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ENTÃO, ALICE CAIU

Mariana de Althaus

À minha filha

Personagens masculinos: 2; personagens femininos: 4.

Alba, 50 anos

Basílio, 50 anos

Alice, 40 anos

Martín, 42 anos

Daniela, 45 anos

Paz, 15 anos

I.

Um quarto de hotel. Em uma parede, há um quadro de um coelho branco. À


escrivaninha, está sentada Daniela, na frente de um laptop. Lê um livro. Alba está
sentada em uma poltrona, tomando uma taça de vinho. Daniela e Alba não se veem.

DANIELA: (lendo) “Alice dava voltas em sua cabeça, fazendo projetos para afugentar
o tédio. Havia desejado que acontecesse algo extraordinário, mas se levantou,
conformando-se com apenas perambular pelo bosque em busca de flores. Uns
minutos depois, viu a seu lado, como num passe de mágica, um coelho branco.”

Batem à porta. Daniela não ouve e se põe a escrever em seu computador. Alba vai
abrir a porta. É Basílio. Eles se dão um frio beijo na boca.

BASÍLIO: Por que escolheu este hotel?


ALBA: Não gosta?
BASÍLIO: A recepcionista fuma cachimbo.
ALBA: Adorável.
BASÍLIO: É estranho.
ALBA: Sim.
BASÍLIO: Eu preferiria ir ao Marriott, de verdade.
ALBA: Quer uma taça?
BASÍLIO: Estou cansado.
ALBA: Não tem de trabalhar amanhã. Faz anos que não temos uma noite para nós.
BASÍLIO: Dormimos na mesma cama, Alba. Faz anos que não temos uma noite só
para nós.
ALBA: Vem, toma uma taça comigo.
BASÍLIO: É verdade a dedetização? Não inventou para me trancar em um hotel, não
é?
ALBA: Por que iria querer te trancar em um hotel? Para te abusar? Se estivesse tão
desesperada por sexo, eu trancaria um admirador jovem e disposto, não você.
BASÍLIO: Só você para se hospedar em um hotel que se chama Wonderland.
ALBA: É o meu livro favorito.
BASÍLIO: Um dos meus livros favoritos é “O ruído e a fúria”, e nem por isso vou me
enfiar em um hotel que se chame assim.
ALBA: Relaxa Basílio, olha que tenso. (O massageia nos ombros) Estar em um hotel é
como viver em um romance. Me ocorre um monte de ideias interessantes para esta
noite.

Basílio não se move. Pausa.

ALBA: Vai me dizer que diabos você tem? Faz uma semana que foge de mim. (Pausa)
O que foi, Basílio.

Pausa.

BASÍLIO: Tenho de ir ao banheiro.

Basílio entra no banheiro. Alba olha a porta do banheiro fechada. Dá uma olhada ao
redor e descobre um quadro de um coelho branco.

DANIELA: (Escreve) Aparece um coelho branco.

Alba se aproxima do quadro do Coelho Branco e o observa.


ALBA: Um coelho branco.

Basílio sai do banheiro. Ele está descomposto. Silêncio.

BASÍLIO: Quero me separar, Alba. Me apaixonei por outra mulher.

Pausa.

ALBA: Um coelho branco.

Alba se levanta lentamente e entra no banheiro. Basílio se senta na poltrona e cobre


sua cabeça com as mãos.

II.

Alice entra no quarto. Acompanha Martín. Nenhum dos dois vê Basílio nem Daniela.
Alice começa a beijá-lo e trata de tirar-lhe a roupa enquanto o conduz para a cama.
Chegam a ela depravadamente. Caem e seguem se beijando. De repente, ele se
afasta e se senta na beira da cama. Ela o olha sem entender.

MARTÍN: Estou com fome.

Alice volta a beijá-lo. Ele volta a se afastar.

MARTÍN: É verdade, estou com fome. Não quer comprar algo?


ALICE: Não viemos para comer. Viemos fazer amor. Depois, pedimos algo.
MARTÍN: Mas tenho muita fome. Muita.
ALICE: Está de brincadeira.
MARTÍN: Não foi uma boa ideia vir.
ALICE: Caralho.

Pausa.

MARTÍN: Isso não está funcionando, Alice.


ALICE: Não quer ter um filho. Diz de uma vez.
MARTÍN: Não é isso.

Pausa. O coelho branco do quadro fala.

COELHO: É muito tarde! Maldito tempo! Não vou chegar!

Alice olha o quadro. Logo volta para sua conversa.

ALICE: Não quer ter um filho! Para que me fez perder tempo todos estes meses?
Diga-me a verdade, por favor.

Pausa.

MARTÍN: Sua obsessão em ficar grávida me inibe sexualmente.

Pausa.

ALICE: Tem medo de me engravidar.


MARTÍN: (Sorri) Não. Não tenho medo de te engravidar.
ALICE: Não brinque, te peço.
MARTÍN: Deitar com você está virando uma obrigação, e assim não provoca. Quando
chegam os dias férteis, você vira um louva-a-deus religioso, e eu, um pênis que
caminha ou um saco de espermatozoides, e só tenho vontade de sair correndo, Alice,
de verdade.

Pausa.

MARTÍN: Sinto muito.


ALICE: Um louva-a-deus?
MARTÍN: Ou uma aranha, a que come o marido enquanto copulam.
ALICE: Essa é a imagem que tem de mim? Uma aranha que te come?
MARTÍN: É uma metáfora.
ALICE: Eu só estou tentando conceber nosso filho.
MARTÍN: Eu sei, mas não podemos fazê-lo...
ALICE: Pensei que queríamos, os dois.
MARTÍN: Alice...
ALICE: Não vou ficar grávida.
MARTÍN: Sim, vai ficar grávida, Alice, só tem de deixar que aconteça...
ALICE: Não posso deixar que aconteça. Só tenho sete dias férteis por mês. Dos sete
dias, quatro você chega tarde do trabalho, e dos três que sobram, em dois, tem futebol
ou reunião com seus amigos ou enxaqueca. Só nos resta um, e considerando que nós
dois somos velhos e que nossos óvulos e espermatozoides estão cansados, não vão
se encontrar nunca. Não posso deixar que isso aconteça, entende? Porque não vai
acontecer. Preciso de sua colaboração.
MARTÍN: Fique calma, Alice…
ALICE: Nunca vou ficar grávida. Como vou ficar grávida se você não quer que eu fique
grávida? (Grita) Preciso dos seus espermatozoides para ficar grávida, lembra? Eu
preciso!

Pausa.

MARTÍN: Creio que isso está ficando fora de controle.

Alice limpa uma lágrima que cai por sua bochecha.

MARTÍN: Vamos pedir algo para comer.

Alice vai ao banheiro e se fecha lá dentro. Martín fica sentado na beira da cama a
ponto de cair.

III.

Daniela deixa de escrever e marca um número no celular.

DANIELA: (Ao telefone) Rodrigo, me liga, por favor. Tem de vir pegar sua filha no
Hotel Wonderland.

Daniela desliga e volta ao trabalho. Entra Paz. Deixa sua mochila ao pé da cama e se
joga nela.

DANIELA: Vamos ter de dormir juntas. Como quando era pequena.

Daniela sorri para Paz. Paz a olha com uma expressão de desdém.
PAZ: Este hotel é uma merda. Não tem sala de televisão, nem internet, nem piscina.
DANIELA: A única coisa que precisava era de uma escrivaninha.
PAZ: Não entendo qual é a ideia de vir a um hotel. Podia terminar em sua casa,
desconectar os telefones e pronto.
DANIELA: É uma questão psicológica. Além do mais, esta noite seria impossível
escrever com a festa dos vizinhos. Me escuta, Paz: tenho de entregar isto segunda.
Só vou poder parar para comer e ir ao banheiro. Suponho que seu pai vai atender ao
celular amanhã, então, lhe diremos para que te pegue. Enquanto isso, você pode
escutar música, mas não alto. Ou pode ler, trouxe um livro?

Paz não responde.

DANIELA: Bom, também pode dormir, já é tarde.


PAZ: Não, vou continuar ligando para meu pai. De repente, me atende agora.
DANIELA: Como quiser.
PAZ: Posso ir ao bar?
DANIELA: Não.
PAZ: Só vou tomar uma limonada.
DANIELA: Não é verdade, você vai tomar uma cerveja.
PAZ: Não, vou tomar uma limonada.
DANIELA: Por que não a pede no quarto?
PAZ: Porque quero tomar uma limonada sozinha no bar.
DANIELA: É perigoso para uma menina se sentar sozinha em um bar. Um homem
pervertido pode se aproveitar de você.
PAZ: Que imaginação tão fértil.
DANIELA: Sentar-se sozinha em um bar é um convite para que um homem se
aproxime.
PAZ: Ao menos teria com quem conversar.
DANIELA: Vá ao restaurante e converse com a garçonete.

Daniela escreve em seu laptop. Pausa.

PAZ: (Vai até a porta) Vou tomar uma limonada no bar.


DANIELA: Eu disse que não!
PAZ: Para que me trouxe! Para me trancar em um quarto e ver como escreve uma
dessas porcarias de obra?
DANIELA: Te trouxe porque não tenho onde te deixar! Eu não tenho culpa que seu pai
tenha te deixado plantada!
PAZ: Não me deixou plantada!

Daniela segue escrevendo.

PAZ: Certeza que aconteceu alguma coisa!


DANIELA: (Farta) Claro.
PAZ: Você pensa o pior dele!
DANIELA: Olha, Paz: teu pai é um bom homem, eu te amo muito, mas a verdade é
que as primeiras cem vezes que ele não chegou na hora, temi que tivesse acontecido
algo, mas a partir da 101, já me dei conta que ele é assim.
PAZ: E você sempre chega na hora?
DANIELA: Não, mas pelo menos tenho minhas prioridades claras, e nunca te deixaria
plantada para sair no fim de semana com meu namorado de plantão, como ele fez!

Pausa.

PAZ: Foi com uma namorada?


DANIELA: Não sei.

Paz olha Daniela com ódio. Logo tira de sua mochila uma carteirinha, a pendura, abre
a porta e sai. Daniela faz um gesto de raiva. Logo se senta à escrivaninha. Daniela
começa a escrever. Em pouco tempo, para. Olha a porta pela qual Paz saiu,
preocupada.

IV.

Martín segue sentado na beira da cama, sempre a ponto de cair. Daniela retoma seu
trabalho no laptop. Basílio segue sentado na poltrona. Alba sai do banheiro. Olha para
Basílio.

BASÍLIO: Não vai me dizer nada?


DANIELA: (Lê do livro) “Alice começou a considerar a realidade fantástica que estava
vivendo e prometeu a si mesma não perder a pista do fabuloso Coelho Branco.”
(Escreve). O perseguirei até onde me leve.
ALBA: Quem é?
BASÍLIO: Uma aluna.
ALBA: Sempre soube que me deixaria por uma aluna.
BASÍLIO: Não é qualquer aluna, esta é...
ALBA: Brilhante?
DANIELA: (Lê) “O coelho atravessou com celeridade uma considerável distância,
como se tivesse asas nos pés.”
BASÍLIO: Sinto muito, Alba. Isso não me diverte. Para mim, é tão duro como para
você.

O coelho do quadro fala.

COELHO: É muito tarde! Maldito tempo! Não vou chegar!

