
vegetais e cogumelos, ou arroz frito com carne de porco e legumes, tudo a um
preço inacreditável: 10 RMB ou 3 reais!
Os salões de cabelereiro também possuem lugar garantido na Baixaria, assim
como as manicures. Na China, cabelo é cabelo e unha é unha, assim, os dois
serviços não podem ser encontrados no mesmo lugar. A meu ver, um desperdício
de tempo! Mas existe uma explicação para isso. Aqui, ninguém faz apenas a
unha ou corta apenas o cabelo. Sempre rola uma massagem na cabeça ou nos
pés. Então, as poltronas das manicures são gigantes, reclináveis e macias para a
gente relaxar enquanto elas tiram nossas cutículas com seus alicates não
esterilizados. E as cadeiras dos cabelereiros não são cadeiras, são camas com
uma pia acoplada para você dormir enquanto eles lavam o seu cabelo.
De noite, segundo o Fernando que frequenta a Baixaria depois da balada,
algumas lojinhas também passam a vender bebida alcóolica e os chineses trocam
o chá pela cachaça usando a mesma mesinha e a mesma pequena xícara de
porcelana decorada. Além disso, é possível comer uma pizza gigante, deliciosa e
barata vendida em alguma birosca encravada entre uma loja e outra.
A “Baixaria” é realmente uma baixaria, mas, tenho que confessar, eu e o Luiz já
nos sentamos domingo à noite, em um desses pés sujos, a roupa molhada de
suor, e ficamos tomando uma cerveja quente e apreciando a chinesada passear
com a família e jogar lixo no chão, nos sentindo absolutamente à vontade.
Olhando para o fresco do meu marido, que não vive sem ar condicionado,
detesta sujeira e cerveja quente, cheguei à conclusão de que essa identificação
toda só pode ser coisa de outra encarnação! Não tem outra explicação.
Da Baixaria para a Altaria
28 de outubro de 2012

Semana passada, uns amigos nos convidaram para ir ao 2º International Jazz


Festival no OCT Loft. OCT Loft? Show de jazz? Em Shenzhen? Depois de tudo
que vimos na Baixaria? Ah, tá! Vamos nessa! Só quero ver a chinesada se
empurrando nas filas, escarrando no chão e não aplaudindo ao fim do show (sim,
eles têm esta mania enjoada de não aplaudir nada). Pois é, amigos, que grande
preconceito de minha parte. Não foi nada disso que aconteceu. Muito pelo
contrário.
Primeiramente, o que é OCT? OCT, Overseas China Town, é uma empresa do
governo voltada para turismo, turismo cultural, imóveis e hotéis. A OCT
financiou a construção do OCT Loft convidando (ou convocando, nunca se sabe)
arquitetos e artistas a transformar uma área abandonada, repleta de antigas
fábricas, em um tipo Soho de nova-iorquino. Alguns desses artistas alugam
quartos muito amplos, com grandes janelas e pé direito alto, no OCT Loft ou,
como eles o chamam, Parque da Comunidade Artística. OCT Loft é cheio de
restaurantes, lojas de móveis, artigos de decoração e roupas, tudo com uma visão
moderna e vanguardista e, logicamente, com um toque chinês de extravagância.
Voltando ao show de jazz, assistimos a dois espetáculos. O primeiro de um trio
esloveno animadíssimo chamado “Vasko Atanasovski” e outro de um grupo
francês encabeçado por uma cantora maravilhosa chamada “Roxane Roussel”. O
evento foi super bem organizado, com venda de ingressos antecipada ou reserva
por Internet ou celular, sem furação de fila ou escarros e muitos, muitos
aplausos. O preço? Brincadeira! 50 RMB para assistir às duas bandas, ou seja,
duas horas de show por R$ 15,00.
Passei o tempo todo observando os jovens chineses que estavam assistindo ao
show de jazz. Não havia nada de diferente no modo em que se vestiam que
pudesse denotar uma classe mais rica, mais elitizada ou mais intelectualizada.
Eles pareciam os mesmos jovens que encontro no ônibus quando vou à
faculdade todas as manhãs. Ao fim do espetáculo, me toquei de que éramos um
casal de brasileiros acompanhado de um casal de israelenses, assistindo,
na China, a uma banda da Eslovênia e a outra da França. E que os jovens
chineses que foram ao evento, podiam até não estar vestidos de forma fashion,
mas eu sei que eles são diferentes. Eles fazem parte das primeiras gerações de
chineses que estão se abrindo para o mundo. Chineses curiosos sobre o lado
ocidental, tentando entender nossa cultura, nossa música, nossa língua. Olhando
para aquela galerinha, me emocionei ao pensar que seus avós foram reféns da
revolução cultural e não podiam sequer ouvir música, apenas hinos maoístas.
Fiquei feliz de viver na pele a tão falada globalização. E, mais ainda, de ver uma
China aberta para o mundo e preocupada em dar aos seus habitantes mais do que
arroz. Preocupada em lhes dar alimento também para a mente e o coração.
https://www.youtube.com/watch?v=jaM077A1SIw

