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Efeito de salting out em macromoléculas

O efeito de salting out, em que adicionamos algum sal a uma solução aquosa de uma
macromolécula (uma proteína ou outro tipo de polímero)1 ou até mesmo coloides que por sua
vez precipitam, sendo esta, uma estratégia útil para extração e purificação.2 Além disso,
podemos usar este efeito para facilitar a separação de moléculas orgânicas menores. Neste caso,
além da água, temos um solvente orgânico (imiscível em água) sendo que a adição de sal não só
a diminui a solubilidade da molécula de interesse na fase aquosa quanto modifica o coeficiente
de partição da mistura (dado pela razão da concentração molar da espécie na fase orgânica pela
concentração na fase aquosa), favorecendo a extração da molécula de interesse na fase
orgânica.3 Alguns sais se mostram melhores nesta tarefa que outros o que nos obriga a tentar
racionalizar este comportamento. Franz Hofmeister e seus colaboradores trabalharam na
direção de compreender este efeito reportando suas observações ao longo de sete artigos (em
alemão) entre 1887 e 1898. Estes artigos, traduzidos para o inglês em 2004, 2,4 não são apenas
curiosidade histórica, mas motivam práticas corriqueiras em laboratórios de química e
bioquímica como mencionadas anteriormente. Além do efeito salting out podemos observar o
efeito salting in, quando a adição de sal promove a solubilização de uma espécie. Do ponto de
vista termodinâmico, ambos efeitos podem ser entendidos como um acoplamento do potencial
químico de uma das substâncias ao número de mols (ou concentração de outra).

A classificação de Hofmeister levou a proposição de duas classes de compostos:


cosmotrópicos (os que levam a ordem) teriam maior capacidade de organizar sua esfera de
hidratação chegando até mesmo a sequestrar moléculas de água interagindo com o soluto,
enquanto os caotrópicos (que levam ao caos), não. Desta forma, íons cosmotrópicos seriam mais
efetivos no efeito salting out enquanto caotrópicos favoreceriam o efeito salting in. Conforme
o esquema da Figura 1, íons como F- e SO42- seriam cosmotrópicos enquanto I-, ClO4- seriam
caotrópicos.2

Apesar da simplicidade deste modelo que funciona bem para ânions, a classificação de
cátions é mais complexa. Além disso, evidências experimentais contradizem a série de
Hofmeister, como no caso da lisozima, que segue esta série em pHs básicos, mas segue a série
reversa em pHs neutros e ácidos.2,5 Exemplos como o da lisozima indicam que modelos como o
da série de Hofmeister, que desconsideram especificidades da estrutura das macromoléculas e
a relação de grupos funcionais de superfície com a hidratação e interação com os íons com estes
grupos podem gerar situações aparentemente incoerentes.
Figura 1: Versão moderna a série de Hofmeister para cátions e ânions. Adaptado da referência
[2]. Gdn+ é o cátion guanidina, Ac- o ânion acetato, Cit- o ânion citrato.

Para melhorar a compreensão da relação entre as interações de superfície e os efeitos


de salting out (in) diversas técnicas experimentais como ressonância magnética nuclear (NMR),
espectroscopia infravermelho com transformada de Fourier por reflectância total atenuada
(ATR-FTIR) para sonda as interações entre sais e grupos funcionais através dos deslocamentos
químicos (NMR) ou de variações de frequências vibracionais (ATR-FTIR). Um exemplo do uso
deste tipo de análise é mostrado na Figura 2 na região da Amida I em soluções de água deuterada
sem sal (a), com NaCl (b) e com CaCl2 (c).6 Além disso, técnicas computacionais, como simulação
de dinâmica molecular clássica, tem sido utilizadas e permitido que sejam estudados efeitos
além daqueles compreendidos pela série de Hofmeister.2

Figura 2: Influência da adição de sal na região do modo amida I em soluções de água deuterada:
(a) sem sal, (b) em solução de NaCl e (c) em solução de CaCl2. Adaptado da referência [6].
Como discutido no relatório, a temperatura influência significativamente o
comportamento deste tipo de mistura modificando, por exemplo, as regiões e a posição da linha
binodal e a região delimitada pelas linhas binodal e espinodal. Além da região delimitada por
estas duas curvas o ponto de Plait (ou ponto crítico) também é influenciado pela temperatura.
Há uma temperatura até na qual o sistema é miscível em qualquer composição. A esta
temperatura chamamos de temperatura crítica de solução inferior (Lower Critical Solution
Temperature, LCST), sendo observada separação de fase acima dela. Para o caso de
macromoléculas a passagem através do LCST está associado a uma variação do volume onde o
sistema pode transitar de uma forma estendida com grupos hidrofílicos expostos em sua
superfície para um estado hidrofóbico, isto é mostrado pelo gráfico de probabilidade versus área
de superfície acessível ao solvente por unidade monomérica (ASAS) para o polímero PNIPAM
(poli(N-isopropilacrilamida)) na Figura 3, resultado obtido por simulação de dinâmica molecular
clássica.7

Figura 3: Distribuição de probabilidade de regiões acessíveis por solvente para PNIPAM para
estados colapsados (acima de LCST) e estendido (abaixo do LCST). As barras vermelhas são
regiões acessíveis a solventes polares e marrons são acessíveis a solventes não-polares. As
barras finas indicam valores médios para as distribuições de probabilidade. Adaptado da
referência [7].