Alba olha o quadro. Logo volta para sua conversa.

ALBA: Que idade tem?


BASÍLIO: Vinte e quatro.
ALBA: A idade que tínhamos quando nos conhecemos.
DANIELA: (Lê) “Coelho Branco conseguiu meter-se em uma toca. Alice se mete atrás
dele sem pensar como se arranjaria para sair depois.”

Alice sai do banheiro.

ALICE: (Para Martín). Ou temos esse filho hoje ou terminamos.


ALBA: Pretende ir viver com ela?
DANIELA: (Lê em seu livro) “Sem pensar como se arranjaria para sair depois.”
BASÍLIO: Vamos ter um filho.
DANIELA: (Lê) “E, então, Alice caiu.”

Alice começa a chorar em silêncio.

DANIELA: (Escreve) E, então, Alice cai.


ALBA: Vai ter um filho com ela?
DANIELA: (Lê) “Então, Alice caiu. E em seguida se viu descendo por um abismo muito
profundo.”

Alba pega sua carteira para ir.

BASÍLIO: Espera, aonde vai.


DANIELA: (Escreve) E se chego ao centro da Terra?
ALBA: Não foi uma boa ideia vir.
DANIELA: (Escreve) Quando tocar no chão, o choque será terrível.

Alba vai até a porta, Basílio a pega pelo braço.

BASÍLIO: Não vai assim, por favor, não vai assim.

Basílio trata de abraçar Alba. Alba se deixa abraçar, como adormecida.

BASÍLIO: Não vá.


DANIELA: (Escreve) Alice cai sobre um montão de folharada. Olha para cima. Tudo
está escuro.

Alba sai do quarto. Basílio cai sentado na poltrona. Alice para de chorar.

V.

MARTÍN: (Para Alice). Está bem?


DANIELA: (Lê) “O salão tinha muitas portas. Todas estavam trancadas. Então, pela
primeira vez, desde que começou tão singular aventura, Alice se sentiu triste.”
ALICE e DANIELA: Por que chorou tanto?
DANIELA: (Escreve) Este deve ser meu castigo, afogar-me em minhas próprias
lágrimas.
ALICE: Sinto muito, não gosto de chorar em público.
MARTÍN: Não se preocupe. Pode chorar na minha frente.
ALICE: Estou bem.

Martín vai ao telefone. Olha o menu noturno que está sobre a mesa.

DANIELA: (Escreve) Pode me dizer como se sai daqui? Estou cansada de tanto nadar.
MARTÍN: (Para Alice) Peço para você ravióli com molho vermelho?

Alice assente.

MARTÍN: (Ao telefone) Por favor, um espaguete com molho pesto e um ravióli com
molho vermelho para o 302. (...). E uma garrafa de vinho tinto. (…). Está bem. (…).
Obrigado.

Martín desliga e olha para Alice.

ALICE: Parece que tinha uma acumulação de lágrimas e teve a má sorte de


presenciar o transbordo, que se daria a qualquer momento.
MARTÍN: Está muito tensa. Não exija tanto de você. Vamos tomar uma taça de vinho,
assim nós relaxamos.
ALICE: Por que não quer ter um filho comigo?
MARTÍN: Sim, quero. Mas gostaria que ele elegesse o momento em que quer chegar.
ALICE: Faz um ano que permitimos que eleja o momento em que quer chegar, eu não
posso esperar mais, Martin, não quero pensar que sou infértil, amanhã, faço 41, trate
de me entender. Vai ver que, uma vez que fique grávida, toda a confusão desaparece.
MARTÍN: Está bem. (Sorri) Está bem.
DANIELA: (Escreve) Alice o coloca na cabeça e nadam até a borda.
ALICE: Sério?

Martín chega perto dela e a beija suavemente.

DANIELA: (Escreve) O país das maravilhas é realidade.

VI.

Martín e Alice se beijam e se acariciam na cama. Toca o telefone. Daniela atende.

DANIELA: Alô (...). Ahn!? (…). Só um momento, não sou a Paz, sou sua mãe, quem é
você? Ouve!

Daniela desliga. Volta a se concentrar no texto, mas não consegue.


DANIELA: Maldita seja.

Telefone toca.

ALICE: Não atende.

Martín deixa de beijar Alice e atende.

MARTÍN: Sim? (...). Como? (...). Não acredito. Ouça, supõe-se que este hotel inclua o
serviço de quarto!
ALICE: O que aconteceu?
MARTÍN: (Para Alice) O cozinheiro teve um ataque de nervos e foi embora para casa.
(Ao telefone) E não há ninguém mais que possa preparar algo? (...). Vou denunciá-los,
me ouviu? Vou fazer a denúncia pela manhã mesmo. (Desliga furioso) A recepcionista
disse que não sabe cozinhar.
ALICE: Amanhã tomamos um bom café da manhã.
MARTÍN: Por que diabos viemos para cá?
ALICE: Não sei.
MARTÍN: Viu esta decoração? Parece tirada de uma mistura de um romance de
Bukowski e um de Corin Tellado. Não poderia encontrar algo menos afrodisíaco.

Toca o telefone.

ALICE: Não atenda.


MATÍN: (Ao telefone) Sim? (Escuta o que dizem com cara de desconcerto. Logo
desliga). Me perguntaram se estou contente com minha estada atual.

Martín e Alice se olham.

ALICE: Então? Está contente ou o quê?


MARTÍN: É uma demente. Viu que fumava cachimbo?
ALICE: Como a lagarta.
MARTÍN: Quem?
ALICE: Esquece.

Batem à porta. Daniela vai abrir.


MARTÍN: Tenho de ir ao banheiro.

VII.

Daniela abre a porta e Paz entra.

DANIELA: Um garoto te ligou. Não quis dizer o nome. Me perguntou se tinha


preservativos.
PAZ: É um idiota.
DANIELA: Você convidou um garoto pra cá?
PAZ: Não aqui aqui. Eu convidei para me acompanhar, mas para que durma em outro
lugar.
DANIELA: No corredor?
PAZ: Não sei.
DANIELA: É seu namorado?
PAZ: Não.
DANIELA: E por que ele queria saber se tinha camisinhas, para fazer balão?
PAZ: Não quero falar disso.
DANIELA: Você dormiu com ele, Paz?
PAZ: Por que tem de falar isso? É a minha vida privada!
DANIELA: Você é uma menina, não tem vida privada.
PAZ: Não sou uma menina, e claro que tenho vida privada, faz tempo que tenho, e
nela você não tem papel nenhum.
DANIELA: Se você está dormindo com ele...

Paz olha para a televisão.

DANIELA: Não acredito.

Daniela desliga a televisão.

PAZ: Aaah, mãe.


DANIELA: Tem quinze anos!
PAZ: Se acalme.
DANIELA: Usaram preservativo?
PAZ: Óbvio.
DANIELA: Quem comprou, você ou ele?
PAZ: Ele!
DANIELA: Onde fizeram?
PAZ: Também quer que eu te conte que cor era a cueca?
DANIELA: Desde quando tem relações sexuais, posso saber?
PAZ: Faz anos...
DANIELA: Faz anos!?!
PAZ: Mais ou menos quatro.
DANIELA: Quat..?! Desde os onze anos! (Assustada) Com quantos homens você se
deitou, Paz?
PAZ: Isso parece um interrogatório policial.
DANIELA: Com quantos!
PAZ: Não sei, já perdi a conta.
DANIELA: Quê?!?
PAZ: Vinte ou trinta.
DANIELA: Ahn!?
PAZ: É brincadeira.
DANIELA: (Grita, fora de si) Caralho, Paz! Me diga com quantos homens você se
deitou!

Pausa.

PAZ: Só com Luciano.

Silêncio.

DANIELA: Verdade?

Paz assente, sem olhá-la, envergonhada.

DANIELA: Luciano.
PAZ: Sou uma boba. Todas as minhas amigas já transam faz tempo. Eu só fiz uma
vez.

Pausa.

DANIELA: Está apaixonada.


Paz nega.

DANIELA: Suponho que já se deu conta de que sexo sem amor não tem muito
sentido.

Daniela pega sua mão, mas Paz a tira. Paz se aproxima do laptop e lê o que sua mãe
escreveu. Alice, por sua vez, assiste à televisão.

DANIELA: Não é uma boba. Ao contrário.


PAZ: (Lê no laptop) “Alice entra no quarto. Vê uma pequena garrafa. Tem uma
etiqueta que diz “Beba-me”. Alice destapa a garrafa e a leva aos lábios.”
DANIELA: (Para Paz). Por que não me contou? Sabe que pode me contar tudo.

Ouvimos a voz de Alice, que sai da televisão.

ALICE: (OFF, da televisão de Alice) “Desejaria crescer de novo. Na verdade, estou me


aborrecendo por ser tão pequena.”
PAZ: Não tenho de te contar tudo. Já sou grande.
DANIELA: Desculpe-me. É difícil aceitar que está crescendo.
PAZ: (Lê no laptop) “Rapidamente, Alice cresce, e sua cabeça se choca contra o teto.”
ALICE: (OFF, da televisão de Alice) “Já não posso sair pela porta. Não quero crescer
mais, meu Deus.”
PAZ: Por que faz uma versão de “Alice no país das maravilhas”? Já fizeram muitas
vezes, não tem graça.
DANIELA: É uma encomenda.
PAZ: (Olha para Daniela) Tremenda velha de quarenta e cinco anos escrevendo sobre
meninas que viram gigantes.

Paz segue lendo no laptop. Martín sai do banheiro. Olha para Alice, que está na cama
assistindo à televisão.

ALICE: (Para Martín) Uma astróloga me disse faz anos que teria um filho aos
quarenta, te contei? Hoje é meu último dia para conceber. Se não ficar grávida esta
noite, terei quebrado uma ordem estelar.
MARTÍN: Desde quando acredita em astrologia? É estupidez.
ALICE: (OFF, da televisão de Alice) “Estou perdida. O que será de mim? Estava muito
melhor em casa. Lá, eu sempre tinha o mesmo tamanho e vivia mais tranquila, sem
me incomodar com coelhos e ratos.”
ALICE: Quero cuidar de alguém. A vida não tem sentido se não cuidamos de alguém.
PAZ: (Para Daniela) Por que cresce tanto?
ALICE: Agora, espero mais do amor.
DANIELA: Alice caiu na toca e chegou a um país estranho. Sente que tem de aprender
algo para ir embora.
PAZ: O quê?
DANIELA: Não sei. Por exemplo, que não se é grande ou pequeno. Senão que
mudamos de tamanho segundo as circunstâncias.
PAZ: Que besteira. Você sempre vai ser maior que eu.
DANIELA: Nem sempre. Às vezes, é mais inteligente que eu, e isso te faz maior.
PAZ: É verdade. Cada vez que briga com meu pai, se torna uma menininha tonta.
ALICE: Não penso em desafiar as estrelas.
ALICE (OFF, da televisão de Alice) Se ficar aqui, sempre serei uma menina.
PAZ: (Lê com desprezo) “Se ficar aqui, sempre serei uma menina”.

Alice desliga a televisão. Martín se joga na cama. Paz se atira na cama, aborrecida.
Marca um número em seu celular, espera um momento, desliga. Daniela olha com
tristeza sua filha, volta a sentar-se à escrivaninha e trata de se concentrar.