No meio do caminho
havia muitas pedras
4 de novembro de 2012

Agora são 10 horas da noite de domingo e eu estou fazendo o dever de casa da


universidade. O mais chato disso tudo é ter que aguentar o bullying dos filhos
que estão indo à forra para cima de mim. “Deixou o dever de casa para a última
hora? Vai ficar sem laptop!”.
No início, tudo era lindo... Se havia um desejo, havia um caminho! Só que as
aulas foram ficando mais difíceis e começaram a aparecer pedregulhos enormes
pela estrada. Imaginem que aprendemos mais de vinte caracteres por dia, por
professora. E uma não quer nem saber se a outra está pegando pesado. Fico
imaginando o que não devem passar as criancinhas chinesas para aprenderem os
caracteres neste ritmo militaresco.
Lembrar os caracteres é coisa de maluco. O pior pecado que um aluno pode
cometer é o de se irritar com os chineses e pensar “quem inventou esta p... desta
língua sem lógica?” Sim, sem lógica. Por exemplo, outro dia a professora estava
explicando que o caractere para caneta (ou lápis) tinha um radical que
significava bambu. “Que outro caractere tem bambu na sua composição?”,
perguntou ela. Fernando disse “casa”. Eu arrisquei “árvore”. “Floresta” falou a
russa. “Não”, ela respondeu orgulhosa, é “basquetebol”. Gente, será que é
porque a cesta é feita de bambu? Ou porque os jogadores são altos como um
bambu? Esquece, cala a boca, para de pensar e decora essa droga, Nando!
Para piorar um pouco as coisas, a gente agora está fazendo exercício de
compreensão (listening). Só que quem escreveu os exercícios odeia estrangeiro,
pois fica tentando nos sacanear o tempo todo. Olhem isso: Locutor homem:
Aquele professor é o seu professor? (Lembrando que a língua chinesa não tem
gênero, ou seja, professor pode ser tanto homem quando mulher).
Locutora mulher: Aquele professor é o professor da minha irmã. Todos os
meus professores são mulheres.
Locutor (um terceiro locutor homem que não é o primeiro): Quem é aquele
professor?
Opções de resposta: A) O professor do homem B) O professor da mulher C) O
professor da irmã da mulher Dá vontade de incluir mais uma opção: D) o
professor da senhora sua mãe!
Aliás, outro dia estava no metrô aproveitando para decorar os caracteres
(qualquer lugar é lugar para eu aproveitar para decorar caractere) e, como
sempre acontece, uma chinesinha orgulhosa de ver um ocidental tentando
aprender mandarim começou a falar comigo. E como sempre, eu fiquei tão
nervosa que não entendi nada. Aí resolvi, como desculpa, mandar uma das
primeiras coisas que aprendi na universidade: “Mandarim é muito difícil”.
Depois de repetir três vezes a frase diante de uma chinesa constrangida de me
ver mais constrangida do que ela, abri minha mochila, tirei o livro e mostrei a
frase escrita. “Ouuuuu”, disse ela. “Ouuuu”, disse eu totalmente frustrada. Mas
nada disso me fará desistir, especialmente quando penso que entrei
completamente analfabeta na universidade e hoje, 30 aulas depois, já consigo ler
um texto inteirinho! Como dizem os chineses, “Não se afobe. Aos poucos vem”.
Café da manhã
11 de novembro 2012

