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Artigo Conversa de Bar(r)

Antropofagia versus modernismo


No contraponto entre os dois movimentos, é importante recuperar o debate em torno das
artes visuais e a memória de Oswaldo Costa, importante crítico da cultura e da arte da
segunda metade da década de 20, em São Paulo

Por Tadeu Chiarelli - 15 de julho de 2022

É possível imaginar o quanto já foi escrito sobre o modernismo de São Paulo, desde 1922. Um
número incalculável de artigos de jornais e revistas, memórias, livros, dissertações e teses,
assim como exposições, catálogos, palestras e cursos. É justamente esse conjunto de
reflexões que fez com que o modernismo paulistano – e seu ponto crucial, a Semana de Arte
Moderna de 1922 – com o tempo se tornasse um mito, símbolo da renovação da arte e da
cultura brasileiras, um processo contínuo de renovação.

P orém, se muito se escreveu sobre a importância (ou não) da Semana de Arte


Moderna e sobre os efeitos do modernismo no campo da literatura do País, parece-
me que menos problematizada foi a questão das artes visuais.

Não quero afirmar que, em comparação ao papel do modernismo paulista na literatura,


existam menos estudos no campo das artes visuais. Pode ser até que de fato isso ocorra, mas
não é este propriamente o problema. O que interessa sublinhar é: se a história do
modernismo literário de São Paulo é repleta de análises que reelaboram ou colocam em
perspectiva as visões mais canônicas que foram construídas sobre o fenômeno, o mesmo não
ocorre com as artes visuais. A narrativa criada sobre elas encontra-se apaziguada, seus
pressupostos já naturalizados. Estudamos Anita Malfatti, estudamos Candido Portinari, entre
outros, mas são raros os estudos que problematizem o que se convencionou entender sobre o
modernismo paulista nas artes visuais.

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“Antropofagia”, Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Isabella Matheus / Acervo da Fundação José e Paulina
Nemirovsky em comodato com a Pinacoteca de São Paulo

Mas, afinal, o que se convencionou entender como o modernismo nas artes visuais?
Suprimindo alguns eventos também considerados importantes, vamos lá:

1917/1918 – Exposição de Malfatti em São Paulo e a crítica de Monteiro Lobato “contra” a


artista;

1919 – A “descoberta” de Victor Brecheret por Menotti Del Picchia, Helios Seelinger e outros;

1920 – A primeira maquete do escultor para o Monumento às Bandeiras;

1922 – Entre os dias 13 e 17 de fevereiro, a Semana de Arte Moderna, contando com uma
exposição no Theatro Municipal de São Paulo, “apresentando” ao público obras e de Malfatti,
Brecheret e Emiliano Di Cavalcanti, entre outros. A exposição – como todo o evento – teria
sido recebida com escândalo;

1924 – Manifesto Pau-Brasil;

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1924 – Primeira exposição individual de Tarsila em Paris;

1928 – Lançamento do Movimento Antropofágico em São Paulo;

1929 – Primeira exposição individual de Tarsila no Brasil (Rio de Janeiro);

1932 – Criação da Sociedade Pró-Arte Moderna e do Clube dos Artistas Modernos, em São
Paulo.

Seria possível continuar acrescentando datas a essa lista até desaguarmos numa espécie de
apoteose, na criação dos museus de arte na cidade de São Paulo, o Masp, em 1947 e o MAM-
SP, em 1948, sendo que, em seguida, poderíamos acrescentar 1951, data da inauguração da
I Bienal Internacional do Museu de Arte Moderna de São Paulo[1].

Se na história da literatura modernista a supremacia do modernismo foi inúmeras vezes


questionada, no caso das artes visuais ela há décadas se cristalizou como uma narrativa
nascida a partir de uma inquietação apenas individual – leia-se Anita Malfatti –, até
transformar-se em uma necessidade e ação coletivas – a criação dos museus de arte em São
Paulo. Esse relato triunfante teve um arquiteto: o intelectual Paulo Mendes de Almeida, autor
da obra De Anita ao Museu que, antes de ser lançado em forma de livro, foi publicado como
uma série de artigos na imprensa paulistana, durante os anos 1950[2].