ALICE: Creio que o que te incomoda é que tudo isso te põe à prova.
MARTÍN: À prova?
ALICE: Põe à prova seu sêmen, sua capacidade de me inseminar, sua velhice, sua
capacidade de assumir a responsabilidade de uma vida.
MARTÍN: Pode ser.
ALICE: Não está passando na prova.

Pausa.

MARTÍN: Vou buscar algo para comer, talvez haja algo aberto por perto.

Martín sai do quarto. Alice fica olhando a porta.

PAZ: Comecei a escrever uma peça de teatro.


DANIELA: (Escrevendo) Ah, sim? Eu adoraria ler.
PAZ: Se chama “A estrangeira”.
DANIELA: Uma versão teatral e feminina do romance de Camus?
PAZ: Ahn?
DANIELA: (Deixa de escrever) Está aqui?
PAZ: Sim. (Tira uma folha de caderno de sua mochila) É só uma cena, acabei de
escrever.
DANIELA: Vamos ver.
PAZ: Você é o barman, e eu a estrangeira. (Lê) A estrangeira se aproxima do balcão
do bar. O barman a olha e entende. Então, entrega uma taça com um líquido azul.
DANIELA: Eu sou o barman, não? (Lê) Ninguém teme o frio.
PAZ: (Lê) Na cidade, de onde eu vejo, não se teme o frio.
DANIELA: (Lê) Todas as histórias têm sua raiz na nostalgia.
PAZ: (Lê) Por isso, prefiro o som do álcool deslizando pela minha faringe.
DANIELA: (Lê) Gostaria de te dar uma flor, mas o dono se enfureceu e me roubou
uma.
PAZ: (Lê) Não poderia fazer nada com sua flor, talvez a comesse.
DANIELA: (Lê) O pistilo é muito nutritivo, tem vitamina D.
PAZ: (Lê) Talvez preferisse um proteico dedo de sua mão esquerda.
DANIELA: (Lê) A direita tem mais carninha, quer provar?
PAZ: (Lê) Talvez, amanhã; hoje já jantei.
DANIELA: (Lê) Não sei se virei amanhã.
PAZ: (Lê) Amanhã, quero comer flor.

Paz guarda a folha de papel. Pausa.

DANIELA: Não entendi nada.


PAZ: Já sabia.
DANIELA: É um sem sentido completo.
PAZ: Em compensação, o que você escreve tem muito sentido.
DANIELA: Este texto é vazio e pretensioso. Você não é assim.
PAZ: Só escrevi o que me provocou.
DANIELA: É engenhoso, mas ser engenhoso não basta para escrever algo bom. Uma
palavra engenhosa, mas vazia de valor. Não tem objetivo escrever coisas engenhosas
para não dizer nada.
PAZ: Estou com calma. Vou comer algo no restaurante.
DANIELA: Paz, espera...
PAZ: Não tenho vontade de ouvir sua conferência magistral sobre dramaturgia.
DANIELA: Só quero te ajudar.
PAZ: Não quero escrever coisas importantes, como você. Não sou tão inteligente, nem
tão profunda, sinto muito.

Toca o celular de Alice. Paz pega sua carteira e sai.

DANIELA: Caralho.

ALICE: (Ao telefone) Mãe, está bem? (…). Calma, mãe (…). ok, ok… Marta está por
aí? (…). Fala para a Marta fazer uma “mazamorra”1 para você. (…). Diga que coloque
mais açúcar, então. (...). Eu não posso ir agorinha, mãe, estou ocupada, pede para
Marta fazer “mazmorra” e vai ver como se sente melhor. (...). Sim, estou com Martín.
(...). Sim, mãe, vou amanhã cedinho. (...). Fique na cama e se agasalhe bem. Tchau,
mãe. Até amanhã.

Alice, angustiada, sai do quarto.

VIII.

Daniela está paralisada pela angústia. Entra Alba. Basílio, que tinha ficado pensando o
tempo todo sentado na poltrona, se arruma ao vê-la.

ALBA: Me disse que não queria ter filhos. Me disse faz anos, quando ainda podíamos
tê-los. Me disse que seria bom que alguns humanos se abstivessem de procriar para
não contribuir com a superpopulação mundial.
BASÍLIO: Estou repensando minha teoria.
ALBA: Muito conveniente.
BASÍLIO: Além do mais, não foi planejado. Foi um acidente.
ALBA: Que acidente mais oportuno. Te salva de uma velhice sem filhos que cuidem de
você, de quebra, te salva de um casamento gasto e de uma mulher com rugas.
BASÍLIO: Não tem nada a ver contigo, é…
ALBA: E me deixa, velha e solitária, quando já não tenho possibilidades de ter
descendentes.
BASÍLIO: Espera aí. Você também decidiu. Não fui só eu. Você estava de acordo em
não procriar. Pensava que seu trabalho era o mais importante, e que uma mãe nunca

1
Tipo de alimento feito à base de milho, comum nos países latino-americanos.
poderia se dedicar realmente a sua carreira; que as verdadeiras artistas, as que
tinham passado à história, não tiveram filhos ou os tinham abandonado, e tudo isso.
Não se lembra? Teve a opção e decidiu pela sua profissão.
ALBA: E não me arrependo! Não teria gravado quinze discos nem teria cantado em
mais de mil shows se tivesse de cuidar de bebês.
BASÍLIO: Aí está.
ALBA: Mas, no plano, estava incluído você. A ideia era envelhecer juntos, construir
nossas carreiras juntos, morrer juntos.
BASÍLIO: Eu também queria que fosse assim.
ALBA: E? O que aconteceu? Se deu conta de que não conseguiria a transcendência
por si mesmo e optou por transcender por meio da procriação?
BASÍLIO: O que está insinuando?
ALBA: Seu plano era deixar um aporte transcendental na filosofia, mas só conseguiu
ser um professor universitário.

Silêncio.

BASÍLIO: Eu não sou só um professor universitário. Escrevi livros.


ALBA: Que só seus alunos leem para passar na disciplina.

Pausa. Basílio tenta não explodir.

BASÍLIO: Está ferida. Por isso quer me humilhar.

Silêncio. Alba abraça Basílio com força. Desmorona.

ALBA: Você não é do tipo que perde a razão por um par de tetas, Basílio. Você é dos
confiáveis, dos que permanecem. Eu deveria confiar em você. Eu poderia desconfiar
dos meus amigos, do meu gerente, do meu talento, da minha mãe, até de mim mesma
poderia desconfiar, mas não de você, Basílio. Em você, eu confiava. Você era a única
certeza em minha vida, o único estável e certo, Basílio... O que aconteceu?

Pausa. Alba esconde sua cara no peito de Basílio, que está imóvel. Logo Alba se
separa dele, se recompõe e limpa as lágrimas dignamente. Basílio a olha, angustiado.

BASÍLIO: Vou dar uma volta.


Basílio sai do quarto. Alba fica imóvel.

DANIELA: (Escreve) Teremos de incendiar a casa.

A luz se apaga.

DANIELA e ALBA: Caralho.


ALBA: A luz!
DANIELA: Era o que faltava.

IX.

Volta a luz. Daniela retoma seu trabalho. Alba se serve de vinho.

ALBA: Teremos de incendiar a casa.

Alba começa a tomar uma nova taça de vinho. Entra Martín com um saco de batatas
fritas. Vê que Alice não está. A procura no banheiro. Vai até o telefone.

MARTÍN: (Ao telefone) Senhorita, saiu uma mulher que estava no 302? Uma magra,
de cabelo comprido, um pouco achinesada. (...). Sim. Pode mandar uma cerveja ao
302? (...). Mas a cerveja não precisa preparar, só tem de pegar na geladeira! (...).
Traga você mesma, então! (...). Vou te denunciar, juro que vou fazer isso.

Martín desliga, abre o saco de batatas fritas e começa a comer lentamente. Assiste à
televisão.

MARTÍN: (Em OFF, da televisão) Quem é?


DANIELA: (Escreve) Não sei. A verdade é que eu não sei, apenas. Sei quem fui esta
mesma manhã; mas creio que mudei várias vezes desde então.
MARTÍN: (Em OFF, da televisão) Pode se explicar melhor?
DANIELA: (Escreve) Não posso. É que creio que… eu já não sou eu.
MARTÍN: (Em OFF, da televisão) Você não é você?
DANIELA: (Escreve) Quando se transformar em crisálida, depois em mariposa, verá.
Também estará atordoado. Entende?
Martín desliga a televisão, deixa o saco de batatas fritas e sai do quarto. Alba desaba
no chão. Apaga-se a luz.

DANIELA: Caralho, outra vez!

X.

Volta a luz.

DANIELA: Que merda acontece com a luz neste hotel?

Daniela escrevendo. Alba está no chão. Trata de se levantar, mas torceu o tornozelo.

ALBA: Ajuda!

Alba trata de se levantar, mas volta a cair.

ALBA: Ajudaaa! Socorrooooo!

Batem à porta.

MARTÍN: (Em OFF, de fora) Sim? Aconteceu alguma coisa?


ALBA: Entre!

Martín entra.

MARTÍN: Senhora?

Alba lhe faz sinais do chão.

MARTÍN: O que aconteceu?

Martín corre até ela.

ALBA: Me ajude a levantar.

Martín ajuda Alba a chegar à cama. Senta-se a seu lado.


ALBA: Obrigada.

Entra Alice no quarto, vai ao banheiro para ver se Martín está lá, volta a sair.

MARTÍN: Está bem?


ALBA: Sim.
MARTÍN: Você caiu. Vou chamar um médico.
ALBA: Estou bem.
MARTÍN: Tropeçou?
ALBA: Só torci o tornozelo, sempre acontece. Tenho tornozelos elásticos, a única
coisa elástica que tenho, desgraçadamente, passei a vida aterrissando no chão, logo
me incha o tornozelo e pouco a pouco passa, não se preocupe.
MARTÍN: Tem certeza? Não quer que chame um médico?
ALBA: Não, por favor. Estou bem, é sério. Me passe a taça.
MARTÍN: Acho que já bebeu bastante.
ALBA: Já sou grande, posso beber bastante.
MARTÍN: Acabou de desmaiar.
ALBA: Não desmaiei, dei um passo em falso, nada mais. Me passe a taça.
MARTÍN: Melhor chamarmos um doutor.
ALBA: Estou bem.
MARTÍN: Não sei, se acredita...
ALBA: Surpreendeu-me o maldito coelho de má sorte. Por segui-lo, me meti no buraco
errado e não posso sair. Me passe a taça, menino, seja bom com esta velha.
MARTÍN: Você não é velha.
ALBA: Não?

Pausa.

MARTÍN: É uma mulher bonita.

Pausa.

ALBA: Te pareço bonita?


MARTÍN: Muito bonita.
ALBA: É um conquistador.
MARTÍN: Sou Martín Souza, advogado. Tenho vários de seus discos. Bem, eram da
minha mãe. Quando morreu, eu os herdei. Gosto muito.
ALBA: Sério?
MARTÍN: Sim, sou um admirador.

Pausa. Se olham.

ALBA: Não quer tomar uma taça comigo?