Antes de vir para a China, estudei mandarim durante 4 meses em Curitiba no


centro de línguas da UFPR. Como minha professora era uma típica chinesa
(embora fosse de Taiwan), ela também nos ensinava um pouco do lado cultural
do país. Lembro-me do dia em que, ao nos mostrar o caractere de pão (mianbao
面包 ), ela disse que era muito difícil achar pão na China. Como assim? Como
vou viver sem meu pãozinho francês? O que vocês tomam de café da manhã?
Arroz é claro. Arroz com vegetais, arroz com peixe, com porco, com algas,
puro... A turma inteira fez carinha de nojo e disse: “peixe de manhã?” e ela, uma
chinesa meio invocadinha, respondeu: “E vocês, que comem a mesma coisa
todos os dias pela manhã a vida inteira?” E não é que ela tem razão? Mas pouco
me importa, eu só saio de casa sem meu café com leite, e meu pão com manteiga
em dia de exame de sangue. E, graças a Deus, eu consigo comer tudo isso aqui
na China, embora derivados de leite sejam muito caros.
Mas, o que os chineses realmente comem pela manhã? Logo que cheguei em
Shenzhen, saía para andar bem cedo e via as pessoas comprando uns bolinhos no
meio da rua e levando dentro de sacolas plásticas para o trabalho. Nunca tive
muita curiosidade de saber o que eram aquelas coisas até entrar para a faculdade
e ficar meia hora no ônibus, todos os dias, sentindo cheiros diversos. Às vezes, o
cheiro é delicioso tipo coxinha de galinha acabada de fritar. Às vezes, sinto
cheiro de alga podre espalhada pela areia da praia depois de uma noite de
ressaca. Eca!
Enfim, ontem decidi descobrir, de uma vez por todas, o que os chineses comem
pela manhã. Levantei bem cedo, tomei um golinho de café com leite, peguei
minha bicicleta e fui à luta. Não andei nem 200 metros para encontrar a primeira
barraquinha. Nela, uma chinesa de jaleco branco bem limpinho, retirava de um
balde vermelho, desses de colocar roupa suja de molho, conchas de uma massa
branca e as colocava em uma forma retangular. Por cima, ela quebrava um ovo,
acrescentava uma carne de porco bem gordurosa e regava com óleo e salsinha.
Depois da massa estar cozida por baixo, ela fechava tudo como se fosse um
embrulho, dava mais uma fritadinha e colocava nos tais saquinhos plásticos. Ah,
então é isso que eles carregam no ônibus e cheira tão bem? Porque, vamos
combinar, bacon não é o alimento mais saudável do mundo, mas vai cheirar bem
assim lá na China!
Mais a frente, havia outra barraquinha vendendo “congee” que vem a ser uma
papa grossa de arroz onde se coloca verduras ou carnes para dar um saborzinho.
Em resumo, uma canjinha de galinha sem sal. Outro estabelecimento servia uma
massaroca de ovo com recheio de carne que lembrava o paninho que uso para
limpar a pia da cozinha: enrugado e encardido. E por fim, neste mesmo local, era
possível comprar uma espécie de pizza feita de massa de pastel com um molho
super mega picante por cima.
Levei tudo para casa, coloquei a mesa do café da manhã e acordei a galera para
provar o novo cardápio. A carinha deles ao se deparar com os alimentos não
identificados confirma um antigo pensamento: “A gente tem tanto medo do
aspecto da comida chinesa, que acaba rejeitando verdadeiras delícias”. Vamos
lá! O embrulho de porco estava muito gostoso, assim como o paninho de pia. A
canja é comida de doente tanto na China como no Brasil e a pizzazinha
apimentada é um excelente belisquete para acompanhar uma cerveja bem
geladinha.
Existe um ditado chinês que diz o seguinte: “De manhã, coma bem. No almoço,
coma até ficar cheio. No jantar, coma pouco. ” Se for verdade que esta cultura
milenar tem muito a nos ensinar, precisamos aprender, urgentemente, a ser mais
criativos no nosso café da manhã.
https://www.youtube.com/watch?v=PUJOUZ4vrgM&t=14s
Não tem lógica!
18 de novembro de 2012