É claro que De Anita ao Museu não foi o único elemento a contribuir para a construção dessa
visão – hoje naturalizada – de que, no campo das artes visuais, o modernismo teria se
desenvolvido sem fissuras. Embora considere que o livro de Almeida se tornou a espinha
dorsal desse processo de mitificação do modernismo, outros fatores também contribuíram
para a construção do mito.

Assim, interessaria atentar para certos momentos daquela história ideal em que ela se
chocou com situações concretas que – caso tivessem sido levadas em conta –, teriam
retirado qualquer possibilidade de pensarmos que as artes visuais, de Anita aos museus,
desenvolveram-se em São Paulo sem rachaduras, em um processo coeso, bem articulado e
jamais interrompido.

Talvez o fato que mais comprometa essa visão tão idealizada encontre-se ainda perdido em
alguma publicação obscura ou em um livro de memórias mal divulgado, ou mesmo num diário
esquecido em uma gaveta qualquer. Porém, é quase inacreditável que um dos principais
testemunhos de cisões dentro do modernismo de São Paulo encontra-se documentado em
uma das mais importantes publicações do período, a Revista de Antropofagia, lançada em
São Paulo em 1928 e que circulou até meados do ano seguinte.

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De fato, ninguém parece ter dado a devida atenção para o que demonstra aquela publicação
em relação às artes visuais em São Paulo.

Foi nas páginas da Revista de Antropofagia em que saiu publicado um artigo dividido em
cinco partes de autoria do intelectual Oswaldo Costa.

***

“Cartão-Postal”, Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Coleção Particular RJ

Hoje um nome praticamente esquecido no debate cultural, Oswaldo Costa foi um dos
profissionais importantes da crítica cultural e da crítica de arte da segunda metade da década
de 1920, em São Paulo.

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Nascido no Pará em 1900, foi para o Rio de Janeiro no início dos anos 1920 para estudar
advocacia e, no final da década, encontrava-se em São Paulo trabalhando no Correio
Paulistano e, mais tarde, também na Revista de Antropofagia. No jornal, em alguns de seus
textos, assinava com o pseudônimo Antônio Raposo (que também usava na Revista),
curiosamente um nome que fazia referência a Antônio Raposo Tavares, um bandeirante ativo
no Brasil entre os séculos 16 e 17.

Foi no Correio que Costa publicou artigos sobre alguns modernistas, entre eles Gregori
Warchavchik[3] e Tarsila do Amaral. Sobre essa última, Costa, ao que se sabe, publicaria dois
textos: o primeiro, no dia 21 de setembro de 1929, o autor não assina o artigo; no dia
seguinte, no entanto, usando os mesmos argumentos e assinando como Antônio Raposo, o
crítico situa Tarsila como o nome mais significativo da pintura brasileira da época, e Cartão-
postal, como sua principal obra[4].

Alguns de seus textos publicados na Revista de Antropofagia, deixam claro que, para os
antropófagos, o modernismo de 1922 havia soçobrado num mar de compadrismo e de falta
de criatividade. E isso, não apenas no terreno da literatura, mas igualmente – ou sobretudo –
no âmbito das artes visuais.

***

Antes de trazer alguns dados para a questão, importa não esquecer que Oswaldo Costa não
passou despercebido, nem pela crítica e pesquisadora Aracy Amaral e nem pelo intelectual e
poeta Augusto de Campos. A autora, no livro que publicou sobre Tarsila do Amaral[5], atenta
para o posicionamento crítico de Oswaldo Costa em relação a Tarsila, visíveis nos dois artigos
citados. Porém, Amaral não deixa pistas para que o leitor se familiarize com a escrita de
Costa, descobrindo que, para ele, a pintura moderna no Brasil teria começado com Tarsila (e
não com Anita, ou Di ou Lasar Segall ou qualquer outro artista ligado à Semana de 1922).