MARTÍN: Seria uma honra, mas tem uma pessoa me esperando.
ALBA: Que pena.
MARTÍN: Talvez, em outra ocasião.
ALBA: Seria um prazer.
MARTÍN: Sim.
ALBA: Gostaria tanto que meu esposo entrasse aqui agora e me visse contigo na
cama.
MARTÍN: Por quê?
ALBA: Me trocou por uma jovenzinha, e vai ter um filho com ela.
MARTÍN: Sinto muito.
ALBA: O amor pode aparecer muitas vezes na vida, sabe? Oportunidades de ter um
filho com alguém que ama, não. Eu não tive filhos.
MARTÍN: Se arrepende?
ALBA: Envelheci na vaidade. As mulheres que envelhecem na entrega e na bondade
são belas, ainda que estejam enrugadas. Uma fruta que morre para deixar que suas
sementes gerem vida é bonita. No entanto, eu sou uma fruta podre, um dejeto, minha
morte só contribuirá com a enorme quantidade de lixo que há no mundo.
MARTÍN: Não seja tão dura consigo mesma.
ALBA: Ter filhos é um dever de nossa espécie. Se não os tem, não cumpre com o
dever da espécie humana e se torna uma falha, um exemplar fracassado.
MARTÍN: Isso é uma bobagem, com todo o respeito.
ALBA: Estou na menopausa. Sofro todos os dias por ter carregado um sistema
reprodutivo que nunca usei. Isso não faz sentido.

Pausa.

ALBA: Por que estou te falando essas coisas? Só faltava me humilhar na frente de um
jovem admirador.
MARTÍN: Não está se humilhando na minha frente, senhora. Mostrou-me as feridas da
sua alma, isso só me enche de respeito e agradecimento.
ALBA: É um rapaz especial ou um bom sedutor. Tem sorte essa namorada que está te
esperando.

Martín sorri. Pausa.

MARTÍN: Já tenho que ir. Se voltar a sentir-se mal, estou no quarto ao lado.

Alice entra no quarto. Se joga na cama.

ALBA: Vou estar aqui, se sua amiga desaparecer.


MARTÍN: Levo isso em conta.

Se olham.

MARTÍN: Foi um prazer te conhecer.

Entra Basílio. Carrega um presente envolto com um laço. Vê Martín sentado ao lado
de sua mulher na cama.

BASÍLIO: Quem é este?


ALBA: Um admirador.
MARTÍN: Martín Souza, prazer. Estou no quarto ao lado.
ALBA: (Para Martin, mostrando Basílio) Este é o culpado.
MARTÍN: Sua esposa sofreu um pequeno acidente, e eu vim ajudá-la.
BASÍLIO: (Para Alba) O que aconteceu?
ALBA: Torci o tornozelo, nada demais.
MARTÍN: Bem, foi um prazer conhecê-la.
ALBA: Igualmente.
MARTÍN: Adeus.

Martín sai. Alba e Basílio se olham. Basílio tem um aspecto lamentável, como se
tivesse corrido durante horas.

BASÍLIO: (Para Alba) Te peço o divórcio e, no minuto seguinte, consegue um gigolô.


ALBA: Comprou um presente para que eu esqueça o punhal que cravou em mim?
BASÍLIO: Alguém deixou para você na recepção.
ALBA: Quem?
BASÍLIO: Você deve saber quem.
ALBA: Quem.
BASÍLIO: Não sei, diga-me você.
ALBA: Eu não tenho um amante, por acaso.
BASÍLIO: Não sei, te deixam um presente anônimo e depois te encontro com um
homem no quarto. Já não sei se sou eu quem está em falta.
ALBA: Escute, acabo de saber que você está me enganando com uma aluninha,
suponho que não tenha autoridade para reclamar de nada, se tivesse me encontrado
nua e fazendo uma orgia com seus três irmãos, também não poderia reclamar.

Alba pega o presente de Basílio. O coloca no chão.

BASÍLIO: Não vai abrir?


ALBA: Na sua frente, não.

Martín entra no quarto de Alice. Ela o olha.

BASÍLIO: (Para Alba) Amanhã, saio de casa. Vou passar cedo para pegar minhas
coisas.
ALICE: Fui te procurar.
ALBA e MARTÍN: Me perdoe.
BASÍLIO e ALICE: Não tenho nada para te perdoar.

Martín se senta perto de Alice.

ALBA: Claro que sim. Te chamei de medíocre, te humilhei.


BASÍLIO: Só disse a verdade.
ALBA: Não é certo.
BASÍLIO: Sim, é.
ALBA: É um professor muito respeitado.
MARTÍN: Sou um imbecil. Vamos tentar.
ALICE: Já não sei se te amo.
ALBA: Eu amo o que você é.
BASÍLIO: Devia ter dito antes.
ALBA: Deveria ter me dito que estava apaixonado por outra, Basílio, talvez, eu
pudesse ter feito algo!
BASÍLIO: O quê?
ALBA: Não sei. Mas seja o que for, já é tarde demais.
BASÍLIO: É tarde demais?
ALBA: O que foi? Está duvidando agora?
MARTÍN: Posso fazer algo para que me ame?
BASÍLIO: Nunca tinha visto você chorar. Nos vinte e cinco anos que ficamos juntos,
nunca tinha visto você chorar.

Pausa.

ALBA: Anda, compra uma pomada anti-inflamatória, por favor, está doendo este
tornozelo do demônio.
BASÍLIO: Não quer ir para a Emergência?
ALBA: Não.
BASÍLIO: Talvez fosse melhor fazer uma radiografia...
ALBA: Anda, compra uma pomada e uma faixa, Basílio. Por favor.

Pausa. Basílio, angustiado, levanta e sai do quarto. Alba fica quieta na cama, olhando
um ponto fixo.

MARTÍN: Parece como se, de repente, tivesse se aberto uma porta enorme entre mim
e você. Você está fora, e eu fiquei dentro.
ALICE: Ao contrário. Eu fiquei dentro, e você saiu.
MARTÍN: O que devo fazer para entrar?
DANIELA: (Escreve) Se houvesse uma porta entre nós, teria sentido sua pergunta. Se
estivesse dentro e chamasse, eu abriria para que pudesse sair ou vice-versa.
ALICE: O amor, às vezes, é voluntário. Quando quiser amar de verdade, me chame.
Tomara que ainda seja capaz de ter filhos.

Alice se joga na cama e se deixa dormir de costas para Martin. Martín a olha sentindo-
se impotente.
XI.

Alba, sozinha e sentada na cama, liga pelo celular.

ALBA: Roberto, é Alba, pode passar para Kika? (...). Ele dorme tão tarde? Mas que
hora dormem as crianças de três anos? (...). Não, tudo bem, só queria falar... Pode
dizer para ela me ligar quando Felipito dormir? (...). Ok, obrigada. (…). Ah, que bom.
Obrigada, Roberto, tchau. (…). Kika, esse diabo já dormiu? (…). Deus é grande.
Escute, já conseguiu a turnê? (…). Mas falou com Dubois? (…). Eugênia
Vallegrande? Seu último disco é um lixo. (…). Não posso acreditar que preferem
Eugênia Vallegrande, ela está fora de moda. Mandaram para ele meu disco? (...).
Muito escuro? Muito “escuro”, te disseram? (...). Dubois usou esta palavra, “escuro”?
(…). Você acha escuro, Kika? Me diga a verdade. (…). Acha escuro, meu disco? Por
que não me disse? (…). Se acha escuro, por que não me disse? (…). Claro que sua
opinião me importa, sempre importou. (...). Mas, deixe-me ver, por que acha escuro,
por que, me diga. (...). Bom, não importa, então já não há turnê, minha carreira
internacional acabou. E o concerto no Municipal, vai ou não vai? (…). Ou seja, não há
concerto no Municipal este ano. (…). E o patrocínio da Telefônica? (…). Já. (…). KiKa,
por que me diz só agora? (...). Por que esperou que eu te ligasse para me dizer que
não vou fazer turnê pela Europa, que não há concerto no Municipal e que acha meu
disco escuro, por quê? (...). Ahn? (…). Mas esse menino, por que não dão um
sonífero?! (…). Não vou dormir! Não dá vontade de ir dormir! (…). Não, me desculpe,
vai, vai. (...). Sim, falamos depois. (…). Tchau.

Alba desliga e deixa o telefone de lado. Fecha os olhos. Daniela marca um número no
telefone.

DANIELA: (Ao telefone) Paz... Por que desligou o telefone? Retorne agora mesmo, por
favor. É muito tarde. (Pausa) Fui um pouco dura com seu texto, me desculpe. Fui
torpe. O primeiro que me mostra, e eu o chuto. Muito mal. Deve ter sido difícil mostrar
para mim. Não quis te causar mal. Vem, por favor.

Daniela desliga o telefone e fica pensando. Alba permaneceu dormindo. Entra Basílio
com pomada e faixas nas mãos. Olha a esposa dormir. Enche o tornozelo dela de
pomada, fazendo-lhe suaves massagens circulares. Logo coloca a faixa com
delicadeza. Percebe que já fez isso muitas vezes. Daniela se levanta e volta para o
laptop.
ALBA: (Com os olhos fechados) Obrigada.
BASÍLIO: Pensei que estivesse dormindo.

Silêncio. Basílio olha Alba. A acaricia. Logo a beija com carinho. Alba se deixa beijar.
Quando Basílio já começa a tirar-lhe a roupa, Alba o detém.

ALBA: Basílio. O que está fazendo?

Pausa.

BASÍLIO: Sou um imbecil.


ALBA: Há pouco disse que me deixaria e, agora, quer me despir. Trate de ser
coerente, por favor.
BASÍLIO: Desculpe-me. Pensei que tudo isso seria mais fácil.
ALBA: Só não vá de um extremo ao outro.
BASÍLIO: Não quero me separar de você.
ALBA: E o menino?
BASILIO: É meu filho, vou fazer meu papel.
ALBA: E a mãe?
BASÍLIO: O amor é outra coisa.
ALBA: Estava muito convencido quando me disse que iria embora.
BASÍLIO: Naquele instante, eu estava.
ALBA: O que aconteceu?
DANIELA: (Escreve) Se não estivesse louca, não estaria aqui.
BASÍLIO: Fiz todo o possível para te afastar da minha vida. Mas não posso, é
estranho. Acho que não posso viver sem você.

Pausa.

ALBA: Me deixe dormir sozinha esta noite. Te peço. Preciso descansar.

Basílio olha com tristeza para Alba.

ALBA: Não é uma vingança. Sério. Só preciso estar sozinha. Falamos amanhã.

Basílio vai lentamente até a porta e sai.


XII.

Martín segue acordado. Alice, que estava há um longo tempo de costas para ele, volta
para ver se ele dorme, e ambos se olham. Alice volta a ficar de costas.

MARTÍN: O decorador disso deve estar mal da cabeça. (Pausa) Ainda que a cor das
paredes não esteja mal. Vamos amanhã comprar tinta para o quarto da televisão?
Talvez uma cor assim possa ficar melhor. Combina com a da poltrona.

Alice não contesta.

MARTÍN: O bom de dormir em um hotel é que ninguém vai te ligar.

Toca o telefone.

MARTÍN: Caralho. (Atende) Sim? (…). Sim, senhorita, me diga. (…). Como? (…). Não,
não espere. Não, continue. Pode comer todo o seu pedido, não se preocupe, obrigado.
(Desliga. Para Alice) A recepcionista pediu comida japonesa e estava me oferecendo
um pouco. Para compensar o dano, disse.