Semana passada, ao receber a prova de “Ler-Escrever” na faculdade, reparei que


as folhas estavam grampeadas do lado direito e não do esquerdo, como estamos
acostumados a ver. A outra prova, “Ouvir e Falar”, era composta de uma folha
de 40 x 20 e uma de tamanho A4. A professora dobrava a folha maior ao meio
com a abertura para o lado esquerdo e colocava a outra folha menor dentro. Sim,
e daí? Qual o problema? Fora estar nervosa para fazer seu primeiro teste e não
conseguir nem abrir a prova, nenhum problema. De qualquer forma, isso me fez
pensar em todas as pequenas coisas que fazem parte do nosso dia-a-dia e que a
gente considera como certas e inquestionáveis como, por exemplo, abrir um
caderno da direita para a esquerda. Só que estamos na China e aqui as coisas são
um pouco diferentes porque a lógica é outra.
Por exemplo, qual dos bonequinhos do sinal de trânsito pisca para mostrar que o
sinal está prestes a abrir? O vermelho ou o verde? Minha memória diz que é o
vermelho, mas aqui é o verde. Você, que está para vir para a China, ao chegar
aqui não confie no bonequinho verde nem na faixa de pedestre. Isso pode ser
uma estratégia “à la Charles Darwin” para eliminar os gringos com menor
capacidade de adaptação. E atenção redobrada às motinhos elétricas que
aparecem na sua frente como em um passe de mágica.
Continuando, os botões de alguns elevadores também me deixam enlouquecida.
Nos prédios mais altos, os botões estão dispostos de baixo para cima, em 3
colunas, e devem ser lidos na vertical e não na horizontal. Isso faz com que
andares distantes como 9, 20 e 31 fiquem lado a lado no painel do elevador.
Junte-se a isso o fato de que, por vezes, eles eliminam o número 4 (número do
azar), e você se sentirá uma velha gagá tentando achar o seu andar. Imaginem-se
cheios de compras, atrasados para um encontro, pensando no dever de chinês
que ainda têm para fazer e entrando em um elevador destes. É óbvio que, depois
de alguns segundos de observação, você passa a entender a lógica dos botões.
Mas quem é que está pensando em lógica de botão quando entra em um
elevador? Ainda mais quando a porta se fecha e você ainda está lá olhando,
olhando, olhando...
Outro dia, fiz uma grande descoberta: Brasil em chinês é “baxi” ou 巴西 . O
primeiro caractere é o som de “ba” quem vem da palavra “baba” 爸 , que
significa “papai”. E o segundo caractere é o de “xi”, o mesmo de oeste. Ou seja,
“baxi” é o “ba do Oeste”. Quando fui contar, radiante, minha inteligentíssima
dedução para a professora, ela ficou me olhando surpresa e depois perguntou:
Onde fica mesmo o Brasil? Foi aí que me toquei que no mapa mundo chinês o
Brasil está do lado direito, ou seja, leste. Amigos, quando vocês pensam que
acharam uma ponta de lógica onde apoiar sua esperança de aprender mandarim,
ela se derrete bem na sua frente testando sua resiliência no grau máximo.
Mas o mais surpreendente é a forma como eles mostram as promoções. Quando
você vê uma promoção de 8 折 , não significa que você vai pagar menos 8%
nem menos 80%, mas sim que você vai ter um desconto de 20%. O número que
eles mostram corresponde ao valor final que você vai pagar. Como se não
bastasse você se sentir ignorante no mandarim, você ainda se acha uma perfeita
anta na Matemática, ainda mais quando eles eliminam os zeros da propaganda
para ficar mais bonitinho.
Enfim, a lógica chinesa (sinônimos para lógica: dedução, indução, hipótese,
inferência) não é melhor ou pior do que a nossa. É apenas diferente. E, se você
resolver vir para cá, traga sua britadeira mental porque vai ter que quebrar muito
paradigma.
Feliz Aniversário, Luiz!
3 de novembro de 2012