Augusto de Campos, na introdução da edição facsimilar da Revista de Antropofagia[6],


salienta a importância do intelectual no âmbito do Movimento Antropofágico. Embora, de
maneira discutível, trate Costa como um “doublé de Oswald (até no nome)”. De qualquer
maneira, o poeta o considera o único intelectual que, na Revista, se “identificava plenamente
com as ideias revolucionárias do Manifesto” concebido por Oswald de Andrade, e publicado
no primeiro número da Revista.

Embora Campos saliente que, para os antropófagos, o modernismo de São Paulo teria sido
“uma fase de transição, uma simples operação de reconhecimento e mais nada”, o autor não
aprofunda o clima de cisão que existia nos textos de Oswaldo Costa que, a certa altura, chega
a perguntar: “em sete anos que resultou para nós da Semana de Arte Moderna?”[7]

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Creio que aqui caberia a pergunta: por que Aracy Amaral e Augusto de Campos, intelectuais
tão argutos, não aprofundaram os elementos de cisão em relação ao modernismo de 22,
explicitado no texto de Costa? Se Amaral nada pronuncia a esse respeito, o máximo a que
Campos se permite é a seguinte consideração:

Se não se preocupam exclusivamente com literatura, não deixam os “antropófagos” de


fazer a crítica interna do modernismo e o corpo de delito de todos quantos, seguidores
de primeira hora do movimento, derivaram para uma atitude moderada ou reacionária.
Disso se encarrega sistematicamente Oswaldo Costa…[8]

A crítica que Oswaldo Costa fazia ao Modernismo não era “interna”. Ao opinar sobre o
modernismo supostamente acanhado de Mario de Andrade e outros, Costa se colocava fora
daquele movimento, entendendo a si e aos demais “antropófagos” como a superação do
Modernismo de 22, e não a sua continuidade.

***

Fotografia do casamento de Pagu


e Oswald de Andrade; da esq.
para dir., Oswald, Pagu, Leonor e
seu esposo Oswaldo Costa. Foto:
Arquivo MIS / Reprodução

Mas essa maneira de pensar o modernismo paulista como uma árvore que, após a Semana
de Arte Moderna, teria dado muitos e diversos frutos, como se sabe, não se encontra apenas
em Augusto de Campos. Outros autores e autoras persistiram e persistem nessa
compreensão grandiosa do modernismo de São Paulo e sua influência hegemônica sobre a
arte e a cultura do país.

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Ao ler o recém-lançado diário de Oswald de Andrade – Diário confessional[9] – fica nítido
como, mesmo para o principal nome do Movimento Antropofágico era difícil pensar 1928,
data do Manifesto Antropófago, como uma cisão fundamental com o Modernismo de 1922.

Em determinado trecho de suas anotações sobre os 30 anos da Semana de Arte Moderna,


até então inéditas, ele parece que vai se posicionar como um partidário da ruptura do
Movimento Antropófago com o Modernismo: “[…] Já em 28, dava-se o estouro e a
compromissão [sic] política em que se forjaria o Brasil novo. Foi aí o divisor das águas
brotadas em 22. A Antropofagia, pela sua revista, congregou os que iriam comigo, mais tarde,
para o marxismo e para a cadeia.”[10]  Mas para ele, a divisão também não significava
rompimento. Tanto é verdade que, mais adiante, ele continua sua reflexão sobre o Movimento
Antropofágico como “divisor das águas brotadas em 22”:

[…] O divisor de águas de 28 provocara uma manifestação de conteúdo que separava os


modernistas em quatro grupo, obrigando-os a exibir, afinal, uma identificação política.