A luz relampagueia.

MARTÍN: Neste hotel, acontecem coisas estranhas.


ALICE: Cala a boca!
MARTIN: Ahn?
ALICE: Deveria ir! Nós terminamos, não se atentou? Estou doída e triste, e você não
para de falar idiotices. Como pensa em me propor ir comprar tinta para a casa, se
nossa casa caiu, nossa relação fracassou, não há filho, não há casa, não há planos,
não há futuro, não há nada, não temos nada para falar. Não me interessa o que te
oferece a recepcionista, não percebe que não é o momento para nada, não percebe
que é o momento de ficar em silêncio por respeito ao sofrimento alheio? Ficar em
silêncio ou ir embora, essas são as alternativas, ficar em silêncio ou ir embora daqui e
me deixar sozinha para sempre.
A luz relampagueia. Toca o celular de Alba. Pausa. Alice e Martín se olham. Logo se
beijam apaixonadamente e começam a se despir.

ALBA: Kika. (...). Dormiu? (…). Já. Não, não se preocupe… Tive um dia ruim. Olha,
fiquei sabendo que Basílio tem uma amante e que vai ter um filho com ela. (...). Já
sabia que tinha uma amante? (...). Quê? (…). Não posso acreditar. (…). Você sabia e
não me disse. Desde quando sabe? (…). Não, eu não sabia! O que te faz pensar que
eu sabia? Se eu soubesse, teria me divorciado dele, não acha? Desde quando sabe,
Kika? (…). TRÊS ANOS!?! (Se debilita. Pausa) Faz três anos que está com ela? (…).
Três? (…). Faz três anos que me engana com outra mulher, você sabia e não me
disse? (…). Não, Kika, eu nunca soube. Acabo de saber.

Alba desliga. A luz se apaga.

DANIELA: Não! O que acontece com a luz?!? Puta que pariu!


MARTÍN: Outra vez apagão.
ALBA: Três anos.
ALICE: Não importa.

Em meio à escuridão, Alba canta em voz muito baixa.

ALBA: Uma casa no céu/ Um jardim no mar/ Um sabiá em seu peito/ Um voltar ao
começo/ Um desejo de estrelas/ Um bater de pardal/ Uma ilha em sua cama/ Um pôr
do sol/ Tempo de silêncio/ Gritos e cantos/ Céus e beijos/ Voz e quebranto/ Nascer em
seu riso/ Crescer em seu pranto/ Viver em suas costas/ Morrer em seus braços... (1)

Em cima da canção de Alba, ouvimos a voz de Daniela, que grita ao telefone.

DANIELA: Senhorita, a luz acabou! (…). Ahn? (…). Não há eletricidade em todo o
quarto, não é só a lâmpada! (...). Quê? (…). Senhorita, se o eletricista está com um
ataque de nervos, deixe de fumar seu cachimbo, pegue a lista telefônica e chame
outro! (...). O quê? Ouça, eu me aborreço se me dá vontade, além do mais, eu
paguei... (Pausa. Se acalma). Por amor de qualquer coisa, senhorita. Chame um
eletricista, faça algo, te peço. Preciso de luz!

Alba para de cantar. Ouvimos o clímax do ato sexual entre Alice e Martín.
DANIELA: Maldita seja.

XIII.

Volta a luz.

DANIELA: Aleluia.

Daniela volta para o laptop. Alba abre os olhos. Logo se levanta, manca até o espelho
e se olha nele. Alice e Martín estão nus sob os lençóis. Ela está furiosa.

ALICE: Por que gozou fora?


MARTÍN: Não sei.
ALICE: Não sei? Eu precisava desses espermatozoides.
MARTÍN: É o instinto de não-procriação.

Alice, furiosa, começa a se vestir.

MARTÍN: Espera, Alice.


ALICE: Você é um imbecil.
MARTÍN: Vai embora?
ALICE: Sim, vou.
MARTÍN: Não, Alice, espera, se acalme, vamos conversar.
ALICE: Você se julga muito importante, não? Acha que seu sêmen é algo assim como
o último oásis do Saara, não? Você acredita que eu morro por ter um filho contigo?
Está enganado, Martín, estou sendo sincera, a essa altura tanto faz se tenho um filho
seu ou do guarda do prédio, compreende? E mais, se formos honestos, não me
convém em nada que meu filho saia com seu nariz, sua asma, suas enxaquecas, suas
úlceras, seu escassíssimo interesse pela leitura, sua ausência total de refinamento na
hora da comida e, sobretudo, seu retardo mental. Não me interessa ter um filho
contigo, só tentava ficar grávida, e como, desgraçadamente, você estava a meu lado,
devia tentar contigo, isso é tudo. Mas, agora, a coisa está muito mais clara, nem você
quer ter um filho comigo, nem eu quero tê-lo contigo. Assim que colocar sua roupa,
nos despedimos e você some daqui. Não quero voltar a te ver em minha vida.
Martín se levanta, se veste e sai.

ALBA: Cortem-lhe a cabeça!

XIV.

Alba liga pelo celular.

ALBA: Javier, é a Alba. (…). Preciso que venha aqui. (…). Sim, agora mesmo, estou
no Hotel Wonderland. (...). Wonderland, sim. (…). Não aconteceu nada, quer dizer,
sim, aconteceu, quer dizer que estou em um estado crítico. (...). Muito crítico. (…). Não
respondo por meus atos nas próximas horas, de tão crítico. (...). Descobri que meu
marido me engana faz três anos com uma jovenzinha e que vai ter um filho com ela,
justo no momento em que minha carreira afunda. (...). Afunda sim, Javier, afunda. E
ninguém quer me ver cantar. Saí de moda, tenho de aceitar, me tornei feia, velha e
monotemática, todas as minhas músicas são sobre desamor e lágrimas, imagine,
tremenda velha falando de desamor e lágrimas, ninguém quer ir ver uma velha
cantando canções de desamor, todos querem ver cantoras de vinte anos, com
silicone, que não param de dar saltos por todo o palco, não importa se cantam, o que
importa é que saltem muito no palco... (...). Javier, me perdoe, não deveria ter te
ligado, você está em casa com sua mulher, na tranquilidade de sua vida conjugal, e
não tem por que ouvir uma paciente que te liga para chorar suas mágoas, não, é sério,
não vou me matar, te prometo, prometo seguir vivendo a vida, esta que tenho, pelo
menos até nossa sessão de quarta-feira. É uma promessa, sim, não se preocupe
comigo, tomo um Diazepam, me jogo na cama e pronto. Desculpa. Até quarta.

Alba desliga o telefone. Vira para o espelho. Se olha. Começa a se maquiar e a se


pentear, lentamente.

DANIELA: (Escreve) “O tempo não gosta de receber palmadas. Se conseguisse


conquistar a amizade do tempo...”
ALBA: Conquistar a amizade do tempo.
DANIELA: “Então, seu relógio te obedeceria docilmente em tudo aquilo que te desse
vontade.”
COELHO: É muito tarde! Maldito tempo! Não vou chegar!
ALBA: (Para o coelho) Fica quieto.
Toca o celular de Alice. Ela atende.

ALICE: O quê? (Se suaviza) Ah, mãe, é você. (...). Não, estou bem… Só que já estava
indo dormir. (...). Você fez a pilha? E Marta? (…). Diga à Marta, mãe, que é para isso
que eu a pago, para que te atenda! (...). Passe para Marta, mãe! (…). Passe! (…).
Marta, deixou minha mãe molhada? (…). Ahn, já… deu seus remédios? (…). Meu
irmão foi hoje visitá-la? (…). Nem ligou? (…). Ok, passe para ela, por favor. (…). Mãe,
Marta já te limpou, para que me ligou? (…). Sim, mãe. (…). Sim. (…). Sim, mãe. (…).
Não estou grávida, não. (…). Ok, mãe, foi só um sonho… (…). Sim, mas, mãe, temos
de falar disso agora? São mais de nove horas. (...). Não estou grávida, mãe. (...). Você
não vai morrer antes de ser avó, te prometo, agora anda, vai dormir. (...). Ok, amanhã
vou à sua casa almoçar, sim. Amanhã é meu aniversário, por acaso. (...). Sim, já sabia
que ia esquecer. (...). Não se preocupe, mãe, amanhã nos vemos. (…). É sério, não se
preocupe, mãe, anda, vai dormir. (…). Não chore, mãe, até amanhã.

Alice desliga. Batem à porta. Alice vai abrir. É Paz, que traz uma cerveja.

ALICE: O quê.

Alba liga pelo celular.

PAZ: Sou sua vizinha, do 302.


ALICE: O que quer.
PAZ: Pediu uma cerveja.
ALICE: Não.
PAZ: Sim.
ALICE: Não
PAZ: Sim. Um cara pediu. A recepcionista viu que eu vinha para cá e me pediu para
trazer, porque ela não pode sair da recepção, e o mensageiro sofreu um ataque de
nervos.
ALICE: Também?
PAZ: Ahn?
ALICE: Me dá.

Alice pega a cerveja, abre e a toma toda, sem respirar. Devolve a garrafa vazia.
ALICE: Obrigada.
PAZ: Quer que eu leia seu futuro?
ALICE: Ahn?
PAZ: Leio tarô.
ALICE: Não, obrigada.
PAZ: É grátis.
ALICE: É um serviço do hotel?
PAZ: Não. (Pausa) Minha mãe está no 301. Não quer que eu a interrompa. Neste
lugar, todos parecem estar loucos. Gostaria de um tempinho com alguém normal.

Alice olha Paz, que se vê bastante frágil. Paz tira de sua carteirinha um maço de
cartas de tarô. Alice a deixa entrar. Paz olha a seu redor para encontrar um lugar
apropriado para sua sessão de tarô. Decide acomodar suas cartas sobre a cama. Alice
a olha.

PAZ: (Oferecendo as cartas a Alice) Escolha cinco.

Paz dispõe as cinco cartas que Alice escolheu. Alba, maquiada e penteada, se olha
triste no espelho. Batem à porta. Alba olha para a porta e caminha mancando até ela
muito lentamente.

PAZ: Como se chama?


ALICE: Alice.
PAZ: A que aumenta e encolhe a todo o momento.
ALICE: Sim.
PAZ: Que coincidência. Minha mãe está escrevendo uma peça de teatro sobre você.
ALICE: Sobre “Alice no país das maravilhas”?
PAZ: Sim.
ALICE: Já fizeram muitas vezes, não tem graça.
PAZ: Isso que eu disse para ela.

Alba abre a porta. É Martín. Tem o casaco mal vestido, está despenteado e muito
cansado. Alba o olha em silêncio, o faz entrar e fecha a porta.

MARTÍN: Dói muito a minha cabeça. (Pausa) Posso te beijar?

Paz examina as cartas e faz cara de preocupação.


ALICE: O quê.
PAZ: (Olhando as cartas) Uma ruptura.
ALBA: Para quê?
ALICE: Com meu namorado?
MARTÍN: Não sei.

Paz assente.

PAZ: Uma briga, o fim da relação. Ele é muito imaturo para você.

Martín se aproxima de Alba para beijá-la. Ela o detém com delicadeza, e faz um gesto
de carinho no rosto.

ALICE: Tem certeza?