Dia 20 de novembro, Luiz completou 50 anos. Cinquenta não é uma data


qualquer que se comemore com um jantarzinho em família, não é mesmo?
Cinquenta anos, ou meio século de vida, precisa ser comemorado com pompa e
circunstância. Só que pompa e circunstância, na China, dão trabalho! Para a festa
do Luiz, convidamos 40 pessoas entre colegas de trabalho e amigos de diversos
locais do mundo. Todas essas pessoas foram e estão sendo especiais para nós
aqui na China ou, simplesmente, gostam de nós, o que é muito importante na
nossa vidinha de expatriados.
O cardápio da festa foi Caldinho de Feijão, Carne ao vinagrete, Salada de
Beterraba, Salada de Frango Defumado, Salada de Macarrão com Camarão e
outras bobagens. Moleza, né? Mais ou menos. Para o caldinho de feijão, usei
meu último pacote de feijão “Caldo Bom” que trouxe do Brasil. Buá, acabou
meu feijão preto, mas foi por uma razão para lá de nobre! Paio e outras carnes
salgadas não existem. A linguiça aqui é doce. Acabei tendo que usar umas
salsichas alemãs bem carinhas para dar um gostinho brasileiro no feijão.
Carne ao vinagrete seria fácil, não fosse pela carne. Minha mãe, a detentora dos
direitos autorais da receita, me disse para comprar lagarto redondo ou posta. Ah,
tá, moleza... Mas, como se diz mesmo lagarto redondo em chinês? A solução que
me ocorreu foi imprimir um daqueles desenhos de churrascaria que mostram o
boi dividido em pedaços e seus respectivos nomes, traduzir, e mostrar para o
açougueiro. Só que, quando vi que o tal lagarto redondo ficava entre os
testículos e o fiofó do boi, fiquei com medo do que iam me dar. Mas, por falta de
ideia melhor, tive mesmo que mostrar meu super desenho para o atendente do
Walmart que fez cara de “Ooooou” e me deu uma carne mais ou menos parecida
com as que vi na Internet.
A Liu se encarregou do resto. Pedi para limpar a carne e ela, na maior das boas
intenções, mas sem entender direito o que eu queria, transformou meu lagarto
redondo em 3 lagartixas retangulares. Ok, ok, paciência, não volto nem amarrada
no Walmart, vai essa carne mesmo.
Quanto à salada de beterraba, quem disse que eu encontrei beterraba na China?
Como sempre faço, mostrei para a Liu a foto de beterrabas lindas no Google
para ouvir “meiyou”, não tem. Talvez no Mercado Municipal (lembram dele?)....
não obrigada, vou de beterraba em conserva mesmo.
Mais uma: peito de frango defumado. Perguntei para as brasileiras mais
experientes se elas já haviam comprado, mas o povo só tinha visto peito de peru
fatiado. Antes de desistir, no entanto, fui em um mercado que vende a atacado
para os mercados locais, o qual os brasileiros apelidaram de “chiqueirinho de
porco” (imaginem a cara do lugar), e encontrei. Do jeitinho que eu queria. Viva
o chiqueirinho!
Na salada de camarão, desculpem o trocadilho infame, mas nadei de braçada. A
Liu comprou uns camarões vivos gigantes que chegaram pulando dentro do saco
e cozinhou com alho e cebola na wok. Delícia!
E onde servir tudo isso? Essa pergunta parece simples quando você está
estabilizado na sua casa, na sua cidade, no seu país. Aqui, esta perguntinha
básica vira uma questão filosófica das mais profundas: para que eu vou comprar
prato, talher e copo para servir 40 pessoas se eu não sei onde estarei ano que
vem? Se eu não sei quando volto para o Brasil? Eu volto para o Brasil? E meus
pais? Vou abandoná-los de vez? Ser ou não ser, eis a questão.
Agora, olhem que engraçado. Enquanto eu estava mexendo a salada de
beterraba, o chinês do mercadinho aqui debaixo subiu para entregar água. Ele
viu aquela maçaroca cor de rosa e, como bom chinês, começou a xeretar e
perguntar. Eu, super a fim de colocar em prática o que aprendi na faculdade, dei
trela para o sujeito mostrando a foto da desconhecida beterraba, falando que
levava salsicha, batata, isso e aquilo. O chinês estava com um olhar tão curioso e
pidão, que resolvi oferecer um pouquinho para ele provar. Ele quase vomitou ali
mesmo! Disse: “Xiexie” e se mandou antes que eu começasse a insistir.
Conclusão: se a gente sente nojinho da comida deles, a recíproca é totalmente
verdadeira.
Além de preparar o cardápio da festa, pedi a nossa família e amigos do Brasil
que enviassem mensagens de vídeo desejando feliz aniversário para o Luiz.
Passei a semana recebendo mensagens divertidas, carinhosas e emocionantes;
legendando e editando todo este material. E, olhem só o que aconteceu: minha
professora, como dever de casa, me pediu para falar sobre qualquer assunto na
frente de todos os alunos. Aproveitei que o novo vocabulário era exatamente
sobre “festa de aniversário” e falei sobre os preparativos da festa do Luiz. Só
que, na hora em que contei sobre o vídeo surpresa, não me contive e comecei a
chorar na frente de todo mundo. E, para meu espanto, as coleguinhas mulheres
da sala também ficaram com os olhinhos cheios d’água revelando que nós,
expatriados, possuímos a mesma saudade enrustida que, por vezes, transborda
quando menos esperamos.
Enfim, a festa foi um sucesso! Luiz ganhou, entre outras coisas, muitas garrafas
de vinho e três peixinhos dourados para alegria de nossas gatas. O som do
caractere para peixe é “yu”, similar ao caractere para abundância. Um peixinho
já morreu... mas, segundo a tradição, outros virão!
Favela da Maré
4 de dezembro de 2012