Em 22, houvera uma unidade proclamada pela liderança de São Paulo […] mas, com as
transformações do mundo na década de 20, urgente fora que cada um vestisse a sua
camisa ideológica.[11]

Embora esse trecho possa fazer supor que Oswald entendeu que, em 1928, essa divisão de
águas poderia significar um rompimento efetivo com o passado modernista, pouco mais
tarde ele se exprime, sem cerimônia, sobre a “maturidade da Semana”, demonstrando, então,
que para ele não teria havido ruptura entre 1922 e 1928 (para permanecermos nessas datas
simbólicas):

A maturidade da Semana já produziu três figuras de excepcional segurança e relevo:


uma desconhecida, a do jovem crítico paulista Mário da Silva Brito […] As duas outras
são as do romancista Gustavo Corção e do poeta Cassiano Ricardo. São três derivados
da Semana e neles se estabelece o triunfo de nossas inquietações e pesquisas de 22[12].

Outro dado a enfatizar é que nesse balanço, Andrade demonstrará mais preocupação ainda
com a literatura e a poesia do Brasil, pouco se dedicando às artes visuais. De qualquer
maneira, ele reconhece a importância de artistas do Modernismo “histórico”, como Di
Cavalcanti e Victor Brecheret[13].

Em determinado parágrafo, inclusive, Oswald demonstra uma inequívoca satisfação em


reconhecer como o Modernismo se institucionalizava junto às elites paulista e carioca,
recebendo a adesão do próprio presidente da República:

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Hoje, quando a gente mais civilizada do Brasil, Ciccillo e Yolanda Matarazzo, em São
Paulo, Niomar e Paulo Bittencourt, no Rio, dirigem a avançada triunfal do modernismo,
quando a visão do sr. Getúlio Vargas oficializa a Semana, obrigando conhecidos
paquidermes a pronunciar publicamente confusas besteiras adesistas, bem como a
Academia Brasileira a dobrar o joelho reumático diante de nós, quando é levado ao
governo de Minas Juscelino Kubitschek, o homem que muitos anos atrás chamou Oscar
Niemeyer e Guignard para darem continuidade estética à grande Minas dos
Inconfidentes e do Aleijadinho, difícil é ser passadista.[14]

Interessante como, nessa visão triunfalista de Oswald sobre o fenômeno artístico e cultural do
País, de 1917 a 1952, ele está mais próximo de Paulo Mendes de Almeida, do que seu
parceiro antropófago, Oswaldo Costa.

***

Interessa saber e refletir sobre como Oswaldo Costa se referia, tanto à produção de Victor
Brecheret quanto àquela de Anita Malfatti.

Em Moquem II – Hors d’oeuvre, atentando para a crescente decadência do Modernismo,


Costa explicita seu ponto de vista sobre a carreira de Brecheret:

… Por isso é que o Brecheret de Eva, capaz de nos dar uma obra interessante – apenas
interessante, na minha opinião, porque eu não creio no sr. Brecheret – foi trocado pelo
Brecheret insuportavelmente medíocre dos pastiches de Mestrovic, arte falsa,
decadente, sem nenhuma expressão, superficial, chata e burguesa[15]

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“Eva”, Victor Brecheret. Foto: Creative Commons

Por esse comentário que desqualificava a trajetória do escultor após seu primeiro estágio
europeu, percebe-se que o crítico possuía alguma intimidade com a produção do escultor, e
que estava atento à adesão do então jovem artista às formulações de Ivan Mestrovic, escultor
croata com importante presença no restante da Europa, engajado na constituição de um
corpus escultórico ao mesmo tempo distanciado dos cânones da escultura verista – tão forte
na Itália do início do século passado –, e comprometido com uma linguagem moderadamente
sintética, com uma adesão comedida à modernidade do período.