PAZ: (Ensina para Alice uma carta) Olha, “Os namorados” invertida. Isso é uma
ruptura amorosa.
ALICE: Caralho.

Martín recosta sua cabeça no ombro de Alba.

PAZ: Mas esta é “A estrela”.


ALICE: O que significa “A estrela”?
PAZ: Esperança. Um grande amor. Está junto de “A imperatriz”, ou seja, vai chegar um
grande amor, se praticar a compreensão e a paciência.
COELHO: É muito tarde! Maldito tempo! Não vou chegar!

Alice olha para o quadro.

ALBA: Estamos tristes, os dois. A paixão morre com um beijo triste.


ALICE: Não vou ter um filho?
PAZ: (Oferecendo o maço para Alice) Escolha uma.

Alice escolhe uma carta do tarô. Paz a olha. Martin abraça Alba. Ela o acolhe,
maternal.

PAZ: (Olhando a carta) O Sol.


ALICE: O Sol?
PAZ: Sim, vai ter um filho.

Pausa.

ALICE: Quando?
PAZ: Aos quarenta anos.
ALICE: Já tenho quarenta!
PAZ: Sério? Não parece tão velha.
ALICE: Faço 41 amanhã!
PAZ: Então, já deve estar grávida.
ALICE: Já? (Pega na barriga)
PAZ: Provavelmente.
ALICE: Como vou ter um filho sem Martín! Ele é o pai, não podemos nos separar!
PAZ: Estas são apenas as tendências do seu destino. Se você quiser, pode mudá-lo.
ALICE: Não é uma caloteira, não?
PAZ: O futuro não existe. Esse bebê sim. Não tenha medo.

Alba se desfaz do abraço de Martín, o penteia com cuidado, limpa uma lágrima e
finalmente o beija na testa.

ALICE: (Ao celular) Atende, Martín. Onde se meteu?


ALBA: Não tenha medo. O futuro não existe. Ela, sim.

Alice, vencida, desliga o celular. Martín olha para Alba e sai do quarto. Alba vai se
sentar na poltrona e bebe de sua taça de vinho.

ALICE: Sou muito idiota. As poucas vezes que conheço alguém, o assusto. No
primeiro encontro, arruíno tudo. Ou começo a falar coisas legais ou políticas a noite
toda ou, de nervosa, tomo muitas taças e acabo beijando o cara e declarando meu
amor eterno no carro. Vou aos extremos. Apenas termino uma relação, meu ex se
torna meu melhor amigo e se casa. Fui a todos os casamentos dos meus ex, a todos
os batizados de seus filhos, e sempre me pergunto quando será dos meus. Agora,
acabo de afugentar outro namorado. Quando o conheci, pensei que ele fosse para
mim. Estou cansada de estar sozinha.
PAZ: Eu tenho um problema parecido. Sou como a Branca de Neve, se vem um
príncipe me beijar, eu entrego meu coração.
ALICE: Sua mãe sabe que está no meu quarto?
PAZ: Não.
ALICE: Por que estão hospedadas aqui?
PAZ: É seu esconderijo literário. Meu pai me deixou plantada, tinha de me pegar para
passar o fim de semana com ele. Não atende ao telefone. Minha mãe não teve opção,
a não ser me trazer com ela. Odeio os dois por me trazerem ao mundo e logo fazerem
eu me sentir um obstáculo para seus planos.
ALICE: Ser mãe não deve ser fácil.
PAZ: Ser filha da minha mãe é pior.
ALICE: E do seu pai, não?
PAZ: Ele é uma vítima da minha mãe, como eu. Ela o deixou, e ele ficou louco. Talvez
me ligue mais tarde e me tire deste hotel de merda.

Batem à porta. Ninguém se mexe. Entra Martín. Alice e Martín se olham. Martín vê
Paz.

ALICE: Ela é...


PAZ: Paz.
ALICE: Está no 301, veio trazer uma cerveja.
PAZ: A recepcionista mandou.
MARTÍN: Ah, obrigado. Era para mim.
ALICE: Já tomei.
MARTÍN: Não importa.
PAZ: Bom, já vou. (Para Alice) Sorte.
ALICE: Obrigada.

Paz e Alice se olham e logo Paz sai.

MARTÍN: Tem as chaves de casa?


ALICE: Não vá, por favor. Vamos conversar.
MARTÍN: Não trouxe as chaves, pensei que voltaríamos juntos.
ALICE: Vamos voltar juntos.

Martín vai sair do quarto, mas Alice o detém.

ALICE: Me desculpe, te peço. Te feri e não tenho o direito de fazer isso.


Martín olha para Alice.

ALICE: Por favor, não vá. Mudei muitas vezes esta noite. Agora, que já recuperei meu
tamanho normal, me dou conta de que te amo.

Martín se senta na beira da cama, derrotado.

MARTÍN: Não quero ter um filho. Essa é a verdade. Não vejo sentido em trazer uma
criança a este mundo. O ser humano, em geral, me parece depreciável. Se eu tivesse
um filho e ele, chorando, reclamasse um dia porque eu o trouxe a este mundo de
merda, não saberia o que responder, e nunca poderia me perdoar por esse erro.

XV.

Alba segue tomando vinho. Paz entra no quarto de Daniela, que deixa de escrever e a
olha.

DANIELA: Te liguei no celular, escutou a mensagem?

Paz, sem olhar para sua mãe, entra no banheiro. Ouve-se o som da água do cano
correr. Daniela volta ao trabalho.

ALICE: Este mundo de merda, como o chama, precisa de mais gente boa como você.
O mundo precisa que gente como você tenha filhos bons para seguir tendo esperança.

Pausa.

MARTÍN: Você quer dar esperança ao mundo ou quer dar esperança a você mesma?
(Pausa) É muito perigoso forçar a chegada de um filho. O sentido da vida pode
depender da chegada de um filho. O sentido da vida não pode descansar na vida de
outro ser humano, porque é injusto para ele, é exigir-lhe demais.
ALICE: (Dá a mão a Martín) Tem razão.
MARTÍN: (Solta a mão) Estava tudo tão bem. Tínhamos nosso apartamento, nossos
trabalhos, nossos planos. E, de repente, fico sabendo que você me considera um
ignorante e um retardado mental.
ALICE: Não disse isso.
MARTÍN: Sim, você disse, em outras palavras.
DANIELA: (Escreve) Alice fica calada. Senta, esconde a cara entre as mãos, e se
pergunta...
ALICE e DANIELA: Quando tudo voltará a ser normal?
MARTÍN: Não sei, Alice. Já não sei.

Martín pega as chaves no bolso de Alice e sai do quarto. Ela fica sentada.

XVI.

Paz sai do banheiro e se joga na cama.

DANIELA: O restaurante é bom?


PAZ: O do hotel está fechado.
DANIELA: Onde comeu?
PAZ: Em uma cafeteria a duas quadras.
DANIELA: Saiu do hotel sem me avisar?
PAZ: Não quis te interromper.
DANIELA: A próxima vez que quiser sair, por favor, me avise. (Pausa) Me escuta, Paz,
você é muito talentosa. Só trato de evitar que sua raiva e seu cinismo destruam seu
talento. É mais fácil ser cínico e destrutivo que dizer algo que, de verdade, contribua
com o mundo. Eu luto contra a tentação do cinismo em cada frase que escrevo. Não é
fácil, mas aí está o trabalho.
PAZ: Me meti no quarto de uma mulher.

Pausa.

DANIELA: Se meteu no quarto... de quem?


PAZ: A recepcionista me pediu que levasse uma cerveja.
DANIELA: A louca do cachimbo? Como você dá atenção à louca do cachimbo?
PAZ: Uma hóspede pediu uma cerveja, e eu a levei para fazer um favor à
recepcionista.
DANIELA: Você não tem porque fazer favores para a louca do cachimbo.
PAZ: Ela é gente boa.
DANIELA: E por que se meteu no quarto dessa hóspede? Ela poderia ser uma
assassina.
PAZ: Não era uma assassina, era uma mulher triste. Foi muito amável, li o futuro para
ela e conversamos.
DANIELA: Ainda com essa coisa de tarô? É perigoso fazer isso, pode sugestionar as
pessoas com suas mentiras.
PAZ: Não são mentiras.
DANIELA: Sobre o quê conversaram?
PAZ: Coisas.
DANIELA: Acho melhor não sair mais.

Daniela segue escrevendo. Paz se aborrece. Marca um número no celular. Espera.


Desliga.

PAZ: O que te perguntaram na entrevista que fizeram ontem?


DANIELA: Nada interessante.

Paz põe seu celular na boca como se fosse um microfone.

PAZ: (Atua como se fosse uma entrevistadora tonta) Senhora Daniela Hériz, o que
leva em conta para eleger um tema para uma obra? (Deixa o microfone e põe uns
óculos de sol. Atua como se fosse Daniela) O tema queria ir de férias ao Caribe, e eu
pretendo levá-lo para conhecer a gaveta de minhas roupas sujas.
DANIELA: Paz...
PAZ: (Como a entrevistadora) Sempre elegeu segundo esse critério ou alguma vez fez
uma concessão? (Como Daniela) Uma vez levei uma obra à praia e me joguei como
se fosse uma puta. Meu namorado de plantão ficou muito contente com o resultado.
DANIELA: Já pode parar, Paz.
PAZ: (Como a entrevistadora) O que acontece quando vê uma obra sua e não gosta
de representação?
DANIELA: Paz.
PAZ: (Como Daniela) Soltei um peido e vou ao bar da esquina tomar um daiquiri.
DANIELA: Já basta, Paz! Preciso de silêncio!

Pausa. Paz se aborrece. Marca um número no celular. Espera. Desliga.

PAZ: Li em um artigo de uma revista que muitas pessoas elegem os nomes de seus
filhos com base nas próprias expectativas do que o filho vai resolver ou para
compensar uma falta. Por isso, há pessoas que se chamam “Milagre”, “Glória” ou
“Socorro”.
DANIELA: (Enquanto escreve) Sim?
PAZ: Não te serviu colocar o meu de Paz, sinto muito.
DANIELA: (Deixa de trabalhar) Em um sentido, sim. Me trouxe muitíssima paz. Em
outro não, me trouxe um furacão.
PAZ: Por que precisava de paz?

Daniela volta ao computador.

DANIELA: Porque eu era... conflitiva.


PAZ: Agora não?
DANIELA: Os conflitos já não são de vida ou morte.
PAZ: Não acredito. Escreveu um monte de obras de assassinatos passionais.
DANIELA: Isso é ficção.
PAZ: Nunca tentou matar ou se suicidar?
DANIELA: Não.
PAZ: Por que você enganou meu pai?
DANIELA: Eu não o enganei.
PAZ: E esse tal Renzo que saía nas fotos quando eu tinha dois anos?
DANIELA: O que tem ele?
PAZ: Você enganou meu pai com ele.
DANIELA: Não!

Paz ri.

DANIELA: De onde tirou isso?