Este fim de semana, eu e Luiz fomos usufruir do presente de aniversário que dei
para ele: uma viagem à vila de Tai O em Hong Kong. Para quem está aí no
Brasil, tudo aqui parece tão longe e inacessível, não é mesmo? Comigo também
era assim, até que vim morar em Shenzhen. Agora, ir a Hong Kong é quase
como ir do Rio a Niterói, com a diferença de que temos que passar pela
imigração e carimbar nossos passaportes. Brasileiros e várias outras
nacionalidades não precisam de visto, mas os chineses sim, não é bizarro? Ir a
Hong Kong é uma rotina na vida dos residentes de Shenzhen; rotina
compartilhada tanto pelos expatriados como pelos chineses para desespero dos
“honguikonguineses” que não gostam dos hábitos menos nobres dos
compatriotas.
A vila de Tai O na ilha de Lantau me foi indicada por uma amiga israelense. Ela,
como arquiteta, se apaixonou pela história do hotel, “Tai O Heritage” e me
recomendou o passeio. Entrei no site, do hotel, achei tudo lindo e reservei uma
noite, com direito a um passeio de barco ao por do sol. No entanto, dois dias
antes de irmos, descobri que: 1) A minha amiga nunca tinha ido lá, apenas
ouvido falar; 2). Para chegar, era preciso viajar quatro horas de barca, ônibus e
metrô; 3) A previsão do tempo era de muita chuva. Comecei a achar que meu
presente chinês estava ficando com cara de presente grego. Mas nada disso tirou
o bom humor do Luiz e lá fomos nós!
Depois das três primeiras horas de viagem, já no terminal de ônibus da vila de
Tai O, pegamos um último barquinho para chegar ao hotel, embora pudéssemos
ter ido a pé. Antes, no entanto, o piloto deu uma voltinha pelo grande ponto
turístico de Tai O e parte do meu presente para o Luiz: a vila de pescadores.
Para nossa surpresa, a vila de pescadores era a cara da favela da Maré com suas
casas de palafita, roupas secando ao sol e barquinhos descascados aos pés das
escadas improvisadas. “Pronto! Luiz vai pedir a notinha e trocar o presente. Que
roubada!”, pensei.
No entanto, como sempre temos que fazer aqui na China, mudamos a chave
mental de Ocidental para Oriental, nos libertamos de nossos preconceitos, e
começamos a tentar entender o que era tudo aquilo. A guia, durante o passeio ao
por do sol, embora sem sol e com uma leve garoa, nos disse que todo mundo que
mora ali é muito bem de vida. Alguns são até ricos! As casas são herdadas de
geração para geração e ninguém tem que pagar nada por elas. Apesar de
parecerem feitas de folhas de metal, elas são de madeira pintada de prateado para
esquentar no inverno e resfriar no verão. Algumas pessoas moram efetivamente
nessas casas à beira do mar. Seus filhos possuem escola gratuita assim com
assistência médica no pequeno hospital local. Mas, se eles ficarem muito doentes
e o hospital não puder atendê-los, um helicóptero vem buscá-los por apenas 100
“Hong Kong Dollar” ou menos de 30 reais. Não seria uma má ideia simular uma
crise de apendicite para fazer um passeio desses, né?
Para algumas pessoas, as casas são apenas de veraneio. Nos fins de semana e
feriados, eles saem da rotina estressante de Hong Kong e voltam às origens. No
feriado do “Dragon Boat” há uma corrida de barcos estilizados que, segundo a
guia, é imperdível. As madeiras das palafitas vêm diretamente de Macau e,
quando molhadas, se tornam mais rígidas e resistentes. As casas possuem ar-
condicionado, TV, Internet e algumas já estão ligadas à rede de esgoto. Outras
ainda trabalham com uma ligação direta privada-mar. Ou seja, nossas primeiras
impressões estavam muito longe da realidade. Tai O está mais para Veneza,
como falou a guia, do que para a Favela da Maré. Ok, não é a Favela da Maré,
mas, Veneza chinesa? Também exagerou, né?
Para nossa alegria, o hotel era muito bom! Em 2008, eles recuperaram uma
estação de polícia que atuava na época em que Hong Kong era colônia inglesa,
ou seja, até 1997. Era por aquele marzão em frente ao hotel que chegavam os
imigrantes ilegais que eram devidamente detidos. Nossa cela era super
aconchegante, ao estilo ocidental de ser. Graças a Deus!