***

Na edição de 24 de abril da Revista, continuando o artigo, Oswaldo Costa desbanca Mário de


Andrade como intelectual e crítico (a única produção de Andrade que Costa parecia respeitar
era Macunaíma). Ele volta a desbancar Brecheret e, com a intenção de continuar o ataque a
Mário de Andrade, envolve um trabalho de Anita Malfatti, mais especificamente uma pintura
que a artista havia produzido em Paris e que contara com o apoio de Mário de Andrade para
que o Estado de São Paulo o comprasse: a Ressureição de Lázaro: “Ora, quem se baba diante
dos pastiches cretinos de Brecheret – arte de Saint Sulpice, como disse muito bem Fosca.
Quem destaca na exposição de Anita, o que nela havia de ruim, o Lázaro”.[16]

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***

Se esses textos de Oswaldo Costa passaram despercebidos na constituição da historiografia


sobre as artes visuais durante o Modernismo, eles obtiveram certa ressonância na época em
que foram publicados.

Em março de 1929, Helios (pseudônimo de um dos modernistas de 1922, Menotti Del


Picchia), publica no Correio Paulistano, na seção “Crônica Social”, o artigo “Crise no
Modernismo”[17]. O poeta inicia o texto afirmando que o “modernismo estético” de São Paulo
vivia uma crise da qual, talvez, não conseguisse escapar. Irônico, afirma que, talvez a
Antropofagia “do Oswald d´Andrade” tivesse despertado nos “artistas de vanguarda”[18],
uma gula que faria com que se comessem uns aos outros.

Sem citar o nome de Oswaldo Costa e seu longo artigo, publicado na Revista de
Antropofagia, Menotti se explica:

O fato é que Brecheret – o formidável escultor de Eva, que com Anita Malfatti
representou na arte plástica, o grito de renovação – começa a ser considerado
passadista… Para mim, o criador ciclópico de tantas coisas admiráveis, apesar de se ter
metido por um beco de arte perigoso, intelectualizado e amaneirado, continua a ser um
dos maiores artistas nascidos no Brasil[19]

Interessante como Helios, mesmo aparentemente não concordando com aquele julgamento
sobre Brecheret – de quem tinha sido um dos “descobridores” no início dos anos 1920 –, não
perde a oportunidade de registrar seu desgosto frente ao viés “intelectualista e amaneirado”
do escultor.

Sobre a crítica feita a Anita Malfatti na Revista de Antropofagia, Helios afirma:

Anita vai pela mesma rampa, no conceito dos que precipitam a arte pela ladeira abismal
de todos os “ismos” … Anita também, como Brecheret, precisa fazer u´a marcha-a-ré e
voltar àquelas expressões sadias e fortes da arte pessoal e admirável que já soube
documentar com belíssimas telas. Mas Anita é ainda, como Brecheret, santo do meu
mais alto culto. Grande talento, grande sensibilidade, grande cultura[20].

Como visto, o autor reforça a impressão de que a pintura de Malfatti havia regredido em
qualidade, mas não deixa de registar que ela, como Brecheret, estava em alta conta em seu
altar.

Essas declarações sobre os dois artistas – diga-se de passagem – retratam bem o quanto
Menotti Del Picchia se esforçava, em seus artigos e crônicas, em atenuar as críticas que

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poderia ter em relação à produção de um artista ou literato, buscando um equilíbrio entre o
apreciar e o não apreciar, entre o respeito à individualidade do autor (ou autora) e a adesão a
determinadas escolas etc.

De qualquer maneira, é curioso que ele exerça esse tipo de prática que, de forma “ponderada”
tenta ver o que Malfatti e Brecheret têm de bom e criticável, a partir dos comentários de um
artigo que ataca frontalmente os dois amigos, de quem estava junto desde antes a Semana
de 1922[21].

***

O artigo segue salientando que o verdamarelismo[22] também tinha sido atacado, assim como
o “macunaísmo”, ou seja, Mário de Andrade.