PAZ: Tiro de conclusões óbvias.
DANIELA: Não tem ideia do que fala.
PAZ: Enganou meu pai por um palerma e, no fim, ficou sem corda e sem peru.
DANIELA: Isso não é verdade.
PAZ: Gostaria que eu sempre fosse pequena para que nunca soubesse do seu
passado sórdido, não?
DANIELA: Não tenho um passado sórdido! Sou uma mulher que tenta fazer o melhor
que posso e criar minha filha da melhor forma possível! Mas me apaixono, sou
vulnerável, me equivoco! O importante de uma pessoa não são os erros cometidos, e
sim o que faz para repará-los e para aprender com eles!
PAZ: Você não parece que aprendeu nada, abandonou meu pai, o deixou sozinho,
logo fez o mesmo com todos os idiotas que passaram pela casa; agora, está velha e
ficou sozinha.
DANIELA: Não estou sozinha, estou com você!
PAZ: Não está comigo. Está sozinha. Está amargurada, velha e sozinha.

Pausa. Daniela, ferida, vai ao banheiro e bate a porta com força. Paz fecha os olhos,
como se lhe doesse o coração. Logo marca um número em seu celular, espera.

PAZ: Pai… me liga… por favor, me liga.

Paz desliga.

XVII.

Alba digita um número de telefone em seu celular.

ALBA: Graciela, olá. Sou Alba. Deve estar dormindo. Queria saber como está. Me
lembrei de você e disse... caramba, faz tanto tempo que não falo com minha irmã. Não
te liguei em seu aniversário, me desculpe. Me desculpe por ser uma irmã mais velha
tão má. Dê um beijo no Jorge e nos meninos. Me liga, se puder. Um beijo.

Alba desliga. Paz segue com os olhos fechados. Daniela sai do banheiro, alterada.

DANIELA: Vomitou!
PAZ: Não!
DANIELA: Vomitou tudo o que comeu!
PAZ: A comida caiu mal.
DANIELA: Por que não me disse?
PAZ: Porque não tem importância.
DANIELA: Desde quando vomita?
PAZ: Ahn?
DANIELA: Desde quando é bulímica!
PAZ: Não sou bulímica.
DANIELA: Por isso está tão fraca.
PAZ: Não!
DANIELA: Como não! Isso explica tudo, os litros de sorvete que desaparecem tão
rápido! E teu peso... apesar de...

Paz não diz nada.

DANIELA: Vou ter de dizer a seu pai.


PAZ: Não! Não conte nada a meu pai!
DANIELA: Ele tem de saber, Paz. Isso é muito grave!
PAZ: Não pode resolver sozinha?
DANIELA: Não! Não posso resolver sozinha! Não posso resolver tudo sozinha! Desde
que nasceu, eu resolvo tudo sozinha! Não posso, eu sozinha, me ocupar o tempo
todo! Não posso!

Daniela está fora de controle e respira com dificuldade.

PAZ: Dá pra notar.


DANIELA: Como dá pra notar? Está reclamando de mim? Eu me ocupo de você desde
que nasceu, quase não tenho tempo para me ocupar de mim, de ter vida social, de me
apaixonar, de ler, porque trabalho para nós e me ocupo de você, do seu colégio, da
sua asma, de te levar às aulas de teatro, de falar com seus professores, de comprar
suas coisas, de te buscar nas festas, de pensar por que sofre, por que me odeia, por
que quer se matar! Nunca me queixei, nunca fugi, enfrentei todos os problemas
sozinha! Seu pai nunca cuidou, só paga o colégio, te convida para almoçar a cada
duas semanas e já está bom! Eu sou a que carrego a responsabilidade e o peso
emocional de tudo! Eu sozinha!
PAZ: Boa estratégia para ajudar sua filha, se fazer de mártir.
DANIELA: Não sou uma mártir, escolhi te ter e é a melhor coisa que fiz na vida! Só
quero que me deixe te ajudar!
PAZ: Não se preocupa comigo, se preocupa com ter que se ocupar de um problema a
mais que tira o tempo do trabalho.
DANIELA: Não! Desde que nasceu eu não sou só eu, você é parte de mim! Se você
está mal, o mundo cai em cima de mim, Paz! Se você cai, eu caio contigo!
PAZ: Por favor, deixe de atuar. Não é um de seus personagens.

Pausa. Daniela contém a raiva.


DANIELA: Sabe o que é? Quando seu pai me ligar no celular, vou falar muito
seriamente com ele. Já que sou uma péssima mãe, então, será melhor que vá para a
casa dele. Faz tempo que quer ir morar com seu pai, não? Perfeito, vou te levar para a
casa dele ou onde esteja amanhã mesmo. Ele vai ver como resolver isso, vai te levar a
um psiquiatra, vai te medicar, vai te obrigar a comer três pizzas por dia para engordar
e vai te amar para que não vomite ou não vai fazer nada, não sei. Vai ser problema
dele.
PAZ: Perfeito.
DANIELA: Perfeito.

Paz olha com ódio para sua mãe, contendo a vontade de chorar. Finalmente, pega sua
carteirinha e sai do quarto, batendo a porta. Daniela fica paralisada. A luz acaba. Do
televisor, sai uma voz.

VOZ: “E, naquele instante, se produz uma apoteose. Todas as cartas, como um
castelo que desmorona, se esparramaram, caindo sobre ela. Alice gritou presa ao
pânico e indignada ao mesmo tempo, tratando de separá-las como se fossem abelhas
com um ferrão à mostra”. Alice grita.

XVIII.

A luz volta. Alice olha para um ponto fixo. Daniela, desesperada, vai ao telefone.

DANIELA: Senhorita, saiu uma adolescente do hotel? (...). Se vir, a impeça de sair, por
favor. (Desliga)

Alice liga a televisão.

ALICE: (Em OFF, da televisão) Neste mundo, nada existe sem moral. Só precisa
saber encontrá-la.

Alice olha para a televisão.

ALICE: (Em OFF, da televisão) “A moral é, neste caso... É o amor que faz girar o
mundo.”
Alice desliga a televisão. De repente, Alba começa a cantar uma canção muito
suavemente. Daniela, como se a escutasse, cantarola em voz baixa. No fim, Alice
também incorpora o coro.

ALBA: Já se acaba a tarde/ A última que fica/ E nossos olhos/ Que estão calados/
Choram de pena/ Sem nada o que dizer/ Ficamos em silêncio/ Depois que tanto
falamos/ De nós/ Quisera/ Como quisera/ Dizer que te amo/ Me dê a mão/ E verás,
sem dúvida/ Ainda que você vá/ Eu te direi/ Sim, te direi/ Te amo. (2)

Daniela sai do quarto. Alice pega o celular. Espera. Desliga. Daniela, fora de si, entra
no quarto de Alba. Alba não a vê. Daniela olha Alba cantar. De repente, Alba vê a
intrusa. Deixa de cantar.

DANIELA: Reconheci sua voz.


ALBA: Quem é você?
DANIELA: Você é como um flautista de Hamelin.
ALBA: É uma fanática louca para me matar?
DANIELA: Não, desculpe, sou Daniela Hériz, estou no quarto ao lado. Procuro minha
filha. Me disse que esteve aqui agora há pouco.

ALBA: Seu filho?


DANIELA: Não, filha. Uma menina de 14 anos.

Alba olha para Daniela com estranheza.

DANIELA: Não veio uma adolescente lhe trazer uma cerveja?


ALBA: Não tomo cerveja.
DANIELA: Sinto muito, acho que me enganei.
ALBA: Ou está mentindo.
DANIELA: Perdão?
ALBA: Parece-me conhecida.
DANIELA: Trabalhamos em “Segredos de uma gata suja”, o filme, eu era uma das
roteiristas.
ALBA: Essa porcaria.
DANIELA: Sim, no fim não saiu muito bom.
ALBA: Mas lembro da sua cara, sim.
DANIELA: Eu fui a que a limpou no banheiro, se lembra? A vez que se embebedou no
set.
ALBA: Você me limpou o vômito?
DANIELA: E a vesti para que ninguém percebesse.
ALBA: Que vergonha. Eu era muito jovem. Já não faço essas coisas, por acaso. Isso é
só uma taça. (Pausa) Ainda escreve filmes?
DANIELA: Não, na verdade escrevo peças de teatro.
ALBA: Peças de teatro! Colocou alguma em cena ultimamente? Talvez a tenha visto.
DANIELA: Não creio, minhas peças normalmente são encenadas em teatros
pequenos.
ALBA: Teatro alternativo.
DANIELA: Algo assim.
ALBA: Que maravilha! Olha, vem, veja: faz tempo que dou voltas em uma ideia que
tenho na cabeça e, olha que casualidade, agora me encontro com uma dramaturga
alternativa em um hotel, no pior dia da minha vida.
DANIELA: O que aconteceu com o pé?
ALBA: Um tombo estúpido. Quer escrever minha história?
DANIELA: Que história?
ALBA: A da minha vida.
DANIELA: Quer que eu escreva a história da sua vida?
ALBA: Claro! Um musical sobre minha vida. Por acaso, tive uma vida interessante.
DANIELA: Não duvido.
ALBA: Então? Aceita?
DANIELA: Você não conhece meu trabalho.
ALBA: Teatro alternativo, não? Perfeito. Não quero nada comercial, quero algo
diferente, estranho, radical, como eu, entende?
DANIELA: Acho que sim.
ALBA: Então, aceita.
DANELA: Podemos nos juntar e dar contorno à ideia...
ALBA: Eu te conto minha vida e você a escreve. Ao seu estilo. Se quiser, podemos
começar agora mesmo.
DANIELA: Não, sinto muito, agora não posso. Tenho de encontrar minha filha.
Tivemos uma briga, e ela saiu correndo.
ALBA: Agorinha volta. Sabe como são.
DANIELA: Paz é imprevisível.
ALBA: (Sorri) Paz.
DANIELA: Sim, Paz.
Daniela, subitamente, desmorona. Alba, que estava em pé na frente dela, consegue
sustentá-la para que não caia no chão. Alba, mancando e tudo, consegue sentá-la na
cama.

ALBA: Baixou sua pressão, filha.


DANIELA: Faz dois dias que não durmo.
ALBA: Com razão, então.
DANIELA: Tenho de entregar um trabalho segunda-feira. Se não o entregar, não vou
poder pagar as contas este mês. Mas Paz...

Daniela se cala. Está esgotada.

ALBA: Tranquilo. Tudo vai ficar bem. Talvez, ninguém tenha te dito isso durante anos,
mas precisa que alguém diga: tudo vai ficar bem.

Daniela assente.

ALBA: Eu acreditei que estava grávida aos 26. Estava começando minha carreira. Não
queria que um filho detivesse tudo. Ao fim, foi só um atraso. Essa poderia ser a
primeira cena.
DANIELA: Quando tento me aproximar dela, causo dano. O amor é estranho. Acho
que me odeia.
ALBA: Te odeia porque te ama mais que ninguém no mundo.
DANIELA: Muitas vezes me perguntei como seria minha vida se não tivesse tido ela.
ALBA: Provavelmente, muito mais triste.

Paz entra no quarto. Fica surpresa que sua mãe não esteja nele.

PAZ: Mãe?
DANIELA: Há dias que são fáceis, mas há outros nos quais luto todo o tempo contra a
tentação de me jogar no chão e ficar ali quieta, esperando recuperar a serventia.

Paz procura sua mãe no banheiro, logo se joga na cama.

ALBA: É possível que já tivesse cedido à tentação se não tivesse ela.


DANIELA: Mas também poderia estudar mais, escrever mais, economizar mais, talvez,
agora, tivesse uma casa própria e veria minhas peças em grandes teatros. Talvez
tivesse me apaixonado.