O resto do passeio foi o de sempre. Coisas estranhas, comidas esquisitas, cheiro
de peixe podre e alga mofada, chineses simpáticos nos oferecendo ajuda, etc.
Apesar do meu desejo ocidental de comer um peixinho frito com uma cervejinha
gelada em frente ao mar, diante das escolhas que se apresentavam, tive que
almoçar batata assada no restaurante de um inglês casado com uma filipina, que
mora na China há mais de 20 anos. Essa é a magia deste tipo de viagem. A gente
conhece pessoas inacreditáveis (o que fazia aquele inglês alto de olhos azuis com
sotaque britânico servindo mesa na vila de Tai O na ilha de Lantau?), se
desvencilha dos preconceitos e acrescenta novas referências em nossas vidas.
Uma sensação deliciosa de dominar o mundo. Dominar o mundo? Aff! Acho que
a megalomania chinesa está começando a me contaminar...
https://www.youtube.com/watch?v=clSoAvScoOQ


Como viver na China
sem engolir sapo
nem comer cachorro
Um dia qualquer de 2011

Vocês devem estar dizendo: “Comprei o livro por causa do cachorro e até agora
ele não deu as caras. Será que levei gato por lebre?” Não, não levaram. Eu
guardei o cachorro para o final porque até hoje me choco ao relembrar desse
episódio.
Uns dois meses depois que chegamos à China, Mariana esqueceu o dever de casa
no colégio e eu, com um super mau humor, tive que voltar à escola com ela lá
pelas 19h. Pegamos o ônibus na porta de casa e descemos na rua do colégio pela
qual, até então, eu só havia passado de dia. Ao descer do ônibus, reparei que
havia um restaurante na esquina que eu nunca tinha visto, mas continuei focada
na bronca que estava dando na Mari pela sua irresponsabilidade. Ao passar bem
em frente do restaurante, vimos que além das mesas e cadeiras na calçada, havia
também uma vitrine dessas que vendem pipoca na porta do cinema, só que bem
maior. Lá dento, havia um bicho branco pendurando pelo pescoço e com a perna
esquerda faltando, ao lado de outro de cor caramelo, já sem a cabeça. Franzi os
olhos para enxergar melhor até perceber que eram dois cachorros e quase fiz xixi
nas calças. A sensação era de uma criança pequena quando vê Papai Noel pela
primeira vez e descobre que ele realmente existe e que é muito maior e mais feio
do que imaginava. Tirei uma única foto da vitrine e continuamos nosso caminho
até a escola nos perguntando se não seria cordeiro ou outro bicho qualquer,
duvidando da nossa própria sanidade mental. No dia seguinte, chamei a Liu e
perguntei: “Que bicho é este?” e ela: “Cachorro!”.
Pronto, foi assim que aconteceu. Essa foi a primeira e única vez que vi um
restaurante servir cachorro e, felizmente, nunca me deparei com um cardápio
que oferecesse carne de Totó.
Mas como sempre, na China, a gente precisa entender para compreender. Então,
vamos às explicações. Nos anos 60, a China passou por três anos de fome onde
morreram milhões de pessoas (há estatísticas que falam em 70 milhões). As
causas foram um misto das políticas do partido comunista e de desastres
naturais. Em resumo, os chineses passaram a comer de tudo incluindo,
obviamente, cachorro. No início dos anos 80, ter um animal de estimação ainda
era considerado um comportamento capitalista-burguês altamente indesejado,