Caminhando para o final do artigo, Helios chama a atenção para um fato para ele
fundamental: enquanto se desencadeava a crise a que aludira no início, “o passadismo entra
na idade do ouro”. Diante de tal perigo, ele termina o texto, de forma conciliadora, exortando
os modernistas a reverem suas posições:

Diante de tão grave crise, proponho um armistício geral na ala da frente: uma reação
solidária, fraterna, formando uma fronte única. Sus! Na estacada, os verdamarelos,
antropófagos, macunaimos, livre atiradores, frondistas de todas as cores, rebeldes de
todos os credos!

Sus! Agi antes que nas nossas praças articulem algum outro monstro de bronze e
nossas galerias se inflamem com algum outro cromo, parecido com o cartaz das
pastilhas do dr. Richard […][23]

***

Alguns dias depois, Helios publicaria o artigo Carta aos antropófagos, em que, não sem
ironia, descreve o almoço que os responsáveis pela Revista fizeram em homenagem ao
palhaço Piolim.[24] O autor chama a atenção para o caráter previsível da refeição. Ele parecia
esperar um encontro mais original, tratando-se de um evento formulado por antropófagos!

Ali, Helios atenta também para algo que vem reforçar a dimensão de ruptura entre os
antropófagos e os líderes de outras vertentes atuantes em São Paulo. Nota a ausência, no
almoço, do “grupo Macunaíma” – leia-se Mário de Andrade e seguidores. Para o cronista,
Piolim parecia estar acima de qualquer rixa entre grupos. Ele também chama a atenção para a
ausência dos verdamarelos Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Candido Motta Filho e Alfredo

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Ellis Jr[25]. Ao se perguntar o porquê da ausência desses seus companheiros, menciona
Oswaldo Costa pela primeira e única vez:

Por quê? Já foram acaso comidos pelos antropófagos? O Bopp terá devorado Plínio? O
Oswald d’Andrade teria moqueado Cassiano? E o Motta magruço, nervoso, osso e
músculo quem teria ousado papá-lo? E o Ellis […] estaria, como Jonas, debatendo-se no
ventre do Oswaldo Costa?

Mistérios… O fato é que as tribos andam em guerra[26]

Menotti termina o artigo pesaroso com a situação de esfriamento entre os grupos, dirigindo-
se aos antropófagos também de maneira conciliatória:

Eu sou pela paz. À margem, quieto, anotando, arrasto a tristeza de um pai velhusco que
vê a família desunida…

Meus caros Cunhambebes: eu vos saúdo do fundo do coração e apresto meu cachimbo
para sempre trocarmos as baforadas do fumo da amizade.

Vosso sempre para novos ágapes.

***

Apesar das propostas de armistício de Menotti Del Picchia, as cisões entre os antropófagos
de São Paulo e seus ex-companheiros tenderão a se agravar ainda mais. Daquele final de
década em diante, cada um daqueles grupos (e, de certo modo, cada um dos indivíduos que
os formavam) começará a caminhar separadamente, solitários, ou em grupos mais reduzidos,
em direções opostas.

Assim, o mito de um modernismo triunfante, como já mencionado, apenas seria constituído


com a criação dos Museu de Arte de São Paulo e do Museu de Arte Moderna de São Paulo,
que transformaram a Semana de Arte Moderna de 1922, em berço esplêndido da arte
moderna não apenas de São Paulo, mas de todo Brasil.

________________________________________________________________ 

[1]
– Sobre as relações entre o modernismo paulista e a criação dos museus de arte no nal dos anos 1940, consultar: – CHIARELLI,
Tadeu. “Arte em São Paulo e o núcleo modernista da Coleção”. IN MILIET, Maria Alice (ed.). Coleção Nemirovsky. Rio de Janeiro:
MAM, 2003. E, do mesmo autor: “Que pena Oswald não ter nascido no Rio, né?”. Conversa de bar(r) Plataforma digital da revista
ARTEBrasileiros! 7 de fevereiro de 2022. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/modernismo-ruy-castro/

[2]
– ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976 (Segunda edição: São Paulo, Terceiro Nome,
2014).