Paz se joga na cama.

ALBA: Eu me faço as mesmas perguntas inúteis. O que teria sido de mim se tivesse
sido mãe? Teria seguido cantando? Seria feliz? Meu marido teria me abandonado?
DANIELA: São perguntas inúteis. Suponho que Paz permitiu que, em minhas peças,
saia só o melhor de mim. O único que vale a pena. Suponho.
ALBA: Já eu, tão concentrada em mim mesma, só me saíram canções de desamor e
lágrimas.
DANIELA: Não há nada que possa causar tanto dano a uma pessoa como a própria
mãe. Se dá conta disso? Nem todas as pessoas estão prontas para criar um filho.
Nem todas as pessoas têm de ter filhos. Não importa se tem filhos ou não. É muito
mais importante chegar ao fim da vida com uma sensação de dever cumprido por ter
se entregado a algo, por ter amado até o fim.

Silêncio.

ALBA: Vai escrever minha história? Acho que você é a indicada.


DANIELA: Qual seria o fim?
ALBA: Do musical? Não sei.
DANIELA: Um musical sobre sua vida teria de acabar com sua morte.
ALBA: Ah, não, querida. Eu quero atuar nessa peça.
DANIELA: E então, qual seria o fim?
ALBA: Vejo que é uma buscadora de fins. O fim seria, naturalmente, o dia de hoje, o
dia que meu marido me abandona e que descubro que morrerei sozinha. Esse é o fim.
DANIELA: O dia que descobre que é livre para escrever uma nova história.
ALBA: Esse é o fim.
DANIELA: Este é o meu cartão. Boa noite!

Daniela dá um beijo na bochecha de Alba. Logo se vai.

XIX.
Entra Martín. Alice o olha. Ele vai direto para a cama. Alba procura seu celular e liga.

MARTÍN: Não tem táxi nem nada aberto ao redor. Estou preso.

Martín tira a calça e se joga na cama. Fica de costas para Alice e fecha os olhos.

ALBA: (Ao telefone) Basílio, não posso acreditar que ainda está acordado. Quantas
vezes já pegou a aluninha? (...). Nenhuma! Pobre menina, deve estar decepcionada!
(…). Não, é sério, ligo em sinal de paz. Tive uma catarse dessas e me dei conta de
que tudo isso está bem, é um fim apoteótico, justo, dramático, eficaz. Ahn? Espere,
não me interrompa, que depois esqueço o que ia te dizer (...). Não tomei, não, o vinho
está intacto. Já sei que me engana faz três anos. (…). Basílio? (…). Basílio, está aí ou
desmaiou? (…). Um passarinho. Não importa quem, o que importa é que já sei.
Gostaria de saber pela sua boca, mas a essa altura já não sou exigente. Saber a
verdade é como ter ganhado na loteria para mim, já que fui durante três anos a única
tonta que não sabia que meu marido tinha uma amante... (...). Não, Basílio, não me
interessam suas explicações, não me interessam em nada, é sério. Só queria te dizer
que isso era a única coisa que precisava para deixar de te amar por completo... Ahn?
(...). No quarto de baixo? Que merda faz no quarto de baixo, não estava na casa da
sua aluninha? (...). Ok.

Alba desliga o telefone, incomodada.

ALICE: Quando nos conhecemos, se aproximou de mim um dia e me entregou uma


flecha de plástico, se lembra? A flecha estava manchada com tinta vermelha. Sua
camisa polo tinha um pontinho vermelho justo no coração. E me disse: “Deu branco”.
(Pausa) Foi a coisa mais brega que tinha visto. Me apaixonei por você no ato. Deve
ser uma pessoa inteligente, mas muito valente para fazer uma breguice tão grande. Eu
gosto disso. Não quero te perder.

Entra Basílio. Alba e Basílio se olham.

ALBA: Que diabos faz aqui, Basílio?


BASÍLIO: Fiquei no hotel.
ALBA: Para quê?
BASÍLIO: Para armar uma estratégia.
ALBA: Uma estratégia para quê.
BASÍLIO: Para sair deste labirinto.
ALBA: Até eu pensei, aqui na cama, faz pouco tempo, que podíamos voltar a começar.
Que estúpida. Já não tem saída, Basílio. Já não tem saída.
BASÍLIO: Vivi sempre sob sua sombra. Sua estrela de glória ocupava lugar demais e,
para mim, não me ocorrera o desatino de ter a minha. Ser esposo de uma cantora não
dá muita credibilidade a um filósofo, me dei conta desde o início que tinha um cheiro
de frivolidade e espetáculo em torno de nossa casa, que sempre descoloriu meus
intentos de me destacar no mundo intelectual. Eu entendi assim faz muito tempo, e
aceitei porque te amava. Apesar de seus excessos e escândalos, eu estava orgulhoso
de você. Mas nunca esteve orgulhosa de mim. Eu só era seu apoio e seu
acompanhante. Ter um intelectual a seu lado te colocava em um nível superior no
mundo do espetáculo, te fazia bem. Deixei de te levar tão a sério quando me dei conta
de que não me levava tão a sério. É um mecanismo de defesa bastante saudável, não
vai poder negar. Alexandra me admira. Pede mina opinião sobre temas políticos.
Mudei sua perspectiva das coisas. Gosto de ter influência sobre ela. Me dar conta de
que ela é uma pessoa melhor comigo. Você é um carvalho, indomável e rígido, um
castelo de opiniões inflexíveis. Eu te amo, Alba. É a mulher da minha vida. Mas me
aborrece.
MARTÍN: Conheci a mulher do quarto ao lado.
ALICE: Que mulher.
MARTÍN: Alba Sarsi.
ALICE: (Ri) A cantora?

Martín não responde, segue de costas para Alice.

ALICE: E posso saber como conheceu Alba Sarsi?


MARTÍN: Teve um acidente em seu quarto, e eu entrei para ajudá-la.
ALICE: E o que aconteceu?

Basílio se senta junto de Alba na poltrona e bebem em silêncio o que sobrou do vinho.

MARTÍN: Encontrei-a em um estado de grande vulnerabilidade e senti que precisava


de alguém que a escutasse.
ALICE: Me rejeitou e foi paquerar uma velha vulnerável.
MARTÍN: Sim.
ALICE: Boa estratégia para não ter filhos.
MARTÍN: Sim.
ALICE: Contou-me isso para se vingar pelo que te disse, não?
MARTÍN: Sim.
ALICE: Não conseguiu.

Martín se vira e olha para Alice.

ALICE: Alba Sarsi não é competição, tem um montão de anos.


MARTÍN: Só dez anos a mais que você.
ALICE: Quer que eu faça uma cena de ciúmes?

Martín não responde.

ALICE: Não vou desperdiçar minhas energias nisso.


MARTÍN: Ah, verdade, está guardando para produzir um filho.
ALICE: Está brincando comigo?
MARTÍN: Alba Sarsi tem tantas rugas na cara quanto você.
ALICE: Alba Sarsi fez cirurgia.
MARTÍN: Poderia ir pensando nisso.
ALICE: Você está tentando afundar o navio com chumbo grosso.
MARTÍN: Também poderia repensar sua alimentação, sua bunda tem crescido.
ALICE: Quer me ferir para que termine contigo.
MARTÍN: Quis beijá-la.

Pausa.

MARTÍN: Agora há pouco me jogou um trapo sujo na cara. Por mais que consiga
entender o porquê de ter feito isso, doeu. Não posso evitar minha vontade de te
devolver o trapo.
ALBA: Já chega, Basílio.

Alice fica de costas para o chão, pensando.

BASÍLIO: Me odeia?
ALBA: Claro que sim.
BASÍLIO: Assim é o amor.
ALBA: Não, querido. Assim não é o amor. O amor é outra coisa. Mas, o que vamos
fazer? Talvez você e eu o tenhamos visto, um dia, e ele nos sorriu de longe. Mas não
soubemos seguir suas pistas.
ALICE: Por quê?
MARTÍN: Não sei. Estava incomodado.
ALICE: Se não aconteceu nada, por que me contou?
MARTÍN: Não sei.
ALICE: Não vou te abandonar, Martín. Eu não vou fazer o que sua mãe fez.

Toca o telefone. Martín não se move. Depois do terceiro toque, Alice o atende.

ALICE: Sim? (...). Não, obrigada, senhorita, já não temos fome. (...). Não, obrigada.
(...). Já. (Desliga o telefone. Volta a olhar Martín)
MARTÍN: O cozinheiro já se recuperou dos ataques de nervos.

Pausa. Alice e Martín se olham.

MARTÍN: Acredita que eu possa ser um bom pai?

Alice abraça Martín: ele se deixa abraçar. Logo ele também a abraça.

XX.

Alba vai mancando muito lentamente até a porta. Daniela entra no quarto. Paz abre os
olhos e olha para Daniela.

DANIELA: Fui te procurar.


PAZ: Não fui muito longe. Não encontrei o caminho de volta para casa.
DANIELA: A noite está muito escura.

Daniela abraça Paz.

PAZ: Ligou para o meu pai?


DANIELA: Não.
PAZ: Vai ligar?
DANIELA: Não.
PAZ: Eu, sim, liguei.

Pausa.

DANIELA: O que ele disse?


PAZ: Que não pode me buscar. (Pausa) Quando vamos voltar para casa?
DANIELA: Amanhã de manhã.
PAZ: Não vai terminar a história de Alice?
DANIELA: Essa história nunca termina.

Alice e Martín desfazem seu abraço e relaxam. Alba chega finalmente à porta e a
abre, convidando Basílio a sair. Basílio, logo em alguns segundos, se põe em pé e vai
até a porta. Basílio e Alba se olham.

ALBA: Eu, sim, te admirava. Admirava sua humildade. Sua generosidade. Sua
inteligência. Sua serenidade. Admirava sua honestidade, Basílio. Sua honestidade.
BASÍLIO: Me perdoe.

Basílio e Alba se olham com tristeza. Basílio vai embora. Alba fica sozinha.

ALBA: Alice, sai do buraco, sai. O sonho acabou.


PAZ: O tarô disse que você e papai vão voltar a ficar juntos.
DANIELA: Acertou.

Martín e Alice juntam suas coisas para irem embora. Alba vê o presente e vai abri-lo.

PAZ: Também disse que vai escrever uma peça de teatro com música, um musical ou
algo assim. Com uma cantora ou bailarina.
DANIELA: Uma cantora?

Alba abre a caixa de presente e olha dentro.

PAZ: E que sua carreira vai dar um grande salto por isso.

Daniela sorri.

ALICE: Vamos?
MARTÍN: Vamos passar a noite aqui.
ALICE: Não, vamos, quero passar um tempinho na casa de minha mãe.
MARTIN: A essa hora?
ALICE: Tenho algo para dizer.
MARTIN: São quase dez.
ALICE: Poderia morrer a qualquer momento. Tenho de dizer algo antes.
ALBA: Alice dormiu demais. Acorda. Acorda.

Daniela e Paz saem abraçadas. Alba olha o interior do presente, satisfeita.

FIM

(1) Fragmento da canção “Tiempo y silencio” de Cesarea Evora.


(2) Fragmento da canção “Nuestra última tarde”, de Gabriela Ferri.

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