Similarmente ao realizado no laboratório poderíamos determinar diversos diagramas


ternários em diversas temperaturas e determinar a influência da temperatura sobre as curvas
binodal e espinodal além dos pontos críticos. No caso da LCST, pode-se modelar sua
dependência com a temperatura (T) e concentração de sal ([M]) por uma equação como a
mostrada em (1) utilizada para macromoléculas neutras:

𝐾𝐷 [𝑀]
𝑇 = 𝑇0 + 𝑐[𝑀] + 𝐵𝑀𝑎𝑥 (1),
𝐾𝐷 + [𝑀]

onde T0 é a temperatura de transição na ausência de sal e c é uma constante que descreve a


variação linear da temperatura de transição. Este último termo descreve a interação dos íons
com a superfície do polímero: BMax é a variação máxima na LCST devido a interação do polímero
com o íon e KD é uma constante associada a energia livre de ligação do íon com o polímero. A
Equação (1) pode ser compreendida como sendo formada por dois termos: de variação da LCST
linear (representada por T0 e c) e outra de tipo isoterma de Langmuir contendo KD e BMax.
Graficamente, ∆T=T-T0 versus [M] apresenta o comportamento como o da Figura 4, onde a curva
pontilhada a variação linear domina e para curva inteira a contribuição do termo tipo Langmuir
se torna mais relevante. Como a Equação (1) é dada pela soma dos termos lineares e de
Langmuir, podemos observar a contribuição de cada um destes termos para a variação da LCST
de forma separada, como ilustrado no detalhe da Figura 4.

-2

-4
DT (K)

0
DT-TLangmuir(K)

-6
-5
-8
-10

0,0 0,5 1,0


-10 -1
[M] (mol L )

0,0 0,2 0,4 0,6 0,8 1,0


[M](mol L-1)

Figura 4: Comportamento típico da variação do LCST (∆T) em função da concentração de sal para
o regime linear (linha pontilhada) e o regime linear mais de Langmuir (linha cheia). Detalhe,
contribuição do termo linear a variação do LCST.
A Equação (1) pode ser justificada dentro de um modelo termodinâmico motivado pela
observação da Figura 3, onde a macromolécula ou encontra-se em um estado estendido (E) ou
colapsado (C), de tal forma que o equilíbrio pode ser estabelecido (Equação (2)):

𝐶⇌𝐸 (2)

Na temperatura T0 (que na Equação 1, já possuía o significado da temperatura de


transição na ausência de sal, concentração molal† de sal, W=0) temos que a variação de energia
livre de Gibbs por unidade monomérica (ΔG(W=0,T0)) é dada por:

∆𝐺 (𝑊 = 0, 𝑇0 ) = 𝐺𝐶 (𝑊 = 0, 𝑇0 ) − 𝐺𝐸 (𝑊 = 0, 𝑇0 ) (3),

em que, pela definição de ΔG, podemos definir a entropia desta transição (ΔS0(W=0,T0)):

∆𝐻0 (𝑊 = 0, 𝑇0 )
∆𝑆0 (𝑊 = 0, 𝑇0 ) = (4),
𝑇0

onde ΔH0(W=0, T0) é a entalpia de transição do sistema. Para pequenas perturbações no sistema,
como a adição de uma concentração de sal, W, ou pequenas variações de temperatura, ΔT,
podemos escrever uma expansão em série de Taylor para a energia livre de Gibbs em torno de
ΔG(W=0, T0). Levando esta expansão até segunda ordem e introduzindo a entropia de transição,
ΔS0(W=0, T0), a variação desta entropia devido a adição de sal ΔS0’ temos que a variação da LCST
é dada por:

𝜕∆𝐺 1 𝜕 2 ∆𝐺 2
()𝑊 + (
𝜕𝑊 2 𝜕𝑊 2 ) 𝑊
∆𝑇(𝑊 ) = − (5)
∆𝑆0 + ∆𝑆0′ 𝑊

As derivadas de ΔG em função da concentração não são usuais. Na literatura de


proteínas a primeira derivada da energia livre de Gibbs de transição para uma proteína em
função da concentração molal é reconhecida como o parâmetro m, específico para cada íon. No
caso de proteínas, este parâmetro é uma primeira aproximação para caracterizar os efeitos
termodinâmicos de outros solutos adicionados ao meio (cossolutos) além da proteína. Seguindo
esta lógica, a derivada segunda é tratada como m’, isto é, modelando os efeitos de segunda
ordem do sal sobre a energia livre de transição. Substituindo estes parâmetros na equação (5)
temos que a variação da LCST é dada por:

1
𝑚𝑊 + 2 𝑚′𝑊 2
∆𝑇 (𝑊 ) = − (6)
∆𝑆0 + ∆𝑆0′ 𝑊

†[molal]=mol de soluto/kg de solvente


Os valores de m são negativos para os sais considerados (pela série de Hofmeister)
cosmotrópicos (mais eficientes para o efeito salting out) enquanto valores de m mais positivos
são atribuídos para sais caotrópicos (mais eficientes para o salting in).

Perguntas
Neste estudo dirigido propõe-se o estudo do efeito salting out com o polímero poli(2-n-propil-
2-oxazolina), PnPropOx. Procure na literatura as características e a estrutura deste polímero.

1) Baseado na sua pesquisa sobre este polímero, quais as técnicas analíticas você utilizaria
para construir o diagrama ternário deste sistema? Justifique sua resposta.
2) Em linhas gerais, a área sobre a curva binodal aumentaria ou diminuiria com o aumento
de temperatura para um sistema onde a separação de fases é endergônico?
3) Compare as equações (1) e (6) e mostre a equivalência dos parâmetros dos modelos
empírico e termodinâmico. Forneça uma interpretação para os parâmetros empíricos
baseado no modelo termodinâmico.
4) Plote os pontos obtidos experimentalmente (quadro 1) para este polímero
considerando os dois sais e responda:
a. Baseado nos gráficos, para qual dos sais m’ e ∆S’0 são diferentes de zero?
b. Estime o valor de c e T0 para o polímero com m’=0 e ∆S’0=0.
c. Baseado na sua resposta acima faça um gráfico de T-TLangmuir para este sistema
e estime c e T0. Correlacione os valores de c com características do ânion. Dado
BMax= -109,220 °C e KD= 0,35602.
d. A partir da estrutura do polímero, proponha como se dão as interações entre
grupos de superfície do polímero, água, cátions e ânions. Identifique os tipos de
interações intermoleculares que podem ocorrer.
5) Em posse das curvas do exercício anterior, considerando uma determinada aplicação
onde se necessita que o polímero sofra a transição muito abaixo de T0 qual dos dois sais
seria mais indicado para realizar o salting out? Esses resultados estão de acordo ou
contradizem a série de Hofmeister?
Quadro 1: Variação da LCST com a concentração molar, [M] para PEO considerando KBr e KF.

Na2SO4 NaCl
LCST(°C) [M] (mol/l) LCST(°C) [M](mol/l)
26,62140 0,00000 26,62140 0,00000
19,93353 0,10040 22,76168 0,10180
15,49102 0,20015 20,31649 0,19961
11,63087 0,29991 18,53619 0,29943
9,93353 0,40040 18,33590 0,40129
10,15033 0,49894 16,30646 0,49977
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Referências

1. Jungwirth, P. & Cremer, P. S. Beyond Hofmeister. Nat. Chem. 6, 261–263 (2014).

2. Okur, H. I. et al. Beyond the Hofmeister Series: Ion-Specific Effects on Proteins and
Their Biological Functions. J. Phys. Chem. B 121, 1997–2014 (2017).

3. Hyde, A. M. et al. General Principles and Strategies for Salting-Out Informed by the
Hofmeister Series. Org. Process Res. Dev. 21, 1355–1370 (2017).

4. Kunz, W., Henle, J. & Ninham, B. W. ‘Zur Lehre von der Wirkung der Salze’ (about the
science of the effect of salts): Franz Hofmeister’s historical papers. Curr. Opin. Colloid
Interface Sci. 9, 19–37 (2004).

5. Zhang, Y. & Cremer, P. S. The inverse and direct Hofmeister series for lysozyme. Proc.
Natl. Acad. Sci. 106, 15249–15253 (2009).

6. Okur, H. I., Kherb, J. & Cremer, P. S. Cations Bind Only Weakly to Amides in Aqueous
Solutions. J. Am. Chem. Soc. 135, 5062–5067 (2013).

7. Heyda, J. & Dzubiella, J. Thermodynamic Description of Hofmeister Effects on the LCST


of Thermosensitive Polymers. J. Phys. Chem. B 118, 10979–10988 (2014).

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