[ ]

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[3]
– Segundo herdeiros do arquiteto Gregori Warchavchik, Oswaldo Costa teria publicado o seguinte texto sobre a “Casa
Modernista” projetada pelo arquiteto, em São Paulo: “A primeira realização da arquitetura moderna em São Paulo”. São Paulo.
Correio Paulistano. 8 de julho de 1928, p.3. Os dois artigos sobre Tarsila foram republicados em AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e
seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975. Pág. 463 e segs., vol. I.

[4]
– “EXPOSIÇÃO Tarsila do Amaral”. Correio Paulistano. São Paulo, 21 de setembro de 1929 p. 5; “Tarsila”. RAPOSO, Antonio.
“Tarsila”. Correio Paulistano. São Paulo, 22 de setembro de 1929, p.2.

[5] – AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975. Pág. 267, vol. I.

[6]
– “Revistas re-vistas: os antropófagos”. Augusto de Campos. IN Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária Publicada
em S. Paulo – 1ª. e 2ª. dentições, 1928/29. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.

[7] – Idem.

[8] – Idem.

[9] – ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organização Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

[10] – ANDRADE, Oswald. Op.cit. p. 564.

[11] – Idem, pág.566 e 567.

[12] – Idem, pág. 569.

[13] – Embora se re ra sempre de maneira pouco elogiosa a este último.

[14] – ANDRADE, Oswald. Op. Cit. Pág. 563.

[15] – “Moquen II – Hors d’oeuvre”. Oswaldo Costa (Como Tamandaré). Revista de Antropofagia. 14. 04, 1929

[16]
– “Moquem III – Entradas”. Oswaldo Costa (como Tamandaré), Revista de Antropofagia24. 4. 1929. Aqui, Costa faz referência à
pintura Ressureição de Lázaro, de Malfatti (hoje no acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo), obra de qualidade discutível,
dentro do conjunto de pinturas da artista, e que Andrade elogiou, visando interferir na decisão do Governo em comprar a peça. Em
carta do crítico para a pintora, Mário a rma que pela amizade entre ambos, ele mentira publicamente sobre a obra, fornecendo-lhe
qualidades que ela não possuía. Sobre o assunto, ler: ANDRADE, Mário. Mário de Andrade. Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1989.

[17] – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Crônica Social. Correio Paulistano. 20 de março de 1929, pág. 5.

[18]
– É importante frisar que Helios deixa clara a divisão que faz da arte moderna: de um lado, os modernistas, “artistas de
vanguarda”. Do outro o “novo espírito estético, que esse é um estado de consciência, logo uma vitória universal”. O autor se
colocava nessa segunda vertente mais comedia. Sobre o assunto, ler: “”Sou moderno, mas não sou maluco”. Menotti Del Picchia e a
arte”. No prelo.

[19] – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.

[20] – Idem.

[21]
– Haveria nessa atitude o surgimento de algum tipo de ressentimento por parte do crítico, em relação aos dois artistas? Mais
estudos poderão responder à pergunta.

[22]
– “Verdamarelismo”, era a vertente modernista criada por Menotti, Plinio Salgado e Cassiano Ricardo, da qual também
participavam, Raul Bopp (que depois migraria para a Antropofagia), Candido Motta Filho e Alfredo Ellis Jr.

[23]  – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.

[24] – “Carta aos antropófagos”. Helios (Menotti Del Picchia). Crônica Social. Correio Paulistano. São Paulo, 17 de abril de 1929, p. 4.

[ ]

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[25]– Importante reparar que pelo que Helios a rma, parece que apenas ele, Menotti, teria ido ao evento organizado pelos
antropófagos. Sua postura conciliadora teria sido mais forte do que a atitude de Mário e seus companheiros, e de seus colegas do
movimento Verdamarelo. Menotti ser o único “não antropófago” no banquete, diz muito sobre a personalidade do intelectual, mas
diz também bastante sobre como as relações entre os artistas e literatos da cidade estavam esgarçadas.

[26] – “Carta aos antropófagos”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.

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