além de não ser totalmente legal, uma vez que não havia acesso a veterinários e
vacinas e os cães poderiam colocar em risco a saúde pública. Em suma, comer
cachorro era até um favor.
As pessoas pensam que cachorro é um dos pilares da dieta chinesa, mas não é
verdade. Hoje, o consumo desta carne é extremamente raro, salvo algumas
exceções como o “Festival de Yulin” que comemora o dia mais longo do ano
com um banquete “canino”. Dizem que não existe uma indústria de carne de
cachorro e que, em sua maioria, os bichos são roubados de seus donos ou pegos
na rua. De acordo com a Medicina Chinesa, carne de cachorro é considerada
uma carne quente que pode dar um “gás” no inverno, mas que deve ser evitada
depois do Ano Novo, que cai em meados de janeiro ou fevereiro, de acordo com
o calendário lunar.
Atualmente, a China tem 130 milhões de cachorros sendo 27 milhões de
estimação. As novas gerações não toleram a crueldade contra os bichinhos,
pressionando as autoridades chinesas a tomar uma atitude contra o uso dos pets
como alimento.
Então, amigos, quem quiser visitar esta grande potência que está mudando a
história do mundo, não precisa se preocupar se vai ou não comer cachorro. Mas,
engolir alguns “sapinhos”, por conta das diferenças culturais, infelizmente, será
inevitável!
Encontro com vocês no volume 2 deste livro! Zai jian!


Para não dizer que não é verdade.

Todos os dias de manhã ou à noite as chinesas se reúnem para dançar


Dudu, o xodó das chinesas nas Muralhas

O gerente faleceu? Não, a loja é que está sendo inaugurada.


Comendo churrasquinho de berinjela na praia de XiChong

Espetinho de escorpião, estrela do mar


e cavalo marinho na Rua Wangfujing.

Liu comprando peixe vivo no mercado de Shekou

Mariana comendo cobra e mostrando o pau



Chinglês

Você pode ver essas e mais dezenas de fotos no site christianedumont.com/fotos


Sobre a Autora

Christiane Dumont vive desde 2011 em Shenzhen, na zona do Cantão na China,
é casada, mãe de 3 filhos e de 1 enteado. Formada pela Sociedade Brasileira de
Coaching, trabalha como coach de vida e carreira, fornece suporte a brasileiros
que desejam fazer negócios, estudar ou conhecer este país.
Escreve para mídias sociais sobre suas experiências como expatriada, dá aulas de
inglês para crianças chinesas, de mandarim para brasileiros e o que mais
aparecer pela sua frente.
Pós-graduada em Comunicação e Marketing, trabalhou ininterruptamente dos 18
aos 46 anos em agências e veículos de comunicação, além de ter tido seu próprio
negócio.
Em 2011, abriu mão da carreira de publicitária para acompanhar seu marido à
China, mergulhar na cultura oriental e aprender a viver um novo papel na
sociedade sem ter um cargo executivo como um dos principais componentes da
sua identidade.
Em 2014 precisou lutar contra um câncer de mama o que lhe deixou
aprendizados valiosos sobre a vida, uma página no Facebook (Câncer, rindo
juntos desta fase), alguns vídeos no Youtube (Resumo do Livro Anticâncer e a
Luta de Xiaoling) e o relato deste momento no segundo volume deste livro.
Assinou o blog “Família Brasileira na China”, da Gazeta do Povo durante 5
anos.

christianedumont.com








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